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135 4.2 SALÕES BAIANOS DE BELAS ARTES Com os Salões Baianos de Belas Artes, as artes plásticas na Bahia ganhou outro status. O primeiro aconteceu em 1949, no Hotel da Bahia, ainda em obras. Foi a primeira manifestação de apoio Oficial à arte moderna (COLEHO, 1973, p. 16). Os Salões de 1950, 1951 e 1954 foram realizados no Belvedere da Sé. O último foi dividido em dois locais: a Divisão Geral ficou na Escola de Belas Artes e a Divisão Moderna foi realizada na Galeria Oxumaré (SCALDAFERRI, 1997, p.67). Mendonça Filho participou compondo o júri (Divisão Geral) ao lado de Presciliano Silva e Raul Deveza, já a Divisão moderna ficou ao cargo de Aldo Bonadei, Diógenes Rebouças e Godofredo Filho. A Divisão Geral teve a seguinte premiação 1 : Alberto Valença (Medalha de ouro) com o “Retrato da viúva Almirante Cerqueira Lima”; Bustamante de Sá (RJ) (Prata) com “Paisagem” e Raimundo Aguiar (Bronze) com a tela “Beco da Califórnia”. Na divisão moderna: Lothar Charoux (SP) (Ouro) com “Portas”; Inimá de Paula do Rio de Janeiro (Prata) com “Rua Moura Brasil” e Carlos Bastos (Bronze) com “Mulher ao toucador”. A Divisão Moderna fomentou opiniões e juízos diversos. O crítico Murilo Mendes, do Rio de Janeiro, condenou o prêmio dado ao pintor Lothar Charoux 2 , o qual não considerou “inexpressivo”, más esperava a “coroação de um artista baiano”, o que não ocorreu. Devido à quantidade de artistas renomados que participaram do Salão, Murilo Mendes 3 comentou que [...] um prêmio dado aos mestres da pintura brasileira [...] imporia imediatamente autoridade ao Salão no circuito plástico de todo o país. No terceiro Salão participaram 142 artistas totalizando 292 trabalhos. Destes artistas 1 Estado da Bahia (03.11.1949, p. 03). 2 A Tarde (03.11.1949, p.02). 3 Participaram do Salão os artistas Portinari, Pancetti, Di Cavalcante, Djanira, Flávio de carvalho entre outros.

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4.2 SALÕES BAIANOS DE BELAS ARTES

Com os Salões Baianos de Belas Artes, as artes plásticas na Bahia ganhou outro

status. O primeiro aconteceu em 1949, no Hotel da Bahia, ainda em obras. Foi a

primeira manifestação de apoio Oficial à arte moderna (COLEHO, 1973, p. 16). Os

Salões de 1950, 1951 e 1954 foram realizados no Belvedere da Sé. O último foi

dividido em dois locais: a Divisão Geral ficou na Escola de Belas Artes e a Divisão

Moderna foi realizada na Galeria Oxumaré (SCALDAFERRI, 1997, p.67).

Mendonça Filho participou compondo o júri (Divisão Geral) ao lado de Presciliano

Silva e Raul Deveza, já a Divisão moderna ficou ao cargo de Aldo Bonadei,

Diógenes Rebouças e Godofredo Filho.

A Divisão Geral teve a seguinte premiação1: Alberto Valença (Medalha de ouro) com

o “Retrato da viúva Almirante Cerqueira Lima”; Bustamante de Sá (RJ) (Prata) com

“Paisagem” e Raimundo Aguiar (Bronze) com a tela “Beco da Califórnia”. Na divisão

moderna: Lothar Charoux (SP) (Ouro) com “Portas”; Inimá de Paula do Rio de

Janeiro (Prata) com “Rua Moura Brasil” e Carlos Bastos (Bronze) com “Mulher ao

toucador”.

A Divisão Moderna fomentou opiniões e juízos diversos. O crítico Murilo Mendes, do

Rio de Janeiro, condenou o prêmio dado ao pintor Lothar Charoux2, o qual não

considerou “inexpressivo”, más esperava a “coroação de um artista baiano”, o que

não ocorreu.

Devido à quantidade de artistas renomados que participaram do Salão, Murilo

Mendes3 comentou que [...] um prêmio dado aos mestres da pintura brasileira [...]

imporia imediatamente autoridade ao Salão no circuito plástico de todo o país.

No terceiro Salão participaram 142 artistas totalizando 292 trabalhos. Destes artistas

1 Estado da Bahia (03.11.1949, p. 03).

2 A Tarde (03.11.1949, p.02).

3 Participaram do Salão os artistas Portinari, Pancetti, Di Cavalcante, Djanira, Flávio de carvalho entre

outros.

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38 residiam na Bahia. Mendonça Filho participou como Jurado ao lado de Alberto

Valença e Alfredo Olliani. Dos 97 trabalhos apresentados, apenas 66 foram aceitos

(VALLADARES, 1956, p.146).

O Salão foi inaugurado no térreo do Hotel da Bahia no dia 01.11.1951. Zoroastro4

evidencia que Mendonça Filho participou da Divisão geral com as telas “Marinha” e

“Reflexos”. Este salão acabou ocasionando uma celeuma entre os artistas modernos

e os representantes acadêmicos. A medalha de ouro ficou com Aldo Bonadei

(natureza morta); a menção honrosa ficou com Maria Célia Amado (Flor).

A premiação ocorreu no dia 30 de novembro, dia do encerramento do Salão,

presidida pelo Governador do Estado da Bahia5. Neste encerramento Mario Cravo

recusou a medalha de prata pela Obra “Exú” (Divisão moderna, nº.158 do catálogo),

sugerindo, entretanto, que o dinheiro do prêmio fosse utilizado para adquirir uma

máquina litográfica6. A escola declarou no mesmo jornal que a quantia permaneceria

disponível pelo prazo de 30 dias, e após o prazo, se não fosse resgatado, a

Comissão deliberaria sobre o seu destino.

Alguns dias aos o encerramento do III Salão baiano, Mendonça Filho, designa7 uma

comissão composta por ele, Presciliano Silva e Raimundo Aguiar para emitir parecer

sobre a tela “Porto de Carcanout” de autoria de Alberto Valença, o que demonstra

como era importante no período, o referendar da Escola.

Segundo Valladares (1956, p.147), das correntes representadas na Divisão geral

alguns trabalhos [...] estavam mais perto do impressionismo, outros mais afastados;

alguns se caracterizam por um desenho de contornos definidos, outros por um

contorno esfumado; têm os que pintam na maneira larga, os herdeiros do

pontilhismo e os que especulam com o claro escuro.

4 A Tarde (19.11.1951, p. 04).

5 O Estado da Bahia (1957). Infelizmente não conseguimos identificar maiores informações sobre

esse jornal, além do ano de publicação. O mesmo se encontra no AHEBA/UFBA. Envelope 22. Recortes de Jornais de 1943 a 1956.

6 Trata-se de uma prensa para litogravura.

7 AHEBA/UFBA. Livro de Portaria e Diversos. Capa Vermelha. Portaria nº. 09, 04.12.1951, p.71.

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Dentre os artistas famosos modernos que participaram do salão estavam José

Pancetti e Potý Lazzaroto.

O ano de 1951 foi muito especial para Mendonça Filho. Como artista, professor e

gestor da Escola de Belas Artes, ele tinha o reconhecimento dos baianos. Além

deste fato, havia se tornado membro da Academia Brasileira de Belas Artes, um

reconhecimento justo por suas qualidades artísticas e pelos anos de dedicação às

artes.

Figura 651: Diploma da Academia Brasileira de Belas Artes.

Fonte: Acervo da família.

Nos salões de 1944 e 1945 houve muitas críticas à Divisão Geral. Valladares (1956,

p.154) escreveu que essa divisão “nada oferecia de extraordinário” de forma

desrespeitosa. Para aqueles artistas, glorificados em passado próximo, o momento

deveria ser de incertezas, pois a participação desses artistas cai consideravelmente.

O mesmo autor traça comentários amargos sobre os artistas de “temperamento

acadêmico”. Alguns, segundo Valladares (1956), se tornando modernos por

modismo, “não sendo fieis aos seus sentimentos”.

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Em 1955 continuaram as críticas aos artistas que pintavam à antiga e pela ausência

de trabalhos, principalmente desenhos de professores da EBA participando do

Salão. Apenas Alberto Valença participou com um desenho.

Embora aparecessem tantas críticas nos salões anteriores, em 1956 ainda foi

grande a participação de pinturas de paisagens. Emídio Magalhães, Mário M. Portela

e João Genehr, ouro, prata e bronze respectivamente, foram premiados na divisão

Geral. Mendonça Filho e Alberto Valença também apresentaram algumas obras

(VALLADARES, 1956, p.173).

As diferenças estéticas e conceituais não impedia uma boa relação entre os artistas

modernos com a EBA, Cravo (2001, p.65) comentou:

[...] Embora não compartilhássemos dos conceitos estéticos que norteavam a expressão desses artistas, nada impedia que houvesse entre nós um respeito humano e social, que em nada diminuía o fervor da nossa luta pela renovação da linguagem plástica [...]

Figura 662: Professores da EBA durante a defesa de Tese de Mario Cravo, 1953.

Fonte: Cravo (2001, p.141).

Mesmo com todas as transformações ocorridas na pintura, o tema marinha persistiu.

Quase todos os artistas do primeiro grupo modernistas na Bahia pintaram paisagens

marinhas.

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Abraão Koswinsk, um dos professores que participaram da renovação artística

dentro da EBA, em 1946 pintou os arredores de Gamboa.

Figura 673: Abraão Koswinsky. “Gamboa”, 1946.

Fonte: Catálogo do Leilão Roberto Alban, 2005, fig.125.

Carlos Bastos desenvolveu em 1949 um panorama bem ao estilo dos pintores

itinerantes ingleses do início do Século XIX.

Figura 68: Carlos Bastos. Paisagem da Bahia, 1949.

Fonte: Catálogo do Leilão Roberto Alban, 2006, p.24. fig. 58ª.

Genaro de Carvalho, mais conhecido por suas tapeçarias, também pintou várias

marinhas.

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Figura 69: Genaro de Carvalho. “Marinha”.

Fonte: Catálogo do Leilão Roberto Alban, 2001, fig.61.

No decorrer da década de 1960, outros artistas deram continuidade ao tema,

independente do tratamento pictórico escolhido. Seja numa pintura lisa,

fragmentada, geometrizada ou dentro de uma concepção maneirista, as

composições continuam se inspirando nas tradições de pintura de marinha

apresentadas nessa dissertação.

Emydio Magalhães, Edgard Oehlmeyer (“Forte de Monte Serrat”-1963), Jenner

Augusto com as telas sobre os Alagados, José Maria com a “Rampa do Mercado

Modelo” (1971) deram continuidade ao tema desenvolvendo inúmeras marinhas.

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Figura 70: Emidio Magalhães. “Saveiros na Baía de todos os Santos”. OST, 115 X 72 cm. Década 1960.

Fonte: Catálogo de Exposição MCR Galeria de Arte. Lote 71.

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Figura 71: José Maria. “Rampa do Mercado Modelo”. OST, 66 X 82 cm, 1971.

Fonte: Catálogo de Leilão Roberto Alban Galeria de Arte. 2005, fig. 82.

Figura 72: Jenner Augusto. “Barcos nos alagados”, 1965.

Fonte: Catálogo do Leilão Roberto Alban, 2006, p.58, fig. 131A.

O tema continua sendo utilizado por artistas atuais e provavelmente outros o farão,

independente dos modelos artísticos em voga. A paisagem marinha sempre

encantou e encanta. Participou de histórias e canções, sendo um tema com tradição

em nossa capital Baiana.

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5 ANÁLISE DAS OBRAS

Na presente dissertação, tentamos identificar o maior número de marinhas

produzidas por Mendonça Filho e parte desses achados foi apresentada no decorrer

dos nossos comentários. Boa parte desse acervo se encontra em poder de

particulares e sua identificação só foi possível a partir de uma exaustiva busca entre

os catálogos de leilões da cidade do Salvador e, cujo paradeiro por nós encontra-se

desconhecido, inviabilizando sua observação e análise formal direta. Entre o acervo

disponível as observações diretas estão às obras pertencentes à família do artista e

aquelas disponíveis nos museus soteropolitanos.

Para o processo de análise, optamos por iniciar nosso trabalho a partir das fases

atribuídas ao artista em sua retrospectiva de 1966 e comentada anteriormente.

Nessa exposição foram atribuídas 05 fases a produção de Mendonça Filho, sendo

elas: Fase Pré-europeia (Cabeça de Velho, Tanque da Conceição, Labatut e

Marinha – Amaralina); Fase Europeia (todos os retratos e paisagens desenvolvidas

na Europa); 1ª Fase baiana, da qual fazem parte a série de telas representando a

Enseada de Água de Meninos, a Igreja de São Lourenço e Sto. Antônio dos

Velásquez, Ocaso em Mont Serrat e as telas desenvolvidas no sul da Bahia como

Queimadas; Fase Mar-Grande (composta pelas séries das Marisqueiras, das Poças

d’água onde não aparece nenhum personagem e são valorizados os efeitos do céu

e seu reflexo nas águas paradas e por fim os Barcos Encalhados). A fase Mar

Grande se inicia a partir de 1933, chegando à década de 1960 e a Última Fase que

apresentou “Lavadeiras do Rio Cachoeira”. Acreditamos que só houve significativas

mudanças plásticas em dois momentos distintos: na fase europeia e em sua

temporada no sul da Bahia, permanecendo suas características plásticas e de uso

da cor até o final de sua vida com pequenas alterações.

Dessas fases, encontramos algumas telas disponíveis em museus públicos e

privados de Salvador que puderam ser analisadas.

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Rescala atribuiu à fase pré-europeia as telas “Cabeça de Velho” e “Tanque da

Conceição”. Sobre essas telas não obtivemos nenhuma informação.

Da fase Europeia selecionamos “Marinha” (Nº. de inventário – 1458), “Le Squevel

Ploumanach” (Nº. de inventário: 1459), “Le Gouffre Du Squevel” (Nº. de inventário –

1457) da Fundação Museu Carlos Costa Pinto, além da tela “Marinha de Nápoles”

(Nº. de tombo 67.05), do acervo do Museu de Arte da Bahia.

Da 1ª fase baiana analisamos as telas: “Água de meninos” e Igreja de “Santo

Antonio dos Velásquez” de coleções particulares; “Margem do Gongugy” (Nº. de

tombo: 85.145), “Marinha” (Nº. de tombo: 85.67), “Estaleiro da Gamboa” (Nº. de

tombo: 85.117) do MAB e “Farol de Itapoan” (coleção particular).

Da segunda baiana e Fase EPUCS, “Mariscada” (acervo da FMCCP), “Pôr do sol -

Forte de Santa Maria” e “Dique do tororó” do acervo do Museu da Cidade do

Salvador e “Feira de Água de Meninos” (Nº. de tombo: 93.00) do acervo do MAB.

Da última fase, “Amanhecer Baía de Todos os Santos” (Nº. de tombo: 85.146) do

acervo do MAB; “Madrugada – Mar Grande” do Museu da Cidade do Salvador e a

série “Lavadeiras do Rio Cachoeira – Itabuna” (coleção particular).

Antes de analisar as marinhas do artista, gostaríamos de incluir algumas

considerações sobre a obra “General Labatut perante o tribunal” do acervo da

EBA/UFBA, esperando com isso, demonstrar como seu período de aperfeiçoamento

na Europa, principalmente na Itália transformou o seu modo de pintar.

O retrato ainda era, sem sombra de dúvida, o tema de formação dentro da Escola de

Belas Artes da Bahia no início do século XX. Toda a metodologia das aulas

direcionava o artista para esse fim. A tela “General Labatut perante o Tribunal8”,

8 O General Pedro Labatut (17?? - 1849), filho de Antonio Labatut e Genoveva Alegre nasceu em

1777 e participou do exército de Napoleão Bonaparte e posteriormente migrou para a Colômbia e em

seguida para o Brasil, passando a residir no Rio de Janeiro, onde foi incorporado no dia 03.07.1822

ao exército nacional, onde organizou o exército pacificador que seguiu para a Bahia para enfrentar o

general português Inácio Luís Madeira de Melo que resistia entrincheirado e em desafio ao Regente.

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entra nesse contexto. A tela conforme comentamos no decorrer dessa dissertação,

venceu o Prêmio Caminhoá em 1921, possibilitando parte dos recursos que

mantiveram o artista na Europa.

Figura 734: Mendonça Filho. “General Labatut Perante o Tribunal”, OST, 1,35 X 94,0 cm. 1921.

Acervo da EBA/UFBA. Tombo: 7.395. Foto: Rosana Baltieri, 2012.

A figura do General está em posição frontal, de pé. A composição não apresenta a

figura de corpo inteiro, retratando o general dos joelhos para cima, provavelmente

seguindo o exemplo da tela de J. Machado, que retratou o general em 1848 e cuja

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obra estava disponível a observação do artista, pois, pertence ao acervo da Câmara

Municipal da cidade do Salvador.

Figura 745: J. Macário. “General Pedro Labatut”, OST, 1848.

Fonte: Tavares (2000, p.167). Acervo da Câmara Municipal de Salvador.

Recentemente a obra passou por um processo parcial de restauração, desenvolvida

principalmente pela intervenção do professor José Dirson Argolo na disciplina

Conservação e Restauração da Obra de Arte 19.

Segundo avaliação da equipe, a obra foi reentelada na década de 80 do século

passado pela professora Ana Maria Vilar e seus alunos em aulas práticas da

disciplina CROA I.

A composição apresenta o General em traje militar e ao observar a composição

sentimos falta de outros elementos que configurasse uma cena histórica, a exemplo

de características reais sobre o local onde foi julgado, como era praxe nesse tipo de

representação.

Anatomicamente, seu desenho é muito bom, e o tratamento do rosto mostra domínio

das cores, embora incomode principalmente o detalhe da alegoria do ombro

9 A obra foi parcialmente restaurada, e as informações sobre esta obra foram retiradas do dossiê

desenvolvido pela turma composta pelos seguintes alunos: Dinohar Arão Silva Oliveira, Heide

Furtado, João Lucas Alves dos Santos, Ludmila Silva de Oliveira, Maria Aparecida Silva França,

Railda Lemos Sampaio, Rejane Souza da Paz e Renilda Santos do Vale.

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esquerdo, cujo movimento diverge do escoço produzido pelo braço, quando deveria

segui-lo.

A pintura quando comparada aos retratos posteriores do artista, demonstra um

abismo técnico e um colorido que em nada lembra as modulações tonais utilizadas,

por exemplo, nos seus retratos italianos. Em sua temporada na Itália, o artista pintou

alguns retratos e entre eles um chama muito a atenção pelo tipo de abstração

cromática. Trata-se da tela que ganhou o prêmio em Campobasso, o retrato de Dona

Rosa.

Figura 756: Mendonça Filho. Detalhe da tela “Dona Rosa”. OSM, 0,51 X 0,41 m.

Medalha de ouro em Campobasso, Itália, 1928. Fonte: Acervo da FMCCP.

Dessa pesquisa no uso da cor e das texturas que irá nascer o cromatismo utilizado

em suas paisagens em solo baiano. A técnica empregada pelo artista passa a não

distinguir o objeto representado. Suas areias e rochas, expostas ao sol, trazem um

colorido requintado até mesmo nas sombras.

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Figura 767: Mendonça Filho. Detalhe da tela “Mariscada”.

Fonte: Catálogo FMCCP, 1995, p.06.

Suas paisagens não tentam melhorar a natureza como o mundo idílico de Claude

Lorrain, nem tão pouco se prende a luz local vinculada aos impressionistas. Nos

trabalhos em que retrata as localidades de Mar Grande, o artista exercita uma ampla

gama de possibilidades cromáticas. Luz, matéria, memória, vento e água caminham

juntos em sua paleta. As possibilidades parecem ser infinitas, e a visão artística não

se contenta com a simplificação. A rocha torna-se multicor, o mar se metamorfoseia,

as nuvens suaves e harmoniosas teimam em não se manterem estática.

Entre a luz máxima e quente, às aveludadas sombras coloridas, uma multiplicidade

de tons, matizes do olhar que nunca se acalma. Observem o detalhe da areia

limitando a água calma na tela “manhã de inverno”.

Figura 778: Mendonça Filho. “Manhã de inverno”, OST, 0,60 X 0,82 m.

Fonte: FMCCP (1995, p.17). Acervo de Renato Ribeiro Novaes.

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Entre a tela “Marinha - Amaralina”, de 1920 e as lavadeiras do Rio cachoeira da fase

final do artista há uma surpreendente evolução. Seu aprendizado na Escola de

Belas Artes da Bahia direcionou o artista a desenvolver e explorar mais os retratos

em sua temporada Italiana, pois, são nesses que o artista se torna mais genial. Já

em suas paisagens realizadas na Europa se percebe uma convenção em

harmonizar os tons a partir do violeta como muito bem salientou o Professor Juarez

Paraíso10.

A partir dessas considerações, poderemos entender melhor os caminhos percorridos

pelo artista, bem como sua evolução como pintor.

5.1 FASE EUROPEIA (1922 ATÉ 1930).

Figura 789: Mendonça Filho. “Marinha”. OST, Década de 1920. Acervo da FMCCP, nº. 1458. Fonte: <http://museucostapinto.blogspot.com.br/p/pecas-em-destaque_19.html>.

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Comentários realizados durante a Qualificação dessa dissertação.

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Embora o Museu Carlos Costa Pinto atribua o ano de 1919, momento em que o

artista ainda estava em Salvador, acreditamos que essa paisagem foi pintada em

seu período na Europa.

É uma marinha com aspectos pouco usuais em sua abordagem, sendo talvez a obra

mais próxima do impressionismo de Monet que Mendonça Filho produziu. Trata-se

de um por do sol que mistura pincelada lisa e fragmentada. Não há nenhum

personagem, somente a natureza em seu esplendor.

Em seu primeiro plano o artista adota um tratamento bem liso, quase não permitindo

ver as marcas do pincel. Já no restante da composição, se permitiu utilizar

empastamentos, pinceladas fragmentadas e oposição de cores complementares o

que favoreceu um efeito ótico muito interessante.

Para transmitir a sensação de movimento ou vibração da luz de fim de tarde sobre o

espelho do mar, o artista utilizou pinceladas curtas e finas, sempre na horizontal,

transmitindo uma ideia de movimento que percorre o quadro de lado a lado. O azul

turquesa, o laranja e o amarelo Nápoles brigam entre si, dispostos lado a lado criam

um efeito soberbo. Se não fosse tão contida, em seu tratamento, esse mar lembraria

o fauvista André Derrain (1880 – 1954) pela pincelada e dinâmica.

O céu e seus efeitos multicoloridos é uma poesia que nos faz prender a respiração.

Que encanto são as nuvens com seus limites iluminados.

A tela “Le Gouffre Du Squevel”, assim como “Le Squevel Ploumanach” foram

desenvolvidas em 1929, alguns meses antes do artista retornar ao Brasil. Escolhera

locais muito difundidos entre os turistas que visitavam a região Francesa no início do

século XX. Há diversos cartões postais da região em sites especializados.

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Figura 7910: Cartão postal do Gouffre Du Squevel. Século XX.

Fonte: <http://www.google.com.br/imgres?q=le+squevel+ploumanach&hl=pthr>.

Figura 8011: Mendonça Filho. “Le Gouffre Du Squevel” OST, 32,5 X 38 cm, 1929.

Fonte: Acervo da FMCCP nº. 1460.

As rochas em primeiro plano foram construídas em tons de cinza, laranja e siena.

Seu tratamento é empastado e pela geometrização das formas nos faz lembrar

Cezanne.

As ondas, massas de tintas que explodem para o alto em contato com a pedra,

deixam as marcas do pincel aparente, congelando o gesto único.

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Os rochedos, verdadeiros blocos sobrepostos, nos dá a ilusão de poder reagrupa-los

a nossa vontade, enquanto as nuvens, bem simples comparadas a outras do artista,

não se destacam, estando incorporadas ao fundo de forma suave. Algumas

embarcações foram incluídas como complementos da cena.

Em “Le Squevel Ploumanach”, o artista inova na composição, escolhendo um

enquadramento que deu destaque aos rochedos, mostrando a criatividade do artista

na escolha da cena. Esta tela foi pintada em 192911, na costa da Bretanha, período

que antecedeu o retorno de Mendonça Filho para o Brasil.

Figura 8112: Mendonça Filho. Le Squevel Ploumanach. OSP. 0,50 X 0,61, 1929.

Fonte: FMCCP. Inventário nº.1457.

11

Segundo Calderon (1974, p.1), Mendonça chegou a Bretanha em dezembro de 1929.

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A obra apresenta um trecho de uma praia sendo vista por duas grandes formações

rochosas, que ocupam os dois lados da composição. Essas formações por desígnios

do tempo e da ação das marés se abrem em um canal de acesso ao mar, permitindo

que o observador contemple dois barcos a vela e um céu carregado de nuvens,

iluminadas pelo sol.

As linhas chave dessa composição direcionam o nosso olhar para o canal aberto

entre as rochas, e mesmo as linhas sinuosas, formadas na parte inferior da tela,

mutuamente se opõe e se equilibram. Setenta por cento da pintura é ocupada pelas

rochas, construídas em tons pastel, terrosos e de carne rosada, que poderiam

facilmente ser utilizados na produção de um retrato clássico.

O artista se coloca bem no meio das duas grandes paredes formadas pelas rochas,

em um nível acima do mar, sobre um pequeno platô, com uma poça d’água.

A iluminação vem da direita para a esquerda produzindo uma grande sombra nas

rochas da direita e iluminando as rochas da esquerda. Pela inclinação da sombra

projetada nas rochas da esquerda, diríamos que se aproxima dos 45°. O rochedo da

direita permite que um feixe de luz corte o plano pictórico, atravessando a

composição e dividindo os planos perspectivos.

Em segundo plano, ultrapassando o platô, nos deparamos com o grande vão

formado pelas rochas que ocupam as laterais do quadro. Essa passagem permite

que o observador veja o mar calmo, espelhando o céu iluminado e carregado de

nuvens.

Dois barcos cortam o mar e chamam a nossa atenção. O primeiro, saindo por trás

das rochas da esquerda, com suas velas em vermelho cria uma forte ligação com os

rochedos que o revela. Há uma sensação de aprisionamento do barco impedido de

continuar seu trajeto. O segundo barco ocupa o centro da composição, aparecendo

difuso, distante, construído com poucas pinceladas no limiar do horizonte.

No céu construído em tons de azul cerúleo e ultramar, passeiam nuvens brancas e

cinzas aos toques indecisos do pincel. A obra transmite uma tranquilidade e um calor

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das manhãs ensolaradas, onde a preguiça nos deixa mais devagar. Suas cores,

harmônicas, típicas das obras acadêmicas não trás nenhuma nota agressiva, e sim

uma melodia suave, embora em sua fatura transmita inquietude. As pinceladas,

rápidas e cheias de expressão não permite a construção de linhas definidas e todo o

trabalho tem uma forte influência impressionista.

A assinatura do artista se encontra em uma área sombreada das rochas, no canto

inferior direito, com tons pertencentes à composição.

Se enquadrando em um modelo de representação de acidentes geográficos, comum

entre os pintores franceses durante o século XIX, principalmente por causa dos

locais cujos artistas escolhiam para passar suas férias.

Figura 8213: Cartão postal Ploumanach. Início do século XX.

Fonte:http://www.delcampe.net/page/list/cat,4252,var,0-Tregastel-22-Cotes-d-Armor-France-Europe-Cartes-Postales,language,F,searchTldCountry,net.html

Eugene Boudin, Gustavo Courbet e Claude Monet são alguns exemplos da

utilização do tema.

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155

Figura 83: Claude Monet “Falésia perto de

Dieppe”, 1882, OST, 65 X 81 cm. Fonte: Walther (2006, p.230).

Figura 84: Claude Monet. “Passeio sobre a

Falésia em Pourville”, 1882. OST, 66,5 X 82,3 cm Fonte: Walther (2006, p.231).

Outra tela de Mendonça Filho que registra esses acidentes geográficos a beira mar é

uma marinha (Figura 63) desenvolvida provavelmente na mesma região12.

Figura 8514: Mendonça Filho. Marinha. OST. 33 X 41 cm. 1929. Fonte: Catálogo Paulo Darzé. Junho 2001. Fig.136.

Alberto Valença na década de 1940 desenvolve “Morro da Paciência - Rio

Vermelho”, utilizando a mesma composição da tela de Mendonça Filho com as

características geográficas da região do Rio Vermelho em Salvador.

12

Catálogo de Leilão da Galeria Paulo Darzé, 2001, figura 136.

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156

Figura 8615: Alberto Valença. “Morro da Paciência” – Rio Vermelho. OSM. 30 X 40 cm. Déc.

1940. Fonte: Catálogo Paulo Darzé. Junho 2000. Fig.53.

Avancine (2006, p.363) chama a atenção para o fato de nossa geografia não possuir

grandes altitudes. Esse fato proporcionou “uma visão menos grandiosa da paisagem

soteropolitana” em relação ao Rio de Janeiro, por exemplo.

Se as informações de Calderon estiverem corretas, a tela “Marinha de Nápoles” foi

desenvolvida entre o final de 1922 e final de 1924, pois em 1925, Mendonça Filho já

não estava mais em Nápoles.

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Figura 87: Mendonça Filho. “Marinha de Nápoles”. OST colada em papelão. 33 X 41 cm, Fase

Europeia. Fonte: Acervo do MAB – Doação da Federação das Indústrias da Bahia.

A tela possui um verniz espesso, sendo construída com pequenos toques de pincel,

deixando algumas áreas empastadas. Embora possa passar despercebido, o motivo

principal dessa tela é a baía de Nápoles com o vulcão Vesúvio no terceiro plano. A

figura em primeiro plano foi acrescentada em um segundo momento, pois quase

toda a obra é praticamente lisa e harmônica, contudo a figura se destaca, tanto em

brilho como na aplicação da pincelada. Um detalhe técnico denuncia, pois se

sobrepormos camadas de óleo em qualquer tela, aquelas que se aplicam por último

tendem a serem mais brilhantes por não perderem tanto óleo para a base.

O conjunto formado por um homem simples, um velho pescador segurando a proa

de um pequeno barco, contempla as margens da baía como se pensasse nas suas

idas e vindas ao mar. Sua camisa longa, branca, conduz o nosso olhar para outro

plano, onde às velas dos barcos rivalizam com o horizonte coberto de construções

caiadas. A pintura é gestual e rápida, não apresentando resquício de desenho

preliminar, talvez por ser necessário captar momento. A fatura utiliza muito o azul

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turquesa que percorre todo o plano pictórico, deixando a impressão que o artista

pintou todo o quadro de azul e em seguida incluiu os outros elementos, separando

os planos.

As sombras da figura em primeiro plano, assim como a do pequeno barco são

coloridas, com a presença de azul escuro, verdes e terras, não apresentando em

toda a composição o preto.

Outro detalhe é o empaste que acontece tanto nas sombras mencionadas acima,

quanto nas velas dos barcos ao longo e nas construções do horizonte, todas

moduladas com toques precisos do pincel.

Ao fundo, o Vulcão Vesúvio, ativo, enche o céu com suas cinzas. Nesse sentido,

Mendonça dá segmento a uma tradição vedutista na representação desse ponto.

Vários artistas italianos abordaram esse tema entre o século XVIII, XIX e início do

XX. Teodore Duclère (1816 – 1867) e M. Gianni são alguns exemplos. Gianni

realizou várias vistas da baía de Nápoles no início do século XX, onde podemos

perceber o Vesúvio ativo. Para um brasileiro, não acostumado a vulcões, deve ter

sido uma oportunidade única como motivo pictórico.

Figura 88: M. Gianni. “Fishermen tending to their boats before Naples”. Guache sobre papel,

33.7 x 57.7 cm. Fonte: <http://www.artnet.com/artists/m.-gianni/past-auction-results>.

A obra de Mendonça Filho baseou-se em muitos exemplos disponíveis durante sua

estadia em Nápoles. Ao contemplar essa obra, penso nos anos e anos vivenciados

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por aquele pescador. É quase um intervalo no tempo, um resgate da memória de um

senhor que pelo pano branco amarrado ao seu tornozelo esquerdo, aponta para

uma saúde debilitada, sem o vigor de outrora. Talvez a impossibilidade de executar

a função que a vida lhe proporcionou seja o motivo de contemplar aquele mar que

sempre lhe fascinou.

5.2 1ª FASE BAIANA

Depois de 1932 há uma mudança bem evidente nos trabalhos do artista,

principalmente no clareamento da paleta, do uso empastado da cor e nas

composições mais complexas.

A tela “Água de meninos” da coleção Augusto Gentil Baptista.

Figura 8916: Mendonça Filho. Água de meninos. OSP. 0,70 X 0,55 m, (década de 1930). Fonte: Catálogo FMCCP, 1995, p.20. Coleção Augusto Gentil Baptista.

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Pintada entre fevereiro de 1930 e dezembro de 1931, a obra aparece na primeira

Exposição de Mendonça Filho, realizada em 09 de janeiro de 1932. Outros jornais13

também faziam referências a esta tela.

A região representada é a antiga enseada da praia de água de meninos14, hoje não

mais existente. Esta localidade passou por grandes transformações urbanísticas

durante a primeira metade do Século XX. O local servia de abrigo tranquilo para as

diversas embarcações que vinham do Recôncavo trazendo seus produtos para ser

vendidos em Salvador. Essa rotina criou uma feira que era montada em plena praia.

Posteriormente, a praia foi aterrada expandindo o comercio e dando origem a

grande feira de Água de meninos que permaneceu até a década de 1960.

Conforme comentamos anteriormente, a infância de Mendonça Filho ocorreu na

região do Santo Antônio além do Carmo, região muito próxima da enseada de água

de meninos, e a representação deste local em diferentes momentos de sua vida

pode estar ligada às suas lembranças de infância.

Em sua composição, a Igreja da Santíssima Trindade aparece em um plano

intermediário à esquerda ainda com suas duas torres.

Segundo o Catálogo do IPAC-BA(1997), a Igreja da Ordem Terceira da Santíssima

Trindade, registrada com o nº. BR-320007-1,0-XIII, teve suas obras iniciadas em

1739, sendo reconstruída em 25.07.1888 em consequência de um incêndio que só

havia deixado as paredes externas. A sua construção constava de uma segunda

torre que caiu em 1968.

Anfilófio de Castro15 em artigo para jornal em 1935 já citava a necessidade de a

Prefeitura adquirir a tela Água de Meninos como registro dos aspectos

característicos da cidade. Em fotografia da década de 1940 já encontramos o local

desfigurado com inclusão da pista.

13

Diário de Notícias (11.02.1932, p.02; 02.03.1932, p. 01).

14 Hoje a Avenida passa sobre a antiga enseada, ao pé da ladeira, próxima ao mercado municipal de

peixe.

15 Diário de Notícias (11.02.1932, p. 02).

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Figura 90: Allen Morrisson. Enseada de Água de meninos. Década de 1940

Fonte: <http://www.tramz.com/br/pa/pap.html>.

O gesto da fatura de “Água de meninos” é bem impressionista, com uma luz bem

próxima da tela “Paisagem16”, de autoria de Presciliano Silva e mencionada

anteriormente neste trabalho. A execução e forma das pinceladas se assemelha a

da tela “Pont-Neuf” (1929), e sua iluminação se parece muito com as obras

“Lavadeiras de “Pizzoferato” (1927)” e “Igreja de Santo Antônio dos Velásquez”

(1939).

O tema sobre a enseada se torna recorrente para Mendonça Filho, existindo pelo

menos 04 telas. Há uma tela intitulada “Manhã – Água de Meninos” (OST, 0,80 X

0,77), exposta na exposição retrospectiva de 1995, e pertencente ao Museu Carlos

Costa Pinto, contudo, a pintura apresenta outro motivo em destaque. A vista é da

terra para o mar e o elemento principal é um barco ancorado nas águas tranquilas

das águas de meninos.

16

Presciliano Silva. Paisagem. OST. 33X46 cm. Sem data. Fonte: Catálogo Paulo Darzé. Junho 2000.

Fig. 119

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Figura 9117: Mendonça Filho. “Manhã – Água de meninos”, OST, 0,80 X 0,77 m.

Acervo da FMCCP. Nº. tombo: 1451.

A tela “Santo Antonio dos Velásquez”.

Figura 9218: Mendonça Filho. “Igreja de Santo Antônio dos Velásquez”. OST, 0,54 X 0,70 cm.

Fonte: Catálogo FMCCP, 1995, p. 20. Acervo: Juracy Magalhães.

Em ruínas atualmente, a antiga igreja ainda pode ser vista em Mar Grande, seguindo

a direita do terminal marítimo em direção à praia de Gameleira.

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163

Figura 9319: Ruínas da Igreja de Santo

Antônio dos Velásquez. Fonte:

<http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=1001947&page=2>. Foto: Desconhecido.

Figura 94: Vista lateral da Igreja Sto Antônio

dos Velasques. Fonte:

<http://bitot.fotoblog.uol.com.br/photo20070206161333.html>. Foto: Fabio Bito Caraciolo.

Diferente da obra desenvolvida por Mendonça Filho na década de 1930, o que hoje

identificamos é o descaso com o patrimônio colonial Brasileiro. As ruínas desse

antigo templo religioso comprovam a preocupação dos artistas e intelectuais baianos

naqueles idos de 1936 quando desenvolveram a Carta de ALA comentada nesse

trabalho anteriormente.

Graças a algumas fotografias e ao trabalho de Mendonça Filho, podemos saber

como era sua aparência em dias de louvor a Stº Antonio dos Velásquez.

A obra assim como outras do período estava vinculada a um momento de

valorização de elementos históricos coloniais tão discutidos na época. Sua

composição, realizada em tela de pequenas dimensões, apresenta uma praia em

maré baixa tendo destaque para a Igreja situada acima da linha do horizonte, a

esquerda da composição, ocupando espaço na metade superior da tela. A posição

escolhida dá destaque e confere certa imponência a capela.

Em primeiro plano contemplamos o final dos recifes aparentes pela maré baixa, de

uma multiplicidade de tons violetas, terras, cinzas e azuis, se escondem por baixo da

areia quente, construídas em tons de amarelo ocre e laranja. As poças formadas

pelas pedras em tons de azul cobalto e cerúleo criam espelho para o céu iluminado.

A disposição das pedras cria uma diagonal da direita para a esquerda.

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Abaixo da igreja um pouco acima da areia, vemos pedras maiores formando uma

espécie de fundação para a base da construção. As mesmas podem ter sido

deixadas de propósito para proteger a igreja da maré. Há uma vegetação rasteira

aos pés da igreja. Chamamos atenção para uma fotografia feita pelo artista, onde

Regina Cavalcanti senta-se próxima as mesmas.

Figura 95: Regina Cavalcante a frente da Igreja de Stº Antônio dos Velásquez. Década de 1930. Fonte: Acervo da família.

As pedras ocupam o centro do plano e foram representadas com afinco. Sua

disposição forma outra diagonal que se opõe à primeira, e embora ocupe boa parte

do primeiro plano, permite que o observador veja a continuidade da praia que se

perde no horizonte.

Essa praia, na época ainda com poucas construções, possuía uma vegetação bem

densa com muitas árvores e coqueiros. Um pescador providencialmente aparece

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junto ao seu barco, equilibrando o conjunto, pois convida-nos a olhar um pouco mais

para o lado direito.

O interesse maior é sem sombra de dúvida a Igreja com sua frente para o mar, com

uma torre do lado esquerdo do observador e Alpendre coberto com telhado colonial

de três quedas (lados e frente) de tons de terra, laranjas e amarelos, e suas janelas

e porta arcadas, protegidas por barras de madeiras. A porta central ocupa

simetricamente o centro do alpendre tendo mais duas janelas, uma em cada lado da

porta e mais três janelas arcadas nas duas laterais.

Acima do alpendre, um frontão com duas pequenas janelas, uma em cada lado

servem para iluminar o interior da igreja. Seu telhado, de duas quedas, uma para

cada lado, seguem os mesmos efeitos das telhas comentadas anteriormente. A

esquerda, sua torre forma um pequeno frontão, e uma abertura arcada com o único

sino. Todo o conjunto arquitetônico é pintado com tons de branco, ocre e azul

cobalto claro.

Na lateral esquerda da igreja, uma pequena porta dá acesso ao seu interior. Ao

fundo, a vegetação separa um céu tomado de nuvens que exigiu todos os tons de

sua paleta; violetas, azuis cobalto e ultramar, ocres e brancos criam uma iluminação

no mínimo fascinante. Para alguém que admire o céu, talvez nunca vejamos tantos

tons assim na natureza, o que prova que as pinturas de Mendonça Filho misturavam

um realismo na retratação do ambiente e um idealismo nas justaposições das cores

escolhidas.

A iluminação da tela tende para um amarelo, e para quem frequenta o local,

podemos apostar que já passava do meio-dia.

No Salão de ALA de 1939, Diogenes Rebouças apresentou o mesmo tema, levando-

nos a pensar que a tela de Mendonça Filho foi desenvolvida no mesmo período,

contudo não foi encontrada nenhuma referência sobre a tela de Mendonça Filho nos

jornais consultados.

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Figura 9620: Mendonça Filho. “Margem do Gongugy”. OST. 82,5 X 67 Assinado sem data.

Fonte: Acervo do MAB. Tombo: 85.145.

A obra pertence ao acervo do Museu de Arte da Bahia. Tratasse de uma vista de rio

tomada de uma de suas margens. Pode ser entendida como uma obra de transição,

provavelmente desenvolvida nos primeiros anos da década de 1930, mantendo uma

perspectiva atmosférica harmonizada em tons violetas e acinzentados.

Ainda se mantém a fatura utilizada em suas paisagens Italianas. Seu tratamento

mistura pequenas pinceladas fragmentadas e empastamentos.

A tela é dividida em três planos bem definidos. No primeiro plano, uma clareira

tomada por uma sombra calma. A terra ocupa todo o lado inferior da obra, tão

carregada de empastos que pede para ser apanhada. Uma vegetação rasteira

explode em cores aplicadas em longas e movimentadas pinceladas, mais parecendo

fogos de artifício.

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Figura 97: Detalhe da tela “Margens do Gongugy”. Fonte: Acervo do MAB. Tombo: 85.145.

Em alguns detalhes é possível encontrar a cor preta, contudo, o tratamento nas

sombras é colorido, com a utilização de cores complementares.

Uma árvore foi cortada revelando o seu interior. Um indício de que tudo aquilo

poderia se acabar. Toda a cena nos faz lembrar as telas produzidas no romantismo,

onde a natureza se apresentava como algo divino (WOLF, 1999, p. 132). Mendonça

Filho transforma em pintura um sentimento bucólico. Uma solidão gélida, que faz o

observador se perder nos pensamentos.

Por entre as árvores, criando uma moldura natural, podemos vislumbrar um pequeno

trecho onde o rio se afunila e se perde nos tons de uma montanha ao longe. As

árvores desse trecho se opondo a temperatura fria do primeiro plano, recebe um

tratamento mais quente composto de cores ocres e violetas e se unindo ao céu em

uma aparência lisa, com tons azulados e rosas claros, criando um efeito luminoso.

Há uma impressão que todo o fundo da pintura foi pintado previamente, antes de se

incorporar a montanha e as árvores. Nesse trabalho há uma influência dos pintores

da Escola de Barbizon.

Ainda não aparecem os tons tropicais, característicos de seus trabalhos após 1932.

Se o trabalho não foi realizado em sua temporada em Itapira (1932) pode ter sido

realizado em uma de suas viagens ao Sul da Bahia, pois segundo informações da

família, os pais de Regina Cavalcante mantinham moradia na região de Ilhéus.

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A composição direciona o olhar para o quadrante inferior direito, local onde o artista

assina a obra. O horizonte está situado na metade da tela, o que divide o interesse

entre o caminho do primeiro plano e a sombra das copas das árvores.

Essa tela pode estar relacionada ao avanço da civilização. Uma denuncia e uma

tentativa de registrar aquilo que poderia deixar de existir. Como informamos

anteriormente, Mendonça Filho havia presenciado a destruição de uma mata virgem

que havia sido incendiada em sua temporada em Itapira. Se a tela foi produzida na

mesma época, pode ter sido influenciada pelo evento.

O ato criminoso para os nossos dias era uma constante naqueles tempos, com

intenção de abrir espaços para lavoura e pecuária. A partir do fato presenciado pelo

artista, surgiu uma das telas mais impressionantes de Mendonça Filho intitulada

“Queimada”. O jornalista J. F. Oliveira17 escreveu sobre essa tela:

Queimada é uma obra para ampliação. O seu motivo não cabe nos âmbitos acanhados de menos de metro. Em maior proporção será uma obra prima do pintor. Representa o fogo morto, a brasa acesa, o toco ardente das coivaras de três dias. No ambiente quase imperceptível fumaça e os tocos, a emergirem do cinzeiro fumegante. Aqui e ali, galhos mal carburidos, destroçados, retorcidos, surgem como espectros do pavor após a chacina das labaredas. Deslumbra a vista e a imaginação.

Ao ver o tronco cortado nas margens do Gongugy, o artista pode ter imaginado que

o mesmo ocorreria com aquele local.

A tela foi exposta em 1938, na segunda exposição de ALA. Eduardo Tourinho,

escrevendo para a Revista “A Semana” (1938, p. 34), comentou:

Maravilhosa paisagem onde as tintas parecem tomadas à própria natureza está o paisagista numa das suas mais altas expressões. Na quietude do espelho do rio, na sombra das froudes que obscurece a velada claridade das águas, no rigoroso contorno dos troncos, nos cipós que descem e nas trepadeiras que sobem encontra o espectador tão nitidos detalhes que se lhe afigura achar-se dentro da própria paisagem.

A preocupação de artistas com o desmatamento não era novo. Durante o século

XIX, artistas estrangeiros chamavam a atenção para o fato. Thomas Ender pintou

“Floresta cortada com uma velha figueira em São João Marcos” no Rio de Janeiro

em 1817 e Felix-Émile Taunay pintou “Derrubada”, em 1942 e “Vista de um mato

17

O Itapira (09.07.1932, p. 01).

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virgem que se está a reduzir a carvão”, em 1943. Dias (2009, p. 318.) comenta que

[...] é a floresta já inserida no contexto do desenvolvimento e transformada em

carvão [...] A autora ainda informa que a prática era utilizada para se abrir lavouras,

atestando nossos comentários sobre a obra de Mendonça Filho.

Também da 1ª fase e da temporada no sul da Bahia o MAB possui a tela

“Marinha”.

Figura 9821: Mendonça Filho. “Marinha”, OST, 74 X 101 cm s/data.

Fonte: Acervo do MAB.

Acreditamos que esta tela foi produzida no início da década de 1930, provavelmente

em 1932, período que Mendonça Filho passa alguns meses no sul da Bahia. A obra

não possui assinatura e sua fatura, colorido e tamanho se assemelha a tela

“Estaleiro de Gamboa” a qual abordaremos em seguida.

Há ainda nesse trabalho resquício da perspectiva atmosférica desenvolvida com os

tons violáceos, característico dos seus trabalhos realizados na Europa.

A composição lembra a contra costa da ilha de Itaparica, local muito explorado pelo

artista. O trabalho privilegia os verdes e azuis e embora se utilize de cores bem

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luminosas, há presença da cor preta em alguns detalhes. Os trabalhos

desenvolvidos nesse período podem ser considerados de transição, pois o artista

explora novas possibilidades nas composições.

O tema se assemelha a pontos de vistas desenvolvidos principalmente por artistas

estrangeiros no Rio de Janeiro. Até mesmo a escolha do Repoussoir18, no caso uma

palmeira, um coqueiro ou uma árvore característica da região retratada.

Figura 99: Emil Bauch. “Vista da Lagoa Rodrigo de Freitas tomada da Vista Chinesa”

Fonte: Bueno (2004, p. 79).

Vale os esforços do artista em captar cores e luzes características da nossa região.

Um exercício na captura das cores que retratassem melhor nossa vegetação.

A obra desenvolvida por Mendonça Filho foi construída em três planos bem

definidos. No primeiro, podemos observar no lado inferior esquerdo um caminho

construído em tons de siena e amarelo nápolis que nos conduz até uma cabana de

palhas de palmeiras secas, em tons creme e amarelo.

Notem o ritmo frenético das pinceladas na construção da palhoça. Em cima dessa

cabana, da copa de uma das árvores saem três palmeiras com suas palhas a

balançar, construídas com cores verdes, azuis, castanho e siena queimado. Mais

uma vez não há a presença da cor preta.

18

No sentido figurado, seria uma pessoa ou coisa que dá realce a outra por contraste.

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Há outro morro do lado direito da composição com duas casas simples, plantações

de bananeiras e outras espécies de árvores. No centro da tela logo abaixo deste

morro, podemos ver um vale que termina a beira d’água com uma pequena

aglomeração de casas todas com seus telhados em tons terrosos. Depois desse

primeiro conjunto de elementos, temos a água que é cortada por quatro penínsulas,

quase descampadas, com poucas habitações e algumas árvores de grande porte.

A perspectiva atmosférica faz com que os tons percam intensidade à medida que se

afastam do observador, marcando o horizonte com um leve tom violáceo. Em

terceiro plano temos o céu e suas nuvens ocupando um terço da composição,

construído em tons de azul cerúleo e cobalto, branco, violeta. O trabalho tem muitas

áreas craqueladas e não parece ter passado por grandes intervenções. Há uma

iluminação difusa onde não podemos identificar o foco de luz que está fora da

composição, contudo a disposição dos elementos a partir desse grande vale, cria

uma sensação de uma luz branca a percorrer o plano pictórico. Essa grande vista

representa uma localidade quase rural congelada pelo pincél do grande mestre,

fixando para a posteridade uma região transformada pela modernidade.

A tela “Estaleiro na Gamboa”, percebemos a escolha de um horizonte baixo

situado no primeiro quarto inferior da composição. Nesta tela, Mendonça Filho

dignifica a profissão dos carpinteiros.

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Figura 100: Mendonça Filho. “Estaleiro na Gamboa”, Óleo sobre tela, 66,5 X 83 cm, Década de

1930 Fonte: Acervo do MAB (nº. tombo: 85.117).

Quatro personagens a trabalhar. Um deles, recurvado e erguendo uma das pernas

da calça, mistura o breu em velho latão sobre uma fogueira improvisada, outro

caminha em direção ao observador, mais um, se perde sentado, calafetando a proa

do barco, o último, ergue a mão direita como se levasse algo a boca, talvez um café

bem quentinho. Todos vestem calças surradas pela lida e camisas brancas, quase

uma farda. Todos estão com chapéu de palha, são negros e foram pintados com

tons de terras e sombra queimada.

Uma canoa em primeiro plano, do lado direito do observador, foi construída em

empastos e descansa sob o sol forte. Abaixo deste a assinatura do artista, na

sombra, sem evidência. Ao centro, algumas rochas cinza e de tons terrosos. A areia

branca, quente, em pleno empaste. Pedaços de madeira e toda a parafernália

necessária ao dia a dia. Uma corrente em tons carmins espera aquele que irá

conduzi-la ao fundo do mar.

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As sombras são azuladas, coloridas, frias, em oposição ao calor que a obra

transmite. O foco da iluminação não está bem definido, percebível nas diferentes

trajetórias das sombras dos barcos. Provavelmente aproximava-se do meio dia,

notem a sombra da porta da casa. Essa, quase ao centro, caiada e com telhados

alaranjados, tem suas paredes tão carregadas de tintas que mais parece um reboco,

bem típico de Mendonça Filho, sem economia com os tubos de tinta, aliás, toda a

tela possui amplas áreas com empaste. Por causa delas, inúmeras fissuras tomam o

plano, principalmente nas nuvens azuladas. Dentre todas as áreas, o centro da

composição fora o local menos carregado de tinta, ocupado principalmente pela

vegetação.

Ao lado direito há um elemento que tanto poderia ser uma casa quanto uma arca de

Noé não sabe ao certo. Nos coqueiros, em destaque, uma multiplicidade de verdes,

cinzas, ocres e terras, vagueiam sob o rigor dos ventos. Para Mendonça Filho, todos

os tons se prestam para a experiência da cor. Nessa cena, sua paleta é quente. As

sombras coloridas demonstram o domínio com as complementares, levadas a

exaustão pelos impressionistas. O céu foi iniciado e retomado, somando-se cada

toque, incorporando os tons a medida que a obra seguia seu processo. Observem

por entre as palhas dos coqueiros.

A região da Ilha de Itaparica e o sul da Bahia sempre foram conhecidos por

abrigarem estaleiros às suas margens, e esses locais que outrora foram importantes

centros da construção naval, impossibilitada pelo avanço tecnológico, se renderam

ao veraneio turístico. Smarcevski (2002) se referindo a um destes lugares comentou:

“Cada sombra de árvore é um estaleiro em Cajaíba”.

“Estaleiro de Gamboa” não foi a única tela produzida nesse local. No III Salão de

ALA em Setembro de 1939, o artista apresentou outra tela com o mesmo saveiro

encalhado, com as mesmas características, inclusive com a inclinação para a

esquerda. Nesse mesmo Salão, Raimundo Aguiar apresentou a tela “Praia de

Gamboa” com o mesmo barco e posição, o que nos leva a pensar que foram

pintadas no mesmo dia pelos dois artistas, provavelmente no início de 1939.

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Aqui mais uma vez podemos ver elementos que caracterizam uma produção

seriada, com o tema se repetindo com variações na composição e ponto de vista,

além disso, estas telas são provas que havia um grupo de estudos da pintura ao ar

livre como afirmamos anteriormente.

Figura 10122: Mendonça Filho. Saveiro na

praia. Óleo sobre tela. 0,60 X 0.55. Fonte: Catálogo FMCCP. Exposição do Centenário de Mendonça Filho, 1995.

Figura 10223: Raimundo Aguiar.

Praia de Gamboa. OST. IV Salão de ALA Fonte. Jornal “O Imparcial”, 11.09.1940 p.05

Além dos trabalhos citados, no Salão do ALA de 1939 foram expostas “O Duvidoso”

- (Gamboa Mar Grande) de Raimundo Aguiar e “Casario” (Gamboa) de Mendonça

Filho que representam um mesmo local.

“Estaleiro de Gamboa” é uma das telas de Mendonça Filho que mais representam

sua atitude para com os nativos da Ilha de Itaparica. Durante a década de 1930, o

artista passou a frequentar esses locais, pescou, conversou e aprendeu sobre o dia

a dia das marés e sobre as práticas do mar. De Mar Grande saíram telas de um

impressionante cromatismo e de força expressiva. Para uma época em que as

fotografias eram coisa rara, as telas de Mendonça e do grupo de artistas que

pintaram as belezas da Ilha e Itaparica e adjacências, proporcionaram a uma

burguesia baiana um ideário de tranquilidade e de boa vida. Quem pode indicar até

que ponto essas pinturas influenciaram a especulação imobiliária que a ilha passou

durante a segunda metade do século XX.

Durante a década de 1930 desenvolveu uma tela sobre o “Farol de Itapoan”, tema

utilizado por outros artistas, onde sentimos uma mudança na aplicação das cores.

Esse trabalho, quase fauvista na forma que utilizou os tons saturados e as

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complementares, se difere do restante de sua produção. Talvez a sua tela

“Queimadas” de 1932 possuísse tais características, pois chamou muito a atenção

da crítica pela força do trabalho e pela oposição das cores, contudo não

conseguimos nenhuma imagem deste trabalho.

Figura 10324: Mendonça Filho. “Farol de Itapoan”, OSM, 33 X 40 cm. Anterior a 1938.

Fonte: Catálogo do Leilão Galeria de Arte Roberto Alban, 2001, fig. 78

De todos os quadros encontrados do pintor Mendonça Filho, talvez, somente a tela

“Queimada” apresente um colorido tão ousado. As cores são aplicadas quase que

sem misturas, direto da bisnaga, quase fauvista.

A tela apresenta o farol de Itapoan nas últimas horas da tarde, quase no pôr do sol.

Sua composição é dividida em três planos bem definidos, tendo como motivo

principal o farol iluminado por uma luz que queima nossos olhos. Com toda certeza a

luz é o fator de pesquisa pictórica dessa tela.

Em primeiro plano, encontramos algumas pedras ocupando toda a extensão inferior

do quadro construída com tons frios, azuis, violetas e o preto. Acima destas uma

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grande poça d’água em azul cerúleo, cria um espelho que reflete parte do farol, do

lado direito, a areia queima em tons de amarelo ocre, criando uma forte atração para

o seu trajeto que conduz o expectador até as duas arcadas que formam uma ponte

de acesso ao farol. Essas arcadas permitem que vejamos por entre elas a

continuação da praia de Itapoan.

O segundo plano apresenta o motivo principal da obra, o farol iluminado pela luz do

crepúsculo. Um totem de fogo a cortar o plano pictórico.

Sua cor de brasa foi construída com tons que variam entre o vermelho e o amarelo

ocre e sua localização é quase que central, desviada um pouco para a direita do

quadro. Está assentada em uma plataforma formada por rochas em tons frios

criando oposição cromática e ressaltando o conjunto arquitetônico. O farol desponta

rumo ao céu!

Na obra desse artista, a escolha das cores sempre privilegiava uma harmonia

tranquila, com muitos tons terrosos e azulados, bem característico dos dias

ensolarados, contudo, nesse trabalho, há uma oposição dramática, se utilizando do

estudo das complementares. Laranja e azul, amarelo ocre e violeta, criando fortes

contrastes com o terceiro plano, o céu construído em azul cerúleo, com nuvens

iluminadas pelo fim de tarde e no horizonte uma leve vegetação cobrindo a orla de

Salvador.

Como nota máxima, aguda dessa composição, temos o caminho formado à direita

da tela pela areia que arde e teima em desviar nossa atenção.

Não sabemos a data de produção desse trabalho, embora o mesmo apareça no

segundo Salão de ALA, em 1938, conforme fotografia abaixo. O tema coincide com

os motivos escolhidos por Mendonça na década de 1930, com elementos

arquitetônicos coloniais de importância histórica, elementos estes sempre a beira

mar.

Em 1938, durante o II Salão de ALA, foi organizado um prélio que solicitava aos

visitantes escolherem os 10 trabalhos mais significativos da exposição e conforme

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comentamos nessa dissertação, Mendonça Filho foi escolhido pelo público, tendo

oito trabalhos escolhidos. A tela “Farol de Itapoan” (nº. 88 do catálogo) ficou com a

5ª colocação19 na classificação final, sendo escolhida por 440 visitantes.

Figura 10425: Abertura do Salão de ALA 1938. Detalhe da tela “Farol de Itapoan”.

Fonte: O Imparcial, 21.09.1938, p. 05.

5.3 2ª FASE BAIANA

A segunda fase está relacionada com as telas produzidas em Mar Grande. Nessa

fase podemos encontrar a série de barcos encalhados, as caieiras, as diversas telas

sobre os catadores de mariscos além de foz de rios e cotidiano da pesca.

19

O Imparcial, 30.10.1938, p.05.

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Mariscada

Figura 105: Mendonça Filho. “Mariscada”, OST, 1,25 X 0,82 cm, 1938.

Fonte: Catálogo FMCCP, 1995, p.06.

A cena representa o cotidiano de um grupo de pescadores a mariscar em uma praia

na maré vazia. Mulheres e crianças ocupam todo o terço inferior da pintura,

distribuídos por toda a extensão da areia.

A composição divide a pintura em duas faixas horizontais, sendo os 2/3 superiores

da pintura ocupados por um céu azul cerúleo repleto de nuvens construídas em

diagonal, que percorre o céu em direção ao quadrante inferior direito.

O trabalho se apresenta harmonioso, com uma paleta clara com predomínio de

azuis, rosas e tons pastéis. As pessoas dispostas na composição, onze ao todo,

brancos mulatos e negros, são apresentadas com tons que variam do rosa ao siena

queimado. Causa estranheza a quantidade de pessoas brancas a mariscar, o que

difere totalmente da realidade baiana, onde a profissão é exercida quase que

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exclusivamente por afrodescendentes. Na tela de Mendonça a sua amada Regina

serviu como inspiração e foi retratada em vários trabalhos.

Entre as pessoas, um grupo se destaca em primeiro plano, composto por tres

pessoas, uma mulher de pele clara, rosada, com chapéu de palha e vestido branco,

carregando um cesto no braço direito caminha em direção ao observador.

Ao seu lado um adolescente de pele branca acompanha a mulher segurando alguns

frutos do mar, ao seu lado outro adolescente negro se abaixa para pegar algo em

meio as poças. Este primeiro grupo é acompanhado de perto por mais duas figuras,

uma senhora e outro rapazinho negro. Mais atrás, outras figuras retiram mariscos da

areia, repetindo suas rotinas diárias.

Na linha do horizonte vemos um banco de areia onde alguns barcos permanecem

encalhados.

Segundo o Catálogo da exposição do centenário de nascimento de Mendonça Filho,

desenvolvido pela FMCCP em 1995, está tela recebeu medalhada de ouro no II

Salão de Ala (1938), contudo, há algumas considerações a serem feitas sobre essa

informação.

No regulamento do II Salão, publicado em jornais de grande circulação20, havia a

informação de que Mendonça Filho era o organizador técnico, além de fazer parte

do júri, a qual cabia à responsabilidade de emitir por escrito, opinião a cerca dos

trabalhos apresentados e da categoria de prêmios, os quais foram divididos da

seguinte forma:

a) Viagem de estudos no país ou no estrangeiro.

b) Coleção de livros brasileiros, ou que se referissem ao Brasil (10 autores).

c) Mensagens de honra.

20

Id. (08.08.1938, p. 04).

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180

Há uma observação: “Quando os mestres fossem expositores e membros do júri

seriam submetidos a “julgamento singular” não explicitando que medidas seriam

tomadas”. Essas informações dizem respeito ao regulamento do Salão de ALA.

Quanto à tela “Mariscada” de Mendonça Filho, o que aconteceu foi que no dia 26 de

setembro O Jornal “O Imparcial21” resolveu fazer um inquérito sobre quais telas mais

impressionava o leitor. O público deveria escolher os dez melhores trabalhos.

Esse inquérito era independente da premiação do Salão de ALA que deveria ser

conferido pelo júri. A mesma foi composta por Helio Simões, Adolpho E. Freire,

Pasquale De Chirico, Presciliano Silva, Mendonça Filho, Arnold Wildberger, Hélio

Duarte, Oscar Caetano (delegados dos concorrentes), segundo carta de ALA22.

A carta de ALA, item 01, especifica: “os mestres que faziam parte do júri estavam

fora do julgamento”.

No dia 24 de outubro saiu o resultado do inquérito junto ao público que indicou

Mendonça Filho como o grande vencedor, tendo oito dos dez trabalhos indicado,

sendo o primeiro lugar a tela “Mariscada23”.

Quanto ao resultado do júri, só foi definido em uma reunião às 20h do dia 07 de

novembro de 1938 e decidindo que os mestres seriam considerados hors-concours.

Dom Álvaro de Las Casas, catedrático da Universidade de Velladolid e sócio da

Academia Minhota, em visita ao Salão, considerou o quadro “mariscada” como um

autentico Sorolla24, lamentando por Mendonça Filho não se ter seduzido pelo Rio de

Janeiro que valorizaria mais seus trabalhos.

21

Id. (26.09.1938, p. 04).

22 Id. (03.10.1938, p. 05).

23 Id. (30.10.1938, p. 04).

24 Id. (21.11.1938, p.05).

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O júri publicou25 que os prêmios foram conferidos da seguinte forma: 1º Diógenes

Rebouças (Recanto Colonial), 2º Ismael de Barros (Retrato de minha mãe - relevo

em gesso) e 3º (mensagem de honra aos artistas) Walter Velloso Gordilho, Georgina

Loureiro Martins, Humberto Araújo e Diogenes Rebouças.

A obra apresentada por Diógenes Rebouças pode ter sido desenvolvida em

companhia do velho mestre, pois sua composição segue o mesmo tema e ângulo

escolhido de uma obra de Mendonça Filho intitulada “Rua Colonial”.

Figura 10626: Diogenes Rebouças. “Recanto

Colonial”. Fonte: O Imparcial (05.12.1938, p.4).

Figura 10727: Mendonça Filho. “Rua

Colonial”. Fonte: O Imparcial (03.10.1938, p.5).

O fato de Mendonça Filho fazer parte do júri impedia que o artista fosse premiado, o

que não tira em nada o mérito do artista que para o grande público foi o grande

destaque do II Salão de ALA.

O tema de pessoas mariscando na praia foi revisitado por Mendonça Filho outras

vezes como na tela “Pescadora de marisco” apresentada na exposição da Galeria Itá

em Setembro de 194726.

E, também na tela “Pescadores em Mar Grande”, um dos trabalhos mais

impressionantes de Mendonça Filho. Se há alguma dúvida sobre a genialidade

desse artista observem o tratamento da água nessa obra prima.

25

Id. (01.12.1938, p. 05).

26 Diário da noite (26.09.1947).

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Figura108: Mendonça Filho. Pescadora de Marisco – Mar Grande. OST. Arquivos da UBA. EBA. 1954-1955. Vol. II, p.176

Além do requinte técnico, há outros laços emocionais que ligam o artista a essa

composição, pois, segundo Ana Mendonça, filha do artista, a figura retratada é Dona

Regina Cavalcante de Mendonça, sua mãe. Infelizmente, a tela foi vendida alguns

anos após o falecimento do artista.

Figura 10928: Mendonça Filho. “Pescadores em Mar Grande”. OST, 126 X 94 cm, 1949. Fonte: MCR Galeria de Arte, 2003, Lote 90.

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Pôr do Sol - Forte de Santa Maria.

Este trabalho atualmente faz parte do acervo do Museu da Cidade do Salvador, no

Centro Histórico, Pelourinho. Encontra-se no 3º pavimento, na sala mais ao fundo,

em direção ao Solar Ferrão. A sala possui outros trabalhos de pintores baianos.

Foi apresentada como sendo da segunda fase baiana de Mendonça pelo catálogo

da exposição de 1966.

Como curiosidade Souza (1983, p.170) informa que o projeto é atribuído a José Pais

Esteves. Sua data de construção é desconhecida, contudo, sabe-se que durante a

primeira invasão holandesa (1624) os três fortes da Barra já existiam e eram

comandados por Paulo Coelho de Vasconcelos. Segundo o Catálogo do IPAC

(1997, p.170), o comando unificado dos três fortes da Barra durou até 1695, e foram

reconstruídos entre 1694 e 1702. Entre os fatos interessantes e de importância

histórica esta a sua ocupação pelos rebeldes da sabinada entre 1837 e 1838, que

fez com que o local fosse desarmado.

No 3º Salão de ALA de 1939 (Jornal de ALA Ano 2, nº. 3, 1940 109vcp. - revista da

ALA p. 84) foi feito o seguinte comentário sobre esta obra: “é um quadro com

pinceladas contidas e tratamento acadêmico”. Participou também da exposição

comemorativa dos 20 anos de Fundação da Universidade da Bahia, em 1966, dois

anos após a morte do artista. Esta exposição foi organizada por João José Rescala

com a participação de amigos e da família do artista.

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Figura 11029: Mendonça Filho. “Pôr do Sol - Forte Santa Maria”. OST, 100 X 80 cm. Década de

1930. Fonte: Acervo do Museu da Cidade do Salvador. Foto: Anderson Marinho, 2012.

Figura 111: Detalhes de “Pôr do Sol”

Fonte: Acervo do Museu da Cidade do Salvador. Foto: Anderson Marinho, 2012.

O sol aparece por trás do forte mostrando a silueta das nuvens em diagonal. O brilho

espelhado da areia calma, contrasta com as marolas agitadas que chegam em série.

A composição pesa para o lado direito do quadro, isto porque o forte e a direção das

nuvens levam o olhar do observador para este lado.

As paisagens com monumentos arquitetônicos já possuía uma tradição no Brasil

conforme apresentamos nesse trabalho. O Forte de Santa Maria durante o século

XIX foi pintado por Abraham Louis Bouvelot em 1939.

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O estado da pintura é bom, embora não possamos fornecer maiores informações,

contudo, preocupa-nos muito o local onde o quadro é exposto, pois a parede que

abriga os quadros de Mendonça Filho é muito úmida e quando ocorrem às chuvas

há muita lixiviação.

A terceira tela sobre a enseada de água de meninos pertence ao acervo do Museu

de Arte da Bahia. Foi apresentada no Salão de ALA de 1947 e trás o mesmo motivo

da primeira de 1930.

Figura 11230: Mendonça Filho. Água de meninos. Óleo sobre tela, 120 X 86 cm, 1947

(atribuída). Fonte: Acervo do MAB.

Observar esse quadro em sua localização atual, no amplo salão do andar superior

do MAB, lado esquerdo de quem sobe as escadas, impressiona a quantidade de

tons utilizados em sua execução. Chama-nos a atenção os oito saveiros em

destaque a enfileirar-se a beira da enseada de água de meninos. As pinceladas

amplas utilizadas nas velas, preenchidas com gosto, sem economia das tintas. Esse

conjunto, majestoso, equilibra o quadro se opondo ao morro e ao conjunto de

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nuvens a formar volutas, como se desejassem retornar ao continente. O azul

ultramar domina todo o lado superior da tela.

A Igreja da Santíssima Trindade, imponente, saúda os veleiros e seus tripulantes.

Por entre as velas dos saveiros em destaque, podemos ver outra dezena de barcos

do outro lado da enseada. Há no topo de cada mastro as famosas galetas ou

bolachas.

O quadro de média dimensão é harmônico, sem desequilíbrio das formas. Há

indícios de desenho prévio, podendo ser verificado nos dois pescadores sentados a

conversar no primeiro saveiro à esquerda. Eles foram esboçados sobre uma camada

fina de tinta ocre. As duas figuras começaram a ser preenchida, contudo não foi

terminada. É o único ponto que verificamos essa abordagem nos deixando a pensar

se foi proposital, ou um mero esquecimento?

A assinatura do artista permanece à sombra do primeiro barco.

Os barcos foram construídos com engenho com todos os detalhes necessários a

navegação. Mendonça conhecia o mar, pois ele próprio era navegador.

Um intenso trânsito de pessoas pode ser visto por toda a praia, comprando,

vendendo mercadorias de todos os tipos e cores. Esses trabalhadores, leves toques

de pincéis, seguem em suas rotinas diárias.

Lindas são as cerâmicas reunidas com cuidado às margens da baía de todos os

Santos. Uma vendedora de quitutes em seu traje de rainha, ultramar e branco,

desfila com suas iguarias. Uma figura triste parece não querer ouvir o que o outro lhe

conta, talvez o acerto pelo trabalho executado. Um barquinho chama a atenção

coberto por sua lona, talvez guarde mercadorias preciosas.

Uma figura destoa diante da cena. Branco, rosado, sentado com seu cesto vazio,

olha para o infinito com seu nariz afinado. Será que Mendonça Filho se transportou

para sua criação?

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Um espaço chama a atenção nessa composição. O artista reserva o canto inferior

esquerdo para aplicar todos os tons utilizados nessa composição: ocres, rosas,

marrons, verdes claros e escuros, azuis e tons carmins. Sobras da paleta.

Sua iluminação vem de cima, pois percebemos pequenas sombras nas figuras

representadas. Era um dia quente!

As águas rasas, de um azul profundo ao verde esmeralda, espelham o esplendor do

céu. O reflexo do mar foi construído com pinceladas rápidas, carregadas, formando

grandes massas horizontais e em zigue-zague. Notem a sombra verde esmeralda.

No alto da Acrópole baiana, os casarios ocupam toda a montanha, Santo Antonio,

Carmo e Sé. Todo o morro foi previamente pintado em tons azuis, sobrepostos com

verdes, marrons e violetas, o mesmo violeta que construiu o telhado da igreja.

Nesta versão o requinte técnico é maior e a composição mais equilibrada. Podemos

perceber duas grandes diagonais a cortar os planos do quadro. Essas diagonais são

formadas pela disposição dos mastros dos saveiros em perspectivas que se opõe a

diagonal formada pela grande acrópole por trás da Igreja. O ponto de vista é um

pouco mais distante e já não encontramos os casarões à frente e nem ao lado da

Igreja. Pode ter sido um artifício compositivo, ocultando elementos que julgava sem

importância na composição. A fileira das árvores nos sugere que uma avenida havia

sido criada recentemente no local.

Aqui percebemos um artista maduro, que descreve a cena com minúcias,

detalhando todos os mecanismos dos saveiros, apresentando o cotidiano dos

negociantes e mestres de saveiros que utilizavam aquelas embarcações para os

seus sustentos. Um retrato cotidiano.

O MAB atribuiu o ano de 1947, o que a incluiria no mesmo período das telas

desenvolvidas para a EPUCS. Seria uma explicação plausível, contudo, não

obtivemos confirmação documental.

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A quarta tela foi exposta na Galeria Itá, também em 1947. Intitulada “Água de

meninos”, essa versão apresenta a Igreja em destaque, mais aproximada, o que nos

leva a pensar que o artista estava embarcado no momento de sua execução.

Figura 113: Mendonça Filho. “Água de meninos” (detalhe).

Fonte: Jornal “Folha da Manhã” (26.09.1947, p. 07).

Além da tela exposta em São Paulo, encontramos uma fotografia no jornal “A

Tarde27”, dois anos depois da morte de Mendonça Filho. No artigo, o artista, em seu

ateliê, pousa para a reportagem à frente do seu cavalete. Na fotografia podemos ver

outra tela onde o mar abriga poucas embarcações. Seria a tela de 1947? Não

podemos afirmar, embora a família ateste que no momento da produção para a

Galeria Itá, um grupo de repórteres visitou o atelier de Mendonça para fazer uma

entrevista a fim de fazer uma chamada para a exposição.

Para nós, o que fica mais evidente é que o colorido empregado na primeira tela

pertencente a Augusto Gentil Baptista deve ter sido pintada ao vivo, já a obra

pertencente ao MAB pela quantidade de detalhes e pelo desenho prévio com toda a

certeza foi desenvolvida em ateliê a partir das referências que o artista já possuía.

27

A Tarde (19.12.1966, p.02).

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189

5.4 FASE DE PINTURAS DESENVOLVIDAS PARA A EMPRESA DE

PLANEJAMENTO URBANO DA CIDADE DO SALVADOR.

Em Dique do Tororó, encontramos uma fatura que mistura espátula e pincel,

possuindo um colorido bem marcante. Em primeiro plano a margem é construída

com massas de cores, onde terras, verdes e brancos se intercalam. Não ha

personagens na cena, o lago foi desenvolvido em tons de cinza, azuis, terras,

verdes, refletindo tudo ao seu entorno. A montanha limita o horizonte na metade da

tela, já apresentando muitas áreas desmatadas, porém, com muitas árvores em

variados tons de verde vessiê. Podemos ver algumas poucas construções já

aparecendo.

O céu azul celeste bem simples para o artista foi feito de forma bem gestual com a

utilização de pinceladas largas e poucos tons. Boa parte do espaço é todo ocupado

por nuvens cinza iluminadas com uma cor creme amarelada. Parece um prenúncio

de chuva.

O tema paisagem do Dique aparece na obra de Presciliano Silva em sua exposição

de 1927 sob o título “Margens do Dique” (VALLADARES, 1972, p. 74).

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Figura 11431: Mendonça Filho. Dique do Tororó – Jardim Baiano, OST, 1945.

Acervo do Museu da Cidade do Salvador. Foto: Anderson Marinho 2011.

Em 1944 Mendonça pintou “Vista do Chame-Chame” dando início a uma série de

pinturas sobre os vales de Salvador. A tela “Dique do tororó” foi pintada em 1945,

mesmo período que “Vista do Vale do Camurujipe”. Essas telas foram desenvolvidas

por encomenda da EPUCS (Empresa de Planejamento Urbano da Cidade do

Salvador), segundo informações encontradas no verso da tela, anotadas pelo

próprio Diógenes Rebouças. Essas encomendas foram feitas a outros artistas como

Alberto Valença que foi contratado para “desenhar uma série de casarios da Bahia”

antiga (MAGNO, 1991).

Acreditamos que a EPUCS, em vista do desenvolvimento que a cidade do Salvador

passava desde o início do século, acabou por contratar alguns artistas a fim de

registrarem aspectos físicos da cidade antes das transformações urbanísticas. As

telas “Dique do Tororó” e “Vale do Camurujipe” foram reenteladas e restauradas por

Diógenes Rebouças em 1970. As inscrições no fundo das duas telas comprovam a

informação.

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191

Figura 11532: Mendonça Filho. Vale do Camurujipe. OST, 75,5 X 54,5 cm, 1945.

Fonte: Acervo do Museu da Cidade. Foto: Anderson Marinho, 2011.

Quem transita por esses locais de Salvador atualmente de ante de tantos problemas

de congestionamentos, aglomerações de residências, criminalidade e pobreza

extrema e contempla esses trabalhos se assusta em saber que em apenas 77 anos

caminhamos da beleza natural ao caos.

5.5 ÚLTIMA FASE

Amanhecer na Bahia de Todos os Santos

Não há registro de data da produção desta tela, contudo, o motivo, tratamento e

colorido são encontrados na produção final do artista, em obras “amanhecer” da

década de 1960.

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Figura 11633: Mendonça Filho. “Amanhecer na Bahia de Todos os Santos”. OSM, 0,30 X 0,75 m.

Fonte: Acervo do MAB. Foto: Anderson Marinho, 2011.

Assinado no canto inferior esquerdo, esse trabalho privilegia a luminosidade de um

dia ensolarado. Sua composição é simples e transmite uma emoção triste, gélida

como as despedidas.

Parece um quadro de feitura rápida, embora muito preciso na utilização dos tons

observados. Há pinceladas largas e curtas distribuídas na composição. As nuvens

cinza e brancas sobrepõem uma lisa camada de azul cerúleo, sobre a qual o artista

enriqueceu com pequenos toques de rosa claro para a construção da luminosidade.

Trata-se de um amanhecer, claro, porém frio. Não existem cores saturadas neste

trabalho.

É uma poesia pintada. De todos os trabalhos de Mendonça, este é o que mais nos

surpreendeu por sua sensibilidade. Não há nenhum pensamento em retratar o local.

É pura emoção.

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O mar tranquilo, quase um espelho, levemente tocado por quatro barcos em

diferentes distâncias. Estes, só foram necessários para demarcar os planos,

separando o céu do mar que lutam por trocar de lugar.

Um quadro de pequenas dimensões mais que demonstra o quanto Mendonça Filho

era fascinado pela luz. Qualquer um que já tenha atravessado de barco, em um dia

ensolarado à baía de todos os Santos pode facilmente perceber aquela luz. Com

certeza, entre os quadros analisados, o mais tímido em suas dimensões e colorido,

porém, se ousar pintar àquelas nuvens pelo menos uma vez na vida, afirmará que

aquele é um trabalho de mestre.

Em “Madrugada”, de 1963, a luminosidade é serena, representando o amanhecer.

Esse foi um momento difícil na vida do artista, pois havia passado por uma

importante cirurgia e tentava se recuperar. A atmosfera geral desta pintura trás uma

religiosidade poética.

Com predomínio dos tons azuis e rosas, a composição apresenta um barco

encalhado em destaque nas primeiras horas do dia. Os recifes aparentes com a

maré baixa criam uma poça d’água que cerca o pequeno barco com uma

luminosidade e um tratamento digno de mestre. São centenas de pequenas

pinceladas aplicadas na horizontal, onde os azuis, rosas e branco se intercalam

criando uma dinâmica e chamando tanto a atenção que por um momento

esquecemos-nos do restante da cena representada. Notem as pinceladas em azul

turquesa próximo as rochas do lado esquerdo plasmadas em azul e leves pinceladas

de siena.

O barco ao centro aponta para o horizonte como se sentisse saudades do alto mar.

Há mais algumas embarcações completando a cena.

O céu construído com os mesmos tons do mar possui um efeito esfumado ao fundo,

sendo que suas nuvens são carregadas de tintas onde predomina o azul cobalto.

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Figura 11734: Mendonça Filho. Madrugada – Mar Grande. OST, 33 X 42 cm, 1963. Acervo do Museu da Cidade do Salvador. Foto: Anderson Marinho 2011.

A composição foi retirada da tela “Maré Vazia – Mar Grande”, realizada um ano

antes pelo artista. A qualidade da tela de 1963 é superior à primeira em sua

composição e em seu acabamento. Podemos notar Salvador ao longe e a mesma

embarcação com o mesmo ângulo.

Figura 11835: Mendonça Filho. Maré Vazia Mar-Grande. OSM. 46 X 55 cm. 1962.

Fonte: Catálogo Roberto Alban. Salvador. Nov. 2003. Fig. 45

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Nesse motivo, há uma relação entre as obras de Castagneto28 e as de Mendonça

Filho, principalmente no que se refere à representação de barcos encalhados na

praia. O tema relaciona diretamente os dois artistas principalmente naquelas

pinturas produzidas por Mendonça Filho na Ilha de Itaparica. O motivo dos barcos

encalhados na praia que tanto aparece na produção de Mendonça, esteve presente

em todos os momentos da vida de Castagneto (OLIVEIRA, 2007, p.67).

Vários artistas representaram cenas do cotidiano dos pescadores, e os barcos

encalhados aparecem nesse contexto. No Brasil, durante o século XIX e início do XX

outros artistas representaram o tema, a exemplo de Henri Nicolau Vinet (1817-1876)

Benedito Calixto (1853 - 1927) e Antônio Parreira (1860 - 1937) (OLIVEIRA, 2007,

p.88).

A série das “Lavadeiras do Rio Cachoeira – Itabuna”. Segundo a família do

artista, a aproximação do artista com essa região nesse período era devido à família

de sua esposa que tinham casas no local.

Nas telas desenvolvidas em Itabuna sobre as “Lavadeiras do Rio Cachoeira”, obras

do final de sua produção, a composição e o tratamento transmite uma tranquilidade,

com a mesma luz clara da tela “amanhecer”.

Essas telas possuem algo de moderno, parecendo com aquelas telas produzidas na

lagoa de Abaeté, por exemplo, por João José Rescala e Bustamante Sá. Não

insinuamos que o artista tenha enveredado para uma linha mais moderna,

acreditamos sim, que o artista tenha reafirmado suas escolhas, embora não tenha

deixado de observar a tudo que acontecia ao seu redor. Diante de tantas qualidades

vinculadas ao artista aqui apresentado não acreditamos que Mendonça Filho

passasse a produzir obras pseudomodernas por questões mercadológicas ou de

tendências.

28

Sobre a representação do corriqueiro na obra de Castagneto e Almeida Junior, Oliveira (2007,

p.121) indica que no caso de Castagneto a figura só aparece em raríssimas exceções, pois, o foco do

artista eram os barcos que, indiretamente acusariam a existência humana.

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Figura 11936: Mendonça Filho. “Lavadeiras do Rio Cachoeira”, OSP, 45 x 55 cm. Década de

1960. Fonte: Catálogo de Leilão Galeira Zeca Fernandes 2011.

Figura 120: Lavadeiras do Rio Cachoeira – Itabuna. OST, 0,44 X 0,55. Década de 1960.

Fonte: FMCCP (1995, p.23). Acervo da Assembleia Legislativa do Estado da Bahia.

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Figura 121: Lavadeiras do Rio Cachoeira – Itabuna. Óleo sobre Eucatex, 0,49 X 0,60. Década de

1960. Fonte: FMCCP (1995, p.23). Acervo de Ângelo Calmon de Sá.

A tela “Manhã de verão”, segundo a família, foi a última obra do artista. O detalhe

apresenta uma figura a calafetar o barco Duda. Há uma sensação de que o artista

se transportou para a própria obra.

O fogo que aqueçe e dá acabamento na vedação do pequeno saveiro cria um

verdadeiro arco-íris refletido na poça d’água.

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Figura 37: Mendonça Filho. “Manhã de Verão”. OSM, 0,72 X 0,60 cm. Década de 1960.

Fonte: Catálogo FMCCP, 1995, p.23.

O barco DUDA apareceu em muitas obras. Essa repetição de alguns temas e

elementos pode ser entendida como uma série. As escolhas compositivas que

apresentam diferentes locais com a mesma disposição de barcos, variação do ponto

de vista ou do enquadramento, assim como o tratamento técnico reforçam esse

entendimento, mesmo que não fosse intencional. As pinturas eram produzidas em

um mesmo dia ou em dias diferentes. Os tamanhos de telas empregados, de

pequenos formatos, podem ter sido escolhidos para facilitar o transporte. Entre os

locais mais representados estão Mar Grande, Ilhota e Baiacu.

Parece que por conta da idade avançada, cansado e com enfermidades, o pintor

deixou de lado todas as discussões, embates políticos, burocracia e críticas e se

permitiu simplesmente pintar. Em essência, como se naquele momento nada mais

importasse.