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4 O Regime Internacional de Propriedade Intelectual do Acordo TRIPS: um chute definitivo na escada do desenvolvimento?
Neste capítulo, pretendemos apresentar o regime internacional de
propriedade intelectual como uma variável de natureza estrutural (material e
ideacional) caracterizada, desde o advento do Acordo TRIPS, por limites e
constrangimentos historicamente inéditos às políticas públicas de
desenvolvimento em países como o Brasil, em particular políticas industriais e
tecnológicas com foco em inovação. 210
Uma das prioridades é demonstrar que o atual regime de propriedade
intelectual resultou não somente de estratégias de exercício de poder material (as
sanções comerciais unilaterais impostas pelos Estados Unidos a países como o
Brasil durante os anos 80, por supostamente violarem direitos de propriedade
intelectual de algumas de suas corporações multinacionais), mas também de
estratégias de poder normativo, que contribuíram para o triunfo de uma ideia
central211: a de que mais proteção à propriedade intelectual promove o livre
comércio e atrai investimentos e de que estes dois, por sua vez, levam
necessariamente ao crescimento econômico e ao bem-estar social. É sob esta
estrutura normativa que se erigiu o regime de TRIPS.
210 Para efeito de conceituação dos regimes internacionais, valemo-nos da definição de KRASNER (1983, p. 2): “Os regimes são definidos como um conjunto de princípios, normas, regras e procedimentos de tomada de decisão, implícitos ou explícitos, ao redor dos quais as expectativas dos atores convergem em uma dada área das relações internacionais. Os princípios são crenças sobre fatos, causalidades e retitude. As normas são padrões de comportamento definidos em termos de direitos e obrigações. As regras são prescrições ou proscrições específicas para a ação. Os procedimentos de tomada de decisão são práticas para formular e implantar a ação coletiva.” Quanto ao regime internacional de propriedade intelectual, vale registrar a definição de GANDELMAN (op. cit., p. 55): “é o regime constituído por princípios, normas, regras e procedimentos que têm por objeto um direito de propriedade sobre bens imateriais, mais especificamente sobre o conhecimento produzido e acumulado pelo homem, bem como a tecnologia resultado do conhecimento acumulado”. Tendo em vista o caráter contextual que o regime ocupa na análise, não nos preocupamos em problematizar a definição clássica de regimes internacionais. Para um aprofundamento sobre a literatura dos regimes internacionais, ver KRASNER (1983) e HASENCLEVER, MAYER ET AL (2001). 211 Ou “Mapa de Estrada”, como preferem denominar GOLDSTEIN & KEOHANE (1993).
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O triunfo ideacional do automatismo em TRIPS é ilustração da vitória de
uma concepção particular de desenvolvimento, defendida pelos países mais
desenvolvidos: a do “desenvolvimento como crescimento”, vale dizer, a de que a
propriedade intelectual necessariamente encoraja o crescimento econômico,
aumentando a liberalização comercial, promovendo investimentos externos
diretos e intensificando a inovação por intermédio da transferência de tecnologia
resultante (BARBOSA, CHON & VON HASE, 2007, p. 77).212
Em contraposição à concepção particular do “desenvolvimento como
crescimento”, países em desenvolvimento advogam a necessidade de se enxergar
o “desenvolvimento como liberdade” (DeSALVO, 2010, p. 8). Significa dizer
que, por vezes, como na questão específica dos medicamentos, a proteção à
propriedade intelectual não só pode limitar o acesso aos mesmos por parte das
populações dos países menos desenvolvidos, mas também obstruir o aparecimento
e o crescimento de empresas farmacêuticas nestes países ao impor barreiras à
produção (ibid, p. 8). Uma proteção mais flexível da propriedade intelectual
nestes casos seria um meio para assegurar acesso à tecnologia e à informação
necessárias ao crescimento econômico, sem contar o bem-estar social gerado
(ibid, p. 8). 213
Por mais que o regime internacional de propriedade intelectual do Acordo
TRIPS represente maiores dificuldades de acesso ao conhecimento e à realização
212 Relembramos a crítica de Hélio Jaguaribe à visão do desenvolvimento como crescimento. Ver nota 124, p. 103. 213 CHANG (2002, p. 144) esclarece como estas concepções de desenvolvimento são informadas por diferentes concepções acerca do direito de propriedade. No discurso ortodoxo, acredita-se que quanto mais forte for a proteção aos direitos de propriedade, tanto melhor para o desenvolvimento econômico, já que a proteção estimula a geração de riqueza. Embora admita que a incerteza quanto a segurança de tais direitos possa de fato gerar perdas de investimento e o não-crescimento à longo prazo, CHANG afirma que o papel dos direitos de propriedade no desenvolvimento econômico é muito mais complexo. A segurança dos direitos de propriedade não pode ser encarada como algo bom em si mesmo, já que a história é pródiga em exemplos de preservação desses direitos que resultou nociva ao desenvolvimento econômico, assim como de violação dos direitos de propriedade existentes (com a criação de outros novos) que foram benéficos para o desenvolvimento econômico. Seria este o caso dos enclosures, na Inglaterra, que representaram confisco e cerco às terras comuns, mas que beneficiaram a indústria de lã (ibid, p. 144). CHANG conclui que “o que importa para o desenvolvimento econômico não é, portanto, a mera proteção de todos os direitos de propriedade em vigor, e sim qual direito de propriedade está sendo protegido e em quais condições” (ibid, p. 145). Em campo oposto, EPSTEIN (2007), que se define como um liberal clássico, considera que a ampla utilização da instituição da instituição da propriedade privada se apóia em uma sensata apreciação de que este sistema é melhor do que qualquer outro possível, pelos resultados que pode atingir para as pessoas que vivem sob a sua égide. A propriedade intelectual se sustenta nas mesmas justificativas funcionais que explicam porque é aceitável impor limites à liberdade irrestrita, em nome da propriedade, seja ela tangível ou intangível (ibid, pp. 27-32).
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de políticas industriais e tecnológicas razoavelmente autônomas, por parte de
países como o Brasil (além de maiores desafios na formulação da política
externa), este capítulo defende que não foi chutada em definitivo a escada do
desenvolvimento. No contexto da concretude negociadora e constante tensão
ideacional entre os países desenvolvidos e em desenvolvimento, entendemos que
há ainda margem de manobra para o Brasil valer-se de um padrão de inserção no
regime internacional de propriedade intelectual que permita o aproveitamento
máximo de algumas de suas flexibilidades e construir endogenamente, de forma
criativa (o Estado articulado com a sociedade), políticas nacionais de
desenvolvimento industrial, científico e tecnológico, sinergicamente ancoradas
numa política externa pró-ativa (sabiamente afastada dos extremos da
subserviência acrítica e da vazia refutação a piori). Como os Governos de
Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva lidaram com essa
oportunidade é o que discutiremos nos dois capítulos seguintes.
Este capítulo está divido em mais duas partes. Na primeira, dedicamo-nos
a questionar alguns aspectos conceituais e históricos da propriedade intelectual,
com especial atenção conferida ao regime internacional vigente antes da Rodada
Uruguai. A proposta é demonstrar que o regime das convenções internacionais
celebradas ao final do século XIX propiciou condições materiais e ideacionais
favoráveis, na forma de uma série de flexibilidades legais na proteção à
propriedade intelectual, para que países de industrialização tardia, como a
Alemanha e Japão atingissem níveis de industrialização iguais ou semelhantes aos
das primeiras potências industriais europeias, como a Inglaterra.
Em seguida, voltamo-nos para o regime internacional de propriedade
intelectual do Acordo TRIPS. Pretendemos caracterizar este regime como uma
variável estrutural de natureza material e ideacional que, ao abraçar princípios do
Consenso de Washington, impôs constrangimentos sem precedentes para a
formulação de políticas públicas nacionais de propriedade intelectual, por países
em desenvolvimento como o Brasil, especialmente políticas industriais focadas
em estratégias de catching up tecnológico. De fato, o mundo “pós-OMC” oferece
maiores dificuldades para a promoção de estratégia de políticas industriais, antes
toleradas (ABREU, 2005). Entendemos, contudo, que “o mundo do TRIPS e da
OMC” não representou o “fim do desenvolvimento”, mas certamente uma
necessidade de repensá-lo. O espaço para a formulação de políticas públicas
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nacionais voltadas para o desenvolvimento pode, aparentemente, ter diminuído.
Repensá-lo implica não somente em valer-se das lições da história, como propõe
CHANG (2002), mas conscientizar-se de que é possível empenhar-se na
formulação de políticas industriais que regulem devidamente as interações com a
economia internacional e que, no cenário doméstico, promovam incentivos à
inovação.
4.1 Propriedade Intelectual: aspectos conceituais e históricos
Os direitos de propriedade intelectual decorrem do exercício da criação
intelectual humana e são formados pelos direitos da propriedade industrial
(patentes, marcas, desenhos industriais), juntamente com os direitos advindos da
propriedade literária, científica e artística (os direitos de autor).214 Podemos dizer
que, em sentido amplo, a propriedade intelectual se refere a direitos resultantes de
atividades intelectuais nos campos industrial, científico, literário e artístico
(GANDELMAN, 2004, p. 55). A proteção legal à propriedade intelectual almeja a
proteção aos criadores e produtores de bens e serviços intelectuais, garantindo-
lhes direitos, por um prazo de tempo limitado, de controlar o uso que se dá às suas
criações (ibid, p. 55). Estes direitos “não se referem ao objeto material no qual a
criação está fixada ou corporificada, mas sim ao aspecto intelectual, isto é, à
criação propriamente dita” (ibid, p. 55).
De acordo com LOPES & SOUZA (2008), a propriedade intelectual
possui, em tese, três objetivos principais: o de encorajar a inovação, o de
recompensar o inventor e o de garantir que a inovação seja difundida socialmente.
Para alcançar os dois primeiros objetivos, a propriedade intelectual concede ao
criador a propriedade exclusiva de sua invenção, mesmo que de forma temporária,
fazendo com que ele possa auferir os lucros como prêmio por sua inventividade e
como retribuição ao investimento.
214 Reiteramos o esclarecimento conceitual apresentado na Introdução de que, embora nos refiramos sempre à “propriedade intelectual”, nosso objeto ficou restrito à propriedade industrial. Lembramos também que nos referimos aos institutos mais tradicionais da propriedade intelectual, o que não representa uma listagem exaustiva. Contemporâneas formas de proteção de patrimônio imaterial são discutidas hodiernamente desde os registros de sofwares e de circuitos integrados até a dos conhecimentos tradicionais (como os das comunidades indígenas). Para mais detalhes sobre os diferentes institutos da propriedade intelectual, ver MAY & SELL (op. cit, pp. 7-11).
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Quanto ao terceiro objetivo, a propriedade intelectual exige do inventor
que detém a exclusividade que ele explore o seu direito. Ao explorá-lo, ele estará
colocando à disposição da sociedade a inovação alcançada. Espera-se que sempre
que o inventor se sentir encorajado a desenvolver inovações em troca de uma
recompensa, a propriedade intelectual cumprirá uma de suas principais funções
que é a de estimular a inovação. Em outras palavras, somente encorajando e
recompensando o criador ou inventor individual (com a propriedade e benefícios
associados ao mercado) “que a sociedade pode se assegurar de que ele continuará
desenvolvendo inovações socialmente valiosas, que auxiliarão a tornar toda a
sociedade mais eficiente” (MAY & SELL, op. cit, p. 22)
MAY & SELL demonstram que a história da propriedade intelectual tem
sido marcada pela competição entre duas diferentes visões. De um lado, existe a
crença de que os indivíduos devem se beneficiar de seus esforços intelectuais, e
do outro o entendimento de que estes esforços detêm um valor público de tal
dimensão que justificam o interesse social em sua disseminação, de forma
relativamente livre (ibid, p. 25). Significa dizer que se verifica uma constante
competição entre o poder de monopólio sobre direitos privados (quando o acesso
público ao conhecimento é limitado) e o propósito público de libertar o fluxo de
informações sobre o conhecimento, aos custos dos direitos do inventor (ibid, pp.
25-26). Em síntese: ao longo da história da propriedade intelectual tem se
observado uma tensão constante entre duas posições: a de “proteção/exclusão” e a
de “disseminação/competição”. (ibid, p. 25).215 Resgatar de forma breve esta
trajetória nos auxilia a compreender melhor o caminho percorrido até o Acordo
TRIPS e o que este representa.
A origem das modernas leis de propriedade intelectual remete aos sistemas
de concessões de privilégio da Idade Média (DRAHOS, 1999, p. 3). Com efeito,
foi durante a Idade Média que surgiram as primeiras cartas de proteção outorgadas
215 Embora os autores não se utilizem desta expressão, entendemos que estas são, para ambos, as “ideias-força” que moldaram a trajetória da propriedade intelectual desde os seus primórdios. O mérito que se deve sublinhar no trabalho dos autores é o de demonstrar que a história da propriedade intelectual não foi (e não é) um conjunto de aperfeiçoamentos neutros e conduzidos funcionalmente em direção a um cenário legal “ótimo” e naturalmente justo. Ao contrário, a história da propriedade intelectual tem sido uma história de economia política: a propriedade intelectual tem sido um campo de batalha política entre governos e interesses econômicos em disputa e entre tradições filosóficas distintas (ibid, p. 204). Enfim, a história da propriedade intelectual revela um processo vacilante entre a disseminação e a exclusão e os cenários ao longo deste espectro variaram de acordo com complexas interações de forças ideacionais, institucionais e materiais (ibid, p. 30).
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aos autores de concepções técnicas (DI BLASI, 2010, p. 1). Na França, privilégios
foram concedidos para a industrialização de produtos, como no caso do inventor
Philipe de Cacquery que, em 1330, recebeu do Rei Philippe de Valois monopólio
para a “fabricação de vidros” (ibid, p. 1). Contudo, há um considerável consenso
na literatura especializada de que o primeiro privilégio verdadeiramente
reconhecido foi o outorgado pelo Feudo de Veneza, em 1469, que prescrevia ao
seu titular o direito de exclusividade para exploração, durante cinco anos, em todo
o território feudal, de uma indústria de impressão (ibid, p.2). Aos venezianos,
aliás, credita-se a primeira forma rudimentar de uma lei de patentes, em 1474, que
já estabelecia princípios básicos, como novidade, aplicação prática216,
exclusividade, salvaguarda dos direitos do Estado, licença de exploração e sanção
a terceiros que utilizassem a invenção sem autorização do titular (INPI, 2002a).
Nos textos das cartas de privilégio, como as que foram outorgadas pelos
Feudos de Veneza e de Florença, já era possível perceber a intenção das
administrações governamentais de não apenas salvaguardar os direitos do
inventor, como também de recompensá-lo, o que já era visto como uma forma de
estimular o progresso tecnocientífico (DI BLASI, op. cit, p. 2).217 Foi desta forma
216 Atualmente, de acordo com a Lei da Propriedade Industrial (Lei n° 9. 279, de 1996), são três os requisitos básicos que devem ser preenchidos para que um invento seja patenteado; a) novidade absoluta: o invento não pode se tornar público em lugar algum do mundo, exceto em caso de divulgação feita pelo próprio inventor, nos casos previstos em lei; b) atividade inventiva: além de ser diferente, preenchendo o requisito de novidade, o invento não pode ser considerado como uma decorrência óbvia daquilo que já se conhece; c) aplicação industrial: o invento deve se prestar para ser produzido ou utilizado em qualquer ramo da indústria, entendendo-se por “indústria” qualquer ramo produtivo, como, por exemplo, a agricultura. Ver DANNEMANN, AHLERT & CAMARA JR (2004, pp. 11-12). 217 É traço comum em boa parte da literatura especializada em propriedade intelectual a utilização invariável das palavras “progresso” e “desenvolvimento” (este, fundamentalmente em sua acepção econômica). Como o eixo central de nossa análise é a ideia de desenvolvimento, cremos que é importante estabelecer uma distinção. Para tanto, valemo-nos dos ensinamentos de JAGUARIBE (1972) que entende ser o desenvolvimento um “processo social global” que envolve as dimensões econômica, política, cultural e social, separáveis somente por uma questão metodológica. Feito este esclarecimento, JAGUARIBE define o processo de desenvolvimento econômico como “um processo de crescimento da renda real caracterizado pelo melhor emprego dos fatores de produção, nas condições reais da comunidade e ideais do tempo” (ibid, p. 13). Afirma ainda que “a ideia de desenvolvimento abrange o sentido de um aperfeiçoamento qualitativo da economia, através da melhor divisão social do trabalho, do emprego de melhor tecnologia e da melhor utilização dos recursos naturais e do capital” (ibid, p. 13). A ideia de desenvolvimento contrasta com a de progresso. Esta implica a contínua incorporação de valores ao longo de um processo em si mesmo ilimitado de descobrimento e de criação de valores (ibid, p. 13). Por outro lado, a ideia de desenvolvimento “carreia a conotação da explicitação de atualização de possibilidades virtualmente pré-existentes” (ibid, p. 13). Assim, “não se pode alcançar para uma comunidade e um período determinado senão determinados índices de desenvolvimento. Não se pode promover o desenvolvimento senão dentro de certas normas e conforme certos critérios, ditados pelas condições em que efetivamente se encontra a sociedade a desenvolver” (ibid, p. 14). Esta nota não
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que Galileu Galilei obteve do Feudo de Veneza direito exclusivo de fabricar,
comercializar e autorizar, a terceiros, a fabricação de um dispositivo hidráulico de
irrigação que havia inventado (DI BLASI, op. cit., p. 2).
Até o século XVII, prevaleceu esse modelo de concessão de privilégios
para a proteção dos bens intelectuais. Justamente por se tratar de um modelo que
dependia da graça dos soberanos e não respaldado em leis, passou a sofrer severas
críticas, especialmente por parte da nascente classe burguesa. Na Inglaterra, o
arbítrio para a concessão de privilégios passou a sofrer duras restrições. Em 1623,
o Parlamento Inglês submeteu ao Rei, e este sancionou, o Statute of Monopolies,
que previa em seu texto a outorga de patentes para novas invenções, fixando em
14 anos, no máximo, o prazo e a duração do privilégio (ibid, p. 2). Esta lei
vigorou na Inglaterra durante praticamente dois séculos e teve influência
considerável nas legislações posteriores de outros países, em especial os Estados
Unidos.
Neste país, antes mesmo da independência, em 1776, e da promulgação da
Constituição, em 1787, já eram adotadas concessões de patentes em vários de seus
Estados e colônias. Data de 1641, a primeira patente do continente americano,
concedida pela Corte Geral de Massachusetts, a Samuel Wilson, para um método
novo de fabricação de sal (ibid, p. 2). No campo da mecânica, a mesma Corte
concedeu a Joseph Jenkes, em 1646, patente para um “engenho mecânico de
ceifar” (ibid, p. 2). Assim, as patentes eram concedidas nos estados e colônias
dos Estados Unidos por atos especiais de legislatura. Como não havia uma lei de
âmbito geral, era necessário que o inventor fizesse um apelo especial à autoridade
local (ibid, p. 3).
A partir de 14 de maio de 1787, representantes de vários estados norte-
americanos se reuniram na Filadélfia para a elaboração da Constituição dos
Estados Unidos. No dia 05 de setembro, foi aprovada a inclusão de uma cláusula
alusiva à proteção dos inventores, por meio de patentes, e dos autores de obras
artísticas e literárias, por meio dos direitos de autor. Quase três anos depois, em
10 de abril de 1790, o Presidente George Washington lançou a pedra fundamental
do atual sistema norte-americano de patentes, ao sancionar um projeto de lei sobre
a matéria (ibid, p. 3). Reconhecia-se pela primeira vez em lei o direito de um
é uma crítica direta a nenhum autor, mas apenas um registro de que os termos progresso e desenvolvimento possuem sentidos distintos e é preciso atentar para os mesmos.
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inventor poder lucrar com sua invenção, sem depender da vontade de um
soberano ou de um ato especial de legislatura (ibid, p. 3).218
Em outras nações além dos Estados Unidos, a propriedade intelectual
passou a ser também matéria objeto de discussão e normatização legais. A ideia
central que informou a maioria delas na edição de suas legislações foi a de que o
inventor tinha, sobre a sua invenção, direito de exclusividade e de auferir lucros
com a sua utilização ou exploração durante certo tempo (ibid, p. 4).219 Na França,
por exemplo, a Assembléia Nacional aprovou uma lei de patentes, em 1791, que
fixou em 15 anos o direito exclusivo do inventor sobre sua invenção (Di BLASI,
op. cit., p. 4). A lei francesa teve uma considerável influência sobre outras nações
europeias, como a Alemanha, a Suíça e outras, que também editaram suas leis.220
No Brasil, o primeiro ato de caráter oficial no campo da propriedade
intelectual que objetivou estimular o desenvolvimento nas áreas de indústria e
comércio, mediante a concessão de privilégios aos inventores, foi o Alvará de 28
de abril de 1809, do Príncipe Regente, Dom João VI. Em seu preâmbulo, o Alvará
afirmava a conveniência de que os inventores e produtores de alguma nova
máquina e de invenção de artes gozassem do privilégio e do direito ao favor
pecuniário que seu serviço estabelecesse em favor da indústria e das artes.
(CARVALHO, 2009, p. 139).221 E ordenava que os que estivessem nesta situação
218 Em 1861, foi alterado o prazo de validade de uma patente de invenção, antes de 14 anos, para 17 anos. Já a primeira lei norte-americana relativa ao registro de marcas de indústria ou de comércio foi sancionada em 08 de julho de 1870 (ibid, p. 4). 219 Como veremos na análise de CHANG (2002), assegurar o direito de exclusividade do inventor não era o único objetivo. Boa parte das leis também fez parte de claras estratégias nacionais de desenvolvimento industrial, com relevante componente de dirigismo estatal, ainda que, em alguns casos, em um contexto de afirmação externa de um discurso liberal (como nos Estados Unidos). 220 Leis de proteção aos inventores foram adotadas ainda no século XIX, na Áustria, em 1810; na Rússia, em 1812; na Prússia, em 1815; na Bélgica e na Holanda, em 1817; na Espanha, em 1820; na Bavária, em 1825; na Sardenha, em 1826; no Vaticano, em 1833; na Suécia, em 1834; em Portugal, em 1837; e na Saxônia, em 1843 (ibid, p. 4). 221 Para informações mais detalhadas a respeito do Alvará, ver CARVALHO (2007; 2008 e 2009). O autor demonstra, por razões históricas que remetem à vinda da família real portuguesa para o Brasil em 1808, que o Alvará de 28 de abril de 1809, era claramente inspirado no Estatuto dos Monopólios da Inglaterra, de 1623. No entanto, copiar este modelo estrangeiro de sucesso não significou garantia de êxito já que “no Brasil de 1809 prevaleciam condições econômicas e sociais inteiramente diversas da Inglaterra” (ibid, p, x). Para o autor, a experiência do Alvará ensina que “se uma harmonização internacional pode ser útil para reduzir custos e aumentar a segurança jurídica de importadores e exportadores ela não se traduz automaticamente em ganhos para a produção tecnológica endógena” (ibid, p. xi). CARVALHO não deixa de reconhecer que o Alvará teve alguma aplicação prática e de utilidade para o Brasil, já que exerceu um papel relevante de encorajamento à invenção nacional, mas políticas públicas conflitantes (como as que facilitaram a importação de artigos acabados, previstas no Tratado de Comércio com a Inglaterra, em 1810) e a falta de mão-de-obra qualificada impediram o seu objetivo primordial que era estimular a instalação de indústrias inglesas no Brasil para a transferência de tecnologia (ibid, p. xi). A análise
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apresentassem planos de seus inventos à Real Junta de Comércio, a quem cumpria
conceder privilégio exclusivo de 14 anos para que, no fim deste prazo, a Nação
pudesse gozar do fruto da invenção (ibid, p. 139).
Podemos dizer que praticamente todo o século XIX foi caracterizado pela
proliferação de regimes nacionais de propriedade intelectual, principalmente na
Europa e pela ausência de proteção internacional. Este período, batizado pela
doutrina de “período territorial” (DRAHOS, 1999, op. cit., p. 5), foi dominado
pelo princípio da territorialidade, segundo o qual a proteção conferida aos direitos
de propriedade intelectual não se estendiam para além do Estado soberano que os
havia reconhecido originalmente dentro dos seus limites.222
Contudo, era necessário lidar com o fato de que a Revolução Industrial
havia desencadeado um incremento sem precedentes no intercâmbio comercial
internacional e criado um ambiente cada vez mais acelerado de desenvolvimento
de novas tecnologias. Crescia a percepção entre os Estados da necessidade de
buscar a cooperação internacional em matéria de propriedade intelectual, de forma
a resguardar a originalidade de suas invenções e os direitos dos seus inventores.
No final do século XIX, começava a ser cada vez mais frequente a realização de
feiras internacionais, como as que se realizaram em Londres (1851), Viena (1873)
e Paris (1878), entre outras (GUISE, 2007, p. 25). Muitos inventores viajavam
para divulgar suas criações e o risco de cópia era iminente. Na exposição
internacional de Viena, por exemplo, parte dos expositores estrangeiros se recusou
a participar por medo de que suas ideias fossem roubadas para serem exploradas
comercialmente em outros países (ibid, p. 25).
O interesse cada vez maior entre os Estados em investir na cooperação
internacional em matéria de propriedade intelectual acabou por se materializar, ao
final do século XIX, em dois grandes pilares multilaterais: a Convenção da União
de Paris para a Proteção da Propriedade Industrial (CUP), de 1883, e a Convenção
de Berna para a Proteção de Obras Literárias e Artísticas (Convenção de Berna),
do autor é importante pela qualidade histórica, mas também por demonstrar que a mera adoção de uma lei de patentes atualizada para o seu tempo não foi capaz de estimular o processo de industrialização e inovação tecnológica que se almejava para o Brasil. A contradição da lei com os rumos de algumas políticas públicas limitou-lhe o alcance e a efetividade. Outro autor que fornece informações sobre o Alvará é CERQUEIRA (1982, pp. 5-8). 222 Veremos em CHANG (2002), que este período foi fundamental para estratégias de catching up que permitiu o desenvolvimento industrial e tecnológico de muitos países europeus, e de outros, como os Estados Unidos. Mesmo a emergência das primeiras grandes convenções internacionais, no final do século XIX, não mudou este cenário.
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de 1886.223 Os dois instrumentos marcaram o início do “período internacional” da
proteção da propriedade intelectual (DRAHOS, 1999, op. cit., pp. 5-8).
4.1.1 O “Período Internacional” de Proteção da Propriedade Intelectual: o regime da Convenção Única de Paris (CUP)
A CUP foi o primeiro tratado internacional de maior amplitude destinado a
facilitar que os nacionais de um país obtivessem proteção em outros países para as
suas criações intelectuais, como marcas, patentes e os desenhos e modelos
industriais. Foi celebrada em 1883 e entrou em vigor em 1884, tendo o Brasil
como um dos seus signatários originais.224 O texto da CUP passou por uma série
de revisões desde então, tendo a última delas ocorrido em Estocolmo, em 1967,
ocasião em que também foi criada a OMPI, organização internacional que passou
a ser a responsável pela administração do tratado.225
Uma das principais razões que explicam o êxito da CUP, um tratado em
vigor há mais de 120 anos, é que ela jamais visou uniformizar as leis nacionais de
seus países signatários (GONTIJO, 2005, p. 8). Em outras palavras, a CUP jamais
buscou uma padronização das normas substantivas relativas a patentes e aos
demais institutos da propriedade intelectual nos regimes jurídicos nacionais, mas
sim estabelecer garantias mínimas aos inventores quando tornassem públicas suas
invenções (GUISE, op. cit., p. 26).
Enfim, é traço característico da CUP a previsão de uma ampla liberdade
legislativa para cada Estado-membro, exigindo apenas paridade de tratamento
entre nacionais e estrangeiros para fins de registro (Princípio do Tratamento
223 Por motivos já explicitados na Introdução, nos concentramos, a partir deste ponto, apenas na CUP. Quanto aos institutos da propriedade intelectual, nos referiremos de agora em diante mais às patentes, embora possamos vir a nos reportar eventualmente a outros, como marcas e desenhos industriais. 224 A CUP conta, atualmente, com 173 membros, de acordo com informações obtidas na página da OMPI, em 17/02/2010. Para se verificar a lista completa, recomendamos acessar o endereço: http://www.wipo.int/treaties/en/ip/paris/. 225 Em 1883, foi criada uma secretaria específica encarregada de realizar as tarefas administrativas referentes ao tratado. Em 1889, as secretarias da CUP e da Convenção de Berna foram reunidas em uma só. A partir de 1970, ambos os tratados passaram a ser administrados pela Repartição Internacional da Propriedade Intelectual, em virtude da Convenção da Organização Mundial da Propriedade Intelectual. Tal Convenção, firmada em Estocolmo, em 14 de julho de 1967 criou a OMPI e entrou em vigor em 1970. Ver GUISE (op. cit., pp. 25-26).
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Nacional).226 Outro princípio básico consagrado foi o da Prioridade, previsto no
artigo 4° da CUP que atende mais a uma questão de natureza prática do que
teórica (GONTIJO, op. cit., p. 8). De forma a evitar apropriação indevida de
informações incluídas nos pedidos de patente e, ao mesmo tempo, evitar conflitos
em casos envolvendo dois ou mais inventos sobre o mesmo objeto, decidiu-se
assegurar àquele que tenha feito o pedido de patente em um dos Estados-membros
da União um prazo de prioridade (atualmente de 12 meses) para realizar o
depósito em outros Estados-membros, período durante o qual nenhum outro
pedido invalidará o seu, nem qualquer publicação ou exploração do invento (ibid,
p. 8).
Finalmente, outro importante princípio consagrado pela CUP foi o da
independência, que prevê que patentes requeridas nos diferentes Estados-
membros para a mesma invenção sejam independentes entre si, ou seja, a
concessão ou nulidade de uma patente não obriga os demais. (GUISE, op. cit., p.
26) 227 Significa dizer que as decisões tomadas em um Estado-membro quanto a
um pedido ou a uma patente não tem qualquer influência sobre o tratamento a ser
dado a outros países membros (GONTIJO, op. cit., p. 9).
Não há qualquer disposição, no âmbito da CUP, em relação à
obrigatoriedade de proteção de determinada área de conhecimento. Podemos
assim dizer que o regime internacional de propriedade intelectual fundado na CUP
e em outros tratados foi edificado sobre a base da aceitação da diversidade de
membros da comunidade internacional (CORREA, 2003, p. 84). A CUP e outras
convenções, contemporâneas e posteriores228, permitiram uma considerável
226 O princípio do tratamento nacional está previsto no artigo 2° da CUP e estabelece o seguinte: “Os nacionais de cada um dos países da União gozarão em todos os outros países da União, no que se refere à proteção da propriedade industrial, das vantagens que as leis respectivas concedem atualmente ou venham a conceder no futuro aos nacionais, sem prejuízo dos direitos especialmente previstos na presente Convenção. Em conseqüência, terão a mesma proteção que estes e os mesmos recursos legais contra qualquer atentado a seus direitos, desde que observem as condições e formalidade impostas aos nacionais”. Para informações sobre este e os demais princípios consagrados na CUP, vale consultar o portal do INPI, especificamente o endereço: <http://www.inpi.gov.br/menu-esquerdo/patente/pasta_acordos/cup_html>. 227 Frise-se que o princípio da prioridade aplica-se somente à data de depósito, mas em nada interfere no que tange à competência que cada Estado-membro detém para conceder ou não uma patente. 228 Além da Convenção de Berna (1886), podemos mencionar o Acordo de Madri em matéria de Marcas (1891), o Acordo de Haia sobre Desenhos Industriais (1925), o Tratado de Cooperação em Matéria de Patentes (1970) e muitos outros. Para um maior detalhamento dos 24 Tratados administrados pela OMPI hoje, cuja maior parte foi celebrada entre o final do século XIX e final do século XX (antes da Rodada Uruguai do GATT), consultar a página da OMPI, no endereço: http://www.wipo.int/treaties/en/.
166
margem de manobra para que os países adaptassem o conteúdo normativo destes
instrumentos às suas próprias condições de desenvolvimento social e a seus
próprios interesses e estratégias de conteúdo econômico (ibid, p. 84).
Vigorou, enfim, a partir da emergência da CUP e de outros tratados, um
regime que se mostrou essencialmente flexível (ibid, p. 84). No contexto do setor
de fármacos, por exemplo, Japão e Suíça não concederam patentes para
medicamentos até 1976 e 1977, respectivamente (GUISE, op. cit, p. 27). O Brasil,
em época próxima (1969), relativa ao intenso processo de industrialização do
regime militar, optou por medida oposta: não mais conceder patentes de produtos
farmacêuticos. Os países da América Latina, uma grande parte dos países em
desenvolvimento e alguns países desenvolvidos utilizaram a flexibilidade inerente
ao regime para adaptá-las às suas próprias condições (CORREA, op. cit., p. 84).
O regime internacional de propriedade intelectual inaugurado pela CUP
caracterizou-se, enfim, por uma considerável maleabilidade para que os Estados-
membros definissem como legislariam sobre propriedade intelectual e como
adequariam as áreas de aplicação da proteção às suas prioridades nacionais.
Forneceu um marco para o crescimento industrial e tecnológico de alguns países
que hoje surpreendem pelo avanço de suas economias nos últimos 50 anos (ibid,
p. 84). Com efeito, o crescimento experimentado por esses países, em especial os
do Sudeste Asiático, é comumente associado, entre outras causas, à flexibilidade
do regime da CUP como fator-chave para um padrão de desenvolvimento
industrial muitas vezes denominado “imitativo”, isto é, baseado na adaptação de
tecnologias estrangeiras (ibid, p. 84).
De acordo com CORREA (ibid, p. 84), esta “imitação” foi parte essencial
do desenvolvimento tecnológico de muitos países na segunda metade do século
XIX e maior parte do século XX. Supunha observar o que realizou o competidor,
aprender do competidor e, em seguida, buscar soluções e aprimoramentos em
relação ao que o competidor desenvolveu (ibid, p. 84). Desta forma, foi um
importante motor para o avanço tecnológico.
A “imitação” a que se refere CORREA representa o intento de países
desenvolvidos e daqueles ainda em desenvolvimento de obter transferência de
tecnologia, no sentido de conhecimento científico e expertise técnica, e não
somente em termos de transferência de artefatos e acessórios (SELL, 1998, p.
167
44).229 A CUP surgiu, então, como decorrência da percepção cada vez mais
aguçada dos Estados nacionais e de suas sociedades de que tinham que se
organizar internacionalmente, de forma a encorajar a inovação e a descoberta
científica e a permitir que os frutos das descobertas científicas pudessem ser
traduzidos em tecnologias úteis e aplicáveis, passíveis de proteção por meio da
propriedade intelectual (GANDELMAN, op. cit., p. 100). A tecnologia, como
meio de maximizar resultados econômicos, passou a ser cada vez mais dependente
da descoberta científica, e, como resultado desse processo, cada vez mais
entendida como algo incorpóreo, imaterial (ibid, p. 100).
O regime da CUP, por sua flexibilidade, permitiu o catching up
tecnológico de muitos países que hoje estão em situação de industrialização
avançada, sendo a Coréia do Sul habitualmente mencionada pela literatura
econômica como um dos casos mais ilustrativos.230 O “período internacional” da
propriedade intelectual caracterizou-se, pois, por um mundo em que os Estados
soberanos realizaram acordos em torno de certos princípios fundadores. Mas em
nenhum momento isto implicou em um mundo caracterizado pela uniformização
de regras técnicas (DRAHOS, 1999, op. cit., p. 8). Os Estados detiveram
considerável discricionariedade sobre seus cenários nacionais de regulação da
propriedade intelectual.231 Tal contexto modificou-se substancialmente, no final
do século XX, propiciando o surgimento de um novo regime internacional de
propriedade intelectual, que se firmou definitivamente a partir da celebração do
Acordo TRIPS, ao final da Rodada Uruguai do GATT (1986-1994).
229 De acordo com SELL (ibid, p. 43), a tecnologia é, essencialmente, conhecimento aplicado. Consiste em mais do que artefatos. Um importante elemento da tecnologia é o “como fazer” (know-how), ou a ciência e o conhecimento por trás do artefato. A inovação tecnológica se refere “à extensão deste know how por meio da criação de novos produtos e processos ou pela descoberta de novas aplicações das tecnologias existentes” (ibid, p. 43). Quanto à transferência de tecnologia, ela pode ser de três tipos: de material, de design e de capacitação, sendo a primeira a mais simples, e a última a mais complexa. Na transferência de material, o recebedor obtém a máquina ou o equipamento, mas é essencialmente um consumidor no sentido passivo. Já na transferência de design, há transferência de itens como fórmulas, projetos e outros itens relacionados ao processo de design. Embora possa expandir a capacidade do país recebedor de reproduzir a tecnologia domesticamente, este ainda depende do conhecimento tecnológico produzido externamente. Finalmente, a transferência de capacitação envolve a transferência de conhecimento científico e de expertise técnica. Gera capacidade tanto de produzir localmente tecnologia adaptada a partir de protótipos estrangeiros, quanto de atingir desenvolvimento industrial auto-sustentado por causa da transferência de conhecimento ativo (ibid, pp. 43-44). 230 Sobre a noção de cathing up tecnológico, voltaremo-nos para ela um pouco mais à frente, ao tratarmos da crítica de CHANG (2002; 2010) ao regime internacional de propriedade intelectual do Acordo TRIPS. Mencionaremos também as ideias de LIST (1986) que inspiraram o trabalho de CHANG. 231 Sobre a CUP, ver também GANDELMAN (op. cit., pp. 99-104).
168
4.2 O Regime Internacional de Propriedade Intelectual do Acordo TRIPS
A iniciativa de levar a propriedade intelectual às negociações da Rodada
Uruguai do GATT foi impulsionada durante as décadas de 70 e 80, especialmente
pelos Estados Unidos. Grandes grupos empresariais norte-americanos tiveram
papel decisivo em convencer o governo a respeito da necessidade de estabelecer
uma vinculação entre a propriedade intelectual e o comércio, para a defesa de seus
interesses no exterior (CORREA, op. cit., p. 85). No entanto, creditar
exclusivamente o sucesso desta estratégia a este fator implica em perder parte
significativa da história. Diversos autores dedicaram-se a analisar as origens do
Acordo TRIPS e a examinar as características do novo regime internacional de
propriedade intelectual. Alguns deles privilegiam exclusivamente fatores
materiais para compreender a formação do regime, ao passo que outros enfatizam
também a dimensão normativa ou ideacional. Para estas análises nos voltamos
agora.
4.2.1 Poder e Ideias na Negociação de TRIPS: estratégias de coerção e de convencimento
Para entender como o Acordo TRIPS veio a integrar os acordos
constitutivos da OMC, depois da finalização da Reunião Marrakesh, em 15 de
abril de 1994232, DRAHOS (1995) propõe-se a examinar como se deu o processo
de articulação doméstica nos Estados Unidos entre determinadas empresas do
ramo de alta tecnologia e informação (especialmente a farmacêutica, a de
softwares e a de fonogramas) e o governo, com vistas a aumentar os patamares
internacionais de proteção dos direitos de propriedade intelectual.
O autor defende que uma das razões para resgatar e analisar a história do
TRIPS é a de que ela está diretamente vinculada a um “feito notável” (remarkable
achievement): um país, os Estados Unidos, ter sido capaz de engendrar uma
estratégia capaz de convencer mais de 100 países de que eles deveriam pagar mais
232 Trata-se da reunião que encerrou a Rodada Uruguai do GATT.
169
pela importação de informação tecnológica (ibid, p. 7). Uma de suas principais
conclusões é a de que, na realidade, este “convencimento” não prescindiu (ao
contrário, utilizou-se fartamente) de estratégias de coerção. Os Estados Unidos
“utilizaram um processo sofisticado de ameaças de retaliações comerciais para
coagir alguns Estados em anuir com os seus objetivos de propriedade intelectual”
(ibd, p. 16). A motivação para a utilização desta estratégia de coerção está
relacionada ao sucesso do argumento por parte de algumas corporações
multinacionais de que, somente com a coerção comercial, o furto da tecnologia
americana cessaria (ibid, p. 16).
Por que o Acordo TRIPS era tão importante para as aspirações dos Estados
Unidos no âmbito do GATT? E por que a Rodada Uruguai foi escolhida pelos
Estados Unidos para trazer a propriedade intelectual para o palco do comércio
mundial?233 DRAHOS sugere que, em primeiro lugar, foi fundamental o fato de
diversas empresas como a IBM, a PFIZER e a MICROSOFT, com amplos
portfólios em propriedade intelectual mostrarem-se preocupadas com a perda de
lucros devido à pirataria de seus produtos.234 Outro fator foi o medo disseminado
em torno da perda da competitividade norte-americana no início dos anos 80. A
terceira razão se refere à crença de que os Estados Unidos estariam perdendo
poder no mundo. A perda da competitividade de algumas empresas norte- 233 A perspectiva de DRAHOS enfatiza o papel de indivíduos e de organizações nos Estados Unidos e as oportunidades e chances aproveitadas pelos mesmos de forma a trazer à tona o TRIPS. Trata-se de uma abordagem que privilegia o papel do agente individual e das corporações trabalhando por meio das estruturas, ao invés de serem deterministicamente moldados por ela (ibid, p. 7). DRAHOS defende que não se pode ver o TRIPS exclusivamente em termos dos mais poderosos coagindo os mais fracos. Foram cruciais para o sucesso da estratégia norte-americana os esforços de indivíduos que exploraram as possibilidades das estruturas existentes, para criar novas estruturas. O vínculo entre propriedade intelectual e comércio não teria sido possível sem o input autoral criativo de advogados e economistas. Foram eles que alertaram as companhias norte-americanas sobre as possibilidades trazidas por este vínculo e forneceram a expertise técnica necessária (ibid, p. 16). Pode-se afirmar que DRAHOS reconhece também a dimensão ideacional do convencimento ou persuasão como relevante, ao lado das estratégias de coerção. 234 De acordo com MASKUS (2000, pp. 2-3), o processo em curso da globalização econômica é resultado de mudanças técnicas, redução nos custos de transportes e comunicação e integração de mercados através de reduções de obstáculos aos investimentos e ao comércio. Um componente fundamental deste processo é o de que, enquanto o foco da competição aponta crescentemente em direção da invenção e da inovação, os custos de muitas atividades criativas cresceram da mesma forma que aumentou a facilidade de copiá-las. São exemplos os produtos farmacêuticos, as invenções biotecnológicas e os softwares, que são caros para produzir e sujeitos a uma incerteza considerável quanto aos custos e a demanda, mas facilmente reproduzíveis. Para o autor, as apreensões das empresas transformaram-se em irritação com a pirataria, que se proliferou rapidamente em função da redução dos custos dos meios empregados para copiar (ibid, p. 15). No mesmo sentido, ver SELL (2003a, p. 14) e SELL & PRAKASH (2004, p. 154). Estes últimos mencionam estudos das empresas norte-americanas que estimaram que, no ano de 1986, as perdas para a indústria dos Estados, em virtude da fraca proteção externa à propriedade intelectual, foram da ordem de 43 a 61 bilhões de dólares (ibid, p. 155).
170
americanas, somada a outras perdas, como a Guerra do Vietnã, seria um sinal
visível da perda do poder norte-americano para outros competidores. Nos anos 80,
o sucesso dos produtos japoneses era compreendido como sinal de
desindustrialização dos Estados Unidos (DRAHOS, 1995, op. cit., pp. 7-8).
DRAHOS afirma que “mitos públicos” começaram a se construir em torno deste
sucesso: as ideias e o know how norte-americanos estariam sendo “roubados”
pelos japoneses, o que motivou sentimentos protecionistas dentro dos Estados
Unidos (ibid, p. 8).235
A partir dessas motivações, como se desenvolveu a estratégia das
empresas norte-americanas? O ator central neste cenário foi o Comitê de
Propriedade Intelectual (CPI), um grupo restrito de executivos das indústrias do
setor farmacêutico, de softwares e de entretenimento, que, de forma bem
sucedida, conquistou apoio internacional para o aumento da proteção global da
propriedade intelectual (SELL, op. cit., p. 2).236 O CPI, acompanhado por grupos
congêneres da Europa e do Japão, apresentou uma proposta ao Secretariado do
GATT em 1988, baseada nas leis de propriedade intelectual dos países mais
industrializados. Seis anos depois, em 1994, os objetivos de elevação dos
patamares globais de proteção da propriedade intelectual foram atingidos, com a
aprovação do TRIPS.
A estratégia diplomática dos Estados Unidos que levou à aprovação do
TRIPS remete a um complexo processo de articulação doméstica entre as
empresas e o governo, nos anos anteriores à Rodada Uruguai do GATT. No início
dos anos 80, os problemas com os quais os Estados Unidos se confrontavam, em
matéria de propriedade intelectual, eram globais. Outros Estados soberanos,
principalmente dos países em desenvolvimento, não eram simpáticos às
necessidades e demandas das empresas norte-americanas em matéria de
propriedade intelectual (DRAHOS, 1995, op. cit, p. 8). Importante para a
evolução da estratégia comercial dos Estados Unidos foi o trabalho do Advisory
Commitee for Trade Negotiations (ACTN), criado com o objetivo de fornecer
235 Sobre este aspecto, ver ainda CORREA (2000, p. 4). 236 Os executivos pertenciam às seguintes empresas: Bristol-Myers, Du Pont, FMC Corporation, General Eletric, General Motors, Hewlett-Packard, IBM, Johnson & Johnson, Merck, Monsanto, Pfizer, Rockwell International e Warner Communications.
171
inputs do setor empresarial à política comercial do governo.237 O ACTN tornou-se
um linha de comunicação aberta e direta entre o setor empresarial e a burocracia
responsável pela política comercial (ibid, p. 8) As recomendações do ACTN
foram no sentido de estabelecer como objetivo de longo prazo da política
comercial dos Estados Unidos a inclusão da propriedade intelectual no GATT.
Diferentes esforços marcaram a estratégia norte-americana de aumentar a
proteção à propriedade intelectual no âmbito global. O tratamento favorável
conferido pelos Estados Unidos a alguns países pelo Sistema Geral de
Preferências (SGP) passou a ser condicionado, por sugestão do ACTN, aos
referidos países elevarem seus níveis de proteção da propriedade intelectual. O
ACTN propôs ainda que, em organismos financeiros como o FMI e o Banco
Mundial, diretores norte-americanos utilizassem seu poder de voto para privilegiar
a concessão de empréstimos e a autorização de programas de reestruturação a
países dispostos a aumentar o grau de proteção de propriedade intelectual (ibid, p.
9). A atuação do ACTN foi essencial para se firmar a convicção de que o setor
privado deveria se envolver de forma íntima e contínua na política do governo dos
Estados Unidos na questão da propriedade intelectual.
Um dos obstáculos para os Estados Unidos atingirem seus objetivos era a
percepção de não ser possível reformar o regime internacional de propriedade
intelectual por intermédio da OMPI, uma vez que, nesta organização, os Estados
Unidos só possuíam um voto e era bastante provável ser sobrepujado pelos países
em desenvolvimento. Assim, a conclusão foi a de que o emprego de alguma forma
de coerção era necessário para estabelecer um novo patamar de proteção global
para os interesses norte-americanos em matéria de propriedade intelectual (ibid, p.
9). É dentro desse contexto que deve ser compreendida a emenda à Seção 301 do
Trade Act de 1974.
Pela Seção 301, o Governo dos Estados Unidos institucionalizou, após a
emenda, um mecanismo que lhe permitiu aplicar sanções comerciais a países que
não estivessem observando os direitos de propriedade intelectual de empresas
norte-americanas. Se estes países não seguissem as recomendações dos Estados
237 Desde 1981, o ACTN foi presidido por Ed Pratt, diretor da Pfizer, corporação farmacêutica com compromissos de negócios em países em desenvolvimento. Mais do que muitas corporações, a Pfizer preocupou-se com a cópia de seus produtos. O próprio Pratt tornou-se um dos principais porta-vozes e líderes mais ativos em todo o mundo de uma abordagem comercial para a proteção da propriedade intelectual (ibid, p. 8).
172
Unidos, estariam sujeitos a diferentes punições, de acordo com o grau de
inobservância atestado.238 A aplicação da Seção 301 foi possível devido à
sofisticada vigilância imposta pela comunidade empresarial norte-americana, uma
vez que o Departamento de Comércio do Governo dos Estados Unidos claramente
não detinha recursos para fazê-lo.239
A Seção 301 do Trade Act foi fundamental para que os Estados Unidos
obtivessem êxito no intento de incluir a propriedade intelectual como tema
integrante da agenda de negociações do GATT na Rodada Uruguai. Em relação
aos países em desenvolvimento, como o Brasil e o México e alguns dos países
desenvolvidos, como Espanha e Austrália, a tática de coerção comercial estimulou
um amplo processo de revisão das leis nacionais que estivessem mais próximas ou
harmonizadas com as práticas recomendadas.240 Ao longo desse processo, “os
Estados Unidos se tornaram, como resultado de sua missão da propriedade
intelectual, um complexo burocrático legal e industrial altamente organizado e
coordenado” (DRAHOS, op. cit., p. 13).241 A partir da criação do CPI, em março
238 Eram três as categorias previstas na Seção 301: a de países estrangeiros prioritários, a lista de vigilância prioritária e a lista de vigilância. O país colocado na lista de vigilância era advertido de abrigar práticas insatisfatórias em propriedade intelectual e de que o governo norte-americano estava prestando atenção especial a tais práticas. Os países que não estivessem se dedicando a combater minimamente a pirataria eram incluídos na lista de vigilância prioritária. Já os países estrangeiros prioritários eram os que estavam mais sujeitos a retaliações comerciais por parte dos Estados Unidos, por serem compreendidos como os que possuíam as legislações, políticas e práticas mais onerosas no campo da propriedade intelectual. Em 1993, o Brasil, ao lado de Tailândia e Índia, foi colocado na lista de países estrangeiros prioritários. Uma das razões principais invocadas pelo governo dos Estados Unidos para a inclusão do Brasil na lista era o escopo limitado da legislação de patentes (ibid, p. 10). 239 Cada uma das empresas norte-americanas com portfólios importantes em propriedade intelectual era membro de alguma associação comercial que era integrante de organizações mais amplas, como a Aliança Internacional de Propriedade Intelectual (AIPI). A AIPI representava mais de 1.500 corporações que muniam a AIPI de informações e era encarregada de elaborar recomendações ao governo dos Estados Unidos sobre as medidas apropriadas a serem tomadas, de acordo com a Seção 301 (ibid, p. 10). 240 No caso do México, pode-se dizer que, por conta da assinatura do Tratado de Livre-Comércio da América do Norte (NAFTA) com os Estados Unidos e o Canadá, o país necessitou adequar-se antecipadamente aos patamares de proteção desejados pelas empresas norte-americanas. Vale consultar o artigo de CASTAÑEDA (1995), então Diretor Geral do Instituto Mexicano de Propriedade Industrial sobre as reformas na lei mexicana, em 1994. Quanto à Espanha, a demanda era para o país adequar sua legislação de patentes, especialmente químicas e farmacêuticas, à legislação dos países mais desenvolvidos, principalmente depois da adesão à então Comunidade Econômica Europeia, em 1992. Sobre as mudanças realizadas pela Espanha em sua legislação de patentes, ver CERVIÑO (1994). 241 Atores privados perseguiram de forma vigorosa seus objetivos de propriedade intelectual em todos os níveis e vias possíveis, redefinindo a propriedade intelectual como um tema comercial (SELL, 2003ª, op. cit., p. 8). DRAHOS (1995, op. cit., p. 11) chega a mencionar insinuações de que o Representante Comercial dos Estados Unidos (USTR – United States Trade Representative) tornou-se um refém dos lobbies empresariais. Sem deixar claro se concorda com tais insinuações, afirma que, sem dúvida, uma relação muito estreita entre governos e empresas se consolidou.
173
de 1986, até setembro do mesmo ano, quando foi dado início à Rodada Uruguai,
em Punta Del Este, este complexo logrou o apoio da então Comunidade Europeia
e do Japão para trazer, para o âmbito do GATT, o tema da propriedade
intelectual.242
Além de uma clara estratégia coerciva por meio da Seção 301, concorreu
também para o resultado almejado uma “campanha de conscientização” em massa
promovida mundialmente pelas empresas (ibid, p. 11). Associações empresariais
como a Business Software Alliance (BSA) empreenderam e deram publicidade a
denúncias contra firmas copiadoras. Mensagens acerca dos perigos da pirataria
começaram a aparecer em vídeos divulgados internacionalmente e seminários
sobre regras de enforcement em propriedade intelectual realizados nos mais
diversos países. Os ativistas da vinculação da propriedade intelectual ao comércio
encarregaram-se de disseminar a ideia de que os supostos violadores dos direitos
de propriedade intelectual eram “piratas”.243 O termo “pirata” não foi escolhido a
242 O CPI foi criado a partir da percepção, dos dirigentes executivos do Comitê do ACTN de que a sugestão de inclusão do tema da propriedade intelectual na Rodada de Negociações do GATT só se concretizaria se houvesse uma adesão da comunidade empresarial e dos governos nacionais da Comunidade Europeia e do Japão. A estratégia para conquistar este apoio foi sintetizada num documento não publicado, de 1° de setembro de 1985, de autoria do economista Jacques Gorlin, escrito para a IBM como resposta a um pedido do USTR de revisão das questões mais importantes envolvidas na pretensão de inclusão da propriedade intelectual na Rodada Uruguai do GATT (ibid, pp. 12-13). 243 Vale mencionar o famoso episódio que envolveu a empresa TOWER PUBLICATIONS, na Coréia do Sul que, durante décadas, cultivou a prática de copiar e comercializar livros de autores norte-americanos e de outros países, sem pagar direitos autorais, jamais sendo incomodada pelo seu próprio governo. DRAHOS & BRAITHWAITE (2003, pp. 19-20) relatam, com detalhes, como a pressão de lobistas das associações empresariais norte-americanas (como Eric Smith, da Aliança Internacional da Propriedade Intelectual) sobre o governo sul-coreano, contribuiu para a prisão do Diretor máximo da empresa, um respeitável executivo no país, durante oito meses, entre 1993 e 1994. O mercado editorial de livros floresceu bastante na Coréia do Sul, porque o governo do país fez da educação e do treinamento de sua população uma prioridade. As prensas da TOWER reproduziram dezenas de milhares de livros de autores norte-americanos sem jamais pagar quaisquer taxas ou royalties. Os autores demonstram que esta é uma prática bastante disseminada pela Ásia, inclusive em relação aos softwares que, por estarem além dos preços que a maioria dos estudantes podia pagar, também foram objeto de cópias. Assim, empresas como a TOWER puderam se valer de tecnologias que facilitaram a cópia, continuando sem pagar quaisquer taxas aos editores originais. Apesar da Coréia do Sul ter aprovado uma Lei de Direitos Autorais em 1987, na prática ela pouco funcionava, em função da falta de uma “cultura de propriedade intelectual” no país. Escasseavam inclusive advogados na área. Diante desse quadro, os negociadores comerciais dos Estados Unidos pressionaram o governo da Coréia do Sul a elevar os patamares de proteção de propriedade intelectual no país e a se empenhar em disseminar culturalmente a propriedade intelectual, sob pena dos produtos sul-coreanos não terem mais acesso ao mercado norte-americano. DRAHOS & BRAITHWAITE se referem ao impacto que a prisão do executivo da TOWER teve sobre os círculos sociais e de negócios da Coréia do Sul (ibid, p. 20). Uma curiosidade que os autores trazem no texto é a de que, ao chegar à sede da Oficina Nacional de Patentes da Coréia do Sul, um visitante se depara com uma placa, com o seguinte dizer: “Oficina Coreana de Patentes e Anti-Pirataria”. De acordo com os autores, trata-se de uma
174
esmo. Sua conotação remete à ilegalidade generalizada (SELL & PRAKASH, op.
cit., p. 158). Desta forma, pode-se afirmar que a metáfora da pirataria
efetivamente converteu o que era para ser um debate político em um drama de
natureza moral:
Roubar é simplesmente errado. Esta linguagem evocativa destacou o mal agir, quando, na realidade, muitas atividades condenadas como “pirataria” eram perfeitamente legais em leis nacionais e internacionais. [...] A rede empresarial retratou a si mesma como vítima de roubo, e assinalou que este mal agir teve muitos efeitos negativos – sobre a competitividade dos Estados Unidos, seu equilíbrio comercial e os empregos norte-americanos (ibid, p. 158).244
Em síntese, não foi apenas o poder econômico relativo de atores privados
que contribuiu para a redefinição da propriedade intelectual como uma questão
comercial. Contou também seu comando da expertise em propriedade intelectual,
informações, conhecimento e ideias (SELL, 2003a, op. cit., p. 8). De forma a
mobilizar o governo dos Estados Unidos para a ação, bem como conquistar o
apoio de outros países desenvolvidos, e de seus grupos empresariais, foram
necessárias, por parte dos atores privados norte-americanos, estratégias não só
materiais, mas também normativas ou ideacionais. SELL & PRAKASH (op, cit,
p. 145) argumentam que foram utilizadas “molduras normativas” para incluir a
propriedade intelectual no GATT e propor uma agenda que saiu vitoriosa.245 A
“indicação pública e educada de concordância com as ideias ocidentais sobre a propriedade intelectual” (ibid, p. 20). 244 Tradução livre do original: Theft is simply wrong. This evocative language highlighted wrongdoing, when in fact many of the activities condemned as “piracy” were perfectly legal in national and international laws. […] The business network painted itself as victim of theft, and indicated that this wrongdoing had much broader negative effects – on U.S competitiveness, its trade balance, and American jobs. Em contraste com este entendimento, vale mencionar famoso julgamento da Câmara dos Lordes, nos anos 80, que se negou a condenar uma empresa de Uganda por "pirataria" de um segredo de indústria, tendo em vista que a Inglaterra sempre se orgulhava de seus próprios piratas - do século XVI."- Nós tivemos aqui Sir Francis Drake", dizia o acórdão de Lorde Dennings. Segundo BARBOSA (1988), autor do texto em que encontramos este julgado, é esta a inteligência e senso de justiça presentes na Câmara dos Lordes - ao comparar o desenvolvimento de Uganda com o da Inglaterra do séc. XVI – que era preciso considerar nas negociações nas negociações do GATT. Não foi, obviamente, o que aconteceu. 245 Para os autores, embora a informação desempenhe um papel importante no processo político, ela não é conhecimento. Os atores se utilizam de filtros para identificar a informação útil e interessante. Assim, as pessoas transformam a informação em conhecimento por meio da utilização de molduras normativas (normative frames). Molduras ou frames são “metáforas específicas, representações simbólicas e chaves cognitivas utilizadas para transmitir e distribuir comportamentos e eventos de uma forma valorativa e para sugerir modos alternativos de ações” (ibid, p. 145, apud ZALD, 1996, p. 262). A abordagem de SELL & PRAKASH é interessante por demonstrar que os atores privados de indústrias como a do setor farmacêutico, empenhados em elevar os patamares internacionais de proteção à propriedade intelectual, agiram e agem não somente com base em razões instrumentais (interesses), mas também por considerações
175
moldura normativa vencedora foi a que de “patentes = livre-comércio +
investimentos = crescimento econômico”. Foi ela que se tornou o building block
normativo do TRIPS (SELL & PRAKASH, op. cit., p. 145).
Enfim, a inclusão da propriedade intelectual na Rodada Uruguai do GATT
(e o posterior advento do TRIPS), resultou não somente de uma bem sucedida
estratégia de coerção comercial. No contexto das negociações que antecederam a
Rodada Uruguai e também nas que se desenvolveram no transcurso da mesma, o
poder material exercido por meio da coerção comercial certamente teve
relevância, mas o poder institucional e normativo não pode ser considerado
irrelevante. O poder material teve eficácia porque operou com o suporte de
instituições (como as associações empresariais norte-americanas) e de ideias, no
caso, de uma ideia fundamental: a de que a elevação dos patamares globais de
proteção à propriedade intelectual seria capaz de, automaticamente, promover o
desenvolvimento econômico, indistintamente, em escala global.246 É esta a ideia
central que informa o regime internacional de propriedade intelectual do Acordo
TRIPS.
normativas (ideacionais). Caracterizar, por exemplo, as indústrias farmacêuticas apenas como atores instrumentais que perseguem interesses econômicos equivale a subestimar as fundações normativas de suas ações. SELL & PRAKASH afirmam que “normativamente, as indústrias farmacêuticas acreditam e promovem o paradigma de que lucros = pesquisa = curas” (ibid, p. 148). Os autores mencionam os gastos e investimentos das companhias farmacêuticas em pesquisa, que teriam triplicado entre 1990 e 2001 (chegando a 35 bilhões de dólares) e o emprego de uma força de trabalho de 150.00 cientistas em todo o mundo, para concluir que o compromisso com a pesquisa e a devoção a recursos substanciais para encontrar novas curas representam o compartilhamento de “crenças sobre princípios” (ibid, p. 148) – os principled beliefs a que se referem GOLDSTEIN & KEOHANE (1993). 246 Reportamo-nos a toda a discussão conceitual do capítulo 2 referente às dificuldades de estabelecer limites, do ponto de vista epistemológico, entre “ideias” e “interesses” ou entre “ideias” e “poder”, tal como colocado pelos institucionalistas históricos e também pelos construtivistas críticos. SELL (2003a, op. cit, p. 8) entende que não são todas as ideias que são igualmente privilegiadas na vida política. A forma como alguém define seus “interesses” é fundamental para a compreensão de quais os conjuntos de ideias que afetam a política. Ademais, é importante identificar quem os define. A autora afirma que os “ativistas de propriedade intelectual” (economistas, advogados e diretores das grandes corporações detentoras de alta tecnologia) “capturaram a imaginação dos tomadores de decisão e persuadiu-os a adotar seus interesses privados como se fossem os interesses dos Estados Unidos” (ibid, p. 8). Constatamos o reconhecimento pela autora de que a persuasão das ideias atua como força motriz para mudanças no curso dos eventos políticos.
176
4.2.2 Poder e Ideias no Regime Internacional do Acordo TRIPS: um chute (definitivo) na escada do desenvolvimento?
O Acordo TRIPS marca o início da era global da propriedade intelectual.
Por que seria uma era global? E o que TRIPS significou, e ainda significa, para os
países em desenvolvimento como o Brasil, em termos da possibilidade de buscar
o seu desenvolvimento econômico, de forma relativamente autônoma?
Como vimos, durante o “período internacional” da propriedade intelectual,
que vigorou do final do século XIX até a finalização da Rodada Uruguai, os
Estados detinham considerável autonomia para estabelecer leis que refletissem
seus níveis de desenvolvimento econômico e suas vantagens comparativas, seja
em termos de imitação ou inovação (ibid, p. 12). Pode-se dizer que o “sistema
antigo” de Convenções como a CUP e a de Berna reconhecia e observava as
variações inerentes aos níveis de desenvolvimento dos diferentes países. FIANI
(2007, p. 95) observa que mesmo autores mais associados à visão mainstream
(rentista) da propriedade intelectual, como Keith Maskus, reconhecem que os
diferentes sistemas nacionais de propriedade intelectual podem e devem variar em
seu desenho de acordo com as necessidades de cada país.247 No caso do Japão, por
exemplo, foi desenhado no início do século XX um sistema para atender as
necessidades de desenvolvimento da economia japonesa naquele momento (a
aquisição de tecnologia), o que significou limitar a amplitude das patentes
(FIANI, op. cit., p. 95). Até a década de 70, o Japão não concedeu patentes sobre
produtos farmacêuticos.
As variações e flexibilidades dos sistemas nacionais de propriedade
intelectual de outrora foram praticamente purgadas pelo Acordo TRIPS que
consagrou a universalidade em detrimento da diversidade, na proteção à
propriedade intelectual. Ao caracterizar comportamentos antes tidos como legais
como ilegais, o TRIPS exigiu dos Estados signatários que adotassem penalidades
civis e criminais àqueles que infringissem direitos de propriedade intelectual
(SELL, 2003a, op. cit., p. 12). Outra mudança importante operou-se no escopo de
247 CORREA (2000, op. cit, p. 5) aponta na mesma direção, ao afirmar que o Acordo TRIPS restringe as opções disponíveis no âmbito nacional e que ignora as profundas diferenças, em termos da capacidade econômica e tecnológica, entre o Norte e o Sul.
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proteção das patentes. A CUP não fazia menção sobre quais setores deveriam ser
protegidos ou não, nem mesmo insinuava qual o tempo de duração que deveria ter
a proteção. Com o TRIPS, exigiu-se que os Estados estendessem a
patenteabilidade a todos os campos de tecnologia reconhecidos e que se
assegurasse um prazo mínimo de proteção de 20 (vinte) anos. Entre outras
modificações, todos os Estados foram obrigados a aderir à Convenção de Berna
sobre direitos autorais, a estender a proteção de direitos autorais a programas de
computador e a recompensar os detentores de programas de computador
protegidos (ibid, p. 12). Finalmente, pela primeira vez, o regime internacional de
propriedade intelectual incorporou mecanismos de enforcement. Qualquer
controvérsia em torno da observância dos padrões mínimos de proteção
estipulados estão sujeitos ao sistema multilateral de solução de controvérsias da
OMC. Uma vez constatada a violação a algum direito de propriedade intelectual,
o Estado afetado pode aplicar retaliações cruzadas ao Estado transgressor, em
qualquer uma das áreas contempladas pelos acordos constitutivos da OMC (por
exemplo, aplicando cotas às exportações dos produtos do Estado transgressor para
o seu mercado).248 Em resumo, a era global é caracterizada por uma drástica
redução no escopo da autonomia estatal na determinação dos níveis endógenos
adequados de proteção à propriedade intelectual (SELL, 2003a, op. cit., p. 12).
O diagnóstico de CORREA (2000, op. cit, p. 5) sobre o Acordo TRIPS
permite-nos destacar dois pontos relevantes. Um deles é o da divisão internacional
do trabalho consagrada no Acordo. O outro remete à segurança garantida ao
comércio e aos investimentos das empresas com grandes portfólios em
propriedade intelectual, em meio a um cenário de crescente competitividade
global:
O Acordo TRIPS não foi concebido meramente como um instrumento para combater a contrafação e a pirataria, um objetivo que muitos países em desenvolvimento teriam compartilhado. O Acordo foi também considerado como um componente de uma política de “protecionismo tecnológico” empenhada em consolidar uma divisão internacional do trabalho sob a qual os países do Norte geram inovações e os do Sul constituem mercados para os produtos e serviços resultantes. Ele também foi uma expressão de uma ação agressiva das indústrias
248 De acordo com CORREA (2000, op. cit, p. 2), a esperança dos países em desenvolvimento era a de que, com o estabelecimento do sistema de solução de controvérsias, arrefecessem as medidas unilaterais de retaliação comercial tomadas pelos países desenvolvidos.
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dos Estados Unidos para estabelecer regras internacionais em oposição à sua posição de declínio competitivo nos mercados mundiais.249
No que tange à perda da competitividade das indústrias norte-americanas,
de fato, entre 1980 e 1985, os Estados Unidos enfrentaram um aumento
substancial de seu déficit comercial que, no período, cresceu 309%, passando de
US$ 36,6 bilhões para US$ 148,5 bilhões (SELL & PRAKASH, op. cit., p. 154).
A preocupação dos tomadores de decisão do governo norte-americano com
competitividade forneceu a oportunidade necessária para que os industriais norte-
americanos adotassem as estratégias materiais e ideacionais que vimos, de forma a
chamar atenção para os vínculos que enxergavam entre os fracos patamares de
proteção da propriedade intelectual a nível global e as perdas de lucros de suas
companhias no exterior. O problema comercial dos Estados Unidos era
exacerbado pela valorização do dólar que tornava as exportações norte-americanas
cada vez menos competitivas. O objetivo político da rede de empresários norte-
americanos pela formação de um regime mais robusto de proteção à propriedade
intelectual enraizou-se em um discurso normativo a favor de uma agenda
econômica neoliberal de proteção de direitos de propriedade e de promoção de
reformas voltadas para o mercado (ibid, p. 154). Difundiu-se a crença de que a
proteção à propriedade intelectual promove o comércio e os investimentos e,
assim, promove também o crescimento econômico (ibid, p. 154). Ao se
agasalharem sob o manto dos direitos de propriedade, os empresários sugeriram
que os direitos que invocavam eram naturais, inatacáveis e automaticamente
merecidos (ibid, p. 157).250 Em parte, estes atores se encontravam aptos e
estimulados a defender tal discurso porque agiam em um contexto de reverência
aos direitos de propriedade, especialmente durante os anos 80, durante os
Governos Reagan e Bush (ibid, p. 157).
249 Tradução livre do original: The TRIPS Agreement was not merely conceived as an instrument to combat counterfeiting and piracy, an objective that most developing countries would shared. The Agreement was also regarded as a component of a policy of “technological protectionism” aimed at consolidating an international division of labour whereunder Northern countries generate innovations and Southern countries constitute the market for the resulting products and services. It was also an expression of an aggressive action by the US industries to estabilish international rules that counter their decling competitive position in world markets. 250 SELL & PRAKASH demonstram que, durante todo o século XIX e a maior parte do século XX, a propriedade intelectual era vista pelas cortes dos Estados Unidos como oposta ao livre comércio, tratada como monopólio e, portanto, sujeita à lei antitruste. Somente a partir de 1982, com o início da mobilização empresarial da ACTN e de outras entidades organizadas, como, mais tarde, a CPI, que essa associação foi sendo modificada (ibid, p. 157).
179
Com efeito, não é possível compreender o Acordo TRIPS fora do contexto
internacional dos anos 70 e 80, de hegemonia das ideias neoliberais, fato que
remete ao segundo aspecto da crítica de CORREA, compartilhado por outros
autores como CHANG (2002): o de que o TRIPS auxiliou a consagrar uma
divisão internacional do trabalho entre o Norte e o Sul, com o objetivo de manter
(e até aumentar) o fosso tecnológico, econômico e social que separa os países
desenvolvidos dos em desenvolvimento. O automatismo implícito nas ideias
neoliberais encontra-se alojado no argumento de que com a adoção de políticas e
instituições “boas” os países em desenvolvimento serão capazes de alcançar os
mesmos patamares de desenvolvimento das nações hoje mais desenvolvidas.
Por políticas “boas” entendam-se as prescritas pelo Consenso de
Washington, a saber, políticas macroeconômicas restritivas, a liberalização do
comércio internacional e dos investimentos, a privatização e a desregulamentação
(ibid, p. 11). Já entre as instituições “boas” estariam, entre outras, a democracia,
uma governança empresarial transparente e orientada para o mercado, um
judiciário independente, instituições financeiras (inclusive um Banco Central)
politicamente independentes e, finalmente, uma forte proteção aos direitos de
propriedade privada, inclusive a intelectual (ibid, p. 12). O mérito do argumento
de CHANG, de cunho histórico, é demonstrar que, na realidade, tal conjunto de
políticas e instituições “boas” não foram seguidas à risca no passado pelos países
hoje mais desenvolvidos, para alcançar seus patamares atuais de desenvolvimento.
Muitos desses países recorreram ativamente a políticas comerciais e industriais
hoje consideradas “ruins” e condenadas pela OMC, como a proteção da indústria
nascente e os subsídios à exportação (ibid, p. 13). Além disto, antes de se
tornarem desenvolvidos (ou seja, antes do fim do século XIX e início do século
XX), possuíam pouquíssimas dessas instituições hoje aventadas como essenciais
aos países em desenvolvimento (ibid, p. 14).
Para CHANG, o que as nações mais desenvolvidas estariam fazendo é se
valer do pretexto de recomendar políticas e instituições “boas” unicamente para
dificultar o acesso dos países em desenvolvimento às verdadeiras políticas e
instituições que elas implementaram no passado para alcançar o desenvolvimento
econômico (ibid, p. 14). Em outras palavras, as nações mais desenvolvidas
estariam “chutando a escada do desenvolvimento” pela qual subiram para impedir
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que outros o façam (ibid, p. 16).251 CHANG demonstra que a maioria dos países
mais desenvolvidos se utilizaram fartamente de políticas industriais e tecnológicas
intervencionistas no passado para promover a indústria nascente, durante o
período de catch-up (2002, op. cit., p. 35). O Estado financiava a aquisição de
tecnologia, às vezes por meios legais, como o financiamento de viagens de estudo
e treinamento, outras por meios ilegais, como o apoio à espionagem industrial, o
contrabando de maquinário e o não-reconhecimento de patentes estrangeiras (ibid,
p. 37).
Ao analisar as políticas industriais, comerciais e tecnológicas (PICT)
adotadas por determinados países – Inglaterra, Estados Unidos, Alemanha,
França, Suécia, Japão, Bélgica, Holanda, Suíça, Japão, Coréia do Sul e Taiwan -,
CHANG demonstra que a maioria deles aplicou medidas praticamente opostas ao
que a ortodoxia econômica atual recomenda aos atuais países em desenvolvimento
(ibid, p. 38). Não nos cabe aqui adentrar na forma como CHANG examina, em
detalhe, as PICT de cada país em sua trajetória de desenvolvimento. Mas vale
frisar as regras flexíveis e as práticas hoje repudiadas legalmente que constituíram
251 O conceito original de “chutar a escada” está presente no pensamento do economista político alemão Georg Friedrich List (1789-1846), cuja principal obra,“Sistema Nacional de Economia Política”, data de 1841. Para LIST, o livre-comércio só era benéfico entre países com nível semelhante de desenvolvimento industrial, motivo pelo qual defendia ardorosamente a união alfandegária dos Estados alemães (a Zollverein), a fim de alcançar a Inglaterra. Ao estudar o desenvolvimento da Inglaterra no Sistema, LIST demonstra que o país usou amplamente o intervencionismo estatal e o protecionismo em seu processo de desenvolvimento manufatureiro e nacional (PADULA, 2007, p. 164). LIST afirma que, ao pregar o livre comércio, a Inglaterra estaria na realidade chutando a escada por onde subiu. Profeticamente, previu que os Estados Unidos, então adeptos de estratégias protecionistas e de regras endógenas maleáveis de proteção à propriedade intelectual, para o catching up tecnológico de sua indústria nascente, se tornariam um dia uma nação desenvolvida e, provavelmente, incorreriam na mesma estratégia de “chutar a escada”, pregando o livre comércio (ibid, p. 165). Um dos pontos centrais da obra de LIST é a questão da nação e da nacionalidade como objetos fundamentais para a análise do desenvolvimento, do poder e da riqueza (ibid, p. 164). LIST reputava como fundamental o papel do Estado como indutor e planejador de desenvolvimento e seu poder interno e externo para levar isto adiante, em face de diferentes interesses. Pode-se dizer que LIST se destaca pelo rompimento com a forma dominante de pensar economia em sua época, baseada na interpretação liberal (de não-intervencionismo estatal e livre comércio) da teoria de Adam Smith (ibid, p. 162). LIST não crê que o desenvolvimento de uma nação possa se dar espontaneamente (BUARQUE, 1986, p. XXIII). Toda a sua obra foi voltada para o objetivo de determinar formas de induzir o processo de desenvolvimento que ele identificava com a criação de um parque industrial estável e de uma infra-estrutura econômica básica. No Sistema, os capítulos são dedicados a mostrar que o desenvolvimento de cada nação requer uma intervenção do setor público no sentido de proteger as indústrias nascentes contra a concorrência do exterior a partir de nações industrialmente mais avançadas (ibid, p. XXIII). Em prefácio escrito para uma edição brasileira do Sistema, de 1986, BUARQUE atenta para o fato de que o pensamento de LIST está impregnado de todas as formulações desenvolvimentistas, apesar de seu nome ter permanecido praticamente incógnito na teoria econômica durante mais de 100 anos. Para mais detalhes do pensamento de LIST, sugerimos ainda a leitura de COSTA (2009, pp. 182-192).
181
ações comumente adotadas na maioria daqueles países na proteção de suas
indústrias nascentes252 e/ou no fomento à aquisição de tecnologia. Vejamos alguns
exemplos.
No caso da Alemanha, entre o fim do século XVIII e fim do século XIX, o
empresário Graf Von Reden conseguiu introduzir tecnologias avançadas dos
países mais desenvolvidos, particularmente a Inglaterra (tecnologia da siderurgia,
do forno a coque e do motor a vapor), por meio de uma combinação de
espionagem industrial praticada pelo Estado com cooptação de operários
especializados (ibid, p. 66). Já Peter Beuth, que em 1816 assumiu o comando do
departamento de comércio e indústria do Ministério da Fazenda, criou em 1820 o
Instituto de Artes e Ofícios (Gewebeinstitut), por intermédio do qual subsidiou
viagens ao exterior a fim de colher informações sobre novas tecnologias e adquirir
máquinas estrangeiras para serem copiadas (ibid, p. 66).
Entre as menores economias europeias, a Suíça foi um dos primeiros
países do continente a se industrializar. A pouca defasagem tecnológica em
relação à Inglaterra não tornou prioritária no país a proteção da indústria nascente
e, desde o século XVI, o livre-comércio era o aspecto mais importante da
economia (ibid, p. 85). Contudo, o discurso pelo laissez faire não impediu o
governo da utilização de senso estratégico em suas políticas. O fato de ter se
negado a adotar uma Lei de Patentes até 1907, apesar da forte pressão
internacional, é um dos exemplos. Argumenta-se hoje em dia que esta postura
antipatentes foi essencial para o desenvolvimento de diversas indústrias na Suíça.
Entre as mais importantes, estão a química e a farmacêutica, que roubavam
ativamente a tecnologia da Alemanha, e a alimentícia, para a qual a inexistência
de patentes atraiu o investimento estrangeiro direto (ibid, p. 86).
Com efeito, desde a metade do século XIX, as tecnologias se tornaram tão
complexas que a importação de mão-de-obra especializada e de maquinário não
252 A expressão “indústria nascente” é creditada ao primeiro Secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Alexander Hamilton (1789-1795). Hamilton defendia que a concorrência estrangeira poderia impedir que as novas indústrias, que em breve poderiam ser competitivas internacionalmente (as indústrias nascentes), de se desenvolverem nos Estados Unidos. Por isto, defendia que a ajuda governamental deveria compensar os prejuízos iniciais. Tal ajuda poderia tomar a forma de tarifas de importação ou até de proibição de importação. Em suma, Hamilton preconizava um sistema abrangente de proteção e subsídio à indústria nascente e suas ideias tiveram bastante influência para o desenvolvimento industrial dos Estados Unidos durante o século XIX (ibid, p. 51). List foi um dos pensadores que mais se inspirou nas políticas de Hamilton, devido ao período de exílio em que esteve nos Estados Unidos (1825-1830).
182
bastava mais para alcançar o domínio de uma tecnologia (ibid, p. 103). A
transferência, pelo proprietário do conhecimento tecnológico, mediante o
licenciamento de patentes, passou a ser um importante instrumento de
transferência de tecnologia em algumas indústrias (ibid, p. 103). Não obstante o
regime internacional da CUP (e também da Convenção de Berna), as leis adotadas
na maioria dos países mais industrializados entre 1790 e 1850 admitiam (como na
Inglaterra, na Holanda, na Áustria e na França) o patenteamento de invenções
importadas pelos nacionais. Os Estados Unidos, até 1836, concediam patentes
sem nenhuma exigência de prova de originalidade, o que facilitou o registro de
tecnologias estrangeiras.253 Além da Suíça (já mencionada) que só veio a instituir
uma lei de patentes em 1907, a Holanda, após adotar uma lei regulamentando a
matéria em 1817, revogou-a em 1869, só vindo a aprovar uma nova legislação em
1912.
Em todos os casos de nações estudadas, CHANG demonstra, a despeito de
eventuais diferenças na aplicação de determinadas políticas (como a proteção
tarifária e subsídios), que, quando defrontadas com medidas adotadas pelas mais
adiantadas para impedir a transferência de tecnologia, as nações então menos
desenvolvidas lançaram mão de toda a sorte de meios, inclusive os “ilegítimos”,
para ter acesso às tecnologias avançadas. Empresários e técnicos praticaram
rotineiramente espionagem industrial e facilidades para a apropriação de
invenções estrangeiras, geralmente com o consentimento explícito ou mesmo com
o estímulo ativo do Estado (ibid, p. 101).
Outra constatação do autor é a de que, em suas estratégias de upgrading
industrial, todos os países se fundamentaram em um entendimento parecido do
funcionamento da economia mundial, convictos de que “a guinada rumo às
atividades de maior valor agregado é decisiva para a prosperidade da nação e de
que essa guinada, estando entregue às forças de mercado, pode não ocorrer com os
padrões sociais desejáveis” (ibid, p. 80). Em todos os casos, o Estado aparece, em
maior ou menor escala, como indutor do processo de desenvolvimento
econômico. Sem dúvida, a análise de CHANG tem uma importância significativa
para os atuais países em desenvolvimento no que tange ao ceticismo com que a
“pregação ortodoxa” por parte dos países mais desenvolvidos deve ser encarada.
253 Outro dado interessante sobre os Estados Unidos é o de que só passaram a reconhecer os direitos de autor de estrangeiros em 1891 (ibid, p. 104).
183
CHANG reconhece, desde as primeiras páginas de Chutando a Escada, que as
políticas e instituições do Consenso de Washington que ajudaram a moldar o atual
sistema multilateral de comércio fazem parte de uma estratégia de dominação e de
exercício de poder econômico (material) e normativo (as ideias pró-mercado do
Consenso de Washington) que visa manter a atual divisão internacional de
trabalho entre países desenvolvidos e em desenvolvimento. O regime do TRIPS
nada mais seria do que um traço constituinte deste amplo mosaico estrutural de
dominação, conformado por poder e ideias. Uma questão que se impõe é: de que
vale para países como o Brasil atestar isto? O que fazer então?
No curso do século XX, países como a Coréia do Sul experimentaram uma
das maiores façanhas desenvolvimentistas – aumentando em meio século sua
renda per capita nacional de U$ 80 para U$ 19 mil (CHANG, 2010, p. a13). Isto
foi possível em razão da Coréia do Sul não só ter investido em infraestrutura de
educação e saúde, mas também de ter praticado uma série de políticas hoje
consideradas “más” para o desenvolvimento como ampla utilização de política
industrial seletiva, combinação de protecionismo com subsídios às exportações,
utilização de empresas estatais e frouxa proteção a patentes e outros direitos de
propriedade intelectual (ibid, p. a13). Outro traço proeminente das políticas
públicas sul-coreanas, assim como de outros países do Leste Asiático, foi a
integração profunda de políticas de capital humano e educação ao arcabouço da
política industrial, por meio do planejamento da força de trabalho disponível
(CHANG, 2002, op. cit, p. 93). Houve sério empenho em aprimorar a base de
qualificação e a capacidade tecnológica do país mediante subsídios (e o
fornecimento público) à educação, ao treinamento e à pesquisa e desenvolvimento
(ibid, p. 93). Tudo isso permitiu ao país desenvolver endogenamente sua
capacidade de inovação tecnológica, mesmo atravessando um processo de
industrialização tardio, quando comparado a outros como os Estados Unidos, a
Alemanha, a Inglaterra e o Japão.
Quanto ao Brasil, praticamente durante o mesmo período do século XX
(até o final da década de 70), as políticas industriais buscaram assegurar a
montagem de setores industriais inteiros, centrais para o paradigma fordista, com
pequeno impacto sobre o desenvolvimento da capacidade inovadora das empresas
(DELGADO, 2010, p. 131). O processo de industrialização por substituição de
importações caracterizou-se pela presença de mecanismos diversos de proteção e
184
de subsídios às empresas, mas sem a exigência de contrapartidas do ponto de vista
do desenvolvimento tecnológico (ibid, p. 131). Tal processo combinou-se a uma
dinâmica do mercado mundial de tecnologia marcada pela facilidade na aquisição
de bens de capital e na obtenção de licenças para a fabricação de bens com
conteúdo tecnológico, mas que vinham, contudo, acompanhadas de restrições
impostas à realização de pesquisas a partir da tecnologia transferida (ibid, p. 131).
As empresas nacionais não desenvolveram capacidade de inovação endógena, ao
passo que as empresas multinacionais presentes no Brasil mantiveram fora do país
as atividades de pesquisa e desenvolvimento. Apesar do empenho do governo
brasileiro na montagem de um sistema nacional de sistema de ciência e
tecnologia, iniciado nos anos 50, e ampliado nas décadas posteriores,
particularmente nos anos 70, ele permaneceu dissociado do setor produtivo, ao
mesmo tempo em que a política tecnológica mantinha-se dissociada da política
econômica (ibid, p. 131). Como afirmam SICSÚ, PAULA e MICHEL (2005a, p.
XLII) a industrialização foi realizada sem um esforço de criação de capacidade
própria de inovação: não se criou um sistema nacional de inovação capaz de
propiciar sinergias e interfaces entre universidades, centros de pesquisa e o setor
produtivo.
Escolhas diferentes implicam em destinos diferentes. Foi o que aconteceu
à Coréia do Sul e ao Brasil diante do mesmo cenário econômico internacional do
século XX, face às políticas industriais adotadas e o objetivo de criar condições
adequadas à inovação tecnológica.254 Nosso argumento é o de que, mesmo com o
advento de novos e mais significativos constrangimentos estruturais como o
regime de TRIPS, ainda é possível pensar em estratégias de inovação tecnológica
endógenas, no marco de políticas industriais ativas e seletivas. Embora a
ortodoxia econômica neoliberal possa ter demonstrado que um ambiente
macroeconômico estável é condição necessária para o desenvolvimento de
políticas públicas voltadas para o desenvolvimento industrial e tecnológico, ela
está longe de ser condição suficiente. Sem dúvida, os desafios para a busca de
inovação se tornaram maiores, face à rigidez (material e ideacional) presente nos
254 Conforme STIGLITZ (2002, p. 128), “a combinação de altas taxas de poupança, investimento do governo na educação e uma política industrial comandada pelo Estado transformaram a Ásia em uma potência econômica”. Apesar de, sob o prisma do Consenso de Washington, políticas industriais serem equivocadas, os governos do Leste Asiático consideraram ser esta uma de suas responsabilidades essenciais (ibid, p. 128).
185
elevados patamares de proteção à propriedade intelectual contidos no regime de
TRIPS. Mas a presença desses desafios de nada vale como justificativa para a
aceitação e a inércia.
Concordamos com CHANG (2007, op. cit., p. 122): no último quarto de
século (principalmente desde a criação da OMC), os países mais desenvolvidos
fizeram de tudo para diminuir os espaços das políticas nacionalistas dos países em
desenvolvimento. Mas de nada vale para o Brasil adotar uma posição extrema de
inserção passiva e acrítica ao regime de TRIPS, ou outra igualmente radical de
total negação e aversão. A via da inserção crítica pode permitir mudanças no
regime (ou o melhor aproveitamento de suas poucas flexibilidades) e, para tanto, a
dimensão da tomada de decisões em políticas públicas assume papel essencial.
Aceitar a existência de uma variável estrutural mais rígida e restritiva não deve
significar, em absoluto, renunciar ou desacreditar das estratégias nacionais de
desenvolvimento industrial, de incentivo à inovação, à pesquisa e ao
desenvolvimento.255
255 Em recente evento realizado pelo INPI em conjunto com a FAPERJ, CAPES e CNPQ, FIANI (2010) revelou-se bastante cético em relação à possibilidade de países em desenvolvimento levarem adiante tais estratégias, no marco do TRIPS. A ligação entre propriedade intelectual e comércio impôs, para FIANI, obstáculos formidáveis aos projetos nacionais de desenvolvimento industrial e tecnológico de países como o Brasil. A Rodada Doha da OMC teria aberto uma “janela de oportunidade” para o Brasil forjar uma aliança com os países em desenvolvimento, mas ainda não estariam claros os temas em torno dos quais ela poderia ser consolidada. O ceticismo de FIANI contrasta com o otimismo de MASKUS (op. cit., pp. 6-7) para quem os direitos mais amplos em propriedade intelectual (trazidos pelo TRIPS) irão propiciar vantagens comparativas para firmas inovadoras, permitindo que elas se apropriem de maiores retornos decorrentes da atividade criativa e gerem incentivos para invenções adicionais. MASKUS entende que, ao reduzir custos de transação por intermédio de mais negócios e certeza legal, os direitos mais elevados em propriedade intelectual deverão expandir os fluxos de investimentos e de tecnologia para os países em desenvolvimento, aumentando as esperanças de que eles irão desfrutar de maior integração com as fontes globais de tecnologia. Assim, é provável que nações em desenvolvimento venham a se tornar grandes fontes de inovação (ibid, p.7). Embora MASKUS admita que a proteção à propriedade intelectual deva ser encerrada em um contexto de políticas públicas complementares, entre estas não são sequer insinuadas políticas industriais. São consideradas importantes outras políticas públicas, como a de capital humano, de infraestrutura tecnológica, de acesso a mercados abertos e de concorrência (ibid, pp. 200-216).
186
Também de nada vale se lamentar oportunidades perdidas256 e esperar (ou
se empenhar para) que as condições do passado (pré-TRIPS) voltem a se
reproduzir, pois isto não acontecerá. A noção de path-dependence nos auxilia a
enxergar e aceitar o caráter irreversível e histórico de qualquer sistema social
estudado. O passado é irrevogável, o que significa que ele não pode ser
reproduzido com exatidão, uma vez que as condições iniciais não são mais as
mesmas.
O desenvolvimento de um país é um processo idiossincrático. Não há um
modelo único a ser seguido, mas sim inúmeras possibilidades e combinações
(SICSÚ, PAULA & MICHEL, 2005a, op. cit, p. XLII). Um dos fatores-chave do
catching up é um país saber extrair vantagens criadas pelo momento histórico em
que se vive (ibid. p. XLII). Assim, por mais que a análise de CHANG (2002, op.
cit., p. 125) seja valiosa para que os países em desenvolvimento possam aprender
com as “lições do passado”, sua crítica aos países mais desenvolvidos que tentam
“chutar a escada do desenvolvimento” deve ser vista mais como um alerta para
que os países como o Brasil se conscientizem de que ainda é possível (e
necessário) buscar estratégias nacionais de desenvolvimento industrial (com
regulações adequadas em suas interações com o mundo exterior), do que como
uma obra panfletária que resulte apenas em lamúrias. Para frear o aparentemente
insaciável ímpeto rentista dos países desenvolvidos nas negociações
internacionais em matéria de propriedade intelectual257, a formulação de uma
política externa que saiba resgatar a ideia do desenvolvimento, adequada aos
tempos atuais, é um desafio que se apresenta.
256 No curso do processo de industrialização brasileiro durante o regime militar, ALBUQUERQUE (1996) demonstra que, apesar do II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) ter visado o estabelecimento de uma capacidade autônoma de geração de tecnologia (com a criação de órgão de financiamento, centros de pesquisa e instrumentos para a definição e coordenação de políticas tecnológicas), e de ter até alcançado relativo sucesso nas áreas de petroquímica e em alguns segmentos do setor de bens de capital, as empresas nacionais não participaram deste esforço. Outra observação do autor é a de que o II PND perdeu uma “janela de oportunidade” por não ter captado a transição entre o paradigma fordista e o microeletrônico. Tal “janela” remetia aos esforços menos custosos que poderiam ter sido realizados num quadro de transição de paradigmas, quando comparados aos exigidos em um contexto em que as inovações tecnológicas já se incorporaram plenamente à dinâmica do processo produtivo. 257 Um exemplo deste ímpeto está nas negociações que se desenvolvem atualmente para a celebração do Acordo Comercial Anti-Contrafação (conhecido pela sigla em inglês ACTA). Ver MELLO E SOUZA (2010a e 2010b).
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O TRIPS, portanto, não representa um chute definitivo na escada do
desenvolvimento industrial e tecnológico. Ele apenas exige, agora, bem mais de
quem deseja subir por ela.