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REVISTA DE CRÍTICA LITERARIA LATINOAMERICANA Año XXXI, Nº 61. Lima-Hanover, 1er. Semestre de 2005, pp. 203-205 OCTÁVIO IANNI: UM HOMEM JUSTO * Antonio Candido Universidade de São Paulo Octavio Ianni 1 foi meu aluno e meu amigo. Nunca tivemos in- timidade, mesmo porque ele era reservado e parecia manter nas relações um certo gosto pelo distanciamento, mas sempre nos tra- tamos com afetuosa cordialidade. Era um homem cheio de discreto calor e de dedicação aos amigos, traduzindo o seu ânimo solidário por uma cortesia perfeita, marcada pela compostura e a sincerida- de. Em Octavio Ianni admirei sempre muitas coisas, como já tive a oportunidade de manifestar por escrito 2 , como a coerência, o senso do dever, a constante preocupação política, em sentido largo. Esta preocupação norteava as suas idéias e as suas atitudes, fora dos partidos, mas dentro dos interesses mais legítimos da coletividade. Discípulo fiel de Florestan Fernandes, a quem se conservou es- treitamente ligado e cujos pontos de vista partilhava, aprendeu com ele a amadurecer uma posição sociológica ajustada às suas tendências ideológicas. Refiro-me ao esforço para combinar de ma- neira construtiva o rigor da investigação sistemática à disposição de atuar na transformação da sociedade. A poderosa cabeça teórica de Florestan Fernandes mobilizou de maneira própria as contri- buições da sociologia positiva dos franceses, que foi a moldura ini- cial da nossa aprendizagem nesta Faculdade; o ponto de vista algo instrumental do funcionalismo antropológico; a rara combinação de consciência estrutural e senso histórico de Max Weber—para fazer afinal da sua base marxista um instrumento flexível e pene- trante no estudo da vida social. Não é freqüente ver uma capaci- dade de síntese criadora como a que permitiu a Florestan forjar o equipamento original e cheio de vigor, graças ao qual pôde, a par- tir da famosa pesquisa sobre o negro em São Paulo, que realizou associado a Roger Bastide, esclarecer aspectos essenciais da socie- dade brasileira, estudando a natureza da burguesia, o destino do * Texto lido na sessão de homenagem à memória de Octavio Ianni em 26 de maio de 2004 na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

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  • REVISTA DE CRTICA LITERARIA LATINOAMERICANAAo XXXI, N 61. Lima-Hanover, 1er. Semestre de 2005, pp. 203-205

    OCTVIO IANNI: UM HOMEM JUSTO*

    Antonio CandidoUniversidade de So Paulo

    Octavio Ianni1 foi meu aluno e meu amigo. Nunca tivemos in-timidade, mesmo porque ele era reservado e parecia manter nasrelaes um certo gosto pelo distanciamento, mas sempre nos tra-tamos com afetuosa cordialidade. Era um homem cheio de discretocalor e de dedicao aos amigos, traduzindo o seu nimo solidriopor uma cortesia perfeita, marcada pela compostura e a sincerida-de.

    Em Octavio Ianni admirei sempre muitas coisas, como j tive aoportunidade de manifestar por escrito2 , como a coerncia, o sensodo dever, a constante preocupao poltica, em sentido largo. Estapreocupao norteava as suas idias e as suas atitudes, fora dospartidos, mas dentro dos interesses mais legtimos da coletividade.

    Discpulo fiel de Florestan Fernandes, a quem se conservou es-treitamente ligado e cujos pontos de vista partilhava, aprendeucom ele a amadurecer uma posio sociolgica ajustada s suastendncias ideolgicas. Refiro-me ao esforo para combinar de ma-neira construtiva o rigor da investigao sistemtica disposiode atuar na transformao da sociedade. A poderosa cabea tericade Florestan Fernandes mobilizou de maneira prpria as contri-buies da sociologia positiva dos franceses, que foi a moldura ini-cial da nossa aprendizagem nesta Faculdade; o ponto de vista algoinstrumental do funcionalismo antropolgico; a rara combinaode conscincia estrutural e senso histrico de Max Weberparafazer afinal da sua base marxista um instrumento flexvel e pene-trante no estudo da vida social. No freqente ver uma capaci-dade de sntese criadora como a que permitiu a Florestan forjar oequipamento original e cheio de vigor, graas ao qual pde, a par-tir da famosa pesquisa sobre o negro em So Paulo, que realizouassociado a Roger Bastide, esclarecer aspectos essenciais da socie-dade brasileira, estudando a natureza da burguesia, o destino do * Texto lido na sesso de homenagem memria de Octavio Ianni em 26 de maiode 2004 na Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidadede So Paulo.

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    antigo escravo e seus descendentes, o papel do ensino e da univer-sidade, para citar alguns. Por isso, Florestan deu o exemplo deuma sociologia atuante e transformadora, digna dos intelectuaisde corte revolucionrio, como era ele.

    A meu ver, Octavio Ianni foi o discpulo que mais fielmente en-carnou as diretrizes do mestre, de tal modo que possvel caracte-rizar a sua obra com base nas sugestes que acabo de fazer, e foipor isso que as fiz. uma obra rica, equilibrada, muito sensvel aoque a conjuntura histrica oferece de problemtico ao socilogo.Basta lembrar a sua longa dedicao ao problema do negro, talvezo mais grave entre os problemas humanos do nosso pas, pois setraduz pela excluso de grande parte dos brasileiros, mantidoscriminosamente margem da possibilidade de chegar s esferasque decidem. S recentemente, h menos de meio sculo, o negrobrasileiro se disps a lutar com real combatividade para exigir olugar que lhe cabe na estrutura e na organizao da sociedade, enessa luta teve ao seu lado o sereno e inflexvel Octavio Ianni.

    Ele foi de fato um dos que mais atuaram nesse sentido, e a res-peito cito apenas um fato significativo: h alguns anos o atual pre-sidente Lus Incio Lula da Silva me pediu para organizar um ci-clo de anlise e debate sobre os problemas do socialismo e da de-mocracia, no quadro do Partido dos Trabalhadores, o que foi feitopor uma equipe por mim coordenada. Um dos tpicos escolhidos foia situao do negro. Ns nos dirigimos aos companheiros do movi-mento negro dentro do partido, a fim de trocar idias sobre os par-ticipantes da sesso que lhes concernia, e eles manifestaram o de-sejo de que o expositor principal fosse Octavio Ianni, sendo os de-batedores da comunidade afro-brasileira. Conhecendo as justas re-servas que esta costuma fazer em relao atitude freqentemen-te paternalista e incompreensiva dos considerados brancos, pode-se avaliar o que essa escolha significa de confiana e respeito. Oscompanheiros do movimento negro entregaram por assim dizer asua causa ao socilogo que se dedicou sempre com fiel tenacidade luta na qual eles se empenham.

    O mesmo discernimento da importncia essencial de certosproblemas levou Octavio Ianni a se interessar pela cultura daAmrica Hispnica, que costumava atrair pouco os intelectuaisbrasileiros, assim como os intelectuais hispano-americanos poucose interessavam pela nossa. Ele no apenas tornou-se um conhe-cedor da produo cultural do sub-continente, como partiu para re-flexes pessoais sobre o papel eventual da literatura nos estudossociais. Lembro de importantes estudos que escreveu e me comu-nicou, e no esqueo que me deu de presente autores hispano-americanos, inclusive Carlos Fuentes.

    Assim, tanto no caso do negro, quanto no das culturas vizinhas,Octavio Ianni mostrou como sabia determinar o que importanteconhecer para atuar bem. Os dois exemplos denotam a sua posio

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    firme contra a iniqidade do racismo mutilador e hipcrita, e a suaintegrao na luta anti-imperialista, da qual parte necessria oentendimento cultural, profundo e fraterno da Hispano-Amricacom a Luso-Amrica.

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    Eu no sabia que Octavio Ianni estava doente, e ainda no dia17 de maro estive ao lado dele numa mesa redonda realizada noquadro das comemoraes do septuagsimo aniversrio de funda-o da universidade e da nossa Faculdade. Ele fez a comunicaoinicial com a lucidez de sempre e, como sempre, inseriu as refle-xes finais numa vibrante perorao de cunho poltico, na linhadas suas convices de socialista norteado pelo marxismo. Pareceu-me, ento, em perfeita forma, de modo que foram grandes a sur-presa e a mgoa com que cerca de vinte dias depois tive a notciade sua morte. Soube ento que estava com problemas srios de sa-de, e refleti que, mesmo assim, militou at o ltimo momento,como quem fez da atividade mental um instrumento de combate. Eisso me leva a sentir ainda mais o quanto ficamos todos ns des-guarnecidos com a falta desse colega e amigo exemplar.

    NOTAS:

    1. Octavio Ianni nasceu em Itu SP, em 1926 e faleceu em 4 de abril de 2004.2. Tentativa de perfil apud M.Isabel Faleiros e Regina Crespo (org), Huma-

    nismo e compromisso : ensaios sobre Octavio Ianni. So Paulo : editoraUnesp. 1996. p.17-20.

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