457000_pdf- poder judiciario em crise

315
O PODER JUDICIÁRIO E(M) CRISE

Upload: dede3m

Post on 31-Jul-2015

277 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

Page 1: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

O PODER JUDICIÁRIO E(M) CRISE

Page 2: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

www.lumenjuris.com.br

EDITORESJoão de Almeida

João Luiz da Silva Almeida

CONSELHO EDITORIAL

Alexandre Freitas CâmaraAmilton Bueno de CarvalhoCezar Roberto BitencourtCesar FloresCristiano Chaves de FariasCarlos Eduardo Adriano JapiassúFauzi Hassan ChoukrFirly Nascimento FilhoFrancisco de Assis M. TavaresGeraldo L. M. PradoGustavo Sénéchal de GoffredoJ. M. Leoni Lopes de OliveiraJosé dos Santos Carvalho FilhoLúcio Antônio Chamon JuniorManoel Messias PeixinhoMarcellus Polastri LimaMarcos Juruena Villela SoutoNelson RosenvaldPaulo de Bessa AntunesPaulo RangelRafael BarrettoRicardo Máximo Gomes FerrazSalo de CarvalhoVictor Gameiro Drummond Társis Nametala Sarlo Jorge

CONSELHO CONSULTIVO

Álvaro Mayrink da CostaAntonio Carlos Martins SoaresAugusto ZimmermannAurélio Wander BastosElida SéguinFlávia Lages de CastroFlávio Alves MartinsGisele CittadinoHumberto Dalla Bernardina de PinhoJoão Theotonio Mendes de Almeida Jr.José Fernando de Castro FariasJosé Ribas VieiraLuiz Ferlizardo BarrosoMarcello CiotolaOmar Gama Ben KaussSergio Demoro Hamilton

Rio de JaneiroCentro – Rua da Assembléia, 10 Loja G/HCEP 20011-000 – CentroRio de Janeiro – RJ Tel. (21) 2531-2199 Fax 2242-1148

Barra – Avenida das Américas, 4200 Loja EUniversidade Estácio de Sá Campus Tom Jobim – CEP 22630-011Barra da Tijuca – Rio de Janeiro – RJTel. (21) 2432-2548 / 3150-1980

São PauloRua Correia Vasques, 48 – CEP: 04038-010 Vila Clementino – São Paulo – SP Telefax (11) 5908-0240 / 5081-7772

BrasíliaSCLS quadra, 402 bloco B Loja 35CEP 70235-520 Asa Sul – Brasília – DFTel. (61)3225-8569

Minas GeraisAv. Augusto de Lima, 479 sl. 1609 CEP 30190-000 – Centro Belo Horizonte – MG Tel. (31) 3201-1148

BahiaRua Dr. José Peroba, 349 – CEP 41770-235 Costa Azul – Salvador – BA Tel. (71) 3341-3646

Rio Grande do SulRua Uruguai, 287 – Conjunto 62 CEP 90010-140 – Centro – Porto Alegre – RSTel. (51) 3212-8590

Espírito SantoAv. Nossa Senhora da Penha, 565 – Sl. 911 Ed. Royal Center – CEP: 29055-131Praia do Canto – Vitória – ES.Tel.: (27) 3235-8628 / 3225-1659

Page 3: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

BERNARDO GONÇALVES FERNANDESMestre e Doutor em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG);

Professor de Teoria da Constituição e Direito Constitucional da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP);

Professor de Direito Penal, Teoria da Constituição e Direito Constitucional da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG);

Professor de Teoria da Constituição, Direito Constitucional e HermenêuticaJurídica no Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix; Professor de Direito Constitucional Praetorium-SAT (Brasil) e Praetorium (Rio de Janeiro) e dos Cursos de Pós-graduação

em Direito Público do Jus Podivm (Salvador – Bahia).

FLÁVIO QUINAUD PEDRONMestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG);

Professor de Teoria Geral do Processo na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG);

Professor de Teoria do Estado, Filosofia do Direito e Hermenêutica no Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix.

O PODER JUDICIÁRIO E(M) CRISEReflexões de Teoria da Constituição e Teoria Geral

do Processo sobre o Acesso à Justiça e as RecentesReformas do Poder Judiciário à luz de: RonaldDworkin, Klaus Günther e Jürgen Habermas

EDITORA LUMEN JURIS

Rio de Janeiro2007

Page 4: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise
Page 5: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

A Minha esposa Rachel Ferreira Cazotti,por nossa abençoada comunhão. A meu pai,pelo exemplo de vida.

Bernardo Gonçalves Fernandes

Aos meus avôs, Tia Lene, meu pai e Lu,pelo constante incentivo e pela esperança emmim depositada.

Flávio Quinaud Pedron

Page 6: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise
Page 7: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

Agradecimentos,

Em especial ao Professor Menelick deCarvalho Netto meu orientador no mestrado,doutorado e na vida.

Ao Professor José Luiz Quadros, por tudo:ontem, hoje e sempre. Ao Professor AroldoPlínio, pelo exemplo.

Ao Professor Marcelo Andrade Cattoni,pela amizade.

Ao Marcus Vinícius, pela consideração.

Bernardo Gonçalves Fernandes

Ao Professor Marcelo Andrade Cattoni eao Professor Menelick de Carvalho Netto,pelas lições dentro e fora da academia. Aosamigos, Arthur Martins e Bruno Arantes,colegas de academia, co-partícipes no projetode um direito democrático.

Flávio Quinaud Pedron

Page 8: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise
Page 9: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

Prefácio

Page 10: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise
Page 11: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

Sumário

xi

Page 12: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise
Page 13: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

IntroduçãoObjetivos e Marco Teórico

O movimento por “acesso à Justiça”1 tem representa-do, nas últimas décadas, a mais importante expressão deuma monumental transformação do pensamento jurídico edas reformas normativas e institucionais dos países queprocuram resposta para a crise do direito e do judiciário emnossa época. No Brasil, como não poderia deixar de ser, otema tem sido objeto de inúmeras discussões e reflexõesnos últimos anos. Expressões como: “obstáculos (barreiras)ao acesso à Justiça”, “falta de acesso à Justiça”, “descren-ça (desilusão) na Justiça”, “inflação e insuficiência da ati-vidade jurisdicional”,2 bem como a “crise do Judiciário”,

1

1 Preliminarmente, deve ser aclarado que o termo “acesso à Justiça”, orautilizado na pesquisa, faz uso da palavra “Justiça” em maiúsculo, nãocomo materializadora de uma pretensão de validade sobre a correçãonormativa, mas no sentido difundido pelos processualistas filiados a cor-rente instrumentalista, como Poder Judiciário. Aqui é nítida a confusão(talvez uma perversidade proposital) entre o Judiciário, como órgão esta-tal para discussão de conflitos normativos e a Justiça, como consensoracional sobre a ação humana.

2 O debate gira em torno, na maioria das vezes, de uma preocupação cen-tral da doutrina tradicional pátria envolvendo a quantidade de processos(aspecto quantitativo) e a limitação de recursos tanto humanos quantomateriais disponíveis para um “acesso à Justiça” que seja célere, efetivoe traduza respostas rápidas e eficazes aos conflitos levedos à mesma.Dados que confirmam as preocupações da dogmática tradicional são,recorrentemente trazidos a cotejo, para justificar a preocupação com oacesso ou a falta do mesmo à Justiça nos tempos atuais. Nesse sentido:“A simples enumeração de alguns dados é suficiente para atestar (obser-var) o problema no Brasil. O Supremo Tribunal Federal recebeu, no ano de1970, 6.367 processos; em 1980, foram 9.555, dez anos depois, 18.564; noano de 1998 o número atingiu o montante de 52.636 processos recebidos.(...) cabe lembrar que o STF, na essência, é a corte ConstitucionalBrasileira composta de apenas 11 ministros. Órgãos semelhantes, no ce-

Page 14: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

com a necessidade sempre recorrente de reformas, sãopalavras da moda.

Este trabalho surge no desafiante contexto socialhodierno de uma filosofia pós-consciência, marcada poruma profunda e crescente diferenciação entre os vários sub-sistemas sociais, por uma acentuada autonomização deantigas esferas normativas (Moralidade, Eticidade, Religiãoe Direito) através de um processo de modernização caracte-rizado pela racionalização social e cultural, pela diversidadee pluralidade de formas de vida e de visões de mundo asmais diferentes – e até concorrentes e em desacordo – acer-ca do que seja justo, perfazendo assim o conceito de socie-dades altamente complexas, diferenciadas, descentraliza-das, autonomizadas e em crescente processo de globaliza-ção e internacionalização (HABERMAS, 1997; RAWLS,1993a; CATTONI DE OLIVEIRA, 2000; FERNANDES, 2004).

A presente pesquisa visa, de forma crítica, a estabele-cer uma discussão com a doutrina tradicional pátria sobreo que iremos cunhar de “acesso qualitativo à Justiça”. Maso que queremos dizer com isso? O que seria “acesso quali-tativo à Justiça”?

Pois bem, o “acesso à Justiça” sob o aspecto qualita-tivo buscará ater-se à tão sonhada legitimidade das deci-sões sob o paradigma jurídico do Estado Democrático doDireito, servindo o mesmo, em nosso trabalho, de contra-

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

2

nário internacional, apresentam realidade diversa. A Suprema CorteAmericana, em 1994, julgou 300 processos. Em Portugal, foram julgados900. No Superior Tribunal de Justiça brasileiro, nos anos de 1989 e 1990,foram distribuídos, respectivamente, 6.103 e 14.087 processos. Em 1994,o número subiu para 38.670 e, em 1998, alcançou a quantidade de 92.107feitos. No Tribunal Superior do Trabalho, por sua vez, foram autuados, nosanos de 1990, 1994 e 1998, pela ordem, 20.276, 65.792 e 131.413 proces-sos. Na 1º instância da Justiça Estadual, Federal e do Trabalho, entraram,nos anos de 1990, 1994 e 1998, ao todo 5.117.059, 5.147.652 e 10.201.289processos, retrospectivamente. (...) Entre 1990 e 1998, o número de pro-cessos distribuídos aumentou em 56,8% na Justiça do Trabalho, 106,4%na do Estado e 206,4% na Federal” (MENDES, 2002:28).

Page 15: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

ponto a toda uma corrente “processual instrumentalista” e“constitucional materialista” que fomenta a maioria dosjuristas nacionais, atrelados a um axiologismo tributário dajurisprudência dos valores alemã – de viés comunitarista –não condizente, como veremos, com o “modelo constitucio-nal do processo”, adequado a um pluralismo discursivo-democrático que será defendido.

A preocupação central da obra girará em torno do PoderJudiciário e de sua (suposta) crise funcional. Todavia, adian-tamos que poucas são as obras pátrias preocupadas em veri-ficar se na realidade tal “crise” não revela um outro prismaque tem ficado olvidado (esquecido): a questão da legitimi-dade no que tange às decisões prolatadas (e isso sim, é oque chamaremos de um “acesso qualitativo”), que não sereduz aos problemas de operacionalidade e de eficiência(acesso meramente quantitativo à Justiça) institucional.

Não é por acaso que Ronald Dworkin (1999), jusfilóso-fo norte-americano e um dos mais importantes pensadoresdo Direito contemporâneo, ressalta a importância de comoo judiciário e as suas decisões afetam, e muito, a vida detodos nós que vivemos, de uma forma ou de outra, sob oque denominou de “império do Direito”. Para ele, é impor-tante (e central no Direto hodierno) o modo como os juízesdecidem os casos que lhes são apresentados. Exempli-ficando, cita Learned Hand, um dos melhores e mais famo-sos juízes dos Estados Unidos que reconhecia ter maismedo de um processo judicial que da morte ou dos impos-tos. Nesse sentido:

“Os processos criminais são os mais temidos de todos,e também os mais fascinantes para o público. Mas osprocessos civis, nos quais uma pessoa pede que outraindenize ou ampare por causa de algum dano causadono passado ou ameaça de dano, têm, às vezes, conse-qüências muito mais amplas que a maioria dos proces-

O Poder Judiciário e(m) Crise

3

Page 16: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

sos criminais. A diferença entre dignidade e ruínapode depender de um simples argumento que talveznão fosse tão poderoso aos olhos de outro juiz, oumesmo o mesmo juiz no dia seguinte. As pessoas fre-qüentemente se vêem na iminência de ganhar ou per-der muito mais em decorrência de um aceno de cabe-ça do juiz do que de qualquer norma geral que prove-nha do legislativo” (DWORKIN, 1999:03).

Mas qual origem (e o porquê) de tais questionamentossobre a crise do poder judiciário e a dificuldade de um aces-so à Justiça adequado? Será que no atual paradigma jurídi-co do Estado Democrático de Direito abriga-se (ainda) apossibilidade de que o direito seja produto da vontade indi-vidual e momentânea do magistrado? Será que não há ele-mentos – até mesmo processuais – para o desenvolvimentode uma construção conjunta das partes na decisão? Ouestaríamos fadados a aceitar a afirmação de outro juiznorte-americano, Oliver Wendell Holmes, para quem o direi-to (e naturalmente a decisão judicial) era entendido comouma conseqüência do “café da manhã” dos magistrados?

Preliminarmente, devemos lembrar-nos de que aolongo da história institucional brasileira, o processo demo-crático foi marcado por uma caminhada de longos e profun-dos tropeços e que, supostamente, a Carta de 1988, conhe-cida como a “Constituição Cidadã”, talvez exerça um papelfundamental na mudança do quadro que apresentamos. Narealidade, a leitura do texto maior demandará uma discus-são a respeito de paradigmas que concorrentemente aindacompetem na disputa por qual seja a melhor leitura donosso direito e de nossas práticas sociais (o que inclui aspráticas jurídicas). Por isso mesmo, após a breve descriçãodos objetivos do trabalho, será de suma importância queprecisemos o pano de fundo teórico a ser abordado e de-senvolvido, isto é, o marco teórico.

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

4

Page 17: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

Logo, não poderia ser diferente – conforme os motivosque ainda iremos apresentar – que para tal empreitada lan-çássemos mão da teoria discursiva do direito de JürgenHabermas, que à luz de uma filosofia pós-metafísica da lin-guagem – diferentemente, por exemplo, de uma filosofia daconsciência, apegada a uma teoria dos dois mundos ou deuma teoria constitucional de cunho ontológico, que realizauma releitura dicotômica (em oposição) entre aConstituição real e a Constituição ideal – que trabalha a“tensão” (e não oposição!) entre a “faticidade e validade”,que permeia todo o Direito moderno. Nessa ótica, o Direitomoderno teria o “peso” da faticidade de ser imposto decima para baixo e, por isso mesmo, deveria “requerer” legi-timidade. Este é inclusive um problema sério da moderni-dade, pois não se encontra “ditadura que se afirme comoditadura” e que não se fundamente como democracia ou“governo do povo”, ainda que, para isso, seja preciso falarque o povo é “débil mental” e que o governo estará cuidan-do dele até que ele (povo) amadureça. Afinal, como já nosalerta Müller (1998), falar em povo é utilizarmos de um con-ceito “gordo”, facilmente manipulável.

Também nesse sentido é importante observarmos que ateoria discursiva do Direito busca, sem dúvida alguma, supe-rar os dilemas epistemológicos legados pelo Positivismo, pelaHermenêutica Filosófica e pelo Realismo Jurídico (BARACHOJÚNIOR, 1998:208; CATTONI OLIVEIRA, 2000:33), na medidaem que não se deixa vincular a um único ponto de vista dis-ciplinar, mas pelo contrário, permanece aberta a diferentespontos de vista metodológicos,3 segundo Habermas:

O Poder Judiciário e(m) Crise

5

3 Freitag (2002) ilustra bem a questão, quando justificando sua opção peloautor, através do exemplo dos campos da moral e da ética, demonstraque o pensamento habermasiano busca abrir-se para um discurso nãorestrito aos filósofos (Platão, Aristóteles, Kant, Hegel, etc.), sendo maisabrangente em seu conteúdo, a ponto de adentrar em discussões pró-prias da Sociologia (Weber, Durkhein, Parsons, Luhmann, etc.), daHistória (Koselleck, Hobsbawn), da Psicologia (Freud, Piaget, Kohlberg,

Page 18: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

“Arrastada para cá e para lá, entre a faticidade e vali-dade, a teoria da política e do direito decompõe-seatualmente em facções que nada têm a dizer umas àsoutras. A tensão entre princípios normativistas, quecorrem o risco de perder o contato com a realidadesocial, e princípios objetivistas, que deixam fora defoco qualquer aspecto normativo, pode ser entendidacomo admoestação para não nos fixarmos numa únicaorientação disciplinar e, sim, nos mantermos abertos adiferentes posições metódicas (participante versusobservador), a diferentes finalidades teóricas (explica-ção hermenêutica do sentido e análise conceitual ver-sus descrição e explicação empírica), a diferentes pers-pectivas de papéis (o do juiz, do político, do legislador,do cliente e do cidadão) e a variados enfoques pragmá-ticos na pesquisa (hermenêuticos, críticos, analíticos,etc). As pesquisas delineadas a seguir movimentam-senesse amplo espaço”. (HABERMAS, 1997:25)

Com isso, a teoria que adotamos tenta desvincular-seda falácia culturalista de pensar sempre a Constituição emtermos de Real x Ideal, enxergando (à luz de uma tradiçãoora rechaçada) um “hiato” (buraco, lacuna) entre o direitoe a realidade, o que faz com que se mantenha cega à ten-são (já aqui citada) entre a faticidade e a validade (CAT-TONI OLIVEIRA, 2000:38), pois segundo nossa linha deabordagem, que será desenvolvida, não há (definitivamen-te) uma “idealidade realizada”, como não há “real”, sobre-tudo na modernidade, que se dê através de “idealidadesabstratas”. Nesses termos, para que não pairem dúvidas,advogamos que, como não poderia deixar de ser, “a reali-dade já é plena de idealidades” (HABERMAS, 1997:21ss.)e a partir daí, qualquer discurso pré-giro lingüístico, que(re)afirme o “fosso” entre a realidade “nua e crua” e oideal presente normativamente, tende a ser um equívoco.

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

6

Page 19: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

Portanto, esse tipo de abordagem acaba (por falta de com-plexidade), tão somente por naturalizar e enraizar as dife-renças entre o que é chamado de real (às vezes, perverso)e o que é intitulado de ideal (presente nas normas, porexemplo, constitucionais).

Além das pré-compreensões subjacentes de cunhoteorético, é mister ainda informar a correlação no trabalhoentre a Teoria da Constituição e a Teoria Geral do Processo,pois a pesquisa também será permeada por esta tensão(nesse caso entendida como confluência). Nesse sentido, acomunhão ou correlação hodierna entre essas duas disci-plinas será explorada visto ser um trabalho sobre o “aces-so à Justiça” e a crise do Judiciário que, obviamente, en-volve não apenas o Direito Constitucional, mas a Teoria daConstituição como meta-teoria.4 Aliás, nesse sentido, jáfalava Enrico Tullio Liebman, influente processualista, quena década de 50, embora em outro contexto e num marcoteórico processual e constitucional diferente do que aquiserá trabalhado:

“Se o processo é realizado, ignorando ou negligencian-do a ligação com os outros ramos do direito e em formaparticular com o Direito Constitucional, torna-se umtedioso e estéril cômputo de formalidade e termos; eleadquire, ao contrário, o seu verdadeiro significado e seenriquece de razões diversamente importantes quan-do é entendido como o estudo do aparato indispensá-vel de garantias e de procedimentos estabelecidospara a defesa dos direitos fundamentais do homem, no

O Poder Judiciário e(m) Crise

7

etc.), do Direito (Rawls, Dworkin, Michelman, etc.), entre outras áreas, demodo que os autores por ele mencionados não são apenas referênciasbibliográficas, mas antes, assumem o papel de verdadeiros interlocutores.

4 Na esteira, sobretudo, de ITALO ANDOLINA E GIUSEPE VIGNERA atravésda famosa obra “Il Modelo costituzionale del processo civile italiano” (1990).

Page 20: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

rigor da disciplina necessária de uma função pública.Quando se leva em conta esse quadro mais amplo,entende-se o significado de uma afirmação como esta:o Código de Processo Civil não é outra coisa a não sera lei regulamentar da garantia da justiça contida naConstituição”. (LIEBMAN, 1952:328)

Passadas as considerações iniciais, vislumbramos aanálise dos pontos a serem abordados para a construçãodo efetivo “acesso à Justiça” através da qualidade dasdecisões no paradigma do Estado Democrático de Direito.

Falando em paradigmas, o primeiro capítulo, de sumaimportância para o desenvolvimento da obra, versa justa-mente sobre a análise e o estudo do que sejam os paradig-mas e quais foram os mesmos (segundo Habermas, os demaior sucesso) no decorrer das relações entre Estado,Sociedade e Direito até os dias atuais. Certo é que, parahaver uma reconstrução do “acesso à Justiça”, é precisoexistir a noção de como o tema deve ser apreendido nosdiferentes “panos de fundo” de Sociedade e de Estado quesão delineados, sobretudo, na história do constitucionalis-mo moderno.

Vistos os paradigmas e definidas as diretrizes queestruturalmente devem ser desenvolvidas, entramos nosegundo capítulo, que buscará encontrar, já com o pano defundo do “acesso à Justiça” demarcado, uma teoria proces-sual compatível com o paradigma democrático discursivodelineado no primeiro capítulo.

O segundo capítulo estudará as teorias sobre: a natu-reza jurídica do processo e sua instrumentalidade, bemcomo os escopos da jurisdição que marcam a fase de apo-geu metodológico da teoria processual seguida pela maio-ria dos processualistas pátrios. Também buscaremos umaalternativa para o que chamaremos de “modelo constitu-cional do processo”, típico do paradigma do Constitucio-

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

8

Page 21: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

nalismo Social, que ainda paira sobre a nossa tradição.Como conseqüência, uma leitura paradigmática condizen-te com o Estado Democrático de Direito revela em um pris-ma procedimental que a “crise” do Judiciário não pode sersuperada, mas ao contrário, que a mesma desempenha umpapel produtivo na sociedade, uma vez que colocará (comobem coloca) o Judiciário e suas decisões no centro das dis-cussões públicas, permitindo (possibilitando) ventilação ecrítica (reflexão) pela sociedade.

O terceiro capítulo será destinado à análise das váriasteorizações sobre o “acesso à Justiça” em nosso ordena-mento jurídico e também em direito comparado, sobretudocom os autores italianos afetos a nossa tradição processua-lística e vice-versa. Esse estudo será de fundamental impor-tância para observarmos como a doutrina define e trabalhao “acesso à Justiça”, para que possamos avaliar o debateem torno do mesmo no contexto típico de seu surgimento(pós-Estado Liberal) no Estado Social de Direito e seu pos-terior desenvolvimento enquanto movimento. As pesquisasenvolverão, principalmente, o ambiente circundante nadécada de 60 do século passado até os dias atuais.

O quarto capítulo é destinado à construção do “aces-so à Justiça”, constitucionalmente adequado ao EstadoDemocrático de Direito no que tange à qualidade das deci-sões judiciais e sua legitimidade. Como realizar a difíciltarefa de produzir decisões justas que reduzam a complexi-dade do “acesso à Justiça” em ordenamentos jurídicoscomo o brasileiro? Como enfrentar a crise (aliás, crise?) doPoder Judiciário? Como localizá-la (se existente da formapropalada pela doutrina dominante)? Qual a diferença domodos operandi do paradigma de Bem-estar social e doParadigma democrático discursivo para trabalhar (e buscarsoluções) a tensão (agora, infelizmente existente! Vide abusca desenfreada por reformas padronizadoras e unica-mente redutoras de demandas) entre a legitimidade das

O Poder Judiciário e(m) Crise

9

Page 22: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

decisões e a efetividade – celeridade (a todo custo) da“prestação jurisdicional”.5

Uma proposta virá com a reconstrução das teses deautores conscientes (até mesmo porque participantes) dareviravolta lingüístico-pragmática, que ao partir para umaleitura procedimental do Estado Democrático de Direito,conjugam a faticidade e a legitimidade inerentes ao direito.Estes autores são: Ronald Dworkin e sua tese do Direitocomo Integridade; Jürgen Habermas e sua proposta deuma Teoria Discursiva do Direito e da Democracia; e KlausGünther, que partindo da teoria discursiva habermasiana,fornece uma proposta de auto-compreensão do direito atra-vés da separação entre discursos de justificação e discur-sos de aplicação normativa.

A conclusão não vislumbra a propositura de uma solu-ção pronta (acabada) para os complexos problemas debati-dos, mas aponta para a necessidade de buscarmos, atravésde uma teoria discursiva do direito, sem a ilusão de supos-tos idealizantes, a legitimidade das decisões, não atravésdo virtuosismo ético-político de um juiz “solipsista” ou daefetividade processual pragmática “massificada e engen-drada” em um “pretenso interesse público”, mas sim, atra-vés das garantias processuais da decisão participada naqual se consideram discursiva e simetricamente as argu-mentações de todos os afetados.

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

10

5 Desde já, deixamos claro que o presente trabalho não concorda com o usode expressões como “prestação jurisdicional” ou “tutela jurisdicional”por considerá-las como resquícios da teoria instrumentalista do proces-so, que compreende (e confunde) a relação jurídico-material com adinâmica processual. Ao invés disso, fazemos uso do termo “atividadejurisdicional” que não transmite nenhum vínculo de subordinação insus-tentável quer entre juiz e parte, quer entre autor e réu.

Page 23: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

Capítulo 1A Teoria da Constituição no

Paradigma Procedimental do EstadoDemocrático de Direito

Neste capítulo, vamos ater-nos ao marco teórico quedesenvolverá os trabalhos subseqüentes. A problemáticase relaciona com o que a doutrina jurídica, nos últimosanos, acostumou-se a chamar de paradigma.

Aliás, tudo (principalmente, pós-giro hermenêutico elingüístico) é (ou se torna) uma questão de paradigmas eeles nos acompanham por todo o estudo sobre o “acesso àJustiça” (e porque não dizer, sobre o constitucionalismo, acrise – ou não – do Poder Judiciário, a Teoria do Processo, oEstado de Direito, etc.).

É necessário analisar o que estamos chamando de“paradigmas”, como eles atuam e quais são eles.Passada essa etapa, tentaremos construir um conceito deTeoria da Constituição e de Teoria Geral do Processocompatíveis com o marco teórico citado (apresentado) naintrodução.

Os professores Menelick de Carvalho Netto, MarceloAndrade Cattoni e Marcelo Campos Gallupo, em seus estu-dos, apontam as origens da introdução do termo “paradig-ma” na discussão epistemológica contemporânea, partin-do das digressões de Thomas Kuhn.

Em “A estrutura das revoluções científicas”, ThomasKuhn afirma que paradigmas são realizações científicasuniversalmente reconhecidas que, durante algum tempo,fornecem problemas e soluções modelares para uma comu-nidade de praticantes de uma ciência. Ampliando e redefi-

11

Page 24: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

nindo, com Habermas1 o conceito de paradigma para ocampo das Ciências Sociais e no âmbito dessas para asreflexões acerca do Direito, afirma que: “Por esse último(paradigmas de Direito), entendo as visões exemplares deuma comunidade jurídica que considera como os mesmosprincípios constitucionais e sistemas de direitos podem serrealizados no contexto percebido de uma dada sociedade”.E continua a conceituação habermasiana afirmando maisadiante: “Um paradigma delineia um modelo de sociedadecontemporânea para explicar como direitos constitucionaise princípios devem ser concebidos e implementados paraque cumpram naquele dado contexto as funções a eles nor-mativamente atribuídas” (HABERMAS, 1997:194-195; CAT-TONI DE OLIVEIRA, 1998:36).

Cattoni de Oliveira2 explicita as colocações haberma-sianas, afirmando ainda que as compreensões jurídicas

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

12

1 Aqui é bom deixar claro que há uma fundamental diferença na noção deparadigmas adotada por Kuhn (típica do que classicamente chamaría-mos de Ciências Naturais) e na trabalhada por Habermas em sua obra“Facticidade e Validade” (1997) no que tange ao Direito. Nesses termos,temos que para Kuhn o paradigma diz respeito a potencialidade (possi-bilidade) de alcançar-se um consenso de fundo no que tange a uma pre-tensão normativa voltada (direcionada) para a verdade. Já paraHabermas, a questão é deslocada da filosofia da ciência (e do mundoobjetivo) para a teoria do Direito (que se encontra, assim como a filosofiapolítica) no campo normativo de correição normativa. A advertência sejustifica porque há uma clara distinção em Habermas (desde os primór-dios da “pragmática universal” datada de 1976 e sempre desenvolvidapelo mesmo) entre as pretensões de “verdade” e de “correição” e os seusrespectivos mundos: a verdade diz respeito à existência (ou não) de esta-dos de coisas, ao passo que a correção reflete o caráter obrigatório dosmodos de agir (Moral, Direito). (HABERMAS, 2004:267)

2 Em recente texto, Cattoni de Oliveira (2006) continua o desenvolvimentode sua obra iniciada na década de 90 com a convicção de outrora de queas teorias do direito movem-se inafastavelmente sob o pano de fundo deconcepções paradigmáticas. Neste sentido, afirma o autor que “Numcontexto pós-positivista, pode-se reflexiva e reconstrutivamente afirmarque as teorias do direito movem-se sobre o pano de fundo de concepçõesparadigmático-jurídicas acerca das distinções, finalidades e perspecti-vas de interpretação e aplicação do Direito e, assim, podem ser compreen-

Page 25: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

paradigmáticas de uma época, refletidas por ordens jurídi-cas concretas, referem-se às imagens implícitas que se temda própria sociedade; um conhecimento de fundo, um back-ground, que confere às práticas de fazer e de aplicar o Direitouma perspectiva, orientando o projeto de realização de umacomunidade jurídica (CATTONI DE OLIVEIRA, 1998:37).

É interessante observar, ainda no que diz respeito àconceituação do termo paradigma que, como nos mostraMenelick de Carvalho Netto, a história é irrecuperável ecom certeza muito mais rica do que os esquemas traçadosà luz de um paradigma, tendo, obviamente, a reconstruçãoparadigmática de estar necessariamente vinculada aosobjetivos delimitados em uma pesquisa.3

Afirma-se, na modernidade4 (com a superação da con-cepção pré-moderna de visão de mundo) a existência de

O Poder Judiciário e(m) Crise

13

didas como reconstruções paradigmáticas do Direito, como a problema-tização de paradigmas do direito (Habermas) que pressupõem um mode-lo de sociedade contemporânea (Wieacker), a fim de descrever/prescre-ver de que modo esse Direito deve ser compreendido de modo a cumprir,num dado contexto, as funções a ele normalmente atribuídas nos proces-sos de integração social”. (CATTONI DE OLIVEIRA, 2006)

3 “(...)Por um lado, possibilita explicar o desenvolvimento científico comoum processo que se verifica mediante rupturas, através da tematizaçãoe explicitação de aspectos centrais dos grandes esquemas gerais de pré-compreensões e visões-de-mundo, consubstanciados no pano-de-fundonaturalizado de silêncio assentado na gramática das práticas sociais,que a um so tempo tornam possível a linguagem, a comunicação e limi-tam ou condicionam o nosso agir e a nossa percepção de nós mesmos edo mundo. Por outro lado, também padece de óbvias simplificações, quesó são válidas na medida em que permitem que se apresente essas gra-des seletivas gerais pressupostas nas visões de mundo prevalentes etendencialmente hegemônicas em determinadas sociedades por certosperíodos de tempo e em contextos determinados. É claro que a históriacomo tal é irrecuperável e incomensuravelmente mais rica do que osesquemas que aqui serão apresentados, bem como se reconhece as infi-nitas possibilidades de reconstrução e releitura dos eventos históricos.Assim, o nível de detalhamento e preciosismo na reconstrução dessesparadigmas vincula-se diretamente aos objetivos da pesquisa que sepretende empreender” (CARVALHO NETO, 1999:103).(grifos nossos)

4 Partindo de algumas digressões filosóficas comuns, alguns teóricos vãoconsubstanciar a concepção pré-moderna de vida e de mundo como um

Page 26: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

dois grandes paradigmas (segundo Habermas, os de maiorsucesso) de Estado e de Direito, que vão consubstanciar

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

14

amalgama no qual Direito, Ética, Moral Religião e tradições são funda-mentados em uma ordem transcendente que não se distingue (se dife-rencia). A idéia de direito se liga ainda à noção de debitum, coisa devidaa alguém em virtude de seu lugar de origem de sua posição ou status,enquadrado num sistema de castas. O Direito funcionaria como um meiode conservação dos privilégios de cada casta, de modo a ensejar umaaplicação em regra casuística e individual sem (desvestido) um caráter(viés) universalizável advindo de um ordenamento dotado de normasgerais e abstratas valida para todos indistintamente e da mesma forma.Segundo Marilena Chauí (1992), a modernidade traz a marca do pensa-mento racionalista, modificando a compreensão mítica e divinizada dapré-modernidade. Sem dúvida, a pré-modernidade absolutivizava a con-cepção de mundo na medida em que se buscava a total eliminação dorisco, baseada (a nosso ver) em um projeto único de vida atrelado à noçãode pertencimento e comunhão. Nesse sentido, Marcelo Galuppo (2002)trabalha o pluralismo como um fenômeno eminentemente ligado àmodernidade afirmando que com seu advento, a sociedade se torna com-plexa e, ao contrário das sociedades antigas e medievais, haverá umaconvivência entre vários projetos de vida, formas de vida e valores mui-tas vezes diferenciados (e até antagônicos). A título de exemplo,Galuppo, trabalhando a pré-modernidade (já no seu final) e a rupturamoderna, afirma de forma clara que: “A modernidade é uma época deprofundas rupturas, uma época de descentramentos. O mundo medievalera um mundo centralizado na terra, na Europa e na Igreja CatólicaRomana. Como aponta Hannah Arendt (1991:260), a utilização porGalileu da luneta para investigar o céu, mostrando que a terra não era ocentro do universo, as grandes navegações mostrando que a Europa nãoera o centro da terra e a Reforma Protestante, fazendo a Igreja CatólicaRomana perdesse a posição de centro da civilização ocidental são deci-sivas na mudança de visão de mundo. Novos conceitos determinantes domodo moderno de ver o mundo, surgem nessa época (apesar de nos ilu-dirmos quanto a sua existência desde sempre): 1. o conceito de sujeito,2. o conceito de futuro 3. o conceito de dever”. (GALUPPO, 2002:57) Sobrea relação do direito com a modernidade é importante colocar que com amesma há uma autonomização de esferas sociais com cada uma assu-mindo seu código próprio (o direito se coloca como subsistema socialcom uma lógica própria de operacionalização e reprodução). Além disso(autonomização e especialização) é importante frisar ainda que: “(...)aModernidade concebe a sociedade como uma sociedade de pessoas(aritmeticamente) iguais que compartilham vários e distintos projetos devida. Se todas as pessoas possuem (aritmeticamente) o mesmo valor, nãohá razões para que o direito crie distinções entre pessoas. O princípio

Page 27: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

respectivamente o Estado Liberal (Estado de Direito) e oEstado Social (Welfare State). Além dos mesmos, vamosobservar (e trabalhar) ainda o que chamaremos de “reflexi-vo” paradigma procedimental do Estado Democrático deDireito. Eles sem dúvida vão trazer a lume uma imagem eum modelo implícito de mundo e de sociedade, consubs-tanciando respectivamente no subsistema do Direito: oConstitucionalismo Clássico, o Constitucionalismo Social eo Constitucionalismo procedimental do Estado Democrá-tico de Direito advindo (sobretudo para alguns autores) dofinal da década de 70 até os dias atuais, como veremos deforma insofismável a partir deste momento.

O primeiro paradigma centra-se na figura do indivíduocomo sujeito de direito. Nesse sentido sob o paradigmaliberal, caberia ao Estado, através do Direito Positivo (dota-do de abstratalidade e generalização), garantir certeza nasrelações sociais, através da compatibilização dos interes-ses privados de cada um com o interesse de todos, deixan-do a busca da felicidade em mãos de cada indivíduo (CAT-TONI DE OLIVEIRA, 1998:37).

A Constituição, como não poderia deixar de ser, refle-te esse paradigma, sendo compreendida como um mero“instrumento de governo” (como o estatuto jurídico-políti-co fundamental da organização da sociedade política). Éatravés da Constituição, compreendida como organizaçãoe limitação do poder político, que se justifica o Estado, quelegitimado pelo Direito e pelo regime representativo, passaa ser concebido como Estado de Direito, como EstadoConstitucional (CATTONI DE OLIVEIRA, 1998:38).

O Poder Judiciário e(m) Crise

15

ideológico que orienta o surgimento do direito moderno é então, o princí-pio da generalidade da lei, que surge como mecanismo para evitar os pri-vilégios, típicos das ordens do Antigo Regime (FERRAZ JR, 1994:122).Para esse novo direito, avesso aos privilégios e tendente à generalização,a igualdade deve desempenhar a função de incluir os cidadãos nos direi-tos e não mais de excluí-los (de privilégios)” (GALUPPO, 2002:74).

Page 28: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

O direito, sob o paradigma liberal, seria uma ordem,um “sistema fechado de regras”, que teria por função, con-forme Cattoni de Oliveira, estabilizar expectativas de com-portamento, determinando os limites e, ao mesmo tempogarantindo a esfera privada do indivíduo. Seria através deleis gerais e abstratas garantindo ainda que formalmenteliberdade, igualdade e propriedade, que todos os sujeitosreceberiam os mesmos direitos subjetivos, sendo os direi-tos e garantias fundamentais entendidos como verdadeirasgarantias negativas da não intervenção do Estado nasociedade. (CATTONI DE OLIVEIRA, 1998:39; QUADROSDE MAGALHÃES, 2002:63) À luz do raciocínio explicitado,afirmamos que a estrutura da Constituição do Estado deDireito, foi essencialmente negativa (abstencionista).Nesse diapasão, são contundentes as explanações deCarvalho Netto:

“O Direito, enquanto normatividade específica, dife-renciada e decorrente de idéias abstratas considera-das verdadeiras por evidência, como analisa Marcuse,só poderia ser compreendido agora como um ordena-mento de leis racionalmente elaboradas e impostas àobservação de todos por um aparato de organizaçãopolítica laicizado. O que se produz mediante um pro-cesso de redução, em que o direito deixa de ser a coisadevida transcendentalmente assentada na rígida eimutável hierarquia social da sociedade de castas,para se transformar no direito, ou seja, em um ordena-mento constitucional e legal que se impõe, a toda umaafluente sociedade de classes, a observância daquelasidéias abstratas tomadas como direito natural pelojusracionalismo. (...) o direito é visto, assim, como umsistema normativo de regras gerais e abstratas, váli-das universalmente para todos os membros da socie-dade. (...) A vivência das idéias abstratas que confor-

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

16

Page 29: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

mavam o paradigma inicial do constitucionalismo logoconduz à negação prática das mesmas na história. Aliberdade e igualdade abstratas, bem como a proprie-dade privada terminam por aprofundar as práticas demaior exploração do homem pelo homem de que setem notícia na história, possibilitando um acúmulo decapital jamais visto. (...) Idéias socialistas, comunistase anarquistas começam a colocar agora em xeque aordem liberal e a um só tempo animam os movimentoscoletivos de massa cada vez mais significativos eneles se reforçam com a luta pelos direitos coletivos esociais, como o de greve e de livre organização sindi-cal e partidária, como a pretensão a um salário míni-mo, a uma jornada máxima de trabalho, à seguridadee previdências sociais, ao acesso à saúde, à educaçãoe ao lazer”. (CARVALHO NETTO, 1999:106)

Após a Primeira Guerra Mundial, tem início um novoparadigma de Estado. Devemos observar que o período doEstado Liberal gerou “a maior exploração do homem pelohomem de que se tem notícia na história da humanidade”.Jornadas de trabalho de 15 a 17 horas por dia, idosos, crian-ças e mulheres em rodízio nos postos de trabalho, remune-rações aviltantes levando ou conduzindo milhões de desva-lidos à completa miséria, além de uma fortíssima repressãoa qualquer tipo de protesto, bem como um exército de mão-de-obra de reserva criado nas periferias, em condiçõesdegradantes, levaram à eclosão de um sem número dequestionamentos e movimentos sociais (socialismo utópico,científico e anarquistas). Com a “crise” da sociedade liberale a cabal demonstração de seu desgaste com suas promes-sas irrealizadas (de fim de privilégios, igualdade, liberdadee cidadania etc...), com o surgimento (advindo das revolu-ções industriais burguesas) de um capitalismo cada vezmais monopolista e com aumento sempre recorrente das

O Poder Judiciário e(m) Crise

17

Page 30: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

demandas sociais e políticas, desembocamos (sobretudoapós a Primeira Guerra Mundial) no que se convencionouchamar de “Constitucionalismo Social”.

Em extensa abordagem sobre a análise paradigmáti-ca, José Alfredo Baracho Júnior trabalhando Pablo LucasVerdu (1972) traz a cotejo as causas do surgimento doEstado Social de Direito, sendo que o desenvolvimento domovimento democrático e do capitalismo implicou a pro-blematização da estrutura liberal. Em conseqüência, astécnicas e instituições liberais tiveram que ser estendidasa parcelas da população antes excluídas. A universalizaçãodo sufrágio, a liberdade de associação entre os trabalhado-res, o surgimento de grandes partidos políticos, a amplia-ção das atividades econômico-sociais do Estado são apon-tados por Lucas Verdu como as notas características doprocesso de transformação do paradigma liberal. (BARA-CHO JÚNIOR, 1998:65)

Cabe-nos salientar que a partir desse novo paradig-ma, a sociedade de massas do pós-Primeira Guerra não émais apenas de indivíduos proprietários privados, masuma sociedade conflituosa, dividida em vários grupos,coletividades, classes partidos e facções em disputa, cadaqual buscando seus interesses. Não é mais um Estado libe-ral “neutro”, distante dos conflitos sociais, mas um Estadoque se assume como agente conformador da realidadesocial e que busca, inclusive, estabelecer formas de vidaconcretas, impondo “pautas públicas” de “vida boa”. OEstado Social que surge após a Primeira Guerra e se afirmaapós a Segunda, intervém na economia através de açõesdiretas e indiretas, visa a garantir o capitalismo através deuma proposta de bem-estar que implica a manutenção arti-ficial da livre concorrência e da livre iniciativa, assim comoa compensação das desigualdades sociais através da pres-tação estatal de serviços e da concessão de direitossociais. (CATTONI DE OLIVEIRA, 1998:40-41)

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

18

Page 31: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

Tais direitos vêm alargar e, sobretudo, redefinir osclássicos (direitos da primeira geração) direitos de vida,liberdade, propriedade, segurança e igualdade. É a chama-da “materialização dos direitos”. Observamos também,nesse momento, o surgimento dos chamados Direitos desegunda geração, ou melhor dizendo, os “Direitos Sociais”.Como principal conseqüência dessa ruptura, temos umaampliação no conjunto dos direitos fundamentais, resultan-te não somente de um acréscimo de direitos, mas tambémde uma completa alteração nas bases de interpretação dosdireitos anteriores.5

A estrutura da Constituição passa a ser essencialmen-te positiva em termos de prestações que este Estado deve-ria providenciar a seus (agora tratados como) “clientes”.Seria a mesma, agora, o estatuto jurídico-político funda-mental do Estado e da sociedade, pois prescreveria progra-mas políticos, definindo procedimentos e estruturandocompetências que antes não eram de sua alçada. Nessesentido, famosa é a citação do discípulo de Carl Schmitt,Ernest Forsthoff que afirma nitidamente alinhado a esteparadigma ser o Estado Social “um Estado que garante asubsistência e, portanto, é Estado de prestações...” (FORS-

O Poder Judiciário e(m) Crise

19

5 É muito difundido, no Brasil, o entendimento de que os direitos funda-mentais poderiam ser divididos em gerações, por exemplo, como fezBonavides (1997). Todavia, o presente trabalho, tributário da posiçãodefendida por Cattoni de Oliveira (2002:103), considera imprópria a divi-são dos direitos fundamentais em gerações, pois a cada paradigma jurí-dico, assiste-se a uma redefinição completa dos direitos fundamentais.Também não adere ao conceito atualmente trabalhado na doutrina pátriade “dimensões de direitos”, desenvolvido por André Ramos Tavares eoutros. Esse, apesar de ir além da idéia de “gerações” se mostra insufi-ciente, assim como o conceito que visa superar, na medida em que sereveste de uma perspectiva meramente semântica, não condizente coma perspectiva de giro hermenêutico e lingüístico que ora empreendemosa luz da teoria discursiva do direito.

Page 32: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

THOFF, 1986:49) Afirma-se no paradigma do Estado socialliteralmente que

“Assim, todo o direito é público, imposição de umEstado colocado acima da sociedade, de uma massaamorfa, carente de acesso à saúde ou à educação,massa pronta a ser moldada pelo Leviatã oniscientesobre o qual recai essa imensa tarefa. O Estado subsu-me toda dimensão do público e tem que prover os ser-viços inerentes aos direitos de Segunda geração àsociedade, como saúde, educação, previdência,mediante os quais alicia clientela.” (CARVALHONETTO, 1999:107)

No início da década de 70, a crise do paradigma doEstado Social começa a manifestar-se com grande intensi-dade. Aquele que deveria ser o “cidadão” se transformouem “cliente” deste Estado gigantesco que deveria regertoda a sociedade. A prometida cidadania se transforma emum repugnante “clientelismo”,6 segundo o qual direitossão garantidos e concretizados “no limite do possível”(CATTONI DE OLIVEIRA, 2002:59).

No esteio de movimentos sociais, tais como o estu-dantil de 1968, o pacifista, o ecologista e o das lutas pelosdireitos das minorias, além dos movimentos contra-cultu-rais, que passam a eclodir a partir da segunda metade dadécada de 60, a nova esquerda, a chamada esquerda não-

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

20

6 Habermas (1998: 497-498; 2000:171) identifica o desenvolvimento de umpaternalismo por parte do Estado, no paradigma do Estado Social, emrazão da adoção de programas políticos compensatórios às necessidadesde uma “sociedade de massas”, que se mostra incapaz de se autodeter-minar, de definir para si suas necessidades. Logo, torna-se massa facil-mente modelada por um Estado nos moldes do Leviatã hobbesiano(CARVALHO NETTO, 1999b: 480). A proposta por cidadania permanecenesse paradigma como uma espera irrealizada.

Page 33: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

estalinista, a partir das duras críticas tanto ao Estado deBem-Estar – denunciando os limites e o alcance das políti-cas públicas, as contradições entre capitalismo e demo-cracia – quanto ao Estado de socialismo real – a formaçãode uma burocracia autoritária, desligada das aspiraçõespopulares – cunha a expressão Estado Democrático deDireito. O Estado Democrático de Direito7 passa a configu-rar uma alternativa de superação tanto do Estado de Bem-Estar quanto do Estado de Socialismo real (CATTONI DEOLIVEIRA, 1998:43).

Menelick de Carvalho Netto mostra-nos com proprie-dade que as constantes crises econômicas colocam emcheque a racionalidade objetivista dos tecnocratas bemcomo a oposição antitética entre a política e a técnica.8Assim, o Estado, interventor de bem-estar transformou-se

O Poder Judiciário e(m) Crise

21

7 É também comum denominá-lo como Estado de Direito Democrático, con-forme a tradição portuguesa (CANOTILHO, 2003), entendendo-se que otermo democrático deveria adjetivar Direito, ao invés de Estado. Contudo,o art. 1.o da atual Constituição da República brasileira fez uso da outraexpressão, muito possivelmente para realçar a ruptura com a posturaautocrática assumida pelo Estado Brasileiro a partir de 1964. Todavia, apartir de uma compreensão procedimentalista, como faz Habermas(1998), é possível ainda defender que tanto democrático quanto de Direitorepresentam adjetivações simultâneas de Estado. Com isso, caracteriza-se a relação de tensão de ambos os conceitos (HABERMAS, 2003:171-172;CARVALHO NETTO, 2003a:81), em substituição à noção de oposição, quetransparece no debate entre as tradições liberais e republicanas, no sen-tido de procurarem estabelecer uma relação de prioridade entre Estado deDireito (constitucionalismo) e Democracia (soberania popular).

8 Segundo Habermas (1994b:124), o paradigma do Estado Social padecede uma contradição entre seu objetivo e o meio que escolhe para concre-tizá-lo. O que seria o seu objetivo – a construção de formas de vidasestruturadas igualitariamente, que fossem capazes de exercer uma auto-regulação espontânea – se vê frustrado pelos obstáculos levantados peloPoder Administrado, regido pela lógica da burocracia jurídico-adminis-trativa, que acaba contaminando os programas políticos. Além do mais,o estatal não é capaz de identificar a sociedade, que por meio de organi-zações civis passa a exigir uma maior participação; não mais depende dapostura burocratizante (instrumentalizante) do Poder Administrativo nasdecisões sobre direitos.

Page 34: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

em empresa acima das outras empresas. Com a chegadadas sociedades hipercomplexas, da era da computação oupós-industrial, as relações se tornam extremamente com-plexas e fluídas. Nesse contexto, a relação entre o públicoe o privado é novamente rediscutida: as associações dasociedade civil passam a representar o interesse públicocontra um Estado privatizado ou omisso. Surge, nesse iter,os chamados Direitos de terceira geração, denominadosinteresses ou direitos difusos, que compreendem os direi-tos do consumidor e direitos ambientais entre outros. Nosdizeres do professor:

(...) “A relação entre o público e o privado é novamen-te colocada em xeque. Associações da sociedade civilpassam a representar o interesse público contra oEstado privatizado ou omisso. Os direitos de 1º gera-ção e 2º geração ganham novo significado. Os da pri-meira são retomados como direitos ( agora revestidosde uma conotação sobretudo processual) de participa-ção no debate público que informa e conforma a sobe-rania democrática de um novo paradigma, o paradig-ma constitucional do Estado Democrático de Direito eseu direito participativo, pluralista e aberto” (CARVA-LHO NETTO1999:109).

Em relação à atual Carta Constitucional, Cattoni deOliveira nos mostra que diferentemente, por exemplo, dotexto originário da Constituição portuguesa de 1976, pornão buscar predeterminar uma forma de vida concreta,algo que poderia estar presente numa “opção de tipo socia-lista”, a Constituição brasileira de 1988 pretende possibili-tar a superação das desigualdades sociais e regionais,através do progressivo aprofundamento da democraciaparticipativa, social, econômica e cultural, no sentido derealizar-se um ideal de justiça social processual e consen-

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

22

Page 35: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

sualmente construído, só possível com o fortalecimento daesfera pública política, de uma opinião pública livre e deuma sociedade civil organizada e atuante (CATTONI DEOLIVEIRA, 1998:44).

Nesse momento, é de bom tom deixar consignado quedefinir uma teoria discursiva do Estado Democrático deDireito não é “mero jogo de palavras”. Falar em EstadoDemocrático, para nós, não significa, sob nenhuma hipótese,alinhar-se a posições que dizem conceitualmente algo, masna verdade, estão a uma grande distância do que aqui esta-mos prelecionando. Dizer, por exemplo, que a Constituição(simplesmente) define o Estado como democrático deDireito, ou que busca uma justiça historicamente determina-da ou que possui um sentido axiológico determinado, atra-vés de uma ordem extensa de valores (CLÈVE, 1993:143;MARINONI, 2000:23; SILVA, 1999:123), com certeza, não tra-duz (aliás, muito pelo contrário) o que estamos chamando deparadigma procedimental do Estado Democrático de Direito.

Se a promessa de concessão de cidadania advinda daruptura do Estado Liberal com o nascimento e desenvolvi-mento do Estado Social9 não foi efetivada, agora se busca

O Poder Judiciário e(m) Crise

23

9 É preciso deixar claro, quando criticamos o paradigma do Estado Social(em seus vários vieses, que sem dúvida se diferenciam, mas que tam-bém, sem dúvida, guardam traços em comum, compartilhados) não esta-mos renegando a necessidade de determinadas políticas públicas e depolíticas redistributivas à luz de uma perspectiva, por exemplo, neolibe-ral (mesquinha e excludente), mas sim, buscando a implementação dedeterminas ações de forma inclusiva nos termos de uma compreensãoprocedimental do direito e da democracia com a participação de todos osafetados nos processos de opinião e formação da vontade política. (FER-NANDES, 2004) Nesse sentido, duas observações feitas por ChamonJúnior (2005) são de fundamental importância no que tange: 1) À relação( e a ruptura) do paradigma do Estado Social e do paradigma procedi-mental do Estado Democrático de Direito e derivada desta 2) o erro“romântico” da interpretação de paradigmas como uma sucessão de his-tórias fatalistas com conseqüências que aqui repugnamos. Temos segun-do o mesmo que: (1) Não é mais sustentável a compreensão do Direito emtermos do paradigma subjacente ao modelo do Estado Social;

Page 36: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

novamente o resgate da mesma sem supostos (ou pressu-postos) dirigentes e planificadores. A própria noção decidadania deve ser enfocada sob outra perspectiva que

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

24

disto não afirmamos que o Estado não deva, desde uma ótica de políticadeliberativa – que assim só se constrói numa democracia radical – bus-car a implementação de políticas públicas ou intervir em certos domí-nios. O que afirmamos é que esta intervenção deve ser deliberada demo-craticamente e isso implica abertura capaz de ser travada quando deuma compreensão que seja procedimental do Direito e da Política, emque nenhum modelo de sociedade, de valores, “interesses coletivos” sãotomados como bandeira para a própria exclusão participativa no seio detomadas de decisão. (2) Também não podemos assumir uma posturaromântica ou mesmo derrotista e interpretar os paradigmas como suces-sões históricas fatalistas: é claro que a prevalência de uma compreensãorepublicana sobre a compreensão liberal, por exemplo, do que venha aser o Estado Democrático de Direito, insere-se enquanto luta política.Mas disto não podemos pretender estabelecer uma conexão histórica nosentido de se acreditar que uma compreensão procedimental, porquepretendente de uma democracia radical, deva se dar depois da plena rea-lização do Estado de Bem-Estar. Se é certo que em nosso país não tive-mos a experiência européia de Estado Social, isso também, por outrolado, não significa que não tivemos qualquer aprendizado neste sentido.Também não implica que uma compreensão procedimental e ancoradanos pressupostos e condições de comunicação e entendimento devaesperar por uma “europeização” do nosso mundo compartilhado.Manifestações populares recentes como as ocorridas na Argentina e naVenezuela demonstram uma sociedade civil capaz de se organizar e fazervaler seus direitos políticos em uma esfera pública que, assim, só tendea se fortalecer – se não abafada por práticas coativas arraigadas nas ve-lhas pré-compreensões ditatoriais que sempre rondam a região. Com istoo que pretendemos é perceber que permanecer com o discurso de umadependência material entre direitos fundamentais – no sentido de que ademocracia somente será possível quando tenhamos todos escolaridade,acesso à saúde, à justiça, à moradia, a empregos, etc – é antes mantermais viva do que nunca a chama das pré-compreensões de uma interpre-tação paternalista do papel do Direito e do Estado. É antes vedar demo-cracia a movimentos locais e populares que, apesar de não possuíremcerto nível de escolaridade ou mesmo de satisfações nutricionais, podemoferecer demonstrações fantásticas da construção e fortalecimento deuma esfera pública perdida porque continuamente fragilizada por quemmais a pretende defender: todos temos direitos igualmente e reciproca-mente reconhecidos e pretender interpretá-los como sendo dependentesem um sentido materializante é, pois, proceder a uma debilidade nademocracia. (CHAMON JÚNIOR, 2005: 270) (grifos nossos)

Page 37: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

não aquela de “vantagem ou benefício” a ser concedida edistribuída de “cima para baixo” a uma massa de desvali-dos e pobres coitados (descamisados). A mesma deve serencarada como um processo. Processo este que envolveaprendizado, fluxos e refluxos,10 mas sempre numa “lutacontínua por reconhecimento”.11 Nas pegadas da Teoriadiscursiva da democracia habermasiana, à qual nos ali-nhamos, observamos o que seria a caracterização reflexi-vo-procedimental da Constituição de um Estado Democrá-tico de Direito:

“Se sob condições de um mais ou menos estabilizadocompromisso relativo ao Estado de Bem-Estar Social,quer-se sustentar não somente um Estado de Direitomas também um Estado Democrático de Direito, e,assim, a idéia de auto-organização da comunidadejurídica, então não se pode manter a visão liberal deconstituição como uma ordem-quadro que reguleessencialmente a relação entre administração e cida-dãos. O poder econômico e a pressão social necessi-

O Poder Judiciário e(m) Crise

25

10 A cidadania é agora entendida como um processo, bem como a democra-cia, que conduz a um aprendizado social, de modo a não necessitar depré-requisitos (CARVALHO NETTO, 1999:481-482). “Pois, da mesmaforma que cidadania não é algo natural, que se garante tão-somente peloreconhecimento de direitos privados e de uma esfera de livre-arbítrio,cidadania não se ganha nem se concede, mas se conquista. Exige luta,reconhecimento recíproco e discussão, através de todo um processo deaprendizado social, capaz de corrigir a si mesmo, todavia, sujeito, inclu-sive, a tropeços (CATTONI DE OLIVEIRA, 2006:10). (grifos nossos)

11 Um exemplo dessa “luta por reconhecimento” bem sucedida pode serencontrado nas políticas feministas de equiparação: “[...] os diretos sub-jetivos, cuja tarefa é garantir às mulheres um delineamento autônomo eprivado para suas próprias vidas, não podem ser formulados de modoadequado sem que os próprios envolvidos articulem e fundamentem osaspectos considerados relevantes para o tratamento igual ou desigual emcasos típicos. Só se pode assegurar a autonomia privada de cidadãos emigualdade de direito quando isso se dá em conjunto com a intensificaçãode sua autonomia civil no âmbito do Estado” (HABERMAS, 2002:297).

Page 38: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

tam ser conformados pelos meios do Estado de Direitonão menos que o poder administrativo. Por outro lado,sob as condições de pluralismo societário e cultural, aConstituição deve também não ser concebida comouma ordem jurídica concreta que imponha aprioristi-camente uma forma de vida total à sociedade. Ao con-trário, a Constituição estabelece procedimentos políti-cos de acordo com os quais os cidadãos possam, noexercício de seu direito de autodeterminação, comsucesso, buscar realizar o projeto cooperativo de esta-belecer justas (i.e. relativamente mais justas) condi-ções de vida. Somente as condições procedimentaisda gênese democrática das leis asseguram a legitimi-dade do Direito promulgado”. (HABERMAS, 1997:163)

Seguindo a linha de raciocínio de Habermas, temosque a Constituição, sob o paradigma procedimental doEstado Democrático, deve ser compreendida como a prefi-guração de um sistema de direitos fundamentais querepresentam as condições procedimentais para a institu-cionalização da democracia nos âmbitos e nas perspecti-vas específicas do processo legislativo, do processo jurisdi-cional e do processo administrativo e que garante, ainda,espaços públicos informais de geração da vontade e dasopiniões políticas. Nesse sentido, a Democracia, como prin-cípio jurídico-constitucional a ser densificado de acordocom a perspectiva específica de cada um desses proces-sos, significa participação em igualdade de direitos e deoportunidades daqueles que serão afetados pelas decisõesnos procedimentos deliberativos que as preparam.12

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

26

12 Nas palavras de Souza Cruz: “Dessa forma, os cidadãos não podem limi-tar-se à condição de destinatários da normatividade estatal, devendopassar à condição de co-autores da mesma. Assim, os direitos de liber-dade à expressão e de participação podem vir a sustentar o espaço deesfera pública, ao controlar a legitimidade jurídica através de foros per-meáveis à ampla discussão. Logo, a Constituição passa a ser entendida

Page 39: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

Ao explicitarmos as colocações atinentes à teoria dis-cursiva do direito e da democracia, é necessário termos emmente as noções fundamentais de autonomias pública eprivada dos cidadãos. Sob esse prisma, o que os paradig-mas anteriores fazem é justamente matar a cidadania, nãoobservando a nítida co-originalidade existente entre asmesmas. Nesse sentido:

“Ao tratarmos da fundamentação do sistema de direi-tos, descobriremos que a autonomia das pessoas pri-vadas remete à legitimidade do direito e vice-versa.Sob condições de uma compreensão pós-metafísica domundo, só tem legitimidade o direito que surge da for-mação discursiva da opinião e da vontade de cidadãosque possuem os mesmos direitos. Estes só podem per-ceber, de maneira adequada, sua autonomia pública,garantida através de processos de participação demo-crática, na medida em que sua autonomia privada forassegurada. Uma autonomia privada asseguradaserve como garantia para a emergência da privada.Esse complexo circular se manifesta também na gêne-se do direito vigente” (HABERMAS, 1997: 147).

A chave da visão procedimental do direito e da demo-cracia está justamente sob esta concepção. Com o proces-so de desencantamento, o Direito moderno se configuracomo parte de um sistema de normas positivas e obrigató-rias; todavia essa positividade vem associada a uma pre-

O Poder Judiciário e(m) Crise

27

como mecanismo de organização de procedimentos de garantia do fluxode comunicação de argumentos para a justificação das ações estatais, demodo que elas só se legitimem se entendidas como justas, de forma recí-proca entre a maioria e a minoria, em qualquer arena de debate. A TeoriaDiscursiva do Direito procura demonstrar que a legitimidade do Direitorepousa em normas jurídicas que criem obrigações, que tanto a maioriaquanto a minoria estejam dispostas a aceitar”. (SOUZA CRUZ, 2004:05)

Page 40: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

tensão de legitimidade, de modo que normas expressamuma expectativa no sentido de preservar eqüitativamentea autonomia de todos os sujeitos de direito (HABERMAS,2002:286; CATTONI DE OLIVEIRA, 2004:174). SegundoHabermas (2002:286), o processo legislativo deve ser sufi-ciente para atender a essa exigência. Há uma relação entreo caráter coercitivo e a modificabilidade do Direito positivo,por um lado, e o processo de positivação ou de estabeleci-mento desse Direito capaz de gerar legitimidade, por outro– isto é, uma relação entre Estado de Direito e democracia.Contudo, essa relação não é meramente fruto de uma his-tórica causal, mas uma relação conceitual que está alicer-çada nas pressuposições da práxis jurídica cotidiana.13

Temos, então, uma reconstrução da soberania popular queassume a forma jurídica através do processo legislativodemocrático, que deve considerar a eqüiprimordialidadeda autonomia jurídica.

Por um lado, aos indivíduos são garantidas determina-das liberdades subjetivas de ação a partir das quais podemagir em conformidade com seus próprios interesses – é oque se chama de autonomia privada14 – “liberando” esses

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

28

13 “Isso porque na própria validade jurídica a facticidade da imposição doDireito por via estatal entrelaça-se com a força legitimadora de um pro-cesso legislativo que pretende ser racional, justamente, por fundamentara liberdade. Em outros termos, isso se revela no modo ambíguo com queo próprio Direito se endereça aos seus destinatários e deles espera obe-diência: eles podem agir estrategicamente em face das conseqüênciasprevisíveis de uma possível violação das normas ou podem cumprir asnormas por respeito aos resultados da formulação comum da vontadeque exige legitimidade para si. O conceito kantiano de legalidade jáexpressava, segundo Habermas, esse duplo sentido da validade jurídica:As normas jurídicas são a um só tempo ‘leis coercitivas’ e ‘leis deliberdade’” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2004:175).

14 “De ahí que la autonomía privada del sujeto jurídico pueda entenderseesencialmente como la libertad negativa de abandonar la zona públicade obligaciones ilocucionarias recíprocas y retraerse a una posición deobservación mutua y de mutuo ejercicio de influencias empíricas. Laautonomía privada llega hasta allí donde el sujeto jurídico tiene que em-

Page 41: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

indivíduos da pressão inerente à ação comunicativa(HABERMAS, 1998:186), qual seja, a de fundamentarmoralmente todas as suas ações, bastando, portanto, areferência ao direito legislado. Para tanto, é fundamental anoção de direitos fundamentais como elementos assegura-dores desta autonomia através da não ingerência estatalna esfera privada dos cidadãos, como já afirmava a clássi-ca leitura liberal. Em contrapartida, o princípio discursivodemocrático compreende a autonomia pública a partir daótica da garantia de legitimidade do procedimento legisla-tivo através de iguais direitos de comunicação e de partici-pação (HABERMAS, 2002:290). Trata-se do fato de que ossujeitos de direito têm de se reconhecer como autores dasnormas às quais se submetem. Como conseqüência, auto-nomias pública e privada devem estar pressupostas reci-procamente, sem que, contudo, uma possa gozar de supre-macia sobre a outra.

Outro autor fundamental para o estabelecimento denossas idéias é Ronald Dworkin, jurista norte-americano.Através da proposta de compreensão do direito a partir dasexigências normativas da “integridade”, estabelece-seuma crítica não apenas às teorias semânticas – que bus-cam desesperadamente construir conceitos pré-lingüísti-cos do que seja o direito e seus institutos –, bem como seoferece como uma oposição radical às propostas de tradi-ções convencionalistas (positivismo jurídico) ou meramen-te pragmáticas (realismo jurídico). O ataque dworkianoentão parte da crítica à discricionariedade judicial para aradicalização mediante a proposta de mudança de postura

O Poder Judiciário e(m) Crise

29

pezar a dar cuenta y razón, hasta allí donde tiene que dar razones públi-camente aceptas de sus planes de acción. Las libertades subjetivas deacción autorizan a apearse de la acción comunicativa y a negarse a con-traer obligaciones ilocucionarias. Fundan una privacidad que libera de lacarga aneja a una libertad comunicativa recíprocamente reconocida ymutuamente supuesta y exigida” (HABERMAS, 1998:186).

Page 42: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

por parte não apenas dos magistrados,15 mas de todos osparticipantes da prática jurídica. Para tanto, apresentaráuma postura hermenêutica crítica16 através da noção de“interpretação construtiva”,17 criando a obrigação contra-factual de no curso de uma reconstrução e na busca de umdeterminado sentido hermenêutico, o intérprete assumir aleitura que promova a prática como a melhor interpretaçãojurídica a partir de uma teoria política e de um conjunto sis-tematizado e coerente de princípios jurídicos.

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

30

15 Kelly (1996:267) explica que a opção pelo Judiciário como figura de refe-rência em Dworkin, na realidade, compõe a sua crítica ao positivismojurídico, pois, para essa tradição, a referência recai primordialmentesobre a atividade legislativa, tomando a atividade judicante como umasituação de segundo plano e de menor relevância.

16 “O intérprete compreende a significação de um texto na medida em quedescobre por que o autor se sentiu no direito de apresentar determina-das afirmações (como verdadeiras), reconhecer determinados valores enormas (como corretos), externar determinadas vivências (como since-ras). O intérprete tem de aclarar para si o contexto que tem de ter sidopressuposto pelo autor e pelo público contemporâneo como sabercomum, para que naquela época não precisassem aparecer aquelas difi-culdades, que para nós, inversamente, parecem triviais. Somente sobreeste pano de fundo de elementos cognitivos, morais e expressivos daprovisão cultural do saber, a partir do qual o autor e seus contemporâ-neos construíram suas interpretações, pode-se tornar manifesto o senti-do do texto. Mas, por outro lado, o intérprete, nascido mais tarde, tomaposição ao menos implicitamente com respeito às pretensões de valida-de vinculadas ao texto” (HABERMAS, 1987b:89). O presente texto daobra HABERMAS, Jürgen. Dialética e Hermenêutica. Trad. Álvaro Valls.São Paulo: L&PM, 1987, foi, originalmente, apresentado como capítulocontido no primeiro volume da Teoria da Ação Comunicativa (1987:1:182).

17 A noção de interpretação construtiva será utilizada por Dworkin que iráigualmente reconhecer uma visão por demais passiva na HermenêuticaFilosófica, compreendendo como unilateral o fluxo comunicativo. Nessesentido, o próprio Dworkin (1999:63) justifica sua posição: “o intérpretedeve esforçar-se por aprender e aplicar aquilo que interpreta com baseno pressuposto de que está subordinado ao seu autor. Habermas faz aobservação crucial (que aponta mais para a interpretação construtivaque para a conversacional) de que a interpretação pressupõe que o autorpoderia aprender com o intérprete”. Um bom exemplo é a conversa ima-ginária entre Cavell e Fellini retratada por Dworkin (1999:69-70).

Page 43: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

Portanto, mais que “acesso à Justiça”, a discussão àluz dos pressupostos dworkianos nos impele a buscar nãouma leitura qualquer, mas a melhor leitura possível paraaquela prática. No que concerne à prática judiciária, asmetáforas do juiz Hércules e do Romance em Cadeia (chainnovel) são cruciais para a assunção dessa nova posturapara além da consciência solipsista do julgador. Se, no pri-meiro caso, temos um magistrado imaginário com conheci-mento e paciência sobre-humanas, capaz de revirar a his-tória institucional de uma sociedade em busca do desen-volvimento de uma teoria coerente que justifica também demaneira coerente o mesmo conjunto de princípios queparece fundar as práticas sociais; no outro caso, os pressu-postos contrafactuais de inteligência e paciência são dimi-nuídos através da compreensão de que o direito se mani-festa por meio de um empreendimento coletivo balizadoprincipalmente por leituras paradigmáticas que uma deter-minada sociedade tem de si. Agora, cada juiz – tal qualcada romancista de um pitoresco empreendimento de cria-ção de um único livro a partir da entrega sucessiva de capí-tulos a autores diferentes – é responsável pela redação deum capítulo de uma obra já iniciada. Nessa lógica, ele devepreocupar-se com a ligação do seu capítulo com o que jáfora escrito e, concomitantemente, garantir uma aberturapara que o escritor seguinte possa dar continuidade aoempreendimento.

O magistrado não pode, portanto, descuidar-se docaso pendente de julgamento; deve tratar todos os casosque lhe são apresentados como um hard case – isto é, umcaso difícil – e comprometer-se em uma empreitada parasolucioná-lo à luz da integridade do Direito. Ao que parece,Dworkin é um autor-chave para a discussão sobre uma lei-tura do “acesso à Justiça” quantitativo que leva a noção deefetividade do processo a todo custo – como a realizada,por exemplo, por Luis Guilherme Marinoni entre outros,

O Poder Judiciário e(m) Crise

31

Page 44: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

que toleram (para não dizer, aplaudem) situações de exclu-são de lides da apreciação do judiciário ou que aceitam res-postas unilaterais céleres, e por isso mesmo, não discursi-vas (isto é, carentes de legitimidade democrática) porparte dos órgãos jurisdicionais.

Concluímos afirmando que, no marco teórico de umateoria discursiva, somente as condições processuais para agênese democrática das leis é que consubstanciam a legi-timidade do direito. Por isso mesmo, levantamos comonecessário um olhar sobre a dimensão processual do direi-to, haja vista que este agora não é apenas um método oucaminho para tomada de decisões estatais, mas condiçãoda legitimidade e, por que não, de validade destas. Por issomesmo, urge analisar o desenvolvimento das teorias geraisdo processo, até mesmo porque, como veremos, falar emprocesso numa perspectiva democrática não significanecessariamente falar na aplicação judicial (jurisdição)como querem os teóricos brasileiros.

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

32

Page 45: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

Capítulo 2Visão Crítica sobre a Instrumentalidade do Processo e os Escopos Processuais

2.1 Introdução

Para adentrar o debate central sobre o “acesso àJustiça” qualitativo bem como sobre a tão propalada crisede legitimidade do Poder Judiciário (e nas soluções descri-tas e trazidas pelas reformas constitucionais e infraconsti-tucionais), necessitamos, sem dúvida, de um estudo rigoro-so e aprofundado sobre as teorias processuais existentes.

Mas um questionamento prévio é fundamental: emque marco teórico se encontram os grandes processualis-tas brasileiros? Qual o discurso proferido e desenvolvidoatualmente na moderna Teoria Geral do Processo? Estasduas perguntas, se bem respondidas, apontam para a lei-tura paradigmática que tais processualistas detêm dodireito, do Estado e da Sociedade, auxiliando-nos a perce-ber a que leitura se vinculam, bem como ao peso que atri-buem à construção legítima da decisão judicial.

Estéril seria o trabalho se iniciássemos diretamente notema “acesso à Justiça” e as suas várias peculiaridades(bem como: o Poder Judiciário e suas reformas). Um estu-do, que queremos inédito (ou pelo menos que sirva de con-traponto crítico reflexivo a soluções instrumentalistas),deve romper com as teorias presas aos paradigmas supera-dos, mas até então dominantes, que dizem respeito ao“acesso quantitativo à Justiça” em nosso universo jurídico.

33

Page 46: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

Já situamos nosso marco teórico paradigmático e afir-mamos como tentaremos reconstruir um conceito de “aces-so à Justiça” adequado a uma Teoria Geral do Processo e auma Teoria da Constituição respectivamente presentes emum Estado Democrático de Direito em sua leitura procedi-mental. Mas, como realizar esta difícil tarefa (reconstrutiva)sem observarmos de que forma está engendrada a moder-na processualística? De que maneira construiremos umaconcepção diferenciada sobre o “acesso à Justiça”, se nãorivalizarmos as teorias existentes?

A esmagadora maioria dos autores que escrevemsobre “acesso à Justiça” (ou sobre a falta desse) e a crisehodierna do Poder Judiciário, guardadas raríssimas exce-ções, filiam-se a proclamada corrente instrumentalista doprocesso, delineada pela famosa Escola Paulista de proces-so, que teve como verdadeiro mestre, o jurista italianoEnrico Túllio Liebman.

Portanto, a proposta, neste capítulo, é de discussãoem torno da teoria que está na base de todos os escritosatuais sobre o “acesso à Justiça”. É impressionante comoos autores nacionais naturalizaram as idéias desenvolvidassobre a tese da instrumentalidade do processo e os esco-pos processuais. Nesse sentido, “acesso à Justiça” como“acesso à ordem jurídica justa”, desde a década de 80 (eaté um pouco antes) é a moda dominante.

Os autores nacionais, em sua maioria, jamais questio-nam a instrumentalidade do processo e a proposta de ava-liação do sistema processual pela perspectiva externa, vol-tado (o processo) para a preservação dos valores postosaxiologicamente pela sociedade e afirmados pelo Estado.Sob nenhuma hipótese (em sua maioria), tematizam osescopos metajurídicos do processo, trabalhando um “méto-do de cunho teleológico” que se propõe a identificar a juris-dição segundo objetivos que através dela o Estado buscaatingir, situando-os mediante a atividade jurisdicional nos

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

34

Page 47: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

campos jurídico (atuação da vontade do direito substan-cial), social (pacificação com justiça, educação para cons-ciência) e político (afirmação do poder estatal, participaçãodemocrática, preservação do valor liberdade, etc.).

Esta verdadeira “febre” que se espalhou pelas escolasbrasileiras é cultivada como dogma pelos processualistaspátrios que escrevem (conforme alertado acima) sobre osmais variados temas de Direito Processual, inclusive sobre“acesso à Justiça”, com estas inquestionáveis e subjacen-tes pré-compreensões. Nesses termos, a discussão acercada instrumentalidade do processo e de seus escopos serávital para nossas reflexões. O desafio é desenvolver umadoutrina capaz de responder aos anseios de um “acesso àJustiça” quantitativa e qualitativamente compatível com oEstado Democrático de Direito. Conforme já salientado,ocorre hoje em dia justamente o contrário, visto que, o“acesso à Justiça” é sempre trabalhado pelos grandes pro-cessualistas em termos do paradigma do Estado Social ali-nhado a jurisprudência dos valores, bem como, à tambémtradicional e superada (a nosso ver) concepção do proces-so como relação jurídica.

Nesse diapasão, é mister destacarmos para as refle-xões, a chamada “Escola Paulista” de Direito ProcessualCivil, que conforme salientado, teve em Liebman um mes-tre, e seus seguidores, entre os quais se destaca CandidoRangel Dinamarco (dentre outros notáveis processualis-tas), que desenvolveu sua tese de Professor Titular deDireito Processual Civil da Universidade de São Paulo, jus-tamente sobre o tema objeto desta abordagem na sua obraintitulada “A Instrumentalidade do Processo”. Em sentidooposto, observaremos as digressões do Professor AroldoPlínio Gonçalves,1 na obra “Técnica Processual e Teoria do

O Poder Judiciário e(m) Crise

35

1 Ex-professor Titular de Direito Processual Civil da Universidade Federalde Minas Gerais na década de 90.

Page 48: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

Processo”, a qual acreditamos ser a mais rigorosa doutrinaconstruída na processualística brasileira em contraposiçãoà teoria da instrumentalidade do processo elaborada porDinamarco, seus colegas e seguidores.

Como afirmado, a teoria da “instrumentalidade do pro-cesso” tenta apresentar uma visão jurídica, social e políti-ca do processo demonstrando a interferência do meiosocial para a sua real efetividade.

Aroldo Plínio Gonçalves, pioneiramente no Brasil, com-bate a tese da “instrumentalidade do processo”, tanto peloaspecto positivo quanto pelo aspecto negativo. Adverte omesmo que o processo não é um instrumento de pacificaçãosocial, nem tão pouco um instrumento político. O processo,em sua visão, é instrumento não para realização do direitomaterial, mas para fornecer à pessoa competente, subsídiosnecessários para uma perfeita atividade jurisdicional,observando o contraditório, a isonomia e a ampla defesa,não se cogitando em relação aos escopos metajurídicos quena visão do autor, são na verdade pré-jurídicos.

Concluíremos, esboçando uma tentativa de aproxima-ção entre o Direito Constitucional e o Direito Processual,analisando a inserção de uma Teoria da Constituição ade-quada ao paradigma jurídico do Estado Democrático deDireito nos termos da teoria discursiva da democracia, emconstante e profícuo diálogo com a Teoria Geral doProcesso que tentaremos desenvolver de forma rigorosa,inserindo, neste contexto, a teoria do processo como rela-ção jurídica (instrumentalista) e o seu contraponto, deli-neado pela Teoria do Processo como procedimento realiza-do em contraditório, adequando (ou não) as mesmas aonosso marco teórico.

Como nos demonstra o professor Cattoni de Oliveira,em sua tese de doutorado, no momento em que se inicia odebate sobre o Direito Constitucional Processual, nas pega-das de Andolina e Vignera (1990), assim como há uma rela-

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

36

Page 49: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

ção fundamental entre Constituição e Processo no planojurídico-normativo, hoje, mais que ontem, a Teoria Geral doProcesso depende de uma Teoria da Constituição que guieseu trabalho não somente jurídico-dogmático, mas tambémcrítico-reflexivo. (CATTONI DE OLIVEIRA, 1999:110).

2.2. A Natureza Jurídica do Processo

Antes de estudar a tese da instrumentalidade do pro-cesso e analisar os escopos da jurisdição, buscaremosentender o conceito da natureza jurídica do “Processo” esuas variações ao longo da história. Acreditamos que comtal debate, estaremos aumentando a gama de subsídiosatinentes à matéria em questão, sendo fundamental a aná-lise das grandes teorias que nortearam a teoria geral doprocesso nos últimos séculos. Mas é preciso ficar claro queo estudo é eminentemente de teoria constitucional e teoriageral do processo, sendo ambas, trabalhadas em termosparadigmáticos. Ou seja, voltamos àquela advertência ini-cial, pois a questão essencial será sempre em torno deparadigmas (pré-compreensões) e a conceituação dos mes-mos. Nesses termos, embora não desconhecendo algumasdas teorias sobre a natureza do processo, aqui elas serãocitadas de forma concisa, apenas como notícia ao leitor.

As muitas teorias que existiram e existem sobre anatureza jurídica do processo revelam a visão publicista ouprivatista assumida por seus formuladores, sendo quealgumas delas utilizam conceitos romanísticos sobreviven-tes à sua própria aplicação prática. As principais apontampara o processo a natureza de: a) contrato; b) quase-contra-to; c) relação jurídica processual; d) situação jurídica; e)procedimento informado pelo contraditório. (CINTRA-DINAMARCO-GRINOVER, 1994:279)

A teoria do processo como contrato de origem france-sa e de cunho privatista esteve em voga nos séculos XVIII

O Poder Judiciário e(m) Crise

37

Page 50: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

e XIX. Esta, defendida, principalmente por Pothier (1800)delineava que o processo era um contrato entre os litigan-tes, e se constituiria pela contratual aceitação prévia doscontendores em acatar a decisão do juiz. No entender dePothier, instaurava-se o processo pela litiscontestatio (con-venção das partes perante o juiz para acatar a decisão pro-ferida) e o juiz seria o árbitro judicial e facultativo e não oórgão jurisdicional monopolizador da jurisdição que inde-penderia da prévia provocação unânime das partes paraexarar provimentos (LEAL, 2000:75).

Essa doutrina tem hoje mero significado histórico, poisparte do pressuposto falso de que as partes se submetemvoluntariamente ao processo e aos seus resultados, atravésde um verdadeiro negócio jurídico de direito privado. Naverdade, a sujeição das partes é o exato contraposto dopoder estatal (jurisdição) que o juiz impõe inevitavelmenteàs pessoas, independente da voluntária aceitação (CIN-TRA-DINAMARCO-GRINOVER, 1994:279).

A teoria do processo como quase-contrato foi defendi-da por Guényvau e Savigny (1850). Seguindo a linha da teo-ria descrita acima, ela também coloca o processo na searado direito privado. Afirmando que se o processo não era umcontrato e se delito também não poderia ser, só poderia serum quase-contrato.2 O erro metodológico foi o enquadra-mento do processo, de todas as formas, nas fileiras do direi-to privado (CINTRA-DINAMARCO-GRINOVER, 1994:279).Porém, como a primeira teoria contratualista, esta tambémse mostrou insuficiente para o estudo da natureza jurídica

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

38

2 “Segundo tal teoria, o Processo não poderia ser considerado um contratotípico, mas sim, um ‘quase-contrato’, visto que a parte ingressava emjuízo aceitando a decisão, fosse ela favorável ou não aos seus interesses.Haveria um elo entre autor e juiz, independentemente da adesão espon-tânea do réu ao debate do conflito. Em resumo: o processo não era umcontrato, visto que não pressupunha a vontade das partes; era algo seme-lhante ao contrato, embora contrato não o fosse” (MACEDO, 2001:54).

Page 51: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

do processo, porquanto, em já sendo nessa época a jurisdi-ção obrigatória, o juiz não precisava de prévio consentimen-to do autor para proferir a decisão que lhe fosse favorável oudesfavorável. (LEAL, 2000:76). Todavia, o entendimentoesposado por tal teoria deixa transparecer que a compreen-são da jurisdição se dava como uma função estatal voltada,exclusivamente, a dar proteção aos direitos subjetivos pri-vados violados (MARINONI, 2006:388).

A teoria do processo como situação jurídica elaboradana Alemanha, na década de 20, por James Goldschmidt,embora rejeitada, pela maioria dos processualistas, é ricaem conceitos e observações que vieram contribuir valiosa-mente para o regular desenvolvimento da ciência proces-sual. Goldschmidt, em sua Teoria Geral do Processo, criti-ca de forma veemente a teoria do processo como relaçãojurídica que estudaremos adiante. Em todas as propostas,a teoria da situação jurídica se estruturou como vínculojurídico entre dois sujeitos, com o poder de um sobre aconduta do outro. Comentando sobre o despertar da dou-trina jurídica para a fragilidade do conceito de relação jurí-dica como vínculo entre sujeitos e vínculo de exigibilidade,Aroldo Plínio Gonçalves (1993) afirma que a teoria dasituação jurídica evoluiu de sua consideração como com-plexo de normas para uma situação constituída por fatos eatos que a lei reconhece como idôneos para sua formação.Segundo o processualista mineiro, realmente não podemosafirmar que o processo é uma situação jurídica. Mas esta(teoria da situação jurídica) cumpre seu papel quandodemonstra a impossibilidade de considerar-se vínculosimperativos entre os sujeitos, quando substitui a relaçãojurídica, mas conforme salientado, nem mesmo por essemotivo poderíamos afirmar que o processo seja uma situa-ção jurídica. Conclui que as situações jurídicas estão pre-sentes no processo, mas não o definem enquanto tal.(GONÇALVES, 2001: 101)

O Poder Judiciário e(m) Crise

39

Page 52: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

Já os cultores da “escola paulista”, adeptos do proces-so como relação jurídica, apesar de também elogiarem adoutrina de Goldschmidt, a qual segundo os mesmos,esclarece sobre uma série de conceitos antes na seara pro-cessual mal compreendidos, como por exemplo, os de ônuse sujeição, criticam a teoria da situação jurídica de formacontundente afirmando entre outras observações que: a)ela argumenta pela exceção, tomando como regra as defor-mações do processo; b) não se pode falar em uma situação,mas de um complexo de situações no processo; c) é exata-mente o conjunto de situações jurídicas que recebe o nomede relação jurídica e principalmente a crítica que observaque toda a situação de incerteza, expressa nos ônus, pers-pectivas, expectativas, possibilidades, refere-se à res injudiciu deducta, não ao judicium em si mesmo: o que estáposto em dúvida e talvez exista ou não, é o direito subjeti-vo material, não o processo (CINTRA-DINAMARCO- GRI-NOVER, 1994: 282).

Sem dúvida, as teorias do processo como relação jurí-dica e do processo como procedimento realizado em con-traditório são as mais importantes para o desenvolvimentode nossa obra e serão analisadas com acuidade para quepossamos delinear com clareza o marco teórico instrumen-talista e as conseqüências do mesmo para a teoria geral doprocesso, bem com para o “acesso à Justiça”.

É, com certeza, no estudo dessas duas teorias e deseus conceitos fundamentais que nossa pesquisa se molda-rá para a consecução de seus objetivos. Nestes, encontrare-mos o marco teórico do Estado democrático e a crítica aomodelo de Bem-Estar Social, além da reconstrução adequa-da do “acesso à Justiça” em termos teorético-discursivos.

Aliás, no mesmo diapasão, a afirmação do professorAroldo Plínio Gonçalves quando da discussão acerca do“processo e procedimento” e as “duas tendências teóricasdistintas”, na qual postula inicialmente que a postura con-

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

40

Page 53: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

temporânea sobre o modo de ser e compreender o processoe o procedimento será básica para a adoção de todo umquadro conceptual que servirá como instrumental teóricopara o aprofundamento e tratamento das questões relativasao processo. Deixando clara a noção de que existiriam nocampo do direito processual e é isto que nos interessa, duastendências distintas, firmadas sobre dois fundamentos teó-ricos diferentes, cada um trabalhando com seus conceitos,suas definições, categorias e institutos. Afirma literalmente:

(...) “As diferenças do quadro teórico não incidem ape-nas no conceito isolado de procedimento e de proces-so, mas alcançam os temas fundamentais do DireitoProcessual. É necessário ressaltar, entretanto, queessa diferença de tratamento dado ao tema decorre,fundamentalmente, da concepção que se adote sobreprocedimento e processo, por que é por ela que secomeçará a estabelecer todo o sistema de conceitosde que o Direito Processual necessita para suas cons-truções jurídicas” (GONÇALVES, 2001:63).

Nesse sentido, a base inicial da distinção se perfaz nadiferenciação entre o processo e o procedimento (critérioteleológico ou critério lógico), bem como na já propaladanatureza jurídica processual (relação jurídica ou procedi-mento realizado em contraditório).

Primeiramente, devemos salientar que a teoria do pro-cesso como relação jurídica surge na doutrina de Bülow(1868) que expôs em seu famoso livro “Teoria dosPressupostos Processuais e das Exceções Dilatórias” a idéiade que no processo há uma relação entre as partes (autor eréu) e o juiz, que não se confunde com a relação de direitomaterial controvertida (1964:2). Este brilhante trabalho éconsiderado a primeira obra científica de Direito Processual,sendo o grande mérito de Bülow a sistematização (e não a

O Poder Judiciário e(m) Crise

41

Page 54: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

intuição)3 desta proclamada relação jurídica processualordenadora da conduta dos sujeitos do processo em suasligações recíprocas.4 Acrescentando, ainda, a ênfase naexistência de dois planos de relações: a de direito material,que se discute no processo; e a de direito processual, que éo continente onde se colocam as discussões sobre aquela.(CINTRA-DINAMARCO-GRINOVER, 1994: 280).

Esta teoria que teve (ressalvadas as especificidadesdos autores) como ilustres seguidores Chiovenda, RamiroPodetti, Ugo Rocco, Carnelutti, Calamandrei e Liebman,predomina hodiernamente (de forma direta ou indireta) emgrande parte da doutrina processual brasileira. E na estei-ra da mesma, foi estabelecida a distinção entre processo eprocedimento com base no critério teleológico.

Esse critério atribui finalidades ao processo, sem con-tudo atribuir ao procedimento nenhuma das mesmas, poisse considera, sob o prisma teleológico, o procedimentocomo algo “puramente formal”, separado do processo queencarna uma gama de finalidades.

Essa tem sido a posição predominante na processua-lística brasileira, que consiste em dizer que o procedimen-to comparece como técnica que “disciplina, organiza ouordena em sucessão lógica o processo”, a técnica de “orga-

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

42

3 Marinoni (2006:392-393) nos lembra que tais intuições já se encontrampresentes nos processualistas medievais como Búlgaro, que afirmavaque o processo é um ato de três pessoas (autor, réu e juiz): “iudicium estactus trim personarum, actoris, rei, iudicis”.

4 “Antes dela, as normas do processo eram feitas segundo ditames exclu-sivamente práticos e estudadas pelo critério meramente exegético, àmoda dos velhos praxistas, não havendo uma construção segura dos ins-titutos processuais e muito menos uma coordenação harmoniosa entreeles, os quais eram geralmente tratados por romanistas e civilistas – oque bem indica como a consciência dos juristas de então não transpare-cera ainda à luz da distinção, hoje muito nítida, entre direito substanciale processo; não havia maturidade para compreender que não são dedireito material institutos como o da coisa julgada, da hipoteca, da prova,da responsabilidade executiva, da ação” (DINAMARCO, 2002:40).

Page 55: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

nização e racionalização da atividade a ser desenvolvida”ou “forma imposta ao fenômeno processual”.

A doutrina pátria aprofundou, portanto, o conceito doprocedimento como “meio extrínseco” de desenvolvimentodo processo, “meio pelo qual a lei estampa os atos e fórmu-las da ordem legal do processo, até reduzi-lo à manifesta-ção exterior do processo”, ou seja, “sua realidade fenome-nológica perceptível (GONÇALVES 1993: 64-65). Ao proces-so, por sua vez, é atribuída natureza teleológica, “nele secaracteriza sua finalidade de exercício do poder”, como“instrumento através do qual a jurisdição opera (instru-mento para a positivação do poder)”.

A concepção trabalhada pela teoria do processo comoprocedimento em contraditório critica tal postura teleológi-ca acerca dos conceitos de processo e procedimento, pas-sando a adotar um critério denominado lógico. Esta dife-renciação traz consigo um novo conceito de procedimentoe a partir dele vislumbramos também um renovado concei-to do que seja processo.

Certo é que mesmo dentro do seu próprio quadro con-ceptual, o procedimento não seria uma mera exterioridade,já que teria a mesma finalidade do processo, além do que,

(...) “pelo critério lógico, as características do procedi-mento e do processo não deveriam ser investigadasem razão de elementos finalísticos, mas deveriam serbuscadas dentro do próprio sistema jurídico que osdisciplina. Neste, observa-se que, antes de distinção,há sim uma relação de inclusão, porque o próprio pro-cesso é uma espécie do gênero procedimento, e, sepode ser dele separado é por uma diferença específi-ca, uma propriedade que possui e que o torna, então,distinto, na mesma escala em que pode haver distin-ção entre gênero e espécie. A diferença específicaentre o procedimento em geral, que pode ou não se

O Poder Judiciário e(m) Crise

43

Page 56: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

desenvolver como processo, e o procedimento, que éprocesso, é a presença do elemento que (conforme jásalientado) o especializa: o contraditório” (GONÇAL-VES, 2001:68).

O processo, então, é caracterizado como sendo umprocedimento, “mas não qualquer procedimento; é o proce-dimento de que participam aqueles que são interessadosno ato final, de caráter imperativo, por ele preparado, masnão apenas participam; participam de uma forma especial,em contraditório entre eles, porque seus interesses emrelação ao ato final são opostos”. (GONÇALVES, 2001:68).

Voltando a análise das duas teorias principais da natu-reza jurídica do processo, restam, ainda, as críticas ineren-tes à relação jurídica em si e às dificuldades de trabalhar-se com essa teoria na atualidade. Falta-nos também umamelhor caracterização da teoria do processo como procedi-mento realizado em contraditório.

Realmente ao afirmarmos o estabelecimento do pro-cesso como relação jurídica temos sérias implicações quetornam esta teoria potencialmente problemática. Cattoni deOliveira,5 aliás, já nos demonstra nas pegadas de AroldoPlínio Gonçalves que a concepção do processo como relaçãojurídica expõe-se às críticas alinhadas na Teoria Geral doDireito, quer fundadas em Kelsen (1999:176-186), ou nas teo-rias referentes às situações jurídicas (ROUBIER, 1946;DUGUIT, 1975).

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

44

5 Lembramos aqui de relativizar a adequação Cattoni aos entendimentosdo professor sobre as “posições de vantagem” colocadas em AroldoPlínio, uma vez que, assim como em Cattoni, deixamos consignada as crí-ticas não só a Duguit e Roubier, mas às doutrinas que não percebem,como em Dworkin e Habermas, “que o Direito deve ser compreendidodeontologicamente e como garantidor da autonomia jurídica” (CATTONIDE OLIVEIRA, 2000:112).

Page 57: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

Nesse sentido, tornam-se necessários os ensinamen-tos de Aroldo Plínio Gonçalves, que constatou que as teo-rias que trabalham com os antigos conceitos de relaçãojurídica e de direito subjetivo, na clássica acepção, são,predominantes na ciência do Direito Processual.6 Trata oautor, em suas digressões de desmistificar esse conceito,apontando suas principais dificuldades no trato da moder-na processualística (GONÇALVES, 2001:73). O ponto cen-tral da questão em torno do processo como relação jurídica,seria justamente o problema existente dentro da própriarelação jurídica. Afirma literalmente que

“A se admitir o processo como relação jurídica, naacepção tradicional do termo, ter-se-ia que admitir,consequentemente, que ele é um vinculo constituídoentre sujeitos em que um pode exigir do outro umadeterminada prestação, ou seja, uma conduta deter-minada. Seria o mesmo que se conceber que há direi-to de um dos sujeitos processuais sobre a conduta dooutro, que perante o primeiro é obrigado, na condiçãode sujeito passivo, a uma determinada prestação, ouque há direitos das partes sobre a conduta do juiz,que, então, compareceria como sujeito passivo deprestações, ou ainda, que há direitos do juiz sobre aconduta das partes, que, então seriam os sujeitos pas-sivos da prestação.A doutrina processual utilizando a figura da relaçãojurídica trilateral inovou a velha bipolaridade do víncu-lo normativo existente na relação jurídica, mas mesmoa inovação não poderia dispensar, na relação angular

O Poder Judiciário e(m) Crise

45

6 Segundo o autor: Oskar Von Bülow, J.Ramiro Podetti, Ugo Rocco, SalvattoriSatta, Carnellutti, Liebman...). Seria, portanto, longa a relação dos nomesrepresentativos da doutrina clássica, que se encontram nessa linha. Dela,mutatis mutandis, não diverge, a doutrina processual brasileira (GON-ÇALVES, 2001).

Page 58: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

ou trilateral, o vínculo jurídico de exigibilidade entresujeitos do processo, vínculo que constitui a marca dequalquer relação jurídica” (GONÇALVES, 2001:97).

Notamos que no processo, não teríamos como admitirque uma das partes exigisse da outra o cumprimento dealguma conduta, não havendo no processo tal vínculo entreas partes.7 E em relação ao juiz, afirma, contundentemen-te, Aroldo Plínio Gonçalves que os seus deveres não deri-vam de forma alguma dos poderes das partes, mas sãodeveres que decorrem obviamente da função jurisdicional.

Concluindo, de forma insofismável, que inexistindoesse já debatido, vínculo entre os sujeitos, pelo qual atospossam ser exigidos e condutas impostas entre as partes eo juiz, não há efetivamente como aplicar ao processo a figu-ra da relação jurídica, construída no século passado, frutodo individualismo jurídico que já não encontra razão de ser(GONÇALVES, 2001).

Voltando à teoria do processo como procedimento rea-lizado em contraditório, na tentativa de sua melhor carac-terização, devemos observar novamente, com acuidade, osconceitos de processo e procedimento, além da definição edelimitação do contraditório.

Nesse sentido é de fundamental importância a análi-se de Fazzalari (1994:76 et Seg.) e Aroldo Plínio Gonçalves(2001:102 et Seg). Esses juristas, trabalhados por Cattoni

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

46

7 Importante mencionar que essa teoria que determinava “vínculos desujeição” das partes ao juiz (GONÇALVES, 2001:75), muito impulsionoua nova concepção de aplicação jurídica divergente com o paradigma doEstado de Bem-Estar Social. O processo deixou de ser definitivamente“coisa das partes” e passou, com os efeitos da publicização e da sociali-zação dos direitos, a compreender que o juiz exercia um papel nãosomente ativo na condução do procedimento, mas também uma funçãoeducativo-assistencial da parte mais débil (NUNES, 2003:40).

Page 59: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

de Oliveira (2000:113 et Seg.) traçam as principais caracte-rísticas presentes nos conceitos em exame.

O procedimento é delineado por esta teoria como cate-goria da Teoria Geral do Direito, assim como o processo,sendo o procedimento a atividade de preparação de provi-mentos estatais.

E o que são os provimentos estatais? Pois bem, essessão atos de caráter vinculante do Estado que geram efeitossobre a esfera jurídica dos cidadãos. Concluímos que osprovimentos podem ser legislativos, jurisdicionais ou admi-nistrativos, dependendo, logicamente, dos procedimentosque os preparam. Mas, aí temos uma advertência que se dáno sentido de afirmar que o procedimento não se esgota nasimples preparação do provimento. Ele, necessariamente,possui uma característica fundamental, que se expressa naforma específica de interconexão normativa entre os atosque o compõem.

Visando então à preparação do provimento, o procedi-mento possui sua específica estrutura constituída daseqüência de normas, atos, situações jurídicas e posiçõessubjetivas, em uma determinada conexão, na qual o cum-primento de uma norma da seqüência é pressuposto daincidência da outra norma e da validade do ato nela previs-to (CATTONI DE OLIVEIRA, 2000).

Já o processo, aqui, caracteriza-se como uma espéciede procedimento. Ele, na verdade, começa a caracterizar-secomo essa “espécie” do “gênero” procedimento pela parti-cipação na atividade de preparação do provimento, dos“interessados” (estes, são aqueles em cuja esfera particu-lar o ato está destinado a produzir efeitos) juntamente como autor do próprio provimento, como no caso do processojurisdicional, ou de seus representantes como no caso doprocesso legislativo. Mas aí surgem as seguintes questões:Como se dá esta propalada participação? Existe algumapeculiaridade na mesma?

O Poder Judiciário e(m) Crise

47

Page 60: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

A resposta é claramente afirmativa no sentido de queessa “participação” realmente se dá de forma específica.Esta especificidade é o que denominamos de contraditório.Ou seja, temos a participação dos interessados em contra-ditório (CATTONI DE OLIVEIRA, 2000:113; GONÇALVES,2001:112).8

Tomando como base a estrutura do contraditório,Fazzalari caracteriza o processo como:

Um procedimento in participano (sono abilitati a parti-cipare ) coloro nella sfera giuridica l’atto finale è desti-nato a svolgere effetti: in contraddittorio, ein modo chel’autore dell attonon possa obliterare le loro attività. (...) C’è,insomma, “processo” quando in uma o più fasidell’itter di formazione di um atto è contemplata laparticipazione nom solo – ed ovviamente – del suoautore,ma anche dei destinatari dei suoieffetti, in con-traddittorio, in modo che possano svolgere attività dicui l’autore dell’atto deve tender conto; i cui risultarti,cioè,egli può disatendere, ma non ignorare.(FAZAL-LARI, 1996:82-83).

Já caracterizados, o procedimento e o processo, faz-senecessária, a relevantíssima e fundamental conceituaçãodo contraditório,9 que para esses autores não se reduz à

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

48

8 Diferentemente, lembra Nunes (2004:77): “Na França, o ar. 16 do NouveauCode de Procédure Civile impede o juiz de fundamentar a sua decisãosobre aspectos jurídicos que ele suscitou de ofício, sem ter antecipada-mente convidado as partes a manifestar as suas observações. Assim, agarantia opera não somente no confronto entre as partes, transformando-se também num dever-ônus para o juiz, que passa a ter que provocar deofício o prévio debate das partes sobre quaisquer questões de fato ou dedireito determinantes para a resolução da demanda.”

9 Segundo Nunes, na acepção tradicional, o princípio do contraditório foi (eainda é) entendido como um direito de bilateralidade em audiência,dando condições às partes de informar-se e reagir a partir das informa-

Page 61: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

garantia do dizer e contradizer, nem à participação dossujeitos do processo.10 Isso porque sujeitos do processosão o juiz, seus auxiliares, o Ministério Público – quando alei o exige – e as partes (autor, réu, intervenientes). O con-traditório11 muito mais que o dizer e o contradizer, deve serenxergado como uma estrutura dialética do procedimentoe definido como garantia de participação em simétrica

O Poder Judiciário e(m) Crise

49

ções recebidas. Essa visão é denominada por ele na esteira de Andolinae Vignera como estática, pois atende a uma estrutura solipsista –monológica, centrada no juiz e na formação procedimental de seu pro-vimento. A concepção defendida por Nunes e aqui adotada enxerga ocontraditório de forma dinâmica, como uma garantia (dinâmica) nuclearpara o processo. Mas adverte o processualista que: contudo, de acordocom o entendimento de Andolina e Vignera, há que se fazer uma nítidadistinção entre os conteúdos da garantia do contraditório e da garantiade defesa: a primeira disciplina as relações dos titulares dos interessescontrapostos (as partes), ao passo que a segunda estabelece umaforma organizatória entre as relações destas mesmas partes com o juiz(NUNES, 2004).

10 Diversos processualistas chegam a definir o contraditório como garantiade paridade de armas; contudo, à luz de um pensamento pós-metafísico,a Teoria do Direito não pode mais se amparar em uma perspectiva beli-gerante – essencialmente dotada de uma racionalidade instrumental,compreendendo que o processo, como espaço de aplicação normativa,apresentaria uma dinâmica na qual o magistrado decidiria, influenciadopela destreza ou habilidade de persuasão dos litigantes (ou de seusadvogados); um direito que se preza democrático deve assumir uma pos-tura diversa, qual seja, a de criar a possibilidade do entendimento entreas partes processuais. A decisão judicial deve encontrar aceitabilidaderacional não apenas da perspectiva do magistrado, mas da sociedade.Em importante ensaio, Barbosa Moreira (2003) questiona até que ponto ateoria processual conseguiu se ver livre dessa concepção de processocomo duelo, herdada da tradição medieval. O autor relata similitudes,principalmente no common law, mas que não são tão estranhas à tradi-ção do Direito romano-germânico.

11 Para Fazzalari, o contraditório: “(...) consiste na participação dos destina-tários dos efeitos do ato final à fase preparatória do mesmo; na simétricaparidade das suas posições; na mútua implicação da sua atividade (...)na relevância da mesma para o autor do provimento: de modo que cadaum dos contraditores possa exercitar um conjunto (...) de escolhas, dereações, de controles e deva suportar os controles e reações dos outros.”(FAZZALARI, 1996:83, grifos nossos)

Page 62: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

paridade. Participam então da caracterização do contradi-tório os seguintes elementos:

a) participação dos destinatários do ato final nafase preparatória do mesmo;

b) simétrica paridade destes interessados;c) mútua implicação de seus atos;d) relevância de tais atos para o ato final. (GALUP-

PO, 1995:13)

O contraditório é a igualdade de oportunidades noprocesso com oportunidade igual de tratamento (liberdadede todos perante a Lei). Essa igualdade de oportunidades,é que compõe a essência do contraditório, como garantiade simétrica paridade de participação no processo (GON-ÇALVES, 2001:127). Portanto, certo é que haverá processoquando houver procedimento realizado em contraditórioentre os interessados. A essência deste está, justamente,na já citada simétrica paridade de participação nos atosque preparam o provimento daqueles que nele são interes-sados, porque, como seus destinatários, sofrerão seus efei-tos. (CATTONI DE OLIVEIRA, 2000:114)

Toda esta teoria acima descrita tenta contribuir paraderrubar a crescente tendência brasileira de encarar o pro-cesso como instrumento do direito material, tendo comoparâmetros para a efetiva tutela jurisdicional um nortea-mento fundado em aspectos jurídicos, políticos e sociaisconforme veremos, no próximo item do trabalho.

Logo, é mais que obscura a afirmação de Dinamarco,Cintra e Grinover (2003:285) no sentido de que a teoria faz-zalariana em nada é incompatível com a teoria adotadapelos processualistas brasileiros, em sua maioria. O pro-cessualista paranaense Luiz Guilherme Marinoni, aindaque pese sua inserção no paradigma do Estado Social (ali-nhamento este a ser provado no decorrer de nossa obra)

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

50

Page 63: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

bem vislumbra o problema e a crítica a Dinamarco e aosdemais processualistas nacionais aqui contestados: “Naverdade, o conceito de relação jurídica processual é avessoao de legitimidade, seja de legitimidade pela participaçãono procedimento, de legitimidade do procedimento e delegitimidade da decisão” (MARINONI, 2006:398).12

Ao que nos parece, tais autores, ainda presos à instru-mentalidade e à defesa da existência de uma relação jurídi-co-processual entre autor, réu e juiz, perdem de vista o con-texto no qual o processualista italiano define como “posiçãosubjetiva”. Aqui, não se trata de afirmar a existência dedeveres ou mesmo de condutas que podem ser exigidas deum sujeito processual a outro. Isso porque Fazzalari não serefere à posição de sujeitos em relação com outros, comoqueria a teoria do processo como relação jurídica. Por posi-ção subjetiva, entendemos “a posição de sujeitos perante anorma que valora suas condutas como lícitas, facultadas oudevidas” (GONÇALVES, 2001:109, grifos nossos).

Mais uma vez, devemos lembrar que a jurisdição (comoprocedimento em contraditório pelas partes, visando àconstrução de um provimento judicial) se desenvolve dentrode uma estrutura normativa que garante a participação dos

O Poder Judiciário e(m) Crise

51

12 A que pese o mérito da citação acima a leitura de Marinoni (2006:399)sobre a dinâmica processual não corresponde ao esperado para um para-digma de Estado Democrático de Direito em sua leitura procedimental,pois recai em uma leitura eticizante, igual à procedida por Dinamarco edemais instrumentalistas, exigindo a “efetiva”participação das partes,não como ônus (faculdade) das partes, mas como uma necessidade con-creta de cooperação com o juízo, que deve se “despir de suas máscaras”para auxiliar a elaboração da decisão do magistrado, pondo-se estas aserviço do último. Habermas (1998), lembrando-nos de que o direito deveconservar a tensão entre facticidade e validade, criticaria posições comoesta, já que perdem de vista que a possibilidade de ações estratégicaspor parte das partes – todavia, limitadas pelo ordenamento jurídico – éuma naturalidade que não pode ser eliminada no direito moderno. Assim,não há exigência normativa para que as partes dialoguem e achem demaneira ética. O próprio direito processual ao criar a figura do “abuso”permite a fixação desse espaço para a ação estratégica.

Page 64: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

destinatários e a estrita obediência do magistrado. Dessaforma, a participação das partes em simétrica paridade emnada depende da vontade subjetiva do magistrado, massim, deriva única e exclusivamente da norma jurídica.

Fazzalari, assim, substitui os tradicionais vínculos desujeição das partes por liberdades de participação. Por issomesmo, ele se refere ao ônus processual, ou seja, para queum determinado direito pretendido seja obtido, uma con-duta deverá ser assumida, mas assumir ou não esta condu-ta é escolha exclusiva do sujeito processual, nunca imposi-ção por uma vontade externa, como por exemplo, a domagistrado.

Outro equívoco que aparece na leitura dos processua-listas nacionais e que parece justificar a afirmação deDinamarco, Grinover e Cintra é a confusão ou nebulosidadecom que desenvolvem a idéia de contraditório, já que oreduzem à bilateralidade da audiência, conforme citaçãoque se segue, deixando assim de observar a maior abran-gência atribuída por Fazzalari: “O princípio do contraditó-rio também indica a atuação de uma garantia fundamentalde justiça: absolutamente inseparável da distribuição dajustiça [sic] organizada, o princípio da audiência bilateralencontra expressão no brocado romano audiatur etpars”(2003:55).

Concluímos, afirmando que o “acesso à Justiça”, ade-quado ao paradigma do Estado Democrático de Direito,perpassa a diferenciação entre a doutrina majoritária doprocesso como relação jurídica (instrumentalista) e os teó-ricos do processo como procedimento realizado em contra-ditório. A posição adotada, aqui não distingue o processo eo procedimento através de um critério teleológico, nemmuito menos aceita o processo como relação jurídica ou oprocedimento como mera forma. Assume a perspectivareconstrutiva da Teoria Discursiva do Direito da Demo-cracia de Jürgen Habermas (1997b), a tese de Ellio

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

52

Page 65: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

Fazzalari (1994), exposta e desenvolvida por Aroldo PlínioGonçalves (2001) e Marcelo Cattoni de Oliveira (2000).

2.3. A Instrumentalidade do Processo

A parte principal, deste capítulo será relativa à teoriada instrumentalidade do processo e seus escopos(meta)jurídicos e à adequabilidade deste tema ao paradig-ma do Estado Democrático de Direito em termos de umaTeoria Discursiva do Direito e da Democracia, tendo emvista a tentativa reconstrutiva de um “acesso à Justiça”constitucionalmente adequado.

Assim, como os processualistas pátrios adotam a rela-ção jurídica como pressuposto, eles se posicionam comoadeptos da postura instrumentalista do processo, afirman-do a presença de escopos jurídicos, políticos, sociais e éti-cos no processo.

A teoria da instrumentalidade do processo se voltacontra a visão estritamente jurídica da jurisdição. Afirmaque a grande premissa metodológica da processualísticamoderna consistirá na visão instrumentalista e teleológicado processo. Mas qual seria o fundamento desse enfoque?O que significa a busca pelo “acesso à Justiça” através dainstrumentalidade do processo? E como entender a tãosonhada efetividade do processo? Enfim, quais os pressu-postos desta que diz ser a mais moderna teoria processualexistente em nosso ordenamento jurídico?

Primeiramente, devemos nos voltar para o que seja ainstrumentalidade do processo, seu método e seu funda-mento. Segundo Dinamarco, todo instrumento é meio ecomo meio, só se legitima em função dos fins a que se des-tina, ou seja, aos seus objetivos. Esses são os escopos dajurisdição (jurídicos, sociais e políticos) que serão alcança-dos através do método teleológico que analisa o sistemaprocessual de uma perspectiva exterior, pelo ângulo exter-

O Poder Judiciário e(m) Crise

53

Page 66: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

no, na sua inserção na ordem jurídica, política e social. Naverdade, o processo para esses teóricos é conclamado aassumir as responsabilidades que dele espera a nação,devendo ser sempre permeável aos influxos axiológicos dasociedade e aberto aos valores substanciais eleitos pela jácitada Nação.

Como expressão do poder, a jurisdição teria objetivosque se relacionam com os fins do próprio Estado, sendo seufim último, para esses processualistas, o bem comum e ajustiça, o escopo-síntese da jurisdição.

Ainda nesse sentido, o “acesso à Justiça”, seria amarca de todo o pensamento instrumentalista, consubs-tanciado no sentido de tornar o processo acessível, justo edotado de grande produtividade, sendo sua efetividadeobservada na capacidade que o sistema teria de produzirsituações de justiça, em vista à pacificação social.

A análise, portanto inicia-se pelos objetivos queDinamarco afirma serem os principais na elaboração de suatese de cátreda. Estes, como poderemos observar, bem deli-mitam o “marco teórico” de “bem-estar social” que irá nor-tear sua obra, bem como a da maioria dos processualistasbrasileiros que entendem o processo e a jurisdição comoinstrumentos teleologicamente orientados para a realizaçãodos valores sociais e políticos da nação.

Observamos, logo na introdução de seu trabalho, queo objetivo fulcral do mesmo seria o de levar aos estudiososdo processo civil a proposta de revisão do modo como enca-ram a sua ciência e os institutos integrantes do universo desuas investigações.

Elucidadoras são as palavras de Dinamarco: “É tempoda integração da ciência processual no quadro das institui-ções sociais”, do poder e do Estado, com a preocupação dedefinir funções e medir a operatividade do sistema em faceda missão que lhe é reservada. Já não basta, para o autor,aprimorar conceitos e burilar requintes de uma estrutura

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

54

Page 67: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

muito bem engendrada, muito lógica e coerente em simesma, mas isolada e insensível à realidade do mundo emque deve estar inserida. Daí, a proposta de colocar o pró-prio sistema processual como objeto de exame a ser feitopelo ângulo externo, ou seja, a partir da prévia fixação dosobjetivos a perseguir e dos resultados com os quais ele háde estar permanentemente comprometido. É a proposta deuma nova perspectiva. (DINAMARCO, 1999)

Afirma ainda que por imposição do seu próprio modode ser, o direito processual sofreu (e sofre) a natural pro-pensão ao formalismo e ao isolamento. Ele não vai direta-mente à realidade da vida, nem fala a linguagem do homemcomum. O homem comum o ignora, o próprio jurista o des-denha e os profissionais do foro lamentam as suas imper-feições, sem atinar para os meios de melhorá-lo. A novaperspectiva proposta por Dinamarco, segundo ele, consti-tui motivo para a abertura do sistema processual aos influ-xos do pensamento publicista e solidarista, vindos da polí-tica e da sociologia do direito. Pelo fio da instrumentalida-de, o processo receberia lições que durante séculos negou-se a ouvir e sentiria as críticas que jamais soube racionali-zar (DINAMARCO, 1999).

Concluindo sua proposta inicial, reitera Dinamarco areconstrução do pensamento dos processualistas moder-nos com uma diferenciada interpretação dos rumos atuaisda ciência processual, desmistificando-se as regras do pro-cesso e de suas formas, através de uma otimização do sis-tema, para a busca da “sonhada” efetividade do processo.

Mas como chegaram os processualistas a essa fase detransformações e rupturas tão agudas na seara processual?

Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada P. Grinover eCândido R. Dinamarco, no livro “Teoria Geral do Processo”,citam de forma bastante didática três fases metodológicasfundamentais para a compreensão histórica do direito pro-cessual que modernamente adotará a propalada idéia ins-

O Poder Judiciário e(m) Crise

55

Page 68: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

trumentalista. (CINTRA-DINAMARCO-GRINOVER, 1994:42). Esclarecem os processualistas que “até meados doséculo passado, o processo era considerado simples meiode exercício dos direitos (daí, “direito adjetivo”, expressãoincompatível hoje com a reconhecida independência dodireito processual). A ação (ou o que hoje compreendemosmelhor como o direito de ação) era entendida como sendoo próprio direito subjetivo material que, uma vez lesado,adquiria forças para obter em juízo a reparação da lesãosofrida (CINTRA-DINAMARCO-GRINOVER, 1994: 42-43).Nesse momento, em pleno século XIX, ocorrem os primei-ros questionamentos do que poderíamos chamar de “con-ceito civilista de ação”. Surge, neste íter, a famosa polêmi-ca entre Windscheid e Muther. Logo em seguida aparece adistinção entre a relação jurídica processual e a relação dedireito privado. Nasce com Bülow a tomada de consciênciapara a autonomia da relação jurídica processual que se dis-tinguirá da de direito substancial, pelos seus sujeitos, seuspressupostos e seu objeto (DINAMARCO, 1999:18). Asegunda fase foi autonomista ou conceitual, marcada pelasgrandes construções científicas do direito processual. Osistema processual era estudado mediante uma visão pura-mente introspectiva, no exame de seus institutos, de suascategorias e conceitos fundamentais; e visto o processo,costumeiramente, como mero instrumento técnico predis-posto à realização da ordem jurídica material, sem o reco-nhecimento de suas conotações deontológicas e sem aanálise dos seus resultados na vida das pessoas ou preocu-pação pela justiça que ele fosse capaz de fazer. Esta postu-ra autonomista transpareceu sobretudo nas investigaçõesdo conceito de ação, permitindo a chegada até à afirmaçãode seu caráter abstrato, o que constituiu o mais elevadograu de proclamação de sua autonomia.

Nesta segunda fase, afirmamos que o processo é tãosomente um instrumento necessário à realização do direito

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

56

Page 69: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

material. Defendendo esta tese do direito processual comoinstrumento para a realização do direito material, encon-tram-se Carnelutti, Chiovenda, Shönke, dentre outros dou-trinadores de grande renome. Surgem grandes tratados einvestigações que serviram, segundo Dinamarco, para pos-sibilitar o uso adequado do instrumental que o direito pro-cessual oferece. Temos aí a racionalização da técnica pro-cessual, sem contudo, nos dizeres de Dinamarco, observar-mos o enquadramento do posto que cabe ao processo nocontexto jurídico e sócio-político. Não teríamos aindaidéias claras sobre a relação instrumental do processo como mundo social e político.

A terceira fase histórica do direito processual, segun-do os autores nacionais supracitados, é a fase instrumenta-lista. Para aqueles autores e especialmente Dinamarco,seria preciso deslocar o ponto-de-vista e passar a ver o pro-cesso a partir de um ângulo externo, isto é, examiná-lo nosseus resultados práticos. Para tanto, é preciso levar emconta o modo como os seus resultados chegam aos consu-midores desse serviço, ou seja, à população destinatária(DINAMARCO, 1999). Observamos “a real tomada de cons-ciência” da “instrumentalidade do processo”: o processua-lista sensível aos grandes problemas jurídicos, sociais epolíticos e interessado em obter soluções adequadas sabe-ria que agora os conceitos inerentes à sua ciência já chega-ram a níveis mais que satisfatórios e não se justifica a clás-sica postura metafísica consistente nas investigações con-ceituais destituídas de endereçamento “teleológico”.(DINAMARCO, 1999: 24). Nesse sentido cabem as coloca-ções da professora Ada Pellegrini Grinover em sua obra “Oprocesso em evolução”, na qual tenta demonstrar que

O Poder Judiciário e(m) Crise

57

Page 70: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

“Os processualistas de última geração estão hojeenvolvidos na crítica sociopolítica do sistema quetransforma o processo de instrumento meramente téc-nico, em instrumento ético e político de atuação dajustiça substancial e garantia das liberdades.Processo esse que passa a ser visto na total aderênciaà realidade sociopolítica a que se destina, para o inte-gral cumprimento da sua vocação primordial que é aefetiva atuação dos direitos materiais. Todo o sistemaprocessual passa assim a ser considerado como ins-trumento indispensável para atingir os escopos políti-cos, sociais e jurídicos da jurisdição; e a técnica pro-cessual como meio para a obtenção de cada um des-ses objetivos”. (GRINOVER, 1998:11)

Mas como se coloca o princípio da instrumentalidadeneste diapasão? Como explica Dinamarco, o princípio dainstrumentalidade, que tão intimamente vincula o DireitoProcessual e o Direito Material, põe-se, modernamente, sobduplo sentido: prisma negativo e o positivo. O aspectonegativo exige que se evitem os males do exagerado pro-cessualismo, afirmando que ele não é o fim em si mesmo enão deve na prática cotidiana, ser alçado à condição defonte geradora de direitos. Os sucessos dos processos nãodevem ser tais que superem ou contrariem os desígnios dodireito material, do qual ele é também um instrumento (àaplicação das regras processuais não deve ser dada tantaimportância, a ponto de, para sua prevalência, ser conde-nado um inocente ou absolvido um culpado: ou a ponto deser julgada procedente uma pretensão, no juízo cível, quan-do a razão estiver com o demandado). Uma projeção desseaspecto negativo da instrumentalidade do processo é oprincípio da instrumentalidade das formas, segundo o qualas exigências formais do processo só merecem ser cumpri-das a risca, sob pena de invalidade dos atos, na medida em

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

58

Page 71: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

que isso seja indispensável para a consecução dos objeti-vos desejados. Já o aspecto positivo impõe uma visão doprocesso como um instrumento eficaz de acesso à ordemjurídica justa, apto a realizar os seus verdadeiros escoposjurídicos, políticos e sociais.

Pelos escritos acima, observamos que a instrumentali-dade do processo tem que ser entendida tanto no seuaspecto negativo, qual seja, a anulação do ato processualsó se dará se este for indispensável para que o mesmo pro-duza efeitos válidos e regulares quanto ao seu aspectopositivo, encarando o processo como um instrumento depacificação social e realização da vontade concreta da lei.

Sem dúvida, nessa visão, o princípio da instrumenta-lidade mantém o processo preocupado com a lógica doprocedimento e sua celeridade, mas também busca sermais acessível, mais público e mais justo. Nesse sentido,“é indispensável a consciência de que o processo não émero instrumento técnico a serviço da ordem jurídica,mas, acima disto, um poderoso instrumento ético destina-do a servir à sociedade e ao Estado” (PORTANOVA,1999:64). Notamos que a negação da natureza e objetivopuramente técnicos do sistema processual é ao mesmotempo afirmação de sua permeabilidade aos valores tute-lados na ordem político-constitucional e jurídico-material(através dos quais se busca a efetividade), bem como reco-nhecimento de sua inserção no universo axiológico dasociedade a que se destina.

Tudo isso e muito mais são manifestações da posturainstrumentalista, que envolve a ciência processual, nesteterceiro momento metodológico. Trabalhando o processua-lista italiano Mauro Cappelletti, Dinamarco nos afirma que“é a instrumentalidade o núcleo e a síntese dos movimen-tos pelo aprimoramento do sistema processual”. Com issoo mesmo, segundo o processualista paulista, alude “àsideologias que estão à base do direito substancial, público

O Poder Judiciário e(m) Crise

59

Page 72: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

e privado, bem como de seus institutos.” (DINAMARCO,1999:35) Conclui o professor da USP que aprimorar o servi-ço jurisdicional prestado através do processo, dando efeti-vidade aos seus princípios formativos (lógico, jurídico, polí-tico, econômico) é uma tendência hoje se quer “universal”.E é justamente a instrumentalidade que vale de suficientejustificação lógico-jurídica para essa indispensável dinâmi-ca do sistema (e permeabilidade) às pressões axiológicasexteriores: tivesse ele seus próprios objetivos e justificaçãoauto-suficiente, razão inexistiria (ou fundamento, conformeDinamarco) para pô-lo à mercê das mutações políticas,constitucionais, sociais, econômicas e jurídico-substan-ciais da sociedade. (DINAMARCO, 1999)

Em uma visão menos “valorativa” e menos axiologica-mente orientada para a realização de finalidades estataisdo processo, esclarece Aroldo Plínio Gonçalves:

“A instrumentalidade técnica do processo está em queele se constitua na melhor, mais ágil e mais democrá-tica estrutura para que a sentença que dele resulta seforme, seja gerada, com a garantia da participaçãoigual, paritária, simétrica, daqueles que receberão osseus efeitos” (GONÇALVES, 2001:171).

Para o autor, a “instrumentalidade” do processo nãoestá em conformidade com os ensinamentos de Dinamarco,mas sim, no fornecimento do melhor instrumental teóricopara que o processo se torne a técnica mais idônea possí-vel no cumprimento de sua finalidade, que é, para ele, apreparação do provimento jurisdicional (GONÇALVES,2001:168-171).

É de cristalina obviedade que Aroldo Plínio Gonçalvesnão advoga a tese, também ultrapassada, do processocomo um “fim em si mesmo”, “onde o rito se fazia pelo ritoe a forma se cumpria pela forma” (GONÇALVES, 2001:07).

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

60

Page 73: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

Afirma, de forma contundente, que o processo jurisdicionalcivil, como procedimento que se realiza em contraditórioentre as partes, para a formação do provimento jurisdicio-nal, tem, no correto desenvolvimento das atividades prepa-ratórias da sentença, a sua primeira finalidade. Essa afir-mação, segundo o autor, não pode ser tomada como umasimplificação que poderia conduzir a uma inexata conclu-são de que a técnica se desenvolve pela técnica e para atécnica, ou seja, de que ela se produz e se consome a si pró-pria e nisso se esgota. Conclui, mostrando-nos que, tal afir-mativa só poderia advir da falta do alcance do significadocontido na realização do procedimento em contraditórioentre as partes (GONÇALVES, 2001:170). Por isso, ressalta-mos (novamente) a importância vital do contraditório naseara processual.

O professor nos mostra que o contraditório tem a suaessência e o seu objeto. Quando ele está presente, o pro-cesso jamais será uma “estrutura vazia”, um “esqueletodescarnado”, uma construção sem conteúdo. É pelo desen-volvimento do contraditório que o processo se desenvolvee o contraditório é “pleno de vida”. É no âmago da coesãoentre sua essência e seu objeto que o direito material, queserá apreciado e decidido na sentença, é discutido, que ojogo dos interesses divergentes torna-se real, que as partesdesvelam os direitos materiais que afirmam ter e que secontrapõem nas afirmações dos direitos materiais que sãomutuamente negados (GONÇALVES, 2001).

Observamos que a presença do contraditório no proce-dimento que prepara o provimento possibilita que as partesconstruam com o juiz, o próprio processo, participando daformação da sentença. Com isso afirma o autor que a finali-dade do processo consiste na preparação do provimentojurisdicional. Acrescenta ainda, que é a própria estrutura doprocesso (como procedimento em contraditório) que dá adimensão dessa preparação. (GONÇALVES, 2001:171).

O Poder Judiciário e(m) Crise

61

Page 74: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

2.4. Os escopos do processo

Na delimitação teórica do que sejam os escopos doprocesso e conseqüentemente, da jurisdição, Dinamarco sevolta novamente para o conceito de processo como instru-mento. A pergunta poderia ser a seguinte: Tudo bem que oprocesso seja um instrumento, mas instrumento de quê? Áserviço de quem?

Ou seja, segundo o professor da USP, é vaga e poucoacrescenta à noção do processo como instrumento se estanão estiver acompanhada da necessária indicação dosobjetivos a serem alcançados por este (tão propalado) ins-trumento. Se todo instrumento é um meio, ele só irá se legi-timar em função dos fins a que se destina. Surge assim afundamental fixação dos escopos do processo. Nessa visão,observa-se que

“O raciocínio teleológico há de incluir então, necessa-riamente, a fixação dos escopos do processo, ou seja,dos propósitos norteadores da sua instituição e dascondutas dos agentes estatais que o utilizam. Assim éque se poderá conferir um conteúdo substancial aessa usual assertiva da doutrina, mediante a investi-gação do escopo ou escopos, em razão dos quais todaordem jurídica inclui um sistema processual.Fixar os escopos do processo equivale ainda a revelaro grau de sua utilidade. Trata-se de instituição huma-na, imposta pelo Estado e a sua legitimidade há deestar apoiada não só na capacidade de realizar objeti-vos, mas igualmente no modo como estes são recebi-dos e sentidos pela sociedade. Daí o relevo de que émerecedora a problemática dos escopos do sistemaprocessual e do exercício da jurisdição” (DINAMAR-CO, 1999:149).

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

62

Page 75: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

Os escopos do processo seriam, então, os propósitosnorteadores da sua instituição e das condutas dos agentesestatais que o utilizam. Nesta visão, o autor insere a idéiade que a instrumentalidade do sistema processual é ali-mentada pela visão dos resultados que dele espera anação. Ou seja, como já afirmado, existe um feixe de obje-tivos a serem alcançados mediante a atividade jurisdicio-nal, pois se o Estado tem seus objetivos, ele também usaráda jurisdição para o cumprimento de sua missão institucio-nal através dos valores consagrados e definidos constitu-cionalmente pela sociedade. Por isso, afirma Dinamarco:

“Falar em instrumentalidade do processo, pois não éfalar somente nas suas ligações com a lei material. OEstado é responsável pelo bem-estar da sociedade edos indivíduos que a compõem: e, estando o bem-estar social turbado pela existência de conflitos entrepessoas, ele se vale do sistema processual para, elimi-nando os conflitos, devolver à sociedade a paz deseja-da. O processo é uma realidade desse mundo social,legitimada por três ordens de objetivos que atravésdele e mediante o exercício da jurisdição o Estado per-segue: sociais, políticos e jurídicos. A consciência dosescopos da jurisdição e sobretudo do seu escoposocial magno da pacificação social constitui fatorimportante para a compreensão da instrumentalidadedo processo em sua conceituação e endereçamentosocial e político” (DINAMARCO, 1999: 65).

Observamos que os fins do processo, para os instru-mentalistas, não seriam apenas jurídicos, mas tambémsociais (compreendendo a “pacificação com justiça) e polí-ticos (compreendendo “a participação com a afirmação daautoridade do Estado e de seu ordenamento). O conceitode jurisdição não seria, portanto, jurídico, mas político, já

O Poder Judiciário e(m) Crise

63

Page 76: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

que ela é expressão do poder do Estado e, assim, canaliza-da à realização dos fins do próprio Estado. A relatividadesocial e política tornaria a jurisdição permeável às muta-ções dos conceitos de bem comum, justiça e justiça social,ou seja, os escopos da jurisdição não seriam os mesmos emmomentos sociais distintos e em sistemas políticos diferen-ciados (GONÇALVES, 2001:180).

Para estes autores a perspectiva estritamente jurídicase mostra estéril, sendo o processo, conforme já observado,permeável aos influxos axiológicos da sociedade, de modoque este processo deveria (também, conforme, já explicita-do) cumprir os seus fins. Temos os escopos (fins) jurídicos,políticos e sociais da jurisdição.

Nesses termos, o escopo jurídico, em face da perspec-tiva do “acesso à Justiça” e em vista da necessidade dajurisdição realizar outros importantes fins do Estado, con-duz à tomada de consciência de que o processo é um ins-trumento “não apenas técnico”, o que não é, segundo LuizGuilherme Marinoni, suficiente para determinar o verda-deiro perfil da jurisdição (MARINONI, 2000:189).

Se a função jurisdicional é uma forma de expressão dopoder de Estado, é claro que segundo esses autores, atra-vés dela devem ser canalizados os fins do Estado. E se esseé o bem comum, a função jurisdicional teria por fim a paci-ficação social. Além do escopo social da pacificação social,teríamos ainda o escopo social da educação para o exercí-cio dos direitos, que, se não trabalhada através de umaconscientização, poderia inibir o “acesso à Justiça”, “tão”almejado mediante a instrumentalidade do processo(MARINONI, 2000:192).

Não podem ser desconsiderados ainda, para os instru-mentalistas, os escopos políticos da jurisdição. É perceptí-vel a instrumentação jurídico- processual destinada à con-secução do objetivo político consistente na preservaçãodas liberdades públicas através da chamada jurisdição

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

64

Page 77: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

constitucional das liberdades, além do que, na visão maisampla das projeções jurídicas do fator político do processo,permitida pela afirmação do escopo de assegurar a autori-dade do próprio Estado e do seu ordenamento jurídico-substancial. (DINAMARCO, 1999:172).

Aroldo Plínio Gonçalves (e, atualmente, não só ele)13

distribuiu severas críticas aos escopos jurídicos do proces-so defendidos, por Dinamarco, afirmando que estes escopossó poderiam ser entendidos como “escopos pré-jurídicos”:

(...) “uma vez que o ordenamento jurídico se institui ese consolida em normas, condutas e relações huma-nas, valoradas como lícito ou ilícito, como condutadevida e conduta que inobserva aquela estatuídacomo cânone valorativo, lá não se pode mais cindir oordenamento da sociedade para, paralelamente àordem jurídica que ela instaurou, pensar em umaordem social autônoma e em uma política autônoma”(GONÇALVES, 2001:182).

Concluindo seu raciocínio sobre a questão dos esco-pos jurídicos do processo, afirma ainda que

“A ordem política e a ordem social têm o seu funda-mento na ordem jurídica, existem dentro do ordena-mento jurídico e sofrem a sua regulamentação. Suporo contrário seria o mesmo que se admitir a possibilida-de de se afirmar que, na sociedade organizada, opoder se exerce dentro da lei e pela lei, e que o podernão se exerce dentro da lei e pela lei” (GONÇALVES,2001:183).

O Poder Judiciário e(m) Crise

65

13 Podemos citar, ainda: Rosemiro Pereira Leal, André Leal, Álvaro RicardoSouza Cruz, Lúcio Chamon Júnior, Dierle José Nunes, entre outros.

Page 78: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

Verificamos, portanto, que na verdade, os escopos jurí-dicos são escopos pré-jurídicos. Os fins sociais ou o bemcomum devem ser observados na aplicação do direitomaterial e não do processual. As partes, atuando em con-traditório, permitem o direcionamento do direito material e,conseqüentemente, a aplicação dos fins sociais e do bemcomum. Os escopos pré-jurídicos possuem ligação com odireito material e não com o direito processual.

O procedimento jurisdicional, como atividade discipli-nada por uma estrutura normativa voltada para a prepara-ção do provimento, com a participação, em contraditório(GONÇALVES, 2001:168), garante que as partes consigamdemonstrar as suas pretensões deduzidas, fornecendo aojuiz todos os fundamentos necessários a se chegar a umadecisão final. Os escopos jurídicos, como afirmado, perten-cem ao direito material e, portanto, serão atendidos quan-do da aplicação deste.

As nossas considerações, antes da conclusão do capí-tulo, no que tange ao tema da instrumentalidade e dosescopos da jurisdição, fundamentam-se na afirmação deque o processo como meio deve-se amparar em seu aspec-to técnico, que atua a vontade concreta do direito material,deixando o caráter ético do conflito de interesses a ser tute-lado pela norma de direito material que deverá amparar osinteresses da sociedade como um todo.

Portanto, as posições instrumentalistas que colocamexcessivo peso nas tarefas que segundo eles agora seriamrealizadas pelo juiz, hipertrofiam a figura do mesmo e per-dem de vista a participação das partes no processo (apesarde formalmente e textualmente dizerem o contrário).

2.5. Conclusão

Após as reflexões atinentes à conceituação do termoprocesso no desenvolvimento da teoria processual e da dis-

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

66

Page 79: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

cussão acerca da instrumentalidade do processo e os seusescopos, através de duas visões doutrinarias diferenciadassobre os temas referidos, terminamos esta parte com asindagações em torno dos paradigmas de Estado e deConstituições que desenvolveram-se no primeiro capítulo,para o acolhimento do marco teórico da teoria discursiva dodireito e da democracia. Como, na conclusão, poderemossituar as teses centrais referentes à instrumentalidade doprocesso e escopos processuais nos moldes de uma teoriadiscursiva da democracia? Qual dos autores centrais (destesegundo capítulo), quais sejam, Dinamarco e Aroldo PlínioGonçalves se adequam, ou melhor dizendo, pelo menos,não entram em choque com os pressupostos teóricosdefendidos em nosso estudo?

Para a resposta a esses questionamentos fulcrais, deve-mos novamente recorrer aos autores acima citados e traba-lhados, principalmente a Dinamarco e a sua tese, bem comoaos seus direcionamentos já tão decantados neste ensaio.

No primeiro capítulo da obra (aqui analisada), intitula-do “Perspectivas Metodológicas Atuais do DireitoProcessual”, o mestre paulista, insere em seu segundotópico, a discussão acerca do “processo e a ordem consti-tucional”, debate que, por sinal, nos propusemos a fazerdesde o início de nosso trabalho. De acordo comDinamarco, generoso “aporte” ao aprimoramento do pro-cesso em face aos seus objetivos, tem trazido, nas últimasdécadas, a corrente teórica que se denomina de “direitoprocessual constitucional” e que consiste, na atualidade,na “condensação metodológica e sistemática dos princí-pios constitucionais do processo”. A idéia-síntese que estáà base dessa “moderna” visão metodológica consistiria napreocupação pelos valores consagrados constitucional-mente, especialmente a “liberdade e a igualdade”, que afi-nal seriam, manifestações de algo dotado de maior espec-tro e significação transcendente: qual seja, o valor justiça.

O Poder Judiciário e(m) Crise

67

Page 80: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

O conceito, significado e dimensões desses valores funda-mentais são, em última análise, aqueles que resultam daordem constitucional e da maneira como a sociedade con-temporânea ao Texto Supremo (Constituição) interpreta assuas palavras – sendo natural, portanto, a intensa infiltra-ção dessa carga axiológica no sistema do processo, comofoi dito, é justificado pela instrumentalidade (DINAMAR-CO, 1999:24-25).

Em relação às mutações existentes no sistema proces-sual e na ordem constitucional, Dinamarco afirma que énatural que, como instrumento, o sistema processual guar-de “perene” correspondência com a ordem constitucional aque serve, inclusive acompanhando-a nas mutações porque passa (DINAMARCO, 1999:30).

No seu entendimento, a ordem processual se mostraainda mais lenta que a Constituição, na sua evolução gra-dual, segundo a interpretação dinâmica dos textos. Mas, seprestarmos atenção no desencadeamento do seu raciocí-nio, Dinamarco, a nosso ver, começa a responder à pergun-ta elaborada no começo da conclusão desse capítulo, poisafirma que a causa mais aguda desse retardamento (rela-ção ordem processual e Constituição) é o preconceito con-sistente em considerar o processo como mero instrumentotécnico e o direito processual como ciência neutra em facedas opções axiológicas do Estado. Preleciona, ainda, noque diz respeito à relação entre o processo e a constituição,em total comunhão com o paradigma do Estado Social, nosentido que

(...) “o Estado social contemporâneo, que repudia afilosofia política dos “fins limitados do Estado”, pre-tende chegar ao valor homem através do culto à justi-ça e sabe que, para isso, é indispensável dar ao con-ceito de “justiça” um conteúdo substancial e efetivo. Épreciso reduzir as diferenças sociais e econômicas

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

68

Page 81: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

tanto quanto possível, gerando oportunidades. É pre-ciso assegurar a fruição, por todos, dos bens materiaise imateriais efetivas condições para a mobilidadesócio-econômica, inclusive mediante a liberdade deassociação. E o Estado, então, pretendendo ser “a pro-vidência do seu povo”, sente que o bem-estar coletivodepende intimamente da sua participação efetiva nosdestinos da população. Ele é, por isso, declaradamen-te intervencionista, agindo sobre a ordem econômica esocial e buscando a sua modelagem segundo os obje-tivos da ideologia aceita. O “pacto social” refletindona nova ordem constitucional, inclui o traçado de dire-trizes nesse sentido da integração social e econômicada população” (DINAMARCO 1999:30).

Dinamarco se distancia (ou talvez nunca tenha atingi-do) do paradigma do Estado Democrático de Direito, bemcomo da Teoria Discursiva da Democracia no decorrer desua obra. Cattoni de Oliveira, em sentido oposto ao deDinamarco, critica duramente esta postura, mostrando-nos que, em vários processualistas contemporâneos, amarca de um modelo processual de bem-estar social, niti-damente “comunitarista” e, no Brasil, bastante tributárioda Jurisprudência dos Valores, faz-se presente em maiorou menor medida. Cita, então, Dinamarco para afirmarque, na compreensão do autor, a jurisdição e o processodevem ser compreendidos como instrumentos que têm porfinalidade realizar “os valores sociais e políticos danação”. (DINAMARCO, 1993:12). Logo, é a liberdade e aigualdade, como valores a serem realizados pela jurisdi-ção, que encontram seu sentido tão somente à luz dasidentidades culturais e tradicionais de cada nação, e quemodelam “o modo-de-ser político de cada Estado” (CAT-TONI DE OLIVEIRA, 2000:103).

O Poder Judiciário e(m) Crise

69

Page 82: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

Dinamarco, como não poderia deixar de ser, conduz-seno marco teórico do Estado Social, ao tratar diretamente dainstrumentalidade do processo e de seus escopos proces-suais como já observado e nas passagens seguintes, a par-tir do capítulo quarto de sua obra, intitulado “escopos dajurisdição e instrumentalidade”:

“Não é causal o recente surgimento da idéia de umescopo metajurídico da jurisdição, geralmente locali-zado na paz social. Ao Estado social contemporâneorepugna a inércia do juiz espectador e conformado; ojuiz há ter a consciência da função que, como agenteestatal, é encarregado de desempenhar perante asociedade. Talvez seja vago dizer que do processo seespera justiça, tanto quanto é vaga a afirmação de queo fim do Estado é o bem comum. (...) Cada nação, emcada momento, premida pelas circunstâncias históri-cas, desenvolverá sua própria visão de bem comum edo valor justiça” (DINAMARCO 1999:155).

No capítulo cinco, referente aos escopos sociais, con-cernente à pacificação com justiça, o autor segue namesma linha, afirmando:

“O exame da legitimidade do Estado e do poder con-duz naturalmente a observar e medir a capacidade,que aquele tenha e desenvolva mediante o exercíciodeste, de organizar convenientemente a vida emsociedade, ajudando cada um dos membros desta arealizar suas aspirações individuais, conservando edesenvolvendo bens e valores. Espera-se que,mediante a dinâmica do poder, o Estado chegue efeti-vamente aos resultados propostos, influenciando favo-ravelmente a vida do grupo e de cada um dos seuscomponentes. (...) Por esse aspecto, a função jurisdi-

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

70

Page 83: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

cional e a legislação estão ligadas pela unidade doescopo fundamental de ambas: a paz social” (DINA-MARCO 1999:159).

Não podemos concordar, data a maxima venia, com asposições delineadas por Dinamarco no decorrer de suaexplanação teórica. Os seus pressupostos são nitidamentecondizentes com um paradigma de Direito e de Estado quejá se coloca ultrapassado. O paradigma de Estado Social édefendido em todos os níveis, sobretudo no papel desempe-nhado pelo Estado na busca da pacificação social, nos pro-gramas e valores defendidos por esse mesmo Estado quedeve elaborar verdadeiras “pautas públicas” definidoras de“formas de vida concretas”, eivados na crença de justiçaexistente na comunidade e nos valores aceitos pela nação.

Isto também é delineado pelo papel do juiz no exercí-cio da função jurisdicional, como quer Dinamarco, visto queo mesmo deve buscar as aspirações ou o espírito da lei,representados por um “juízo axiológico” que razoavelmen-te se pode considerar como instalado no texto legal.

Nesse momento, teríamos a caracterização do juiz como“um canal de comunicação entre a carga axiológica atual dasociedade em que vive e os textos legais”. Nestes termos, aperspectiva assumida gera reflexos na postura do juiz não sóno que tange à impossibilidade de ser esse representante deuma “pseudo” carga axiológica, mas sem dúvida no próprioatuar do mesmo no exercício da função jurisdicional namedida em que, para assumir essa posição, deve ele serdotado de uma discricionariedade sem precedentes.14

O Poder Judiciário e(m) Crise

71

14 Em sua pesquisa, Ingeborg Maus (2000) demonstra como, à luz do para-digma jurídico do Estado Social, este pode assumir a função de “tutor”de uma sociedade desprovida de orientação, de uma sociedade “órfã” e“incapaz”. Caberia, então, ao Judiciário a tarefa de materialização dedireitos fundamentais – principalmente dos chamados direitos sociais –como forma de emancipar e conduzir seus clientes à condição de cida-dãos. Todavia, tal empreendimento está fadado ao fracasso. Isso porque,

Page 84: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

Mas, será que em um Estado Democrático de Direito,tal como colocamos, a missão do juiz ainda é essa? Estásomente em sua pessoa a tarefa de desfazimento das pos-síveis injustiças do Direito Positivo? Em um enfoque relati-vo à teoria constitucionalmente adequada a um EstadoDemocrático de Direito, temos a crítica a esse “virtuosismoético” que trata as questões jurídicas a partir de “experts”,guardiões de uma virtude, hoje ilusória.15 Nesses termos,são as colocações de Cattoni de Oliveira criticando a hiper-trofia do juiz instrumentalista16 com suas várias tarefas:

“Se a crença no Direito deve ter seus limites, e o DireitoProcessual também os tem, com muito maior razão acrença na capacidade dos “juristas” ou “operadores

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

72

à luz de uma compreensão procedimentalista do paradigma do EstadoDemocrático de Direito, pode-se perceber que tal quadro conduz a umaespécie de círculo vicioso, de modo que a posição privilegiada de autori-dade conferida pela teoria processual ao Judiciário apenas fez com queesse assumisse o papel do “superego” da sociedade, passando a ditarpara aquela – sempre com base em uma racionalidade solipsista – ospadrões de comportamento desejáveis. (grifos nossos)

15 Importante também registrar a crítica de Calmon de Passos ao instru-mentalismo: “É essa evidência que o modismo da “instrumentalidade doprocesso” camufla, ou conscientemente – perversidade ideológica a sercombatida – ou por descuido epistemológico – equívoco a ser corrigido.Ele parece ou finge ignorar o conjunto de fatores que determinam umanova postura para o pensar e aplicar o Direito em nossos dias, comosejam a crise da razão instrumental, severamente posta a nu neste sécu-lo; os avanços originados pelos estudos semiológicos; a revalorização dopolítico, a partir dos desencantos existenciais recolhidos da experiênciado capitalismo tardio e da derrocada do socialismo real; a crise do Estadodo bem-estar social e, principalmente, as revoluções que têm sua raiz noprogresso técnico-científico, acelerado depois da Segunda GrandeGuerra Mundial” (2001:13, grifos nossos).

16 Interessantes são as críticas de Dierle Nunes (também) defendendo posi-ção contrária à instrumentalista no sentido de que: “o direito democráti-co e discursivo assegura (e deve assegurar) ao juízo a direção do proces-so, mas este não pode apresentar-se como Füher, que tudo pode fazer,em detrimento das partes, que ficam à mercê de sua discrição e arbitra-riedade” (NUNES, 2006:53, grifos nossos).

Page 85: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

jurídicos” deve ser matizada.( ...) há muito tempo ques-tões jurídicas deixaram de ser tão somente um proble-ma dos experts para se tornarem questões de cidada-nia. Hoje, buscar na bondade ou maldade intrínseca dojuiz, ainda mais do juiz constitucional, é até ingênuo, jáque não só os fatores, mas os sujeitos que participaremou influenciarem uma decisão judicial são- e devemser- múltiplos, a começar por aqueles que por estadecisão serão afetados. Assim é que os juizes nãodevem comportar-se (embora tantos comportem) comodonos da verdade e guardiões da virtude, posturaincompatível com um conceito procedimentalista dedemocracia” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2000: 105).

Voltamos à doutrina de contraponto do professorDinamarco, delineada neste ensaio. Esta, a nosso ver, rela-ciona-se com o marco teórico da democracia discursiva,abrindo espaço para um provimento legitimado através daco-participação de seus destinatários e não unilateralmen-te por uma inteligência solipsista. Aroldo Plínio Gonçalves,na conclusão de sua obra, remete-nos às suas idéias cen-trais que bem se aproximam do paradigma de EstadoDemocrático de Direito, com o desenvolvimento do concei-to de contraditório como um direito das partes e da funçãojurisdicional, através do deslocamento do “papel missão dojuiz” para a garantia em simétrica paridade das partes, tra-balhando todos na forma de uma co-participação para aformação da sentença. Tal atuação conjunta permite aporosidade dos discursos formadores da legitimação demo-crática. Nas palavras de Aroldo Plínio Gonçalves:

“O contraditório foi definitivamente conquistado comoum direito das partes, foi consagrado, no Brasil, comogarantia constitucional, e se transformou em uma exi-gência da instrumentalidade técnica do processo. A

O Poder Judiciário e(m) Crise

73

Page 86: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

idéia que está em sua base é a da evolução da práticada democracia e da liberdade, em que os interessesdivergentes ou em oposição encontram espaço garan-tido para sua manifestação, na busca da decisão par-ticipada.

Enquanto não se podia pensar a função jurisdicionalcom a participação das partes na fase de preparaçãoda sentença, a reflexão jurídica se ateve à missão dojuiz, e projetou nele a grande esperança de se retifica-rem as injustiças do Direito positivo” (GONÇALVES,2001:194).

Em relação ao problema da justiça no processo, o pro-fessor afirma literalmente no sentido que

“Com as novas conquistas do Direito, o problema dajustiça no processo foi deslocado do “papel-missão”do juiz para a garantia das partes. O grande problemada época contemporânea já não é o da convicção ideo-lógica, das preferências pessoais, das convicções ínti-mas do juiz. É o de que os destinatários do provimen-to, do ato imperativo do Estado que, no processo juris-dicional, é manifestado pela sentença, possam partici-par de sua formação, com as mesmas garantias, emsimétrica igualdade, podendo compreender por queforma, em que limites o Estado atua para resguardar etutelar direitos, para negar pretensos direitos e paraimpor condenações” (GONÇALVES 1993:195).

No que tange à instrumentalidade e aos escoposmetajurídicos, temos:

“A instrumentalidade técnica do processo, como ativi-dade regida por uma específica estrutura normativa

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

74

Page 87: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

que prevê a participação dos destinatários do provi-mento no iter que o prepara é repensada em uma novadimensão. (...) Os fins metajurídicos do processo nãopossuem critérios objetivos de aferição no DireitoProcessual Civil. Se o exercício da função jurisdicionalse manifesta sob a disciplina do ordenamento jurídico,e nos limites por ele definidos, qualquer fim do proces-so só pode ser jurídico” (GONÇALVES, 2001:195).

É inegável a aproximação destas conclusões com oparadigma do Estado Democrático de Direito. SegundoCattoni de Oliveira, no desempenho da tarefa de integração,o Direito não pode simplesmente condicionar a atuação deatores sociais movidos por interesses egoísticos, como nocaso do paradigma liberal, nem impor “aprioristicamente”uma única forma de vida como válida para a sociedade,como no caso do paradigma de bem-estar social.

A integração social não pode, ainda, ser confundidacom o modelo harmônico do mercado, como tantas vezes ofoi no século XIX, tampouco com a homogeneização ou uni-formização, como, tantas vezes se pretendeu no século XX(CATTONI DE OLIVEIRA, 2000:108). Nesse contexto, tantoo processo legislativo, quanto jurisdicional ou administrati-vo, como conceito renovado, ou seja, “procedimento reali-zado em contraditório” (FAZZALARI, 1994:74 et seq.; GON-ÇALVES, 2001:102 et seq.) entre os que serão afetados peladecisão a ser preparada, tem um papel fundamental degarantia da legitimidade democrática (CATTONI DE OLI-VEIRA, 2000:108).

Nem reduzido à mera ritualística ou a um instrumentolegitimador de decisões políticas, nem esgotado nomomento da decisão, mas entendido como “procedimentorealizado em igualdade”, o processo é a dinâmica doDireito. Para uma teoria do Direito e da Democracia queultrapassa os paradigmas jurídicos liberal e de bem-estar-

O Poder Judiciário e(m) Crise

75

Page 88: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

social, o Direito deve ser compreendido, fundamentalmen-te, como processo ou em termos procedimentalistas.

Portando, o processo deve ser uma instituição que for-neça aos julgadores os elementos necessários para suaconvicção, possibilitando a justa e rápida atividade jurisdi-cional, observando sempre o contraditório que se estabele-ce com a paridade simétrica entre as partes, não compor-tando “fins extrajurídicos”, sendo que o “processo realiza-do em contraditório entre as partes” como salientado, sócumprirá sua finalidade garantindo a emanação de umasentença participada. Os seus destinatários já não preci-sam recear (ou não deveriam) pelas preferências ideológi-cas dos juízes, porque, participando do íter da formação doato final, terão a dignidade e a liberdade reconhecidas epoderão compreender que um direito é assegurado, umacondenação é imposta ou um pretenso direito é negadotudo isso, não em nome de quaisquer nomes, mas apenasem nome do Direito construído pela própria sociedade ouque tenha sua existência por ela consentida.

Acrescentamos, de acordo com marco teórico aqui tra-balhado, que a instrumentalidade técnica do processo sópode ser compreendida, ao contrário do que pensa a leitu-ra tradicional, como a constituição do processo como “amelhor e mais ágil e mais democrática” estrutura para quea sentença que do mesmo resulte, seja formada com a devi-da garantia de participação igual, paritária, simétrica,daqueles que, receberão seus efeitos.

Acreditamos termos contribuído para a construção deuma teoria constitucionalmente adequada ao EstadoDemocrático de Direito e a sua relação com a contemporâ-nea Teoria Geral do Processo que redefine o processo comoprocedimento realizado em contraditório. Sendo um proce-dimento discursivo e participativo, que visa a garantir “ageração da decisão participada”, o processo poderia servislumbrado “como o instrumento, através do qual se dá o

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

76

Page 89: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

exercício do poder jurisdicional e se garantem, nos termosanalisados, direitos de participação e de condições proce-dimentais, que possibilitam a geração legítima do provi-mento jurisdicional” (CATTONI DE OLIVEIRA, 1998:132).

Concluímos, lembrando, como nos afirma Habermas: atarefa do Direito nas sociedades modernas foi e ainda é ade ser uma das formas de integração social que visa a umsó tempo fundar a si próprio e garantir a certeza das rela-ções, sendo que, para a realização dessa, a democraciasempre deve ser entendida como um processo ou em ter-mos procedimentais, em permanente fazer, através de umasoberania difusa17 na qual, devido a hiper complexidadesocial, o Estado é um ator ao lado de outros atores, deven-do-se observar a co-originalidade entre a autonomia públi-ca e a autonomia privada dos cidadãos. É, portanto, inso-fismável que o paradigma procedimental do direito, nutra,ou melhor dizendo, carregue consigo, a expectativa depoder influenciar não somente à autocompreensão das eli-tes que operam o direito na qualidade de especialistas,mas também todos os atingidos e afetados pelas decisões(HABERMAS, 1997:190).

Podemos, a partir desse momento, iniciar o debatesobre o “acesso à Justiça”, que percorrerá, reconstrutiva-

O Poder Judiciário e(m) Crise

77

17 Não podemos mais entender o Estado como a instância e o patamar der-radeiro de estabilização de uma identidade ética, de uma forma de vidaconcreta e de determinados “padrões de vida boa”. Portanto é impensá-vel a redução hoje da esfera Pública ao Estado. O público deve ser vistocomo algo muito mais complexo do que um “locus estatal”, sendo hodier-namente afirmado como uma dimensão discursiva de mobilização eexpressão de diferenciados” fluxos comunicativos”. Ver sobretudo emHABERMAS (1997) cap. VII, VIII, e IX. Esta aqui citada esfera pública édescrita nos moldes da Teoria discursiva como uma rede adequada paraa comunicação de conteúdos, tomadas de posição e opiniões, sendo quenela, os também citados fluxos comunicativos são filtrados e sintetiza-dos, a ponto de se condensarem em opiniões públicas delineadas emtemas específicos. Esta esfera pública se reproduz através do agir comu-nicativo (HABERMAS 1997:92).

Page 90: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

mente, toda a seara pertencente à teoria constitucional e àteoria do processo, em busca de um acesso qualitativamen-te adequado ao paradigma constitucional do EstadoDemocrático de Direito que possa superar os dilemas mera-mente quantitativos no que tange à distribuição da justiçae as contradições dessa perspectiva quanto ao PoderJudiciário (e a sua crise?) como um todo.

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

78

Page 91: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

Capitulo 3"Acesso à Justiça"

3.1. Considerações Gerais

No capítulo anterior, foram observadas as questõesrelativas à instrumentalidade do processo e aos escopos dajurisdição, bem como a relação de proximidade entre prin-cipais correntes sobre a natureza jurídica do processo e atese instrumentalista aqui debatida e criticada.

Essa adequabilidade foi, também, relacionada aonosso marco teórico, que como afirmado, envolve, sobretu-do, uma questão de releitura e reformulação de paradigmas.

Foi pesquisando a noção de paradigmas, delineadosno primeiro capítulo que pudemos afirmar que os adeptosda teoria da relação jurídico-processual e da tese da instru-mentalidade processual com escopos metajurídicos do pro-cesso ainda não assumiram a perspectiva de uma leituraprocedimental do Estado Democrático de Direito, ficandoainda agarrados às balizas epistemológicas de um para-digma de Estado de bem-estar social, já superado pelaatual Carta Magna.

Nesse sentido, não é de se estranhar que quase todosos processualistas brasileiros contemporâneos, que desen-volvem estudos sobre o “acesso à Justiça”, fazem-no nalinha paradigmática condizente com a moldura de bem-estar social, conceituando, pois, o processo como relaçãojurídica, concebido como instrumento de pacificação socialmediante a instrumentalidade e os escopos (jurídicos, polí-ticos e sociais que prestam suas finalidades) sendo, por-

79

Page 92: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

tanto (o processo), tradutor da síntese das opções axiológi-cas da nação.

Por isso mesmo, deixamos em aberto a questão decomo fica o “acesso à Justiça” nesse contexto dominantena processualística nacional e até mesmo internacional.Nossa primeira preocupação foi de reconstruir os contornosdas teorias processuais que tomam como base e demons-trar a sua insuficiência e superação diante do EstadoDemocrático de Direito.

Certo é que o fascínio pelas teorias axiológicas quebuscam um conteúdo substantivo (valorativo) à Justiça e,conseqüentemente, para a Constituição – assumindo amesma como uma ordem concreta de valores a ser concreti-zada, principalmente por um judiciário redentor – bemcomo, para todo o ordenamento jurídico, não são apenasmaioria no nosso país, sendo de forte clamor, sobretudo nospaíses da Europa que, inclusive, serviram e ainda servemde modelagem teórica para os nossos grandes juristas.

Um teórico de renome e relevância atualmente é oprofessor da Universidade de Kiel, Robert Alexy, cujasidéias aparecem para os processualistas brasileiros – porexemplo, Luis Guilherme Marinoni (2006) – como a maismoderna teoria constitucional, principalmente por apre-sentar uma proposta de compreensão do direito para alémdo clássico modelo de regras, típico das tradições positi-vistas, abarcando uma leitura mais sofisticada do direito,que além de regras, conteria princípios dotados de nor-matividade.1 Estes seria aplicados caso a caso, conforme

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

80

1 Na realidade, a tese não é nova. A afirmação de que o direito apresenta-se como uma estrutura mais complexa que apenas regras jurídicas, jáestá presente no pensamento de Esser. “Para Josef Esser, princípios sãoaquelas normas que estabelecem fundamentos para que determinadomandamento seja encontrado. Mais do que uma distinção baseada nograu de abstração da prescrição normativa, a diferença entre os princí-pios e as regras seria uma distinção qualitativa. O critério distintivo dosprincípios em relação às regras seria, portanto, a função de fundamento

Page 93: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

uma metodologia designada como “ponderação” ou“balanceamento”. Todavia, tal técnica não representa ino-vação alguma e apenas sistematiza o que a antiga juris-prudência de valores alemã buscava afirmar: aos direitosse equivalem valores socialmente desejados, cuja prote-ção deve se dar na medida do peso relativo de cada um,diante de um caso concreto.

Só que atribuir peso já representa (por si) uma postu-ra hierarquizante e acaba por afirmar que alguns direitos(ou os direitos de algum grupo) são mais importantes queos direitos dos demais e, com base nisso, justifica-se umaatuação diferenciada por parte do Judiciário, que pode,inclusive, na leitura de Cappelletti, Marinoni e outros, dei-xar de julgar causas, seja desde a primeira instância, sejaem grau recursal, por serem, supostamente, de menorimportância (ou seja, de menor peso ou menor valor) paraa “sociedade”. Segundo eles, a diminuição de demandaspela exclusão de causas menos importantes deixaria oJudiciário com mais liberdade e tempo para julgar o que édefinido como relevante.

Mas é preciso lembrar que é o próprio judiciário que,no final, definirá o critério de “relevância social”, sem qual-quer abertura para a manifestação democrática. Mais umavez, percebemos o mito do Estado de bem-estar social (deforma paternalista/clientelista) que assume para si a tare-fa de cuidar da sociedade “incapaz” ou “infantilizada,” quenão apresenta condições de se autodeterminar.

Por esta razão, achamos conveniente, antes de recons-truirmos um conceito qualitativamente democrático para o

O Poder Judiciário e(m) Crise

81

normativo para a tomada de decisão” (ÁVILA, 2004:27). Todavia, a baseda distinção de Alexy está em um texto de Ronald Dworkin intitulado“Model Of Rules”, escrito na década de 60 – mas traduzido como parteintegrante da obra Levando os direitos a sério – para um debate contra aspropostas positivistas de H. L. A. Hart, principalmente, no tocante ànegativa da tese hartiana da discricionariedade judicial.

Page 94: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

“acesso à Justiça” em termos discursivos, dedicar-nos auma análise aprofundada do movimento que surge no para-digma do Estado Social e que visa através de uma metodo-logia diferenciada de prestações positivas do Estado, aredimensionar, ou até a mesmo, construir um modelo de“acesso à Justiça”, que, até então, montado sob as vestesdo constitucionalismo e processualísmo clássico, não cor-respondia aos anseios e necessidades presentes no consti-tucionalismo social. Palavras e chavões observados nocapítulo anterior serão aqui novamente trazidos a lume,como: efetividade do processo, garantia do direito real ao“acesso à Justiça”, participação ativa do juiz no processo,quebra do mito da neutralidade do juiz, relativização dobinômio direito material e processo através da noção dodireito à tutela jurisdicional adequada ao plano do direitomaterial, busca dos valores a serem realizados pela jurisdi-ção e a adequação destes às identidades culturais danação e por último, como não poderia deixar de ser, a buscapelo tão sonhado “acesso à ordem jurídica justa”.

O debate, ora trazido a cotejo, incluirá grandes pro-cessualistas (Mauro Cappelletti, Brian Garth, VittorioDenti, Andrea Proto Pisani, Nicolo Trocker, FredericoCarpi, Donaldo Armelin, Eduardo Ricci, CristinaRapisarda, Candido Rangel Dinamarco, Ada PelegriniGrinover, Kazuo Watanabe, Luiz Guilherme Marinoni,Humberto Theodoro Júnior, entre outros) que, ao longo,desses últimos trinta anos (década de 70 em diante) quemarcam a crise do Estado Social, discutiram (e ainda dis-cutem) a questão do “acesso à Justiça”, trabalhando, emalgumas oportunidades (a nosso ver) de uma forma“populista” (populismo processual), estatizante e profun-damente axiológica, mas, sem dúvida, desenvolvendo ummodelo que foi muito importante em vários sentidos eque (apesar desse reconhecimento) nesta pesquisa que-remos romper através de um paradigma diferenciado,

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

82

Page 95: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

sobretudo da relação entre Estado e sociedade, conformedescrito no segundo capítulo.

A nossa proposta inicialmente será a de uma peque-na reconstrução histórica do conceito de “acesso àJustiça”. Mas, com certeza, essa reflexão guarda relaçãocom o objeto de estudo e com as pré-compreensões subja-centes ao mesmo.

Não há como, adotando como pontos de partida osgiros hermenêutico e lingüístico, trabalhar nos moldes, porexemplo, do Professor Paulo César Pinheiro em sua tese decátedra na UERJ, pois o mesmo desenvolve (e este não seránosso objetivo) uma visitação do tema “acesso à Justiça”em períodos arcaicos da Antiguidade Clássica e IdadeMédia. Não vemos sentido à luz do nosso marco teórico emproduzir uma análise histórica de um instituto “pela sim-ples análise em si mesma”, que não guardaria relação comos objetivos (reconstrutivos) da pesquisa. A nossa aborda-gem será, então, a partir do surgimento moderno do “aces-so à Justiça” e das bases fundamentais que esse movimen-to incorpora com o “aparecimento” e “crise” do EstadoSocial de Direito e do Constitucionalismo Social.

Após a reflexão histórica, voltamos à pesquisa, para oestudo particularizado de alguns autores que contribuíramsobremaneira para o estágio atual do movimento de “aces-so à Justiça.” Estudaremos, num primeiro momento, o tra-balho de esforço mundial, para a busca da efetividade datutela jurisdicional bem como para o “acesso à Justiça”.Essa pesquisa intitulada “Projeto de Florença,” capitanea-da pelo jurista italiano Mauro Cappelletti (com a participa-ção de vários colaboradores), foi, sem dúvida, o marco ini-cial que disseminou pelos cinco continentes as preocupa-ções mais profundas com a seara jurídico-processual-cons-titucional contemporânea envolvendo o tema ora debatidona nossa obra.

O Poder Judiciário e(m) Crise

83

Page 96: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

Em seguida, vamos trabalhar com algumas visõessobre como se deve dar a busca pelo “acesso à Justiça”nos dias atuais. Os autores escolhidos são, na verdade,todos adeptos (daquilo que estamos chamando) da esco-la paulista de processo, que se traduz nitidamente na con-firmação do processo como relação jurídica instrumenta-lista. Serão aqui analisados (Candido Rangel Dinamarco,Ada Pelegrini Grinover, Kazuo Watanabe, HumbertoTheodoro Júnior e Luiz Guilherme Marinoni) os que con-tribuíram e efetivamente contribuem para os estudos deteoria do processo ligados ao “acesso à Justiça”, mascomo delineado, estão, nitidamente em paradigma nãocondizente com a nova relação entre Estado e sociedadeque ora defendemos à luz da teoria discursiva do direito eda democracia.

Posteriormente, criticaremos os autores supra-men-cionados, estabelecendo um debate com os mesmos, aler-tando, sobretudo para o extremo perigo da busca desen-freada pela efetividade do processo, através da aferiçãodos riscos e limites do enfoque trabalhado pelos autoresinfra-referidos.

O capítulo é finalizado esboçando uma tentativa deaproximação das teorias delimitadas em nosso marco teó-rico e o conceito de “acesso à Justiça” em termos qualita-tivamente condizentes com uma teoria discursivo-demo-crática que através de uma visão procedimentalista dapolítica deliberativa e da democracia deva ser compreendi-da como a interpretação e prefiguração de um sistema dedireitos fundamentais que entende a Constituição comoaquele mecanismo que regula processos através da inter-pretação e elaboração de um sistema de direitos básicos,possibilitando assim, o uso discursivo das autonomiaspúblicas e privadas dos cidadãos que buscarão mediantedecisões justas, acesso efetivo à Justiça.

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

84

Page 97: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

3.2. “Acesso à Justiça”: evolução conceitual: doEstado Liberal ao Estado Social

A evolução do significado de “acesso à Justiça” serelaciona em certo sentido com compreensão histórica dodireito processual e suas fases metodológicas fundamen-tais, trabalhadas no segundo capítulo da obra. Ou seja, osignificado e a delimitação acerca do conceito de “acesso àJustiça” é também um espelho de sua época e conformetentamos demonstrar, será também uma questão de para-digmas e pré-compreensões.

O magistrado paranaense Cichocki Neto, em tese dedoutorado intitulada “Limitações ao Acesso à Justiça”,apesar de estar no marco teórico instrumentalista deEstado Social que procuramos romper, bem delimita asfases pelas quais o “acesso à Justiça” já perpassou, emconsonância com a evolução da teoria geral do processo.Destaca três perspectivas fundamentais do “acesso àJustiça” que logicamente refletem ou já refletiram o trata-mento conceitual despendido ao processo historicamente.

A primeira delas seria de caráter eminentementeinterno, como fim em si mesmo; a segunda, considerando oacesso como instrumento da jurisdição e, finalmente, a ter-ceira, e última, como instrumento ético para a realização dajustiça. Essa concepção é originária da compreensão do“acesso à Justiça” como “acesso à ordem jurídica justa,”concebida por Kazuo Watanabe e também trabalhada portodos os cultores da “escola paulista”, incluindo o próprioCichocki Neto. Temos dentro destas três fases delineadas,uma dupla divisão (uma de cunho formal e outra de cunhoinstrumentalista).

A perspectiva inicial, emersa nos primórdios da ciên-cia processual moderna, refere-se ao “acesso à Justiça”como um mero direito de ingressar em juízo. Sustenta-se

O Poder Judiciário e(m) Crise

85

Page 98: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

nas considerações relacionadas ao direito ou poder deexercício da ação, desprovido de qualquer conteúdo sócio-político. Essa concepção representou uma fase do estudoe da história do direito processual em que seus institutos,princípios e, enfim, todo o fenômeno e toda a atividadeprocessual eram considerados sob o prisma eminentemen-te “introspectivo”. Teríamos assim, o “acesso à Justiça”como mero exercício do direito de ação. Aliás, é tambémpor isso que o direito de ação, durante mais de um século,constituiu o pólo metodológico da ciência processual,sendo os institutos e categorias processuais nesta faseestudados sob a perspectiva do autor da demanda.(CICHOCKI NETO, 1999:61).

Nesse sentido, também Dinamarco traz suas coloca-ções sobre o estudo do processo sob a perspectiva da ação.Afirmando ser um hábito metodológico mantido pelos juris-tas latinos em geral, em continuação ao privatismo domi-nante durante os milênios do “sincretismo” – hoje, supera-do –, conclui ser essa prática eminentemente individualis-ta, mesmo num sistema jurídico que atualmente é marcadopelo publicismo (mediante a utilização do sistema proces-sual, propõe-se o Estado a realizar os objetivos que sãoseus) e, portanto, não apto ao estudo da teoria geral do pro-cesso por ser demais restritivo (DINAMARCO, 1999:79).

Nessa primeira acepção, as inibições ao “acesso àJustiça” correspondem a fenômenos puramente técnicosdo direito ou do poder de exercitar a ação. Entendido dessaforma, o “acesso à Justiça” e a atuação jurisdicional vol-tam-se para as questões relativas ao direito invocado peloautor, na crença de que nisso (e somente nisso) se resumaa “distribuição da justiça”.

Para Cappelletti, que estudaremos no próximo item,esse direito à proteção judicial significava essencialmenteo direito formal do indivíduo de propor ou contestar umaação, permanecendo o Estado totalmente passivo com rela-

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

86

Page 99: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

ção aos problemas da aptidão de uma pessoa para reco-nhecer seus direitos e defendê-los adequadamente na prá-tica. Essa visão, para alguns autores, poderia ser criticadapela simples razão de ser uma visão parcial do fenômenoda atividade jurisdicional, por desconsiderar o comprome-timento com as repercussões sócio-políticas que o proces-so é capaz de gerar no seio social ou com suas finalidadesou seus escopos através dos valores dominantes na socie-dade (CICHOCKI NETO, 1999:61).

A segunda visão (que rompe com o formalismo) colocao processo como um instrumento da jurisdição com escoposjurídicos, sociais e políticos bem definidos. Essa perspecti-va, conforme já estudado anteriormente, realça os valoressociais e políticos do processo, bem como a condição domesmo como instrumento para a realização dos direitosatravés da jurisdição, projetando seus escopos para além desua finalidade jurídica (CICHOCKI NETO, 1999:61).

Nesse sentido, segundo o autor, atrelado ao giro ins-trumentalista e por que não dizer, radicalizando-o, surge aterceira perspectiva (obviamente ainda instrumentalista)na qual, teríamos a exacerbação do princípio da “universa-lidade da tutela jurisdicional” bem como a compreensão, apartir daí, do “acesso à Justiça” como acesso à “ordem jurí-dica justa”. Com isso, nos dizeres de Kazuo Watanabe, écontundente a afirmação de que não se trata apenas depossibilitar o “acesso à Justiça” como instituição estatal,mas sim, viabilizar o “acesso à Justiça” como acesso àordem jurídica justa. Sob essa ótica, o “acesso à Justiça”não implica somente na existência de um ordenamentojurídico regulador das atividades individuais e sociais, mastambém implicaria na distribuição legislativa justa dosdireitos e faculdades substanciais.

Compreendendo, no conceito de “acesso à Justiça”delineado por Watanabe, toda atividade jurídica, desde acriação, interpretação, integração e aplicação das normas

O Poder Judiciário e(m) Crise

87

Page 100: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

jurídicas. Nesse sentido, os “modernos” processualistas da“Escola de São Paulo” conforme já salientado, vão concei-tuar a expressão “acesso à Justiça” como “acesso a umaordem jurídica justa” (CICHOCKI NETO, 1999). Aliás, isto éposto em voga pelas considerações da processualista AdaPellegrini Grinover, em texto elaborado em homenagem aEllio Fazzalari, intitulado “Modernidade do direito proces-sual brasileiro”, no qual a jurista caracteriza o que os pro-cessualistas instrumentalistas entendem, hodiernamente,por “acesso à Justiça”:

“Kazuo Watanabe escreve em 1988, estudo sobreacesso à justiça na sociedade moderna (in Partici-pação e processo, São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais,1988, ps. 125-135) em que demonstra que hoje a idéiade acesso à justiça não mais se limita ao mero acessoaos tribunais: não se trata apenas e somente de possi-bilitar o acesso à justiça enquanto (sic) instituiçãoestatal, mas de viabilizar o acesso à ordem jurídicajusta” (GRINOVER, 1993:05).

Nesses termos, a professora titular da USP delimitao que chama de dados elementares e definidores do direi-to à ordem jurídica justa. Estes seriam: a) o direito à infor-mação; b) o direito à adequação entre a ordem jurídica ea realidade socioeconômica do país; c) o direito ao aces-so a uma “Justiça” adequadamente organizada e forma-da por juízes inseridos na realidade social e comprometi-dos com o objetivo de realização da ordem jurídica justa;d) o direito à preordenação dos instrumentos processuaiscapazes de promover a objetiva tutela dos direitos; e) odireito à remoção dos obstáculos que se anteponham aoacesso efetivo a uma “Justiça” que tenha tais caracterís-ticas. É interessante observar que todos esses aspectoslevantados pela professora Ada Pelegrini Grinover, na

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

88

Page 101: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

esteira de Kazuo Watanabe, serão abordados nesta parteque trata especificamente do “acesso à Justiça”. Certo éque os autores escolhidos para o trabalho estão, guarda-das as suas especificidades, em consonância com osditames do acesso à “ordem jurídica justa”, tão decanta-da pela moderna processualística pátria.

3.3. Mauro Cappelletti: “Acesso à Justiça”

O professor Mauro Cappelletti, sem dúvida alguma, éum dos autores que contribuíram consideravelmente parao avanço dos estudos sobre o “acesso à Justiça” em todo omundo. Necessário é que analisemos alguns trabalhos deCappelletti, que são considerados referências, não só pelopioneirismo, mas, sobretudo, pelo rigor e acuidade em quea efetividade do processo e o “acesso à Justiça” são trata-dos. Entre os inúmeros textos pesquisados, podemos citar:“La giurisdizione constituzionale delle libertà”(1955);“Fundamental Guarantees of the parties in civil procee-dings” (1973); “Processo, ideologias, sociedad” (1974);“Formazioni sociali e interessi di guppo davanti allaGuistizia Civile” (1975); “El processo como fenômeno socialde massa”(1974); “Acess of Justice: The worldwide move-ment to make rights effective” (1978); “Appunti per unaFenomenologia della giustizia nel XX secolo” (1979); “Acesso alla giustizia come programa di reforma e comemetodo di pensiero” (1982); “Appunti in tema di contraddit-torio” (1984); “Acesso à justiça” (1988); “JuízesIrresponsáveis”? (1989); “O Acesso à Justiça e a fundação doJurista em Nossa Época” (1992); “Dimensiones de la justiciaen el mundo contemporaneo” (1993); “Problemas de reformado processo civil nas sociedades contemporâneas” (1994).Todos estes valorosos trabalhos estarão aqui debatidosainda que de forma mediata ou indireta, pois os mesmosrepresentam uma vida inteira dedicada ao estudo crítico do

O Poder Judiciário e(m) Crise

89

Page 102: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

direito processual e da teoria geral do processo.Acrescentamos que nos deteremos mais pormenorizada-mente nos textos do “acesso à Justiça” no Projeto deFlorença, bem como nos importantíssimos textos intitula-dos: “Acesso alla giustizia: come programa di reforma ecome metodo di pensiero” (1982) e “Acesso à justiça e afunção do jurista em nossa época”(1990).

3.4. Mauro Cappelletti: “acesso à Justiça” noProjeto de Florença

Em meados de 1975, Cappelletti e alguns professoresingleses e norte-americanos (J. Gordley, E. Johnson Jr., J.A. Jolowicz) iniciaram a publicação de uma série de traba-lhos de direito comparado, relacionados com o denominado“Projeto de Florença,” que teria como tema o “acesso àJustiça”, os quais se inseriam numa grandiosa seqüênciade estudos inaugurados nos Estados Unidos e naInglaterra, em 1968, todos preocupados com o “acesso àJustiça” e à efetividade da atividade jurisdicional. Esserelatório publicado originalmente em Milão, no ano de1978, foi redigido pelos professores Mauro Cappelletti eBrian Garth. No mesmo, que passaremos a trabalhar, foramlevantados os principais problemas comuns aos diversospaíses envolvidos no estudo do “acesso à Justiça”, apre-sentando etapas a serem vencidas para que a atividadejurisdicional sofresse um aprimoramento naquilo em que, oentão moderno Estado Social de Direito esperava da efeti-va tutela jurisdicional. (THEODORO JÚNIOR, 1996:172).

Buscamos nesta parte da pesquisa, resgatar o Projetode Florença nos seus principais pontos, sem esgotá-lotaxativamente nas suas pesquisas e desenvolvimentos quese alardearam pelos cinco continentes. Aliás, os ensina-mentos trazidos pelo projeto andam meio esquecidos (emnossa opinião) pelos trabalhos atuais sobre o “acesso à

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

90

Page 103: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

Justiça” e nunca foram questionados, pelo menos no quetange às críticas ao paradigma do Estado social. O queocorre, na maioria das vezes, é a citação dos obstáculos.Logo em seguida, as soluções para os obstáculos e nessas,que são denominadas “ondas”, os autores trabalham asmodificações no ordenamento jurídico brasileiro, tantoconstitucional como infraconstitucional e ponto final.

Não há uma reflexão paradigmática de fundo entre amaioria dos processualistas pátrios, mesmo porque se estaexistisse, eles iriam descobrir que o modelo constitucionaldo processo não está enquadrado no Estado Social (ou emnovos rótulos como o intitulado recentemente por Marinoni –2006 – de Estado Constitucional Democrático2) que elestanto admiram. Apesar disso, é necessário trabalhar comos autores típicos do Welfare State, a partir de agora, paraque possamos, após as análises, construirmos um “acessoà Justiça” constitucionalmente adequado ao EstadoDemocrático de Direito.

Iniciamos, então, com a conceituação do “acesso àJustiça” para Cappelletti (1). Após a mesma, vamos obser-var a evolução do conceito ora debatido para os autores doProjeto de Florença (2). Posteriormente, a discussão envol-verá os obstáculos a serem transpostos para o acesso efe-tivo à “Justiça” (3). Logo em seguida, iremos analisar, nosdiversos países envolvidos no estudo, as soluções práticaspara os problemas ou barreiras ao “acesso à Justiça”,denominadas de “ondas renovatórias” (4).

Dessa forma, a expressão “acesso à Justiça”, confor-me Cappelletti, é reconhecidamente de difícil definição,mas serve para determinar duas finalidades básicas do sis-tema jurídico: primeiro, o sistema deve ser igualmente

O Poder Judiciário e(m) Crise

91

2 Termo este que nada traz de novidade, já que é na realidade uma tradu-ção literal dos termos presentes nas tradições norte-americana e alemãpara se referir ao Estado Democrático de Direito.

Page 104: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

acessível a todos; segundo, ele deve produzir resultadosque sejam individual e socialmente justos (CAPPELLETTIe GARTH, 1988).

O enfoque trabalhado pelo autor será, primordialmen-te, sobre o primeiro aspecto, sem que não se perca de vistao segundo. Ou seja, o relatório se preocupa de forma primá-ria com o acesso em condições iguais para os jurisdiciona-dos, interessando-se de forma secundária pelos resultadosjustos, que obviamente também irão fazer parte do estudo,embora de forma mediata. A premissa básica será a de quea justiça social, tal como desejada por nossas sociedadesmodernas, pressupõe o acesso efetivo à “Justiça”. (CAP-PELLETTI e GARTH, 1988:8).

A tarefa monumental do relatório foi a de delinear osurgimento e o desenvolvimento de uma abordagem novae compreensiva dos problemas que esse acesso apresentanas sociedades contemporâneas. Nele, discutiram-se pro-postas básicas, bem como os riscos e limitações dos méto-dos de reforma das instituições processuais.3 De fato,assiste razão a Cappelletti quando preleciona o ineditismodo estudo, pois até então (início da década de 70), não setinha notícia de um trabalho de igual envergadura sobretema tão importante. Nesse sentido, afirmam os autores doprojeto que

(...) “originando-se, talvez, da ruptura da crença tradi-cional na confiabilidade de nossas instituições jurídi-cas e inspirando-se no desejo de tornar efetivos (e nãomeramente simbólicos) os direitos do cidadão comum,

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

92

3 É interessante observar a grandiosidade desse estudo que abarcou ofuncionamento dos ordenamentos jurídicos processuais de vários países,numa tentativa de traçar um direcionamento para a tomada de posiçãono que tange à efetividade do processo nas sociedades contemporâneas.Segundo Cappelletti: “essa abordagem, como se verá, vai muito além dasanteriores” (CAPPELLETTI e GARTH, 1988:08).

Page 105: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

seriam necessárias reformas de amplo alcance alemde uma nova criatividade. A premissa era de: recusara aceitar como imutáveis quaisquer dos procedimen-tos e instituições que caracterizariam a engrenagemda justiça” (CAPPELLETTI e GARTH, 1988:08).

No primeiro capítulo da obra, os autores buscam tra-çar a evolução do conceito de “acesso à Justiça”, afirman-do as suas transformações no decorrer do tempo e a equi-valência do mesmo com o estudo e ensino do processo civil.Analisa esta correspondência ou correlação de modo muitointeressante, inclusive no que tange a nossa investigação eàs respectivas análises paradigmáticas. Para se ter umaidéia dessa relação entre Constituição e Processo,Cappelletti e Garth afirmam que

(...) “nos Estados Liberais ‘burgueses’ dos séculosdezoito e dezenove, os procedimentos adotados para asolução dos litígios civis refletiam a filosofia essencial-mente individualista dos direitos, então vigorante.Direito ao acesso à proteção judicial significava essen-cialmente o direito formal do indivíduo agravado depropor ou contestar uma ação. A teoria era a de que,embora o acesso à justiça pudesse ser um ‘direitonatural’, os direitos naturais não necessitavam de umaação do estado para sua proteção. Esses direitos, eramconsiderados, anteriores ao Estado; sua preservaçãoexigia apenas que o Estado não permitisse que elesfossem infringidos por outros. O Estado, portanto, per-manece passivo, com relação a problemas tais comoaptidão de uma pessoas para reconhecer seus direitose defendê-los adequadamente na prática” (CAPPEL-LETTI e GARTH, 1988: 09).

É interessante esta análise, pois em um contexto niti-damente de Estado social, os autores do relatório de

O Poder Judiciário e(m) Crise

93

Page 106: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

Florença tentam demonstrar a incapacidade da utilizaçãoplena da justiça e de suas instituições, não sendo esta apreocupação do Estado liberal. Sendo que “a justiça, comooutros bens, no sistema do laissez-faire, só podia ser obtidapor aqueles que pudessem enfrentar seus custos; aquelesque não pudessem fazê-lo, eram considerados únicos res-ponsáveis pela sua sorte. O acesso formal, mas não efetivoà justiça, correspondia à igualdade apenas formal, mas nãoefetiva” (CAPPELLETTI e GARTH, 1988: 09).

Completam a crítica citando o ensino e estudo jurídi-co que, segundo os mesmos, se mantiveram cegos às reali-dades do sistema judiciário. O estudo tipicamente formalis-ta e indiferente aos problemas reais do foro civil faziam osestudiosos do direito e o próprio sistema judiciário se afas-tarem de forma brutal “das preocupações reais da maioriada população”.

Na evolução conceitual do “acesso à Justiça” doProjeto de Florença, a partir do momento em que as ações erelacionamentos assumiram um caráter mais coletivo doque individual, as sociedades modernas deixaram para trása visão individualista dos direitos, consubstanciada nasdeclarações de direitos dos séculos XVIII e XIX. Cappellettie Garth se reportam ao crescimento em complexidade dassociedades do laissez-faire, levando a uma transformaçãoradical no conceito de “direitos humanos”. Esse movimento“faz-se no sentido de reconhecer os direitos e deveressociais dos governos, comunidades, associações e indiví-duos”. Entre esses direitos garantidos nas modernasConstituições estariam os direitos ao trabalho, à saúde, àsegurança material e à educação. Com isso, “tornou-selugar comum observar que a atuação positiva do Estado énecessária para assegurar o gozo de todos esses direitosociais básicos” (CAPPELLETTI e GARTH, 1988: 10).

Através dessas mudanças, o acesso efetivo à “Justiça”,no bojo das mesmas, ganhou particular atenção na medida

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

94

Page 107: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

em que as reformas do “welfare state” procuraram armar osindivíduos de novos direitos substantivos. Sendo, segundoos autores, o direito ao “acesso à Justiça” efetivo, progres-sivamente reconhecido como de importância capital entreos novos direitos individuais e sociais, encarado, nessavisão como requisito fundamental, “o mais básico dos direi-tos humanos” de um sistema jurídico moderno e igualitário.Para autores do Projeto de Florença, pretende-se “garantir,e não apenas proclamar os direitos de todos”. Esse moder-no enfoque, também direciona-se, como não poderia deixarde ser, para o que eles chamaram de “moderno estudo doprocesso civil”. Surgindo, daí, a necessidade dos processua-listas reconhecerem que as técnicas processuais servem àsfunções sociais – em outros termos, reconhecer a naturezainstrumental do processo, como quer Dinamarco.

O acesso não seria, portanto, apenas um direito socialfundamental, crescentemente reconhecido; ele seria, segun-do Cappelletti e Garth, justamente o ponto central damoderna processualística. Os autores do projeto afirmam, deforma contundente, que toda a discussão teórica das regrasdo processo civil e de como elas podem ser manipuladas emvárias situações podem ser interessantes, mas através des-sas “descrições neutras”, costuma-se ocultar, nas modernassociedades, o modelo freqüentemente irreal de duas partesem igualdade de condições perante os tribunais. Concluemos idealizadores do projeto pela real necessidade da amplia-ção das pesquisas para além dos tribunais, com o devido“alargamento e aprofundamento dos objetivos e métodos damoderna ciência jurídica” (CAPPELLETTI e GARTH, 1988).

3.5. O Acesso Efetivo à “Justiça” e osObstáculos a Serem Transpostos

A primeira tarefa delineada seria a da identificaçãodos obstáculos ao acesso efetivo à “Justiça”. Ou seja, quais

O Poder Judiciário e(m) Crise

95

Page 108: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

são esses obstáculos e como eles podem e devem ser ata-cados. Cappelletti e Garth apontam as barreiras que consi-deram mais importantes na busca pela efetividade do sis-tema processual nos termos de um real “acesso à Justiça”.Essas, de forma resumida, são classificadas em três gran-des núcleos, envolvendo, sobretudo, as custas judiciais, aspossibilidades das partes e os problemas especiais dosinteresses difusos.

O primeiro grande obstáculo estaria relacionado àscustas judiciais nas sociedades contemporâneas. Segundoos estudos do Projeto de Florença, a resolução formal delitígios, particularmente nos tribunais, é muito dispendiosana maior parte das sociedades modernas. O relatório per-passa principalmente os custos na Alemanha, EstadosUnidos, Inglaterra, Itália e França.

O alto custo para as partes é particularmente óbviosob o sistema Americano, que não obriga o vencido a reem-bolsar ao vencedor os honorários despendidos com seuadvogado. Mas os altos custos também agem como umabarreira poderosa sob o sistema, mais amplamente difundi-do, que impõe ao vencido os ônus da sucumbência. Nessecaso, dadas as normais incertezas do processo, os litigan-tes, segundo os autores, enfrentam um risco ainda maior doque o verificado nos Estados Unidos. Os estudos do relató-rio apontam que a penalidade para o vencido em paísesque adotam o princípio da sucumbência é aproximadamen-te duas vezes maior (CAPPELLETTI e GARTH, 1988).

Devemos, na esteira dos autores do projeto, considerarque qualquer tentativa realística de enfrentar os problemasde acesso deve começar por reconhecer esta situação: osadvogados e seus serviços são muito caros. Mas os custos(e isto é outra questão importantíssima), ainda devem serlevados em conta, principalmente no que tange às peque-nas causas e ao tempo dos litígios.

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

96

Page 109: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

Realmente, não deixa de ter razão o Projeto deFlorença, pois as causas que envolvem somas relativamen-te pequenas são as mais prejudicadas pela barreira doscustos. Afirmam Cappelletti e Garth (1988:19) que se o lití-gio tiver de ser decidido por processos judiciários formais,os custos podem exceder o montante da controvérsia ou seisto não acontecer, podem consumir o conteúdo do pedidoa ponto de tornar a demanda uma futilidade. Os dados doProjeto de Florença revelaram que a relação entre os custosa serem enfrentados nas ações cresce na medida em que sereduz o valor da causa.

Por último, em relação às custas, é interessante nãoperdermos de vista o fator tempo. O relatório aponta queem muitos países, as partes que buscam uma solução judi-cial precisam esperar dois, três ou mais anos, por uma deci-são exeqüível. É óbvio que os efeitos dessa demora, espe-cialmente se considerados os índices de inflação, podemser devastadores. Isso aumentaria os custos para as par-tes, pressionando os “economicamente fracos” a abando-narem as causas ou a aceitarem acordos por valores inferio-res àqueles a que eles teoricamente teriam direito. Muitocomentado entre os cultores do Direito, um velho jargãoadvindo dos processualistas Italianos não poderia deixarde ser lembrado no relatório do Projeto de Florença, sendocerto que “a Justiça que não cumpre suas funções den-tro de um prazo razoável é, para muitas pessoas, uma jus-tiça inacessível”.

O segundo grande obstáculo seria aquele relacionadoà chamada “possibilidade das partes”. Esse conceito, de-senvolvido pelo professor Marc Galanter, constitui pontocentral, quando se cogita da denegação ou da garantia doacesso efetivo à “Justiça”. Essa expressão repousa na noçãode que algumas espécies de litigantes gozam de uma sériede “vantagens estratégicas” em relação a outros.

O Poder Judiciário e(m) Crise

97

Page 110: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

De acordo com o relatório do Projeto de Florença, pes-soas ou organizações que possuam recursos financeirosconsideráveis a serem utilizados terão vantagens óbvias aopropor ou a defender demandas. Podendo, via de regra, atémesmo pagarem para litigar, além de suportarem commuito mais vigor as “delongas” ou demoras do litígio. Orelatório adverte que esta capacidade nas mãos de umaparte apenas, pode ser uma poderosa arma, sendo avalia-da ainda a capacidade dessa mesma parte fazer gastosmaiores em virtude de sua condição, apresentando deforma mais favorável seus argumentos.

Mas, na esteira dessa segunda barreira, o relatóriodeixa claro que a possibilidade das partes e suas capacida-des não se relacionam apenas com recursos financeirosvultuosos. Séria se torna a questão do reconhecimento deum direito e da propositura da respectiva ação em suadefesa. Ou seja, também é fundamental o reconhecimentoda existência de um direito juridicamente exigível.

Cappelletti e Garth afirmam que essa barreira é espe-cialmente problemática para os despossuídos, mas, nãoafeta apenas os pobres. Segundo os professores, mesmoconsumidores bem informados, só raramente se dão contade que a sua assinatura num contrato não significa queprecisem, obrigatoriamente, sujeitar-se a seus termos, emquaisquer circunstâncias. A essa dificuldade de reconheci-mento, liga-se, segundo o relatório, a outra barreira decunho psicológico. Ela se refere à disposição psicológicadas pessoas para recorrer a processos judiciais. Ou seja,mesmo aqueles que sabem como encontrar aconselhamen-to jurídico adequado, podem não buscá-lo.4 Estas causas

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

98

4 É interessante observar que no relatório Inglês, 11% dos entrevistadosdisseram que jamais iriam a um advogado. Além desta pesquisa em rela-ção aos consumidores da Comunidade Européia a respeito da reação dosconsumidores que acreditavam haverem sido enganados por um comer-ciante é também citada. Nessa, apenas 2% dos entrevistados formaliza-

Page 111: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

podem ser a desconfiança nos advogados, que o relatórioaponta ser mais comum nas classes menos favorecidas, ouainda, procedimentos complicados, formalismo, ambientesque intimidam, como o dos tribunais, figuras tidas comoopressoras, como os juízes, fazendo com que os litigantesse sintam perdidos, “prisioneiros num mundo estranho”.

Por último, no que se refere à possibilidade das partes,está aquilo que o relatório designa por “litigantes eventuais”e “litigantes habituais”. Essa distinção, desenvolvida pelo jácitado professor Marc Galanter, é baseada na freqüência deencontros com o sistema judicial. Segundo as suas pesqui-sas, teríamos indivíduos que costumam ter contatos isola-dos e pouco freqüentes com o sistema judicial e entidadesdesenvolvidas, com uma extensa experiência judicial.Galanter enumera várias vantagens dos litigantes habituais,como por exemplo, a maior experiência com o direito, possi-bilitando maior planejamento do litígio, a diluição dos riscosda demanda pelo maior número de casos, a oportunidade dedesenvolvimento de relações informais com os membros dainstância decisora, a possibilidade de testar estratégiasnovas em determinados casos para garantir expectativasmais favoráveis em casos futuros, etc. Concluindo o estudo,ressaltou o autor a maior eficiência dos litigantes organiza-dos em relação aos chamados litigantes eventuais.

Essas diferenças só seriam atacadas se os indivíduosencontrassem maneiras, segundo Galanter, de agregarsuas causas e desenvolvessem estratégias de longo prazo.

O último obstáculo colocado por Cappelletti e Garth serelaciona aos problemas especiais dos interesses difusos.5

O Poder Judiciário e(m) Crise

99

ram queixa perante alguma organização e uma parcela insignificanterecorreu a juízo. Devemos levar em consideração que essas pesquisasforam realizadas na década de 70, início da crise do Estado Social e deseus questionamentos mais contundentes.

5 Voltamos a lembrar que o Projeto de Florença foi delineado, na década de70, período inicial dos questionamentos relativos aos intitulados (paranós inclusive, de forma temerária) Direitos de “Terceira Geração” (difu-

Page 112: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

Esses direitos, cada vez mais detectáveis na vida contem-porânea, são objetivo de debate no relatório, que aponta,ou melhor, registra a verdadeira inviabilidade de sua defe-sa em juízo dentro dos padrões tradicionais da tutela juris-dicional individual (THEODORO JÚNIOR, 1996:172).

Nesse ponto, abrimos um parêntese para o pioneirismodo Projeto de Florença, pois na verdade ele é um dos primei-ros, senão o precursor estudo de direito comparado, que, deforma sistemática, vislumbra a inserção dos direitos difusose direitos coletivos, tendo em vista basicamente o direito aomeio ambiente saudável, bem como a efetiva proteção aoconsumidor, chamando a atenção para aquilo que será umdos temas centrais no Paradigma do Estado Democrático deDireito, qual seja, a inadequação de confiar-se apenas noEstado para a defesa dos “interesses difusos”.

Concluem os autores do Projeto de Florença em rela-ção às barreiras ao “acesso à Justiça”, que os obstáculoscriados pelos mais variados sistemas jurídicos são maisdiscriminados e pronunciados para as pequenas causas epara os autores individuais, especialmente os pobres; aomesmo tempo, as vantagens pertencem de modo especialaos litigantes organizacionais, adeptos do uso do sistemajudicial para obterem seus próprios interesses. Sendo, por-tanto, primordial, em todo o estudo, a busca de uma maiorefetividade processual, tentando a todo custo a eliminaçãodos principais obstáculos ao “acesso à Justiça”.

3.6. As Soluções do Projeto de Florença para osproblemas do “acesso à Justiça”

Além de apontar as barreiras mais notórias à consecu-ção do “acesso à Justiça”, o relatório alvitrava soluções

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

100

sos e coletivos, entre outros) que, hoje, estão (em larga medida, com pou-cas exceções) consolidados em grande parte nos ordenamentos jurídicosmundiais.

Page 113: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

(caminhos) a percorrer, visando a alcançar saídas para oscomplexos problemas levantados. Recomendava-se porisso, movimentar o Direito Processual, de maneira a impri-mir-lhe evolução segundo três ondas. Conforme salientadoanteriormente, Cappelletti é o precursor teórico dos estu-dos e pesquisas em torno do tema do “acesso à Justiça”,daí, porque, para uma melhor e mais ampla compreensãoacerca da matéria, faz-se imprescindível descrever, emborasinteticamente, quais seriam as fases do movimento do“acesso à Justiça” na ótica desse autor.

Na obra aqui analisada, Cappelletti e Garth denomi-nam essas tais fases, conforme dito acima, de três grandes“ondas”, devendo-se, entretanto, observar que essas“ondas” não obedecem a uma ordem cronológica rígida ecorrespondem a situações diferenciadas em cada país.Podemos afirmar, segundo os autores do Projeto, que a pri-meira solução para o acesso, ou seja, a primeira “onda”desse movimento é a da assistência judiciária; a segundadiz respeito às reformas tendentes a propiciar representa-ção jurídica para os interesses difusos, especialmente, nasáreas de proteção ambiental e do consumidor; e a terceira“onda”, será nos dizeres dos autores, aquela mais recente,delineada simplesmente como “enfoque de acesso àJustiça”, justamente porque incluiu os posicionamentosanteriores e, indo muito além dos mesmos, representa umatentativa de atacar as barreiras ao acesso de modo maisarticulado e compreensivo. Ou como diria HumbertoTheodoro Júnior: a procura, por todos os meios, da imple-mentação de uma “postura ofensiva às barreiras de modosistematizado” (THEODORO JÚNIOR, 1996:172). Nessestermos, a terceira “onda” envolveria todas as tentativas detornar o judiciário mais aprimorado, tendo por escopo umamelhoria na atividade jurisdicional, afim de que se alcanceuma “justiça” mais efetiva.

O Poder Judiciário e(m) Crise

101

Page 114: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

Passaremos, agora, ainda que de forma resumida, acomentar essas três posições básicas, pois esta análise nosmostrará como o “acesso à Justiça” se desenvolveu noparadigma do Estado Social, contribuindo, assim, para areconstrução do “acesso à Justiça”, nos termos de umaTeoria Geral do Processo adequada a uma Teoria Consti-tucional do Estado Democrático de Direito.

Segundo o relatório, os primeiros esforços importantespara incrementar o “acesso à Justiça” nos países ociden-tais concentram-se, muito adequadamente, em propiciarserviços jurídicos aos pobres. Notamos que, em estudoanterior ao relatório intitulado Toward Equal Justice(Justiça por Todos), elaborado pelo próprio Cappelletti con-juntamente com Gordeley e Johson Jr., já se colocava edelineava de maneira clara toda a problemática relaciona-da à assistência judiciária aos pobres.

É interessante observar que para o Projeto deFlorença, até muito recentemente, os esquemas de assis-tência judiciária da maior parte dos países eram inadequa-dos.6 Ou seja, havia logicamente o reconhecimento, mas oEstado não adotava as medidas ou “atitudes” positivaspara a garantia desse direito. Em economias de mercado,os advogados, tendencialmente os mais experientes e alta-mente competentes, preocupar-se-iam muito mais emdedicar-se ao trabalho remunerado por particulares do queem trabalhar na assistência judiciária gratuita.

O relatório de Florença coloca as primeiras tentativas demudança desse quadro. Elas se deram na Alemanha deWeimar, através de um sistema de remuneração dos advoga-

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

102

6 O próprio Cappelletti em ensaio designado The emergence of ModernTheme, aponta-nos para as Leis Francesas, Alemãs e Italianas, editadasna segunda metade do século XIX, que estabeleceram para o advogadodeveres de atendimento gratuito aos pobres. Ou seja, esses serviços atébem pouco tempo iriam basear-se em sua maior parte em serviços pres-tados pelos advogados particulares sem contraprestação.

Page 115: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

dos que forneciam assistência judiciária e na Inglaterra, ondea mais importante reforma se iniciou com o estatuto delinea-do em 1949 e intitulado “Legal Aid and Sheme” (Lei de As-sessoramento e Patrocínio jurídico) de responsabilidade daLaw Society, iniciando-se assim, no entendimento dos autoresdo projeto, as tentativas de superação do paradigma liberal.

Embora não seja este o objetivo nessa parte da pes-quisa, é interessante comentar que em relação ao ordena-mento jurídico brasileiro, tivemos, pela primeira vez, reco-nhecida a necessidade da prestação de assistência jurídicaaos necessitados a partir da Constituição de 1934, na qualse institucionalizou esta garantia, anteriormente só expres-sa em sede de legislação ordinária.

Após o hiato da Constituição Polaca de 1937, aConstituição de 1946 volta a prever tal garantia, devendo-se ainda registrar que a assistência judiciária gratuita sófoi regulada em 1950 pela Lei n 1.060. Mas, voltando àsreflexões do projeto, certo é que as reformas de peso, noque tange ao tema assistência judiciária, tiveram início nocurso dos anos 60. Segundo, Cappelletti e Garth:

“A mais dramática reforma da assistência judiciáriateve lugar nos últimos 12 anos. A consciência socialque redespertou, especialmente no curso da décadade 60, colocou a assistência judiciária no topo daagenda das reformas judiciárias. A contradição entre oideal teórico do acesso efetivo e os sistemas totalmen-te inadequados da assistência judiciária tornou-secada vez mais intolerável.Os sistemas de assistência judiciária da maior partedo mundo moderno foram, destarte, grandementemelhorados” (CAPPELLETTI e GARTH, 1988:33).

O relatório trabalha nessa primeira grande “onda”com três sistemas que contribuíram para a mudança de

O Poder Judiciário e(m) Crise

103

Page 116: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

concepção da assistência judiciária no mundo ocidental,respectivamente: Sistema Judicare, o sistema do advogadoremunerado pelos Cofres Públicos, e, por último a tentativade combinação desses modelos, o que poderíamos chamarde “Modelos Combinados”.

O sistema Judicare7 é aquele através do qual a assis-tência judiciária é estabelecida como um direito para todasas pessoas que se enquadrassem nos termos da lei, comadvogados particulares pagos pelo Estado, sendo a finali-dade do sistema proporcionar aos litigantes de baixa rendaa mesma representação que teriam se tivessem condiçõesde pagar um advogado. O Judicare, utilizado em largaescala em alguns países da Europa, realmente desfazia a“barreira de custo”, mas, segundo o relatório, o sistemaseria insuficiente para atacar outras barreiras encontradaspelas pessoas menos favorecidas.

As críticas são no sentido de que o Judicare confiariaaos pobres a tarefa de reconhecimento das causas e a con-seqüente procura de auxílio. Outra questão levantada naanálise é relativa às barreiras geográficas e culturais entreos pobres e os advogados, com a intimidação dos pobresem freqüentarem escritórios de advogados particulares.8

O segundo sistema, designado de AdvogadosRemunerados pelos Cofres Públicos, trabalhava uma con-cepção diferenciada em relação ao Sistema Judicare. Osserviços jurídicos seriam prestados por escritórios de vizi-nhança, atendidos por advogados pagos pelo governo eencarregados de promover os interesses dos pobres como

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

104

7 Sistema adotado na década de 70 em países como: Áustria, Inglaterra,Holanda, França e Alemanha.

8 O relatório comenta ainda questão relativa à problemática tendência daprocura do sistema judicare para matérias familiares e criminais, em vezde direitos, como por exemplo, os de consumidores. Pesquisa realizadana Inglaterra apontou nessa direção afirmando que 60% dos casos são defamília e 15% foram casos criminais.

Page 117: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

classe.9 Esses escritórios de vizinhança são caracterizadospela tentativa de elevação dos esforços no sentido deincentivar as pessoas pobres da consciência de seus novosdireitos, indo de encontro ao problema da desinformaçãojurídica dos menos favorecidos, sendo os mesmos localiza-dos nas comunidades pobres, facilitando assim, o contatoe diminuindo as barreiras de classe. Esse sistema, que criauma categoria de advogados eficientes para a defesa dosmenos favorecidos não só individualmente, mas como clas-se, vai em direção aos pobres, para auxiliá-los na reivindi-cação de seus direitos, também carrega consigo algumasdesvantagens que são comentadas no relatório.

O primeiro problema se traduz na dificuldade de dis-cernimento entre os casos importantes para alguns indiví-duos e os casos de relevância social, correndo-se o risco deque os indivíduos sejam ignorados, recebendo então, umaajuda de segunda classe.

Mas a crítica mais contundente relaciona-se à depen-dência de apoio governamental para atividades, muitasvezes dirigidas contra o próprio governo.

O terceiro sistema abordado é justamente uma tenta-tiva de combinação entre os dois modelos anteriores.Segundo o relatório, alguns países, reconhecendo as limita-ções dos métodos de assistência judiciária citados acima,decidiram que os mesmos poderiam ser complementares.Ou seja, nesses existiria a possibilidade de escolha entre oatendimento por advogados servidores públicos ou poradvogados particulares.

Os autores do Projeto de Florença, não obstante oreconhecimento dos diferentes usos nos mais diversos paí-

O Poder Judiciário e(m) Crise

105

9 Cappelletti e Garth trabalham os estudos de Cahn E Cahn E Note, res-pectivamente “ The War on Poverty: A civilian perpective” ( A Guerra àPobreza: Uma Perspectiva Civilista) e “Neighbourhood Law Offices: TheNew Wave in Legal Services For the Poor”, “Escritórios Jurídicos deVizinhança: A Nova Onda de Serviços Jurídicos para os Pobres”.

Page 118: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

ses, do denominado modelo combinado elogiam esta tenta-tiva de conexão:

(...) “ponto importante, no entanto, é que a possibili-dade de escolha de ambos os programas abriu umanova dimensão. Este modelo combinado permite queos indivíduos escolham entre os serviços personaliza-dos de um advogado particular e a capacitação espe-cial dos advogados de equipe, mais sintonizados comos problemas dos pobres. Dessa forma, tanto as pes-soas menos favorecidas, quantos os pobres comogrupo, podem ser beneficiados” (CAPPELLETTI eGARTH, 1988:44).

Após a apresentação dos sistemas, a conclusão faz-seno sentido da melhoria da assistência judiciária, sobretudono início da década de 60. As barreiras foram perdendo suasubstância devido aos programas e modelos delineados.Os pobres estariam obtendo mais assistência de formamais expansiva e não apenas para os direitos de família eas causas criminais, mas também segundo Cappelletti eGarth, para os “novos direitos não tradicionais”. Mas essaprimeira onda que, como as outras é analisadas de formacomparada devido aos relatórios elaborados nos maisvariados países, termina lembrando os problemas que coe-xistem com uma assistência judiciária decente. Estesseriam: o grande número de advogados para a eficiência deum sistema, seja ele qual for, além da alta dotação orça-mentária para que estes advogados desenvolvam digna-mente a assistência com responsabilidade, prestandoassim, um serviço de qualidade elevada.

A segunda “onda”, se caracteriza pela representaçãodos interesses difusos. É evidente que se hoje a questão emdiversos países já se encontra mais ou menos nivelada, ela foimotivo de grandes esforços no sentido do rompimento com

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

106

Page 119: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

as concepções tradicionais relacionadas aos interesses cole-tivos, sobretudo a partir da tomada de consciência dessesdireitos, o que se dá no início da década de 60 em diante.

O segundo grande movimento no esforço para melho-rar o “acesso à Justiça” enfrentou o problema da represen-tação dos interesses difusos, assim chamados interessescoletivos ou grupais, diversos daqueles dos pobres (CAP-PELLETTI e GARTH, 1988: 49).

O relatório do Projeto de Florença se preocupou, nessemomento, especificamente com os já citados interessesdifusos, refletindo sobre as mencionadas noções tradicio-nais (básicas do processo civil), afirmando que “uma verda-deira revolução estaria se desenvolvendo dentro do proces-so civil”, literalmente no sentido que:

“A concepção tradicional do processo civil nãodeixava espaço para a proteção dos direitos difusos. Oprocesso era visto apenas como assunto entre duaspartes, que se destinava à solução de uma controvér-sia entre essas mesmas partes a respeito de seus pró-prios interesses individuais. Direitos que pertences-sem a um grupo, ao público em geral ou a um segmen-to do público não se enquadravam bem nesse esque-ma. As regras determinantes da legitimidade, as nor-mas de procedimento e a atuação dos juízes não eramdestinadas a facilitar as demandas por interesses difu-sos intentadas por particulares” (CAPPELLETTI eGARTH, 1988: 50).

O relatório aponta modificações quanto à legitimaçãoativa, pois através de reformas legislativas tentou-se, emalguns ordenamentos, uma justa adequação para a repre-sentação dos interesses envolvidos. Mas, além dessas,lembramos outras reformas relativas à citação e ao direitode ser ouvido, bem como em relação à tradicional noção de

O Poder Judiciário e(m) Crise

107

Page 120: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

coisa julgada. Todas indo de encontro da visão individualis-ta do direito processual. Essa deveria ceder lugar a umaconcepção social e coletiva do processo, assegurando arealização dos chamados direitos públicos relativos a inte-resses difusos.10

Salienta o relatório a criação Norte Americana da ClassAction e a vinculação, em sede de uma ação, de membrosausentes de uma determinada classe, a despeito do fato denão terem tido informações sobre o processo11 (CAPPEL-LETTI e GARTH, 1988:51).

As questões relativas aos interesses difusos sãolevantadas nos mais diferentes aspectos. O primeiro méto-

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

108

10 Esta definição é de autoria do Professor Chayes e encontra-se no relató-rio do Projeto de Florença. O ensaio citado denomina-se “ The Role ofJudge in Public Law Litigation” ( O Papel do Juiz nos Conflitos de DireitoPúblico). In: Harvard Law Review V.89, 1976.

11 O relatório do Projeto de Florença trabalha com algumas Ações Coletivasou de Interesse Público. Ele aborda as características das Class Action edas Ações de Interesse Público, as suas limitações e suas respectivaspotencialidades, tanto dentro com fora dos Estados Unidos. Neste asClass Action adquiriram um papel de destaque (central nas palavras deVicenzo Vigoriti). Nesse sentido são as colocações de Vicenzo Vigoriti(1979) trabalhadas por Grinover: “As Class Action do sistema norte-ame-ricano, baseada na equity, pressupõe a existência de um número elevadode titulares de posições individuais de vantagem no plano substancial,possibilitando o tratamento processual unitário e simultâneo de todaselas, por intermédio da presença em juízo, de um único expoente da clas-se.” (GRINOVER, 1998:126) Elas surgem em 1938 (tendo como antece-dente a Bill of Peace do séc. XVII) com o que alguns autores chamam deprimeiro “Código de Processo Civil de Âmbito Federal” dos EUA (na ver-dade as Federal Rules of Civil Procedure) A Rule 23 era destinada justa-mente a regular as Class Action. Haveria então três categorias de açõescoletivas: a) as puras ou autênticas. B) as híbridas e c) as espúrias. Estadistinção criou uma série de dificuldades por falta de uma definição clarano que tange a interpretação de qual hipótese deveria ser aplicada a umdeterminado caso complexo. Os entraves nos Tribunais levaram aSuprema Corte a alterar de forma considerável a Regra 23 em 1966. Essavisou a uma abordagem prática para as ações coletivas. O texto de 1966encontra-se basicamente mantido, tendo sido objeto de uma pequenaalteração em 1998 (MENDES, 2002).

Page 121: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

do, para representação desses novos direitos, perpassariaa representação dos interesses difusos pela “ação governa-mental” o que pode, segundo o relatório, não ser satisfató-rio, pois esses direitos são frequentemente afirmados con-tra as próprias entidades governamentais (CAPPELLETTIe GARTH, 1988:52).

Outra criação americana, discutida no relatório é a dainstituição dos advogados públicos. Os autores tambémmencionam o Ombudsman do Consumidor criado naSuécia,12 que, segundo a idéia original, foi desenvolvidopara impedir práticas abusivas e inadequadas de propa-ganda e publicidade. Além disso, o mesmo atuava emnome do consumidor como classe, negociando cláusulascontratuais padronizadas com a comunidade empresarial,exercendo um poderoso poder de barganha.

O relatório, como já observado, acha a solução gover-namental limitada, aponta outros caminhos para a segunda“onda”. Essas seriam, a técnica do Procurador GeralPrivado, que permitiria que as ações em defesa dos interes-ses públicos e coletivos fossem propostas ou intentadas porindivíduos e a técnica do Advogado Particular do InteressePúblico, que reconheceria a necessidade de permissão dasações coletivas de interesse público por esses profissionais,que formariam o que nos Estados Unidos se denominaria“sociedade de advogados do interesse público”, que pro-moveriam o “acesso à Justiça”, no que tange aos interessesdifusos.13 O problema apontado pelo relatório foi justamen-

O Poder Judiciário e(m) Crise

109

12 Salientamos situações análogas à da Suécia na Noruega e Dinamarca,ambas na década de 70.

13 Trabalhando o relatório norte-americano e alguns ensaios relativos aomesmo, os autores do projeto afirmam que: “Os advogados do interessepúblico acreditam que os pobres não são os únicos excluídos do proces-so de tomada de decisão em assuntos de importância vital para eles.Todas as pessoas que se preocupam com a degradação ambiental, coma qualidade dos produtos, com a proteção ao consumidor qualquer queseja a sua classe sócio-econômica, estão efetivamente excluídas dasdecisões-chave que afetam seus interesses”.

Page 122: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

te a falta de recursos financeiros adequados e a dúvida emrelação à continuidade dos trabalhos a longo prazo, em paí-ses com situações sócio-econômicas diferenciadas.

As restrições financeiras citadas estimularam o surgi-mento de novas instituições subsidiadas pelo governo paraservir ao interesse público. Esse modelo, também de cria-ção americana, consistia no uso de recursos públicos, masconfiando energia, interesse e fiscalização aos grupos par-ticulares. Ou seja, esse modelo funcionaria entre a soluçãooficial (governamental) e a fórmula privada de advogadosdo interesse público. (CAPPELLETTI e GARTH, 1988: 64). Aassessoria pública seria (mais) eficiente em virtude do sta-tus de independência e orçamento adequado.14 O proble-ma seria novamente o das pressões políticas e a manuten-ção da neutralidade em diversas questões de alta relevân-cia econômica e social.

Por último, em relação aos interesses difusos, o relató-rio do Projeto de Florença também aponta para uma solu-ção pluralística. Os autores terminam afirmando literal-mente que:

“É preciso que haja uma solução mista ou pluralísticapara o problema da representação dos interesses difu-sos. Tal solução, naturalmente, não precisa ser incor-porada numa única proposta de reforma. O importan-te é reconhecer e enfrentar o problema básico nessaárea: resumindo, esses interesses exigem uma eficien-te ação de grupos particulares, sempre que possível;mas grupos particulares nem sempre estão disponí-

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

110

14 Segundo o relatório o exemplo mais bem sucedido do sistema deAssessoria Pública se deu no Escritório de Assessoria Pública estabele-cido nos Estados Unidos em decorrência das disposições da Lei deReorganização Ferroviária Regional de 1973, para auxiliar as comunida-des e usuários das ferrovias na colocação de seus interesses em audiên-cias públicas.

Page 123: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

veis e costumam ser difíceis de organizar. A combina-ção de recursos, tais como as ações coletivas, as socie-dades de advogados do interesse público, a assesso-ria pública e o advogado público podem auxiliar asuperar este problema e conduzir à reivindicação efi-ciente dos interesses difusos” (CAPPELLETTI eGARTH, 1988:66).

A terceira “onda” foi chamada pelos autores do Pro-jeto de Florença de “Um Novo Enfoque de Acesso àJustiça”. É interessante observar que nessa fase não sedeixam de lado as reformas discutidas, no que diz respeitoà assistência judiciária e à representação dos interessesdifusos. O que Cappelletti e Garth denominam “enfoque doacesso à Justiça” na verdade carrega consigo um númeroimenso de implicações e desenvolvimentos. Ele exige,segundo os autores, um monumental estudo crítico, conju-gado à realização de uma ampla e irrestrita reforma emtodo o aparelho judicial e seu vasto aparato.

Trabalhando o relatório inglês e as declarações do reno-mado Bent Community Law Center, os autores observam quea representação judicial tanto de indivíduos como de interes-ses difusos não se mostrou suficiente para a realização e oconseqüente aferimento de “vantagens tangíveis” ao nívelprático, sendo, portanto necessários novos desafios para oefetivo “acesso à Justiça”. Esses não seriam resolvidos ape-nas com advogados ou com uma representação judicial ade-quada, mas exigiriam novos mecanismos procedimentais,repensando assim a tutela jurisdicional como um todo.

Estas idéias se tornam claras à medida que o relatóriose desenvolve. Vejamos o que dizem os autores do projetoem relação à terceira fase:

“O fato de reconhecermos a importância dessas refor-mas não deve impedir-nos de enxergar os seus limites.

O Poder Judiciário e(m) Crise

111

Page 124: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

Sua preocupação é basicamente encontrar representa-ção efetiva para interesses antes não representadosou mal representados. O novo enfoque de acesso àJustiça, no entanto, tem alcance muito mais amplo.Essa “terceira onda” de reforma inclui a advocacia,judicial ou extrajudicial, seja por meio de advogadosparticulares ou públicos, mas vai além. Ela centra suaatenção no conjunto geral de instituições e mecanis-mos, pessoas e procedimentos utilizados para proces-sar e mesmo prevenir disputas nas sociedades moder-nas. Nós o denominamos “o enfoque do acesso àJustiça” por sua abrangência. Seu método não consis-te em abandonar as técnicas das duas primeirasondas de reforma, mas em tratá-las como apenas algu-mas de uma série de possibilidades para melhorar oacesso” (CAPPELLETTI e GARTH, 1988: 67-68).

Esse proclamado desafio, sobre o qual se debruça oProjeto de Florença, requer uma monumental reflexão sobreo sistema judiciário, abrindo um leque de modificações,com uma ampla variedade de reformas. Essas incluiriaminúmeras alterações, como por exemplo, nas formas de pro-cedimentos judiciais, nas estruturas dos tribunais ou nacriação de novos tribunais, no uso de pessoas leigas oupara-profissionais tanto como juízes, como quanto defenso-res, além de modificações no direito substantivo, destina-das a evitar litígios ou a facilitar sua solução, bem como nautilização de novos mecanismos privados ou informais paraa solução das querelas (CAPPELLETTI e GARTH, 1988:72).É evidente que Cappelletti, Garth, e os outros autores quecontribuíram para o projeto não esgotam as mudanças naseara do “acesso à Justiça”, na terceira “onda” do acesso.Ainda mais em se tratando de direito comparado. Nessestermos, vão à busca do que chamaram de “esforço criativomundial”, na luta pela efetividade da atividade jurisdicio-

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

112

Page 125: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

nal. Mas, sem dúvida, apresentam uma visão geral dasmodificações surgidas a partir da década de 60, nos diver-sos países pesquisados pelo Projeto. O que mais chama aatenção na pesquisa é a observação de que as reformas, namaioria das vezes, estão inter-relacionadas. Esse alerta éno sentido de que as soluções (meramente ou somente)individuais estão ou podem (devem) estar enquadradas emum contexto mais amplo.

Em nosso entendimento, a influência da crise doEstado Social está enraizada no bojo da maioria dessasnovidades (soluções ou buscas por soluções), ainda quecaracterizadas como pontuais nos diversos países observa-dos no relatório. Nesse sentido, são as reformas proces-suais e, sobretudo, no que tange à administração da justi-ça. As reformas dos procedimentos judiciais, por exemplo,são (para a terceira “onda”) de fundamental importânciapara a melhoria e modernização dos tribunais.15

Outras novidades trazidas pelo relatório dizem respei-to aos chamados métodos alternativos para a decisão decausas judiciais. Esses métodos trabalham com as “limita-

O Poder Judiciário e(m) Crise

113

15 Cappelletti e Garth afirmam que desde o início do século têm havidoesforços no sentido da modernização dos tribunais. Apontam que nocaso europeu alguns movimentos de reforma foram agrupados sob adesignação de “oralidade”” e ocuparam-se basicamente com a livreapreciação da Prova, a concentração do procedimento, além do contatoentre os juízes, partes e testemunhas. O relatório do projeto de Florençafaz uma análise comparativa do “Movimento da Oralidade” baseado emdezoito relatórios nacionais, que constaram do Relatório Geral oferecidoao VIII Congresso de Direito Comparado, realizado em Pescara, em1970.O projeto trabalha ainda com algumas reformas interessantes,como por exemplo o chamado “Modelo de Stuttgart”, publicado no volu-me II da serie do Projeto de Florença. A característica mais interessantedesse procedimento é que os juízes, após ouvirem as partes e as teste-munhas, retiram-se para deliberar e retornam com um projeto de senten-ça que é discutido entre eles e as partes, as quais ainda podem optarpor uma composição amigável. Esse procedimento resulta em que 75%dos casos nos tribunais do modelo de Stuttgart terminam, segundo orelatório, no espaço de seis meses.

Page 126: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

ções das reformas dos tribunais regulares”, envolvendo acriação de alternativas, utilizando procedimentos maissimplificados, além de julgadores mais informais. O relató-rio do projeto desenvolve nesse item a discussão em tornodo juízo arbitral, da conciliação e dos chamados incentivoseconômicos para a solução dos litígios fora dos tribunais.16

Observamos, ainda na terceira onda, não somente a jáaventada possibilidade de reformas dos tribunais regularescomo as várias tentativas de desviar os casos dos tribunais.

O uso do “enfoque de acesso à Justiça” perpassaria,também a criação de tribunais especializados. Cappellettie Garth falam, por exemplo, na necessidade do surgimentode “instituições e procedimentos especiais para determi-nados tipos de causas de particular importância social”.Segundo os autores do projeto:

(...) “A preocupação fundamental é, cada vez mais coma justiça social, isto é, com a busca de procedimentosque sejam conducentes à proteção dos direitos daspessoas comuns.Um sistema destinado a servir às pessoas comuns,tanto como autores quanto como réus, deve ser carac-terizado pelos baixos custos, informalidade e rapidez,por julgadores ativos e pela utilização de conhecimen-

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

114

16 Em relação ao juízo arbitral, o relatório cita a experiência francesa que,em meados de 1971, concedeu às partes em litígio a opção de encami-nhar causas a um juiz para que este procedesse como um “árbitro ami-gável”. No mesmo período temos a criação da arbitragem obrigatória naFiladélfia, assim como um programa experimental de Juízo ArbitralVoluntário na Califórnia. O projeto que ressalta os benefícios da concilia-ção, evitando-se o embate nos tribunais, também alude sobre os incenti-vos econômicos para a conciliação extra-judicial. A idéia aplicada naInglaterra consiste em apenar o autor que não aceite uma proposta deconciliação oferecida à corte pela outra parte, quando após o julgamen-to, se comprove Ter sido razoável a proposta. Segundo o relatório, a pena-lidade seria o pagamento pelo autor dos custos de ambas as partes.

Page 127: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

tos técnicos bem como jurídicos” (CAPPELLETTI eGARTH, 1988:102).

Com isso, o projeto discute a criação de procedimentosespeciais para as pequenas causas,17 percebendo-se nosdiversos países envolvidos, modificações que diferenciamas chamadas pequenas causas das denominadas grandescausas. Os autores falam no surgimento de “Tribunais e pro-cedimentos que sejam rápidos e acessíveis às pessoascomuns”. Esses, objetivando a resolução das causas demenor monta serviriam para a promoção da acessibilidadegeral com a redução de custos e duração dos litígios, a alte-ração no estilo de tomada de decisão com ênfase na conci-liação, bem como a simplificação do direito aplicado.

Devemos, por último, observar que o estudo sobre o“acesso à Justiça” do Projeto de Florença trabalha comoutras reformas na terceira “onda”. A título de enumera-ção, citaremos algumas dessas e os seus movimentos noíter do paradigma do Estado Social de Direito. Teríamos,então, as observações do relatório sobre os chamadosTribunais de Vizinhança para a solução de divergência nascomunidades; os denominados Tribunais Especiais parademandas dos consumidores, além das tentativas demudanças nos métodos utilizados para a prestação de ser-viços jurídicos que envolveriam até mesmo o uso dos para-jurídicos, bem como o desenvolvimento de planos deAssistência Jurídica mediante convênio.

Não existem dúvidas de que os autores do projetotrouxeram uma grandiosa colaboração para as pesquisassobre o “acesso à Justiça”, realçando as contestações equestionamentos presentes justamente no início da “crise”do Estado Social, bem como do modelo do Constituciona-

O Poder Judiciário e(m) Crise

115

17 Procedimento desenvolvido e aplicado no Brasil na década de 90 nosdenominados Juizados Especiais: Civil e Penal.

Page 128: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

lismo Social. O grande mérito de Cappelletti foi, sem dúvi-da, o de vislumbrar o “acesso à Justiça” como uma “busca”pelo “acesso ao ordenamento jurídico como um todo”, oque, em larga medida, continua sendo (mesmo no começodo século XXI) objeto de vários debates e discussões pos-teriores ao aqui trabalhado, projeto de Florença.

Devemos, nesse momento, desenvolver uma rápida,porém consistente análise do pensamento de Cappellettiem escritos pós-Projeto de Florença, para que tenhamosuma visão completa de toda a sua obra sobre o tema “aces-so à Justiça”.

3.7. O “acesso à Justiça” e a Função do Juristaem Nossa Época

Posteriormente ao monumental projeto de direito com-parado de escala mundial, Cappelletti continua à frente deestudos sobre a efetividade do processo e o “acesso àJustiça”. Apesar de suas manifestações instrumentalistasjá encontradas em textos anteriores à publicação dostomos do projeto de Florença como, por exemplo, em“Processo e Ideologia” (1969), não podemos duvidar de suaimensa influência na doutrina jurídica brasileira sobre oobjeto de nossa pesquisa.

É nesse sentido que trazemos à baila, as colocaçõesde Cappelletti, desenvolvidas no texto “Acesso alla giusti-zia: come programa di reforma e come metodo di pensiero”(1982). Neste texto, citado pela quase totalidade dos auto-res que escrevem sobre o “acesso à Justiça” no Brasil,Cappelletti nos demonstra certa evolução em relação aoProjeto de Florença (embora seguindo a mesma linha depesquisa) declarando que o mais recente movimento peloacesso ao direito e à “Justiça” subverteu todos os métodosprecedentes.

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

116

Page 129: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

Esse movimento (agora) não mais se limitaria à análisesomente das normas e das instituições e o seu modo de ope-rar, como muito “meritoriamente” já haviam feito as váriascorrentes do pensamento realístico moderno. Parte o autorpara uma perspectiva que se concentraria nos consumidorese não mais nos produtos do sistema jurídico. Com acuidade,observa que deveriam os juízes, legisladores e administra-dores serem vistos sob uma perspectiva renovada, à luz dademanda dos consumidores (CAPPELLETTI, 1982:243).

Essa observação de Cappelletti é de suma relevânciaem virtude da aferição de uma verdadeira “mudança dementalidade” pregada pelo autor e que, segundo o mesmo,seria necessária como “nova postura mental” para alcançaro desejado “acesso à Justiça”. Literalmente, no sentido que:

(...) “ovviamente, ad una societa democratica, liberta eed aperta, la quale deve pretendere, che i suoi officialprocessors assolvano la loro funzione non in una visio-ne tolemaica del diritto e dello stato, ma bensi in vistadel benessere dei consumatori: che è come dire dirittoe Stato devono finalmente essere visti per quello chesono – come semplici strumenti al servizio dei cittadi-ni e dei loro bisogni, e non viceversa” (CAPPELLETTI,1982:231).

A lição que tiramos desse trabalho, posterior ao proje-to de Florença, dá-nos a consideração de que o “acesso àJustiça” não se reduziria apenas a um programa de refor-mas mas sobretudo, a um “método de pensamento”.

Seguindo suas pesquisas e considerações sobre o“acesso à Justiça”, Cappelletti, em uma de suas últimaspassagens pelo Brasil, deixou relevantes impressões sobreo tema ora debatido na “XII Conferência Nacional daOrdem dos Advogados do Brasil” através do ensaio intitu-lado: “O acesso à justiça e a função do jurista em nossa

O Poder Judiciário e(m) Crise

117

Page 130: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

época”. Aqui, o autor continua no mesmo diapasão do textocitado da década de 80, acrescentando ainda que o examedo movimento por “acesso à Justiça” deveria ser examina-do também sob aspectos culturais, como movimento depensamento e de procura, além das já conhecidas análisesem seus aspectos práticos, como movimento de reformanormativa institucional e processual (CAPPELLETTI,1990:123). O “acesso à Justiça” seria um dos mais relevan-tes pontos da principal resposta à crise do direito e doPoder Judiciário nos dias atuais.

Nesse trabalho, Cappelletti tenta demonstrar quecomo “movimento de pensamento”, o acesso representouuma forte reação contra a dogmática formalista que pre-tendia identificar o fenômeno jurídico exclusivamente nocomplexo da norma. Defende o estudo e o ensino do direi-to processual não apenas pelos aspectos exclusivamentenormativos, mas também sob aspectos sociais, éticos, cul-turais e econômicos, aproximando-se, assim, da visão ins-trumentalista que aqui estamos repetidas vezes critican-do. Busca-se novamente a afirmação de uma igualdadenão apenas formal, mas de uma igualdade efetiva quedeve permear o “acesso à Justiça”. Esse acesso seria onúcleo central de todo o “Estado Social de Direito” eivadode direitos sociais que se pretendem efetivos no seiosocial (CAPPELLETTI, 1990:128).

Os problemas do movimento reformador, mutatismutandis, continuam os mesmos relacionados no Projetode Florença, consubstanciando-se em obstáculos econômi-cos, obstáculos organizadores ou organizacionais dos inte-resses difusos e, por último, obstáculos processuais que serelacionam aos procedimentos inadequados para determi-nados tipos de tutelas jurisdicionais. Logo em seguida,Cappelletti apresenta as soluções ou tentativas feitas paraa resolução e o saneamento das barreiras citadas. Por fim,enquadra o movimento mundial de pensamento e de refor-

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

118

Page 131: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

ma do “acesso à Justiça” em um amplo panorama dasgrandes tendências evolutivas do direito e da justiça nomundo contemporâneo. Afirma, assim, o núcleo central dadimensão social do direito e do Estado moderno em termosconstitucionais e transnacionais. A dimensão constitucio-nal se manifestaria na procura por valores fundamentaispresentes no seu modelo de “moderno Direito Constitucio-nal” que, como observamos no decorrer de suas obras, per-passa o Estado Social de Direito – reduzindo-se todavia aele, sem buscar ir além.

Esta Constituição que, segundo Cappelletti, seria a“moderna Constituição”, não se limitaria a garantir os tra-dicionais direitos políticos ou civis, mas se afirmaria, sobre-tudo, pelos direitos sociais, incluindo o “acesso à Justiça”entre os mesmos. Neste termos o autor observa que:

“As Constituições modernas não se limitam mais defato a firmar os tradicionais direitos políticos e civis;têm se afirmado também os direitos sociais, e destessempre emerge, fortemente, aquele do acesso e da efe-tividade ou acesso à proteção judiciária (ver ad. Es. Oartigo 24 da Constituição italiana, nos artigos 19 e 103da Constituição de Bonn, etc.), mas o acesso tambéma todos aqueles outros bens sociais sob os quais sefundamenta, afirmo, o moderno Estado Social deDireito: acesso à educação, ao trabalho, ao repouso, àsaúde, à previdência e à assistência social, etc.” (CAP-PELLETTI, 1990:137).

Ou seja, as próprias normas constitucionais e as deci-sões das cortes constitucionais estariam em explícita con-formidade coma “dimensão social” dos atuais movimentosde reformas (ondas) em busca de uma maior efetividade doprocesso e “acesso à Justiça”. E nesse sentido, estariamtambém a dimensão transnacional engendrada pelos blo-

O Poder Judiciário e(m) Crise

119

Page 132: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

cos de organizações internacionais como a ComunidadeEuropéia, os juízes internacionais, a Corte Européia e aCorte Interamericana dos Direitos Humanos, perfazendonovamente a relação entre esta dimensão e a “idéiasocial”, que como já afirmado, perfaz (deveria perfazer) a(hodierna) referência do “acesso à Justiça”.

Certo é que Cappelletti trouxe grandes contribuiçõespara o estudo do “acesso à Justiça”, fazendo uma plêiadede considerações quanto aos limites da efetividade proces-sual, que (inclusive e posteriormente) iremos trabalhar naobra. Mas também não podemos deixar de citar a sua pre-dileção pelo paradigma que estamos criticando no decorrerdeste trabalho dissertativo. É claro que a questão aquiposta e levantada, não é de forma alguma de predileçãoentre o “bom” e o “mal”, o “perfeito” e o “imperfeito”,como modelo de “acesso à Justiça”, mas, sem dúvida, umatentativa de adequação do acesso a um paradigma que nãodeseja impor uma “forma de vida concreta” e “única” atra-vés de carga axiológica presente em uma determinadasociedade, fazendo com que o Estado, a partir do que cha-mam de Estado-juiz (daí o poder Judiciário como um todo),seja tradutor de opções impostas de “cima para baixo”que, ao invés da produção do “acesso à Justiça” e da efeti-vidade do processo, transformam-se em barreiras inarredá-veis a discursividade procedimental-democrática, bemcomo ao “acesso à Justiça” reconstrutivamente buscadonestes termos. Ou seja, não adiantam apenas boas inten-ções (como diria o ditado), se o obstáculo que se cria comas mesmas se torna “epistemológico”.

Por tudo exposto de forma explícita ou de forma implí-cita pelo movimento empreendido pelo jurista italiano, ficaclaro que a passagem do paradigma liberal para o social éinsofismável na obra de Cappelletti e, com isso, as implica-ções e reflexos de tal postura. Apesar de buscar um siste-ma processual acessível a todos, o contexto em que o

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

120

Page 133: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

mesmo trabalhou foi vagarosamente ampliando e redefi-nindo os poderes do magistrado (princípio autoritário)reforçando o princípio da oralidade e a sistemática da cog-nição cada vez mais sumarizada.18 Nesse sentido, são asobservações de Nunes:

“Nos processos do sistema judiciário regular, omovimento de acesso à justiça propugnado porCappelletti e Garth delineia um procedimento lastrea-do no princípio da oralidade, em um papel ativo do jul-gador (princípio autoritário) e em formas procedimen-tais especializadas e adequadas aos interesses em dis-cussão. Este acesso à Justiça tenta equacionar as rela-ções entre o processo civil e uma justiça social, entreigualdade jurídico-formal e desigualdade sócio-econô-mica, partindo da concepção de Estado protetivo e deBem-Estar Social. Ao visar a esses fins sociais, os pro-cessualistas começam a preocupar-se com a adequa-ção da técnica processual a este novo panorama deanálise e a construir procedimentos em que a cogniçãoe decisão do juiz são majorados (no caso, brasileiros,cada vez menos controlados) possibilitando que umaintervenção mínima das partes possa chegar ao profe-

O Poder Judiciário e(m) Crise

121

18 Será importante, então, proceder mais à frente a um olhar sociológico queparece escapar aos defensores do “acesso à Justiça”, principalmente noBrasil. Ao que parece, todo esse movimento de sumarização da jurisdi-ção, bem como a inserção de instrumentos redutores de demandas –como súmulas vinculantes, por exemplo – podem ser justificados à luz deinteresses extrajurídicos produzidos principalmente pelos imperativosfuncionais do Mercado. Não é sem razão, portanto, que o Banco Mundial,utilizando-se das pesquisas de Cappelletti e outros, desenvolveu um pro-jeto consagrado no relatório de n. 319, de judiciário para os países sub-desenvolvidos. Aqui, na realidade, o que está em jogo não são a proteçãoe a propagação da cidadania, mas antes a criação de condições de defe-sa do grande capital internacional, que se sente ameaçado pelas possí-veis mudanças de posturas judiciais dos países latino-americanos.

Page 134: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

rimento do provimento final, respondendo-se commenor custo e tempo possíveis às demandas no siste-ma judiciário” (NUNES, 2006:30, grifos nossos).

Por tudo, respeitamos as pesquisas trazidas a cotejopelo processualista, mas consideramos – sobretudo o seumarco teórico e as conseqüências para a seara processual domesmo desde a década de 70 até os dias atuais (inclusivenas últimas reformas na processualística brasileira em nívelconstitucional e infraconstitucional) – como inadequadopara o modelo de Estado e sociedade que estamos propon-do através do “acesso à Justiça” qualitativamente engen-drado no paradigma de Estado Democrático de Direito.

3.8. Humberto Theodoro Júnior: “Acesso àJustiça” e a Organização Administrativado Poder Judiciário

É interessante analisar, nesse momento, a concepçãosobre o “acesso à Justiça” desenvolvida por HumbertoTheodoro Júnior, um dos processualistas mais festejados dopaís. Em trabalho intitulado “Processo e Cidadania”, noqual o jurista mineiro tematiza a posição do Direito PositivoBrasileiro em relação ao Movimento Universal de Acesso àJustiça, chega o mesmo, a algumas conclusões que mere-cem atenção especial, tendo em vista suas colocações, rela-tivas, sobretudo, à organização de nosso poder judiciário.

Inicia o ensaio afirmando que depois de um século deextensos e profícuos estudos sobre os conceitos e as cate-gorias fundamentais do Direito Processual Civil, os doutosatentaram para um fato muito singelo e muito significativo:a sociedade, como um todo, continua ansiosa por uma ati-vidade jurisdicional mais efetiva. As “aspirações” ou dese-jos seriam, sem dúvida nenhuma, por uma tutela mais justae célere na tentativa de preservação de direitos subjetivos

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

122

Page 135: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

violados ou ameaçados e por uma “Justiça” que fosse amol-dável a todos os tipos de conflitos jurídicos, estando aoalcance de todas as camadas sociais, bem como de todosos titulares de interesses legítimos e relevantes.

Uma “Justiça” que, enfim, assumisse, de maneira con-creta e satisfatória, a função de realmente “implementar avontade da lei material”,19 com o menor custo e com amaior brevidade possível, através de órgãos adequada-mente preparados, tanto do ponto de vista técnico quantoético. Finalizando suas considerações iniciais, HumbertoTheodoro Jr. preleciona que:

“Temas como a garantia de acesso à Justiça e a instru-mentalidade e efetividade da tutela jurisdicional pas-saram a ocupar a atenção da ciência processual, compreferência sobre as grandes categorias que haviamservido de alicerce à implantação do direito proces-sual como ramo independente do direito material,integrado solidamente ao direito público” (THEODO-RO JÚNIOR, 1996:165).

O processo, nestes termos, deve se aproximar contun-dentemente da Constituição, sendo o mesmo concebidocomo um instrumento de atuação da soberania estatal e,mais do que isso, assumiria a categoria de garantia deacesso do cidadão à tutela jurídica declarada e assegura-da, segundo Humberto Theodoro Jr., pelas Constituições.Trabalhando a idéia de “acesso à Justiça”, assim comoCappelletti, o professor mineiro traça uma linha de evolu-

O Poder Judiciário e(m) Crise

123

19 Importante marcar aqui a vinculação do pensamento de Theodoro Jr. como de Chiovenda, para quem a função da jurisdição estava subordinada àlegislação, devendo atuar exclusivamente para concretizar sua “vonta-de”. Mais à frente, veremos que com o desenvolvimento da hermenêuti-ca, principalmente a partir dos estudos dworkianos a pretensão chioven-diana é desprovida de sentido lógico.

Page 136: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

ção entre o liberalismo clássico e o “moderno” EstadoSocial. Esse Estado estaria com a tarefa de definir os direi-tos, declará-los e, principalmente, garanti-los, “tornando-os efetivos e realmente acessíveis a todos”.

Segundo o processualista, a partir da consagração deque nenhuma lesão ou ameaça a direito será subtraída àapreciação do Poder Judiciário, presente no art. 5º, XXXVda nossa Constituição, conjugada com a garantia do devi-do processo legal do mesmo art. 5º, LIV, temos o que elechamaria de “plenitude da tutela jurisdicional” em nossoordenamento Constitucional. Afirma, in verbis:

“Há, portanto, em nível constitucional, não só agarantia de tutela jurídica aos direitos subjetivos, porparte do estado, como, também, a de que a forma dedesempenho dessa tutela observará padrões proces-suais definidos, em linha de princípios, pela própriaCarta Magna. Dessa maneira há, materialmente, odireito à tutela jurídica estatal e, formalmente, o direi-to ao processo, como via de acesso à citada tutela”(THEODORO JÚNIOR 1996:166).

Desenvolvendo o professor Alessandro Passe,Theodoro Jr. nos coloca que o direito à tutela constitucionalnão seria apenas o “mero acesso à jurisdição”, mas segun-do Cesaril Gasparini, uma ampla e efetiva defesa em juízo,através, como já afirmado anteriormente, da garantia dodevido processo legal, defendendo então o due process oflaw como processo justo. Mas, qual seria a idéia de proces-so justo? O professor Humberto Theodoro Jr., responde aessa questão, observando nessa idéia a dimensão axiológi-ca que vincula o instrumento da jurisdição com o que eleirá chamar de “rumo finalístico” das garantias individuais.Sendo “o justo” um valor a “ função do processo é em últi-ma análise fazer justiça”.

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

124

Page 137: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

É evidente o alinhamento à (aqui por nós denominada)Escola Paulista de Direito Processual, de tradição instru-mentalista, pois no decorrer do texto, Humberto Theodoro,na esteira de Alcalá-Zamora, indica as várias “missões”que segundo ele, caberiam ao processo nas sociedadescontemporâneas. In verbis:

“Na verdade, o processo, como é hoje admitido pelamelhor doutrina, desempenha uma transcendentalmissão em vários planos. Assim, sua missão jurídica éa de servir de instrumento para a realização do direitoobjetivo no caso litigioso; sua missão política é a degarantir as liberdades; e sua missão social é a de con-tribuir para a pacífica convivência dos que vivem emdeterminado Estado, e para equilibrar as forças que sebatem pela obtenção da justiça” (THEODOROJUNIOR, 1996:170).

Mas, certo é que deixando de lado pelo menos nesseinstante, a crítica relativa ao marco teórico instrumentalis-ta, que permeia nosso texto, devemos nos debruçar sobreum dos pontos principais desenvolvidos por HumbertoTheodoro em seu ensaio. Neste discute-se a posição dodireito positivo brasileiro em relação ao movimento univer-sal de “acesso à Justiça”.

Após comentar o início do movimento de universaliza-ção do “acesso à Justiça” e à consecução do Projeto deFlorença, Humberto Theodoro se volta para os principaisproblemas, comuns aos países pesquisados e às respecti-vas etapas a serem seguidas, para uma eficaz atividade.Discorre, primeiramente, sobre os obstáculos, amplamentediscutidos nessa pesquisa, e após comentar sobre os mes-mos, volta-se para as soluções referentes às barreiras, ouseja, saídas, que o relatório do Projeto de Florença procuroubuscar. Após essa análise Humberto Theodoro chega a

O Poder Judiciário e(m) Crise

125

Page 138: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

uma conclusão peculiar, a qual transcrevemos literalmente,in verbis:

“Nesses 20 anos que se seguiram ao Relatório doProjeto de Florença, constatamos, para honra e satis-fação nossa, que o direito positivo brasileiro tem cami-nhado na frente, quase sempre superando até mesmoos países do Primeiro Mundo, no rompimento daque-las barreiras ao acesso à justiça já arrolados. E o temfeito de maneira a adotar as soluções mais avançadasque a doutrina de Cappelletti preconizava” (THEODO-RO JÚNIOR 1996:172).

A partir daí, o autor inicia uma abordagem das con-quistas do ordenamento jurídico brasileiro, desde a elabora-ção do relatório do projeto de Florença até os dias atuais.São trabalhadas as três ondas do movimento de “acesso àJustiça” e como nos relacionamos com as mesmas, nos últi-mos vinte anos. Em relação à primeira onda (relativa àassistência judiciária), Humberto Theodoro Jr. se reporta àConstituição de 1988, para afirmar que a mesma não sógarantiu a gratuidade do processo no seu art. 5º, LXXIV,como também instituiu no artigo 134, a Defensória Pública,declarando-a essencial à função jurisdicional do Estado,tendo essa a tarefa de orientar e defender em todos os grausos necessitados. No que tange aos chamados interessesdifusos e coletivos, pertencentes à segunda fase do movi-mento de “acesso à Justiça”, o jurista mineiro relembra ainstituição da ação civil pública (Lei n. 7.347/85) que objeti-vou a tutela do meio ambiente, bem como a proteção a bense direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico epaisagístico. O mestre também enquadra nessa seara oCódigo de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90) que cui-dou de traçar todo o sistema material e processual de defe-sa (específica) do consumidor. Afirma que não só foram cria-

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

126

Page 139: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

das novas legislações para as ações coletivas, mas cuidou-se também de definir os órgãos que seriam os titulares des-sas ações. Nessa fase, teríamos ainda a constitucionaliza-ção do Mandado de Segurança coletivo, além da outorga delegitimação processual às associações para agirem em juízona defesa de seus associados, respectivamente nos incisosLXX e XXI do art. 5º de nossa atual Constituição.

Por último, Humberto Theodoro Jr. comenta as modifi-cações direcionadas para o amplo espectro referente à ter-ceira “onda”, aquela aqui denominada de “uso do enfoquedo acesso à justiça”. Observamos a preocupação com oaprimoramento das normas de processo, visando, segundoo mesmo, à sempre propalada economia processual, a mul-tiplicidade de vias de “acesso à Justiça”, o barateamentodo custo judicial e, principalmente, a busca de maior efeti-vidade da tutela jurisdicional.

Nessa fase, teríamos algumas legislações de funda-mental importância, que, segundo o autor, fazem parte daampla reforma do Código de Processo Civil, que estaria eli-minando inúmeros “entraves procedimentais”, instituindouma nova estruturação em nossa sistemática processual.Como exemplos, são citadas: a antecipação de tutela emcaráter genérico, amoldável a qualquer tipo de processo deconhecimento, a ampliação do rol de títulos executivos, acriação da ação monitória, a racionalização do procedimen-to sumário e a instituição do procedimento sumaríssimo acargo dos juizados especiais de pequenas causas, onde,não há custas e muitas vezes a presença do advogado setorna dispensável, sendo, respectivamente as Leis 8.950,8.951 e 8.953, todas de 13/15/94, 9.079 de 14/07/95, 9.139,de 30/11/95, 9.245, de 26/12/95, e Lei 9.099 de 26/09/95.20

O Poder Judiciário e(m) Crise

127

20 Atualizando o ensaio ora trabalhado, no período de 1996 a 2007, ou seja,nos últimos 11 anos, podemos citar, ainda que, exemplificativamente, asseguintes leis que modificaram consideravelmente a legislação proces-sual pátria: 9.756/98; 9.868/99; 9.882/99; 10.352/01; 10.358/01; 10.444/02;

Page 140: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

Perpassadas as três ondas e a correlação das mesmascom o direito positivo pátrio, na evolução do movimento do“acesso à Justiça”, Humberto Theodoro Jr. afirma (textual-mente) que o aparato normativo presente no nosso ordena-mento jurídico, faz do Brasil um país em que a “doutrina eas leis processuais se apresentem como representativas domais avançado direito processual” (THEODORO JÚNIOR1996:174). Acontece que essa vanguarda citada pelo pro-fessor é ao mesmo tempo diagnosticada pelo mesmo comoinsuficiente. Nesse sentido, se o que se deseja é a buscapor um “processo justo”, pois todo este aparato reformadorsó teria sentido se acompanhado do “conceito de processojusto” que o autor busca desenvolver no seu texto, a refle-xão poderia ser trabalhada do seguinte modo: Será quecom todo esse moderno arcabouço normativo (descrito) játeríamos atingido “o aspirado nível de processo justo”? Aresposta do processualista é negativa, ou seja, estaríamoslonge de alcançarmos o que foi conceituado por HumbertoTheodoro Jr. como um “processo justo”. Ele afirma, deforma contundente, que:

“Talvez nunca se tenha criticado tanto a pouca efi-ciência da justiça entre nós como nos tempos atuais. Amídia e a opinião pública constantemente lamentam ademora e os elevados custos da prestação jurisdicio-nal, destacando, com incomodante freqüência, a inca-pacidade de aparelhamento judicial para respondercom a desejável prontidão, aos reclamos de justiça dosjurisdicionados” (THEODORO JUNIOR 1996:174).

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

128

11.112/05; 11.187/05; 11.232/05; 11.276/06; 11.277/06; 11.277/06;11.280/06; 11.341/06; 11.382/06; 11.417/06; 11.418/06; 11.419/06 e11.441/07. Alem, é claro, da intitulada “Reforma do Judiciário”, constitu-cionalizada pela Emenda 45/2004.

Page 141: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

A conclusão, segundo o processualista mineiro, é atémuito simples: não é na norma que se encontra o mal maiordo processo civil contemporâneo no Brasil. O grande proble-ma encontra-se no “aparelhamento do judiciário e nas suassuperadas e caóticas rotinas de trabalho” (THEODOROJÚNIOR 1996:174). Em consonância com os professoresGiusepe Tarzia e Alacalá-Zamora, Humberto Theodoro Jr.observa o que esses processualistas chamam respectiva-mente de “tempos mortos” e “etapas mortas” da marchaprocedimental em juízo, atuando estas, como um dos prin-cipais motivos da procrastinação da atividade jurisdicional.Afirma que a razão de uma ação, por exemplo, de despejodemorar dois anos para ser julgada e outros dois para serexecutada não é o “procedimento legal”. Segundo o profes-sor da UFMG, a demora usual e intolerável registrada nes-tes processos, como de resto na quase totalidade dos feitos,“somente pode ser atribuída a não observância dos prazosprescritos em lei” (THEODORO JÚNIOR, 1996:175). E conti-nua, citando ainda a existência dos mais variados entraves,desde a longa demora pela expedição de um simples man-dato e de seu cumprimento, passando pela “constante pro-crastinação” dos atos decisórios, da intimação das partes,bem como pela sinuosa e cansativa “tramitação burocráti-ca” dos recursos em segunda instância, nas quais “umasolução final que poderia, segundo a norma legal, serencontrada em um mês, ou pouco mais e gasta-se, na reali-dade, um ou vários anos” (THEODORO JÚNIOR, 1996:175).

Neste íter para corroborar suas afirmações, o proces-sualista inicia a descrição de uma série de exemplos, queao longo de sua trajetória vivificada no Tribunal de Justiçade Minas Gerais, foram observados e anotados em mais detrinta anos de experiência forense como magistrado eadvogado. Servem para ilustrar a forma problemática econtraditória que impera na rotina administrativa dos juí-zos e tribunais brasileiros. Temos, a título de ilustração,

O Poder Judiciário e(m) Crise

129

Page 142: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

algumas dessas situações envolvendo, por exemplo, umaação de responsabilidade civil por dano provocado a parti-cular por obra pública e uma ação indenizatória contra oEstado, entre outras (situações peculiares), as quais passa-mos a citar, in verbis:

“Numa ação de responsabilidade civil objetiva pordano provocado a particular por obra pública doMunicípio, o magistrado gastou na abertura do pro-cesso mais de um ano para solucionar a legitimaçãopassiva: isto é, para definir se a ação deveria prosse-guir só contra o município, dono da obra, ou deveriaenvolver, também, a Autarquia que a executa e oEstado que havia financiado parte do custo doempreendimento;Numa ação indenizatória contra o Estado, oProcurador, após o laudo pericial, atravancou o anda-mento do feito com sucessivos pedidos de esclareci-mentos por cerca de três anos, e a audiência de instru-ção e julgamento só veio a ser designada depois que oautor lançou mão da correição parcial para desfazer odesprezo do juiz pelo procedimento legal cabível;A secretaria do Tribunal de Justiça somente expede acarta de sentença depois que o recurso especial ouextraordinário esteja admitido e concluído o seu proces-samento para remessa ao Tribunal Superior, e, se ocor-rer admissão do apelo pelo Presidente do Tribunal local,somente depois de processado completamente o agra-vo de instrumento. Com isso, o direito assegurado pelalei de executar provisoriamente a sentença fica protela-do por longos meses e até, às vezes, mais de ano;Certa vez, obtive despacho direto do Relator para tervista de um processo que reclamava adoção de medi-da de urgência. Fui esbarrado na pretensão de retiraros autos do Cartório, porque, segundo a rotina do

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

130

Page 143: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

Tribunal, isto somente seria possível depois da publi-cação do despacho no Diário Oficial;Em outro caso similar, o despacho de vista fora publi-cado numa Sexta-feira. Ao tentar retirar os autos daSecretária, para elaboração imediata da medidaurgente que o caso reclamava, a secretaria me impe-diu, ao esdrúxulo argumento de que o Código manda-va contar prazo a partir de Segunda-feira e, entãosomente a partir daí seria possível retirar os autos”(THEODORO JUNIOR, 1996:176).

Ao colocar essas situações, afirma, de forma contun-dente, que poderia enumerar vários e vários casos “absur-dos” da “triste e constante realidade” vivenciada no dia-a-dia dos foros brasileiros. Sendo estas constatações fruto do“despreparo funcional” ou do verdadeiro “desconhecimen-to” do espírito objetivo do direito processual vigente, nãose esquecendo também das observações relativas ao acú-mulo material de serviço e a total impossibilidade física decumprir, a tempo e modo, os prazos e trâmites delineadospelo Código de Processo Civil. Com isso, podemos vislum-brar que o chamado “processo justo” arquitetado porHumberto Theodoro Jr. estaria na dependência primordialda modernização da “máquina forense”, com a melhoria daestrutura funcional do Poder Judiciário, no sentido que:

“Minha experiência de mais de trinta anos, comoadvogado a como juiz, capacita-me a afirmar que é nareorganização administrativa dos órgãos judiciáriosque se deve concentrar a atividade de aprimoramentodos serviços judiciários para implantação efetiva doprocesso justo” (THEODORO JUNIOR, 1996:176-177).

A preocupação com a organização administrativa doPoder Judiciário se encontra presente na seara processual

O Poder Judiciário e(m) Crise

131

Page 144: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

em inúmeros textos que também apontam para os proble-mas relativos à necessidade de reorganização da estruturafuncional do Poder Judiciário debatida por HumbertoTheodoro. Entre estes autores, (alguns, inclusive, trabalha-dos pelo processualista mineiro no ensaio), poderíamoscitar, a título de exemplificação, os professores: José CarlosBarbosa Moreira, Ega Moniz Aragão, Ada PelegriniGrinover, Horácio Wanderley Rodrigues e Arruda Alvim.21

Em “Miradas sobre o Processo Civil Contemporâneo”,o insigne processualista José Carlos Barbosa Moreira nosadverte sobre o propósito comum em todas as reformas erevisões processuais modernas de elevar o nível do serviçojudiciário. Horácio Wanderley Rodrigues, no excelente“Acesso à Justiça no Direito Brasileiro”, chama a atençãopara a burocratização do poder judiciário e os longos pra-zos que transcorrem entre o ingresso em juízo e o resulta-do final dos processos. Já Arruda Alvim afirma não ser real-mente animadora a situação estrutural do Poder Judiciáriono país, apesar de uma grande oferta de instrumentos pro-cessuais existentes no direito brasileiro, aproximando-seassim, das conclusões de Humberto Theodoro Jr.

Nestes termos, após as críticas contundentes à estru-tura do judiciário e as suas mazelas, para o professor daUFMG, uma adequada visão do “acesso à Justiça” só pode-ria ser construída (conforme salientado) a partir (e tendocomo pressuposto) da sua concepção sobre o “processojusto”. Esse perpassaria a definição de Devido ProcessoLegal não apenas como forma de obter o provimento judi-cial, mas como meio de proteção dos direitos a qualquer

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

132

21 Alguns ensaios que trabalham ainda que de forma mediata a temáticasão lembrados, como por exemplo: José Carlos Barbosa Moreira in“Miradas sobre o processo civil contemporâneo”; Horácio WanderleyRodrigues in “ Acesso à Justiça no Direito Brasileiro”; Arruda Alvim in“Anotações sobre as Perplexidades e os caminhos do processo civil con-temporâneo” e Ada Pelegrini Grinover in “ O Processo em Evolução”.

Page 145: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

lesão ou ameaça de lesão, sendo o processo instrumento depacificação social, desempenhado para alcançar o “justo”em missões tanto jurídicas quanto políticas e sociais.

Mas, conforme salientado, o “processo justo” não de-penderia somente de uma legislação avançada, mas tam-bém de outros mecanismos funcionais que estariam emfalta em nosso poder judiciário. Não é por outra razão queHumberto Theodoro termina seu trabalho intituladoProcesso e Cidadania, sobre “acesso à Justiça” e a sua uni-versalização em nosso ordenamento, afirmando de formaimperiosa que:

“Como as grandes reformas dos últimos anos, opera-das entre nós, tanto no nível constitucional como noordinário, dotaram o ordenamento jurídico dos maismodernos e variados instrumentos procedimentais ne-cessários à realização de uma justiça que correspondaà garantia fundamental de adequada tutela jurídica esocial, o que nos falta é agora reformar a organizaçãoadministrativa e operacional do Poder Judiciário. Énesses órgãos de aplicação do processo que devem seconcentrar, no momento, os esforços de modernização.Urge reciclá-los, mediante aprimoramento do pessoale modernização das técnicas de organização de traba-lho. O emperramento da máquina forense tem de sersuperado, para prestígio do órgão a que a Constituiçãoconfiou a tarefa fundamental de distribuir justiça”(THEODORO JÚNIOR, 1996:176-177).

E para o leitor que pensa que o ensaio “Processo eCidadania” é antigo, já contando com mais de dez anos, eque, talvez não traduza hodiernamente as digressões doconsagrado jurista, é mister finalizarmos afirmando que omesmo se encontra atualíssimo, pois o professor vem, nosúltimos anos, criticando (pelo menos, em certa medida) o

O Poder Judiciário e(m) Crise

133

Page 146: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

“foco” das alterações na seara processual, advindas daReforma do Poder Judiciário de dezembro de 2004 (Emenda45). Em texto publicado em 2007, intitulado de “A OndaReformista do Direito Positivo e a suas Implicações com oPrincípio da Segurança Jurídica” temos as afirmaçõesseguintes, que apenas referendam (refletem) o modo depensar do autor (sobre o acesso à Justiça, nos últimosanos) aqui trazidos a lume

“A própria Reforma do Poder Judiciário (EC nº 45),pela qual se debateu e se aguardou por mais de dezanos, acabou por decepcionar a todos. Não passou, namaioria dos dispositivos, do campo abstrato das nor-mas de competência. Na pura realidade, não está noâmbito das normas jurídicas a causa maior da demorana prestação jurisdicional, mas na má-qualidade dosserviços forenses. Nenhum processo duraria tantocomo ocorre na justiça brasileira se os atos e prazosprevistos nas leis processuais fossem cumpridos fiel-mente. A demora crônica decorre justamente do des-cumprimento do procedimento legal. São os atos des-necessariamente praticados e as etapas mortas queprovocam a perenização da vida dos processos nosórgãos judiciários. De que adianta reformar as leis, se épela inobservância delas que o retardamento dos feitosse dá? A verdadeira reforma do Poder Judiciário come-çará a acontecer quando os responsáveis por seu fun-cionamento se derem conta da necessidade de moder-nizar seus serviços”. (TEODORO JÚNIOR, 2007: 213).

Nesse sentido, podemos concluir afirmando que avisão de Humberto Theodoro Jr. acaba por complementar aperspectiva desenvolvida sobre o “acesso à Justiça” tantodo Projeto de Florença (que ele, inclusive, cita como marco),bem como das digressões específicas de Cappelletti (tam-

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

134

Page 147: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

bém citado no ensaio). Isto se dá, em nossa opinião, atra-vés de uma relação trabalhada pelo jurista mineiro, entre omovimento de “acesso à Justiça” e seu desenvolvimentoem nosso direito positivo (ou seja, a inserção das ondas noordenamento pátrio), bem como pela preocupação (especí-fica do texto do processualista mineiro) com a reorganiza-ção administrativa da estrutura do poder judiciário.

Temos duas criticas centrais22 a serem produzidas:1º) As suas digressões são pautadas por um marco teóri-co que procuramos romper no decorrer da obra, tendo emvista uma teoria discursivo-procedimental do direito e dademocracia que encontra influxos tanto na searaConstitucional como na Processual à luz do que estamos,no texto, chamando de “modelo constitucional do proces-so”. 2º) A questão da estrutura organizacional do PoderJudiciário e sua crise é superdimensionada. Não que oproblema seja pouco complexo (aliás, decididamente,não é!), mas o “acesso à Justiça”, qualitativamente visa-do em nossa obra, enfatiza questões de fundo relaciona-das, sobretudo, à postura do juiz e do Poder Judiciáriocomo um todo.

Concluindo, a visão trazida a lume por HumbertoTheodoro acaba por minimizar o problema do acesso e pra-ticamente reduzi-lo a uma questão de organização estrutu-ral do Poder Judiciário. Iremos trabalhar no próximo itemcom uma visão mais ampla do “acesso à Justiça” apesarde, também, instrumentalista, como a de todos os autores,até aqui trabalhados, que buscam um conceito de “proces-so justo” e de acesso à “ordem jurídica justa” não condi-zentes com o marco teórico paradigmático delimitado emnossa abordagem.

O Poder Judiciário e(m) Crise

135

22 O que não tira o brilhantismo de Humberto Theodoro Júnior como exce-lente processualista e, sobretudo, como jurista.

Page 148: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

3.9. O “Acesso à Justiça” na Doutrina de LuizGuilherme Marinoni

Entre os autores brasileiros que trabalham o temaobjeto de nossa pesquisa, sem dúvida, o professor titularde Direito Processual Civil da Universidade Federal doParaná, Luiz Guilherme Marinoni se apresenta como umadas maiores referências. É interessante como esse renoma-do processualista desenvolve seus trabalhos, sendo denotar a facilidade com que discorre sobre os principaisautores e temas da moderna processualística, revisitandoos institutos fundamentais do direito processual civil comuma seriedade que lhe é peculiar.

Nas suas principais obras, observamos sempre aconstante preocupação com a efetividade do processo e o“acesso à Justiça”. Nesse sentido, o tema foi (inicialmente)trabalhado recorrentemente de maneira direta ou indiretanas obras: “Tutela Cautelar e Tutela Antecipatória” (1992);“Efetividade do Processo e Tutela de urgência” (1994);“Tutela antecipatória, julgamento antecipado e execuçãoimediata da sentença” (1999); “Tutela Inibitória” (1999);“Antecipação da Tutela” (1999); Novas Linhas do ProcessoCivil (2000); entre outras, que aqui serão citadas. Recen-temente (em 2006), Marinoni publicou sua “Teoria Geraldo Processo”, obra esta que merecerá uma atenção aparta-da, devido nem tanto ao fato de provocar releituras nospensamentos anteriores, mas por explicitar uma leitura euma filiação ao projeto axiológico (e por que não comunita-rista) herdeiro da jurisprudência de valores alemã, princi-palmente sob as linhas do pensamento de Robert Alexy.

Sem dúvida, a linha de pesquisa desenvolvida emseus ensaios nos aponta para as questões relativas à efeti-vidade do processo e ao “acesso à Justiça”. Isto foi explici-tado, no final década de 90, na obra intitulada “Novas

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

136

Page 149: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

Linhas do Processo Civil” (2000), na qual Marinoni, pesqui-sa o que ele denominou de “novos rumos do processocivil”, tratando dos institutos fundamentais do direito pro-cessual (ação, jurisdição e processo) e relacionando-os inti-mamente com as questões debatidas aqui acerca do efeti-vo “acesso à Justiça”.

Neste trabalho, que será inicialmente objeto de nossoestudo, Marinoni, analisa (de forma central e direta) a pro-blemática do “acesso à Justiça” e sua estreita relação como direito constitucional e com a democracia social. De iní-cio, a sua estrutura se parece com a de outras obras refe-rentes ao tema aqui analisado. Primeiro, temos a conceitua-ção e o entendimento do que seja o “acesso à Justiça”, suarelação com o Direito Constitucional e com a Teoria doProcesso. Logo em seguida, são expostos os obstáculos aum efetivo “acesso à Justiça” e posteriormente à tentativada superação dos mesmos. Mas esses obstáculos e os seusrespectivos enfrentamentos, diferentemente de outrosautores que já dissertaram sobre o tema ora debatido, sãotrazidos a lume, através de instigantes temas e da relaçãodestes com o “acesso à Justiça”. Como exemplos, são rela-cionadas às análises sobre: a crise do processo civil clássi-co e a inefetividade do mesmo para a prevenção do ilícito;a desilusão com a classificação trinária das sentenças paraa efetividade da tutela jurisdicional; a questão da instru-mentalidade do processo e sua neutralidade em relação aodireito material; as questões da tutela inibitória e da tutelaantecipatória; além da discussão acerca do procedimentomonitório como forma destinada a propiciar uma maior efe-tividade à tutela jurisdicional.

Marinoni termina o que poderíamos chamar de estudocrítico da Teoria Geral do Processo com um capítulo intitu-lado “os institutos fundamentais do direito processual civilna perspectiva do acesso à justiça”. Nesta parte, jurisdi-ção, ação, defesa e processo são analisados com extrema

O Poder Judiciário e(m) Crise

137

Page 150: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

acuidade, sobretudo no que tange aos escopos da jurisdi-ção e aos esforços para a construção de uma teoria que per-mita uma vinculação mais íntima da ação com o direitomaterial, surgindo, daí a famosa noção do direito de açãocomo um direito à tutela jurisdicional adequada ao planodo direito material. A temática do “acesso à Justiça”, por-tanto, é sempre delineada na perspectiva da democraciasocial com base em um aparente modelo de “EstadoDemocrático de Direito”. Aliás, o tema “acesso à Justiça”para Marinoni deve realizar a aproximação (approach) dateoria do processo com o ideal de justiça social.

Seria necessário, para Marinoni, a construção de ummodelo de adequação entre a Constituição e o processo oucomo ele mesmo preleciona, “da visão Constitucional dateoria do processo”, já que as normas constitucionais cons-tituiriam um “ancoradouro” muito generoso para as inter-pretações teóricas tendentes à revelação dos “valoresdemocráticos”. Mas como fazer esta junção no que tangeao estudo do “acesso à Justiça”? Ou seja, como realizar a(necessária) tarefa de correlacionar a Constituição o pro-cesso e o “acesso à Justiça”?

Segundo Marinoni, o operador do direito, para estudaro direito processual civil (e seu modelo constitucional), atra-vés da ótica do “acesso à Justiça” deve trazer a lume “todauma problemática inserida em um contexto social e econô-mico”. Surge ai, de forma clara, já no início de suas digres-sões, o viés instrumentalista, típico da “escola paulista dedireito processual”, pois para Marinoni é necessário que oprocessualista se certifique que a técnica processual, alémde não ser ideologicamente neutra, deve estar sempre vol-tada a uma finalidade social. Notamos, in verbis, que:

“O operador jurídico, por sua vez, tem o dever deimbuir-se da mentalidade instrumentalista, já quefalar em instrumentalidade do processo ou em sua efe-

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

138

Page 151: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

tividade significa, como diz Dinamarco, falar delecomo algo posto à disposição das pessoas com vistasa fazê-las mais felizes (ou menos infelizes), mediante aeliminação dos conflitos que as envolvem, com deci-sões justas” (MARINONI, 2000:27).

Após trabalhar a instrumentalidade processual tribu-tariamente às idéias do professor Dinamarco, Marinonicita Kazuo Watanabe, também integrante da escola pau-lista, para enfatizar o “acesso à Justiça” como “acesso àordem jurídica justa”. Neste conceito, que representaria amoderna doutrina processual, Watanabe caracteriza o“acesso à Justiça” como o “acesso a um processo justo”,com a garantia de uma justiça imparcial, que não só pos-sibilite a participação efetiva e adequada das partes, masque também permita a efetividade da tutela de direitos,consideradas as diferentes posições sociais e as específi-cas situações de direito substancial (MARINONI,2000:28). O professor paranaense, inclusive, vai além,acrescentando o acesso à informação e à orientação jurí-dicas bem como a todos os meios alternativos de soluçãode conflitos. Afirma ainda que o acesso à ordem jurídicajusta é uma questão de cidadania, sendo necessária avisão de uma jurisdição com várias finalidades ou esco-pos, dando-se assim condições para o surgimento “doprocesso como instrumento de realização do poder quetem vários fins”.23

O Poder Judiciário e(m) Crise

139

23 Como observado, Marinoni trabalha (sobretudo em suas obras iniciais nadécada de 90) com uma concepção instrumentalista do processo e com ateorização do “acesso à Justiça” como acesso à ordem jurídica justa,estando em um marco teórico nitidamente adequado ao paradigma cons-titucional do Estado Social de Direito que ora buscamos romper.

Page 152: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

3.10. Obstáculos ao efetivo acesso à ordemjurídica justa

Como a maioria dos autores, Marinoni inicia a aborda-gem sobre as barreiras ao “acesso à Justiça” pelo proble-ma do “custo processual”. Afirma que um dos principaisentraves para um efetivo acesso encontra-se no excessivocusto do processo. Este entrave atingiria, principalmente,as camadas de baixa renda da população. Segue, nomesmo sentido, avaliando que esse “custo processual”,aliado a outros fatores de ordem social e cultural, impedi-riam o cidadão comum de recorrer ao poder judiciário. Aconstatação é a de que a “justiça civil” é cara, sendo maiscara ainda para os menos favorecidos, que, sem dúvida,são os litigantes das causas de menor valor e, nessas,segundo análises, como a de Boaventura de SouzaSantos,24 o custo do processo pode não guardar proporçãocom o valor da causa, atingindo valores insuportáveis.Outra monumental barreira é a duração do processo.Segundo Donaldo Armelin, a morosidade da atividadejurisdicional “sempre foi uma questão a desafiar a argúciae o talento dos cientistas do processo e dos legisladores”.25

Trabalhando ainda o processualista Frederico Carpi,26

Marinoni nos informa que o Conselho Superior deMagistratura Italiana já declarou que um juízo lento eintrincado, como aquele imposto à atual organização pro-cessual judiciária italiana, dá lugar a fenômenos de “com-pressão”, sobretudo dos direitos básicos, que são os direi-

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

140

24 Lembramos, aqui, o clássico texto de Boaventura de Souza Santos,“Introdução à sociologia da administração da justiça” situado no livro:“Pela Mão de Alice” (1989).

25 Donaldo Armelin, Acesso à Justiça, 1982.26 Frederico Carpi, La provvisoria esecutorieta della sentenza, Milano,

Giuffre, 1979.

Page 153: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

tos fundamentais do cidadão (MARINONI, 2000:33). A opi-nião do processualista é de que a morosidade processual,com certeza, estrangula os direitos fundamentais do cida-dão, sendo, muitas vezes, essa morosidade opção do pró-prio poder dominante. Além disso, não se pode esquecerdos advogados, que também se “alimentam”, muitas vezesdessa morosidade. Coloca a importante assertiva acerca da“universalização do procedimento ordinário” como umadas principais causas da lentidão da justiça em nosso orde-namento jurídico. Faz, a partir dessa digressão, severas crí-ticas ao que ele chamará de “ideologia da ordinariedade”que atentaria contra o processo justo e ao acesso à ordemjurídica justa, sendo responsável direta pela lentidão datutela jurisdicional. Preleciona in verbis:

“A universalidade do procedimento ordinário tambémé responsável pela lentidão da justiça. A lamentávelconfusão entre instrumentalidade do processo e neu-tralidade do processo em relação ao direito material,que conduziu à supressão das tutelas diferenciadas, foia principal responsável pelo estabelecimento do proce-dimento ordinário como procedimento-padrão, quedeveria ser capaz de atender às mais diversificadassituações de direito substancial. Um procedimento quedesconsiderava o que se passa nos planos do direitomaterial e da realidade social, obviamente, não poderiapropiciar uma tutela jurisdicional efetiva, pois a efetivi-dade da tutela jurisdicional depende da predisposiçãode procedimentos adequados à tutela dos direitos esomente é possível a construção de tutelas jurisdicio-nais adequadas olhando-se de fora para dentro, ouseja, a partir do plano do direito material. A neutralida-de do procedimento ordinário não permitiu ao proces-sualista, por muito tempo, sequer perceber que o ônusdo tempo do processo não pode ser jogado nas costas

O Poder Judiciário e(m) Crise

141

Page 154: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

do autor, como se este fosse o culpado pela má estru-tura do Poder Judiciário e pela falta de efetividade doprocedimento comum” (MARINONI, 2000:55).

Conclui Marinoni, na esteira do mestre Calamandrei,27

afirmando que a lentidão do processo pode transformar oprincípio da igualdade processual em “coisa irrisória”.

Continuando os problemas ao acesso efetivo à“Justiça”, temos as discussões acerca dos entraves causa-dos pelo procedimento comum clássico e pela classificaçãotrinária das sentenças, constituindo-se, ambos, verdadeirosobstáculos à efetividade da tutela dos direitos. O procedi-mento ordinário, conforme citado, foi concebido como pro-cedimento padrão de tutela de direitos, ou seja, aquele con-siderado ideal, devendo responder segundo a clássica dou-trina pelas diversas necessidades de direito substancial.

Este procedimento de cognição exauriente e latosenso declaratório não permite que a esfera jurídica do réuseja invadida antes da realização plena do princípio docontraditório, não admitindo, segundo Marinoni, a tutelaantecipatória e também não aceitando a tutela mandamen-tal, pois o mesmo terminaria sempre em uma das senten-ças da classificação trinária.

É interessante como Marinoni critica o procedimentoordinário também chamado (por ele) de clássico, caracteri-zando-o como um monumental obstáculo ao acesso efetivoà “Justiça”.

Começa por afirmar que o procedimento ordinárioclássico está ligado intimamente à ideologia liberal. Nesta,haveria apenas a preocupação com a tutela ressarcitória,pois não teríamos a necessidade de procedimentos diferen-ciados, bastando apenas o restabelecimento do valor eco-

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

142

27 Piero Calamendrei, Processo e democrazia, 1954.

Page 155: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

nômico da lesão. Com isso, a doutrina clássica liberal esta-ria relacionada à uniformidade de procedimentos, sendoque os bens não precisariam de uma tutela diferenciada,pois se queria no modelo liberal “preservar apenas a igual-dade formal dos litigantes”. Segundo Marinoni:

(...) “a uniformidade de procedimentos, portanto,encontra explicação, em um primeiro momento, justa-mente na desnecessidade de se dar tratamento dife-renciado às diferentes posições sociais e às diversasrealidades de direito substancial” (MARINONI,2000:69).

Outro problema da uniformidade de procedimentostípicos do modelo liberal seria aquele, segundo o autor,relacionado à confusão entre instrumentalidade do proces-so e sua neutralidade em relação ao direito material. Esteassunto, já debatido no capítulo anterior, relaciona-se coma passagem da fase de negação da autonomia do direito deação que, segundo Cristina Rapisarda,28 era visto comouma faculdade intrínseca ao direito material, para a fase depublicização do processo civil representada, sobretudo, porautores da chamada “escola sistemática”, entre eles,Chiovenda e Mortara.

Entretanto, voltando a Marinoni, a idéia de abstraçãodo direito processual do direito material, levada às últimasconseqüências, fez com que a doutrina confundisse instru-mentalidade do processo com neutralidade do processo emrelação ao direito material. Ou seja, a doutrina intuiu umprocedimento indiferente ao direito material, ou, pior ainda,um único procedimento ordinário que seria o suficientepara garantir tutela adequada às mais diversas situaçõesconflitivas concretas. (MARINONI, 2000: 41)

O Poder Judiciário e(m) Crise

143

28 Critina Rapisarda, Profili della civile inibitoria, Padova, CEDAM, 1987.

Page 156: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

Marinoni, seguindo a cartilha da teoria instrumentalis-ta do processo, critica a escola sistemática que vislumbrouo direito processual à distância do direito material, con-cluindo assim, na esteira de autores como Vitorio Denti eAndrea Proto Pisani, que o processo não deve ser pensadoisolado do direito material e da sociedade para que sealcance um acesso efetivo à “Justiça”. Sendo, então, a uni-formidade de procedimentos um dos resultados da confu-são imperdoável entre a instrumentalidade do processo e aneutralidade do mesmo em relação ao direito material,constituindo em grande entrave, a falta de tratamentosdiferenciados às várias realidades de direito substancialque surgem no seio social.

Os obstáculos produzidos pelo procedimento ordinárioclássico são ainda largamente debatidos na doutrina deMarinoni, perpassando também o papel de neutralidadeatribuído ao juiz no modelo liberal e no procedimento ordiná-rio clássico; não se esquecendo, também da proibição dosjulgamentos fundados em verossimilhança e na negação daexecução sem título, além da comentada crítica delineadasobre a classificação trinária das sentenças, que segundo oautor, expressariam os valores do modelo liberal de Estado.

Sobre a classificação trinária das sentenças e o pro-blema da efetividade da tutela processual observa que assentenças declaratórias e as sentenças condenatóriasrefletem uma ideologia que deu origem ao dogma de que acoercibilidade das obrigações constitui um atentado contraa liberdade e a dignidade dos homens. Observamos literal-mente, no sentido de que:

“Para resumir, é possível dizer que a classificação tri-nária traduz a idéia, peculiar ao Estado liberal, de nãose permitir ao juiz interferir na esfera jurídica do parti-cular, bem como a função que o próprio direito liberalreservou ao juiz, que não podia exercer o imperium,

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

144

Page 157: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

mas apenas afirmar a vontade da lei” (MARINONI,2000:64).

Ainda, nesta linha de raciocínio, as críticas ao modeloprocessual liberal se dirigem também contra o que o mes-tre paranaense diagnostica de “a inefetividade do proces-so civil clássico para a prevenção do ilícito”. Marinoni cons-tata que o processo de conhecimento clássico não foi estru-turado para permitir a tutela preventiva. Alerta para a gra-vidade dessa situação, visto que os direitos patrimoniais,aí incluídos os direitos de personalidade e os chamados“novos direitos”, não teriam outra forma de tutela. Nessediapasão, são as considerações de processualistas doporte de Cristina Rapisarda e Michele Tarufo,29 bem comodo mestre Andrea Proto Pisani,30 que prelecionam, respec-tivamente, a necessidade da preservação dos direitospatrimoniais sempre de forma preventiva, sob o risco dosmesmos serem transformados em direito à indenização eafirmam que um sistema que consagra direitos não patri-moniais e não estrutura procedimentos adequados parapermitir a sua efetiva tutela (que, segundo os autores, evi-dentemente, não é a tutela ressarcitória) é um sistemaincompleto ou falho.

Segundo Marinoni, os obstáculos ao “acesso àJustiça” se tornam evidentes quando vislumbramos que“as sentenças da classificação trinária são completamenteinidôneas para a prevenção, uma vez que são impotentespara impedir a violação de um direito ou mesmo para impe-dir a reiteração ou a continuação de um ilícito”. A discus-são se volta novamente para as funções, sobretudo das

O Poder Judiciário e(m) Crise

145

29 Cristina Rapisarda e Michele Taruffo, “Inibitoria”, enciclopedia giuridicaTrecanni v.17.

30 Andrea Proto Pisani, “La tutela giurisdizionale dei diritti della personali-tá: strumenti e tecniche di tutela”, Foro italiano, 1990.

Page 158: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

sentenças declaratórias e condenatórias. Observa que, aúnica tutela que poderia ser dita como preventiva, porque,obviamente anterior à violação do direito, seria a tuteladeclaratória. Mas, segundo o autor, esta questão é proble-mática, pois a tutela declaratória não teria força suficientepara impedir a prática de um ilícito ou mesmo impedir asua reiteração ou continuação.

Já a sentença condenatória é claramente de tutelarepressiva, não tendo o condão de realizar a função preven-tiva. Marinoni atesta que, classicamente, a tutela condena-tória sempre foi delineada para atuar diante da violação deum direito, não sendo capaz de impedir a prática do ilícito,visto que estruturada para dar resposta apenas após a prá-tica do mesmo. Nesse sentido:

(...) “o processo de conhecimento clássico, compreen-dido como o processo que desemboca em uma dastrês sentenças da classificação trinária, não é capazde permitir a tutela preventiva e, portanto, de tutelaradequadamente os direitos que não se compadecemcom a técnica do tipo ressarcitório, seja porque têmconteúdo não patrimonial, seja porque não podem serdevidamente precisados e quantificados em pecúnia”(MARINONI, 2000:87).

É interessante notar que nem mesmo o uso da açãocautelar inominada como tentativa de supletivamente sedeterminar uma tutela adequada e diferenciada para deter-minados direitos não foi suficiente para dirimir os entravesa uma efetividade maior da tutela jurisdicional com vistasa um acesso efetivo à “Justiça”. Mesmo porque, paraMarinoni, a tutela cautelar, dentro do ambiente do proces-so civil clássico, jamais foi pensada com o objetivo de via-bilização da prevenção de direitos:

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

146

Page 159: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

(...) “Ora, se a tutela cautelar, na concepção dos clás-sicos, é caracterizada como um instrumento que tempor escopo garantir a efetividade da prestação jurisdi-cional, e essa, no processo de conhecimento, somentepode ser declaratória, constitutiva ou condenatória,não há como se admitir, logicamente, uma tutela cau-telar preventiva, ou uma tutela cautelar concebidacomo instrumento do instrumento, que dê ao jurisdi-cionado algo que a própria tutela de conhecimentonão lhe confere” (MARINONI, 2000:98).

Além das interessantes considerações relativas aosobstáculos causados pelo processo civil clássico ao “aces-so à Justiça”, bem como para efetividade da tutela jurisdi-cional, Marinoni aponta ainda outras barreiras que inclusi-ve foram aqui objeto de comentários. Estes entraves sãorelacionados ao problema cultural do reconhecimento dosdireitos e os meios oferecidos para a tutela dos mesmos,bem como: questões psicológicas, questões relativas aoslitigantes eventuais e litigantes habituais e a necessidadede reestruturação das categorias do processo civil indivi-dual para a efetividade da tutela dos conflitos de massa,pois esses, por natureza individualista, tornar-se-iam umpoderoso obstáculo ao “acesso à Justiça”, não se adequan-do aos conflitos de massa, devendo-se, segundo o autor,buscar um tratamento diferenciado para essas mazelas apartir, sobretudo de uma visão “solidarista”.

3.11. As perspectivas de superação dos obstáculos ao “acesso à Justiça”

As tentativas de ruptura com os entraves colocados aoacesso efetivo à “Justiça” perpassam várias soluções e sãotrabalhadas de forma a possibilitar a melhoria da efetivida-de do processo na doutrina de Marinoni. Se fizermos um

O Poder Judiciário e(m) Crise

147

Page 160: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

paralelo com o antigo Projeto de Florença, já explicitado,poderíamos afirmar que as observações trazidas a cotejose encontrariam na terceira “onda”, denominada “uso doenfoque à justiça”.

Isto é colocado justamente pela infinidade de direcio-namentos que Marinoni vislumbra, indo desde a preocupa-ção com a organização e administração da “Justiça”, pas-sando pela instrumentalidade do processo, chegando atéaos comentários das reformas do ordenamento jurídico pro-cessual pátrio empreendidas nos últimos anos. Aliás, saltaaos olhos a preocupação do autor, no decorrer de sua vastabibliografia, com as reformas processuais direcionadas natentativa de aumentar a celeridade e efetividade da ativi-dade jurisdicional. Segundo ele, respostas mais rápidasatravés de tutelas mais efetivas, com certeza, ampliam ohorizonte do “acesso à Justiça”.

Algumas das soluções apresentadas para uma ativi-dade jurisdicional mais atuante, com vistas ao acesso àordem jurídica justa, foram objeto de comentário nestaobra, motivo pelo qual tentaremos aprofundar apenas adiscussão de questões ainda não trabalhadas. Entre as saí-das para o “acesso à Justiça”, Marinoni aponta, inicialmen-te, ser de suma importância a retomada de consciência damoderna processualística para as formas alternativas desolução dos conflitos. Neste momento, o autor trabalha,sobretudo, com os juizados especiais, as vias de concilia-ção, a arbitragem e a participação popular na administra-ção da Justiça. A expressão “deformalização” cunhadapela insigne processualista Ada Pelegrini Grinover31 énesse momento trazida à baila. Afirma que:

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

148

31 Ada Pelegrini Grinover, em artigo intitulado: “A Crise do PoderJudiciário” define e conceitua o que seja a expressão “deformalização”.A deformalização do processo é utilizada pela técnica processual embusca de um processo mais rápido, simples e econômico, de acesso fácile direto, apto a solucionar com eficiência certos tipos de controvérsias,de menor complexidade. (GRINOVER, 1998)

Page 161: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

(...) “o próprio processo como técnica passa por umadeformalização, procurando uma via menos formal emais rápida e econômica para atender às pessoas queficam impedidas, pelas razões já expostas, de recorrerao Poder Judiciário” (MARINONI, 2000:70).

Observa, na esteira de Dinamarco, que os juizadosespeciais com um procedimento mais simplificado e ágil,além de economicamente mais viável, trazem consigo um“papel altamente significativo na luta pelo efetivo acesso àordem jurídica justa”. Mas adverte que não basta a “defor-malização” conjugada com a agilidade procedimental.Seria necessário também, uma mudança sob (ótica) a pers-pectiva ideológica, no que se refere aos juizados especiais.Nestes termos:

(...) “É absurda a idéia de se pensar o juizado como ummero órgão destinado à aceleração da justiça.Estaríamos diante da transformação do juizado emvara cível peculiarizada pela adoção de um procedi-mento deformalizado e mais ágil. Ora, não basta adeformalização do procedimento se é esquecida aideologia que inspirou a sua instituição. A ideologiado juizado requer uma mudança de mentalidade volta-da para o trato das questões das pessoas carentes”(MARINONI, 2000:71).

A conciliação também é posta em relevo por Marinoni,que coloca (enfatiza) algumas das suas finalidades, comopor exemplo, efetividade na distribuição da justiça, a paci-ficação social principalmente no plano psicológico, tendoainda relevância o aspecto político evidenciado pela possi-bilidade de participação popular na administração daJustiça, sobretudo com a presença dos “leigos” no procedi-mento conciliatório.

O Poder Judiciário e(m) Crise

149

Page 162: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

Continuando a discussão acerca das perspectivaspara o “acesso à Justiça”, analisa a criação de juizados uni-versitários com a instalação de juizados especiais ao ladodos cursos de Direito, mediante convênios firmados entreos Tribunais de Justiça e as faculdades de Direito. A buscapor uma melhoria constante da assistência judiciária gra-tuita, tendo o Estado o dever de tornar a “Justiça” acessí-vel a todos. A informação e a orientação acerca dos direi-tos, perpassando a questão da democratização da lingua-gem e o aperfeiçoamento da organização judiciária. Navisão de Marinoni, essas práticas (posturas) seriam essen-ciais para o acesso à ordem jurídica justa. Sem dúvida sãoalgumas das saídas observadas pelo professor paranaen-se, para a superação dos obstáculos.

São também levantadas as já comentadas questõesrelativas à efetividade da tutela dos direitos difusos, coleti-vos e individuais homogêneos, ressaltando-se a necessida-de de tutelas diferenciadas numa sociedade moderna deconsumo e de massa cada vez mais diferenciada e hiper-complexa.

Marinoni, após ressaltar a importância dos direitostransindividuais e dos direitos individuais lesados emmassa serem, devidamente tutelados afirma, assim, comoaqui já observado por Humberto Theodoro que:

“É correto dizer que nós já temos um processo civilcapaz de permitir a tutela jurisdicional adequada dosconflitos próprios da sociedade de massa. O sistemabrasileiro de tutela coletiva dos direitos é integrado,fundamentalmente, pela Lei 7.347/85 – a Lei da AçãoCivil Pública – e pelo Código de Defesa do Consu-midor. O artigo 90 do Código de Defesa do Consumidormanda aplicar às ações ajuizadas com base no Código– as normas da Lei da Ação Pública e do Código deProcesso Civil. Por outro lado, pelo artigo 21 da Lei da

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

150

Page 163: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

Ação Civil Pública – introduzido pelo artigo 117 doCódigo de Defesa do Consumidor. A Lei da Ação CivilPública e o Código de Defesa do Consumidor estãointerligados, existindo uma ampla e perfeita interaçãoentre os dois estatutos legais.Atualmente é possível a tutela de qualquer direito difu-so, coletivo ou individual homogêneo. Muito embora oartigo 1, IV, da Lei da Ação Civil Pública fale apenas emdireitos difusos ou coletivos, é viável a tutela coletivade direitos individuais homogêneos que não digam res-peito às hipóteses expressamente previstas na Lei daAção Civil Pública” (MARINONI, 2000:88).

Nesta linha de raciocínio, centrada nas reformas pro-cessuais empreendidas nos últimos anos e a relação dasmesmas com a efetividade do processo, Marinoni traz acotejo questões que outros autores nacionais desconside-ram, pelo menos, no que diz respeito ao debate entre astutelas diferenciadas e o “acesso à Justiça”. Por isso, acha-mos relevante, inclusive observando os vários ensaios escri-tos pelo autor paranaense, comentar as relações existentesentre as tutelas inibitória, antecipatória e monitória respec-tivamente e as barreiras para o efetivo “acesso à Justiça”.

Aliás, as chamadas tutelas diferenciadas são exigên-cias particulares de certas situações, pelas quais o proces-so ordinário se revela estruturalmente e funcionalmenteinadequado. Isto foi observado, inclusive, em vários textosescritos por Cappelletti, encontrando-se também na tercei-ra “onda” de reformas que visa a uma melhoria no “acessoà Justiça”.

Em sede do Direito Processual Italiano, Calamandreifoi um dos precursores nesta temática, estudando o proce-dimento monitório e os procedimentos cautelares, passan-do por Vittorio Denti, Cristina Rapisarda, CrisantoMandrioli e Frederico Carpi, chegando até o professor de

O Poder Judiciário e(m) Crise

151

Page 164: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

Milão, Eduardo Ricci, com um excelente artigo sobre atutela antecipatória brasileira. Mas, sem dúvida, a maiorcontribuição para a temática em questão é trazida peloprocessualista Andrea Proto Pisani em seus diversos estu-dos e pesquisas.

Iniciando a discussão pela tutela inibitória, devemosrecordar os obstáculos impostos pela clássica classificaçãotrinária das sentenças que, conforme salientado, não estáapta para a prevenção, uma vez que segundo Marinoni, atutela jurisdicional, para impedir a prática, a continuação ourepetição de um ilícito, necessita, na maioria das vezes,impor um não fazer ao demandado, o que, evidentemente,não pode ser feito através das sentenças clássicas, já que,nenhuma delas permite (permitiria) ao juiz ordenar sobpena de multa.

Afirma o professor que a tutela inibitória é essencial-mente preventiva, sendo sempre voltada para o futuro, coma função de impedir a prática de um ilícito, sua continuaçãoou repetição. Torna-se então claro que esta tutela não temcomo pressuposto o dano, sendo sua meta justamente o atoilícito, constituindo-se em uma tutela notadamente preven-tiva e sempre voltada para o futuro. Neste sentido:

“Trata-se de uma forma de tutela jurisdicional impres-cindível dentro da sociedade contemporânea, em quese multiplicam os exemplos de direitos que não podemser adequadamente tutelados pela velha fórmula doequivalente pecuniário. A tutela inibitória, em outraspalavras, é absolutamente necessária para a proteçãodos direitos da personalidade, do direito à higidez domeio-ambiente, do direito à saúde, dos direitos doconsumidor, do direito à marca, do direito ao invento,do direito contra a concorrência desleal, do direitoautoral etc.” (MARINONI, 2000:112).

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

152

Page 165: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

Em relação à tutela antecipatória, Marinoni tambémenfatiza a inefetividade do procedimento ordinário.Segundo ele, mais uma vez, a morosidade da atividadejurisdicional estaria ligada, sobretudo, à ineficiência dovelho procedimento ordinário, cuja estrutura se encontrasuperada. Afirma que com a crescente necessidade deceleridade e efetividade da tutela de direitos, a tutelaantecipatória foi tratada como tutela cautelar, embora, nasua visão, essa tenha por fim assegurar a viabilidade darealização do direito. Esta distorção foi resolvida com anormatização em nosso ordenamento jurídico da tutelaantecipada. Essa rompe, segundo Marinoni, com o princí-pio da nulla executtio sine titulo, fundamento da separa-ção entre conhecimento e execução. Literalmente, nosentido de que:

“A técnica antecipatória visa apenas a distribuir oônus do tempo do processo. É preciso que os operado-res do Direito compreendam a importância do novoinstituto e o usem de forma adequada. Não há razãopara timidez no uso da tutela antecipatória, pois oremédio surgiu para eliminar um mal que já está insta-lado. É necessário que o juiz compreenda que nãopode haver efetividade sem riscos. A tutela antecipa-tória permite perceber que não é só a ação (o agir, aantecipação) que pode causar prejuízo, mas também aomissão. O juiz que se omite é tão nocivo quanto o juizque julga mal. Prudência e equilíbrio não se confun-dem com o medo, e a lentidão da justiça exige que ojuiz deixe de lado o comodismo do procedimento ordi-nário ”. (MARINONI 2000: 124).

Por último, seria o procedimento monitório forma pro-cessual destinada a propiciar uma maior efetividade emrelação à tutela de direitos, acarretando uma melhoria do

O Poder Judiciário e(m) Crise

153

Page 166: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

“acesso à Justiça”, também. Segundo Marinoni, o mesmo(procedimento monitório) é uma das manifestações maisimportantes de procedimentos diferenciados, visando àefetividade do processo. Na esteira de Proto Pisani.32

Marinoni afirma que deve haver meios de tutela jurisdicio-nal (de procedimentos, provimentos e meios executóriosadequados às necessidades de tutela de cada uma dassituações de direito material. Observa que:

“Como demonstra Proto Pisani,33 não só estudos clás-sicos mas também o bom senso indicam que o procedi-mento comum tem um custo altíssimo para as partes epara a administração da justiça. Em todos os casos emque é deduzido em juízo um direito em relação ao qualfalta uma contestação efetiva o custo do procedimentocomum se revela injustificado ou excessivo; a realiza-ção plena do princípio do contraditório funciona novazio e ainda apresenta riscos: (i) de servir de estímu-lo para contestações ou resistências sem qualquer con-sistência, apresentadas pelo réu que não tem razãoapenas com o intuito de lucrar com o tempo necessáriopara a conclusão do processo; (ii) de abarrotar, além damedida, a administração da justiça com processos deconhecimento inúteis, aumentando o seu número,para-lisando o seu desenvolvimento e de qualquer formaalongando a sua duração” (MARINONI, 2000:98).

Na verdade, o que Marinoni preleciona são os benefí-cios das tutelas diferenciadas e, nesta passagem, o datutela monitória. Afirma o processualista que o procedi-mento monitório objetiva viabilizar o acesso à via executi-

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

154

32 Andrea Proto Pisani, “I rapporti fra diritto sostanziale e processo” inAppunti sulla giustizia civile, Bari, Cacuci 1982.

33 Andrea Proto Pisani, Lezioni di diritto processuale civile, Napoli, Jovene,1994, p. 505.

Page 167: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

va sem as delongas do procedimento ordinário. Pretende,sobretudo, acelerar a realização do direito, livrando o cre-dor da angustiante e estafante demora do procedimentocomum. Sendo assim, não se abre espaço para a apresen-tação pelo réu de defesas procrastinatórias, além de a exe-cução tornar-se mais simples e rápida, aumentando as con-dições para a efetividade processual e o acesso à ordemjurídica justa.

É de se ressaltar, por último, as tentativas de supera-ção das barreiras ao “acesso à Justiça” no que tange aalguns aspectos não deixados de lado pelo autor. São elasrelacionadas principalmente ao princípio da oralidade; a jádebatida instrumentalidade do processo em sentido nega-tivo; a participação efetiva do juiz no processo; a atuaçãodo Ministério Público bem como a tão sonhada busca pelajustiça das decisões. Sobre a oralidade afirma que parauma maior efetividade é necessário a concentração dascausas em poucas audiências, de preferência uma na quallogo após a instrução fosse proferida a sentença.34 Em suaprincipal obra sobre a Tutela Antecipatória na edição de2002, chega o autor a defender que se não existisse o víciobrasileiro em cultuar de forma exagerada e indevida oduplo grau de jurisdição, a necessidade (busca) de tutelaantecipatória não seria tão sentida.

Sobre o duplo grau da jurisdição na sistemática pro-cessual pátria, afirma não haver sequer uma garantia implí-cita à luz de nossa Constituição. Nesses termos, se aConstituição garante o “acesso à Justiça” com base no art.5º, XXXV para todos, essa tutela deve ser, sempre que pos-sível, a mais tempestiva. Portanto, o duplo grau não seria

O Poder Judiciário e(m) Crise

155

34 Em referência ao professor Ovídio Baptista afirma Marinoni que a proxi-midade de tempo entre o que o juiz colheu em sua observação pessoal eo momento da sentença se tornam de suma importância, pois um inter-valo de tempo excessivo entre a audiência e o julgamento pode ser extre-mamente prejudicial.

Page 168: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

justificável. Advoga ainda que o duplo grau fere a oralida-de e acaba por desvalorizar o juiz de primeiro grau. A saídapara Marinoni seria a supressão não só do duplo grau, masdo próprio instituto processual do recurso nas causas demenor complexidade dos juizados especiais.35 O autor, por-tanto, defende que seria salutar para uma efetiva atividadejurisdicional (leia-se mais célere e também com acessomelhorado à “Justiça”) uma leitura infraconstitucional dodireito ao recurso bem como a inexistência de recursospara algumas causas (MARINONI, 1999; MARINONI, 2002;MARINONI, 2003).

Aqui, na realidade, não há nenhuma construção porparte do processualista paranaense que apenas se mostraum discípulo intelectual fiel às idéias de Cappelletti, queem parecer elaborado em 1968, a pedido de membros doSenado italiano, durante o movimento de reforma doCódigo de Procedimento Civil, afirmou que o recurso nãopode ser entendido como garantia fundamental. Em sualeitura, os recursos – principalmente o recurso de apelação– desvalorizam o juízo de primeira instância,36 além deaumentarem a duração do processo, o que conduz a umafuga da “justiça estatal” por parte da classe com maioresrecursos econômicos, cujas preferências são por mecanis-mos alternativos de composição de conflitos, como a arbi-tragem. Já no caso das classes menos abastadas, acontece

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

156

35 O curioso é que falta a explicitação de critérios suficientes que pudessemfornecer uma separação convincente entre casos de maior ou menor com-plexidade. Com Dworkin, veremos que a diferenciação a priori, comoquer Marinoni e tantos outros, é apenas a defesa de uma teoria semânti-ca do direito, sustentada por juristas que ainda não se abriram para umacompreensão do fenômeno lingüístico e nem são conscientes das trans-formações decorrentes do movimento dos giros hermenêuticos e prag-máticos dados pela filosofia do século XX.

36 Marinoni, lembrando Cappelletti, afirma que “o primeiro grau é somenteuma larga fase de espera, uma extenuante e penosa ante-sala para se che-gar à fase de apelação; é este último o único juízo verdadeiro, ao menospara a parte que tem condições econômicas para nele chegar” (2002:215).

Page 169: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

uma “litigiosidade contida”, o que representa um riscopara a estabilidade estatal (MARINONI, 2002:214).

Nesse momento faz-se necessário trazermos algumasreflexões críticas sobre as colocações de Marinoni no quetange à busca pela superação dos obstáculos (entraves) ao“acesso à Justiça”. Certo é que a cada ensaio (que envolveo “acesso à Justiça” de forma direta ou indireta) Marinonirevelou (e ainda revela) a sua preferência “escancarada”pelas soluções através de reformas que garantam tutelasmais céleres e efetivas, conforme já observado acima.

A preocupação, portanto, não é com a legitimidadedas decisões, com a construção dialógica das mesmas,com o contraditório e a ampla defesa. Até porque, para oautor, a legitimidade da decisão judicial decorre única eexclusivamente do fato do ato judicante ter justificado “aracionalidade da sua decisão com base no caso concreto,nas provas produzidas e na convicção que formou sobre assituações de fato e de direito” (MARINONI, 2006:104).Dessa forma, uma decisão é legítima se obedecer a umaconstrução racional, de maneira que é o método (ou a meto-dologia) de construção da decisão – mesmo de maneiraunilateral e solipsista – que atesta sua legitimidade. Tudona realidade, como quer também Alexy, trata-se de umaconstrução lógica, não dialógica.37 Por fim, em outra passa-gem de sua Teoria Geral do Processo, o autor acaba porafirmar-nos que a legitimidade da decisão judicial, seobservados os requisitos essenciais (formais), já seria legí-tima, uma vez que tal legitimidade decorreria de sua pró-

O Poder Judiciário e(m) Crise

157

37 Apenas para demarcar a dissonância, adianta-se que a tese alexyana érefutada tanto por Dworkin quanto por Habermas, que defendem aimpossibilidade de equiparar princípios a valores, sob pena de desnatu-rar a própria lógica de aplicação normativa. Ambos os autores ainda lan-çarão mão não de uma diferenciação morfológica entre princípios eregras, preferindo o que se pode considerar como uma distinção emrazão da natureza lógico-argumentativa.

Page 170: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

pria legalidade, como presunção normativa (MARINONI,2006:225) a que pese prova em contrário.

Mais uma vez, percebemos a filiação de Marinoni aoparadigma do Estado social, na medida em que o mesmofaz uma opção pela racionalidade instrumental (de ade-quação de meios a fins), na qual o juiz se coloca como osenhor das decisões e centro do processo, “ilhado” deforma solipsista no seu poder especialmente conferidopara de forma rápida e sumária decidir. Isso porque oautor paranaense ainda compreende o contraditório comoum “mero” direito de dizer e contradizer (MARINONI,2006:266), como os membros da Escola Paulista deProcesso. Como conseqüência, é o magistrado que delimi-ta o espaço de discussão processual, demarcando atéonde ele espera ser convencido pelos argumentos e ele-mentos de prova trazidos pelas partes, de modo que lhe éfacultado pela ordem processual, na visão de Marinoni(20006:267-268), a redução do mesmo, a fim de agilizar suadecisão, principalmente quando já se encontrar convenci-do.38 Aliás, quanto mais célere a decisão, quanto maisapoiada na lógica processual da oralidade, melhor. O pro-blema (talvez o inconveniente?) é a parte que recorre.Portanto, o fim de alguns recursos e a criação de tutelasdiferenciadas com procedimentos mais sumarizados seria asolução. O magistrado, então, poderia lançar mão (facul-dade) de um procedimento de cognição parcial da causa,que privilegia a “certeza” e a “celeridade” em detrimen-

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

158

38 Ao que parece Marinoni deve aplaudir o artigo 285-A do Código deProcesso Civil, que autoriza o magistrado de primeira instância que játiver produzido sentença em caso similar no qual se discuta questãoexclusivamente de direito nem proceder a citação do réu, já declarando aimprocedência do pedido contido na petição inicial. Ao que parece,então, a própria teoria da relação jurídica acaba sendo negada, já que seadmite uma estrutura processual válida e produtora de efeitos jurídicos,quando ausente o réu, uma vez que nem citado para o oferecimento desua resposta, o mesmo será.

Page 171: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

to da “justiça”, como o próprio autor reconhece (MARI-NONI, 2006:380). Nesse caso, para que o juiz defina se cabí-vel ou não a cognição parcial, mister se faz identificar “emnome do que o legislador [mens legislatoris?!] constrói o pro-cedimento especial”. A solução viria, então, por um raciocí-nio verificado caso a caso da proporcionalidade entre celeri-dade e justiça, como se a justiça – ou como preferimos cha-mar, legitimidade da decisão – fosse mais um valor posto àbaila para ser ponderado pelo magistrado a partir de seuscritérios de preferência solipsista. Mais uma vez, temos quecomentar que com essa postura, os poderes do juiz sãocada vez mais incrementados (aumentados).

Como construir um “acesso à Justiça” qualitativa-mente adequado nestes termos? Acreditamos que, nomáximo, aumenta-se a quantidade de decisões judiciais(da produção de provimentos) melhorando os indicadoresquantitativos e aumentando uma pseudo-segurança jurídi-ca à luz de um falso equilíbrio que na verdade só gera dese-quilíbrio entre os participantes dos provimentos. É a buscapor um processo civil de resultados com uma mínima parti-cipação das partes,39 ou seja, quanto melhor a oralidade se

O Poder Judiciário e(m) Crise

159

39 Nesse sentido são também as colocações de Dierle Nunes: A preocupaçãocom a celeridade impede que se enxergue a estrutura procedimentalcomo um espaço intersubjetivo e comparticipativo dos provimentos, coma marca de nosso modelo constitucional em sua acepção mais dinâmica,lastreado institucionalmente por uma ampla defesa, uma fundamentaçãoadequada das decisões e por um contraditório dinâmico, em que existeum diálogo genuíno entre as artes, e não meramente formal, entendidocomo princípio da bilateralidade da audiência. O problema do modeloreformista brasileiro está em focar as atenções, para a solução das maze-las do sistema processual, na figura do juiz, e não na estrutura procedi-mental lastreada por um modelo constitucional de processo dinâmico, quedeveria construir um espaço discursivo de formação revisível das deci-sões judiciais, em que a participação das partes das partes deva ser asse-gurada em todas as decisões por meio de um diálogo genuíno entre juiz epartes, com o decorrente controle pela técnica de fundamentação adequa-da das decisões judiciais e, especialmente, do recurso. (NUNES, 2006:47).

Page 172: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

desenvolva, quanto mais tutelas diferenciadas, quantomais veloz é a decisão, quanto menos as partes participam,melhor. Melhor porque os indicadores (leiam-se as estatís-ticas) feitos semestralmente ou anualmente pelosTribunais e pelo recém criado Conselho Nacional de Justiça(CNJ) vão melhorar.

No que tange à participação efetiva do juiz no proces-so, Marinoni debate sobre o mito da neutralidade presenteno modelo liberal e o redimensionamento dessa participa-ção no Estado Social, defendendo uma postura mais ativado magistrado no processo, compatível com os valores doparadigma de Estado no qual o autor se encontra inserido.A ótica é a de que com a democracia social aumenta-se aparticipação do Estado na sociedade e, por essa razão, aparticipação do juiz no processo:

(...) “na ideologia do Estado social, o juiz é obrigado aparticipar do processo, não estando autorizado a des-considerar as desigualdades sociais que o próprioEstado visa a eliminar. Na realidade, o juiz imparcialde ontem é justamente o juiz parcial de hoje” (MARI-NONI, 2000:101).

Essa postura, típica dos autores da escola paulista,adeptos ao paradigma do Estado social, será posteriormen-te comentada, quando da construção do “acesso à Justiça”em termos adequados ao paradigma do Estado Democrá-tico de Direito. Igualmente no que tange ao relacionamen-to estabelecido por Marinoni, entre o “acesso à Justiça” ea justiça nas decisões. É interessante como este autor tra-balhado em nossa pesquisa se “perde” ao fundamentar assuas convicções sobre a justiça.

Não é por outro motivo que a obra, ora trazida a cote-jo, define-se e caracteriza-se, desde a sua introdução, poruma tentativa de reconstrução de um “acesso à Justiça”

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

160

Page 173: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

qualitativamente adequado ao marco teórico discursivo doEstado Democrático de Direito em termos qualitativos. Adiscussão sobre a qual insistimos é de Teoria da Cons-tituição e Teoria Geral do Processo. Uma questão, sobretu-do, de paradigmas e como, já afirmado, não meramente de“jogo de palavras”. Por isso, o capítulo inicial definiu osparadigmas constitucionais e de Estado. O segundo capí-tulo discutiu a teoria da instrumentalidade do processo eas suas imperfeições ao paradigma delineado como nossomarco teórico. O terceiro capítulo debate o “acesso àJustiça” nos autores ligados sobretudo à instrumentalida-de processo como pressuposto para o acesso à ordem jurí-dica justa e à crítica aos mesmos.

Marinoni, analisando a Teoria do Processo de Grinover,Dinamarco e Cintra, juntamente com a Instrumentalidadedo Processo do segundo e, sobretudo, a Metodologia daCiência do Direito de Karl Larenz, revela sua face axiológi-ca típica da jurisprudência dos valores – radicalizada eexplicitada, principalmente nas obras mais recentes, nasquais o processualista paranaense assume sua filiação àtese de Robert Alexy (MARINONI, 2006). Nunca é demaislembrar que segundo a linha da “Escola Paulista,” o juizdeve pautar-se pelo critério de justiça ao apreciar a prova,ao enquadrar os fatos em normas e ao interpretar o direitopositivo. Nestes termos, trabalha com os princípios da pro-porcionalidade e probabilidade.

O autor fazendo jus às críticas colocadas, pois declaraque o princípio da probabilidade não pode desconsiderar anecessidade de ponderação do valor jurídico dos bens emconfronto, pois embora o direito do autor deva ser provável,o valor jurídico dos bens em jogo é elemento de grandeimportância para o juiz decidir. Ou seja, notamos que, paraMarinoni, o juiz deve estabelecer uma prevalência axiológi-ca de um bem para com outro bem, sempre de acordo comos valores presentes em um determinado momento históri-

O Poder Judiciário e(m) Crise

161

Page 174: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

co. Alerta, no entanto, que esta valoração não deve ser abs-trata entre esses bens, já que os mesmos têm pesos quevariam de acordo com as diferentes situações vivenciadas.

Sobre o princípio da proporcionalidade, Marinoni, naesteira de Larenz, afirmava (em 2000) que o mesmo exigeuma “ponderação” dos direitos ou bens jurídicos que estãoem jogo conforme o “peso” que é conferido ao bem respec-tivo na respectiva situação. Sendo colocado novamenteque esta ponderação de bens deverá ser feita no caso sobexame. Marinoni discorrendo sobre a debatida instrumen-talidade do processo de Dinamarco, reafirma suas convic-ções no sentido que:

“O princípio da proporcionalidade, é claro, pressupõeum juiz aberto aos valores do seu tempo. Aliás, e aquinos encontramos diante de outro ponto, é fundamen-tal que os textos legais sejam lidos de acordo com osvalores da Constituição e que o juiz se convença, defi-nitivamente, de que a neutralidade é um mito. O juizdeve atuar a vontade da lei, dizia Chiovenda. Mas,atuando a vontade da lei, o juiz atua, também, a suavontade. Atua a sua vontade, compreenda-se, quandoaplica a norma adequando-as aos novos tempos e aosvalores, fundamentos e princípios contidos naConstituição. Na verdade, esse conjunto de idéias quedecorrem da Constituição é que indica o conteúdo dodireito de determinado tempo e lugar. O juiz queapreende o conteúdo do direito do seu momento histó-rico sabe reconhecer o texto de lei que não guardaligação com os anseios sociais, bastando a ele, em talsituação, retirar do sistema, principalmente daConstituição, os dados que lhe permitem decidir demodo a fazer valer o conteúdo do direito do seutempo” (MARINONI, 2000:107-108).

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

162

Page 175: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

Em sua obra mais “madura” (a última de 2006), o autorinicia sua pesquisa afirmando a necessidade de superaçãodo pensamento liberal, bem como do positivismo. Todavia,sua saída é a adesão a uma compreensão típica da jurispru-dência de valores alemã. Marinoni (2006:47) reconhece anecessidade de compreensão do direito para além de umconjunto de regras, considerando a existência de princípiosjurídicos, que ao lado das regras possuem normatividade.Reconhece a existência de um debate sobre a questão naTeoria do Direito e no Direito Constitucional que se polarizaa partir das teses de Dworkin (tese deontológica) e de Alexy(tese axiológica).40 Nesse prisma, princípios seriam realiza-dos na medida do possível, de acordo com as condições jurí-dico-fáticas existentes, ao passo que regras exigem um efe-tivo cumprimento de suas determinações, na maneira dotudo-ou-nada. Curioso é que na seqüência de sua explica-ção, na qual se vincula a tese alexyana, escapa qualqueroutra informação a seu leitor sobre como se daria a aplica-ção de princípios e das regras, salvo menções esparsassobre o método da proporcionalidade – que não é detalhado(MARINONI, 2006:52).

Mas não é só isso, ainda sobre sua vinculação a ver-tente alexyana, em texto publicado em 2007, intitulado, “ALegitimidade da Atuação do Juiz a partir do Direito Fun-damental à Tutela Jurisdicional Efetiva”, Marinoni, afirma,contundentemente, que a concretização das normas pro-cessuais tem que levar em conta as necessidades de direi-to material reveladas nos casos concretos e que devem

O Poder Judiciário e(m) Crise

163

40 Todavia, Marinoni (2006:48) parece perder de vista a tese dworkiana aolongo de sua reconstrução sobre os princípios jurídicos. Ele reconheceem notas de roda-pé a existência de uma divergência que conta com ade-são, de Jürgen Habermas – como crítico feroz de Alexy. Mas, surpreen-dentemente, o corpo do texto deixa escapar a informação, causando nosleitores menos atentos (e menos informados) a noção de que tanto ojurista alemão, quanto o professor da New York estariam em consonân-cia, o que é uma inverdade. Aliás, um absurdo!!!

Page 176: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

decorrer (sempre) do que ele chama (já chamava em 2006e inclusive em textos anteriores) de “direito fundamentalà tutela jurisdicional efetiva”. Caberia ao magistrado,então, mediante argumentação própria individualizar a téc-nica processual capaz de permitir a efetiva tutela do direi-to. Mas como realizar tal empreitada? Ora, segundo o pro-fessor, a escolha da técnica adequada para garantir a efeti-vidade do direito à luz de normas processuais que elechama de “abertas” poderia ser feita a partir de “duas sub-regras (para alguns autores sub-princípios) da proporciona-lidade”, isto é, das regras da adequação e da necessidade.Nesse sentido, essa escolha (do magistrado) seria umagarantia (de legitimidade para Marinoni) tanto para o autorquanto para o réu. Nesse sentido, afirma literalmente:

Esse controle pode ser feito a partir de duas sub-regras da proporcionalidade, isto é, das regras da ade-quação e da necessidade. A providencia jurisdicionaldeve ser: i) adequada e ii) necessária. Adequada é aque, apesar de faticamente idônea à proteção do direi-to, não viola valores ou os direitos do réu. Necessáriaé a providência jurisdicional que, além de adequada, éfaticamente efetiva para a tutela do direito material e,além disso, produz a menor restrição possível aodemandado; é, em outras palavras, a mais suave. (...)As sub-regras da proporcionalidade, embora façamparte do raciocínio decisório, pois viabilizam a decisão,obviamente não podem ser ignoradas quando da jus-tificativa. Até porque tais regras não servem apenaspara facilitar a decisão, mas muito mais para que sepossa justificá-la de modo racional, permitindo-se oseu controle pelas partes. (MARINONI, 2007:292-293)

Não podemos concordar com Marinoni, que busca alegitimidade das decisões judiciais em critérios pautados

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

164

Page 177: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

argumentativamente (racionalmente??) na proporcionali-dade, pois temos aí um “exacerbado axiologismo” que ter-mina por inviabilizar (fulminar) uma teoria que aqui deseja-mos construir para o acesso à Justiça qualitativamenteadequado ao Estado Democrático de Direito.41 Se afirmar-mos com Marinoni (á luz da proporcionalidade) pela neces-sidade de ponderação de “normas jurídicas” como “bensem confronto” ou de “normas jurídicas” como “bens emjogo”, atribuindo (logicamente) peso aos respectivos bens,estaremos trabalhando com conceitos típicos da jurispru-dência dos valores que nesta pesquisa, estamos, a todoinstante, intencionalmente, afastando-nos pela inadequa-

O Poder Judiciário e(m) Crise

165

41 Mais que duvidosa é, então, a crítica de Marinoni (2006:434) dirigida aFazzalari, que segundo o primeiro, apresentaria uma teoria processual“primitiva”, que confunde a legitimidade política, típica do plano legis-lativo, com a legitimidade processual, que teria sua suposta origem naefetiva atuação “racional do magistrado na tutela do direito material”.Acreditamos que, por ser fiel às idéias de Robert Alexy, a mesma críti-ca endereçada a este por Jürgen Habermas seja cabível, no sentido deque tal raciocínio, ao confundir a racionalidade comunicativa – da qualdefendemos – com a racionalidade instrumental, provoca a total irracio-nalidade do argumento de Marinoni que confunde (ou desconhece) adimensão comunicativa da racionalidade (HABERMAS, 1998:332). Apostura judicial que Marinoni espera de seu juiz é limitada à dimensãoda busca por uma solução que conjugue meios a fins, sem qualquerespaço ou abertura para a construção comunicativa; já a teoria fazzala-riana, a seu turno, é toda construída a partir da figura da legitimidadeda decisão ou do provimento estatal, que levanta a exigência de parti-cipação dos atingidos no processo (e no discurso) de construção desseprovimento. Uma leitura materializante de legitimidade, tributária dasidéias de Alexy, que Marinoni parece seguir, é incompatível com umaleitura procedimental do Estado Democrático de Direito, pois mais quea própria decisão, o que se discute é como se forma esta e quais seusparâmetros, pois se a mesma se pretende democrática e legítima, devenecessariamente levantar uma pretensão discursiva de correção nor-mativa, que não pode ser sustentada unicamente ao recurso de umamente solitária (do magistrado), ainda que pese suas melhores qualida-des decisórias, aliás, a crença na sapiência da mente do julgador nosleva às histórias do Rei Salomão como julgador exemplar e a um para-digma de direito que é pré-moderno.

Page 178: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

ção ao nosso marco teórico paradigmático. Temos aquiplena convicção de que as normas jurídicas são enuncia-dos deontológicos, pois não são (e nem podem ser) valoresque condicionam uma determinada identidade através, porexemplo, de uma teoria material da Constituição.

Nunca é demais lembrar que a teoria axiológica, oracriticada, busca fugir da discricionariedade, mas acabapor se afundar ainda mais na mesma. Isto ocorre na medi-da em que se as normas são tratadas como valores, elasviram questões de preferências (o que é preferível aoinvés do que seja devido), ficando atreladas a uma racio-nalidade meramente INSTRUMENTAL. Portanto, a funda-mentação das decisões judiciais pautada em argumentosjurídico-normativos (com vistas a um “acesso à Justiça”qualitativo) cai por terra, já que questões políticas (ou éti-cas, ou morais ou pragmáticas) podem sobrepor-se aquestões jurídicas, no momento de aplicação do direito.

Neste sentido, voltamos a Cattoni de Oliveira que tra-balhando a argumentação de adequabilidade de KlausGünther em oposição à ponderação material de comandosotimizáveis de Robert Alexy, traz-nos com acuidade comodevemos observar as questões relativas à interpretação e àracionalidade dos discursos jurisdicionais, bem como oproblema dos intitulados discursos de aplicação e de justi-ficação, afastando-se aí da jurisprudência dos valores.Salientamos, então, contrariamente às incursões deMarinoni que:

(...) “o direito, ao contrário do que defende a jurispru-dência dos valores, possui um código binário, e nãoum código gradual: que normas posam refletir valores,no sentido de que a justificação jurídico-normativaenvolve questões não só acerca do que é justo paratodos (morais) mas também acerca de o que é bom, notodo e a longo prazo, para nós (éticas), não quer dizer

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

166

Page 179: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

que elas sejam ou devam ser tratadas como valores.(...) as normas – quer como princípios, quer comoregras – visam ao que é devido, são enunciados deon-tológicos: à luz de normas, posso dizer qual é a açãoordenada. Já valores visam ao que é bom, ao que émelhor; condicionados a uma determinada cultura,são enunciados teleológicos: uma ação orientada porvalores é preferível. Ao contrário das normas valoresnão são aplicados, mas priorizados” (CATTONI DEOLIVEIRA, 1997:137). (grifos nossos)

Concluímos afirmando a impossibilidade de adequa-ção dos ensaios (apesar de profícuos) de Marinoni42 anossa busca por um “acesso à Justiça” qualitativamentecompatível com o paradigma que foi definido no primeirocapítulo de nossa obra, ora trazida para o leitor. Essa ina-dequação foi analisada tanto pelas suas posições quantoà transposição das barreiras do “acesso à Justiça”, comsua clara opção pela efetividade a todo custo, quantopelas “posturas” do juiz que defende em seus trabalhos,ligadas a um paradigma não condizente às digressõesdefendidas no livro.

A tentativa de qualitativamente construirmos umconceito de “acesso à Justiça” que implique em uma ade-quação ao Constitucionalismo democrático e a uma teoriaprocessual aberta aos influxos do caráter discursivo do pro-cesso, tendo em vista um acesso que permeia decisõesjudiciais racionalmente justas é o desafio que a partir doquarto capítulo iremos desenvolver.

O Poder Judiciário e(m) Crise

167

42 Sem dúvida, Marinoni deve ser respeitado pela obra que desenvolvehodiernamente. Trabalhos, que pela riqueza acadêmica, possibilitam ins-tigante debate, tanto na seara processual quanto constitucional.

Page 180: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

3.12. A (des)construção do discurso do “acessoà Justiça” sob o prisma da ingerência dogrande capital internacional: um exemplode colonização pelos imperativos funcio-nais do mercado.

Se por um lado podemos encontrar explicações a quepesem – duvidosas – justificações normativas, outra aindapode ser a razão que motiva e impulsiona os discursos sobreo “acesso à Justiça” de Cappelletti e outros, o resultado deuma intervenção instrumental por parte do poder econômi-co do Mercado (sistema econômico) no sistema do Direito.

O sistema econômico regido pelo medium do dinheiroatua nos processos de integração social de maneira diver-sa do que acontece com o Direito. Os pressupostos comu-nicativos são substituídos por uma forma de ação nãointencional, que segue uma lógica instrumental (HABER-MAS, 1998:102). Tanto o mundo da vida quanto o Direitosão elementos fundamentais para o funcionamento e paraa reprodução da sociedade (FREITAG, 2002:239). Todavia,pode-se identificar como “patologia da modernidade” achamada colonização do mundo da vida. A colonização domundo da vida é explicada por Freitag (2002:239) como oprocesso resultante da expansão da racionalidade instru-mental utilizada pelos imperativos funcionais do sistemaeconômico e do sistema político-burocrático que invade omundo da vida, desalojando e expulsando a racionalidadecomunicativa. Assim, onde antes havia processos de inte-ração sociais regidos por uma racionalidade comunicativa,passa-se a ter uma racionalidade instrumental. Como con-seqüência, aponta uma crise de legitimidade das decisõesjurídicas, o que põe em risco o processo de integraçãosocial, uma vez que o Direito não somente mantém contatocom o código proveniente da linguagem coloquial ordiná-

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

168

Page 181: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

ria, como por ele ainda transitam mensagens provenientesdos códigos do sistema econômico e do sistema político-burocrático (HABERMAS, 1998:146). Em síntese: de umamaneira parasitária, o sistema econômico intervém nosprocessos de decisões jurídicas através de sua própria lógi-ca de racionalidade (adequação de meios a fins), buscandoa sua expansão, mas sob pena de perda da legitimidade doDireito como conseqüência da expulsão da ação comunica-tiva de seu habitat natural (FREITAG, 2002:239).

Melo Filho (2003:79) e Silva Candeas (2004:18) alertampara a intervenção do capital estrangeiro, através do BancoMundial e de seu plano de padronização do Judiciário detoda a América Latina, sob o pretexto de “construção deuma nova ordem” favorável ao capital e à integração eco-nômica. Tais tendências e expectativas foram materializa-das no documento técnico n. 319, denominado O SetorJudiciário na América Latina e no Caribe: elementos parareforma, datado de junho de 1996.43 O próprio documentoreconhece a necessidade de uma reforma econômica paraque o Judiciário funcione bem, isto é, aplique as leis demaneira previsível e eficiente – em sua leitura, o mais céle-re possível – e atue na garantia da propriedade privada(DAKOLIAS, 1996:3).44 Diante de uma ordem econômica de

O Poder Judiciário e(m) Crise

169

43 O Documento Técnico n. 319 é o que apresenta o maior nível de detalha-mento quanto às propostas e expectativas do Banco Mundial para a refor-ma dos Judiciários latino-americanos, mas não é o único. Merece mençãoainda o relatório anual n. 19, de 1997, “O Estado num mundo em transfor-mação”, e o n. 24, de 2002, “Instituições para os mercados”. Conforme SilvaCandeas (2004:19), o relatório de 1997 “discute o novo papel do Estadodiante de acontecimentos como desintegração das economias planejadasda ex-União Soviética e da Europa Oriental, a crise fiscal do Estado-Providência, o papel do Estado no ‘milagre’ econômico do leste da Ásia, adesintegração de Estados e as emergências humanitárias em várias partesdo mundo. Já o relatório de 2002 trata da criação de instituições que promo-vem mercados inclusivos e integrados e contribuem para um crescimentoestável e integrado, para melhorar a renda e reduzir a pobreza”.

44 Como alerta Melo Filho (2003:80): “O que a agência financeira internacio-nal pretende, na realidade, é redesenhar as estruturas dos Poderes Judi-

Page 182: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

proporções globais, o Judiciário pode se tornar um “parcei-ro” do Mercado, se levar a cabo a defesa da propriedade eatuar dentro de uma margem de previsibilidade:

(...) “o Estado é essencial para a implantação dos fun-damentos institucionais apropriados para os merca-dos, e a credibilidade do governo – a previsibilidadede suas normas e políticas e a constância de sua apli-cação – pode ser tão importante para atrair investi-mentos privados quanto o conteúdo dessas normas epolíticas” (SILVA CANDEAS, 2004:21-22).

O Estado, então, por meio do Judiciário, proporciona-ria uma ordem de estabilidade causada pela previsibilida-de e celeridade na aplicação de normas jurídicas e pelagarantia da obrigatoriedade dos contratos, minimizando orisco das atividades econômicas. Assim, a

(...) “interpretação que se depreende dos textos é queo Judiciário pode tornar-se mais eficiente ao concorrercom outros mecanismos para a resolução de litígios.Por isso, o Banco estimula a aplicação dos MARD(mecanismos alternativos de resolução de disputas),quais sejam, arbitragem, mediação, conciliação e osjuízes de paz, para romper com o ‘monopólio do poderjudicial’” (SILVA CANDEAS, 2004:28).

Mas o valor previsibilidade é ainda mais almejado quea eficiência:

“Para o Banco Mundial, o Estado deve atuar comovetor de certezas. Na opinião do organismo, se um

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

170

ciários da América Latina, a partir das premissas neoliberais, com o fitode adequá-las à prevalência do mercado sobre qualquer outro valor”.

Page 183: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

Estado muda freqüentemente as regras ou não escla-rece as regras pelas quais ele próprio se guia, asempresas e os indivíduos não podem ter certeza hojedo que amanhã será lucrativo ou não lucrativo, lícitoou ilícito. Nesse caso, tendem a adotar estratégiasarriscadas para se protegerem contra um futuro incer-to – ingressando, por exemplo, na economia informalou enviando capital ao exterior, prejudicando a econo-mia nacional” (SILVA CANDEAS, 2004:33).

É a partir desse prisma, ou seja, racionalidade voltadaaos interesses do capital despersonalizado, que tambémpode ser compreendido o processo de centralização dasdecisões jurídicas, como a súmula vinculante ou mesmo aadoção de mecanismos de filtragem de recursos para osTribunais Superiores. Ao se limitar a interpretação jurídica,centrando-a em órgãos especializados, entendidos como osúnicos autorizados a decidir, miniminiza-se o risco de dis-senso, mas assume-se, por outro lado, o risco de perder devista o papel comunicacional presente nos processos dedecisões jurídicas, responsável pela manutenção de sualegitimidade democrática.

A conseqüência da implementação dessa proposta,segundo Melo Filho (2003:81), é fornecer mais subsídiospara a hipertrofia do Poder Executivo a custo da submissãodo Judiciário, que se transformaria em mero órgão chance-lador das políticas públicas propostas pelo primeiro, com asubseqüente redução da órbita de ação do PoderJudiciário. Tal diagnóstico parece ser confirmado quandose percebe a tentativa de defesa de uma concentração docontrole de constitucionalidade por parte de STF, principal-mente com o uso da Ação Direta de Constitucionalidade(ADC) com efeito vinculante, após 1993. Melo Filho(2003:84) lembra que: “Em países como a Argentina, aBolívia e a Venezuela, tais propósitos foram plenamente

O Poder Judiciário e(m) Crise

171

Page 184: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

alcançados, chagando-se ao extremo de atribuir aoMinistério da Justiça o controle da magistratura”.

Além disso, o Executivo acaba por quase monopolizarfaticamente a atividade do Judiciário. Grinover (2005:501)lembra que, no plano das demandas individuais, o principal“cliente” do Judiciário é o próprio Estado. Com base nasanálises da pesquisa feita pela Fundação Getúlio Vargas, apedido do Ministério da Justiça, constatou-se que

(...) “79% dos processos em tramitação perante oSupremo envolvem o Poder Executivo (64% da União,8,2% dos Estados e 6% dos Municípios; só a CaixaEconômica Federal é responsável por 44% das causasem andamento no Supremo Tribunal Federal)”.

Na grande maioria desses casos, o que se percebe é ouso dos procedimentos jurisdicionais, contando com amorosidade como forma de retardar a satisfação de direitosjá reconhecidos, até mesmo pela própria parte recorrente.Logo, uma solução mais democrática é a proposta porSouza Cruz (2004:412): utilizando os próprios instrumentosprocessuais existentes, dever-se-ia voltar a atenção para acoibição de posturas estratégicas que desnaturem o con-teúdo comunicativo inerente aos recursos, tornando-osmeros subterfúgios para protelações. Uma vez que o examedo caso específico em juízo pode demonstrar a existênciade um abuso do direito processual, o que se teria é umasituação não tutelada pelo Direito, que, ao contrário, coíbequando caracterizada em ilícito.

Outra questão que não pode ser olvidada é que, simul-taneamente ao fato de as instituições ligadas ao Estado deDireito contribuírem para a redução da complexidadesocial, essas, em movimento contrário, são também respon-sáveis por mantê-la (HABERMAS, 1998:405-406). No caso,então, da “crise” do Judiciário, a mesma se mostra como

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

172

Page 185: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

elemento fundamental – e, por isso mesmo, sem solução,uma vez que atua no sentido de colocar o Judiciário em evi-dência, como tema permanente dos debates públicos.Como será visto no capítulo 4 da presente pesquisa, issoadquire uma perspectiva positiva, já que incentiva perma-nentemente a fiscalização e a crítica pública das decisõesjudiciais, lembrando aos aplicadores jurídicos que eles sãomeros representantes do papel que desempenham (GÜN-

THER, 1995:52-53).

O Poder Judiciário e(m) Crise

173

Page 186: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise
Page 187: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

Capítulo 4 "Acesso À Justiça" no Estado

Democrático de Direito

4.1 Uma advertência inicial

Neste capítulo, tentaremos, a partir de uma leitura pro-cedimental, construir as bases do “acesso à Justiça” qualita-tivamente compatível a uma Teoria da Constituição e umaTeoria Geral do Processo adequadas ao paradigma do EstadoDemocrático de Direito, descrito no primeiro capítulo.

Antes dessa (re)construção, vamos destacar, aindaque de forma sucinta, os riscos da busca desenfreada pelaefetividade do processo. Efetividade essa que vem sendoperseguida a nosso ver, “cegamente,” por nossas reformasconstitucionais e infraconstitucionais (processuais) da últi-ma década. Esta advertência foi feita inicialmente em20011 e vale hoje, em 2007, tanto ou mais. Aliás, as digres-sões sobre os perigos da busca desenfreada pelo “acesso àJustiça” já eram objeto de trabalho do próprio Cappellettie foram (antes mesmo das nossas atuais ondas reformistasprocessuais) também trazidas a lume pelo grande proces-sualista nacional, José Carlos Barbosa Moreira.

Esta análise representa o que acreditamos ser contra-ponto dos que buscam um acesso à ordem jurídica justa e

175

1 Em dissertação de mestrado de 2001, apresentada na Faculdade deDireito da UFMG pelo professor Bernardo Gonçalves Fernandes, intitula-da “Acesso à Justiça no Estado Democrático e Direito”. A mesma foiorientada pelo professor Doutor Menelick de Carvalho Netto, tendo rece-bido nota dez com louvor da banca examinadora.

Page 188: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

a efetividade processual a todo custo, perdendo de vista oimportantíssimo referencial dos “limites e riscos do enfo-que de acesso à Justiça”.

Como aqui lembrado, Cappelletti é um dos raros pro-cessualistas que ao discorrer sobre o “acesso à Justiça”lembra-se de trazer a cotejo os riscos proeminentes desseenfoque. Na introdução da sua “terceira onda” de “acessoà Justiça”, o professor de Florença já se preocupava com apossibilidade ilusória da mudança ao nível do ordenamen-to, sem que isso correspondesse à mudança na práticasocial de distribuição de vantagens tangíveis, alertando,sobretudo, para o perigo das regras novas introduzidas noordenamento, apenas para se tornarem substitutos simbó-licos para a “redistribuição de vantagens”. (CAPPELLETTIe GARTH, 1988:68).

Neste sentido, surgem os limites e os riscos do enfo-que de “acesso à Justiça” descritos de forma clara e con-tundente por Cappelletti no próprio Projeto de Florençaenfatizando, sobretudo: a) as reformas processuais não sãosubstitutos suficientes para as reformas políticas e sociais;b) que as reformas não podem (e não devem) ser transplan-tadas simploriamente de seus sistemas jurídicos e políti-cos; c) a despeito do apelo óbvio da especialização e dacriação de novas instituições, os sistemas jurídicos nãopodem introduzir órgãos e procedimentos especiais paratodos os tipos de demanda, pois as competências podemtornar-se confusas, ficando o juiz especializado muito isola-do; d) o maior perigo para o qual o autor chama a atençãoé o risco de que procedimentos modernos e eficientesabandonem as garantias fundamentais do processo civil –essencialmente as de um julgador imparcial e do contradi-tório. (CAPPELLETTI e GARTH, 1988:161-163).

Em famoso ensaio, intitulado “Efetividade do Processoe Técnica Processual”, o jurista pátrio, José Carlos BarbosaMoreira, também chama a atenção para os riscos a que

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

176

Page 189: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

está sujeito o pensamento direcionado à efetividade doprocesso. No trabalho de Barbosa Moreira, o que chama aatenção são, justamente, dois desses riscos que achamospor bem trazermos para nossa advertência introdutória.São eles: a tentação de elevar a efetividade do processo aum valor absoluto e o perigo de rompimento do equilíbriodo sistema que não trabalha de forma simétrica com osconceitos de verdade e celeridade processual. A análisesobre os riscos se perfaz nos seguintes termos:

“Consiste o primeiro na tentação de arvorar a efetivida-de em valor absoluto: nada importaria senão tornarmais efetivo o processo, e nenhum preço seria excessi-vo para garantir o acesso a tal meta. É esquecer que nodireito, como na vida, a suma sabedoria reside em con-ciliar, tanto quanto possível, solicitações contraditó-rias, inspiradas em interesses opostos e igualmentevaliosos, de forma que a satisfação de um deles nãoimplique o sacrifício total do outro (...) O segundo gran-de risco tem certa analogia com o primeiro, do qual sediferencia, no entanto, por manifestar-se no interior daproblemática mesma da efetividade. Desdobra-se esta,como assinalado, em diversos tópicos; e aqui tambémse corre o risco de romper o equilíbrio do sistema,hipertrofiando uma peça em detrimento das restantes.É o que acontece, por exemplo, quando se estendealém da medida razoável a duração do feito, pelo afãobsessivo de esgotar todas as possibilidades, mínimasque sejam, de apuração dos fatos. Nem o valor celeri-dade deve primar, pura e simplesmente, sobre o valorverdade, nem este sobrepor-se, em quaisquer circuns-tâncias àquele” (BARBOSA MOREIRA, 1997:23).

Chamamos, com essas digressões, novamente a aten-ção para a falta de acuidade entre a maioria dos nossos

O Poder Judiciário e(m) Crise

177

Page 190: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

processualistas instrumentalistas com os riscos da buscadesenfreada pelo acesso e pela efetividade do processo.

Certo é que em nenhum momento neste trabalho,optamos pela desnecessidade de reformas ou mudançasna seara processual, mas também é patente que não aban-donaremos, jamais, as garantias processuais que se consti-tuem na essência do processo, para advogarmos a tese daceleridade construída “a toque de caixa”, com um “pano defundo” autoritário-estatalizante (servindo, sabemos lá, aquais interesses, como vimos no capítulo anterior) e desti-tuído de fundamentos “democrático-discursivos”. Assim:

“Entre uma decisão justa, tomada autoritariamente, euma decisão justa, construída democraticamente, nãopode deixar de haver diferença, quando se crê que adignidade humana se realiza através da liberdade”(GONÇALVES, 2001:174)

Nesse diapasão, trazemos, novamente, a advertênciainicial,2 reforçando o aspecto atinente ao “acesso àJustiça” e as críticas aos limites que existem ao acesso,corroborando com Cattoni que

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

178

2 Na qual, propositadamente, usamos autores (Cappelletti e BarbosaMoreira) de cunho “culturalista”, não atrelados à perspectiva do “acessoà Justiça” qualitativamente adequado ao Estado Democrático de Direito.Com isso, queremos explicitar que apesar da “cegueira paradigmática”estes autores conseguem enxergar limites e perigos na busca desenfrea-da pelo “acesso à Justiça” e efetividade do processo. O problema é jus-tamente no que tange às saídas. Aliás, quais seriam as saídas? Essas são(e estão à luz, inclusive, das últimas reformas processuais brasileiras)para os autores até agora analisados e engendrados numa perspectivadiferente da qual no presente capitulo 4 iremos defender, trabalhadas(mais uma vez) através do: a) peso exacerbado na discricionariedade dojuiz (como senhor do processo), b) na perspectiva semântica de aborda-gem da relação público-privado com o dogma do interesse público preva-lecente (e a supremacia do mesmo à luz de uma pseudo “repercussão” –ou relevância – geral) e c) com a negativa ao direito constitucional (ade-quado) ao recurso (hipostaziando-o praticamente como um entrave).

Page 191: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

“De fato, não se quer negar a importância do acesso àJustiça, a necessidade de reformas no sistema proces-sual brasileiro ou que a superação de um enfoque for-malista do processo e da jurisdição seja necessária. Aocontrário, é urgentíssimo. Mas para isso não é preciso,nem se deve, por um lado, abandonar as garantias pro-cessuais e, por outro, adotar uma compreensão ideali-zante e paternalista do papel do juiz ou do próprioEstado, como transparece na análise de alguns autoresbrasileiros”. (CATTONI DE OLIVEIRA, 2000:105).

Dessa forma, passamos a apresentar duas contribui-ções teóricas sobre o estudo do Estado Democrático deDireito, em sua versão procedimental, que muito podem serúteis para os delineamentos de um novo conceito de “aces-so à Justiça”, agora em uma perspectiva qualitativa. Estasduas leituras, como já comentado, são as dos pensadorescontemporâneos, Ronald Dworkin e Jürgen Habermas;sendo que este último recebeu contribuições valiosas deoutro jurista, Klaus Günther, cuja teoria será também obje-to de discussão. Esses três autores são figuras fundamen-tais para uma (re)compreensão do Direito e de seus proble-mas a partir de uma nova luz: a percepção de que a impe-ratividade e a necessidade da decisão judicial (faticidade)não pode ser abandonada pelo direito, em discursos sofis-tas e exclusivamente normativos; todavia, tal decisão,como componente de um Estado que se considere demo-crático – e daí não se trata de uma opção, mas uma formade legitimação do poder estatal – deve, necessariamente,lançar mão de uma abertura para a participação dos sujei-tos atingidos pela decisão (legitimidade). Esta idéia funda-mental, independentemente da roupagem que adquire nateoria de cada um desses autores conserva-se e está pre-sente, ao contrário dos outros pensadores de nosso século(e mesmo anteriores). Logo, é nesta idéia fundamental para

O Poder Judiciário e(m) Crise

179

Page 192: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

o Estado Democrático de Direito que se encontra nossaopção metodológica que culmina com a eleição dos mes-mos como nossos marcos teóricos.

A seguir, reconstruiremos de maneira sintética asbases do pensamento de cada um destes autores, inserin-do suas idéias e propostas como elementos para a constru-ção de um “acesso à Justiça” qualitativo, em oposição àversão defendida pelos instrumentalistas.

4.2. O Giro Hermenêutico-Pragmático como condição de possibilidade do pensar umanova (auto)compreensão do direito moderno

As discussões filosóficas anteriores ao século XX tra-ziam como principais temáticas questionamentos sobre averdade do conhecimento, a qualificação de uma ação justa(moral) ou mesmo elucubrações no campo da estética.Todavia, essa tradição de pensamento possuía alguns tra-ços comuns, o que permite que seja englobada – salvo,raras exceções – em um conjunto aqui denominado de “filo-sofia da consciência” ou “mentalismo”. Um traço dessa tra-dição é que ela sugere um modelo dualista formado a par-tir de uma relação sujeito/objeto, traduzindo-se, conformeHabermas, em três supostos básicos:

“- Pela introspecção, o sujeito cognoscente ganha umacesso privilegiado às suas próprias representações,mais ou menos transparentes e não corrigíveis, quesão dadas como vivências imediatamente evidentes.- O certificar-se dessa posse de vivências subjetivasabre o caminho para a explicação genética do sabersobre os objetos mediado pela experiência.- Visto que a introspecção abre o caminho para a sub-jetividade e como a certificação da objetividade dosaber consiste em penetrar em suas fontes subjetivas,

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

180

Page 193: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

os enunciados epistemológicos se medem diretamen-te – e todos os outros enunciados indiretamente – pelaverdade enquanto evidência subjetiva ou certeza”(2004:187, grifos no original).

Todavia, esse pano de fundo solipsista começa a ruir apartir dos estudos sobre a linguagem, que, aos poucos,torna-se a questão central da filosofia, como reconheceOliveira (2001:11).3 É esse movimento que ficará conhecidocomo giro lingüístico:4

“A reviravolta lingüística do pensamento filosófico doséculo XX se centraliza, então, na tese fundamental deque é impossível filosofar sobre algo sem filosofarsobre a linguagem, uma vez que esta é momentonecessário constitutivo de todo e qualquer saberhumano, de tal modo que a formulação de conhecimen-tos intersubjetivamente válidos exige reflexão sobresua infra-estrutura lingüística” (OLIVEIRA, 2001:13).

A partir daí, a linguagem passa a ser vista como aqui-lo que possibilita a compreensão do indivíduo no mundo,de modo que essa mesma linguagem é, necessariamente,

O Poder Judiciário e(m) Crise

181

3 “(...)significa uma nova maneira de articular as perguntas filosóficas.Assim, por exemplo, contrariamente a quando se fazia no passado, per-guntar pela essência da causalidade ou pelo conteúdo do conceito ‘-causalidade’, pergunta-se agora pelo ‘uso da palavra’ causalidade. Foi detal modo intensa a concentração em questões da linguagem, que se che-gou a identificar filosofia e crítica da linguagem” (OLIVEIRA, 2001:12).

4 Uma reconstrução feita mais recentemente e elaborada pelo próprioHabermas sobre o giro lingüístico pode ser encontrada no cap.1(“Filosofia hermenêutica e filosofia analítica: duas versões complementa-res da virada lingüística”) da obra HABERMAS, Jürgen. Verdade e justi-ficação: ensaios filosóficos. Trad. Milton Camargo Mota. São Paulo:Loyola, 2004. O presente trabalho a tomará como referência para susten-tar que as teorias de Wittgenstein e Gadamer, cada uma por si, represen-tam momentos complementares desse giro.

Page 194: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

fruto de um processo de comunicação envolvendo umarelação de intersubjetividade, isto é, onde antes havia umarelação sujeito/objeto, instaura-se uma relação sujei-to/sujeito. Além disso, a própria linguagem começa a sercompreendida como elemento de mediação das interaçõesexistentes na sociedade. Assim, a linguagem não se resu-me a uma racionalidade epistemológica, mas transbordaessa esfera ao apresentar-se como condição para umaracionalidade prática, de modo a unir a racionalidade teóri-ca (preocupada, por exemplo, com a verdade de um enun-ciado) a uma racionalidade prática (concernente à avalia-ção de uma dada ação humana).

O movimento do giro começa com os estudos de Frege,1892, que preocupado em separar pensamentos de repre-sentações, identifica nos primeiros uma estrutura maiscomplexa do que os segundos, de modo que eles podemser avaliados à luz da linguagem gramatical, sendo que éimprescindível que se possa pressupor que os falantes deuma determinada comunidade lingüística atribuam omesmo significado às expressões lingüísticas. A partir daí,os pensamentos passam a veicular um conteúdo específicoque pode ser avaliado de acordo com a assunção de posi-ções fundadas em razões criticáveis pelos falantes.

Peirce, dando outro grande passo, identifica a verdadecom a aceitabilidade racional dos participantes de umaprática comunicativa, ou seja, como justificação de umapretensão de validade criticável sob as condições de comu-nicação de uma audiência de intérpretes confiáveis que seespraia em um sentido ideal através do espaço social e dotempo histórico (HABERMAS, 1998:76).

Mas uma das maiores contribuições vem deWittgeinstein, que na segunda fase de seu pensamento,com a publicação da obra Investigações Filosóficas, forne-ce-nos uma nova perspectiva, já que

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

182

Page 195: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

(...) “faz uma crítica detalhada ao mentalismo apenasapós substituir as formas lingüísticas de um pensa-mento de entendimento não-reflexivo, investigadas noTractatus, por gramáticas de jogos de linguagem, quesão constitutivos de igual número de formas de vida.Com ‘pensamento’ e ‘representações’ uma interpreta-ção inequívoca. Não podemos ‘vivenciar’ o sentido deuma proposição, pois a compreensão não é um proces-so psíquico, mas depende da observação de umaregra: ‘Compare: ‘Quando suas dores diminuíram?’ e‘Quando você parou de compreender essa palavra?’’.O saber quanto à maneira de aplicar um critério é umafaculdade prática – assim como se ‘sabe’ jogar xadrez –,mas não um estado mental, nem uma propriedade psí-quica” (HABERMAS, 2004:78-79).

Logo, a pergunta sobre o significado de uma palavra épara o filósofo austríaco um questionamento mal posto,pois, na realidade, várias são as possibilidades que variamde acordo com o jogo de linguagem no qual esta palavraaparece. Em um jogo de linguagem,5 uma palavra não éapenas dependente da relação com outras (semântica), mastambém está em relação com os participantes (pragmática).O significado somente pode aparecer a partir de uma com-preensão do uso da palavra dentro de uma forma de vida(COSTA, 2003:40-41; CONDÉ, 2004:47) e não mais como

O Poder Judiciário e(m) Crise

183

5 É essencial lembrar que Wittgenstein, coerentemente com sua teoria,recusou-se a apresentar um conceito ou uma definição do que seja um“jogo de linguagem”. Desse modo, a noção surge através da comparaçãocom o “jogo”: “No jogo sabemos que o jogador não joga isoladamente earbitrariamente. Eles [os jogos de linguagem] constituem um quadro dereferência intersubjetiva que delimita as fronteiras das ações possíveis e,por outro lado, possibilita, ao jogador, um espaço para as iniciativas indi-viduais” (ROHDEN, 2002:57-58). Condé (2004:52) afirma que a compreen-são da linguagem presente na obra Investigações Filosóficas abandonauma concepção de cálculo, adotada e desenvolvida no Tractatus.

Page 196: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

especulação “a priori” (OLIVEIRA, 2001:132). Uma mesmaexpressão lingüística poderá, portanto, ser utilizada deforma diversa em duas situações distintas, adquirindo sig-nificações completamente diferentes (CONDÉ, 2004:48):

“É a partir da análise dessa situação que Wittgensteinsupera a concepção tradicional da linguagem, mos-trando sua parcialidade. Em nossa linguagem, não setrata apenas de designar objetos por meio de pala-vras; as palavras estão inseridas numa situação globalque regra seu uso, (...)” (OLIVEIRA, 2001:139, grifos nooriginal).

A linguagem não pode ser compreendida como puroinstrumento de comunicação de conhecimentos já realiza-dos; antes disso, ela é condição de possibilidade para aconstrução desse conhecimento. Contudo, constatamosum problema remanescente desde a primeira fase: a análi-se dos jogos de linguagem ainda se dá de maneira exclusi-vamente descritiva, de modo que o sujeito que observa osjogos posiciona-se como um observador externo à práticalingüística (ROHDEN, 2002:133; 2002:58).6

Mesmo sob o peso da crítica acima, o pensamento deWittgenstein pode trazer uma nova luz à compreensão doDireito. O Direito, como elemento da vida em sociedade,serve-se da linguagem ordinária; logo o que se aplica àque-la também se aplica ao Direito. Se, no exemplo clássico deWittgenstein (1979:22), não é a forma da peça de xadrez quedistingue o “rei” de um “cavalo”, mas sim, seu uso dentro

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

184

6 “Dito de outro modo, para Wittgenstein, mais importante que ouvir o serafetado pela tradição ou pelo uso da linguagem, é poder olhar e descre-ver as regras válidas usadas na linguagem. Para tanto, exige-se um sujei-to cogniscente que, do lado de fora, observe e descreva o que aconteceou execute as regras para compreendê-las, sem mostrar os impactos queele padece ao jogar” (ROHDEN, 2002:133).

Page 197: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

da dinâmica do jogo; no Direito, esse fenômeno se repete: oDireito não apresenta “a priori” nenhuma distinção, porexemplo, entre direitos de públicos ou direitos privados, oumesmo uma separação convincente entre direitos indivi-duais, coletivos e difusos, por meio de uma justificaçãoontológica limitada ao nível de uma semântica, ao contráriodo que quer uma dogmática que, lançando mão de um rolde conceitos e classificações exaustivos, quase poderia con-correr com a Botânica ou com a Entomologia. Ao invésdisso, o Direito pressupõe uma prática argumentativa, daí aobservação do nível pragmático existente na linguagem.7

Ao que nos parece, Wittgenstein identificaria umaforma de “platonismo” na postura assumida pela dogmáticajurídica tradicional: a norma se situaria em um plano com-pletamente independente da situação de aplicação (GÜN-THER, 1993:92-93). Essa norma – ou melhor, essa regra – játraria em si, antecipadamente a qualquer situação, suas con-dições de aplicação; por isso as análises se limitariam aencontrar o significado isolado da norma – bem semelhanteà proposta de Kelsen (1999:390) de encontrar um quadro quecomporte todas as possíveis interpretações de uma determi-nada regra. Todavia, a questão levantada ressurge. Ao con-trário da proposta dogmática semântica, uma compreensãoda dimensão pragmática existente no Direito leva-nos a con-cluir que não é possível compreender o significado de umanorma da perspectiva do observador – alguém externo àspráticas sociais que acontecem no interior de uma dadasociedade, mas somente como um co-participante do

O Poder Judiciário e(m) Crise

185

7 Verificamos isso na leitura procedimental veiculada no ensinamento deCattoni de Oliveira: “Conforme o caso, por exemplo, o direito ao meioambiente saudável pode ser tratado argumentativamente como questãointerindividual de direito de vizinhança, como condições adequadas de tra-balho de uma categoria profissional ou, até mesmo, como direito das gera-ções futuras: depende da perspectiva argumentativa, se individual, coleti-va, social ou difusa de quem o defende em juízo” (2003:137, grifos nossos)

Page 198: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

mesmo “jogo de linguagem”. Também, não podemos aplicaruma norma sem que nos remetamos a um processo voltadoa compreender o seu significado, por sua vez, também liga-do à atividade de interpretação. Esse ponto nos leva aosestudos empreendidos por Gadamer (2001; 2002).

Há ainda um desdobramento importante da teoria deWittgestein para o Direito. Waismann desenvolveu, a partirdos estudos do filósofo austríaco, uma pesquisa que condu-ziu à tese da textura aberta da linguagem, que serviu debase, de acordo com Bix (1991:51), para os estudos de Hart(1994) sobre a “textura aberta do Direito”. Segundo Hart, alinguagem traz em si uma infinidade de incertezas. Tomandoseu exemplo, isso fica bem claro: imagine que exista umaregra que proíba veículos no parque. Segundo o jurista, nagrande maioria das vezes, essa questão não levantaria maio-res problemas, de modo que sua complexidade potencialpassaria despercebida; mesmo assim, alguém poderia vis-lumbrar alguns casos de penumbra quanto ao significado dotermo “veículo”, por exemplo: uma bicicleta poderia ser con-siderada um veículo? E quanto a patins? E uma charrete?Esse, segundo Hart (1994:148), seria um problema que reve-laria a existência da “textura aberta do Direito”:

“A textura aberta do direito significa que há, na verda-de, áreas de conduta em que muitas coisas devem serdeixadas para serem desenvolvidas pelos tribunais oupelos funcionários, os quais determinam o equilíbrio, àluz das circunstâncias, entre interesses conflitantesque variam em peso, de caso em caso” (1994:148).

Isso significa que o legislador não seria uma razãoabsoluta – nem dela precisaria – capaz de imaginar em abs-trato todas as possíveis interpretações que uma regra podeter. Os tribunais, por meio de um poder discricionário,preencheriam essas lacunas existentes no processo de

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

186

Page 199: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

interpretação das regras, como uma legítima função criado-ra do Direito. Isto é, diante de um caso difícil – caso no qualinexistiria a incidência de uma regra expressa, os tribunaisestariam autorizados a criar uma nova regra e aplicá-la demaneira retroativa ao caso sob julgamento. Isso, para Hart,não pode ser considerado um problema, mas uma solução;por meio desse poder de criação, os tribunais seriam capa-zes de atualizar o Direito, interpretando de maneira razoá-vel as regras existentes e aplicando-as a situações que nãopoderiam ter sido previstas pelos legisladores.

Todavia, a saída teórica encontrada por Hart – a discri-cionariedade judicial, que também está no projeto deKelsen – será duramente criticada por Dworkin e Habermas,uma vez que o magistrado, ao se transformar em legisladorsupletivo, ultrapassaria o limite de sua atividade, produzin-do decisões carentes de legitimidade. De qualquer forma, asolução encontrada por Hart parece desconhecer a propos-ta de Gadamer, que apresenta uma versão complementar aogiro lingüístico, que lançará luzes sobre o pensamento des-ses dois autores atuais, influenciando-os.

Habermas (2004:86) lembra que a análise realizada porGadamer ultrapassa definitivamente a dimensão semânticada linguagem, atingindo a pragmática através da busca deentendimento mútuo entre o autor e o intérprete. Para tanto,fará uso do diálogo8 como caso pragmático da compreensãoentre interlocutores que buscam entender-se sobre algo.Contudo, o diálogo em Gadamer não pode ser tomado comoum método para a realização de sua hermenêutica, mas

O Poder Judiciário e(m) Crise

187

8 No diálogo, lembra Habermas (2004:86): “[...] a intersubjetividade de ummundo da vida partilhado, ancorado nas perspectivas (reciprocamentereferentes e ao mesmo tempo permutáveis) entre primeira e segundapessoas, entrelaça-se com a referência a alguma coisa no mundo objeti-vo, da qual justamente se fala algo”. Segundo Rohden (2002:181): “O diá-logo mostra melhor a dimensão do processo relacional do saber, enquan-to o jogo e o circulo hermenêutico ressaltam a subjetividade afetadadaquele que joga ou compreende compreendendo-se circularmente”.

Page 200: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

antes para sustentar a impossibilidade de um conhecimen-to que não seja finito, datado e histórico (GRONDIN,1999:181). O título de seu próprio livro – Verdade e Método –já traz algo bem sugestivo: o método em nada encerra ocaminho para a verdade. Ao contrário, a compreensão faz-se por meio de um processo dialógico-lingüístico. Dessaforma, Gadamer vai contra a tese defendida peloHistoricismo e pelo Positivismo, no sentido de que as cha-madas “ciências do espírito” (Geisteswissenschaften) nãonecessitam de desenvolver seu método próprio para que, sóassim, possam gozar do status de ciência.” Com tal postu-ra, ele levanta-se contra a tradição até então dominante –da qual fazem parte pensadores como Schleiermacher9 eDilthey10 e, especialmente, no Direito, Betti.11

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

188

9 Schleiermacher é responsável por lançar as bases de uma teoria geral dahermenêutica, compreendendo que a atividade de interpretação não estárestrita à leitura de obras escritas, como por exemplo, os textos bíblicos,mas ela é universal, presente em toda situação na qual a compreensão érequisitada. Palmer (1986:96) explica que “o objectivo [deSchleiermacher] não é atribuir motivos ou causas aos sentimentos doautor (psicanálise), mas sim, reconstruir o próprio pensamento de outrapessoa através da interpretação das suas expressões lingüísticas”.Reconstruindo esse pensamento, afirma Grodin (1999:128): “Para enten-der realmente um discurso, isto é, para banir o risco sempre ameaçadordo equívoco, devo poder reconstruí-lo a partir da base e em todas as suaspartes. Na compreensão não se trata do sentido que eu insiro no objeto,porém do sentido, a ser reconstruído, do modo como ele se mostra a par-tir do ponto de vista do autor”.

10 Segundo Pereira (2001:14), Dilthey direcionou seus estudos “rumo à fun-damentação epistemológica das denominadas Ciências do Espírito(Geisteswissenschaften), almejando construir uma teoria objetivamentecomprovável que alçasse status científico autônomo em relação àsCiências da Natureza”. Sua grande contribuição foi situar a possibilida-de de compreensão dentro da História, e não fora dela (2001:16). O pró-prio Gadamer (2003:28) assim define o objetivo de Dilthey: “ele pretendedescobrir, nos confins da experiência histórica e da herança idealista daescola histórica, um fundamento novo e epistemologicamente consisten-te; é isso que explica a sua idéia de completar a crítica da razão pura deKant com uma ‘crítica da razão histórica’”.

11 Segundo Palmer (1986:55), Betti segue a tradição de Dilthey e “(...)preten-de nos dar uma teoria geral do modo como «as objetivações» da experiên-

Page 201: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

O que Gadamer pretende demonstrar é que a herme-nêutica não pode mais ser instrumentalizada como se fosseuma ferramenta para destrancar o significado oculto de umtexto ou para esclarecer uma determinada passagem obs-cura. Muito mais que isso, a hermenêutica é uma atividadeque acontece a todo momento, como lembra o autor:

“A interpretação, tal como hoje a entendemos, se apli-ca não apenas aos textos e à tradição oral, mas a tudoque nos é transmitido pela história: desse modo fala-mos, por exemplo, da interpretação de um evento his-tórico ou ainda da interpretação de expressões espiri-tuais e gestuais, da interpretação de um comporta-mento, etc. Em todos esses casos, o que queremosdizer é que o sentido daquilo que se oferece à nossainterpretação não se revela sem mediação, e que énecessário olhar para além do sentido imediato a fimde descobrir o ‘verdadeiro’ significado que se encontraescondido. Essa generalização da noção de interpreta-ção remonta a Nietzsche. Segundo ele, todos os enun-

O Poder Judiciário e(m) Crise

189

cia humana podem ser interpretadas; defende veemente a autonomia doobjeto de interpretação e a possibilidade de uma «objectividade» históri-ca na elaboração de interpretações válidas”. Dessa forma, Betti não queromitir da interpretação o momento subjetivo, mas pretende afirmar quea subjetividade não pode interferir no objeto, o que possibilita, ainda,buscar uma interpretação objetiva. É importante lembrar que, para Betti,Gadamer – bem como Heidegger – representa um crítico dessa objetivi-dade buscada por ele, e suas teorias não fariam outra coisa senão“(...)pretender mergulhar a hermenêutica num pântano de relatividade,sem quaisquer regras. [Por isso mesmo, é] a integridade do próprioconhecimento histórico que está a ser atacada e é preciso defendê-la comfirmeza” (PALMER, 1986:56). A interpretação seria para esse autor umaforma de reconhecer e reconstruir o significado que o autor da obra foicapaz de incorporar nela. Complementa Palmer (1986:67): “Betti, seguin-do Dilthey, na busca de uma disciplina de base para asGeisteswissenschaften, procura o que é prático e útil para o intérprete.Pretende normas que distingam uma interpretação certa de uma inter-pretação errada, que difiram um tipo e outro de interpretação”.

Page 202: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

ciados provenientes da razão são suscetíveis de inter-pretação, posto que o seu sentido verdadeiro ou realnos chega sempre mascarado ou deformado por ideo-logias” (GADAMER, 2003:19).

Um pressuposto da hermenêutica gadameriana é oconceito de horizonte, trazido de Husserl, representado nãocomo algo rígido, mas como algo que se desloca junto à pes-soa, permitindo o acesso dela ao mundo e envolvendo-a:

“Horizonte é o âmbito de visão que abarca e encerratudo o que é visível a partir de um determinado ponto.(...) A linguagem filosófica empregou essa palavra,sobretudo desde Nietzsche e Husserl, para caracteri-zar a vinculação do pensamento à sua determinidadefinita e para caracterizar, com isso, a lei do pregressode ampliação do âmbito visual. Aquele que não temum horizonte é um homem que não vê suficientemen-te longe e que, por conseguinte, supervaloriza o quelhe está mais próximo. Pelo contrário, ter horizontessignifica não estar limitado ao que há de mais próxi-mo, mas poder ver além disso. Aquele que tem hori-zontes sabe valorizar corretamente o significado detodas as coisas que caem dentro deles, segundo ospadrões de próximo e distante, de grande e pequeno.A elaboração da situação hermenêutica significaentão a obtenção do horizonte de questionamento cor-reto para as questões que se colocam frente à tradi-ção” (GADAMER, 2001:452).

Cada pessoa tem diante de si um horizonte, principal-mente um horizonte histórico, que atua não como elementolimitador, mas como “condição de possibilidade” de nossacompreensão (OLIVEIRA, 2001:227-228). É por isso que

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

190

Page 203: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

Gadamer, apoiando-se principalmente no modo de ser doDasein (do ser-aí) heideggeriano, vai afirmar que

“(c)ompreendemos e buscamos verdade a partir dasexpectativas de sentido que nos dirigem e provêm denossa tradição específica. Essa tradição, porém, nãoestá a nosso dispor: antes de estar sob nosso poder,nós é que estamos sujeitos a ela. Onde quer que com-preendamos algo, nós o fazemos a partir do horizontede uma tradição de sentido, que nos marca e precisa-mente torna essa compreensão possível. Ela é instân-cia a partir de onde toda e qualquer compreensão atualé determinada, possibilitada” (OLIVEIRA, 2001:228).12

Esses horizontes, ou antecipações de sentido, funcio-nam como verdadeiros pré-conceitos – entendidos sem acarga pejorativa que muitas vezes lhes atribuímos (KUSCH,2001:262). Dessa forma, podemos falar em um conhecimen-to apartado da História,13 isto é, a compreensão se faz apartir de uma imersão em determinada tradição, operando

O Poder Judiciário e(m) Crise

191

12 Oliveira (2001:228) faz uma observação: “Não se trata mais de uma sub-jetividade pura isolada do mundo e da história, mas de uma subjetivida-de que se constitui enquanto tal condicionada e marcada por seu mundo,que, por sua vez, é historicamente mediado e lingüisticamente interpre-tado. Aqui se dá um ‘movimento de superação’ da filosofia da subjetivi-dade numa direção contrária ao que aconteceu no estruturalismo:enquanto o estruturalismo pretende superar a filosofia da subjetividadedescendo ao que é anterior ao sujeito, isto é, às estruturas inconscientesque constituem a língua, a hermenêutica supera a filosofia da subjetivi-dade na medida em que tematiza o contexto da tradição, na qual o sujei-to emerge como sujeito”.

13 “A consciência histórica propõe-se a tarefa de compreender todos os tes-temunhos de uma época a partir do espírito dessa época, desvinculando-os das realidades atuais que nos prendem à vida presente. Busca aindaconhecer o passado sem preciosismo e superioridade moral, como umpassado humano igual ao nosso” (GADAMER, 2002:257).

Page 204: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

de maneira circular, condicionada à revisão sempre cons-tante das pré-compreensões do indivíduo:14

“Daí o caráter circular de toda compreensão: ela semprese realiza a partir de uma pré-compreensão, que é pro-cedente de nosso próprio mundo de experiência e decompreensão, mas essa pré-compreensão pode enri-quecer-se por meio da captação de conteúdos novos.Precisamente o enraizamento da compreensão nocampo do objeto é a expressão desse círculo inevitávelem que se dá qualquer compreensão. Por essa razão, areflexão hermenêutica é essencialmente uma reflexãosobre a influência da história, ou seja, uma reflexão quetem como tarefa tematizar a realidade da “história agin-do” em qualquer compreensão. Numa palavra, a herme-nêutica desvela a mediação histórica tanto do objeto dacompreensão como da própria situacionalidade do quecompreende” (OLIVEIRA, 2001:230).

Não podemos, contudo, confundir o círculo hermenêu-tico com uma mera tautologia ou com um círculo vicioso:15

a circularidade traçada pela hermenêutica ressalta o fatode que não existe uma interpretação única ou definitiva dequalquer texto. Por conseguinte, a circularidade é aberta,de modo que a compreensão não retorna ao mesmo lugarde partida, expandindo-se. Não se trata ainda de um únicocírculo, mas de um movimento circular que engloba umainfinidade de círculos concêntricos. Cuida-se de um movi-mento de pré-compreensão e compreensão, que, por sua

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

192

14 Dito de outra forma, tem-se que a compreensão está condicionada a umapré-compreensão, que funciona como antecipação da abertura para omundo, uma antecipação do sentido, que gera condições de acesso àcoisa que vem ao encontro (GADAMER, 2002:261).

15 Rohden (2002:160) ilustra a situação do círculo vicioso com a metáfora dosujeito que quer sair de um poço puxando-se pelos seus próprios cabelos.

Page 205: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

vez, torna-se uma nova pré-compreensão e abre as portaspara uma compreensão (ROHDEN, 2002:167):

“Com o modelo estrutural do círculo hermenêutico épossível superar a clássica dicotomia entre explicar ecompreender ou interpretar e compreender, uma vezque ele mostra que há uma compreensão originária,anterior ao momento temático, que denominamos deontológico – que o círculo hermenêutico permite expli-citar, e que mostra a impossibilidade do retorno aoponto inicial, à Ítaca, ileso das marcas do tempo e doespaço. A esquizofrenia filosófica sujeito-objeto não éresolvida pela eliminação ou supremacia de um dospólos, mas pelo reconhecimento da existência e cons-tituição de ambos tensional e circularmente – o quecorporifica no termo enquanto” (ROHDEN, 2002:170).

Gadamer acrescenta à sua teoria a figura da fusão dehorizontes (Horizontverschmelzung) como forma de com-preensão recíproca entre pontos situados em horizontesdivergentes (HABERMAS, 2004:86). O texto e o intérpretepassam a dividir um horizonte comum. Não há uma relaçãode apropriação pelo intérprete do texto, há um diálogo,seguido de perguntas e respostas, no qual o intérprete par-ticipa, “ouvindo” o que o texto tem para dizer (KUSCH,2001:259; PALMER, 1986:210): 16

O Poder Judiciário e(m) Crise

193

16 “O intérprete cuidadoso colocará aqueles tipos de perguntas ao textoque exponham seus próprios preconceitos e até os ameacem. O intérpre-te cuidadoso fortalece as visões do texto tanto quanto possível, a fim detestar a verdade referente a suas próprias visões. Precisa ser evitada umafusão direta do horizonte do texto com o horizonte do intérprete, umaassimilação do texto nos termos do conhecimento do intérprete. E o queo intérprete precisa fazer para reduzir a velocidade do processo de assi-milação é distinguir cuidadosamente entre seu próprio horizonte e o hori-zonte do texto” (KUSCH, 2001:260).

Page 206: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

“Na medida em que cada intérprete se situa num novohorizonte, o evento que se traduz linguisticamente naexperiência hermenêutica é algo novo que aparece,algo que não existia antes. Neste evento, fundado nalingüisticidade e tornado possível pelo encontro dia-léctico com o sentido do texto transmitido, encontra aexperiência hermenêutica a sua total realização”(PALMER, 1986:211).

Mas ainda parecia ficar em aberto a questão sobre averdade ou a falsidade do que é compreendido. Contraisso, Gadamer desenvolveu a noção de história efetual(Wirkungsgeschichte).17 Para tanto, ele serviu-se de umaidéia presente nas teorias literárias desde o século XIX,como explica Grondin:

“Nela se torna claro, que as obras, em determinadasépocas especificas, despertam e devem mesmo des-pertar diferentes interpretações. A consciência da his-tória efetual, a ser desenvolvida, está inicialmente emconsonância com a máxima de se visualizar a própriasituação hermenêutica e a produtividade da distânciatemporal. Porém, a consciência da história efetual sig-nifica, para Gadamer, algo muito mais fundamental.Pois para ele, ela goza do status de um ‘princípio’, doqual se pode deduzir quase toda a sua hermenêutica”(1999:190).

Para além do universo literário, Gadamer insere anoção de história efetual em um processo universal (ontoló-gico). Em um primeiro nível, vai significar a exigência de

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

194

17 “A pré-compreensão que um intérprete leva para o texto que cumpreinterpretar já é, quer ele queira quer não, impregnada e marcada pelahistória dos efeitos do próprio texto” (HABERMAS, 2004:87).

Page 207: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

tomada de uma consciência histórica, que revela a própriasituação hermenêutica do intérprete. Porém, Gadamerreconhece que essa história efetual não está à disposiçãodo intérprete, não podendo ser controlada por ele; trata-sede uma submissão a essa tradição.18 Ela marca o reconhe-cimento da finitude humana, sem contudo gerar uma atro-fia da reflexão (GRONDIN, 1999:191-192).

Gadamer também foi importante para resolver asseparações rígidas que até então existiam entre compreen-são/interpretação/aplicação. Isso porque o compreender játraz em si a noção de aplicação de um sentido à situaçãopresente, de modo que não podemos falar em compreenderum sentido apartado de uma atividade de aplicação emface de uma realidade determinada.19 É por isso que a com-preensão e a aplicação coincidem no ato de interpreta-ção,20 que Gadamer chamou de applicatio. E tal noção éfundamental ao Direito:

“A estreita pertença que unia na sua origem a herme-nêutica filológica com a jurídica repousa sobre o reco-nhecimento da aplicação como momento integrantede toda compreensão. Tanto para a hermenêutica jurí-dica como para a teológica, é constitutiva a tensão queexiste entre o texto proposto – da lei ou da revelação –

O Poder Judiciário e(m) Crise

195

18 Grondin (1999:191) lembra que Gadamer afirmou que a consciência dahistória efetual seria propriamente “mais ser do que consciência”; segun-do ele, ela “(...) impregna a nossa ‘substância’ histórica de uma forma quenão permite ser conduzida à última nitidez e distância” (1999:191).

19 “A interpretação não é um ato posterior e oportunamente complementarà compreensão, porém, compreender é sempre interpretar, e, por conse-guinte, a interpretação é a forma explícita da compreensão” (GADAMER,2001:459).

20 “[...] na compreensão, sempre ocorre algo como uma aplicação do texto aser compreendido, à situação atual do intérprete. Nesse sentido nosvemos obrigados a dar um passo mais além da hermenêutica romântica,considerando como um processo unitário não somente a compreensão einterpretação, mas também a aplicação” (GADAMER, 2001:460).

Page 208: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

por um lado, e o sentido que alcança sua aplicação aoinstante concreto da interpretação, no juízo ou na pré-dica, por outro. Uma lei não quer ser entendida histo-ricamente. A interpretação deve concretizá-la em suavalidez jurídica. Da mesma maneira, o texto de umamensagem religiosa não deseja ser compreendidocomo um mero documento histórico, mas ele deve serentendido de forma a poder exercer seu efeito reden-tor. Em ambos os casos isso implica que o texto, lei oumensagem de salvação, se se quiser compreendê-loadequadamente, isto é, de acordo com as pretensõesque o mesmo apresenta, tem de ser compreendido emcada instante, isto é, em cada situação concreta deuma maneira nova e distinta. Aqui, compreender ésempre também aplicar” (GADAMER, 2001:461, grifosno original).21

A leitura gadameriana, complementando a tese dosjogos de linguagem de Wittgenstein, parece apontar parao fracasso das teorias semânticas, já que essas últimasignoram a complexidade e a dimensão histórica existentena linguagem e no Direito. Complexidade esta que serálevada a sério por Ronald Dworkin e Jürgen Habermas emsuas teorias.

Outra contribuição repousa no fato de ter demonstradoque o método em nada é elemento garantidor de racionali-dade ou mesmo de sucesso na modernidade, informaçãoesta que parece ainda escapar aos instrumentalistas (nacio-nais e internacionais), que ainda buscam saídas taumatur-

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

196

21 A partir dessa leitura, pode-se compreender como equívoco e limitado oconceito de interpretação adotado pela dogmática jurídica tradicional; vistoque ela toma a interpretação como sendo um recurso para descobrir o sen-tido do texto normativo quando há uma obscuridade presente. Como exem-plo, sugere-se esta obra clássica para o Direito: MAXIMILIANO, Carlos.Hermenêutica e aplicação do direito. 19 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001.

Page 209: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

gas para resolver os problemas do direito, principalmenteos problemas ligados à crise do judiciário e do “acesso àJustiça”. Basta lembrarmos, por exemplo, dos projetos de“modernização” do processo defendidos por Cappelletti eMarinoni, por exemplo; bem como da crítica do último àordinarização do processo de conhecimento, de modo adepositar uma “fé” nos procedimentos especiais individua-lizados para tutela de direitos. Ou seja, para o processualis-ta paranaense, o método de decisão encerrado no procedi-mento é que seria o culpado pela ausência de efetividadedos provimentos jurisdicionais e uma solução, naturalmen-te em sua ótica, só poderia ser buscada na substituição poroutro método – um novo procedimento. Igualmente, a críti-ca anteriormente exposta a Fazzalari se mostra eivada domesmo equívoco de compreensão: a teoria do processocomo procedimento em contraditório seria falha porque nãoobserva um “método” de garantia de direitos fundamen-tais. Ora, o que parece olvidar Marinoni é que na realidadeFazzalari já perfez o caminho do giro lingüístico – quer emsua versão pragmática, quer em sua versão hermenêutica –adquirindo a consciência de que o método não é o caminhomágico para livrar a humanidade de suas mazelas. Na rea-lidade, o processualista italiano não assume a uma teoriasemântica do direito e, por isso mesmo, mantém a figura doprocesso (e não do procedimento) aberta à participaçãodaqueles que serão seus destinatários. Com isso, os precon-ceitos judiciais são suspensos e iniciamos um momento defusão de horizontes entre os sujeitos processuais na buscade uma construção conjunta do provimento Estatal. Aqui, éo processo de construção e não a resposta final (ao contrá-rio de Marinoni) que está sendo legitimada.

Passamos à análise do pensamento e da proposta deRonald Dworkin para o direito, uma vez que o mesmo seapresenta como o principal crítico no cenário internacionaldas teorias semânticas, notadamente do positivismo jurídi-

O Poder Judiciário e(m) Crise

197

Page 210: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

co e do realismo jurídico. Sua obra ao pretender levar asério o direito, apresenta uma defesa dos direitos (funda-mentais) sobre as questões de interesse coletivo, o que éuma discussão que parece, também, ficar a margem ouesquecida pelos juristas brasileiros.

4.3. As contribuições de Ronald Dworkin e sua Teoria do Direito como Integridadepara a construção de um “acesso à Justiça” qualitativo

Ronald Dworkin, ex-professor de Oxford e da N.Y.U.,tornou-se conhecido no cenário brasileiro por apresentaruma distinção entre princípios e regras como espécies deum gênero maior, normas jurídicas. Todavia, aqui não resi-de sua maior contribuição e nem mesmo encerra sua genia-lidade, fruto de uma herança hermenêutica. Sem dúvida,será no decurso de um diálogo com as teorias semânticasque a proposta dworkiana ganha forma. A discussão sobreprincípios e regras, iniciada na década de 60, foi apenas oponto de partida para uma discussão muito maior com teo-rias positivistas e com teorias realistas.

O que pretende é elevar o direito a um nível de discus-são superior do já habitualmente travado, mostrando quena realidade o que está por detrás é uma discussão sobrequal concepção (e não qual conceito) de direito pode serusada para trazer uma melhor justificativa nas nossas prá-ticas sociais, principalmente para a explicitação da relaçãoexistente entre legitimidade do Direito e exercício racionalda coerção oficial.22

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

198

22 Na introdução da obra, O Império do Direito, Dworkin coloca seu ponto devista: “O presente livro expõe, de corpo inteiro, uma resposta que venhodesenvolvendo aos poucos, sem muita continuidade, ao longo de anos: ade que o raciocínio jurídico é um exercício de interpretação construtiva,de que nosso direito constitui a melhor justificativa do conjunto de nos

Page 211: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

De maneira geral, aos olhos da sociedade, o Direitoparece estar mais presente quando se observa um proces-so perante o Poder Judiciário,23 isto é, como questão inter-na a um processo jurisdicional, que desperta, a princípio,três tipos de questionamento que são bastante relevantespara uma compreensão adequada do Direito: questões defatos, questões de Direito e questões ligadas à moralidadepolítica e fidelidade.

Ao lado dessas questões, temos as proposições jurídi-cas24 – isto é, “todas as diversas afirmações que as pessoasfazem sobre aquilo que a lei lhes permite, proíbe ou autori-za” (Dworkin, 1999:6) – e as questões ligadas aos funda-mentos do Direito – ou seja, quando juristas – em sentidoamplo (magistrados, advogados, etc.) – discutem sobreuma proposição jurídica. Essa discussão pode abarcar doisníveis: divergências empíricas sobre o Direito (qual a lei aser aplicada ao caso?) ou divergências teóricas sobre oDireito (concordando com a aplicação de uma determinadalei, ainda assim discutem se essa esgota ou não os funda-mentos pertinentes do Direito).25

O Poder Judiciário e(m) Crise

199

sas práticas jurídicas, e de que ele é a narrativa que faz dessas práticasas melhores possíveis” (1999:XI).

23 Kelly (1996:267) explica que a opção pelo Judiciário como figura de refe-rência em Dworkin, na realidade, compõe a sua crítica ao positivismojurídico, pois, para essa tradição, a referência recai primordialmentesobre a atividade legislativa, tomando a atividade judicante como umasituação de segundo plano e de menor relevância.

24 Segundo Dworkin (1999:6), as proposições jurídicas variam de declara-ções muito gerais – como “a Constituição proíbe o tratamento discrimi-natório em razão da opção religiosa” – até declarações bem menosgerais, ou até concretas – como “a lei exige que a Acme Corporationindenize John Smith pelo acidente de trabalho que sofreu em fevereiroúltimo”. Essas proposições são muitas vezes avaliadas como verdadeirasou falsas – mas há quem sustente que elas podem ser mais bem descri-tas como “bem fundadas” ou “infundadas”; todavia essa distinção nãotraz qualquer acréscimo à discussão.

25 Na divergência empírica, por exemplo, juristas concordariam que a velo-cidade máxima no Estado da Califórnia é de 90 km/h, uma vez que há, na

Page 212: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

Já nas questões de fato, “a discussão centra-se a res-peito de eventuais controvérsias empíricas ligadas aoseventos concretos e históricos que sustentam a lide”(SOUZA CRUZ, 2003:26-27), uma compreensão das ques-tões jurídicas como de fato acaba por reduzir o Direito, afir-mando que ele “nada mais é que aquilo que as instituiçõesjurídicas, como as legislativas, as câmaras municipais e ostribunais, decidiram no passado” (DWORKIN, 1999:10).Destarte, as questões sobre os fundamentos do Direitopoderiam ser resolvidas através de uma visita aos arquivosque guardam essas decisões. E mais, não haveria sentidona divergência teórica sobre o Direito:26 toda divergênciaseria aparente, estaríamos deixando de compreender o queo Direito é, para perder tempo discutindo o que o Direitodeveria ser.27 Em outras palavras, seria uma discussão polí-

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

200

lei de trânsito, uma afirmação expressa nesse sentido; todavia poderiamdiscordar desse limite se não houvesse a mesma afirmativa.Diferentemente é a divergência teórica, pois aqui parece haver um acordoentre os juristas sobre o que “dizem” a legislação e as decisões judiciais;mesmo assim, discordam quanto àquilo que a lei de trânsito realmente é,uma vez que parece haver uma discussão no sentido de saber se o corpusdo Direito escrito ou o conjunto de decisões judiciais acabam por esgotarou não os fundamentos pertinentes ao Direito. Desse modo, a divergênciateórica é bem mais complexa do que uma mera discussão sobre quaispalavras estão presentes nos códigos, sendo bem mais problemática.

26 Todavia, a obra dworkiana (1999) sustenta a tese da divergência teóricado Direito; para tanto, o autor apresenta e reconstrói alguns casos bempopulares desse tipo de divergência: (1) Caso Elmer (Riggs v. Palmer –1889); (2) Caso Snail Darter (Tennessee Valley Authority vs. Hill – 1978);(3) Caso McLoughlin vs. O’Brian – 1983; e (4) Caso Brown vs. Board ofEducation of Topeka – Kansas – 1954.

27 Dworkin lembra que essa influência do positivismo – marcado por umforte arquimedianismo (ver nota abaixo) – pode ser sentida também nouniverso da Literatura, no qual alguns estudiosos buscam desesperada-mente desenvolver teorias que separem a interpretação da crítica literá-ria. Mas, para uma hermenêutica crítica, isso não é um problema: “[a]interpretação de um texto tenta mostrá-lo como a melhor obra de arteque ele pode ser, e o pronome acentua a diferença entre explicar umaobra e transformá-la em outra. Talvez Shakespeare pudesse ter escritouma peça melhor com base nas fontes que utilizou para Hamlet e, nessa

Page 213: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

tica travestida de discussão jurídica.28 Os partidáriosdessa tese devem enfrentar duas perguntas: (1) não deve-riam os juízes se limitar a aplicar o Direito existente, dei-xando para os legisladores – que exercem uma atividadevisivelmente política – o trabalho de aperfeiçoamento?; e(2) o que fazer quando, no curso de um processo, depara-mos com uma ausência de decisão institucional passada?29

O Poder Judiciário e(m) Crise

201

peça melhor, o herói teria sido um homem de ação mais vigoroso. Nãodecorre daí, que Hamlet, a peça que ele escreveu, seja realmente comoessa outra peça. Naturalmente, uma teoria da interpretação deve conteruma subteoria sobre a identidade de uma obra de arte para ser capaz dedistinguir entre interpretar e modificar uma obra” (2001:223, grifos no ori-ginal). O que se quer, então, afirmar é que, partindo dessas premissas,desaparecem os muros que separam uma teoria da interpretação de umadeterminada interpretação. Isto é: “Não há mais uma distinção categóri-ca entre a interpretação, concebida como algo que revela o real significa-do de uma obra de arte, e a crítica, concebida como avaliação de seusucesso ou importância. Ainda resta uma distinção, pois sempre existeuma diferença entre dizer quão boa pode se tornar uma obra e dizer quãoboa ela é. Mas convicções valorativas sobre a arte figuram em ambos osjulgamentos” (DWORKIN, 2001:227).

28 Dworkin (2004:2) chama de arquimedianismo (archimedeanism) as leitu-ras que buscam separar de maneira rígida o Direito da Política e daMoral. Mas o arquimedianismo não é um privilégio do Direito, encontran-do adeptos na tradição do Positivismo Filosófico e, por isso mesmo, repre-sentando uma leitura popular na Ciência, nas Artes, na Política, naFilosofia, etc. O argumento central e geral parte da afirmação da possibi-lidade de se vislumbrar uma meta-teoria que seria capaz de explicar aprática específica que eles estudam. Assim, em um nível, ter-se-iam asdiscussões sobre se algo ou uma idéia pode ser certo/errado, legal/ilegal,verdadeiro/falso, belo/feio; e, em outro nível mais elevado, o debate con-duziria à definição desses conceitos e categorias, isto é, as discussõesversariam sobre o que seja a beleza, a verdade, o justo, etc. Em sua dis-cussão com Hart (1994), Dworkin (2004) demonstrará como o seu ante-cessor poderia muito bem se considerar pertencente a essa linha de pen-samento, uma vez que não haveria como uma Teoria do Direito ser mera-mente descritiva, isto é, isenta de juízos de valor, como também espera-va Kelsen (1999). Como já visto com Gadamer (2001), a atividade de valo-ração comporia as pré-compreensões não podendo ser afastada.

29 Dworkin (1999:12) lembra que, no senso comum existente na sociedade,os repertórios de legislação e de jurisprudência conteriam normas jurídi-cas e interpretações capazes de abarcar cada questão que se possa tra-

Page 214: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

Importante lembrarmos que as teorias semânticas doDireito são teorias que se apóiam nesse ponto de vista; por-tanto, compreendem o Direito como simples questão de fato(DWORKIN, 1999:38). Nessa linha, existiriam regras queestabeleceriam a atribuição de significado a uma determi-nada palavra; os advogados, os magistrados e outros juris-tas, compartilhando dessas regras, poderiam decidir quan-do uma proposição jurídica seria verdadeira ou falsa.

As teorias positivistas, dessa forma, podem perfeita-mente ser compreendidas como exemplos de teoriassemânticas. Para essas teorias: (1) o Direito é formadoexclusivamente por um conjunto de regras, que podem serdiferenciadas das demais regras – por exemplo, as regrasde natureza moral – por meio de um critério que, ironica-mente, pode ser chamado de teste de pedigree da regra;30

(2) o conjunto de regras deve abranger, na maior medidapossível, as relações jurídicas existentes em uma socieda-de, mas no caso de lacuna – isto é, quando se está diantede um caso difícil –, o magistrado fica autorizado a decidircom base discricionária, inclusive indo além do Direito nabusca desse novo padrão de orientação; e (3) na ausênciade regra jurídica válida, compreende-se que não há obriga-ção jurídica; logo, quando o magistrado, no exercício de suadiscricionariedade, decide um caso difícil, ele não está

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

202

zer à presença de um juiz. Todavia, os acadêmicos partidários da tese doDireito como simples questão de fato reconhecem a possibilidade de lacu-na, isto é, de inexistência de qualquer decisão institucional anterior – sejaela legislativa ou judicial. Nesse caso, a solução vem pela via do uso dodiscernimento do magistrado, que cria uma nova norma, preenchendoassim a lacuna, e aplica-a retroativamente ao caso pendente de decisão.

30 Tomando como base a teoria de Austin, Dworkin mostra que o teste depedigree seria a afirmação de que o Direito é aquilo que o soberano dizser; correspondentemente, na tese sustenta por Hart, a regra de conhe-cimento desempenhará esse papel. Apesar de silente no texto, ao lançarum olhar sobre a teoria kelseniana, pode-se concluir que a norma funda-mental seria a candidata ao teste.

Page 215: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

fazendo valer um direito correspondente à matéria contro-versa; ele está, sim, criando normas jurídicas.31

Assim, na perspectiva do positivismo jurídico, a apli-cação do direito é fruto de uma atividade dedutiva e analí-tica, na qual o operador seleciona regras que melhor sub-sumem ao caso, para, em momento posterior, demonstrar asua correção. Todavia, como já reconhecido, nem sempreteríamos regras para regular as situação concretas, o quelevaria ao reconhecimento de um poder de criação norma-tiva aos magistrados, excepcionalmente.

Para negar a tese do positivismo, Dworkin apresenta aidéia do direito como um conceito interpretativo, tomandouma distinção hermenêutica entre três tipos de interpreta-ção: (1) a interpretação conversacional visa a descobrir osignificado do que outra pessoa nos diz, sendo imprescin-dível a análise de sons e signos usados. Desta forma, estáligada à intenção de um falante que transmite algo a umintérprete que se esforça em desvendar os motivos do ora-dor; (2) a interpretação científica – que se afasta da primei-ra por não ser intencional – volta-se para a descrição dacausalidade dos eventos naturais; e (3) na interpretaçãocriativa/construtiva, busca-se não a elucidação da vontadedo autor da obra ou do proferimento, exclusivamente, maspretende realizar a “fusão de horizontes” gadamerianaentre autor e intérprete. A interpretação do direito, então,estaria neste último grupo:

O Poder Judiciário e(m) Crise

203

31 Para tanto, basta observar a postura assumida por Kelsen em sua TeoriaPura do Direito, afirmando que a decisão do tribunal é discricionária, maspermaneceria como jurídica desde que estivesse incluída dentro da mol-dura de interpretações possíveis (1999:390). Contudo, após a edição de1960, Kelsen dá uma guinada completamente diferente em sua teoria –um giro decisionista, ao admitir que o tribunal possa escolher uma inter-pretação que se situe fora dessa moldura interpretativa (1999:392-395).Como bem afirma Cattoni de Oliveira (2001:51), tal posicionamento colo-ca em “panne” a teoria kelseniana, pois rompe com o postulado metodo-lógico da separação entre teoria e sociologia do Direito.

Page 216: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

“Dworkin estabelece três etapas de interpretação,com a finalidade de tornar a interpretação construtivainstrumento apropriado ao estudo do direito enquantoprática social. Observe-se apenas que a perspectivaaqui é analítica, não havendo diferenciação em graus.Primeiro, de acordo com Dworkin, deve haver umaetapa pré-interpretativa, na qual são identificados asregras e os padrões que se considerem fornecer o con-teúdo experimental da prática. Mesmo na etapa pré-interpretativa é necessário algum tipo de interpreta-ção. Em segundo lugar, deve haver uma etapa inter-pretativa em que o intérprete se concentra numa justi-ficativa geral para os principais elementos da práticaidentificada na pré-interpretativa. Isso vai consistirnuma argumentação sobre a conveniência ou não debuscar uma prática com essa forma geral, raciocinarno sentido de buscar formar um pensamento sistemá-tico sobre determinada matéria. A etapa pós-interpre-tativa ou reformuladora, a terceira e última etapa, con-siste na etapa na qual o intérprete ajusta sua idéiadaquilo que a prática “realmente” requer para melhorservir à justificativa que ele aceita na etapa interpre-tativa” (LAGES, 2001:40).32

O Direito – como um conceito interpretativo – exige,portanto, por parte da comunidade, um consenso inicial no

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

204

32 Araújo (2001:122) e Souza Cruz (2003:30-31) apresentam excelentesesquemas, que podem ser tomados como complementares a esse.Segundo este último autor, através da interpretação construtiva, Dworkinsupera o aguilhão semântico inerente ao positivismo, “[...] uma vez quepercebe haver elemento de mutação temporal no conceito interpretativodo Direito, próprio do ciclo paradigmático. Em outras palavras, a comuni-dade jurídica não possui um conjunto uniforme de compreensões sobreas proposições jurídicas, mas, ao contrário, tais compreensões se modifi-cam à medida que a sociedade se modifica também”.

Page 217: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

sentido de estabelecer quais práticas sociais são conside-radas jurídicas (nível pré-interpretativo).33

Nessa perspectiva, podemos compreender como Direitoo “sistema de direitos e responsabilidades que respondem a[um] complexo padrão: autorizam a coerção porque decorrede decisões anteriores do tipo adequado” (DWORKIN,1999:116). Todavia, esse conceito é provisório. Ele levantauma exigência no sentido de proceder a uma análise maisdetalhada de três concepções34 do Direito:35 o convenciona-lismo, o pragmatismo e o Direito como integridade.

Para o convencionalismo, o direito só se legitima quan-do sustentado por uma decisão política do passado, queseja tão clara, que promova o consenso entre os juristas,mesmo que estes possuam visões ideológicas distintas.

O Poder Judiciário e(m) Crise

205

33 Em sentido contrário, para o aguilhão semântico, a identificação dessaspráticas acontece por meio de uma definição comum daquilo que neces-sariamente configura um sistema jurídico, bem como das instituiçõesque o constituem (DWORKIN, 1999:114; ARAÚJO, 2001:123).

34 Deve-se atentar para a distinção dworkiana entre os termos concepção econceito: “o contraste entre conceito e concepção é aqui um contrasteentre níveis de abstração nos quais se pode estudar a interpretação daprática” (1999:87). Nessa lógica, tem-se que um conceito possuiria umconteúdo aberto que admite diferentes concepções, segundo uma pers-pectiva tomada. Falar em teoria sobre o conceito de Direito seria umretorno à tese semântica que justamente pretende ser combatida; a con-cepção de Direito, portanto, não está pautada sob regras básicas da lin-guagem de observação obrigatórias a todos que desejam fazer-se enten-der, mas antes disso, em uma compreensão interpretativa, temporal, quese mantém graças a um padrão de acordo e desacordo.

35 “As concepções do direito aprimoram a interpretação inicial e consensualque (...) proporciona nosso conceito de direito. Cada concepção ofereceas respostas relacionadas a três perguntas colocadas pelo conceito.Primeiro, justifica-se o suposto elo entre o direito e a coerção? Faz algumsentido exigir que a força pública seja usada somente em conformidadecom os direitos e responsabilidades que ‘decorrem’ de decisões políticasanteriores? Segundo, se tal sentido existe, qual é ele? Terceiro, que leitu-ra de ‘decorrer’ – que noção de coerência com decisões precedentes – éa mais apropriada? A resposta que uma concepção dá a essa terceirapergunta determina os direitos e responsabilidade jurídicos concretosque reconhece” (DWORKIN, 1999:117-118).

Page 218: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

Como lembra Álvaro Souza Cruz (2003:31), aqui, reduzimosa prática jurídica a uma questão de obediência e respeitoàs convenções pretéritas. No caso de anomia, ainda pesa-ria o poder discricionário (ou criativo como quer Hart) noqual o magistrado é autorizado pela convenção a criardireito novo. O convencionalismo fracassa como interpreta-ção da prática jurídica em função do seu aspecto negativo– isto é, ao afirmar que “[...] não existe direito a não seraquele que é extraído de decisões por meio de técnicas quesão, elas próprias, questões de convenção” (LAGES,2001:42). Esse fracasso decorre do fato de os magistradosse tornarem mais dedicados às fontes convencionais (legis-lação e precedentes) do que lhes permite o convencionalis-mo. Ou seja, eles se apegam a uma leitura do que “segu-rança jurídica”, entendida como previsibilidade, que aca-bam se esquecendo que o tempo promove uma modifica-ção na forma dos juristas se apropriarem das leis e dos pre-cedentes (SOUZA CRUZ, 2003:33). A proposta dworkiana,então, passa pelo fio de uma “coerência de princípios” emsubstituição ao modelo de “coerência de regras” dos con-vencionalistas, afinal a própria assunção da discricionarie-dade mina internamente a proposta convencionalista.

Já o pragmatismo, bem apoiado no Justice Holmes daSuprema Corte dos EUA, compreende que a lógica nãoexplica as decisões judiciais, de modo que o direito seria,na realidade, uma criação do Judiciário.36 Assume-se,então, uma perspectiva ultra-utilitarista na avaliação dedireitos individuais e interesses coletivos, subordinando osprimeiros aos segundos. Logo, abertamente rejeita umavinculação com as decisões passadas. Desse modo, os

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

206

36 O convencionalismo e o pragmatismo possuem uma diferença básica: osegundo afirma que as pessoas nunca têm direito a nada, a não ser àdecisão judicial, que, ao final, deve se revelar a melhor para a comunida-de como um todo; e, por essa razão, não necessita estar atrelada a nenhu-ma decisão política do passado (DWORKIN, 1999:186).

Page 219: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

direitos subjetivos consagrados por legislações passadasdevem ser tratados de modo estratégico, como elementoscuja existência está condicionada a um melhor servir acomunidade, a longo prazo (DWORKIN, 1999:187).

Assim, enquanto o juiz convencionalista deve ter osolhos voltados para o passado, o olhar de um pragmático seremete ao futuro; podendo, para tanto, deixar de respeitar acoerência de princípio com aquilo que outras autoridadespúblicas fizeram ou farão. As decisões do passado são ape-nas expedientes de convencimento para uma decisão pre-viamente tomada e pautada por uma escolha política ou porvalores de preferência do julgador (SOUZA CRUZ, 2003:37).

Por isso, no pragmatismo, parece desaparecer qual-quer separação entre legislação e aplicação judicial doDireito: o juiz, ao se posicionar desvinculado de toda equalquer decisão política do passado, pode decidir oscasos concretos aplicando um direito novo que ele mesmocriou. Mais uma vez, afasta-se a coerência de princípios emfavor de uma perspectiva de bem estar coletivo.

Contra ambas as perspectivas, Dworkin apresenta suaTese da Integridade do Direito, que pretende considerarcomo elemento central a coerência de princípio. A integrida-de não despreza os ideais de equanimidade (fairness), justiça(justice) e devido processo legal (procedure due process) pre-sentes nas teorias políticas utópicas; ela na realidade exige

(...) “do Estado ou da comunidade considerados comoagentes morais, quando insistimos em que o Estadoaja segundo um conjunto único e coerente de princí-pios mesmo quando seus cidadãos estão divididosquanto à natureza exata dos princípios de justiça e[equanimidade] corretos” (DWORKIN, 1999:202).

Resumindo a tese: a integridade nega que as manifes-tações do Direito sejam meros relatos factuais voltados

O Poder Judiciário e(m) Crise

207

Page 220: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

para o passado, como quer o convencionalismo; ou progra-mas instrumentais voltados para o futuro, como pretende opragmatismo. Para o Direito como integridade, as afirma-ções jurídicas são, ao mesmo tempo, posições interpretati-vas voltadas tanto para o passado quanto para o futuro(DWORKIN, 1999:272-273).37

Uma sociedade que aceite a integridade como virtudese transforma, segundo Dworkin, em um tipo especial decomunidade que promove sua autoridade moral para assu-mir e mobilizar o monopólio da força coercitiva. Esse é o casoda comunidade de princípios, que segue a seguinte idéia:

“Se as pessoas aceitam que são governadas não porregras explícitas, estabelecidas por decisões políticastomadas no passado, mas por quaisquer outras regrasque decorrem dos princípios que essas decisões pres-supõem, então o conjunto de normas públicas reco-nhecidas pode expandir-se e contrair-se organicamen-te, à medida que as pessoas se tornem mais sofistica-das em perceber e explorar aquilo que esses princí-

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

208

37 “O direito como integridade, portanto, começa no presente e só se voltapara o passado na medida em que seu enfoque contemporâneo assim odetermine. Não pretende recuperar, mesmo para o direito atual, os ideaisou objetivos práticos dos políticos que primeiro o criaram. Pretende, sim,justificar o que eles fizeram (...) em uma história geral digna de ser con-tada aqui, uma história que traz consigo uma afirmação complexa: a deque a prática atual pode ser organizada e justificada por princípios sufi-cientemente atraentes para oferecer um futuro honrado. O direito comointegridade deplora o mecanismo do antigo ponto de vista de que ‘lei élei’, bem como o cinismo do novo ‘relativismo’. Considera esses dois pon-tos de vista como enraizados na mesma falsa dicotomia entre encontrare inventar a lei. Quando um juiz declara que um determinado princípioestá imbuído no direito, sua opinião não reflete uma afirmação ingênuasobre os motivos dos estadistas do passado, uma afirmação que um bomcínico poderia refutar facilmente, mas sim, uma proposta interpretativa:o princípio se ajusta a alguma parte complexa da prática jurídica e a jus-tifica; oferece uma maneira atraente de ver, na estrutura dessa prática, acoerência de princípio que a integridade requer” (DWORKIN, 1999:274).

Page 221: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

pios exigem sob novas circunstâncias, sem a necessi-dade de um detalhamento da legislação ou da juris-prudência de cada um dos possíveis pontos de confli-to” (DWORKIN, 1999:229).

A integridade, portanto, funciona como um elementode promoção da vida moral e política dos cidadãos, fundin-do circunstâncias públicas e privadas, além de criar umainterpenetração dessas questões. A política ganha um sig-nificado mais amplo: transforma-se em uma arena de deba-tes sobre quais princípios a comunidade deve adotar comosistema, bem como sobre que concepções de equanimida-de, justiça e devido processo legal adjetivo devem pressu-por. Os direitos e deveres políticos dos membros dessacomunidade não se esgotam nas decisões particularestomadas pelas instituições, sendo dependentes do sistemade princípios que essas decisões pressupõem e endossam.

Mas como fica, então, a questão no plano da aplicaçãojudicial do direito? Para responder a tal indagação, devemosantes compreender que o modelo dworkiano não reduz odireito a um conjunto de regras, mas sim, o compreender nasua melhor luz, afirmando a existência de princípios jurídi-cos que permitem conectar decisões (legislativas e judi-ciais) do passado através de um mesmo fio lógico-argumen-tativo, dotando-os de integridade e, por isso, pressupondoque tais decisões foram tomadas por um mesmo corpo cole-tivo, qual seja, por uma mesma comunidade de princípios.

É importante esclarecer que a leitura que Dworkinfaz dos princípios jurídicos em nada se confunde com aleitura de Alexy. Dworkin, assumindo as conseqüênciasdo giro lingüístico, afirma que a diferença entre princípiose regras decorre simplesmente de uma ordem lógico-argu-mentativa e não morfológica, como, por exemplo, defendeAlexy (1998). Ou seja, é apenas na argumentação – e atra-vés dela – que podemos considerar se estamos diante de

O Poder Judiciário e(m) Crise

209

Page 222: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

uma regra ou de um princípio. Logo, não existem regrasmágicas (semânticas) como quer o jurista de Kiel. Outrainformação fundamental é que para Dworkin a aplicaçãodos princípios jurídicos não se dá de maneira proporcio-nal, nem demanda a construção de um instrumental comoa regra de proporcionalidade de Alexy; eles são aplicadosatravés de uma construção hermenêutica, que buscadesenvolver para aquela comunidade uma idéia de direi-to como um conjunto sistêmico e harmônico de princípios.Logo, não há que se falar em princípios como mandamen-tos (ou comandos) de otimização, pois eles não se confun-dem com valores, conservando a sua natureza bináriatípica do direito. A questão toda deve ser resolvida nadimensão da adequação do princípio (Günther, 1993) enão da ponderação.

Na realidade, uma das maiores preocupações do autorera, e continua sendo, a distinção entre princípios (propria-mente ditos) e as diretrizes políticas (polices): um princípioprescreve um direito e, por isso, contém uma exigência dejustiça, equanimidade, devido processo legal, ou qualqueroutra dimensão de moralidade; ao passo que uma diretrizpolítica estabelece um objetivo a ser alcançado, que, geral-mente consiste na melhoria de algum aspecto econômico,político ou social da comunidade, buscando promover ouassegurar uma situação econômica, política ou social con-siderada desejável (DWORKIN, 2002:36; 2002:141-142).

Princípios, lembra Galuppo (2002:186), estabelecemdireitos individuais e ligam-se a uma exigência universali-zável, ao passo que diretrizes políticas fixam metas coleti-vas, relacionadas sempre com o bem-estar de uma parcelada sociedade, mas nunca com sua totalidade, haja vista aexistência de diversas compreensões concorrentes de vidaboa em uma sociedade pluralista. O jurista de Oxford atri-buirá o status de trunfos aos argumentos de princípios, de

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

210

Page 223: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

modo que, em uma discussão, esses devem se sobrepor aargumentos pautados em diretrizes políticas (2002: 298).

Dessa forma, as teses que sustentam a discricionarie-dade judicial apontam apenas para a ausência de regras,não de normas, quando diante de um caso difícil. Uma aná-lise da história institucional daquela sociedade pode indicarprincípios jurídicos capazes de fornecer soluções para o casosub judice. Por essa razão, a “função criativa” dos tribunais,defendida por Hart (1994:335) para os casos difíceis – ou seja,diante de um caso para o qual não exista uma resposta ime-diata nem na legislação, nem nos anais do Congresso ou dequalquer outra instituição – é rechaçada por Dworkin, o qualcompreende que apenas o legislador é autorizado a criardireito (BILLIER e MARYIOLI, 2005:426). Essa afirmaçãoexpressa uma vedação importante à atividade jurisdicional:a possibilidade de que os tribunais, se tomados como repre-sentantes do Poder Legislativo, também devessem ser com-petentes para proceder à adesão de argumentos de políticae à adesão de tais programas gerados.

Em casos abarcados pela legislação, fica fácil vislum-brarmos o uso de argumentos de princípio; todavia, noscasos difíceis, muitas vezes o que percebemos é que osjuízes acabam lançando mão de razões justificadas à luzde diretrizes políticas.38 No caso de uma decisão que

O Poder Judiciário e(m) Crise

211

38 Dworkin (2002:131) utiliza como exemplo de uma decisão pautada emuma diretriz política o caso Spartan Steel & Alloys Ltd. vs. Martin & Co.,[1973] 1 Q.B. 27. Aqui os empregados do réu haviam rompido um caboelétrico pertencente a uma companhia que fornecia energia ao autor daação, de modo que este foi forçado a fechar sua fábrica durante o perío-do de manutenção do cabo, gerando prejuízos econômicos. A perguntaposta para o tribunal foi se o demandante tinha direito a ser indenizadoem razão de sua perda econômica – o que é uma questão de princípio –e não se a questão poderia ser resolvida concluindo-se que seria econo-micamente sensato repartir a responsabilidade pelo acidente, comosugerido pelo demandante – o que é um argumento derivado de umadiretriz política. Todavia, o tribunal não poderia ter feito às vezes deórgão legislativo, de modo que a segunda opção para argumentar suadecisão não estaria disponível, conforme critica Dworkin (2002:132).

Page 224: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

observe um princípio, temos um outro quadro: primeiro,porque esse tipo de argumento nem sempre se fundamen-ta na busca pela equivalência de diversos interesses emconflito; e por outro lado, o magistrado, nesse caso, não sevê pressionado por uma maioria política, mas sim, vincula-do à história institucional,39 que não representa uma res-trição vinda de fora, imposta aos juízes, mas um compo-nente da decisão, já que compõe o pano de fundo de qual-quer juízo sobre os direitos. Juízes, portanto, devem assu-mir que suas decisões trazem em si uma carga de respon-sabilidade política, exigindo dos mesmos uma coerênciade princípios.40

Para melhor ilustrar esta mudança de postura porparte dos juízes, Dworkin parte de um exemplo imaginário,uma metáfora ilustrativa, que chama de Hércules, que édescrito como é um juiz filósofo dotado de sabedoria epaciência sobre-humanas, capaz de resolver os casos difí-ceis através de uma análise completa da legislação, dosprecedentes e dos princípios aplicados ao caso:

“Ao decidir um caso difícil Hércules sabe que os outrosjuízes decidiram casos que, apesar de não guardaremas mesmas características, tratam de situações afins.Deve, então, considerar as decisões históricas comoparte de uma longa história que ele deve interpretar e

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

212

39 “A história institucional da sociedade, nesta perspectiva, não age comoum limite, ou um constrangimento à atividade jurisdicional. Ao contrário,ela atua como um ingrediente desta atividade [...]. Os direitos dos indiví-duos são, ao mesmo tempo, frutos da história e da moralidade de umadeterminada comunidade. Estes direitos dependem das práticas sociaise da justiça das suas instituições” (KOZICK, 2000:184-185).

40 “Um argumento de princípio pode oferecer uma justificação para uma deci-são particular, segundo a doutrina da responsabilidade, somente se forpossível mostrar que o princípio citado é compatível com decisões anterio-res que não foram refeitas, e com decisões que a instituição está prepara-da para tomar em circunstâncias hipotéticas” (DWORKIN, 2002:138).

Page 225: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

continuar, de acordo com suas opiniões sobre o melhorandamento a ser dado à história em questão. Hérculesadota o direito como integridade, uma vez que estáconvencido de que ele oferece tanto uma melhor ade-quação quanto uma melhor justificativa da práticajurídica como um todo” (LAGES, 2001:47).

A construção da metáfora do juiz Hércules, entretan-to, não encerra o trabalho de construção da teoria dwor-kiana, ao contrário do que pesam as leituras preguiçosasde muitos juristas nacionais. Mesmo que possamos consi-derar que a decisão atingida aqui obedeça a um processoreconstrutivo capaz de indicar com segurança uma – eapenas uma – “resposta correta”,41 duas outras idéiasserão fundamentais para a compreensão completa da pro-posta desse autor: a metáfora do romance em cadeia e acomunidade de princípios.

A compreensão adequada do romance em cadeiaparece lançar novas luzes na discussão sobre o solipsismode Hércules. A compreensão de que a atividade decisóriados juízes não se produz no vácuo, mas sim, em constantediálogo com a história, revela as influências da hermenêu-tica gadameriana. Todavia, Dworkin, como já foi explicado,é defensor de uma interpretação construtiva e, por issomesmo, de uma teoria hermenêutica crítica: a decisão deum caso produz um “acréscimo” em uma determinada tra-dição. Isso é bem ilustrado quando comparamos a dinâmi-

O Poder Judiciário e(m) Crise

213

41 Segundo Habermas (1998:283): “La teoría del juez Hércules reconcilia lasdecisiones racionalmente reconstruidas del pasado con la pretensión deaceptabilidad racional en el presente, reconcilia la historia con la justicia.Esa teoría disuelve la «tensión entre la originalidad del juez y la historiainstitucional … los jueces han de emitir fallos nuevos sobre las pretensio-nes de partes que se presentan ante ellos, pero estos derechos políticosno se oponen a las decisiones políticas del pasado, sino que las reflejan»”.

Page 226: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

ca de aplicação judicial do Direito com um pitoresco exercí-cio literário:42

“Em tal projeto, um grupo de romancistas escreve umromance em série; cada romancista da cadeia interpre-ta os capítulos que recebeu para escrever um novocapítulo, que é então acrescentado ao que recebe oromancista seguinte, e assim por diante. Cada umdeve escrever seu capítulo de modo a criar da melhormaneira possível o romance em elaboração, e a com-plexidade dessa tarefa reproduz a complexidade dedecidir um caso difícil de direito como integridade”(DWORKIN, 1999:276).

Assim, mesmo o primeiro escritor terá a tarefa deinterpretar a obra em elaboração, bem como o gênero quese propõe a escrever. Por isso, cada romancista não temliberdade criativa, pois há um dever de escolher a interpre-tação que, para ele, faça da obra em continuação a melhorpossível.43 O que se espera nesse exercício literário é que o

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

214

42 Dworkin (1999:276) reconhece que esse empreendimento pode ser consi-derado fantástico, mas não impossível: “Na verdade, alguns romancesforam escritos dessa maneira, ainda que com uma finalidade espúria, ecertos jogos de salão para os fins de semana chuvosos nas casas decampo inglesas têm estrutura semelhante. As séries de televisão repe-tem por décadas os mesmos personagens e um mínimo de relação entrepersonagens e enredo, ainda que sejam escritas por diferentes grupos deautores e, inclusive, em semanas diferentes”. Todavia, Dworkin(1999:276) faz uma advertência: “Em nosso exemplo, contudo, espera-seque os romancistas levem mais a sério suas responsabilidade de conti-nuidade; devem criar em conjunto, até onde for possível, um só romanceunificado que seja da melhor qualidade possível”.

43 A questão pode ser, então, examinada pelo prisma de duas dimensõesmuito utilizadas: “a dimensão ‘formal’, que indaga até que ponto a inter-pretação se ajusta e se integra ao texto até então concluído, e a dimen-são ‘substantiva’, que considera a firmeza da visão sobre o que faz comque um romance seja bom e da qual se vale a interpretação” (DWOR-KIN:2001:236). Mas ainda assim é possível uma discordância razoável,

Page 227: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

romance seja escrito como um texto único, integrado, e nãosimplesmente como uma série de contos espaçados e inde-pendentes, que somente têm em comum os nomes dos per-sonagens. Para tanto, deve partir do material que seu ante-cessor lhe deu, daquilo que ele próprio acrescentou e –dentro do possível – observando aquilo que seus sucesso-res vão querer ou ser capazes de acrescentar.

O Direito segue a mesma lógica: tanto na atividadelegislativa quanto nos processos judiciais de aplicação, oque chamamos de Direito nada mais é do que um produtocoletivo de uma determinada sociedade em permanente(re)construção:44

O Poder Judiciário e(m) Crise

215

sem que, contudo, se caia no ceticismo de afirmar que tudo é uma ques-tão meramente subjetiva. “Nenhum romancista, em nenhum ponto, serácapaz de simplesmente ler a interpretação correta do texto que recebe demaneira mecânica, mas não decorre desse fato que uma interpretaçãonão seja superior às outras de modo geral. De qualquer modo, não obs-tante, será verdade, para todos os romancistas, além do primeiro, que aatribuição de encontrar (o que acreditam ser) a interpretação correta dotexto até então é diferente da atribuição de começar um novo romancedeles próprios” (DWORKIN, 2001:236-237).

44 Assim caem por terra as pretensões de teorias que busquem – quer naLiteratura, quer no Direito – atingir a interpretação do autor. Sobre esseponto devemos indagar: (1) é possível descobrir o que o autor realmentepretendia?; e (2) isso é realmente importante? O autor lembra que a pró-pria noção de “intenção” pode ser mais problematizada do que umamera descrição de um estado mental do autor. Através do exemplo deuma montagem contemporânea da peça shakespeariana O Mercador deVeneza, Dworkin ilustra que a repetição estrita das intenções do autor aoconceber a personagem Shylock pode representar uma traição ao própriopropósito do autor ao imaginá-lo e construí-lo inicialmente. O intérprete,então, tem a tarefa de fazer o que Gadamer nomeou de fusão de horizon-tes, de modo que a “interpretação deve, de alguma maneira, unir doisperíodos de ‘consciência’ ao transportar as intenções de Shakespearepara uma cultura muito diferente, situada no término de uma históriadiferente” (DWORKIN, 1999:68). Os intencionalistas, então, desconside-ram que um autor pode separar o que escreveu de suas intenções e cren-ças, de modo a tratá-las como objeto em si. Por isso mesmo, podemoscompreender que novas conclusões são possíveis, permitindo que umlivro possa ser lido de modo mais coerente, da melhor forma possível.Talvez fosse possível isolar as opiniões de um autor – fruto de um mo-

Page 228: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

“Cada juiz, então, é como um romancista na corrente.Ele deve ler tudo o que outros juízes escreveram nopassado, não apenas para descobrir o que disseram,ou seu estado de espírito quando o disseram, maspara chegar a uma opinião sobre o que esses juízesfizeram coletivamente, da maneira como cada um denossos romancistas formou uma opinião sobre oromance escrito até então. Qualquer juiz obrigado adecidir uma demanda descobrirá, se olhar nos livrosadequados, registro de muitos casos plausivelmentesimilares, decididos há décadas ou mesmo séculos pormuitos outros juízes, de estilos e filosofias judiciais epolíticas diferentes, em períodos nos quais o processoe as convenções judiciais eram diferentes. Ao decidiro novo caso, cada juiz deve considerar-se como parcei-ro de um complexo empreendimento em cadeia, doqual essas inúmeras decisões, estruturadas, conven-ções e práticas são a história; é seu trabalho continuaressa história no futuro por meio do que ele faz agora.Ele deve interpretar o que aconteceu antes porquetem a responsabilidade de levar adiante a incumbên-cia que tem em mãos e não partir em alguma novadireção” (DWORKIN, 2001:283).45

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

216

mento específico – mas, mesmo que isso fosse considerado como “inten-ções”, estaríamos ignorando outros níveis de intenções, como exemplo, aintenção de criar uma obra que não seja assim determinada. Mas issopassa despercebido pelos defensores da escola de intenção do autor, aotomarem o valor de uma obra de arte a partir de uma visão restrita àspossíveis intenções de quem a produziu.

45 Para ilustrar isso, temos a hipótese da tia que, pelo telefone, sofreu danoemocional ao saber que sua sobrinha tinha sido atropelada, vindo, aoingressar em juízo, argumentar a seu favor a aplicação de um preceden-te da Suprema Corte do Estado de Illinois, que considerou indenizável odano emocional de uma mãe que presenciasse o atropelamento de suafilha por um motorista negligente (DWORKIN, 2001:220). O juiz dessecaso “[...] deve decidir qual é o tema, não apenas do precedente especí-fico da mãe na rua, mas dos casos de acidente como um todo, inclusiveesse precedente. Ele pode ser obrigado a escolher, por exemplo, entre

Page 229: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

Nenhuma seqüência de decisões, contudo, é isenta deapresentar contra-exemplos; por isso mesmo é tão impor-

O Poder Judiciário e(m) Crise

217

estas duas teorias sobre o ‘significado’ da corrente de decisões. Segundoa primeira, os motoristas negligentes são responsáveis perante aquelesa quem sua conduta pode causar dano físico, mas são responsáveisperante essas pessoas por qualquer dano – físico ou emocional – querealmente causem. Se esse é o princípio correto, então a diferença deci-siva entre esse caso e o caso da tia consiste apenas em que a tia não cor-ria o risco físico e, portanto, não pode ser indenizada. Na segunda teoria,porém, os motoristas negligentes são responsáveis por qualquer danoque é razoável esperar que prevejam, se pensarem sobre sua condutaantecipadamente. Se é esse o princípio correto, então a tia tem direito àreparação. Tudo depende de determinar se é suficientemente previsívelque uma criança tenha parentes, além de seus pais, que possam sofrerchoque emocional ao saber de seu ferimento. O juiz que julga o caso datia precisa decidir qual desses princípios representa a melhor ‘leitura’ dacorrente de decisões a que deve dar continuidade” (DWORKIN, 2001:238-239). Dworkin (1985:179) fornece ainda um outro exemplo do que seriauma resposta correta, desta vez, através da crítica à decisão proferidapelo Juiz Bork no julgamento do caso Dronenburg v. Zech (741 F.2d 1388,D.C. Cir. 1984) e de sua reconstrução. Dronenburg processou a MarinhaNorte-Americana sustentando que sua dispensa se deu em prejuízo deseus direitos fundamentais, que foram violados. Em contrapartida, argu-mentaram que a causa de sua dispensa havia sido a acusação confessade ter tido relações homossexuais em um quartel. A decisão de Bork,contudo, limitou-se a afirmar, bem na esteira da tradição positivista, quenão existia nenhuma regra positivada na legislação norte-americana queconsagrasse uma proteção aos homossexuais. Logo, inexistiria qualquerdireito capaz de assegurar o que Dronenburg reivindicava para si.Todavia, Dworkin reconstruirá o caso para lembrar a Bork – textualista,isto é, um convencionalista que, como tal, defende que a Constituiçãonão contempla outros direitos que não sejam os que estão expressamen-te apresentados em seu texto e mais: que esses devem ser interpretadosde acordo com a intenção original dos constituintes (BRITO, 2005:58) –que as circunstâncias fáticas individualizadoras daquela demanda exi-giam um outro olhar. No Direito positivo norte-americano, existem a DueProcess Clause (Cláusula de Devido Processo) e um conjunto de prece-dentes que afirmam um direito fundamental à privacidade das pessoas.É claro que nenhum desses precedentes trata exatamente do problemade Dronenburg ou de direito para homossexuais. Mas essas decisõesindicam uma compreensão que a sociedade tem sobre a necessidade deproteção da privacidade de uma pessoa e da garantia de que o Estadonão poderá interferir em suas escolhas privadas (como por exemplo, oprecedente Loving v. Virginia, no qual foi declarada a inconstitucionali-dade da proibição de casamento inter-racial). Logo, o Direito não pode

Page 230: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

tante o desenvolvimento de uma teoria do erro no julga-mento dos casos anteriores.46 Além do mais, Hércules nãoestá sozinho. Seu trabalho se dá continuamente através deum franco diálogo com a história institucional de sua socie-dade, que está às suas costas; além disso, por força da exi-gência de integridade, ele é impulsionado a buscar semprea melhor decisão – o que faz com que seus olhos se voltempara o futuro, mas de modo que sempre permaneça a preo-cupação em manter uma coerência de princípio na funda-mentação de suas decisões.

No sentido dessa interpretação, a comunidade de prin-cípios se mostra como idéia fundamental, já que é ela con-dição de possibilidade para as metáforas do Juiz Hérculese do romance em cadeia. Para tanto, leva em conta quetodas as relações humanas pressupõem-se como relaçõessociais, devemos compreender melhor essa forma de asso-ciação, principalmente no seu aspecto político-jurídico.Esse modelo concorda

(...) “com o modelo das regras [no sentido de] que acomunidade política exige uma compreensão compar-tilhada, mas assume um ponto de vista mais generoso

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

218

ser meramente algo preso ao que foi estabelecido pelas convençõessociais do passado e, frente ao julgamento deste novo caso, é sim possí-vel falar que o argumento anteriormente suscitado em defesa da privaci-dade se estenda também aos homossexuais. Deve ser lembrado, portan-to, que não se está criando um direito com a decisão, mas sim, reinter-pretando o direito já existente a partir de uma base já posta, qual seja,de que as escolhas pessoais não devem ser sujeitas à interferência esta-tal. Uma decisão diversa, como a proferida pelo Juiz Bork, é sim uma res-posta que carece de correção.

46 Importante esclarecer que essa flexibilização não destrói a distinçãoentre interpretação e decisões novas sobre o que o Direito deve ser(DWORKIN, 2001:240-241). Um juiz, ao verificar a finalidade ou a funçãodo direito, acabará por assumir uma concepção de integridade e de coe-rência do Direito, tomado como uma instituição, o que irá tutelar e limi-tar suas convicções pessoais.

Page 231: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

e abrangente da natureza de tal compreensão. Insisteem que as pessoas são membros de uma comunidadepolítica genuína apenas quando aceitam que seus des-tinos estão fortemente ligados da seguinte maneira:aceitam que são governados por princípios comuns, enão apenas por regras criadas por um acordo político.Para tais pessoas, a política tem uma natureza diferen-te. É uma arena de debates sobre quais princípios acomunidade deve adotar como sistema, que concepçãodeve ter de justiça, [equanimidade] e [devido] proces-so legal e não a imagem diferente, apropriada a outrosmodelos, na qual cada pessoa tenta fazer valer suasconvicções no mais vasto território de poder ou deregras possíveis” (DWORKIN, 1999:254).

Logo, os direitos e deveres políticos dessa comunida-de não estão ligados apenas às decisões particulares toma-das no passado, mas sim, são dependentes de um sistemade princípios que essas decisões pressupõem ou endos-sam. A integridade é, então, compreendida como um idealaceito de maneira geral e, por isso mesmo, mostra-se comoum compromisso de pessoas, ainda que essas estejam emdesacordo sobre a Moral política (DWORKIN, 1999:255).Uma conclusão importante desse modelo é o igual respeitopara com os demais, de modo a não aceitar que nenhumgrupo seja excluído.47

Com Hércules, não poderia ser diferente: ele é ummembro dessa comunidade (DWORKIN, 1999:307; HABER-MAS, 1998:295). Logo, suas decisões devem refletir seucomprometimento com essa, demonstrando para ela que

O Poder Judiciário e(m) Crise

219

47 “Faz com que essas responsabilidades sejam inteiramente pessoais:exige que ninguém seja excluído; determina que, na política, estamostodos juntos para o melhor ou o pior; que ninguém pode ser sacrificado,como os feridos em um campo de batalha, na cruzada pela justiça total”(DWORKIN, 1999:257).

Page 232: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

compartilha dos mesmos princípios – ou seja, explicitandoa sua pertença, para usar a linguagem consagrada porGadamer. Cattoni de Oliveira (2002:91) lembra que o julga-dor deve se colocar na perspectiva de sua comunidade, con-siderada como uma associação de co-associados livres eiguais perante o Direito, assumindo uma compreensão críti-ca do Direito positivo como esforço dessa mesma comunida-de, para desenvolver da melhor maneira possível o “sistemade direitos fundamentais”. Com a comunidade de princípios,Dworkin expande o rol de co-autores no empreendimentodo romance em cadeia: como Günther (1995:45) observa,todo cidadão é um participante da corrente histórica doDireito, mesmo que virtual; autores e destinatários estão,então, ligados a um esquema coerente de princípios.

Além disso, Habermas (1998:292) coloca uma impor-tante questão: o juiz compartilha – como todo cidadão – deuma compreensão paradigmática do Direito, que fornecepara ele um estoque de interpretações da prática jurídica eorientações normativas, estoque esse compartilhado portodos os membros da comunidade.48 Tais paradigmasainda retiram o trabalho hercúleo dos ombros dos membrosdessa comunidade, fornecendo certezas em um mesmopano de fundo compartilhado.49

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

220

48 “Pues la precomprensión paradigmática del derecho sólo puede restrin-gir la indeterminación del proceso de decisión teoréticamente dirigido ygarantizar un grado suficiente de seguridad jurídica si es intersubjetiva-mente compartida por todos los miembros de la comunidad jurídica yexpresa una autocomprensión constitutiva de la comunidad jurídica.Mutatis mutandis, esto vale también para una comprensión procedimen-talista del derecho que cuenta de antemano con una competencia entrediversos paradigmas, regulada discursivamente. Por esta razón esmenester un esfuerzo cooperativo para invalidar la sospecha de ideolo-gía bajo la que tal comprensión de fondo se halla. El juez individual ha deentender básicamente su interpretación constructiva como una empresacomún, que viene sostenida por la comunicación pública de los ciudada-nos” (HABERMAS, 1998:295).

49 “Tales paradigmas descargan a Hércules de la supercompleja tarea deponer en relación con los rasgos relevantes de una situación aprehendida

Page 233: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

Logo, a teoria de Dworkin nos traz quatro pontos quesão merecedores de destaque, uma vez que são pertinen-tes ao presente debate: (1) a negativa da discricionarieda-de judicial; (2) a negativa de que decisões judiciais possamse apoiar em diretrizes políticas; (3) a importância da noçãode devido processo para a dimensão da integridade; e (4) aprópria noção de integridade, que levanta a exigência deque cada caso seja compreendido como parte de uma his-tória encadeada; não podendo, portanto, ser descartadosem uma razão baseada em uma coerência de princípios.

Ao longo do debate sobre o “acesso à Justiça” bemcomo sobre as medida de contenção da “crise do judiciá-rio”, os pontos acima levantados parecem estar omissos.Inúmeros processualistas, em geral ligados à EscolaInstrumentalista, parecem ver com bom olhos toda a gamade possibilidades criadas pelo Ordenamento Jurídico ecapazes de proporcionar soluções rápidas e céleres, muitasvezes – ou quase todos às vezes – através de um apelo àdiscricionariedade judicial ou em um recurso a diretrizespolíticas (por exemplo, a retenção de recursos através doartifício da repercussão geral, súmulas vinculantes, súmu-las impeditivas de recurso, o atual artigo 285-A do Códigode Processo Civil, o aumento dos poderes do relator emrecursos, etc.). Tais posturas, como já demonstramos, nãose coadunam com uma leitura procedimental do EstadoDemocrático de Direito, acabando por aniquilar qualquervestígio de legitimidade em seus provimentos e por isso,devem ser rechaçadas.

O Poder Judiciário e(m) Crise

221

de la forma más completa posible todo un desordenado conjunto de prin-cipios aplicables sólo prima facie, y ello a simple vista y sin más media-ciones. Pues entonces también para las partes será pronosticable el resul-tado, en la medida en que el correspondiente paradigma determine unacomprensión de fondo que los expertos en derecho comparten con todoslos demás miembros de la comunidad jurídica” (HABERMAS, 1998:292).

Page 234: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

Até aqui, então, temos com Dworkin a noção de trêsconquistas, pois: (1) consagra de maneira literal a noção deque os cidadãos devem ser os autores do Direito; (2) expli-ca a força de coesão existente entre os membros, pressu-pondo e reforçando os compromissos mútuos existentesentre os membros de uma comunidade, entendidos comolivres e iguais a partir de um esquema coerente de princí-pios; 50 e (3) veda a possibilidade de decisões judiciaisbaseadas em diretrizes políticas, ainda lembrando que taisdiretrizes vêm ceder aos direitos nos debates políticos.Todavia, um passo mais longo pode e deve ser dado, demodo que passamos à verificação das contribuições quepodem advir da teoria discursiva do direito e da democra-cia de Jürgen Habermas.

4.4. As contribuições de Jürgen Habermas esua Teoria Discursiva do Direito e daDemocracia para a construção de um“acesso à Justiça” qualitativo

Habermas inicia seu projeto filosófico para o direito(re)apresentando um problema ulterior, já discutido em

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

222

50 “But does ‘integrity’ itself represent a satisfactory version of the revisedtransmission belt model? Obviously, according to Dworkin, integrity isinternally linked to the legal practice of a community that accepts politicalautonomy or self-rule. This link becomes manifest in two ways. First,Dworkin takes the notion of the citizen as the law’s ‘author’ literally. If everycitizen is considered the (virtual) author of the law, he or she has to [inter-pret] this practice as that of writing a coherent narrative text which was ini-tiated by past authors and has to be continued by future ones. Second, inte-grity itself has an integrative force for the members of a community thatrules itself. It presupposes and endorses mutual commitments between themembers of the community, who treat each other as free and equal accor-ding to a coherent scheme of principles: […]. Integrity binds self-rule to acoherent scheme of principles, which applies to the authors of the law aswell as to the addressees. Hence, a community which governs itself accor-ding to integrity is also ‘a community of principle’” (GÜNTHER, 1995:45).

Page 235: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

obras passadas: a substituição da racionalidade instru-mental – adequação de meio a fins – por uma racionalida-de comunicativa. Esta perspectiva é necessariamente tri-butária ao movimento do giro lingüístico, de modo que alinguagem aqui não é apenas um instrumento para a com-preensão entre atores sociais, mas sim, a condição de pos-sibilidade dessa compreensão. E mais, se a racionalidadenão apenas está dirigida a execução de tarefas, mas envol-ve também a busca por um entendimento mútuo entre indi-víduos. Essa busca, contudo, não representa um aspectoisolado do fenômeno lingüístico, mas situa a linguagem nocentro do problema da integração social.

Resgata-se, então, as teorias de Austin (1971) eSearle,51 sobre os atos de fala para nos trazer uma idéiaimportante: quando falamos algo, também fazemos algo.Por isso mesmo, além de proferimentos constatativos – queinformam o ouvinte sobre algo no mundo – existem proferi-mentos performativos – que ao serem produzidos realizamuma determinada ação no mundo (GALUPPO, 2002:111).

A partir disso, Habermas nos apresenta uma impor-tante diferenciação que toma como base o fim do proferi-mento, se visando uma transmissão de uma informação ouse visando a busca por um entendimento entre sujeitos.

No primeiro caso temos o que denomina de ação estra-tégica: uma forma de ação lingüística – porém, semelhanteà ação instrumental52 – na qual o falante faz uso de outro

O Poder Judiciário e(m) Crise

223

51 Oliveira (2001:172-179) lembra que Searle difere-se de Austin por procu-rar analisar a linguagem a partir de um caso neutro, “puro”, o que con-duz à afirmação de que seus estudos adquirem um caráter expressa-mente formal. Sua preocupação é a tematização das “regras de uso” dalinguagem, visando à construção de uma linguagem “idealizada”, capazde servir como ferramenta metodológica a ser aplicada em uma lingua-gem ordinária.

52 Segundo Baxter (2002b:495): “Both instrumental action and strategicaction are oriented toward success rather than mutual understanding.They differ, however, along the lines of Habermas’s second distinction.

Page 236: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

indivíduo como meio (instrumento) para a realização de umfim (seu sucesso pessoal). Tem-se aqui uma busca pelosucesso perlocucionário, isto é, influenciar o ouvinte (quese transforma em mero objeto) para que este realize (oudeixe de realizar) o objetivo principal do falante (WHITE,1995:52). Dessa forma, o falante age na condição de obser-vador, ou seja, ele não se coloca na condição de participan-te da interação, nem busca saber sobre o reconhecimentoda pretensão levantada por parte do ouvinte; o que está emjogo é apenas a concretização de seu próprio sucesso pes-soal. A ação estratégica, portanto, vive de maneira parasi-tária, pois depende, para seu sucesso, de que, pelo menosuma das partes, tome como ponto de partida o fato de quea linguagem está sendo usada como forma de busca doentendimento (HABERMAS, 1990:73).53

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

224

Instrumental action is essentially the solitary performance of a task,according to ‘technical rules’. As such, instrumental action is ‘nonsocial’,in Habermas’s typology. Strategic action, by contrast, is designed to ‘-influenc[e] the decisions of a rational opponent,’ according to ‘rules ofrational choice.’ Instrumental actions may be elements of a pattern ofsocial action – either communicative or strategic – but they do not them-selves comprise a distinct type of social actions”.

53 Para Baxter (2002b:495), a distinção entre ação comunicativa e açãoestratégica torna-se mais nítida quando compreendida não pela ótica dasua orientação – se para o entendimento, se para o sucesso pessoal, massim quando vista pela perspectiva dos mecanismos de coordenação des-ses dois tipos de ações. No caso da ação comunicativa, a ação se desen-volve através da problematização de pretensões de validade criticáveis(verdade, correção e veracidade), que são intersubjetivamente alcança-das e reconhecidas através de argumentos racionais apresentados e sus-tentados pelos falantes. Diferentemente, a ação estratégica desenvolve-se através de um processo de influência de um dos falantes sobre osdemais. Por “influência”, Habermas quer expressar uma causa diversade uma pretensão de validade, capaz de gerar uma força de convenci-mento equivalente a um reconhecimento mútuo da validade de uma pre-tensão. Como Habermas (1990:73) afirmou, o agir estratégico é parasitá-rio, pois somente pode acontecer se pelo menos uma das partes acredi-tar que a linguagem está sendo utilizada para o entendimento. Um exem-plo é bem ilustrativo: F(falante) pretende, através de uma ordem a O(ouvinte), fazer com que este dê dinheiro a Y, possibilitando-o ter condi-

Page 237: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

O agir comunicativo, por sua vez, compreende a açãode uma pessoa para convencer outra da validade de suaspretensões. É uma ação que somente pode dar-se por umúnico meio: a fala, e pressupõe a produção de um entendi-mento (HABERMAS, 1987:1:367). Seu fim é, portanto, a pro-dução do efeito ilocucionário, ou seja, um consenso inter-subjetivamente reconhecido acerca da validade de umapretensão criticável.

“Como todo o agir, também o agir comunicativo é umaatividade que visa a um fim. Porém, aqui se interrom-pe a teleologia dos planos individuais de ação e dasoperações realizadoras, através do mecanismo deentendimento, que é o coordenador da ação. O “enga-te” comunicativo através de atos ilocucionários reali-zados sem nenhuma reserva, submete as orientaçõese o desenrolar das ações – talhadas inicialmente demodo egocêntrico, conforme o respectivo ator – àslimitações estruturais de uma linguagem compartilha-

O Poder Judiciário e(m) Crise

225

ções de realizar um assalto; todavia o crime – que não tem o assentimen-to de O – não ocorreria se este último soubesse dos reais interesses de Fe de Y. Nesse exemplo, tem-se o que Habermas (1990:75) denomina agirestratégico latente. Outra forma de influência, caracterizadora de umoutro tipo, o agir manifestamente estratégico, é o caso do assaltante queprofere uma ordem para que alguém lhe entregue dinheiro e bens de valor.Aqui, não há uma pretensão de validade subjacente a toda a dinâmica dainteração lingüística. As condições de aceitabilidade racional são substi-tuídas por condições de sanção. A linguagem preenche apenas a funçãode informação através da estrutura “se-então” da ameaça. Para melhoraclarar a questão, Habermas (1987:1:426) apresente o seguinte esquema:

Ação Ação SocialInstrumental Ação Ação Estratégica

ComunicativaAção Estratégica Ação Manifestamente

Latente EstratégicaEngano inconsciente Engano consciente (comunicação sistema- (manipulação)ticamente distorcida)

Page 238: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

da intersubjetivamente. O telos que habita nas estru-turas lingüísticas força aquele que age comunicativa-mente a uma mudança de perspectiva; esta se mani-festa na necessidade de passar do enfoque objetiva-dor daquele que age orientado pelo sucesso, isto é,daquele que quer conseguir algo no mundo, para oenfoque performativo de um falante que deseja enten-der-se com uma segunda pessoa sobre algo” (HABER-MAS, 1990:130, grifos no original).

Agora, então, fica mais fácil compreender, então, anova proposta de racionalidade: enquanto para Weber, todaação humana seria racional apenas se pudesse ser justifica-da à luz da seleção dos melhores meios para a realização deum fim (HABERMAS, 1987:1:361); para Habermas, alémdessa dimensão instrumental da racionalidade, há um nívelcomunicativo voltado para o entendimento entre os atoressociais.54 Como toda ação social, que requer uma forma deinteração lingüística, a racionalidade comunicativa estariana base da sociedade, permitindo a interação entre os ato-res e, conseqüentemente, sua integração.

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

226

54 A ação comunicativa distingue-se da ação instrumental (compreendidacomo modalidade de ação técnica que busca adequar racionalmente osmeios para se alcançar um fim determinado) por ser uma interação lin-güisticamente mediada voltada para o entendimento. Como bem lembraFreitag (2002:240), a ação comunicativa tem como mérito a superação dafilosofia da consciência e, com isso, a transformação da subjetividade emfavor de uma intersubjetividade. As interações lingüisticamente media-das devem pressupor a existência de um mundo da vida compartilhado,que atua como um pano de fundo de silêncio não problematizado. Assim,as proposições dele retiradas são irrefletidas e conduzem os falantes auma concordância à primeira vista. Contudo, pode acontecer que a pre-tensão de validade de uma dada proposição seja questionada em seuconteúdo de verdade da assertiva, na correção da norma apresentada ouna sinceridade do seu falante. O discurso é, então, a suspensão da pre-tensão de validade da proposição por meio de um procedimento funda-mentado em argumentos racionais até que se chega a um consenso, res-tabelecendo o curso normal da ação comunicativa.

Page 239: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

Uma compreensão adequada da racionalidade comuni-cativa fornece outra conseqüência importante: a suplanta-ção da racionalidade prática típica da filosofia da consciên-cia (mentalismo). Mais do que uma simples troca de etique-tas, a proposta habermasiana afirma que: a razão comuni-cativa distingue-se da razão prática, porque não está restri-ta a um ator particular – ou mesmo a um macrosujeito(Estado ou Sociedade). Ela é possibilitada pelo medium dalinguagem, que concatena interações e estrutura as formasde vida, de modo que, ao buscar um entendimento, os usuá-rios da linguagem ordinária devem pressupor, entre outrascoisas, que os participantes buscam seus fins ilocucionáriossem reservas, que eles vinculam seu acordo ao reconheci-mento intersubjetivo de pretensões de validade criticáveise que eles estão prontos a assumir as obrigações resultan-tes de um consenso, relevantes para as interações seguin-tes. O que, dessa forma, infiltra-se na base de validade dodiscurso também se comunica às formas de vida reproduzi-das através da ação comunicativa. A racionalidade comuni-cativa, portanto, expressa-se em um complexo descentrali-zado de condições transcendentalmente configurativas,mas ela não é uma faculdade subjetiva que diz aos atores oque devem fazer (HABERMAS, 1998:65-66); os indivíduosque atuam comunicativamente comprometem-se com pres-supostos pragmáticos, assumindo certas idealizações,55 de

O Poder Judiciário e(m) Crise

227

55 “Em primeiro lugar, (...) devem pressupor que estão atribuindo idênticosignificado aos proferimentos que utilizam, isto é, devem pressupor ageneralidade dos conceitos: presume-se que falantes e ouvintes podementender as expressões gramaticais que utilizam de forma idêntica (...).Em segundo lugar, eles devem pressupor que os destinatários estãosendo responsáveis, autônomos e sinceros uns com outros. Ou seja,devem pressupor que entre falante e ouvinte se estabelece uma relaçãode respeito e reconhecimento mútuo, caso contrário se estaria desquali-ficando o outro como interlocutor (...). E em terceiro lugar, pressupor quefalante e ouvinte vinculam os seus proferimentos a pretensões de valida-de que ultrapassam o contexto. Essas pretensões de validade são 1) àverdade proposicional (...); 2) à veracidade subjetiva (...); 3) à correçãonormativa (...)” (SALCEDO REPOLÊS, 2003:49-50).

Page 240: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

modo que serão os próprios atores sociais que, por meio dabusca pelo entendimento comum, chegarão a um consensosobre as normas de ação válidas.56

A assunção dessas idealizações como pressupostoscontrafáticos revela que a separação rígida – de referênciaplatônica – entre o que seja “real” e o que seja “idealidade”é posta em cheque. Cattoni de Oliveira (2002:37) esclareceque Habermas refere-se, em substituição, a uma tensão

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

228

56 Não é sem razão que posturas ainda apegadas à filosofia da consciênciacomo as teorias sobre a Instrumentalidade do Processo ou mesmo aTeoria da Proporcionalidade de Alexy podem ser consideradas como irra-cionais, uma vez que desconhecem a perspectiva comunicativa, de modoque ainda ficam presas a uma discussão instrumental (meio/fim) e reafir-mam a ultrapassada “fé” no método como garantia de um processo deprodução de um conhecimento objetivante. Na realidade, a propostahabermasiana é mais profunda, ao assumir uma perspectiva comunicati-va. Nessa, não é o método que garante a verdade/correção/veracidadeda pretensão de validade, mas é justamente o fato do argumento nelaveiculado poder convencer os outros. Assim, não basta o “convencimen-to” do sujeito, mas a capacidade de transmissão e reprodução deste paraos demais sujeitos participantes daquela interação. Aqui, por final, apa-rece uma distinção que escapa normalmente aos processualistas emmotivação e fundamentação da decisão. Enquanto no primeiro caso, háuma pretensão aceita como racional por um sujeito, no outro há um com-partilhamento da mesma pelos demais participantes (sujeitos proces-suais). Por isso mesmo, não é demais lembrar que a exigência constitu-cional não é (não apenas no plano semântico, mas sim pragmático) deuma fundamentação em substituição a arcaica motivação inscrita nosCódigos de Processo. Consequentemente, figuras, como o “prudentearbítrio” do magistrado, deixam de existir, bem como qualquer forma dediscricionariedade no curso dos procedimentos judiciais, haja vista quetodas as decisões deverão encontrar assentimento racional nos demaisparticipantes daquela prática. Ou seja, no momento em que o magistra-do utiliza razões capazes de convencer os demais da correção de suadecisão, ele escapa do plano individual (motivação – subjetividade) eadentra no plano social (fundamentação – intersubjetividade); e não hácomo fazer tal ato sem lançar mão de normas (regras ou princípios) jáestabelecidas como previamente válidas (prima facie) no seio de umadeterminada sociedade. Logo, ao invés de criar normas novas, ele ape-nas reconhece a existência de normas previamente fixadas não apenaspor um legislador político, mas presentes no pano de fundo de uma deter-minada sociedade e, por isso mesmo, legitimadas intersubjetivamente.

Page 241: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

entre realidade e idealidade: “(...) a realidade já é plena deidealidade, em razão dos próprios pressupostos lingüísti-cos contrafactuais presentes em toda interação comunica-tiva” (2002:37).57

Logo, é através da reconstrução da noção de raciona-lidade que se encontra o fio condutor para pensar o proble-ma da integração da sociedade. Mas uma advertência deveser feita: pensar a sociedade atual é pensar o problema dadiferença, é pensar o pluralismo; dessa forma, a ação socialvoltada para o entendimento adquire relevância, buscandocoordenar diversos planos de ação individuais.

É, diante desse quadro, que Habermas compreenderáa crescente importância atribuída ao Direito: de maneiradúplice, o Direito moderno é capaz de limitar o campo deações estratégicas por meio da imposição de sanções – demodo que essas se adaptem ao padrão de comportamentosocialmente aceito, revelando a tensão entre coerção factuale validade legitimadora – e de organizar o sistema econômi-co e o sistema administrativo, equilibrando-os com a racio-nalidade comunicativa (HABERMAS, 1998:102) de forma aconferir legitimidade aos seus imperativos funcionais e aintegrá-los nos processos de manutenção da ordem social.Mas, para que o Direito cumpra essa função, primeiro eledeve passar por um complexo processo de reconstrução.

O direito moderno, através de um longo processo his-tórico, conseguiu desgarrar-se do antigo amálgama norma-

O Poder Judiciário e(m) Crise

229

57 Por isso mesmo, a teoria habermasiana, como registra Cattoni de Oliveira(2002:36-37), não está presa “(...) a um único ponto de vista disciplinar,mas, pelo contrário, permanece aberta a diferentes pontos de vista meto-dológicos (participante x observador), a diferentes objetivos teóricos(explicação interpretativa e análise conceitual x descrição e explicaçãoempírica), a diferentes papéis sociais (do juiz, dos políticos, dos legislado-res, dos clientes e dos cidadãos) e a diferentes atitudes pragmáticas depesquisa (hermenêuticas, críticas, analíticas, etc.), a fim de que uma abor-dagem normativa não perca o seu contato com a realidade, nem uma abor-dagem exclua qualquer aspecto normativo, mas permaneçam em tensão”.

Page 242: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

tivo existente nas sociedades pré-modernas, que estabele-cia a sua estruturação interna na forma de um DireitoNatural. Por isso mesmo, na Modernidade, o direito se posi-tiva, encontrando na escrita a sua liberdade perante osdemais sistemas e perdendo a necessária vinculação éticade outrora. É no fato dele ser histórico, contingente e modi-ficável que se abre a possibilidade de crítica das normasjurídicas. O Direito se livra do elemento sagrado58 e, comisso, liga sua validade, necessariamente, ao fato de que osseus atingidos devem ser simultaneamente seus autores.

E com isso, o Direito moderno acaba por aliviar ossujeitos do fardo da integração social: os conflitos que tra-zem um alto grau de dissenso – principalmente porque osenvolvidos deixam de estar submetidos à busca por umentendimento mútuo – podem ser resolvidos a partir daprópria tensão entre facticidade (coerção) e validade (acei-tabilidade), garantindo uma resposta adequada e legítima;o mesmo, todavia, não pode ser constatado na posiçãodecisionista assumida pela tradição positivista ou pelosinstrumentalistas do processo, que viram as costas para aspretensões de legitimidade jurídica (HABERMAS,1998:101). Resumindo a questão, temos que:

“O papel principal do Direito no que se refere à inte-gração social se deve ao fato de que o risco do dissen-so resta neutralizado agora não mais por uma autori-

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

230

58 O Direito, portanto, é capaz de substituir o lugar das garantias metasso-ciais que – em sociedades tradicionais de tipo medieval – eram deriva-das de uma amálgama que estabilizava a tensão entre facticidade e vali-dade das pretensões, “na medida em que o ‘sagrado’ não só significavauma autoridade, como também limitava o campo de problematização”(CHAMON JUNIOR, 2005:227). As práticas passadas ao longo de cadageração seriam dotadas de uma natureza sagrada, imutável, o que asimunizaria de críticas, de modo que sua observância seria garantida pelomedo da sanção; isso acabaria por fundir facticidade (coerção/ameaça) evalidade (força vinculante).

Page 243: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

dade sacra ou por instituições fortes que mantinhamfora do criticável determinados conteúdos axiológicose deontológicos. O posto de centralidade do Direito sedeve a uma limitação na medida em que a validadedas normas não pode ser questionada quando de umapretensão individual orientada ao êxito. O Direito legí-timo é coercitivo e esta coercibilidade possível refletea aceitabilidade racional e não-questionabilidade davalidade desse fato – cisão entre facticidade e valida-de. Do contrário, o risco de dissenso estaria absurda-mente largado, o que colocaria em risco a própria soli-dariedade social garantida, em última instância, pelaação comunicativa que, assim, fica aliviada de buscarsoluções orientadas ao entendimento” (CHAMONJUNIOR, 2005:236).

Com o já mencionado processo de desencantamento,o Direito moderno se configura como parte de um sistemade normas positivas e obrigatórias; todavia, essa positivi-dade vem associada a uma pretensão de legitimidade, demodo que normas expressam uma expectativa no sentidode preservar eqüitativamente a autonomia de todos ossujeitos de direito (HABERMAS, 2002:286; CATTONI DEOLIVEIRA, 2004:174).

Segundo Habermas (2002:286), o processo legislativodeve ser suficiente para atender a essa exigência. Há umarelação entre o caráter coercitivo e a modificabilidade doDireito positivo, por um lado, e o processo de positivaçãoou de estabelecimento desse Direito capaz de gerar legiti-midade, por outro – isto é, uma relação entre Estado deDireito e democracia; contudo essa relação não é meramen-te fruto de uma histórica causal, mas uma relação concei-tual que está alicerçada nas pressuposições da práxis jurí-dica cotidiana.

O Poder Judiciário e(m) Crise

231

Page 244: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

“Isso porque na própria validade jurídica a facticidadeda imposição do Direito por via estatal entrelaça-secom a força legitimadora de um processo legislativoque pretende ser racional, justamente, por fundamen-tar a liberdade. Em outros termos, isso se revela nomodo ambíguo com que o próprio Direito se endereçaaos seus destinatários e deles espera obediência: elespodem agir estrategicamente em face das conseqüên-cias previsíveis de uma possível violação das normasou podem cumprir as normas por respeito aos resulta-dos da formulação comum da vontade que exige legi-timidade para si. O conceito kantiano de legalidade jáexpressava, segundo Habermas, esse duplo sentidoda validade jurídica: As normas jurídicas são a um sótempo ‘leis coercitivas’ e ‘leis de liberdade’” (CATTO-NI DE OLIVEIRA, 2004:175).

A validade de uma norma jurídica pode ser considera-da, portanto, como equivalente da explicação para o fato deo Estado garantir simultaneamente a efetiva imposição jurí-dica e a institucionalização legítima do Direito.59 Daí decor-re a pergunta: como se deve fundamentar a legitimidade denormas que podem, a qualquer momento, ser alteradas pelolegislador?60 Enquanto era possível recorrer a um DireitoNatural – quer de cunho religioso, quer metafísico – podía-mos tentar conter o “turbilhão da temporalidade” que o

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

232

59 “(...) ou seja, garantir de um lado a legalidade do procedimento no sentidode uma observância média das normas que em caso de necessidade podeser até mesmo impingida através de sanções, e, de outro lado, a legitimi-dade das regras em si, da qual se espera que possibilite a todo momentoum cumprimento das normas por respeito à lei” (HABERMAS, 2002:287).

60 Habermas (2002:287) lembra que mesmo as normas constitucionais, asquais deveriam ter uma maior permanência – sendo algumas, em tese,imodificáveis, como o caso das chamadas cláusulas pétreas – estão sujei-tas à alteração, até em caso extremo de mudança de regime ou alteraçãoda Constituição.

Page 245: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

Direito positivo atraía para si; mas, aliado à crescente des-sacralização das imagens de mundo e à desintegração deeticidades ou formas de vida tradicionais com o processo demodernização social e cultural, o Direito moderno, dotadode um caráter formal, exime-se da ingerência direta advin-da de uma “consciência moral remanescente” (HABER-MAS, 2002:288; CATTONI DE OLIVEIRA, 2004:176).

Destaca-se, então, tornando-se fundamental a idéia dedireitos subjetivos, que estão ligados a um conceito deliberdade de ação conforme o direito; desse modo, garan-tem aos sujeitos um espaço de ação de acordo com sua pró-pria preferência (HABERMAS, 2002:288; 1999:330), bemcomo de acordo com a máxima de que “tudo o que não estáproibido está permitido” (CATTONI DE OLIVEIRA,2004:176). Todavia, aqui não há uma continuidade com atradição privatística do século XIX, desligando-os de umasubordinação à Moral.

Com a Modernidade, ocorre uma separação funcionalentre Direito e Moral que pode ser explicada por um prismasociológico, não mais pela perspectiva de subordinação doprimeiro à segunda. Agora, afirma-se uma relação de com-plementariedade. Tanto o Direito quanto a Moral ainda bus-cam, sob ângulos diferenciados, respostas para as mesmasquestões: (1) como é possível ordenar legitimamente rela-ções interpessoais e coordenar entre si ações servindo-sede normas justificadas?; e (2) como é possível solucionarconsensualmente conflitos de ação na base de regras eprincípios normativos reconhecidos intersubjetivamente?

Todavia, uma Moral pós-tradicional representa apenasuma forma de saber cultural, enquanto o Direito apresenta-se também no nível institucional – isto é, além de um siste-ma de símbolos, o Direito é também um sistema de ação. Aopasso que na Moral, encontra-se uma simetria entre direitose deveres; no Direito, as obrigações resultam somente darestrição de liberdades subjetivas. Essa atribuição de privi-

O Poder Judiciário e(m) Crise

233

Page 246: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

légio aos direitos em face dos deveres pode ser explicadaatravés dos conceitos de sujeitos de direto e de comunida-de jurídica: “uma comunidade jurídica, situada no tempo eno espaço, protege a integridade de seus integrantes exata-mente na medida em que esses assumem o status de titula-res de direitos subjetivos” (CATTONI DE OLIVEIRA,2004:176). Em contrapartida, o universo moral não apresen-ta limites espaço-temporais, estendendo-se a todas as pes-soas em sua complexidade biográfica, plenamente indivi-dualizadas. Por isso mesmo, as matérias jurídicas são, aomesmo tempo, mais restritivas do que as questões morais emais amplas, uma vez que o Direito, como meio de organi-zação, não se refere exclusivamente à regulação de conflitosinterpessoais, mas também ao cumprimento de programaspolíticos e demarcações políticas de objetivos. Logo, as“regulamentações jurídicas tangenciam não apenas ques-tões morais em sentido estrito, mas também questões prag-máticas e éticas, como o estabelecimento de acordos entreinteresses conflitantes” (HABERMAS, 2002:289). Isso fazcom que a praxis legislativa dependa não só de discussõesmorais, mas de uma rede ramificada de discursos abertos arazões de outras ordens, bem como a negociações.

Uma vez que o Direito positivamente válido pode tirardas pessoas o ônus causado pelas grandes exigências(cognitivas, motivacionais e organizacionais) impostas poruma Moral ajustada segundo a consciência subjetiva; ele écapaz de compensar as fraquezas de uma moral exigente.Isso não libera os participantes de uma prática legislativaou jurisdicional da preocupação de que o Direito permane-ça em consonância com a Moral (HABERMAS, 2002:289;CATTONI DE OLIVEIRA, 2004:177); todavia as regulamen-tações jurídicas são complexas demais para serem legiti-madas por princípios morais. Habermas (2002:189) colocaentão uma questão importante: “(...) se o direito positivo

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

234

Page 247: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

não pode obter sua legitimidade de um direito moral supe-rior, de onde ele poderá obtê-la”?

A Moral, tanto quanto o Direito, deve defender a auto-nomia de todos os envolvidos e atingidos por suas normas;essas devem ser analisadas pelo prisma do princípio dodiscurso (D) – “são válidas as normas de ação às quais todosos possíveis atingidos poderiam dar o seu assentimento, naqualidade de participantes de discursos racionais”61 – que éneutro em relação ao Direito e à Moral, uma vez que suareferência se assenta em toda e qualquer norma de ação,sem qualquer especificação (LEITE ARAÚJO, 2003:167).

No caso da Moral, o Princípio (D) se especifica em umprincípio (U) que se refere a normas de ação que exigem,para serem justificadas, a consideração simétrica de todosos interesses;62 é, portanto, regulador dos argumentos –uma regra de argumentação (SALCEDO REPOLÊS,

O Poder Judiciário e(m) Crise

235

61 “En esta formulación se contienen conceptos que necesitan de explica-ción. El predicado «válido» se refiere a normas de acción y a los correspon-dientes enunciados normativos generales o universales; expresa un sen-tido inespecífico de validez normativa, que es todavía indiferente frente ala distinción entre moralidad y legitimidad. Por «normas de acción»entiendo las expectativas de comportamiento generalizadas en la dimen-sión temporal, en la social y en la de contenido. «Afectado» llamo a cual-quiera a quien puedan concernir en sus intereses las consecuencias a quepresumiblemente pueda dar lugar una práctica general regulada por nor-mas. Y por «discurso racional» entiendo toda tentativa de entendimientoacerca de pretensiones de validez que se hayan vuelto problemáticas, enla medida en que esa tentativa tenga lugar bajo condiciones de comuni-cación que dentro de un ámbito público constituido y estructurado pordeberes ilocucionários posibiliten el libre procesamiento de temas y con-tribuciones, de informaciones y razones. Indirectamente esa expresión serefiere también a las «negociaciones», en la medida en que éstas venganreguladas también por procedimientos discursivamente fundados”(HABERMAS, 1998:172-173, grifo no original).

62 Segundo Habermas (1989:147, grifos no original): “Toda norma válida temque preencher a condição de que as conseqüências e efeitos colateraisque previsivelmente resultem de sua observância universal, para a satis-fação dos interesses de todo indivíduo possam ser aceitas sem coaçãopor todos os concernidos”.

Page 248: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

2003:99) – que pergunta sobre a possibilidade de universa-lização de um determinado interesse, de modo que sua pre-tensão possa ser passível de aceitação e reconhecimentopelos seus afetados em qualquer tempo e contexto espa-cial.63 Diferentemente, o princípio discursivo democrático(De), especificação de (U) para o Direito, visa a explicar osentido performativo da prática da autodeterminação dosmembros de uma comunidade jurídica – estabelecida livre-mente – que reconhece seus membros como parceiroslivres e iguais (HABERMAS, 1998:175). Seu objetivo, então,é a “institucionalização de um procedimento legislativolegítimo, produzido discursivamente com a potencial parti-cipação de todos [os afetados]” (BAHIA, 2003:235). Deveser destacado que o princípio democrático não busca umconteúdo a priori às questões quando as mesmas são pro-postas, “mas apenas diz como podem a formação da opi-nião e da vontade serem institucionalizados por um siste-ma de direitos que assegura participação no processolegislativo em condições de igualdade” (BAHIA, 2003:236).Assim, aceita o risco de que qualquer tema ou contribui-ção, informação ou razão, sejam ventilados no espaçopúblico (HABERMAS, 1998:646).64 Essa formação da vonta-

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

236

63 “Isso quer dizer que as únicas regras que decidem em um discurso moralsão aquelas que justificam os interesses incorporados nas normas comouniversalizáveis. Ao regular quais razões podem ser aduzidas para justi-ficar os interesses incorporados nas normas, o princípio U opera no planoda constituição interna do jogo argumentativo. É nesse sentido que sepode afirmar, novamente, que ele é uma regra de argumentação” (SAL-CEDO REPOLÊS, 2003:99).

64 “Manifiestamente, la única fuente metafísica de legitimidad la constitu-ye el procedimiento democrático de producción del derecho. Pero, ¿quées lo que confiere a este procedimiento su fuerza legitimadora? A ello lateoría del discurso da una respuesta bien simple, que a primera vistaresulta bien improbable: el procedimiento democrático posibilita el libreflorar de temas y contribuciones, de informaciones y razones, asegura ale formación políticos de la voluntad su carácter discursivo fundado conella la sospecha falibilista de que los resultados obtenidos conforme alprocedimiento sean más o menos racionales” (HABERMAS, 1998:646).

Page 249: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

de é dependente de pressupostos comunicativos que asse-guram aos melhores argumentos a prevalência.

Assim, enquanto o princípio moral está correlacionadoao procedimento de validação de normas e discursosmorais, o princípio democrático mostra-se mais amplo, aber-to a outros tipos de razões. Com o processo de moderniza-ção, emerge a questão do pluralismo ideológico na socieda-de; a religião e o ethos nela enraizado se decompõem comofundamento público de validade de uma moral que pode sercompartilhada por todos. As regras morais passam a desig-nar o que é obrigatório para todos e, por conseguinte, uni-versalizável; ao passo que os pontos de vista éticos estãoligados a orientações axiológicas (de valor) pertencentes apessoas ou grupos. Questões éticas estão relacionadas aoponto de vista da primeira pessoa do plural (nós), de modoque se vinculam ao que os membros de uma determinadacomunidade entendem como critérios (ou valores) quedevem orientar suas vidas, isto é, o que pode ser considera-do como o melhor para nós (HABERMAS, 2002:38) – ques-tões acerca das concepções de vida boa ou, pelo menos, deuma vida que não seja mal sucedida.

Nesse sentido, as questões éticas não demandam umdescentramento do sujeito, que permanece ligado ao telosde uma vida comum da sociedade (HABERMAS,2000b:106). Por isso mesmo, questões que demandam umabusca sobre o que seja do interesse de todos apontam paramais além do que seja melhor para nós (Ética). Aqui,Habermas lembra as afirmações de Rawls e de Dworkinacerca da diferença entre o justo (moral) e o bom (ético) eda supremacia do primeiro sobre o segundo (HABERMAS,2002:41). O bom é aquilo almejado por um grupo de pes-soas, a partir de um valor compartilhado; a noção de justo,bem como a de direitos, por outro lado, traz uma compreen-são normativa da questão.

O Poder Judiciário e(m) Crise

237

Page 250: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

Nesta linha de raciocínio, normas e valores apresen-tam diferenças que não podem ser desconsideradas:65

(1) normas obrigam seus destinatários por igual e nãoapresentam exceções, enquanto valores exprimem concep-ções que são tidas como almejáveis e, por essa razão, podemser compreendidas à luz de uma ordem de preferência;

(2) normas, portanto, somente podem ser obedecidas –cumprindo sua função de estabilizar expectativas de com-portamentos generalizados – a partir de uma aplicação uni-versalmente integral e binária, isto é, algo é válido ou nãoé válido, sem uma terceira opção; ao passo que valores,representando uma ação direcionada, podem ser realizados

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

238

65 “A primeira distinção entre princípios [normas] e valores, propõeHabermas, é o caráter deontológico daqueles e axiológicos, ou teleológi-cos, destes. As normas válidas correspondem a expectativas generaliza-das no seio da sociedade, enquanto os valores expressam tão-somente apreferência por certos bens em determinado grupo ou entre certas expe-riências de vida compartilhadas e que não poderiam, portanto, ser esten-didos aos demais por se tratarem de preferências éticas. Os valores, aqui,são aplicados com vistas a determinados fins, de acordo com os finsdesde determinado número de pessoas. A noção de bem é uma visão par-cial, constituindo-se, segundo Habermas, em bom para nós, ou para mim,mas não necessariamente válido perante um sistema coerente de nor-mas, como exige um discurso jurídico de aplicação. O bom para determi-nado grupo se liga a questões que dizem respeito ao uso da razão práti-ca sob o seu ponto de vista ético e referente, portanto, a concepções devida boa. Se pretendermos os princípios de acordo com uma leitura axio-lógica ou teleológica, não mais seria possível manter aquela diferençaque Dworkin plantará entre diretrizes políticas – argumentos políticos –e argumentos de princípio. Percebe-se, então, que este autor difere, emuito, da noção alexyana, pelo fato de adotar e entender os princípiossob uma ótica deontológica” (CHAMON JUNIOR, 2004:110, grifos no ori-ginal). Complementa, ainda, o mesmo autor: “outra questão entre valorese princípios diz respeito à já referida diferença entre o código dos valo-res, que é gradual, e o código do Direito, que é binário. Se há possibilida-de de preferir um princípio a outro, é porque ele é mais atrativo que ocontrário. Percebe-se, então, uma noção de graduação, e não de ‘sim’ e‘não’ como acontece no caso de adequabilidade normativa. Numa pers-pectiva deontológica há uma pretensão binária de validade” (CHAMONJUNIOR, 2004:110, grifos no original).

Page 251: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

de maneira gradual, a partir do quadro de preferênciasdaquela comunidade. Dito de outra forma, normas, segun-do Habermas (1998:328, 2004:291), são justificadas a partirde uma pretensão de correção (referência ao justo), deven-do poder contar com a aceitação racional daqueles queserão seus afetados (1998:172). Dessa forma, diante de umapretensão normativa, os atores sociais podem tomar doiscaminhos diversos: concordarem mutuamente sobre aspretensões de validade de seus atos de linguagem, oulevantarem pontos em que haja discordância, problemati-zando-os. Instala-se, assim, a possibilidade de avaliaçãoatravés de uma ação comunicativa. De maneira diferente,os valores apontam para uma concepção ética – ligada aoque seja o bem – que não apresenta esse potencial de uni-versalização contido nos discursos sobre a correção dasnormas, uma vez que se encontra enraizada sob valorespré-reflexivos, isto é, concepções culturais partilhadasintersubjetivamente por uma determinada forma de vidaconcreta. Portanto, a noção de bem se liga à idéia de umnós, uma comunidade determinada assentada sob umamesma concepção de vida boa. Desse modo, as referênciaspara as ações oriundas dessa comunidade apenas podemser compreendidas como respostas a fins específicos (cará-ter instrumental) julgados a partir das preferências comunsde seus membros, perdendo-se de vista a ação comunicati-va em favor de uma ação instrumental; e

(3) diferentes normas pretendem manter sua validadepara o mesmo conjunto de destinatários, não podendo con-tradizer-se mutuamente, sob pena de deixarem de repre-sentar referenciais para a ação humana; logo devem cons-tituir um sistema. A questão sobre qual norma é adequada-mente aplicável a um determinado caso, todavia, constituiuma pergunta diferente da indagação sobre sua validade,devido a isso, como será visto no próximo tópico, discursosde justificação diferem-se da lógica dos discursos de apli-

O Poder Judiciário e(m) Crise

239

Page 252: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

cação. Contrariamente, os valores naturalmente concorrementre si pela primazia, por isso são passíveis de flexibiliza-ções a partir de critérios utilitários.

Por isso mesmo, a partir desses pressupostos teóricosé que podemos fazer a crítica, não só à teoria de Alexy –bem como a Marinoni e outros seguidores –, como a toda atradição da jurisprudência de valores, que ao equipararnormas (princípios) com valores, perde de vista a naturezadeontológica das primeiras e acaba por desnaturar a racio-nalidade comunicativa, substituindo-a por uma racionali-dade instrumental (cálculo utilitarista, vide métodos daproporcionalidade) e com isso, caindo numa perspectivairracionalista, carente de legitimidade. Mais uma vez,devemos lembrar com Dworkin que ao magistrado não éaberta a possibilidade de decidir conforme valores. Logo, éimpensável através de uma perspectiva democrática tomá-lo, como faz Dinamarco e Marinoni, como o portador e o sal-vador taumaturgo da axiologia de uma dada sociedade,ainda mais quando esta atividade de “proteção” se dá demaneira solipsista e vinculada a uma única consciênciaindividual. O espaço procedimental (e, principalmente, oprocessual, quando presente o contraditório) não autorizadecisões utilitaristas e muito menos unilaterais, queexcluem a possibilidade de participação em simétrica pari-dade dos destinatários do provimento.

O Direito moderno, não mais subordinado à moral –mas sim, funcionando de maneira complementar – passa aorganizar-se a partir de um código próprio,66 partindo de

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

240

66 Chamon Junior (2005:254) destaca que as discussões envolvendo o códi-go do Direito ainda demandam um maior aprofundamento, o que foge aoescopo da presente pesquisa. Mas em síntese, vêm representar o seguin-te problema: trata-se de uma recepção da Teoria dos Sistemas deLuhmann, após muitos anos de debates? Segundo a posição do tradutorespanhol, Jiménez Redondo, em nota de rodapé (HABERMAS, 1998:175).Em Luhmann, o código do Direito é definido conforme o parRecht/Unrecht, traduzido por Chamon Junior (2005:154) como licitude/ili

Page 253: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

dois elementos restantes da dissolução da amálgama pré-moderna: soberania popular – relacionada com a noção deautonomia pública – e direitos humanos – ligados à noçãode autonomia privada. Desse modo, tanto uma quanto aoutra representam uma mediação pelo Direito no tocante àautodeterminação moral (direitos humanos) e autodetermi-nação ética (soberania popular), de modo a falar-se em umaco-originariedade.67 Assim, Habermas pretende superar adisputa entre liberais e republicanos acerca de qual dasduas deveria ter prevalência.

Segundo Cattoni de Oliveira (2000:54), a tradição repu-blicana remete-se a Aristóteles, desenvolvendo-se pelaFilosofia romana republicana e pelo Humanismo Cívico dopensamento político italiano do Renascimento, vindo a ser

O Poder Judiciário e(m) Crise

241

citude. Todavia, no capítulo 4 da obra Facticidade e Validade, o originalalemão afirma que tribunais decidem “was recht und was unrecht ist”,de modo a ficar visível a utilização de termos diferentes. Mesmo assim,Jiménez Redondo procede à compreensão de que se trataria de um códi-go binário e utiliza em sua tradução a distinção entre “justo” jurídi-co/“injusto” jurídico, notadamente entre aspas reconhecendo a dificulda-de de tradução dos termos. Na versão norte-americana, Rehg compreen-de a questão à luz do par legal/illegal. A questão, todavia, que parece termera implicação secundária adquire primeira ordem quando se lembraque Habermas supera a compreensão do Direito como um caso especialda Moral (CHAMON JUNIOR, 2005:255): se Direito e Moral são co-origi-nários e complementares, não pode haver interferência da Moral sobre oDireito, de modo que este deve desenvolver seu código próprio. Assim, atradução espanhola cai em impropriedade ao se referir a um “justo”jurí-dico/“injusto” jurídico, pois o argumento sobre a justiça é objeto da argu-mentação moral, correndo o risco de apagar a diferenciação que tentaafirmar. Todavia, não é possível concluir que versão para o inglês tenhatido maior sorte, pois “se mostra falha ao traduzir por legal/ilegal (jurídi-co/antijurídico), pelo fato de que Recht/Unrecht, como substantivos quesão, se referem, definitivamente, como valor positivo e negativo ao códi-go, à licitude/ilicitude” (CHAMON JUNIOR, 2005:256, grifo no original).

67 “A relação interna entre soberania popular e direitos humanos está nomodo como é alcançada a formação da opinião e da vontade pública: nema autonomia pública deve se subordinar a pretensos direitos racionalmen-te universais (como em Kant), nem os direitos humanos ficam à mercê deuma ‘vontade geral ética’ (como em Rousseau)” (BAHIA, 2003:238).

Page 254: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

recepcionada por Harrington – influenciando os debates daConvenção de Filadélfia – e por Rousseau – lançando luzessobre o movimento da Revolução Francesa (CATTONI DEOLIVEIRA, 2000:54-55). Contemporaneamente, assumem-se como republicanos diversos pensadores, como: Taylor,Walzer, Sandel, McIntyre, Perry e Michelman. Aqui, pode-mos inclusive incluir como herdeiros os instrumentalistase, assumidamente, Dinamarco e Marinoni.

Já na tradição liberal, encontramos pensadores a par-tir do movimento iluminista, como Locke, Kant, Sièyes,Paine, Constant e Stuart Mill. Contemporaneamente, a tra-dição é disseminada a partir de diferentes leituras feitaspelas obras de Berlin, Rawls, Nozick e Dworkin – sendoRawls o seu maior expoente.

Em comum a ambas, temos a defesa da liberdade eda igualdade dos cidadãos, da existência de uma Cons-tituição, de um regime democrático e da constitucionaliza-ção dos direitos fundamentais – o que, todavia, não significaque esses pontos recebem a mesma interpretação.68 Para

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

242

68 Uma advertência deve ser feita: escapa do escopo da presente pesquisaapresentar um aprofundamento das tradições republicanas e liberais, porisso mesmo, a mesma tem de se limitar a apresentar um esquema apro-ximado – ciente de que, com isso, assumem-se os riscos de olvidar aspróprias divergências internas que se apresentam em cada tradição eque acabam ficando apagados em tal forma de reconstrução. Fato é que,devido à complexidade e extensão do tema, uma reconstrução dos pon-tos comuns e divergentes interna e externamente a cada tradição, por sisó, já constituiria um objeto de pesquisa à parte. Recomenda-se, parauma leitura inicial, os capítulos respectivos nas obras: (1) CATTONI DEOLIVEIRA, Marcelo Andrade. Devido Processo Legislativo. BeloHorizonte: Mandamentos, 2000; (2) GALUPPO, Marcelo. Comunitarismo eLiberalismo na fundamentação do Estado e o problema da tolerância. In:SAMPAIO, José Adércio Leite (Coord.). Crise e desafios da Constituição:perspectivas críticas da teoria e das práticas constitucionais brasileiras.Belo Horizonte: Del Rey, 2004; (3) SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de.Jurisdição constitucional democrática. Belo Horizonte: Del Rey, 2004; (4)HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política.Tradução: George Speiber e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2002;(5) HABERMAS, Jürgen. Facticidad y Validez: sobre el derecho y el Estado

Page 255: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

os republicanos, a Constituição é tomada como umaordem concreta de valores, que materializa uma identida-de ético-cultural de uma sociedade política que tem a pre-tensão de ser, na medida do possível, homogênea(HABERMAS, 2002:270); por sua vez, a Democracia é com-preendida como forma política de plena realização dessaidentidade coletiva, de sua felicidade pública e de seubem-estar coletivo. A ênfase é dada para as chamadasliberdades positivas,69 visando a assegurar a participaçãopolítica autônoma. Para os liberais, o processo democráti-co tem uma tarefa básica: programar o Estado segundo ointeresse da sociedade a partir de um sistema de negocia-ções estruturado ao modo do Mercado – entre pessoasprivadas – (HABERMAS, 2002:270). A Democracia é,então, compreendida de maneira reduzida, como um pro-cesso de eleição regido conforme o mecanismo formal daregra da maioria que confere legitimidade às decisões(GALUPPO, 2004:344). Direitos fundamentais, por sua vez,transformam-se em garantias de proteção da esfera priva-da contra intervenções estatais, de modo a possibilitarque cada indivíduo possa participar no cenário político

O Poder Judiciário e(m) Crise

243

democrático de derecho en términos de teoría del discurso. Trad. ManuelJiménez Redondo. Madrid: Trotta, 1998; (6) BUNNIN, Nicholas. TSUI-JAMES, E.P. Compêndio de Filosofia. Trad. Luiz Paulo Rouanet. São Paulo:Loyola, 2002; (7) SELLERS, Mortimer. Republicans, Liberalism, and theLaw. Kentucky Law Journal. v. 86. n. 1. 1997/1998; e (8) BERTEN, André;SILVEIRA, Pablo da; POURTOIS, Hérvé (orgs.). Libéraux et communautei-riens. Paris: PUF, 1997.

69 “Segundo o modelo republicano, a cidadania não é apenas determinadapelo modelo das liberdades negativas que podem ser reivindicadas peloscidadãos enquanto sujeitos de direito privado. Os direitos políticos são,antes de tudo, liberdades positivas, pois garantem não a liberdade decoerção externa, mas a possibilidade de participação política comumpela qual os cidadãos, na construção de uma identidade ético-políticacomum, reconhecem-se como co-associados livres e iguais” (CATTONIDE OLIVEIRA, 2000:64, grifo no original).

Page 256: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

defendendo seus próprios interesses (HABERMAS,2005:1; 2002:271).70

Contudo, como já adiantado, a opção habermasiananão é a de endossar nem uma nem outra tradição, masapresentar uma (re)construção da relação entre soberaniapopular e direitos humanos, superando as tradições ante-riores, uma vez que leva em conta a identificação de umarelação interna entre ambos os conceitos, constitutiva doque chamará de sistema de direitos: o conjunto de direitos(fundamentais) que os membros de uma comunidade atri-buem-se reciprocamente quando decidem regular legitima-mente sua convivência através do Direito Positivo (HABER-MAS, 2003:162; 2002:229). E, para tanto, a modernidadeaponta que a fundação desse sistema deve dar-se atravésde um importante meio institucional – a Constituição.

O sistema de direitos é responsável por garantir aosindivíduos determinadas liberdades subjetivas de ação apartir das quais podem agir em conformidade com seuspróprios interesses – autonomia privada71 – “liberando”

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

244

70 “O status de cidadão, para o liberalismo, é fundamentalmente determina-do por direitos negativos perante o Estado e em face dos outros cidadãos.Como titulares desses direitos, eles gozam da proteção estatal à medidaque buscam realizar seus interesses privados nos limites estabelecidospela lei, e isso inclui a proteção contra intervenções estatais. Direitos polí-ticos como o direito ao voto ou à liberdade de expressão não têm apenasa mesma estrutura, mas também um significado semelhante enquantodireitos civis que fornecem um espaço no qual questões pragmáticas,através de um agir estratégico funcionalmente regulado, tornam-se livresde coerção externa, fundando um processo político moldado no funciona-mento do mercado” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2000:63, grifos no original).

71 “De ahí que la autonomía privada del sujeto jurídico pueda entenderseesencialmente como la libertad negativa de abandonar la zona públicade obligaciones ilocucionarias recíprocas y retraerse a una posición deobservación mutua y de mutuo ejercicio de influencias empíricas. Laautonomía privada llega hasta allí donde el sujeto jurídico tiene queempezar a dar cuenta y razón, hasta allí donde tiene que dar razonespúblicamente aceptas de sus planes de acción. Las libertades subjetivasde acción autorizan a apearse de la acción comunicativa y a negarse acontraer obligaciones ilocucionarias. Fundan una privacidad que libera

Page 257: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

esses indivíduos da pressão inerente à ação comunicativa(HABERMAS, 1998:186). Assim, Direito não é – nem podeser – capaz de obrigar os indivíduos a permanecer o tempotodo na esfera pública, devendo abrir a eles a possibilida-de de escolha do uso de sua liberdade comunicativa.72 Emcontrapartida, o princípio discursivo democrático com-preende a autonomia pública a partir da ótica da garantiade legitimidade do procedimento legislativo através deiguais direitos de comunicação e de participação (HABER-MAS, 2002:290); trata-se do fato de que os sujeitos de direi-to têm de se reconhecer como autores das normas às quaisse submetem.

Tal constatação acaba em uma afirmação mais radical:ambas as autonomias são complementares e eqüiprimor-diais, de modo que se torna absurdo a tentativa de afirma-ção de uma relação hierárquica entre ambas. Com isso,esquemas arcaicos de compreensão – por exemplo, aindalevado a cabo por um Direito Administrativo que com-preende o interesse público como superior ao interesse pri-vado – caem por terra em uma leitura procedimental. Um écondição de existência e permanência do outro.

O sistema de direito, então, consciente da co-origina-lidade das autonomias público/privada, apresenta-se comoum instrumental que permitirá aos cidadãos criar umaordem jurídica assentada sob um conjunto de direitos fun-damentais, divididos nas seguintes categorias:

O Poder Judiciário e(m) Crise

245

de la carga aneja a una libertad comunicativa recíprocamente reconoci-da y mutuamente supuesta y exigida” (HABERMAS, 1998:186).

72 Bahia (2003:239) lembra que, por isso, a liberdade comunicativa deve sercompreendida como a “possibilidade dos indivíduos tomarem posiçãofrente a uma pretensão de validade levantada por outrem, destinada aoentendimento intersubjetivo. Essa liberdade pressupõe uma atitude per-formativa (obrigação ilocucionária) dos participantes, que querem seentender sobre algo e pressupõem uma tomada de posição do outro”.

Page 258: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

“(i) Direitos fundamentais (de conteúdo concretovariável), que resultam da configuração autônoma dodireito, que prevê a maior medida possível de liberda-des subjetivas de ação para cada um. (ii) Direitos fun-damentais (de conteúdo concreto variável), que resul-tam da configuração autônoma do status de membrode uma associação livre de parceiros do direito. (iii)Direitos fundamentais (de conteúdo concreto variá-vel), que resultam da configuração autônoma do igualdireito de proteção individual, portanto da reclamabi-lidade de direitos subjetivos” (HABERMAS, 2003:169,grifo no original).

Essas três categorias decorrem de um resultado dire-to da aplicação do princípio do discurso ao meio do Direito;estão associadas às condições de “socialização horizontal”produzidas pelo Direito. Assim, não podem ser compreen-didas como os clássicos direitos liberais de defesa, umavez que regulam apenas relações entre co-cidadãos livre-mente associados, anteriormente a qualquer organizaçãoestatal. A função básica, então, desses direitos é a garan-tia da autonomia privada dos sujeitos de direito, mas ape-nas à medida que se reconhecem mutuamente como desti-natários das leis, levantando um status que lhes possibili-ta a pretensão de obter direitos e de fazê-los valer recipro-camente (HABERMAS, 1998:188). Somente no passoseguinte, é que esses sujeitos de direito assumem o papelde autores de sua ordem jurídica.

“Uma vez que pretendem fundar uma associação decidadãos que se dão a si mesmos suas leis, elestomam consciência de que necessitam de uma quartacategoria de direitos que lhes permita reconhecerem-se mutuamente, não somente como autores dessesdiretos, mas também como autores do direito em

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

246

Page 259: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

geral. Se quiserem continuar mantendo um aspectoimportante de sua prática atual, a autonomia, eles têmque se autotransformar, pelo caminho da introduçãode direitos fundamentais políticos, em legisladorespolíticos. Sem as primeiras três categorias de direitosfundamentais, não poderia existir nada parecido como direito, porém, sem uma configuração política des-sas categorias, o direito não poderia adquirir conteú-dos concretos” (HABERMAS, 2003:169).

Nessa quarta categoria, encontram-se os “(iv) Direitosfundamentais (de conteúdo concreto variável), que resul-tam da configuração autônoma do direito para uma partici-pação, em igualdade de condições, na legislação política”(HABERMAS, 2003:169). Assim, para que os membros deuma dada comunidade possam atribuir reciprocamentedireitos subjetivos de maneira legítima, necessitam da ins-titucionalização de procedimentos de produção desseDireito, que pressupõe o reconhecimento mútuo como pes-soas livres e iguais.

Resta, todavia, mais um categoria de direitos, que são:(v) Direitos fundamentais

(...) “ao provimento do bem-estar e da segurançasociais, à proteção contra riscos sociais e tecnológi-cos, bem como ao provimento de condições ecologica-mente não danificadas de vida e, quando necessário,sob as condições prevalecentes, o direito de igualoportunidade de exercício dos outros direitos elenca-dos” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2002:72).

Esse sistema de direitos ainda necessita de um meiode institucionalização: o Estado de Direito, que possui,desde seu surgimento, o propósito de garantir institucio-nalmente à co-originalidade das autonomias pública e pri-

O Poder Judiciário e(m) Crise

247

Page 260: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

vada, buscando para tanto a legitimidade de suas decisõesno Direito (HABERMAS, 1998:199).73

No prisma dos procedimentos judiciais – que repre-sentam o objeto principal de nossa pesquisa – estes visamà proteção, decisão e estruturação dos espaços argumenta-tivos (sem, contudo, interferir no fluxo dessas argumenta-ções). Lembra Habermas (1998:266) que a tensão entre fac-ticidade e validade se manifesta no fato de que as decisõesdevem levar em conta, simultaneamente, a tensão entresegurança jurídica (agora entendida como positividade doDireito e não mais previsibilidade de decisão judicial, comoqueria a leitura positivista) e pretensão de decisões corre-tas (legitimidade).

O Direito vigente, portanto, é capaz de garantir aimposição coercitiva de expectativas de comportamento.Por isso mesmo, as decisões judiciais devem estar consis-tentes com esse direito, formado a partir de uma cadeia dedecisões passadas – tanto de processos legislativos quan-to judiciais, bem como de tradições articuladas (HABER-MAS, 1998:267). Desse modo, a decisão não pode estar

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

248

73 “Con el sistema de los derechos nos hemos asegurado de las presuposi-ciones de las que los miembros de una comunidad jurídica moderna tieneque partir si es que han de poder tener por legítimo su orden jurídico sinque a tal fin puedan buscar arrimo en razones de tipo religioso o metafí-sico. Pero una cosa es la legitimidad de los derechos y la legitimación delos procesos de producción del derecho, y otra muy distinta la legitimi-dad de un orden de dominación y la legitimación del ejercicio de la domi-nación política. Los derechos fundamentales que hemos reconstruido enuna especie de experimento mental son constitutivos de toda asociaciónque pueda entenderse como una comunidad jurídica de miembros librese iguales; en estos derechos se refleja in statu nascendi, por así decir, la«sociación» horizontal de los ciudadanos. Pero ese acto autorreferencialde institucionalización jurídica de la autonomía ciudadana queda incom-pleto en aspectos esenciales; no puede estabilizarse a sí mismo. El ins-tante del mutuo reconocimiento de derechos se queda en un sucesometafórico; puede quizá ser recordado y ritualizado, pero no puede niconsolidarse ni perpetuase sin organizar, o sin recurrir funcionalmente aun poder estatal” (HABERMAS, 1998:199).

Page 261: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

limitada ao passado como uma mera repetição deste; umapretensão de aceitabilidade racional (correção) é esperada.

O problema, então, gira em torno da possibilidade deconciliar a facticidade do Direito – isto é, estabilização deexpectativas de comportamentos, até por uma via coerciti-va – com uma validade – ou seja, uma autonomia públicaque reclama a legitimidade do processo de formação denormas. Logo, a questão da legitimidade do Direito não seresume ao factum de uma decisão judicial; ainda é neces-sário que esta seja consistente de dois aspectos: por meiode uma justificação interna – deve encontrar motivações noDireito positivo; e por meio de uma justificação externa –aceitável racionalmente, explicitando uma fundamentaçãojurídica (HABERMAS, 1998:267; BAHIA, 2003:250).

Contribuições podem ser encontradas no pensamentode Gadamer e Dworkin, já reconstruídos em um momentoanterior à apresentação da Teoria Discursiva do Direito e daDemocracia de Jürgen Habermas. Todavia, é nas pesquisasde Klaus Günther – que, ao mesmo tempo em que partemdos estudos habermasianos, trazem contribuições, lançan-do novas luzes sobre velhas questões – que Habermas(1998:62), reconhecidamente, encontra seu interlocutorjurídico. Logo, é na separação feita por Günther entre dis-cursos de justificação e discursos de aplicação, seja doDireito, seja da Moral, que questões de validade de umanorma passam a ser dissociadas de questões referentes àaplicação adequada da mesma.

4.5. A contribuição da teoria de Klaus Güntherpara uma reconstrução da função jurisdicional

Klaus Günther (1993:11), no capítulo de abertura desua obra principal, Der Sinn für Angemessenheit, esclareceque questões referentes à validade de uma norma devem

O Poder Judiciário e(m) Crise

249

Page 262: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

ser separadas das questões referentes à sua aplicação ade-quada.74 Por isso mesmo, reconstrói e apresenta, por meiode uma separação lógico-argumentativa, uma distinçãoentre discursos de justificação e discursos de aplicação. Noprimeiro, tratar-se-ia de perquirir sobre a validade das nor-mas que seriam, posteriormente, aplicáveis prima facie,utilizando-se, para tanto, de um teste de universalização –a partir do princípio do discurso. No segundo, pretender-se-ia considerar aquelas normas válidas e, então, diante deum caso concreto especifico, busca encontrar a norma queseja adequada. O pressuposto aqui é semelhante ao deDworkin, a unicidade do caso concreto: cada caso é único,assim como cada evento reconstruído no interior de cadaprocesso é singular.

Segundo Günther (1992), se um olhar através da histó-ria da Filosofia for lançado, poderá ser percebido que,desde muito, se busca um princípio de universalização,capaz de explicar de maneira suficiente uma troca depapéis entre o agente e a pessoa envolvida na ação busca-da. Uma proposta foi a “regra de ouro”, a qual exige que nocurso do julgamento sobre a ação, o agente se coloque nolugar daqueles que poderão ser atingidos. Outras versõeslevantam exigências de imparcialidade, de modo que oagente não se deixe dominar por seus próprios interesses,

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

250

74 “The following section is concerned with the justifications of the thesisthat, in moral action, questions of norm validity must be separated fromquestions of application. (…) it may be sufficient to point out that twodistinct activities are involved: on the one hand, justifying a norm by sho-wing that there are reasons, of whatever kind, to accept it, and, the other,relating a norm to a situation by inquiring whether and how it fits thesituation, whether there are not other norms which ought to be preferredin this situation, or whether the proposed norm would not have to bechanged in view of the situation” (GÜNTHER, 1993:11).

75 WIGGINS, David. Universalizability, impartiality, truth. In: WIGGINS,David. Needs, Values, Truth: essays in the philosophy of value. Oxford:Oxford University Press, 1987.

Page 263: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

podendo defender publicamente suas ações à luz de razõesguiadas por uma “lei universal”. Contudo, na compreensãode Wiggins,75 lembra Günther, a simples mudança nãobasta para garantir a justeza moral de uma ação; sua pro-posta, então, concebe o princípio de universalização a par-tir de uma análise conjunta de três posições: do agente, doafetado e do espectador. Essa mesma idéia – isto é, a buscapor critérios que afirmam a possibilidade de se chegar auma justificação racional moral – parece estar presente naTeoria do discurso; todavia, onde Wiggins fala em “ações”,substitui-se por “normas”.

O que se busca, portanto, é uma justificativa geralpara uma norma de ação do ponto de vista moral ou jurídi-co; e, para tanto, Günther apóia-se em Habermas (1987),que já traz uma versão forte desse princípio de universali-zação na forma do princípio do discurso (D), que incorporaa crítica de Wiggins, indo além e eliminando qualquer ves-tígio egocêntrico.76 Agora, todos devem colocar-se mutua-mente na posição do outro e avaliar, de uma maneira con-junta, se a norma corresponde ao interesse universal (GÜN-THER, 1993:23-24; 2000:86).77

O Poder Judiciário e(m) Crise

251

76 Por isso mesmo, tanto para Habermas (1998) quanto para Günther (1993),normas devem ser observadas a partir da uma racionalidade comunica-tiva, representando pretensões de validade ligadas à correção de umaação. Tanto nos discursos de justificação quanto nos discursos de aplica-ção do Direito e da Moral o princípio discursivo de universalização, emsuas respectivas variações – princípio da democracia e princípio moral –deve ser observado, preservando a exigência de intersubjetividade eafastando uma justificação/aplicação pautada em uma racionalidade ins-trumentalizante.

77 “Um acordo a respeito de normas ou ações atingido pelo discurso emcondições ideais tem mais do que força autorizadora, ele garante a cor-reção dos juízos morais. A assertibilidade idealmente justificada é o quequeremos dizer com validade moral; ela não significa apenas que setenham esgotado os prós e contras a respeito de uma [sic] pretensão devalidade controversa, mas ela mesma esgota o sentido da correção nor-mativa como o fato de ser digna de reconhecimento. Diferentemente dapretensão de verdade, que transcende toda justificação, a assertibilida-

Page 264: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

Günther (1993:23) reconhece que toda norma acabapor fazer referência a uma situação de aplicação, bem comoàs conseqüências e efeitos colaterais resultantes de suaaplicação. Se os participantes de um discurso de justifica-ção dispusessem de um conhecimento ilimitado e de tempoinfinito, atingiriam uma condição ideal; em decorrência,poderiam prever todas as conseqüências e os efeitos resul-tantes da observação dessa norma, bem como se o interes-se universal foi respeitado (GÜNTHER, 2000:87). Contudo, opróprio autor reconhece que essa pressuposição é irreal; oque não descarta o seu papel contrafactual. Logo,

“A tese que pretendo desenvolver é que queremosdizer coisas diferentes quando dizemos que estamosjustificando uma norma imparcialmente e quandodizemos que estamos aplicando uma norma a um casoimparcialmente. Se for possível apontar que nossoentendimento pragmático da validade de uma normanão contém sua aplicabilidade a todos os casos, entãonão precisamos da suposição irrealista” (GÜNTHER,1993:87-88).

É, por isso, que para toda norma que for aceita comoválida a partir de um princípio de universalização, haverásituações nas quais, essa mesma norma, aparentemente,poderá se “chocar” com outra norma igualmente válida, demodo que será possível seguir uma sem descumprir

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

252

de idealmente justificada de uma norma não aponta além dos limites dodiscurso para algo que poderia ‘existir’ independentemente do fatoestabelecido de merecer reconhecimento. A imanência à justificação,característica da ‘correção’, apóia-se num argumento de crítica semân-tica: porque a ‘validade’ de uma norma consiste no fato de que ela seriaaceita, ou seja, reconhecida como válida sob condições ideais de justifi-cação, a correção é um conceito epistêmico” (HABERMAS, 2004:291, gri-fos no original).

Page 265: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

outra.78 No campo da moral, temos um exemplo típico: odever de dizer a verdade pode “conflitar” com o dever deprestar auxílio a uma pessoa necessitada.79 Todavia, nemum dever nem outro deixam de ser válidos, simplesmenteporque irão existir situações em que haja conflito. Por isso,afirma Günther, para a validade de uma norma não se deveconsiderar uma incompatibilidade empírica. É, portanto,necessário distinguir duas classes de “colisões”.

No primeiro caso, tomando novamente as normasmorais como exemplo, temos que: a norma que autoriza aquebra de uma promessa, em caso de ganho de vantagempara o promitente, apresenta uma idéia contrária à normaque ordena que uma promessa deve ser cumprida; enquan-to a segunda apóia-se em uma pretensão de validade queencontra assentimento universal de todos e, por issomesmo, pode ser considerada válida, a outra é carecedoradessa mesma condição. Assim, temos à frente o queGünther (1995:281) chama de colisão interna, ou seja, aque-la que afeta a conclusão sobre a validade de uma determi-

O Poder Judiciário e(m) Crise

253

78 Adiantando um pouco a conclusão do presente raciocínio, Bahia lembraque “Günther torna claro que a questão do ‘conflito’ entre normas, naverdade é um falso problema. Quando se descobre a norma adequada,percebe-se que as demais permanecem igualmente válidas, apenas quenunca foram cabíveis [isto é adequadas] para aquele caso” (2003:255,grifo no original).

79 Esse exemplo é muitas vezes ilustrado com um fato vivido por Kant:durante uma aula, Kant teria sido interrompido por um aluno que, fugin-do de uma perseguição injusta da política do Kaiser, solicita permissãopara se esconder debaixo de sua mesa. Kant consente. Todavia, quandoa polícia chegar e indagar ao professor se sabe do paradeiro do persegui-do, esse informa-lhe que o mesmo está escondido debaixo de sua mesa.Para Kant, o dever de ajudar os necessitados (ainda mais alguém perse-guido injustamente) e o dever de dizer a verdade representavam, ambos,máximas universalizáveis à luz do imperativo categórico. O fato gerou –e ainda gera – longas discussões; por exemplo, ver: Kant, Sobre um pre-tenso direito de mentir por amor aos homens, e Constant, Das reações polí-ticas (Dos princípios), ambos em REY PUENTE, Fernando (org). Os filóso-fos e a mentira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. (Travessias).

Page 266: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

nada norma. Assim, em todas as situações em que a pri-meira norma for aplicada, teriam sido lesionados os inte-resses daqueles que confiavam na sua manutenção; essanorma não pode ser válida, uma vez que não satisfaz oteste de universalidade.80

Na seqüência, explica a necessidade do desenvolvi-mento de um conceito normativo de coerência – lembrandoa concepção de integridade de Dworkin (1999). Assim, coe-rência aqui é tomada, não apenas como uma exigência deracionalidade, mas de maneira mais ampla: o ideal de coe-rência é capaz de conduzir a um sistema de princípios (e deregras, secundariamente) válidos; que, por vez, podem seridentificados por estarem amparados, cada um, a preten-sões de validade normativa – no caso, de correção – e porserem produtos de discursos universalizantes, que levamem consideração – como já visto – os interesses de todos ossujeitos envolvidos (GÜNTHER, 1995:277). Nessa ótica,encontrar-se-iam, no interior desse sistema, apenas as nor-mas válidas produzidas por meio do discurso de justifica-ção.81 Todavia Günther (1995:283) explica que não é possí-

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

254

80 Segundo Günther (1995:281): “Si se muestra que ya, bajo circunstanciasque permanecen iguales, en cualquier situación se lesiona un interéscomún, puede que la norma dudosa no sea válida. En este caso sólo sepuede generalizar realmente uno de los dos intereses que colisionanentre sí. El cambio de perspectiva fuerza a los participantes en el discur-sos a tomar una decisión excluyente (Entweder-Oder-Entscheidung).

81 “O discurso de justificação cuida saber quais normas no ordenamento sãoválidas (isto é, que protegem adequadamente um interesse universalizá-vel). Segundo o exemplo de Günther [2000:89], quando a aplicação deuma norma sempre signifique a violação de um interesse universalizável,tal norma não é válida (o que seria diferente se a mesma, protegendo uminteresse, ocasionalmente ofendesse outro interesse universal). Para odiscurso de justificação basta a aferição de validade da norma, isto é, averificação de que há ‘reciprocidade de interesses em circunstânciasconstantes’ [GÜNTHER, 2000:90; 1992:278]. No discurso de justificaçãoabstrai-se de considerações sobre hipóteses de conflito (aparente) emsituações concretas de aplicação. Observa-se no caso hipotético queambas normas morais representam interesses moralmente universalizá-veis, logo, são válidas” (BAHIA, 2004:329, grifos no original).

Page 267: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

vel ordenar essas normas através de critérios hierárquicos;todas elas apresentam igual validade.82 Mesmo assim, osistema não está completo, falta uma idéia fundamental: setodas as normas são igualmente válidas e, por isso mesmo,aplicáveis potencialmente a um caso, qual das normasdeverá ser aplicada?

A pergunta acima remete a um problema diferente eque pode ser ilustrado por outro exemplo moral: a normaque obriga a manutenção de uma promessa é válida damesma forma que a norma que afirma um dever de auxílioa uma pessoa necessitada. Em ambos os casos, fica claroque os interesses são universalizados e estão igualmenteapoiados por pretensões sobre a correção normativa. Acolisão, então, é considerada como uma colisão externa,que apenas pode ser identificada em situações de aplica-ção da norma.83 Por isso, lembra-se que: não é todo caso deajuda a um necessitado que demandará a quebra de umapromessa; bem como, nem toda vez que uma promessa forfeita, logo em seguida, aparecerá um necessitado precisan-do de ajuda. E mais, também os necessitados têm interes-se de que promessas sejam cumpridas, de modo que a vali-dade da primeira norma permanece inquestionada.

O problema, então, transfere-se para uma esfera dodiscurso normativo: a aplicação das normas. Em um caso

O Poder Judiciário e(m) Crise

255

82 Tal conclusão é contrária à tese sustentada por alguns dos adeptos datradição da Jurisprudência de Valores; para esses haveria princípios (nocaso do Direito) mais importantes que os demais, como o caso do princí-pio da dignidade humana.

83 É através da distinção entre colisões internas e colisões externas queGünther (1995:281) pretende pôr em cheque a distinção entre regras eprincípios de Alexy, enquanto uma distinção estrutural das normas. Oraciocínio de Alexy para as regras, na realidade, refere-se à colisão inter-na; todavia esse e a colisão externa acontecem tanto com princípiosquanto com regras; e mais, com qualquer outra ordem normativa – porexemplo, a moral. Günther, então, lança mão de um critério procedimen-tal e não materializante (ou semântico), como faz Alexy.

Page 268: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

concreto, diversas normas se apresentam como aplicáveisprima facie (GÜNTHER, 1995:283). Todavia, quando as cir-cunstâncias de aplicação dessas normas mostram-se próxi-mas, faz-se necessária uma descrição completa do caso,considerando as circunstâncias individualizantes e sinaiscaracterísticos em cada situação.

(...) “logo ao tomarmos conhecimento de um fato,podemos tomar as normas como somente prima facieaplicáveis. Todo o Direito nos surge como sendo, emprincípio, aplicável em sua totalidade de princípiosválidos. Todavia, o juízo de adequabilidade peranteessas normas válidas é que permitirá aos envolvidosalcançar, com retidão, aquela norma não meramenteaplicável prima facie. Da consideração das “normascandidatas” (prima facie aplicáveis) à norma adequa-da entremeia o discurso que envolve, necessariamen-te, a reconstrução completa da situação de fato. Dissoconcluímos que não basta uma descrição “completa”do fático: esta tem que se relacionar com todas as nor-mas aplicáveis, ainda que de maneira virtual – o queleva, também, a uma reconstrução interpretativa erealizativa do Direito” (CHAMON JUNIOR, 2004:114,grifos no original).

Um aprofundamento deve ser feito: Günther consideraimportante distinguir uma descrição de um estado de coi-sas de uma interpretação de uma situação. A primeira con-siste em proposições que podem ser avaliadas como verda-deiras ou falsas, de acordo com a existência de fatos; toda-via, se por um lado, a interpretação de uma situação tam-bém contém descrições verdadeiras dessa situação, poroutro, mostra-se mais abrangente, pois o locutor é respon-sável por expor em sua interpretação quais descrições ver-dadeiras do estado de coisas são significativas, e quais não

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

256

Page 269: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

são. Logo, uma interpretação da situação somente pode sercompleta se ela contiver todas as descrições do estado decoisas que são simultaneamente verdadeiras e significati-vas. Todavia, o que se quer dizer com “significativo”? Aqui,o termo é conectado à compreensão que pode ser obtida deuma norma – há uma identidade entre o estado de coisasveiculado no nível da norma e a descrição do caso.

É por isso que a compreensão normativa de coerênciado sistema jurídico (ou moral) somente pode ser atingida,levando-se em conta os discursos de aplicação.84 Uma vezque as colisões externas são invisíveis quando apartadasde um caso concreto, a coerência normativa somente podeser estabelecida – porque reconstruída – em um estágiofinal, perante cada caso concreto (CHAMON JUNIOR,2005:115). Com isso, tanto a exigência de imparcialidade85

quanto o ideal da “norma perfeita” – nesse caso, apenasindiretamente – foram alcançados (GÜNTHER, 1995:283).86

O Poder Judiciário e(m) Crise

257

84 “La coherencia a la que se refiere Günther no es un criterio de valoraciónsino que más bien resume una relación: la que debe existir entre lanorma, el resto de normas que prima facie eran aplicables a un caso y,finalmente, la completa descripción de la situación: «Una norma en todassus variantes semánticas y en relación con otras normas aplicables seaadecuada a la situación descrita completamente». Tanto la adecuaciónde la norma a una completa situación, cuanto la coherencia de la normay los aspectos relevantes de una situación, carecen de un contenidomaterial. Más bien resume las relaciones entre la norma y la situacióndescrita completamente (en el caso de la adecuación) y entre la normaadecuada, el resto de normas aplicables y la situación descrita (en elcaso de la coherencia)” (MORAL SORIANO, 1998:202).

85 Segundo Günther, a imparcialidade é agora uma exigência de ordem pro-cedimental, de modo que somente se pode estabelecer a norma aplicá-vel legitimamente ao caso, se são levadas em consideração todas ascaracterísticas relevantes, a partir de uma interpretação coerente detodas as normas aplicáveis. “(...) on ne peut établir qu’un norme peutpégitemement s’apliquer dans une situation que si on été preses en con-sidération toutes les caractéristiques de la situation qui sont relevantesen regard d’une inteprétation cohérente de toutes les normes applica-bles” (GÜNTHER, 1992:269).

86 “(...) alcançamos o ideal de uma norma perfeita por via indireta: apenaso dividimos em duas etapas distintas. Não antecipamos todas as carac-

Page 270: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

Para essa tarefa, lembra Günther (1992:294), os para-digmas são de importância ímpar:87 eles determinam cer-tos acentos que são relevantes normativamente em umcaso concreto. Os paradigmas reduzem a complexidade datarefa de redefinição das relações de primazia – e não depreferência – entre as normas, de forma que essas são pos-tas em relação dentro de uma ordem transitiva.88

“Normalmente, nos referimos a uma destas ordenstransitivas, quando nos ocupamos com um caso típico

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

258

terísticas de cada situação a um único momento, mas em cada situação,em um determinado momento, todas as suas características. Então, oproblema pode ser resolvido pela aceitação de algumas normas comoválidas, apesar de sabermos que eles irão colidir com outras normas váli-das em alguns casos” (GÜNTHER, 2000:90-91).

87“Un paradigme contient une interprétation globale cohérente des nor-mas e des interprátations normatives relatives à certaines descriptionsgénéralisées de situation. L’entrecroisement de la norme et de la descrip-tion de l’étet de choses s’y situe à un niveau plus général que dans la jus-tifications d’un impératif singuler. L’interpretation globale cohérente estliée à un ensemble déterminé d’interpretations de situation généraliséeset collectivement partagées. L’ensemble des interprétations pertinentesest ainsi circonscrit sur la base d’un principe de cohérence interpretati-ve. Pour un ensemble de situations, on affirme que toputes les descrip-tions de situation signifiants on été prises en considération par un para-digme. Les paradigmes sont liés à des formes de vie. Ils ordonnent unensemble déterminé de normes intersubjectivement partagées queappartiennent à une form de vie” (GÜNTHER, 1992:294).

88 Como já afirmado em face da teoria de Dworkin, em Günther, os paradig-mas também aliviam os participantes de um discurso de aplicação doDireito dos encargos excessivos de racionalização: os paradigmas tor-nam óbvias certas formas de interpretação e de ver a realidade e a nor-matividade subjacente (BAHIA, 2004:331). “[A] tentativa de se reduzir acomplexidade da interpretação jurídica através da reconstrução de umparadigma jurídico concreto (ou, ainda, da determinação nada isenta deproblemas de uma ‘ideologia constitucionalmente adotada’ ou um ‘qua-dro de valores comum superiores’), que desde o início já estabeleceriaum horizonte histórico de sentido para a prática jurídica, só retiraria emparte dos ombros do juiz a tarefa hercúlea de pôr em relação os traçosrelevantes de uma situação concreta, apreendida de forma a mais com-pleta possível, com todo o conjunto de normas em princípio aplicáveis(CATTONI DE OLIVEIRA, 2002:107-108).

Page 271: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

de colisão. Estes paradigmas são determinados poruma forma de vida comum, que é partilhada. Então,por exemplo, toda forma de vida tem sua própria regrade prioridade a respeito da relação entre liberdade eigualdade. Apesar disso, dois aspectos destes para-digmas podem ser criticados por meio do discurso,independentemente de qual seja a forma de vida: avalidade das normas singulares, se os interesses vãose alterando e a relação de coerência entre outras nor-mas válidas, se as descrições de situações vão se alte-rando” (GÜNTHER, 2000:97, grifos no original).

As decisões discursivamente tomadas nos processosde aplicação do Direito são para aqui e agora, além de esta-rem voltadas para um caso determinado e contarem com aparticipação de sujeitos individualizados. Não há necessi-dade de empreender a uma reconstrução de toda a históriainstitucional. Todavia, o processo de aplicação deve possi-bilitar o aporte de interpretações divergentes acerca dainterpretação jurídica e da situação concreta (GÜNTHER,1992:288). A norma adequada será aquela capaz de forne-cer uma justificação para um imperativo singular – isto é, ocaso concreto único e irrepetível – representando umamaneira de agir, sustentada por uma pretensão de valida-de referente à correção normativa, na situação in casu.

Podemos, então, afirmar que há uma divisão de tarefasentre os processos legislativo e jurisdicional, a partir da dis-tinção e correspondências desses processos com os discur-sos de justificação e aplicação, respectivamente.

Logo, em um discurso de aplicação, o operador doDireito deve pressupor que as normas legisladas são válidas– haja vista elas terem sido positivadas a partir de um dis-curso de justificação, procedimento esse capaz de garantir,à primeira vista, sua validade. A discussão, portanto, esta-ria restrita à busca pela norma adequada ao caso concreto.

O Poder Judiciário e(m) Crise

259

Page 272: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

Em um primeiro momento, deve-se proceder a umajustificação interna – ou seja, perquirir um exame semânti-co dos textos normativos, incluindo referências a preceden-tes judiciais e considerações teóricas (doutrinárias).Todavia, bem lembra Souza Cruz (2004:225): isso não é sufi-ciente. Como segundo passo, deve-se passar para umaanálise dos elementos e aspectos descritivos da realidadefática, de modo a permitir a seleção das característicasrelevantes do caso sub judice. Assim, todas as possibilida-des semânticas do texto devem poder cruzar-se com os ele-mentos fáticos do caso – de acordo com um método concre-tista de aplicação imparcial das normas. Diferentemente doque pensavam os positivistas, “o operador do Direito preci-sa estar ciente de que mais de uma norma válida pode con-correr prima facie como a mais adequada ao problema”(SOUZA CRUZ, 2004:225-225, grifos no original).89 A ques-tão agora é determinar um âmbito/grau de restrição à apli-cação de uma norma, sem, com isso, questionar a sua vali-dade – regredindo a um discurso de justificação como, porexemplo, faz a ponderação de princípios de Alexy.

Mas, então, cabe uma questão: como fica a noção de“segurança jurídica”, tão cara para os positivistas?Habermas (1998:291) responde afirmando que a únicasaída dá- se através de uma reconstrução do conceito. Umavez que o “modelo de regras” foi completamente ultrapas-sado, a “nova” leitura assenta-se na base da função doDireito – qual seja, a garantia de expectativas de compor-tamento – entretanto, o que aqui representa previsibilida-de deve estar aberto para a dupla dimensão da tensão

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

260

89 “No processo de aplicação, seleciona-se, em meio às normas [justifica-das] que apenas se candidatam para um caso dado, aquela que é cadavez [adequada]. Aqui se manifesta a descoberta hermenêutica de que anorma apropriada é concretizada à luz das características da situaçãodada e, que, inversamente, o caso é descrito à luz das determinaçõesnormativas pertinentes” (HABERMAS, 2004:277).

Page 273: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

entre facticidade e validade. A proposta positivista viravaas costas para essa última dimensão, diluindo decisõesinstitucionais sob uma facticidade, todavia questionável.

Logo, a proposta discursiva transfere o conceito de“segurança” para a garantia dos direitos processuais; aqui,todos os cidadãos deverão ter garantida a sua participa-ção, além de que todas as questões fático-jurídicas perti-nentes sejam ventiladas e debatidas. A “segurança”, por-tanto, migra da previsibilidade de resultado para a garan-tia de direitos participatórios nos processos de tomada dedecisão estatal. Conclui Souza Cruz (2004:237) que a deci-são adequada – ou a resposta correta, como quer Dworkin– não se encontra sob a base de um consenso ético-subs-tantivo majoritário; ela está no procedimento que levantaexigência de observância dos princípios informadores dodevido processo constitucional, de uma reciprocidade entreparticipantes e do “discurso jurídico”, que conjuntamentepodem realizar uma filtragem dos direitos fundamentais.

Todavia, Günther (1992:298) construiu sua tese a par-tir de uma compreensão do Direito como caso especial dodiscurso moral; isso porque os discursos jurídicos, apesarde particularidades frente aos discursos morais, aindaguardariam muitas similitudes – a principal é a de que nor-mas jurídicas poderiam ser justificadas moralmente; vindoa ser muito criticado por Habermas (1998:304). Importante,então, aprofundarmos um pouco mais a tese até mesmoporque ela reflete, apenas em parte, o posicionamento deAlexy, servindo para o mesmo as críticas habermasianas. Ojurista de Kiel sustenta que a correção de uma decisão judi-cial é sempre relativa, haja vista a impossibilidade de haveruma legislação isenta de colisões entre normas, principal-mente no tocante aos princípios (em sua leitura, valores).Mas, em Habermas, é possível extrair legitimidade da lega-lidade (SOUZA CRUZ, 2004:227), tornando autônomo o dis-

O Poder Judiciário e(m) Crise

261

Page 274: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

curso jurídico na sua relação com a moral. Diversas são asrazões para a crítica da tese do caso especial:90

(1) na argumentação jurídica, diferentemente damoral, as partes não estão obrigadas a proceder a umabusca cooperada pela verdade; o Direito abre espaço paraações estratégicas que possam conduzir a uma decisãofavorável. Mesmo assim, em razão do elevado grau deracionalidade presente no processo, pode-se atingir umjuízo de aplicação imparcial (SOUZA CRUZ, 2004:228);

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

262

90 Interessante a análise a que procede Atienza (2002:288-289, grifos no ori-ginal): “A tese central da teoria de Alexy (...) consiste em afirmar que aargumentação jurídica – o discurso jurídico – é um caso especial do dis-curso prático geral. A essa tese pode-se dirigir tanto uma crítica concei-tual quanto uma crítica centrada no alcance prático da teoria ou, então,em seu significado ideológico. (...) Do ponto de vista conceitual, a primei-ra crítica que se pode fazer à tese do caso especial é que ela é ambíguae por partida, dobrada. Uma primeira ambigüidade deriva do fato de aênfase de que o discurso jurídico seja um caso do discurso prático geral,o que destaca o caráter racional da argumentação jurídica, sua proximi-dade em relação ao discurso moral, ou então no fato de que se trata deum caso especial, o que ressalta as deficiências de racionalidade do dis-curso jurídico (...). O segundo tipo de ambigüidade consiste (...) na faltade clareza quanto ao que Alexy entende por argumentação jurídica oudiscurso jurídico: em sentido estrito, o discurso jurídico seria um proce-dimento não-institucionalizado que se situa entre o procedimento deestabelecimento estatal do Direito e o processo judicial; em sentidoamplo, também se argumenta juridicamente no contexto desses últimosprocedimentos, embora Alexy reconheça que, neles, não só é questão deargumentar como também de decidir. E aqui, a propósito do que chameide ‘discurso jurídico em sentido estrito’ (e que Alexy chama de ‘discursojurídico como tal’ [2001]), surge, de novo, uma certa ambigüidade. Por umlado Alexy indica que esse – o discurso jurídico como tal – é um tipo deprocedimento não-institucionalizado (para ele isso significa – é precisolembrar – que não está regulado por normas jurídicas que assegurem achegada a um resultado definitivo e que seja, além disso, obrigatório, oque faz pensar que com isso ele está se referindo basicamente à argu-mentação da dogmática jurídica). Mas, por outro lado, quando Alexy con-trapõe o ‘discurso jurídico como tal’ ao discurso no processo judicial (...),ele inclui, nesse último item, as argumentações que as partes do proces-so empreendem, ao passo que a argumentação levada a efeito pelo juizpertenceria ao primeiro contexto (que – lembre-se – ele havia caracteri-zado como ‘não-institucional’).

Page 275: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

(2) com isso, são apagadas as linhas fundamentais dadiferenciação entre discursos de justificação e discursos deaplicação – o melhor exemplo é a técnica de ponderação deAlexy. Nos discursos de aplicação, pesa a limitação daargumentação mais ampla existente nos discursos de jus-tificação – argumentos pragmáticos e ético-políticos devemficar excluídos, sob pena de aceitarmos uma reabertura doprocesso legislativo, todavia, com um rol de legitimados àdiscussão muito inferior. Com isso, não se quer negar que,ao longo de um discurso de aplicação jurídico, não surjamquestões políticas e pragmáticas; alerta-se para o fato deque a decisão não poderá reabrir a discussão de justifica-ção, ou seja, o magistrado deve tomá-las como produto dodiscurso anterior e tratá-las como válidas prima facie, ava-liando-as e posicionando-se apenas no tocante à adequabi-lidade das mesmas frente às circunstâncias do caso con-creto, sem, com isso, buscar construir novos argumentosde ordem pragmática ou ético-política;91 e

(3) Habermas (1998:305) ainda lembra que a legitimida-de das normas jurídicas não pode ser medida pelo “critériode universalização de interesses” de Günther, mas somentepela racionalidade inerente ao processo legislativo.

Esse segundo ponto é justamente um problema quetransparece na tese de Alexy sobre a técnica da pondera-ção (proporcionalidade). Habermas irá criticar, principal-mente, a ausência de uma racionalidade (discursiva) capazde legitimar a decisão. Todavia, mesmo em artigos recen-tes, Alexy (2005:573) ainda não parece – ou não quer – com-preender bem esse ponto. Em sua réplica, esclarece que aponderação parte de uma estrutura complexa de sub-

O Poder Judiciário e(m) Crise

263

91 “No controle de constitucionalidade das leis, o Judiciário deixa de apli-car uma norma ordinária, válida prima facie, para aplicar diretamente anorma constitucional ao caso concreto” (SOUZA CRUZ, 2004:230).

Page 276: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

regras e busca atingir um resultado que encontra respaldo,até mesmo, em uma fórmula matemática.92

Dessa forma, tal resposta apenas reforça a críticahabermasiana: a racionalidade matemática é típica de umabusca pela verdade de uma afirmação e difere-se, radical-mente, de um juízo sobre a correção de uma ação (HABER-MAS, 2004). A principal diferença decorre do fato de o juízosobre a verdade seguir correspondência com um mundoobjetivo, completamente diverso do mundo intersubjeti-vo,93 no qual se situam as normas. Naquele, a relação se dáentre sujeitos e objetos e, por isso, pesa uma racionalidadede tipo instrumental; enquanto no segundo, tem-se umarelação entre sujeitos e, por isso mesmo, apoiada por umaracionalidade de tipo comunicativo.

Ao transpor essa lógica instrumental para o universonormativo, conclui Habermas, abre-se para o aplicador umespaço de subjetividade (discricionariedade), desligando-odo dever de apresentar razões capazes de encontrar assen-timento racional nos demais membros da sociedade. A

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

264

92 Segundo, Alexy (2005:575-576): “The simplest form of the WeightFormula goes as follows: Wi,j = Ii/Ij. Let Ii stand for the intensity of inter-ference with the principle Pi, for example, the principle granting the free-dom of expression of Titanic. Let Ij stand for the importance of satisfyingthe competing principle Pj—in our case, the principle granting the perso-nality right of the paraplegic officer. And let Wi,j stand for the concreteweight of Pi. The Weight Formula makes the point that the concreteweight of a principle is a relative weight. It does this by making the con-crete weight the quotient of the intensity of interference with this princi-ple (Pi) and the concrete importance of the competing principle (Pj)”.

93 “Diferentemente da pretensão de verdade, que transcende toda justifi-cação, a assertabilidade idealmente justificada de uma norma não apon-ta além dos limites do discurso para algo que poderia ‘existir’ indepen-dentemente do fato estabelecido de merecer reconhecimento. A ima-nência à justificação, característica da ‘correção’, apóia-se num argu-mento de crítica semântica: porque a ‘validade’ de uma norma consisteno fato de que ela seria aceita, ou seja, reconhecida como válida sobcondições ideais de justificação, a correção é um conceito epistêmico”(HABERMAS, 2004: 291).

Page 277: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

fixação de meio e fins é tarefa que cabe aos co-partícipesdo processo legislativo, não aos aplicadores jurídicos.94

No caso dos adeptos da “jurisprudência de valores” –o que parece incluir Dinamarco, Marinoni e outros –, a ten-tativa por relativizar a Constituição, bem como sua supre-macia, lendo-a conforme uma ordem concreta de valores,compromete a própria idéia de Constituição: uma vez queessa é a fonte do código de funcionamento do Direito, códi-go esse apoiado em uma lógica binária que separa o lícito(constitucional) do ilícito (inconstitucional). Decisões nãoapoiadas nesse código são, conseqüentemente, decisõesdesprovidas de razões jurídicas. Retorna aqui o problema jáapresentado sobre as complicações que podem advir deuma equiparação de normas a valores.95

O Poder Judiciário e(m) Crise

265

94 “Em síntese, confere-se mais uma vez poderes discricionários aoJudiciário, no sentido de colocar-se na ‘pele’ do legislador político e veri-ficar se, a seu juízo, haveria uma medida que fosse melhor. Esse elemen-to impõe um decisionismo absoluto, na medida em que propõe aoJudiciário o papel de definição das diretrizes políticas e de argumentospragmáticos” (SOUZA CRUZ, 2004:240).

95 Para que isso fique claro, pode-se partir do raciocínio seguinte: normas,segundo Habermas (1998:328, 2004:291), são justificadas a partir de umapretensão de correção (referência ao justo), devendo poder contar com aaceitação racional daqueles que serão seus afetados (1998:172). Dessaforma, diante de uma pretensão normativa, os atores sociais podemtomar dois caminhos diversos: concordarem mutuamente sobre as pre-tensões de validade de seus atos de linguagem, ou levantarem pontosem que haja discordância, problematizando-os. Instala-se assim a possi-bilidade de avaliação através de uma ação comunicativa. As discordân-cias advindas dessa forma de ação podem ser solucionadas a partir douso de razões (argumentos) capazes de convencer ambos os lados(HABERMAS, 2004:295). Contudo, o que se percebe é que o consensosobre normas apresenta um outro lado importante. Através do PrincípioU (Princípio de Universalização), os participantes voltam-se para a pos-sibilidade de universalização das normas de ação capazes de transcen-der contextos culturais específicos e, com isso, adquirir validade paratodos os seus destinatários de maneira igual, ou seja, sem exceções.Diferentemente das normas, uma concepção ética – ligada ao que seja obem – não apresenta esse potencial de universalização contido nos dis-cursos sobre a correção das normas, uma vez que se encontra enraizadasob valores pré-reflexivos, isto é, concepções culturais partilhadas inter-

Page 278: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

4.6. Uma (re)leitura do “acesso à Justiça” e da “Crise do Judiciário” à luz de umentendimento procedimental do Estado Democrático de Direito

A Teoria do Discurso permite repensar a dinâmica daatividade jurisdicional, sempre pressupondo a dimensãodemocrática. Torna-se importante distinguirmos bem doismodelos apresentados por Günther (1995:37):96

(1) o modelo da correia de transmissão, segundo o qualo juiz deve aplicar o Direito que é elaborado anteriormentepor um legislador democrático. A legitimidade da decisão,então, decorre da observância à legalidade, ou seja, aoDireito pré-fixado nos processos de legislação; e

(2) o modelo do bilhar, que afirma que a atividade deaplicação jurídica tem legitimidade por si mesma, indepen-dentemente da existência do legislador. Aqui a aplicaçãodo Direito e a legislação, às vezes, correm em sentido para-lelo e, até mesmo, contrário.97

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

266

subjetivamente por uma determinada forma de vida concreta. Por isso, anoção de bem liga-se à idéia de um nós, uma comunidade determinadaassentada sob uma mesma concepção de vida boa. Desse modo, as refe-rências para as ações oriundas dessa comunidade apenas podem sercompreendidas como respostas a fins específicos (caráter instrumental)julgados a partir das preferências comuns de seus membros. Logo, ape-nas uma concepção normativa (deontológica) é capaz de satisfatoria-mente apresentar respostas à solução de controvérsias práticas, porque,no procedimento de justificação de normas, acontece um discurso argu-mentativo, pautado em pretensões de validade que retiram os falantesdo contexto em que se encontram enraizados, de modo que posições epreferências pessoais sejam analisadas e criticadas a partir de uma pers-pectiva intersubjetiva abrangente.

96 Como lembra Günther (1995:38), trata-se de modelos ideais, que não neces-sariamente apresentam todas as suas características na prática social.

97 “The law which is made by the legislator and the law which is made bythe judge are like billiard balls, rolling in different directions or bouncing

Page 279: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

Uma vez que o Direito legislado é permeado por inde-terminações, ou mesmo incapaz de exprimir o “verdadeiro”Direito pelo qual o povo anseia – principalmente em razãode o processo legislativo poder ser regido pelo sabor dasforças políticas, os magistrados vêem-se forçados a adaptaro que foi positivizado, podendo até mesmo criar novos direi-tos. Para esse modelo, caso os juízes não estejam represen-tando bem a vontade popular, sempre há espaço para queos legisladores interfiram, produzindo novas leis, mudandoo curso das decisões futuras. Todavia, adverte Günther(1995:37), o círculo vicioso se reinstala, podendo o Judiciáriocompreender diferentemente a mensagem provinda doLegislativo.98 A validade jurídica, então, encontra-se fracio-nada: em parte, deriva dos processos de legislação, mastambém decorre das decisões proferidas pelo Judiciário.

Acontece que nem um nem outro modelo são referên-cias adequadas aos processos de aplicação do Direitodemocrático. O primeiro caso ainda está preso à noção de“vontade geral” de Rousseau, ao passo que o segundolança similitudes com o realismo jurídico. A bem da verda-

O Poder Judiciário e(m) Crise

267

off each other. They can roll in the same direction, but they do not neces-sarily do so. In most cases, the law given by the legislator is like a mes-sage from another planet, its meaning is indeterminate, many terms arevague, and the circumstances under which it is made change rapidly.This has to do with the fact that often the law is not made by the peoplefor the people, but is the result of a compromise between political groupsstruggling for power. The judge has to reconstruct the law, has to adaptit to changed circumstances, and, in some cases, or in every case, sheinvents the law, generates a new meaning. Law is indeterminate, so thejudges invent new general rules which have a curtain binding force forothers judges” (GÜNTHER, 1995:37).

98 “To be sure, the billiard ball model concedes that the democratic legisla-tor can always intervene in the judge-made law in order to change it forthe adjudication of future cases. In this way, the legislator retains an ins-titutional supremacy over adjudication. But then, it’s the same old story:the intervention of the legislator is only a new message from another pla-net, and the judges will again have to interpret the new law according totheir own rules” (GÜNTHER, 1995:37).

Page 280: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

de, ambos deixam de observar um problema importante: aquestão da aplicação particular (GÜNTHER, 1995:43).

Um procedimento imparcial de aplicação do Direitodeve levantar exigências de iguais considerações de todasas particularidades apresentadas pelo caso. Desta sorte,uma aplicação imparcial de uma norma significa compreen-dê-la como a norma adequada capaz de, simultaneamente,ser interpretada como se fizesse parte de um sistema coe-rente de normas e fornecer uma resposta para o caso parti-cular, preenchendo uma exigência de correção normativapara aquela ação singular.

Nesse caso, a proposta, então, passa não por adotarum dos dois modelos apresentados, mas por lançar umolhar reconstrutivo para um novo – que, todavia, encontrano modelo da correia de transmissão o seu ponto de parti-da. Esse novo modelo, bem mais satisfatório, decorre daspesquisas habermasianas (GÜNTHER, 1995:46).

A mudança principal advém do fato de os discursosjurídicos institucionalizados interpretarem – e aqui, umalerta: Habermas e Günther tomam o conceito de interpre-tação conforme a noção gadameriana; assim, interpretar é,simultaneamente, compreender e aplicar – todo o direito àluz do sistema de direitos, já que esse é o núcleo tanto daatividade de legislação democrática quanto da atividadede aplicação jurídica.99 Como conseqüência, as respostasfuncionais dessas atividades estão, ambas, conectadas àforma do Direito – garantia de liberdade individual (autono-

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

268

99 “To be sure, the system of rights is not given in advance as an indepen-dent code which has only to be applied by legislation. It does not repre-sent God’s point of view, as He gave the law to Moses. Instead, it issomething like an idealized internal reference point for the members of asociety who conceive of themselves as authors and addressees of equalrights. As such an idealizes internal reference point, the system of rightsfunctions like a generative grammar for the language in which the mem-bers of a legally institutionalized rational discourse express their particu-lar opinions for and against a suggested law” (GÜNTHER, 1995:47).

Page 281: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

mia privada) e de igual consideração (autonomia pública)(GÜNTHER, 1995:46).

Por meio dos discursos de justificação, o legisladorpolítico avalia um espectro ilimitado de razões normativase pragmáticas, traduzindo-as à luz do código do Direito. Oaplicador jurídico, por outro lado, encontra uma constela-ção de normas bem mais limitadas – ele apenas pode lan-çar mão das escolhas já feitas pelo legislador. Além disso,todas as escolhas do legislador, uma vez traduzidas confor-me o código do Direito, agora funcionam, sob a lógica jurí-dica. Por isso mesmo, a tarefa deixada a cargo do aplicadornão é mais de justificar tais razões, mas de encontrar, den-tre as que o legislador considerou como prima facie válidas,a adequada para fornecer uma fundamentação acerca dacorreção da ação singular trazida pelo caso sub judice.

Assim, é o caso concreto – através de suas particulari-dades – que vai fornecer o espectro de normas a serem exa-minadas. A noção de aplicação imparcial aqui é entendidacomo uma exigência de que o procedimento de aplicaçãoleve em conta a participação daqueles que são os destina-tários da norma a ser aplicada. Logo, lembra Günther(1995:50), tanto as partes quanto o juiz são partícipesdessa dinâmica; todavia eles desempenham papéis dife-rentes, mas nem por isso menos importantes.

O juiz, então, desempenha um papel de terceiro obser-vador do conflito: cabe a ele questionar sobre a coerência

O Poder Judiciário e(m) Crise

269

Page 282: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

das interpretações levantadas pelos participantes (autor eréu) quanto ao caso, bem como quanto à norma adequada.Dessa forma, a decisão não é apenas sua, mas uma cons-trução conjunta que deve ainda se voltar para a sociedade– uma vez que a mesma é a real titular (e atingida) pelo sis-tema coerente de normas válidas, representado peloDireito. Uma decisão pode ser considerada fundamentadaquando, além de demonstrar a reconstrução argumentativados acontecimentos relevantes do caso concreto, explicitaa norma adequada a servir de justificativa para a ação sin-gular. Essa decisão, então, não é apenas dirigida aos liti-gantes, mas a toda a sociedade.100

Uma vez que os litigantes detêm espaço para agirestrategicamente, seu assentimento não é necessário paraque decorra a obrigatoriedade natural do provimento(GÜNTHER, 1995:50); a legitimidade da decisão está pre-servada se for garantido aos mesmos a oportunidade de se

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

270

100 Em recente trabalho, Alexy (2005:578) busca justificar a legitimidade deuma Corte Constitucional, não em razão da potencial participação e acei-tação racional da sociedade, mas a partir do que ele considera umarepresentação argumentativa: “The representation of the people by aconstitutional court is, in contrast, purely argumentative. The fact thatrepresentation by parliament is volitional as well as discursive showsthat representation and argumentation are not incompatible. On the con-trary, an adequate concept of representation must refer—as Leibholzputs it—to some ‘ideal values’. Representation is more than—as Kelsenproposes—a proxy, and more than—as Carl Schmitt maintains—rende-ring the repraesentandum existent. To be sure, it includes elements ofboth, that is, representation is necessarily normative as well as real, butthese elements do not exhaust this concept. Representation necessarilylays claim to correctness. Therefore, a fully-fledged concept of represen-tation must include an ideal dimension, which connects decision withdiscourse. Representation is thus defined by the connection of normati-ve, factual, and ideal dimensions” (2005:579, grifos no original). Nessesentido, o déficit de legitimidade das Cortes Constitucionais poderia sersuperado pela existência de pessoas capazes de avaliar as pretensões devalidade de correção das normas. O que é bem diverso de Habermas,para quem a racionalidade não está nos sujeitos, mas no procedimentode tomada de decisão.

Page 283: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

manifestarem – isto é, o princípio do contraditório – demodo a poderem reconhecer-se como co-autores desse pro-vimento. Por isso mesmo, o conflito entre litigantes, à luzda Teoria do Discurso, aparece de modo diferente: um con-flito jurídico emerge como uma disputa particular entredois (ou mais) sujeitos de direito, que questionam o signifi-cado das razões jurídicas que podem ser aceitas pelos par-ticipantes de um discurso público (GÜNTHER, 1995:52).

Todavia, a possibilidade de alternância entre os papéisde autor e destinatário das normas vê-se bloqueado: para aspartes que não podem entender-se, exclusivamente, comoautores das normas, já que, da discussão, estão excluídosos demais cidadãos, bem como, por força da ação estratégi-ca, submeter-se-ia a “vontade geral” à vontade particular;nem para o juiz, já que o discurso de aplicação impede oretorno às razões que levaram à justificação da norma.

O principal será realizar o desbloqueio por meio datroca interpretativa entre as partes, lembrando-as de seupapel como participantes iguais dos discursos públicos.Transcendendo o particularismo do caso sub judice, a deci-são, para considerar-se fundamentada, deve ainda pautar-se em razões jurídicas que poderiam ser aceitas racional-mente pela sociedade. Günther (1995:52), então, reconheceque a opinião pública adquire um papel importante no para-digma procedimental do Estado Democrático de Direito.

A crítica pública à decisão, permanentemente, lembraaos aplicadores do Direito (conceito esse compreendido emsentido amplo e não apenas relacionado aos magistrados)que são meros representantes do papel que desempenhamna aplicação do Direito. É por isso que Günther (1995:53)afirma que a interpretação jurídica não pode ser assumidacomo uma questão de escolha ou opção pessoal do aplica-dor, mas sim, ligada a um esquema coerente de princípiosde justiça, de igualdade e de liberdade amparado por razõesde natureza pública compartilhadas pela sociedade.

O Poder Judiciário e(m) Crise

271

Page 284: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

É por tudo isso, que os movimentos em prol de uma“simplificação e celeridade” nos processos de aplicaçãojudicial do Direito não podem perder de vista o entendimen-to de que as garantias processuais, como a do contraditórioe a da ampla defesa, não podem ser violadas em nome deum rápido andamento do processo (GONÇALVES, 2001:125).

A partir de Habermas (1998:306), é possível com-preendermos que a estrutura presente nas normas proces-suais é capaz de compensar as condições comunicativas,garantindo a formação de um provimento (legislativo,administrativo ou jurisdicional) legítimo.101 É essa com-pensação que permite à Teoria do Discurso abrir mão dametáfora do juiz Hércules de Dworkin, capaz de garantir,por si só, interpretações coerentes dos princípios jurídicosem sede de sua aplicação, corporificando o ideal de integri-dade (GÜNTHER, 1995:46).102 A exigência normativa de

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

272

101 “De nuevo el derecho ha de aplicarse a sí mismo en forma de normas orga-nizativas, para crear no sólo competencias en lo tocante a la administra-ción de justicia, sino para establecer discursos jurídicos como ingredientesde los procesos judiciales. Las normas relativas al orden del proceso insti-tucionalizan la práctica de la decisión judicial de manera que la sentenciay la fundamentación de la sentencia puedan entenderse como resultado deun juego argumentativo que viene programado de forma especial. Y denuevo se entrelazan procedimientos jurídicos con procedimientos argu-mentativos no debiendo interferir el establecimiento que se hace de dis-cursos jurídicos en términos de derecho procesal con el lado interno de lalógica de esos discursos. Pues el derecho procedimental o procesal noregula la argumentación normativo-jurídica como tal, sino que no hace másque asegurar en el aspecto temporal, social y objetivo el marco institucio-nal para decursos de comunicación que así quedan libres, es decir, que asípuedan producirse, los cuales sólo obedecen a ala lógica interna de los dis-cursos de aplicación” (HABERMAS, 1998:307, grifo no original).

102 “On the one hand, Habermas speaks of the coherence of a legal systemas a whole, which should guide consistent decision making in particularcase. This sounds similar to Dworkin’s theory of law as integrity, whichhas to be realized by the judge alone. But Habermas rejects Dworkin’ssuggestion of constructive interpretation, because it links the validity ofa legal proposition to the ideal of a complete theory, which is necessarilymetaphysical in character. Furthermore, it leaves interpretation up to thejudge as an individual” (GÜNTHER, 1995:48).

Page 285: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

imparcialidade, então, pode-se despersonificar através deuma separação entre discursos de justificação normativa ediscursos de aplicação do Direito.

Nesse sentido, traça-se uma linha que liga os partici-pantes do processo e os demais membros da comunidade.Assim, um processo judicial revela uma dimensão que, porsi só, ultrapassa os limites de uma situação específica, que,segundo a dogmática tradicional, estaria representandoapenas o interesse particular das partes envolvidas(HABERMAS, 1998:300).

Os discursos de aplicação servem-se de normas jáfixadas nos discursos de justificação. Logo, para seremconsideradas normas, devem passar pelo teste de univer-salização, o que significa que todo direito, por mais indivi-dualista que seja sua leitura, expressa um interesse com-partilhado por toda a sociedade e, por isso mesmo, umamaterialização do interesse público.

Além do mais, Habermas (1998:300) adverte que, nosdiscursos de aplicação do Direito, o atendimento ao inte-resse de todos os possíveis afetados deve ficar para segun-do plano, cedendo lugar para a busca da norma mais ade-quada a partir da reconstrução do caso concreto. Em razãodisso, a reconstrução da situação de aplicação, que ocorreem simétrica paridade com as partes processuais, ganharelevo. As visões de mundo destas entrecruzam-se comdescrições de estados de coisas impregnadas normativa-mente cuja validade é pressuposta.

Dessa forma, o regresso ao discurso de justificaçãorepresenta uma via fechada em suas múltiplas formas.Nem as partes nem o juiz podem ocupar o lugar dos deba-tedores daquele discurso: as partes, em razão do conflitode interesse, são incapazes de assumir uma perspectivaque leve à troca recíproca de papéis (GÜNTHER, 1995:49);o juiz, que desempenha um papel de terceiro em relação aoconflito, apenas atua como um representante do sistema

O Poder Judiciário e(m) Crise

273

Page 286: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

jurídico, cujo titular é a sociedade. Por isso, a ele não édada a possibilidade de negar validade às normas previa-mente fixadas como tal pela sociedade, muito menos deapresentar novas razões, quer de maneira supletiva, querde maneira concorrente (GÜNTHER, 1995:50).

Todavia, o público não fica excluído totalmente daquestão. Uma vez que a decisão não é apenas para as par-tes – no sentido de que, ao desenvolver uma compreensãodos direitos que se integram em um mesmo sistema coe-rente – ela volta-se para o resto da comunidade, que podeassumir uma importante participação – para além da suarepresentação pelo juiz – através da crítica pública da deci-são, a qual lembra aos magistrados que são apenas repre-sentantes de um Direito que pertence a toda a sociedade,e não o seu agente materializador, como pode transparecerem Dworkin (GÜNTHER, 1995:52).103

Portanto, em todo julgamento, devemos buscarreconstruir as situações características e particulares doscasos para determinar a norma adequada dentre umaconstelação de outras prima facie aplicáveis. Ao magistra-do cabe somente fundamentar suas decisões com base emrazões normativamente justificáveis – os argumentos deprincípio, para usar a expressão de Dworkin. Também emHabermas, a aplicação judicial do Direito norteia-se pela“decisão correta”, o que exclui a possibilidade de decisãodiscricionária ou de qualquer atividade legislativa supleti-va ou concorrente pelo Judiciário.

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

274

103 “The participants who play the role of the third party can only representthe system of all valid norms which all participants share equally. Butthey cannot deny the validity of any one of the norms which they repre-sent who does not belong to the third party; that is, the discourse partici-pant who is involved in the concrete case. As representatives of the validnorms, the participants who play the role of the third party can only argueabout the coherent interpretations of the valid norms with regard to allrelevant features of the case” (GÜNTHER, 1995:50, grifos no original).

Page 287: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

Sob as balizas destes pressupostos teóricos é quepodemos afirmar que a leitura “quantitativa” do “acesso àJustiça” em nada contribui para uma compreensão ade-quada ao Estado Democrático de Direito; ao contrário, mos-tra-se profundamente agarrada e fixa numa leitura típicado Estado Social, devendo, de pronto, ser descartada. Umaperspectiva procedimental, então, deve afirmar que o“acesso” somente pode se dar, efetivamente, se garantidoa todos os partícipes do discurso processual os princípiosconstitucionais, ou seja, iguais liberdades subjetivas parasua ação no iter procedimental.

Ao contrário do que pesam e do que pensam algunsjuristas tradicionais – principalmente os instrumentalis-tas – e ministros de nossos Tribunais Superiores – dentreeles Gilmar Ferreira Mendes –, quanto maior a oportuni-dade de problematização, maior é o espaço para desen-volvimento de uma “cidadania ativa” (SOUZA CRUZ,2004:247). Principalmente, porque a conclusão à qual che-gamos não é no sentido de que os Tribunais Superiores fun-cionam como um “terceiro grau” de jurisdição, mas que osrecursos a eles destinados apresentam uma importantefunção: assegurar a aplicação de normas adequadas aoscasos concretos, de modo a sempre integrá-las num mesmosistema coerente – o que, em termos dworkianos, visa àgarantia de integridade do Direito. Assim, também emHabermas, os recursos permitem que sejam produzidasnovas respostas jurídicas, mantendo a expectativa de queessas sejam mais adequadas que as anteriores. As deci-sões proferidas no passado e no presente, então, nãopodem ser descartadas, pois indicam uma linha de raciocí-nio na compreensão de um direito e contribuem para umaleitura coerente.

A mal falada “crise do judiciário”, em sua leitura feitapelos instrumentalistas do processo e constitucionalistasnacionais, deixa transparecer na realidade outro problema:

O Poder Judiciário e(m) Crise

275

Page 288: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

uma crise de legitimidade das decisões proferidas peloJudiciário brasileiro, quer por submisso aos interesses fun-cionais do Mercado ou do Poder Administrativo, quer porainda apegado a uma leitura paradigmática de Estadoincompatível (a nosso ver) com a atual. Na realidade, esta-mos no meio do turbilhão apontando uma ruptura que éiminente; enquanto isso, nossos juristas viram as costas ouse limitam a apresentar propostas paliativas – como súmu-las vinculantes, repercussões gerais/transcendências edemais efeitos vinculantes – procurando por meio de forçae uma pseudo autoridade (já que carente de legitimação)fixar e (re)afirmar uma “segurança jurídica” equivocada.

Na realidade, como já afirmado anteriormente, a crisetem seu ponto positivo, que não pode – e nem tem como –ser eliminada. No caso das “crises” do judiciário e do“acesso à Justiça”, elas revelam a importância do judiciá-rio, não mais apenas como um órgão de decisão estatalpara uma sociedade “cliente”, mas, agora, como fórum dediscussão pública, no qual esta sociedade participa emsimétrica paridade – de maneira interna – ou através dacrítica pública das decisões, mostrando que as mesmasnão mais podem ser toleradas como frutos de consciênciasindividuais (solipsista) ou justificadas exclusivamente peloargumento de autoridade. A faticidade das mesmas (coer-citivilidade) recorre, antes, do compartilhamento de umapretensão de correção fundada em uma leitura do ordena-mento jurídico como um sistema coerente de princípios eregras, como pregam Dworkin, Habermas e Günther.

Finalizando, a defesa dos adeptos do movimento do“acesso à Justiça” – criticados anteriormente –, então,deveria ser no sentido de buscar uma ampliação dos espa-ços procedimentais, para que haja condição de exercício deuma cidadania ativa – que preserve tanto a autonomia pri-vada quanto a autonomia pública – e a isto, denominamos

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

276

Page 289: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

de “acesso à Justiça” qualitativo e não apenas restrita aoprimeiro grau de jurisdição, como quer Marinoni.

Devemos lembrar, portanto, que o cidadão tem direitode, por ele mesmo, atuar na busca pela defesa e proteçãode seus direitos (BAHIA, 2003:355), como exercício de suaautonomia privada. Para tanto, a garantia dos princípiosprocessuais e uma compreensão acerca dos mesmos sãofundamentais, bem como a existências de recursos quepermitam ventilar o debate jurídico sobre a interpretaçãocoerente de direitos.

O Poder Judiciário e(m) Crise

277

Page 290: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise
Page 291: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

Capítulo 5 Conclusão

No início da pesquisa, foi revelada ao leitor a tarefa deconstruir um “acesso à Justiça” constitucionalmente ade-quado ao paradigma proposto e delineado no primeirocapítulo, qual seja, o do Estado Democrático de Direito.

A estratégia inicial foi a de compreender a Consti-tuição como a regulação de processos que teriam comoobjetivo primordial a garantia da autonomia jurídica doscidadãos superando a perspectiva do paradigma liberal (deênfase na autonomia privada) e do paradigma social (deênfase na autonomia pública). Buscando, assim, não conce-ber a Constituição como um mero “instrumento de gover-no” e nem mesmo como uma “ordem concreta de valores”.A crítica se deu, portanto, tanto no que tange ao modeloliberal quanto ao modelo social, visto que ambos “mata-riam a cidadania”. Ou seja, ambos com seus excessos ani-quilam a cidadania. Pois, cidadania (para nós) pressupõe,autonomia privada e autonomia pública em co-originarie-dade. Nesse sentido:

“O visado nexo interno entre soberania do povo edireitos humanos reside no conteúdo normativo de ummodo de exercício da autonomia política, que é asse-gurado através da formação discursiva da opinião e davontade. (...) O sistema dos direitos não pode ser redu-zido a uma interpretação moral dos direitos, nem auma interpretação ética da soberania do povo, porquea autonomia privada dos cidadãos não pode ser sobre-posta nem subordinada a autonomia política. (...) A co-originariedade da autonomia privada e pública

279

Page 292: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

somente se mostra, quando conseguimos decifrar omodelo da autolegislação através da teoria do discur-so, que ensina serem os destinatários simultaneamen-te os autores de seus direitos. A substancia dos direi-tos humanos insere-se, então, nas condições formaispara a institucionalização jurídica desse tipo de forma-ção discursiva da opinião e da vontade, na qual asoberania do povo assume a figura jurídica” (HABER-MAS, 1997: 138-139).

Para a discussão sobre o “acesso à Justiça” a determi-nação do que seja Estado Democrático de Direito foi de fun-damental importância. Mas, não só o que seja esse para-digma de cunho “reflexivo” de que (tanto) falamos, mas asimplicações que ele necessariamente traz para a searatanto constitucional quanto processual.

O grande problema dos teóricos do processo comorelação jurídica que consideram o processo um instrumen-to de realização dos escopos jurídicos sociais e políticos foi –e ainda é – a concepção de Estado e de sociedade em queeles estão inseridos. O que defendemos é a noção de sobe-rania difusa na qual o Estado é um ator dentre outros ato-res sociais. Nesse marco teórico em que a maioria dos pro-cessualistas estão posicionados, não teríamos como defen-der a bandeira do “acesso à Justiça”, nem mesmo, comoacesso à ordem jurídica justa. Pois, essa “tal” ordem jurídi-ca justa e o próprio conceito de justiça estão eivados de um“axiologismo estatalizante” que não se abre a influxos,nem permite o desenvolvimento de um senso de adequabi-lidade necessário para a produção de decisões legítimas.

Conforme, já delineado, as questões acerca da legiti-midade das decisões judiciais, hoje, mais do que nunca,deslocam-se do virtuosismo ético-político do juiz para agarantia da decisão participada, que considera a argumen-tação dos diferentes afetados. Pois, há muito (como afirma-

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

280

Page 293: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

mos, na esteira de Cattoni de Oliveira e de Habermas) aquestão da legitimidade das decisões deixou de ser umproblema que se reduz à pessoa do juiz, que (como tam-bém, aqui, debatido) no marco teórico instrumentalistadeveria buscar a justiça através da identidade cultural e dacarga de valores sociais e políticos da nação. Esse guardiãoda verdade e da justiça que seria o juiz expert que comseus poderes realizaria a finalidade estatal da pacificaçãosocial e realização do bem comum posicionando-se, sem-pre de acordo com a sua sociedade (será mesmo?) e com osvalores inerentes à mesma.

Advogamos que em uma sociedade plural com umimenso pluralismo de “formas de vida” e de “visões demundo diferenciadas” e, principalmente, em desacordo,inclusive, com o que seja o justo, é inviável, construir ummodelo de justo e de legitimidade substantivado em valo-res imanentes da Nação. O juiz, portanto, deve estar sensí-vel à situação de aplicação.

A neutralidade do juiz tão combatida (e mal entendi-da) pelos instrumentalistas – principalmente Marinoni – foicaracterizada pelo fato de ele estar (e dever estar) sempreaberto a novas situações, sendo capaz de ouvir todos osafetados. Nesse sentido, Aroldo Plínio Gonçalves, conformejá citado com relação à justiça e o papel do juiz, afirma que:

“Com as novas conquistas do Direito, o problema dajustiça no processo foi deslocado do “papel-missão” dojuiz para a garantia das partes. O grande problema daépoca contemporânea já não é o da convicção ideológi-ca, das preferências pessoais, das convicções íntimasdo juiz. É o de que os destinatários do provimento, doato imperativo do Estado que, no processo jurisdicio-nal, é manifestado pela sentença, possam participar desua formação, com as mesmas garantias, em simétricaigualdade, podendo compreender por que, como, por

O Poder Judiciário e(m) Crise

281

Page 294: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

que forma, em que limites o Estado atua para resguar-dar e tutelar direitos, para negar pretensos direitos epara impor condenações” (GONÇALVES 1993:195).

Com isso, reafirmamos que o que garante a legitimida-de das decisões, são antes as garantias processuais atri-buídas às partes, principalmente a do contraditório e daampla defesa, além da necessidade da fundamentação (enão motivação) das decisões judiciais.

Devemos deixar claro que não desconsideramos asoutras leituras que porventura possam ser feitas sobre oproblema da efetividade do processo, da “crise do judi-ciário” e do “acesso à Justiça”, mas a nossa intenção foia de trabalhar o tema sob a perspectiva da qualidade dasdecisões, que acreditamos ser de suma e fundamentalimportância para a redução dos obstáculos ao “acessoefetivo à Justiça”.

Certo é que, de uma forma ou de outra, as visões tra-zidas no texto, serviram para conhecer como se deu o iní-cio do movimento de “acesso à Justiça” em pleno paradig-ma do Constitucionalismo social, bem como, para matizar,apesar das contribuições todos os autores instrumentalis-tas, voltados para o que poderíamos chamar de esfera“pública”, meramente “estatal”. Nesse sentido:

“Sob o paradigma do Direito procedimentalizado doEstado Democrático de Direito, um processo políticodeliberativo legítimo, conformado constitucionalmen-te, só pode ser compreendido, sob as condições, deuma sociedade complexa, em termos de uma teoria dacomunicação, como fluxo comunicativo que emigra daperiferia da esfera pública – cujo substrato é formadopelos movimentos sociais e pelas associações livres dasociedade civil, surgidos das esferas da vida privada –e atravessa as comportas ou eclusas (VIEIRA, J.R,

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

282

Page 295: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

1997:221-222) dos procedimentos próprios à Demo-cracia e ao Estado de Direito, ganhando os canais ins-titucionais dos processos jurídicos não somente legis-lativos, mas também jurisdicionais e até administrati-vos, no centro do sistema político” (HABERMAS, 1997b; 2: 86-91;CATTONI DE OLIVEIRA, 2000:110).

A advertência sobre idealizações (ou dos supostosidealizantes) também perpassou as nossas preocupações.Não podemos, de forma alguma, cair na armadilha, a qualpassamos todo o tempo criticando.

O jurista Friedrich Müller em um pequeno ensaio (jácitado nesta obra) intitulado “Quem é o povo?” (1998)chama a atenção para o perigo das idealizações e manipu-lações de palavras e de expressões. O autor trabalha notexto os vários significados da palavra povo, servindo esseexemplo, também para termos que são usados em nossaobra, como: democracia, Estado, “acesso à Justiça” e etc.Ou seja, os capítulos dois e três que produziram críticas àscorrentes instrumentalistas fundamentadas, a nosso ver,em um “equivoco” paradigmático, que não é apenas umjogo de palavras, uma tautologia, na qual teríamos venci-dos (do nefasto Estado social) e vencedores (do “lindo” e“maravilhoso”, Estado Democrático de Direito). O traba-lho busca ir além de um voluntarismo a nosso olhar, atémesmo, mesquinho, pois:

1º) o que buscamos foi demonstrar que os paradig-mas são – ou envolvem – pré-compreensões, visões demundo diferenciadas. E são essas visões que acabam pormoldar nosso olhar que, por definição, é sempre um olhar“socialmente condicionado” e, por isso mesmo, as postu-ras, práticas e atitudes envolvem, ou melhor, são envolvi-das por panos de fundo intersubjetivamente compartilha-dos. Observando as teses instrumentalistas (sem a inten-ção de satanizá-las), percebemos que se alinham a um

O Poder Judiciário e(m) Crise

283

Page 296: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

paradigma não condizente com o que procuramos defen-der, e isto, influência todo o modos operandi de uma Teoriado Processo e de uma Teoria da Constituição, seja na: pos-tura do juiz, no modo como ele toma (ou deve tomar asdecisões), no modo de conceituar e trabalhar o papel doEstado, no modo de analisar o papel da Constituição narelação com o Estado e a sociedade, na busca pelo “aces-so à Justiça” e, muito mais no entendimento do que seja,realmente, um verdadeiro “acesso à Justiça”, não apenasquantitativo (nos moldes da busca pela massificação doacesso e na luta pela efetividade a todo o custo, comexpressões do tipo, hoje tão comuns como celeridade,desobstrução do STF, desafogamento do STJ e do TST,repercussão geral no Recurso Extraordinário, transcen-dência no recurso de revista, súmula vinculante e etc.)mas qualitativo.

2º) É bom também deixar consignado que o que cha-mamos de Estado Democrático de Direito (que é umamudança de postura, por exemplo, no que tange à relaçãoEstado/sociedade ou no que tange à visão de mundo) nãoé e nem pode ser entendido como uma “panacéia” salvífi-ca. Muito pelo contrário, ele não é o “mundo maravilhosode Beto Carreiro World” ou a “Disneyland”, nele (como nosoutros) também se encontram todas as mazelas da nossaépoca. Sem dúvida, trabalhar esse paradigma como a “sub-sunção última de um espírito absoluto” seria contradizer abase discursiva e pós-metafísica (pós-ontológica) de nos-sas digressões. Certo é que, nunca teremos “o processo”, o“Código de Processo (civil ou penal)”, o Poder Judiciário”,“a Reforma do Judiciário”, “o acesso à Justiça (quantitati-vo ou qualitativo)” e “a democracia” perfeitos(as). Todasessas palavras e expressões “gordas” fazem parte de umtranscurso e como tal (com lutas, fluxos e refluxos, idas evindas) deve ser encarado.

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

284

Page 297: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

A idéia, então, de fluxo comunicativo deve ser ligadaa essa noção de transcurso (e não só a ela). Sendo que amoderna teoria constitucional tem a consciência das mani-pulações que porventura aconteçam, pois o conceito dedemocracia pode, por exemplo, ser instrumentalizado atra-vés de jogos políticos.

A modernidade, sem dúvida, liberou outro tipo deracionalidade, além da instrumental “de meios a fins” queWeber1 vislumbrou através de uma “astúcia”. Essa foi deli-neada por Habermas como racionalidade comunicativa namedida em que as pessoas se reconhecem como pessoas enão como meios. Mas essa racionalidade comunicativa(trabalhada por Habermas) é extremamente frágil e infeliz-mente fácil de ser “destruída”, pois, o sistema tende a pre-dominar, “colonizando” a possibilidade de ação comunica-tiva, mas ao mesmo tempo (paradoxalmente), ela é ineren-te ao direito moderno (e a sociedade moderna dessacraliza-da e multifacetada) e nós temos sempre a possibilidade,ainda que tênue, de atuação de pessoas como pessoas.

Só que a ação comunicativa advinda de uma racionali-dade comunicativa tende a ser colonizada pelos sistemassociais do Mercado e do Mundo Administrativo, mas é umapotencialidade típica da modernidade e como tal, semprepresente.

Afirmamos, então, que nunca teremos o “acesso àJustiça” ideal (o que podemos é diminuir os níveis de obstá-culos, sobretudo se melhorarmos a legitimidade e qualidadedas decisões) ou a democracia ideal ou a ação comunicativaabsoluta em uma sociedade complexa como a nossa.Teremos sim, fragmentos de ação comunicativa e de demo-cracia, pois não é por outra razão que estes conceitos são,

O Poder Judiciário e(m) Crise

285

1 Nesse sentido: “(...) enquanto para Weber, toda ação humana seria racio-nal apenas se pudesse ser justificada à luz da seleção dos melhoresmeios para a realização de um fim” (HABERMAS, 1987:361).

Page 298: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

sem nenhuma ilusão, considerados nunca como “dados” e“resolvidos”, mas sim, em permanente fazer, ou melhor, emtermos processuais (fluxos comunicativos em permanenteoxigenação). Ou seja, sabemos, por exemplo, que na moder-nidade não podemos eliminar o risco ou a crise, pois eles sãoinerentes a nossa condição moderna; o que devemos (e istotambém sabemos) é apenas procurar lidar com o risco e ten-tar controlá-lo. E, paradoxalmente, quanto mais tentamoscontrolá-lo, menos o controlamos. A única certeza que temoshoje é da imensa complexidade social em que vivemos.

É tempo da doutrina conscientizar-se dos novos para-digmas que permeiam o estudo do Direito Constitucional edo Direito Processual. A proposta aqui foi a de construçãodo “acesso à Justiça” qualitativamente e legitimamenteadequado ao paradigma do Estado Democrático de Direito,trabalhando a teoria discursiva do direito e da democraciae a teoria do processo como procedimento realizado emcontraditório entre as partes.

Seguindo os ensinamentos de vários anos de convívioe de estudo, realmente, concordamos plenamente comCarvalho Netto quando afirma serem “épocas difíceis parao constitucionalista, aquelas, justamente, em que o senti-mento de Constituição, para usar a expressão divulgadapor Pablo Lucas Verdú (1972), é aniquilado, não só pela con-tinuidade e prevalência de práticas constitucionais típicasda ordem autocrática anterior, como pela tentativa perma-nente de alteração formal da Constituição, seja pela viarevisional, seja através de emendas”.

Práticas e tentativas essas que, alcancem ou não, ofim menor a que visem, resultem ou não na alteração pre-tendida, terminam sempre por ferir a “aura da supremacia”de que deve revestir a Constituição, para que a mesma sejacapaz de legitimar, de validar o Estado e todos os demaisDireitos que nela se assentam. Instaura-se, assim, umasituação que também, a nosso ver, tende a desvelar o para-

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

286

Page 299: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

doxo do Direito moderno fundar a si próprio. Em outros ter-mos, é por intermédio da Constituição que o sistema dapolítica ganha legitimidade operacional e é também pormeio dela que a observância ao Direito Positivo pode serpoliticamente imposta de forma coercitiva.

Situação também paradoxal, para Carvalho Netto, emque os próprios órgãos legitimados pela Constituição sevoltam contra a sua base de legitimidade para devorá-la,revelando a “face brutal da privatização do público, dopoder estatal instrumentalizado”, reduzido e diminuído amero prêmio do eleito, visto como “as batatas” a que fazjus o vencedor, no dizer de Machado de Assis. Nesses ter-mos, é o sentimento de anomia que passa a campear solto,vigoroso, alimentando-se a fartar das dificuldades queencontramos em recuperar as sementes da liberdade, mer-gulhadas em nossas tradições (CARVALHO NETTO, 1998).

Portanto, se desejarmos sair (nos livrar) da “praga” derepetirmos eternamente a experiência de dominação quenos é e sempre foi imposta, poderíamos observar os ensi-namentos e digressões de um dos maiores filósofos moder-nos que foi Michel Foucault. O mesmo afirma que não édefinitivamente mediante grandes revoluções que rompe-remos com estas práticas seculares de dominação, pois asgrandes revoluções, tendem repetir os mesmos paradoxos,no sentido de que, vamos mudar os atores, mas, as estru-turas de dominação irão continuar mantidas (vide: revolu-ção francesa e revolução russa). Se quisermos realmentemudar alguma coisa (inclusive o “acesso à Justiça” e a“perspectiva de modelo constitucional do processo”) deve-mos optar por um processo lento, doloroso, difícil (extrema-mente difícil), mas, sem dúvida, através do cotidianopequeno (das pequenas coisas) e pequenas práticas.

Pois, certo é o ditado que diz: “A assombração sabepara quem aparece”. Ou seja, se temos um presidente quenão governa democraticamente, mas mediante exceções,

O Poder Judiciário e(m) Crise

287

Page 300: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

um judiciário que não cumpre suas funções basilares, nãoproduzindo legitimidade em suas decisões e um legislativoque efetivamente não legisla, é justamente porque somosnas pequenas coisas e nas pequenas práticas do nosso dia-dia mais comum, um pouco desse executivo (que não cum-pre sua função democrática), desse judiciário (que seesconde “nas montanhas de processo e na necessidade deum juiz cada vez mais solipsista e discricionário” e que nosTribunais Superiores, com as recentes reformas, atrelam-sea um pseudo interesse público em detrimento do interesseprivado) e desse legislativo (que não legisla adequadamen-te na sistemática processual).

Concluindo, Souza Cruz (2004:237) nos lembra que adecisão adequada (legitima) não se encontra sobre a basede um consenso ético-substantivo majoritário. Ela está noprocedimento que, por sua vez, levanta a exigência deobservância dos princípios informadores do devido proces-so constitucional, de uma reciprocidade entre participantese do “discurso jurídico”. Esse procedimento ainda deveráser imparcial, levantando exigências de iguais considera-ções de todas as particularidades apresentadas pelo caso.

Logo, o processo de aplicação judicial do Direito revelauma dimensão que por si só já ultrapassa os limites de umasituação particular, que, segundo a dogmática tradicional,estaria representando apenas o interesse particular das par-tes envolvidas. Uma vez que o processo jurisdicional devecorrelacionar as perspectivas concretas das partes e as nor-mas prima facie aplicáveis, fruto de discursos de justifica-ção, traça-se uma linha que liga os participantes do proces-so e os demais membros da comunidade. Por isso mesmo, adecisão não é apenas para as partes, mas, ao desenvolveruma compreensão dos direitos que se integram em ummesmo sistema coerente, volta-se para o resto da comunida-de (GÜNTHER, 1995:52), que pode assumir uma participa-ção importante através da crítica pública da decisão.

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

288

Page 301: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

Referências Bibliográficas

AFONSO DA SILVA, Virgílio. O proporcional e o razoável.Revista dos Tribunais. São Paulo: Revista dos Tribunais.a. 91. v. 798. abr./ 2002.

ALEXY, Robert. Derecho y Razón Práctica. 2. ed. México:Fontamara, 1998.

ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales.Trad. Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro deEstudios Constitucionales. 1997.

_____. Teoria de la Argumentacion juridíca. Trad. ManuelAtienza e Isabel Espejo. Madrid: Centro de EstudiosConstitucionales, 1989.

_____. Balancing, constitutional review, and representa-tion. International Journal of constitutional Law. OxfordUniversity Press e New York University School of Law,2005. v. 3. n. 4.

_____. El concepto y la validez del derecho. 2. ed., Trad.Ernesto Garzon Valdés. Barcelona: Gedisa, 1997b.

ANDOLINA, Italo e VIGNERA, Giuseppe. II modelo costitu-zionale del processo civile italiano – Corso di lesioni.Torino: Giappicheli, 1990.

ARATO, Andrew e COHEN, Jean. Civil society and politicaltheory. Cambridge: The MIT Press, 1994

_____. “Sociedade Civil e teoria política” in Sociedade Civile Democratização, Coordenação de Leonardo Avritzer.Belo Horizonte: Del Rey,1994.

ARAÚJO, Marcelo Cunha. O Império do Direito de RonaldDworkin. Revista da Faculdade Mineira de Direito. BeloHorizonte: PUC Minas. v. 4. n. 7 e 8, jan./jun. 2001.

ARMELIN, Donaldo. Acesso à justiça. Revista daProcuradoria-Geral do Estado de São Paulo. v. 31,1982.

289

Page 302: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

ARENDT, Hannah. A condição Humana. 5. ed. Rio deJaneiro: Forense Universitária, 1991.

_____. Entre o passado e o futuro. Trad W. Barbosa deAlmeida. São Paulo: Perspectiva, 1992.

ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição àaplicação dos princípios jurídicos. 4. ed. São Paulo:Malheiros, 2004.

AVRITZER, Leonardo. Jürgen Habermas: “A razão de umamodernidade antecipada”. Belo Horizonte, RevistaSíntese Nova Fase, v. 17, n. 49, abr./jun. de 1990.

BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. Controle judicialdifuso de constitucionalidade das leis e atos normati-vos: contribuição para a construção de uma democraciacidadã no Brasil. 2003. Dissertação (Mestrado em DireitoConstitucional) – Faculdade de Direito, UniversidadeFederal de Minas Gerais, Belo Horizonte.

BARACHO, José Alfredo de Oliveira. ProcessoConstitucional. São Paulo: Forense,1984.

_____. Teoria da Constituição. Revista Brasileira de EstudosPolíticos. Belo Horizonte, n 47, p. 7-47 jul. 1978.

BARACHO JUNIOR, José Alfredo de Oliveira.Responsabilidade Civil por Dano ao Meio Ambiente.Belo Horizonte: Del Rey, 1999.

BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O Novo Processo CivilBrasileiro. Rio de janeiro: Forense, 1997.

_____. “Sobre a participação do juiz no Processo Civil”, inParticipação e Processo, Coordenação da Ada PellegriniGrinover, Cândido Rangel Dinamarco, Kazuo Watanabe,São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988.

_____. “A Motivação das Decisões Judiciais como GarantiaInerente ao Estado de Direito” in Temas de DireitoProcessual: Segunda Série. São Paulo: Saraiva,1980.

_____. “A Garantia do Contraditório na Atividade deInstrução”, in Temas de Direito Processual: Sexta Série.São Paulo: Saraiva, 1984.

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

290

Page 303: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

_____. “Efetividade do Processo e técnica processual” ”, inTemas de Direito Processual: Terceira Série. São Paulo:Saraiva, 1997.

_____. Duelo e Processo. Revista de Processo. São Paulo:Revista dos Tribunais. n. 112. a. 28. out./dez. 2003.

BAXTER, Hugh. Habermas’s Discourse Theory of Law andDemocracy. Buffalo Law Review. n. 50. 2002.

_____. System and Lifeworld in Habermas’s Theory of Law.Cardozo Law Review. n. 23. 2002b.

BILLIER, Jean-Cassien. MARYIOLI, Aglaé. História daFilosofia do Direito. Trad. Maurício de Andrade. Barueri:Manole, 2005.

BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia – Uma Defesadas Regras do jogo. Trad. Marco Aurélio Nogueira. Riode Janeiro: Paz e Terra, 1988.

_____. A Era dos Direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Riode Janeiro: Campus, 1992.

BLUMEMBERG, Hans. The Legitimacy of Modern Age.Cambridge: MIT 1995.

BONAVIDES, Paulo Curso de Direito Constitucional. SãoPaulo: Malheiros, 1997.

BÜLOW, Oskar von. La teoría de las excepciones procesa-les y los presupuestos procesales. Trad. Miguel AngelRosas Lightschein. Buenos Aires: Ediciones JurídicasEuropa América, 1964.

CALAMANDREI, Piero. Processo e democrazia. Pádua:CEDAM, 1954.

CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Instrumentalidadedo processo e devido processo sobre o tema, in TemasAtuais de Direito Processual Civil, Coordenação deCésar Augusto de Castro Fiúza, Maria de Fátima Freirede Sá e Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias. BeloHorizonte: Del Rey, 2001.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucionale Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2003.

O Poder Judiciário e(m) Crise

291

Page 304: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

_____. “Tópicos de um curso de mestrado sobre direitosfundamentais, procedimento, processo e organização”,Mineo. Coimbra, 1990.

CAPPELLETTI, Mauro e GARTH, Bryant. Acesso à justiça.Trad. Ellen Gracie Northflleet. Porto Alegre, Fabris: 1988.

_____. “Ideologias em el derecho procesal”. In Proceso,Ideologias, sociedad. Buenos Aires: Ejea, 1974.

_____. Acesso alla giustizia como programma di reforma ecome metodo di pensiero, Revista de DirittoProcessuale, 1992.

_____. Acesso à justiça e a função do jurista em nossaépoca, Rev. OAB, 1990.

CARVALHO NETTO, Menelick de. A Sanção noProcedimento Legislativo. Belo Horizonte: Del Rey,1992.

_____. Racionalização do Ordenamento Jurídico eDemocracia. Revista brasileira de estudos políticos. BeloHorizonte. n. 88. dez./2003.

_____. O requisito essencial da imparcialidade para a deci-são constitucionalmente adequada de um caso concretono paradigma constitucional do Estado Democrático deDireito, RVPGE, 1999.

_____. Requisitos Pragmáticos da interpretação jurídicasob o paradigma do Estado Democrático de Direito.Revista de Direito Comparado. Belo Horizonte:Mandamentos. v.3. mai./1999b.

CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. DevidoProcesso Legislativo: Uma Justificação democrática docontrole jurisdicional de constitucionalidade das leis edo processo legislativo. Belo Horizonte: Mandamentos,2000.

_____. Tutela Jurisdicional e Estado Democrático de Direito– Por uma Compreensão Constitucionalmente adequadado Mandado de Injunção. Belo Horizonte: Del Rey, 1998.

_____. Direito Constitucional. Belo Horizonte:Mandamentos, 2002.

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

292

Page 305: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

________ O Caso Ellwanger: uma crítica à ponderação devalores e interesses na jurisprudência recente do Supre-mo Tribunal Federal. Disponível em: <http://www.leniostreck.com.br/midias/ ArtigoCasoEllwanger.doc>.Acessado em: 3 de janeiro de 2006.

_____. “Coesão interna entre Estado de Direito eDemocracia na Teoria Discursiva do Direito de JürgenHabermas”, In Jurisdição e HermenêuticaConstitucional no Estado Democrático de Direito. BeloHorizonte: Mandamentos, 2004.

CARNELUTTI, Francesco. Instituciones del Proceso Civil,Trad. Sentis Melendo, 1973, v. 1.

_____. Derecho y Processo. Trad. Santiago Sentis Melendo.Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa – América,1971.

CARPI, Frederico. La provvisoria esecutorieta della senten-za. Milano: Giuffre, 1979.

CLÈVE, Clemerson Merlin. Atividade Legislativa do Poderexecutivo no Estado Contemporâneo e na Constituiçãode 1988. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990.

CICHOCKI NETTO, José Limitações ao acesso à justiça.Curitiba: Juruá, 1994.

CITTADINO, Gisele. Pluralismo, direito e justiça distributi-va. Elementos da filosofia constitucional contemporâ-nea. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000.

CHAMON JUNIOR, Lúcio Antônio. Filosofia do Direito naAlta Modernidade: incursões teóricas em Kelsen,Luhmann e Habermas. Rio de Janeiro: Lumen Juris,2005.

_____. Teoria Geral do Direito Moderno: Por umaReconstrução Crítica-Discursiva na alta Modernidade.Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

_____. “Tertium non datur: pretensões de coercibilidade evalidade em face de uma teoria da argumentação jurídi-ca no marco de uma compreensão procedimental do

O Poder Judiciário e(m) Crise

293

Page 306: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

Estado Democrático de Direito”. In Jurisdição eHermenêutica Constitucional no Estado Democrático deDireito, Coordenação Marcelo Andrade Cattoni deOliveira. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004.

CHAUÍ, Marilena. Público, Privado, Despotismo. In Ética,Organização Adauto Novaes. São Paulo: Companhia dasLetras, 1992.

CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito ProcessualCivil, trad. Paolo Capitanio. Saraiva: São Paulo, 1998, v.1.

_____. Istituzioni di diritto processuale civile. Napoli:Eugenio Jovene,1940. v. 1.

CINTRA, Antonio Carlos de, GRINOVER, Ada Pellegrini eDINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral doProcesso.19. ed. São Paulo: Malheiros,2003.

CONDÉ, Mauro Lúcio Leitão. As teias da razão:Wittgenstein e a crise da racionalidade moderna. BeloHorizonte: Argumentum, 2004. (Scientia/UFMG).

COSTA, Cláudio. Filosofia da Linguagem. 2. ed. Rio deJaneiro: Jorge Zahar, 2003. (Filosofia passo-a-passo).

DAKOLIAS, Maria. The judicial sector in Latin Americanand the Caribbean: elements of reform. Washington: TheWorld Bank, 1996. (World Bank Technical Paper. n. 319).

DENTI, Vittorio. La giustizia civile. Bolonha: Mulino, 1989._____. Um progeetto per la Giustizia Civile. Bolonha:

Mulino, 1982.DE GIORGI, Raffaele. Democracia, Parlamento e Opinião

Pública na Sociedade Contemporânea. Belo Horizonte,Cadernos do Legislativo, n. 4, 1995.

DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade doProcesso, 7. ed, rev. e atual., São Paulo: Malheiros, 1999.

_____. Fundamentos do Processo Civil Moderno, 2. ed. SãoPaulo: Revista dos Tribunais, 1987.

_____. Técnica e Efetividade do Processo. Revista Synthesis– Direito do Trabalho Material e Processual. n. 4/87.

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

294

Page 307: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

DUGUIT, Leon. Las transformaciones del derecho público yprivado. Trad. Adolfo G. Posada. Buenos Aires: Healista.

DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Trad. JeffersonLuiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes,1999.

_____. Uma Questão de Princípio. Trad. Luis Carlos Borges.São Paulo: Martins Fontes, 2000.

_____. A Matter of Principle. Cambridge: HarvardUniversity Press, 1986.

_____. Taking Rights Seriously. Cambridge: HarvardUniversity Press, 1978.

_____. Freedom’s Law – The moral reading of the AmericanConstitution. Cambridge: Harvard University Press,1996.

_____. Hart’s Postscript and the character of PoliticalPhilosophy. Oxford Journal of Legal Studies. Oxford:Oxford University. v. 24. n. 1. 2004.

FAZZALARI, Elio. Istituzioni Di Diritto Processuale, 6. ed.Padova: CEDAM, 1996.

FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Globalização eDemocracia pós-nacional à luz de uma Teoria Discursivado Direito e da Democracia. 2004. Tese. (Doutorado emDireito Constitucional) – Faculdade de Direito,Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.

FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo doDireito: técnica, decisão e dominação. 2 ed. São Paulo:Atlas, 1994.

FOUCAULT, Michel. A Microfísica do Poder. Trad. RobertoMachado. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

FORTHOFF, Ernest. Problemas constitucionales del EstadoSocial in Estado Social. Madrid: Centro de EstudiosConstitucionales, 1986.

FREITAG, Barbara. Itinerários de Antígona: a questão damoralidade. 3. ed. Campinas: Papirus, 2002.

_____. Dialogando com Habermas. Rio de Janeiro: TempoBrasileiro, 2005.

O Poder Judiciário e(m) Crise

295

Page 308: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

GADAMER, Hans-Georg. Organização de Pierre Fruchon. Oproblema da consciência histórica. 2. ed. Trad. PauloCésar Duque Estrada. Rio de janeiro: Fundação GetúlioVargas, 2003.

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: Fundamentosde uma hermenêutica filosófica. 3. ed. Trad. Enio PauloGiachini. Petrópolis: Vozes, 2001.

_____. Verdade e método II: complementos e índice. Trad.Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2002.

GALUPPO, Marcelo Campos. Elementos para uma com-preensão metajurídica do processo legislativo.Cadernos de Pós-Graduação. (Teoria Geral do ProcessoCivil). Belo Horizonte: Movimento Editorial daFaculdade de Direito da UFMG, 1995.

_____. Igualdade e Diferença: Estado Democrático deDireito a partir do pensamento de Habermas. BeloHorizonte: Mandamentos, 2002.

GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica Processual e Teoria doProcesso. Rio de Janeiro: Aide, 1993.

GRINOVER, Ada Pellegrini, “Acesso à justiça no ano 2000”,In O processo em Evolução, Rio de Janeiro: Forense,1998.

_____. “O novo Processo do Consumidor”, in O processo emEvolução, Rio de Janeiro: Forense, 1998.

_____. As Garantias Constitucionais do Processo nas AçõesColetivas. Revista de Processo, n.43, Revista dosTribunais, 1986.

_____. “Significado social, político e jurídico dos interessesdifusos”, in A marcha do Processo. Rio de Janeiro:Forense Universitária, 2000.

GÜNTHER, Klaus. The Sense of Appropriateness. Trad.John Farrel. New York: State University of New YorkPress, 1993.

_____. Legal adjudication and democracy: some remarks onDworkin and Habermas, European Journal of

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

296

Page 309: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

Philosophy. Essex: Blackwell Publishers. v. 3. n. 1.abr./1995.

_____. Justification et application universalistes de lanorme en droit et en morale. Trad. Hervé Pourtois.Archives de Philosophie du Droit. Sirey, t. 37. a. 1992.

_____. Un concepto normativo de coherencia para una teo-ría de la argumentación jurídica. Trad. Juan CarlosVelasco Arroyo. Doxa. n. 17-18. a. 1995b.

_____. Uma concepção normativa de coerência para umateoria discursiva da argumentação jurídica. Trad. LeonelCesarino Pessoa. Cadernos de Filosofia Alemã. SãoPaulo. n. 6. a. 2000.

HABERLE, Peter, Hermenêutica Constitucional – A socie-dade aberta de interpretes da Constituição para a inter-pretação pluralista e procedimental. Trad. GilmarFerreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Fabris, 1997.

HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia – Entre aFacticidade e a Validade, Trad. Flávio BenoSiebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. 2 v.

_____. Facticidad y Validez: sobre el Derecho y el EstadoDemocrático de Derecho en términos de Teoría delDiscurso. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madrid:Trotta, 1998.

_____. Equal Treatment of Cultures and the Limits ofPostmodern Liberalism. The Journal of PoliticalPhilosophy. v. 13. n. 1, 2005.

_____. Verdade e Justificação: ensaios filosóficos. Trad.Milton Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2004.(Humanística).

_____. A ética da discussão e a questão da verdade.Tradução de Marcelo Brandão Cippola. São Paulo:Martins Fontes, 2004.

_____. O Estado Democrático de Direito – uma amarraçãoparadoxal de princípios contraditórios?, In Era das tran-

O Poder Judiciário e(m) Crise

297

Page 310: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

sições. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro:Tempo Brasileiro, 2003.

_____. Mudança Estrutural da Esfera Pública. Trad. FlávioR. Kothe. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.

_____. Agir Comunicativo e Razão destranscendentalizada.Trad. Lucia Aragão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,2002

_____. A inclusão do outro: estudos de teoria política. Trad.George Speiber e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola,2002.

_____. Más allá del Estado nacional. Trad. ManuelRedondo. México: Fundo de Cultura Económica, 2000.(Sección de obras de política y derecho).

_____. “Acerca do uso pragmático, ético e moral da razãoprática”, In Comentários à Ética do Discurso. Trad. GildaLopes Encarnação. Lisboa: Instituto Piaget, 2000b.(Pensamento e Filosofia, n. 52).

_____. Três Modelos Normativos de Democracia. Trad.Anderson Fortes Almeida e Acir Pimenta Madeira.Cadernos da Escola do Legislativo, Belo Horizonte, n. 3,pp. 107-121, jan/jun.1995b.

_____. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Trad. GuidoAntonio de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,1989.

_____. Passado como Futuro. Trad. Flavio BenoSiebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993.

_____. “La crisis del Estado de bienestar y el agotamientode las energías utópicas”. In Ensayos Políticos. 2. ed.Ramón García Cotarelo. Barcelona: Península, 1994b.

_____. Teoría de la acción comunicativa. Trad. ManuelJiménez Redondo. Madrid: Taurus, 1987. 2 v. (Tomo I:Racionalidad de la acción y racionalización social; TomoII: Crítica de la razón funcionalista).

_____. Dialética e Hermenêutica. Trad. Álvaro Valls. SãoPaulo: L&PM, 1987b.

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

298

Page 311: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

_____. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos.Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: TempoBrasileiro, 1990.

HART, H. L. A. O Conceito de Direito. 2. ed. Trad. A. RibeiroMandes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994.

HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional daRepublica Federal da Alemanha. Trad. Luiz AfonsoHeck. Porto Alegre: Safe, 1998.

KELLY, Paul. “Ronald Dworkin: Taking Rights Seriously”. InThe Political Classics: Green to Dworkin, Organizaçãode Mürray Forsyth e Maurice Keens-Soper. Oxford:Oxford University Press, 1996.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6. ed. Trad. JoãoBatista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

KHUN, Thomas S. A Estrutura das Revoluções Científicas.Trad. Beatriz Viana e Nelson Boeira. São Paulo:Perspectiva, 1994.

KOZICK, Kátia. Conflito e estabilização: comprometendoradicalmente a aplicação do Direito com a democracianas sociedades contemporâneas. 2000. Tese (Doutoradoem Direito) – Faculdade de Direito, Universidade Federalde Santa Catarina, Florianópolis.

LAGES, Cíntia Garabini. A proposta de Ronald Dworkin em“O Império do Direito”. Revista da Faculdade Mineira deDireito. Belo Horizonte: PUC Minas. v. 4. n. 7 e 8, jan./jun.2001.

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria Geral do Processo. PortoAlegre: Síntese, 1999.

LEITE ARAÚJO, Luiz Bernardo. “Teoria discursiva e o prin-cípio da neutralidade”. In Filosofia Prática eModernidade, Organização de Luiz Bernardo LeiteAraújo e Ricardo José Corrêa. Rio de Janeiro: Editora daUniversidade do Estado do Rio de Janeiro, 2003.

, Enrico Tullio. Manual de Processo Civil. Trad. CândidoRangel Dinamarco. Rio de Janeiro: Forense, 1984.

O Poder Judiciário e(m) Crise

299

Page 312: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

, Niklas. Sociologia do Direito, Trad. Gustavo Bayer. Rio deJaneiro: Tempo Brasileiro, 1983. 2. v.

_____. “A constituição como Aquisição Evolutiva” Trad. DeMenelick de Carvalho Netto exclusivamente para finsacadêmicos no curso de Teoria da Constituição – Pós-Graduação UFMG. In Il Futuro Della Costituzione,Organização de Gustavo Zagrebelsky e outros. Torino:Einaudi, 1996.

________ Legitimação pelo Procedimento. Trad. Maria daConceição Corte Real. Brasília: UNB, 1980.

MACEDO, Gisela Márcia Araújo. O contraditório e a deci-são ex officio no Procedimento Civil. In EstudosContinuados de Teoria do Processo, Coordenação:Rosemiro Pereira Leal. Porto Alegre: Síntese, 2001. v. 2.

MARINONI, Luiz Guilherme. Novas Linhas de ProcessoCivil. São Paulo: Malheiros, 2000.

_____. A Legitimidade da Atuação do Juiz a partir doDireito Fundamental à Tutela Jurisdicional Efetiva. In ATerceira Etapa da Reforma do Código de Processo Civil.Organizadores: Adriano Caldeira e Rodrigo da CunhaLima Freira. Salvador: Ed. Podivm, 2007.

_____. Curso de Processo Civil: Teoria Geral do Processo. v.1. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

_____. Técnica Processual e Tutela de Direitos. São Paulo:Revista dos Tribunais, 2004.

_____. ARENHART, Sergio Cruz. Manual do Processo deConhecimento: a tutela jurisdicional através do processode conhecimento. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

_____. Tutela antecipatória e julgamento antecipado: parteincontroversa da demanda. São Paulo: Revista dosTribunais, 2002.

_____. Efetividade do Processo e Tutela de Urgência. PortoAlegre: Fabris, 1994.

MAUS, Ingeborg. Judiciário como superego da sociedade –o papel da atividade jurisprudencial na “sociedade

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

300

Page 313: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

órfã”. Trad. Martônio Lima e Paulo Albuquerque. NovosEstudos CEBRAP. n. 58. nov./2000.

MELO FILHO, Hugo Cavalcanti. A reforma do PoderJudiciário brasileiro: motivações, quadro atual e pers-pectivas. Revista do Centro de Estudos Judiciários.Brasília. n. 21. abr./jun. 2003.

MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Ações coletivas nodireito comparado e nacional. São Paulo: Revista dosTribunais, 2002.

MORAL SORIANO, Leonor M. ¿Qué discurso para la moral?Sobre la distinción entre aplicaron y justificación en la teo-ría del discurso práctico general. Doxa. n. 21. t. 1. a. 1998.

MULLER, Friedrich. Quem é o povo? A questão fundamen-tal da Democracia. Trad. Peter Naumann. São Paulo: MaxLimonad, 1998.

NUNES, Dierle José Coelho. O recurso como possibilidadejurídico-discursiva das garantias do contraditório e daampla defesa. 2003. Pesquisa (Mestrado em DireitoProcessual) – Faculdade Mineira de Direito, PontifíciaUniversidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte.

_____. O princípio do contraditório. Revista Síntese deDireito Civil e Processual Civil. Porto Alegre: Síntese. a.v. n. 29. mai./jun. 2004.

_____. O Direito Constitucional ao Recurso: da teoria dosrecursos, das Reformas Processuais e da comparticipa-ção nas decisões. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

OLIVEIRA, Manfredo Araújo. Reviravolta lingüístico-prag-mática na filosofia contemporânea. 2. ed. São Paulo:Loyola, 2001. (Coleção Filosofia).

PASSOS, J. J. Calmon de Passos. Direito, Poder, Justiça eProcesso. Rio de Janeiro: Forense,1999.

_____. A crise do Poder Judiciário e as reformas instrumen-tais: avanços e retrocessos. Revista Síntese de DireitoCivil e Processual Civil, Porto Alegre: Síntese nº14, 2002.

O Poder Judiciário e(m) Crise

301

Page 314: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

PROTO PISANI, Andrea. Appunti sulla tutela di condanna,Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, 1978.

________ Lezione di diritto processuale civile. Napoli:Jovene, 1994.

_____. Sulla tutela guirisdicionale differenziata, Rivista deDiritto Processuale, 1979.

_____. “I rapporti Fra diritto sostanziale e Processo”, inAppunto sulla Giustizia Civile. Bari: Cacucci,1982.

RAPISARDA, Cristina, Profili della tutela civile inibitória.Padua: CEDAM, 1987.

RAPISARDA, Cristina. TARUFFO, Michele, “Inibitoria”,Enciclopedia Giuridica Trecanni, v.17, 1987.

RAWLS, John. A theory of justice. Cambridge: HarvardUniversity Press, 1971.

_____. Political Liberalism. New York: Columbia UniversityPress, 1993a.

_____. Justice et Democracie. Trad. Catherine Audard eoutros. Paris: Editions du Seil, 1993b.

RICCI, Eduardo. A tutela antecipatória brasileira vista porum italiano, Genesis – Revista de Direito ProcessualCivil, v.6 1994.

ROHDEN, Luiz. Hermenêutica Filosófica: entre a linguagemda experiência e a experiência da linguagem. SãoLeopoldo: Unisinos, 2002. (Coleção Idéias).

ROUBIER, Paul. Theorie generale du droit. Paris: Sirey,1946.

ROSENFELD, Michel. A Identidade do SujeitoConstitucional. Trad. Menelick de Carvalho Netto. BeloHorizonte: Mandamentos, 2003.

SALCEDO REPOLÊS, Maria Fernanda. Habermas e a deso-bediência civil. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003.

SANTOS, Boaventura de Souza Santos. Introdução à socio-logia da administração da justiça. Revista de Processo,v.37. 1994.

Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron

302

Page 315: 457000_pdf- Poder Judiciario Em Crise

SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e RelaçõesPrivadas. Rio de Janeiro: Lumem Júris, 2003.

CANDEAS, Ana Paula Lucena. Valores e os judiciários: osrecomendados pelo Banco Mundial para os judiciáriosnacionais. Revista da Associação dos MagistradosBrasileiros. Brasília: AMB. a. 7. n. 13. jan./jun. 2004.

SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de. “Privilégio de foro eimprobidade administrativa”. O Supremo TribunalFederal Revisitado: o ano judiciário de 2002,Coordenação Álvaro Ricardo de Souza Cruz. BeloHorizonte: Mandamentos, 2003.

_____. Jurisdição constitucional democrática. BeloHorizonte: Del Rey, 2004.

_____. Habermas e o Direito Brasileiro. Rio de Janeiro:Lumen Júris, 2006.

STRECK, Lênio. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica.Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002.

THEODORO JÚNIOR, Humberto. Direito e Processo. Rio deJaneiro: Aide, 1997.

_____. A Onda Reformista do Direito Positivo e suasImplicações com o Princípio da Segurança. In: A TerceiraEtapa da Reforma do Código de Processo Civil. Or-ganizadores: Adriano Caldeira e Rodrigo da Cunha LimaFreire. Salvador: Editora Podivm, 2007.

VIGORITI, Vicenzo. Interessi collettivi e processo: la legit-timazione ad agire. Milão: Giuffrè, 1979.

WATANABE, Kazuo. “Acesso à Justiça e sociedade moder-na. In Participação e Processo, Coordenação da AdaPellegrini Grinover, Cândido Rangel Dinamarco, KazuoWatanabe, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1988.

WHITE, Stephen K. Razão, Justiça e Modernidade: a obrarecente de Jürgen Habermas. Trad. Márcio Pugliesi. SãoPaulo: Ícone, 1995. (Coleção Elementos de Direito).

O Poder Judiciário e(m) Crise

303