37079463 agua como direito fundamental

24
 UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES – URI - CAMPUS DE SANTO ÂNGELO DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU  EM DIREITO DISCIPLINA: DIREITO, GLOBALIZAÇÃO E RELAÇÕES INTERNACIONAIS PROFESSOR DOUTOR: Florisbal de Souza Del’Olmo MESTRANDO: Joel Saueressig Inclusão ambiental: água como um direito fundamental SUMÁRIO Introdução 1) As gerações de direitos e o meio ambiente 2) Efetivação do direito à água 3) Reflexão crítica Conclusão Referências bibliográficas Santo Ângelo 2006

Upload: maria-rita-rodrigues

Post on 05-Nov-2015

214 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

1

TRANSCRIPT

  • UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSES URI - CAMPUS DE SANTO NGELO

    DEPARTAMENTO DE CINCIAS SOCIAIS APLICADAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO STRICTO SENSU EM DIREITO

    DISCIPLINA: DIREITO, GLOBALIZAO E RELAES INTERNACIONAIS

    PROFESSOR DOUTOR: Florisbal de Souza DelOlmo

    MESTRANDO: Joel Saueressig

    Incluso ambiental: gua como um direito fundamental

    SUMRIO

    Introduo

    1) As geraes de direitos e o meio ambiente

    2) Efetivao do direito gua

    3) Reflexo crtica

    Concluso

    Referncias bibliogrficas

    Santo ngelo

    2006

  • Introduo

    O presente trabalho visa demonstrar que a transformao na rea

    de direitos humanos, quer denominem-se estas transformaes como geraes

    ou qualquer outro termo sinnimo, demonstra a mobilidade com que se

    trabalham os conceitos nos dias atuais. E, atualmente, perpassando uma rota

    histrica de evoluo dos direitos humanos, se chega discusso proposta,

    qual seja, de que o meio ambiente e especificamente, no caso em tela, a

    questo do acesso aos recursos hdricos, uma variante da temtica de

    direitos humanos que est latente no cenrio mundial, convocando direta ou

    indiretamente a todos para uma discusso sria a seu respeito.

  • 1. As geraes de direitos e o meio ambiente

    Inicialmente, para adentrar na anlise proposta, se parte do

    pressuposto de que um ser humano possui direitos. Mas a conjugao do

    verbo possuir ao longo da histria, se transformou e se constituiu em um

    verdadeiro manancial de conceitos e de exposies que nem sempre

    explicitaram e fundamentaram tal afirmao. Para exemplificar, Bobbio (1992,

    p. 15) traz:2. O problema do fundamento de um direito apresenta-se diferentemente conforme se trate de buscar o fundamento de um direito que se tem ou de um direito que se gostaria de ter. No primeiro caso, investigo no ordenamento jurdico positivo, do qual fao parte como titular de direitos e de deveres, se h uma norma vlida que o reconhea e qual essa norma; no segundo caso, tentarei buscar boas razes para defender a legitimidade do direito em questo e para convencer o maior nmero de pessoas (sobretudo as que detm o poder direto ou indireto de produzir normas vlidas naquele ordenamento) a reconhec-lo.

    Em outras palavras, o autor se prope a investigar de que maneira

    os direitos se auto-estabelecem: se a partir de um critrio embrionrio, natural

    do indivduo, ou se a partir de um critrio normativo, construdo a partir da

    interpretao de uma norma vlida em determinado ordenamento positivo.

    Ambas as interpretaes no destoam de uma realidade possvel.

    Ao contrrio, encontram fundamentos para se constiturem.

    Uma vez estabelecidos estes parmetros iniciais de interpretao,

    cabe ao intrprete tentar estabelecer quais direitos estariam dentro da proposta

    estabelecida inicialmente ou, inversamente, sob qual fundamento se analisa

    esta questo. Ou, como citado, de um prisma jurdico ou crtico. Bobbio (1992,

    p. 15-16) tem a resposta:Partimos do pressuposto de que os direitos humanos so coisas desejveis, isto , fins que merecem ser perseguidos, e de que, apesar de sua desejabilidade, no foram ainda todos eles (por toda parte e em igual medida) reconhecidos; e estamos convencidos de que lhes encontrar um fundamento, ou seja, aduzir motivos para justificar a escolha que fizemos e que gostaramos fosse feita tambm pelos outros, um meio adequado para obter para eles um mais amplo reconhecimento.

    O problema da fundamentao visto em primeiro plano. Mas a

    questo da desejabilidade se mostra como um movedio conceito sobre o

    qual pairam verdadeiras mutaes de direitos humanos. Nesta anlise, fica

    descartado o critrio normativo, pois impossvel criar direitos humanos

  • limtrofes a regras jurdicas. Sobressai-se, portanto, a anlise dos direitos

    humanos sob um vis filosfico, crtico. A isto que se prope o referido texto.

    Bobbio esbarra na discusso em tela quando adentra na questo

    nominativa dos direitos do homem, embora tal questo seja de importncia

    mediana. Mas o foco desta temtica introdutria questionar e tecer

    argumentos em cima das geraes de direitos.

    Inevitavelmente que direito, como termo gramaticalmente isolado e

    posto interpretao espria, traz reflexo muitos conceitos e teorizaes,

    uma gama interdisciplinar de aplicabilidade de sua essncia conceitual. E,

    atrelado a isto, esto fatores de ordem econmica, poltica e social que ajudam

    a compor o cenrio da aplicao ou no do termo.

    Com fulcro nisso que as chamadas geraes ou dimenses de

    direitos vieram tona, delimitando a existncia dos direitos humanos no

    espao. Adotar-se- o termo gerao de direitos, pois existe uma

    mutabilidade plausvel que denota transformaes. Mais adiante isto ser

    explicado.

    Classificam-se, portanto, em direitos de primeira, segunda, terceira

    e quarta geraes. H ainda correntes doutrinariamente reconhecidas que

    provocam uma quinta e at uma sexta gerao de direitos. Mas estas

    conjecturas no sero apreciadas.

    Quanto aos direitos de primeira gerao, embora o autor adote com

    firmeza o termo dimenso1, Sarlet (2006, p. 55-56) coloca:Os direitos fundamentais, ao menos no mbito de seu reconhecimento nas primeiras Constituies escritas, so o produto peculiar (ressalvado certo contedo social caracterstico do constitucionalismo francs), do pensamento liberal-burgus do sculo XVIII, de marcado cunho individualista, surgindo e afirmando-se como direitos do indivduo frente ao Estado, mais especificamente como direitos de defesa, demarcando uma zona de no-interveno do Estado e uma esfera de autonomia individual em face de seu poder.

    O individualismo marcou esta gerao, protegendo ou tentando

    delimitar uma zona de atuao estatal sem atingir o indivduo. Uma herana da

    Magna Carta Libertatum inglesa, de 1215. Na esteira da primeira gerao, vem

    a segunda gerao de direitos. Sarlet (2006, p. 56-57) traz:

    1 Consideraes parte, o autor afirma que a discordncia reside essencialmente na esfera terminolgica. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficcia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2006, p. 54.

  • A nota distintiva destes direitos a sua dimenso positiva, uma vez que se cuida no mais de evitar a interveno do Estado na esfera da liberdade individual, mas, sim, na lapidar formulao de C. Lafer, de propiciar um direito de participar do bem-estar social. No se cuida mais, portanto, de liberdade do e perante o Estado, e sim de liberdade por intermdio do Estado.

    Esta gerao de direitos acresce na medida em que se afasta da

    esfera individualista a questo dos direitos humanos e se adentra na esfera do

    socialmente correto, ou do bem-estar social, mais conhecido como walfare

    state.

    Ainda h os direitos de terceira gerao, que se espelham na

    solidariedade e na fraternidade, que se inserem em um panorama atual, na

    esfera dos direitos difusos e coletivos. A ao civil pblica um instrumento

    disponvel no direito brasileiro que ilustra esta gerao.

    Mas o que se faz relevante a questo envolvendo os direitos de

    quarta gerao. Estes direitos compreendem, entre outros, o de uma vida

    saudvel e de um meio ambiente ecologicamente equilibrado, ou, ainda,

    sustentvel. Esta gerao de direitos caminhou gradativa e lentamente atravs

    dos anos proporcionando o surgimento de uma mentalidade e de uma doutrina

    focada nesta esteira.

    No se pode confundir ou estabelecer metanveis na concepo de

    dimenses de direitos, como alguns doutrinadores sugerem. Por esta quarta

    gerao de direitos, a concepo de gerao se apresenta como mais

    adequada. Como se tratam de direitos e garantias intimamente relacionadas

    com o meio ambiente, esta gerao de direitos esteve fora do alcance de

    doutrinadores e estudiosos por no haver a necessidade de se positivar, dar a

    ela um critrio jurdico.

    Inicialmente, se estabeleceu que a tica abordada referenciasse a

    dois critrios. Um natural e outro a partir de uma normativa vlida. Analisando

    as primeiras trs geraes de direitos se pode compreender que sob uma tica

    crtica ou natural, ou ainda filosfica, estas geraes se encontram amparadas,

    embora exista um contedo do contraponto positivo. A normativa vlida,

    impulsionadora da construo de uma temtica em cima de direitos humanos,

    encontra seu respaldo na quarta gerao, por necessidades que se fazem

    justificar pelo tempo e pela prpria solidificao e interao das outras

    geraes de direitos, sem menosprezar o carter subsistmico das relaes

  • entre os indivduos. Sarlet (2006, p. 60) traz consideraes sobre esta quarta

    gerao:Assim, impe-se examinar, num primeiro momento, o questionamento da efetiva possibilidade de se sustentar a existncia de uma nova dimenso dos direitos fundamentais, ao menos nos dias atuais, de modo especial diante das incertezas que o futuro nos reserva. Alm do mais, no nos parece impertinente a idia de que, na sua essncia, todas as demandas na esfera dos direitos fundamentais gravitam, direta ou indiretamente, em torno dos tradicionais e perenes valores da vida, liberdade, igualdade e fraternidade (solidariedade), tendo, na sua base, o princpio maior da dignidade da pessoa.

    Fica ntida a idia fundamental de respeito ao ser humano e,

    consequentemente, vida. Na contramo, h certo desespero no momento de

    classificar nominalmente o que necessrio para que esta gerao de direitos

    se perfectibilize. As idias de uma terceira gerao como a solidariedade e a

    fraternidade, antes no concretamente definidas, apenas ruborizadas,

    desguam de um nascedouro genrico para esta quarta gerao. D-se, ento,

    para se dizer, que a terceira gerao gerou a quarta. Da a interpretao de

    uma gerao de direitos. No direitos que nascem e so substitudos por

    outros, mas sim direitos que se estabelecem como uma gerao e que geram

    uma outra gerao. Pode-se afirmar que se tem um sistema de direitos.

    A idia mais apropriada, ento, de uma fuso dos critrios

    apontados por Bobbio no comeo da discusso proposta, ou seja, tanto crtica

    como positiva.

    A questo ambiental adentra nesta quarta gerao de direitos,

    embora no exista um ncleo de proteo ao meio ambiente, mas sim de

    proteo dignidade da pessoa humana.

    Fica, ento, ntida que a fundamentao filosfica dos direitos

    humanos, especialmente nesta quarta gerao de direitos, recupera as outras

    geraes de direitos, como em uma retrospectiva. Gorczevski (2004, p. 1093)

    acrescenta:A proteo ao ser humano, que o pilar de sustentao dos direitos do homem universal e existe em todas as culturas. Praticamente todas as religies atriburam vida um carter sagrado. (...) as origens mais remotas da fundamentao filosfica dos direitos fundamentais da pessoa humana se encontram nos primrdios da civilizao.

    Ora, se os direitos humanos perpassam geraes ou dimenses,

    estas classificaes sempre foram notadamente relativas aos valores do

  • indivduo. O que houve foram transformaes polticas e sociais que

    adequaram as suas necessidades ao momento histrico pelo qual se

    desenrolaram.

    Hoje, impossvel no conceber uma idia de direitos humanos ou

    direitos fundamentais sem relevar as condies globais de nosso planeta. No

    somente relativas ao meio ambiente, mas necessariamente relativas s

    condies existenciais dos seres humanos. Direitos humanos so direitos

    existenciais.

    Vrias interpretaes podem se acoplar nesta linha, mas a questo

    dos valores do indivduo intocvel e permanece como o foco central de

    qualquer ato ou qualquer gerao de direitos. Talvez por este motivo que Kant

    tenha sido um visionrio na idia de uma viso universalista de direitos.

    Bielefeldt (2000, p. 61) complementa:A universalidade dos direitos humanos tem, por isso mesmo, dupla origem: provm de cada vez maior (real) aproximao entre pases, povos e culturas e, ao mesmo tempo, exprime a idia (normativa) de universalidade da dignidade humana, na qual se originam as modernas reivindicaes emancipacionistas nas reas polticas e jurdicas.

    Trazida para a atualidade, a idia kantiana de conglomerao entre

    os povos para melhor efetivar os direitos humanos ou mesmo que esta idia de

    efetivao esteja fora da prioridade do autor, reflete nos dias atuais a questo

    ambiental, mesmo que a temtica de Kant no aborde esta linha. Discutir a

    filosofia kantiana aqui seria adentrar em um terreno movedio.

    Mas o exemplo citado vlido na proporo que aufere uma

    necessria mobilidade social em pr das necessidades do indivduo. E o meio

    ambiente, especialmente a questo hdrica, se tornou, no mnimo, uma

    discusso necessria.

    Cabe mencionar que os direitos humanos positivados, ou direitos

    fundamentais, especialmente no que tange questo do meio-ambiente, para

    alguns doutrinadores, se encerram na terceira gerao de direitos. Bonavides

    (1999, p. 523), ilustra:Tm primeiro por destinatrio o gnero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmao como valor supremo em termos de existencialidade concreta. Os publicistas e juristas j os enumeram com familiaridade, assinalando-lhe o carter fascinante de coroamento de uma evoluo de trezentos anos na esteira da concretizao dos direitos fundamentais. Emergiram eles da reflexo

  • sobre temas referentes ao desenvolvimento, paz, ao meio-ambiente, comunicao e ao patrimnio comum da humanidade.

    Como colocado anteriormente quando da discusso acerca de

    gerao ou dimenso de direitos, e se chegou concluso com aporte de que

    se deve menosprezar esta falcia nominativa dos direitos e sua classificao,

    tambm, quando se discute a incluso do meio-ambiente na terceira ou quarta

    gerao de direitos, se adota o mesmo critrio. Bedin (2003, p. 374) refora

    este raciocnio:Entre os direitos desta quarta gerao pode-se colocar o direito autodeterminao dos povos, o direito paz, o direito ao patrimnio comum da humanidade, o direito ao meio-ambiente sadio (...). Estes direitos, como se pode ver, so todos direitos de interesse coletivo (...).

    Isto, de forma simplificada, atende a uma necessidade de

    reivindicao do indivduo que ao longo dos anos foi definindo sua posio e

    dando um espaamento limtrofe dele para com ele mesmo em um mundo em

    constante reconstruo.

    O foco como mencionado, deve se manter sobre a questo do valor

    da pessoa humana. este cunho valorativo que impulsiona as geraes de

    direitos, independentemente da posio de um direito em determinada

    gerao.

    O que se conclui aqui, que existe uma universalidade em sede de

    direitos humanos, embora as correntes relativistas de planto se mostrem em

    contrapartida como bem aceitas pela doutrina nacional e internacional2.

    Em tese o que se aponta uma metamorfose em sede de direitos

    humanos fundamentais. Esta metamorfose se calca na necessidade constante

    de se aperfeioar as reivindicaes da pessoa humana, sempre objetivando um

    fim especfico, um determinado objetivo.

    2 No pensamento social e filosfico contemporneo encontramos trs tipos de relativismos, referentes contestao da idia dos direitos humanos como universais: o relativismo antropolgico, o relativismo epistemolgico e o relativismo cultural. Este ltimo sustenta o argumento aceitvel de que as particularidades culturais exercem um papel determinante na forma sob a qual os valores assegurados pelos direitos humanos, iro formalizar-se. BARRETO, Vicente de Paulo. Direitos humanos e sociedades multiculturais. In: Anurio do Programa de Ps-Graduao em Direito: Mestrado e Doutorado. So Leopoldo: Unisinos. 2003. p. 464.

  • Este objetivo, especialmente aqui definido como o de tornar digna a

    vida humana, ou como mencionado, respeitar e atribuir valor pessoa humana

    foi o que sempre motivou as geraes de direitos. Bobbio (1992, p. 18) explica:O elenco dos direitos do homem se modificou, e continua a se modificar, com a mudana das condies histricas, ou seja, dos carecimentos e dos interesses, das classes no poder, dos meios disponveis para a realizao dos mesmos, das transformaes tcnicas, etc.

    E atualmente, escapando do trao histrico se chega a um colossal

    questionamento a respeito de nosso futuro. E este questionamento motivou a

    positivao das questes ambientais, especialmente a questo acerca da

    gua, direito inexistente outrora, mas talhado pela conduta humana como um

    direito mais do que fundamental no futuro e de proteo urgente no presente.

  • 2. Efetivao do direito gua

    As questes que sempre fizeram do indivduo um ser que reivindica

    e, como apontado, motiva transformaes, pois tudo ao seu redor est em

    constante transformao e ele no poderia deixar de participar, se materializam

    como reivindicaes positivadas ou se perdem pelo desinteresse. Bobbio

    (1992, p. 28) lembra John Locke:As declaraes nascem como teorias filosficas. Sua primeira fase deve ser buscada na obra dos filsofos. Se no quisermos remontar at a idia estica da sociedade universal dos homens racionais o sbio o cidado no desta ou daquela ptria (...).

    a contemplao do estado de natureza. O aporte em John Locke

    deve ser retomado, pois tem carter fundamental para a compreenso dos

    direitos positivados hoje.

    Deve-se empreender uma fuga da figura estatal, ou uma

    reinterpretao da administrao pblica, pois atualmente, como previsto por

    Locke, as questes so enumeradas com fulcro em uma legislao

    supranacional. Trata-se de uma afirmao histrica para os direitos humanos.

    Nesta esteira, o mundo se deparou com as primeiras declaraes

    de direitos. Vale lembrar a Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado,

    de 1948, da ONU, que foi o ponto de partida para as inmeras declaraes de

    direitos que se sucederam em torno da afirmao histrica dos direitos

    humanos. Vrias convenes e pactos internacionais protetores da pessoa

    humana, lembrando as inmeras questes que foram emergindo,

    principalmente no sculo passado, resultaram em um surgimento em bloco de

    direitos enumerados e pactuados, com cada vez maior ateno.

    As questes ambientais no poderiam ficar margem desta

    proliferao de diretrizes valorativas da pessoa humana. E, especialmente, a

    questo hdrica.

    Mas, como salientado inicialmente, toda a construo jurdica em

    cima do problema hdrico, se fundamenta na histria e na construo das

    necessidades da pessoa, no s individualmente, mas coletivamente. Bobbio

    (1992, p. 37) traz um exemplo:Mais uma vez, para alm dos direitos do homem como indivduo, desenham-se novos direitos de grupos humanos, povos e naes. (Um caso interessante, e bastante desconcertante, dessa Magna

  • Charta dos povos, em processo de elaborao, o art. 47 do Pacto sobre os direitos civis e polticos, que fala de um direito inerente a todos os povos de desfrutar e de dispor plenamente de suas riquezas e recursos naturais. No difcil entender as razes dessa afirmao; bem mais difcil prever suas conseqncias , caso ela seja aplicada literalmente).

    Na esteira do mencionado acima, ainda era de se vislumbrar um

    pacto coletivo. E, certamente mais utpica, uma reflexo sobre a necessidade

    da proteo gua. Mas isto se tornou realidade. Pilar (internet) salienta:O foco inicial dos tratados de direitos humanos era voltado s violaes de valores morais e garantias relacionadas violncia e perda de liberdades. Contudo, com o tempo a comunidade internacional expandiu tais direitos, leis e acordos para incluir uma srie de preocupaes relacionadas ao bem estar humano. Encontram-se nessa situao direitos relacionados ao meio ambiente e as condies sociais de acesso aos recursos.

    E, no sentido de conferir gua um perfil de direito inalienvel e

    universal, Pilar (internet) enumera algumas declaraes:O carter indispensvel da gua para a vida, sade, alimentao e desenvolvimento humano foi reafirmado em diversas conferencias e declaraes. Nesse sentido pode-se citar a ttulo ilustrativo, a Conferncia das Naes Unidas sobre as guas, celebrada em Mar Del Plata em 1977; a Conferncia Internacional sobre gua e o Meio Ambiente, celebrada em Dublin em 1992; A Conferncia das Naes Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio 92); a Conferncia Internacional sobre gua e Desenvolvimento Sustentvel, celebrada em Paris em 1998; a Declarao de Nova Deli de 1990; Conferncia Internacional sobre a gua Doce, celebrada em Bonn em 2001.

    Chama ateno, assim como as outras declaraes acima, a

    Declarao Universal dos Direitos da gua, proclamada em 22 de maro de

    19923. E, tal documento, se constitui em um texto bastante peculiar, pois no 3 O texto possui dez artigos, quais sejam: art. 1. A gua faz parte do patrimnio do planeta. Cada continente, cada povo, cada nao, cada regio, cada cidade, cada cidado, plenamente responsvel aos olhos de todos; art. 2. A gua a seiva de nosso planeta. Ela condio essencial de vida de todo vegetal, animal ou ser humano. Sem ela no poderamos conceber como so a atmosfera, o clima, a vegetao, a cultura ou a agricultura; art. 3. Os recursos naturais de transformao da gua em gua potvel so lentos, frgeis e muito limitados. Assim sendo, a gua deve ser manipulada com racionalidade, precauo e parcimnia; art. 4. O equilbrio e o futuro de nosso planeta dependem da preservao da gua e de seus ciclos. Estes devem permanecer intactos e funcionando normalmente para garantir a continuidade da vida sobre a Terra. Este equilbrio depende em particular, da preservao dos mares e oceanos, por onde os ciclos comeam; art. 5. A gua no somente herana de nossos predecessores; ela , sobretudo, um emprstimo aos nossos sucessores. Sua proteo constitui uma necessidade vital, assim como a obrigao moral do homem para com as geraes presentes e futuras; art. 6. A gua no uma doao gratuita da natureza; ela tem um valor econmico: precisa-se saber que ela , algumas vezes, rara e dispendiosa e que pode muito bem escassear em qualquer regio do mundo; art. 7. A gua no deve ser desperdiada, nem poluda, nem envenenada. De maneira geral, sua utilizao deve ser feita com conscincia e discernimento para que no se chegue a uma situao de esgotamento ou de deteriorao da qualidade das reservas atualmente disponveis; art. 8. A utilizao da gua

  • se retira e no se atribui direitos ao ser humano, ao indivduo, mas prpria

    gua.

    Aparentemente, este tipo de documento conferindo direitos gua,

    soa como um alerta. A pessoa humana quem deve ser titular de direitos, no

    o prprio direito, como no caso em tela.

    Todavia, fazendo uma leitura pormenorizada da declarao, se

    pode concluir que em seu art. 1, a dependncia do indivduo da gua

    inevitvel, o que torna a gua um bem indisponvel. Isso acrescenta o acesso

    aos recursos hdricos condio de existncia do ser humano.

    O art. 5 o que talvez melhor represente a idia aqui trabalhada.

    A obrigao moral do ser humano em conservar os recursos hdricos para a

    posteridade traz tona novamente a questo do valor para a anlise proposta.

    Sabe-se que, em definies ocidentais contemporneas, valor4 representa

    materialidade. Trata-se aqui de conferir um signo diferenciado para o tema em

    questo.

    justamente a imaterialidade da gua que traz consigo o seu

    maior valor. Como um recurso que se sabe no eterno, pelo contrrio j

    desponta como limitado se analisada a situao global, a gua representa, em

    tese e em uma aluso prpria vida humana, fator de sobrevivncia.

    No art. 6, entretanto, embora se tenha dado gua uma condio

    imaterial, seu valor econmico reconhecido. Em outras palavras, a garantia

    aos recursos hdricos posta no plano da materialidade, sua proteo assume

    os contornos da representao econmica. E, nos artigos seguintes, se

    menciona a palavra lei para garantir gua sua proteo. Economia e direito,

    mais uma vez, se encontram lado a lado.

    Finalmente no art. 10, a solidariedade que juntamente com a

    fraternidade formou a base dos direitos humanos de terceira gerao, como j

    abordado, se concretiza uma apelao para que, independentemente dos

    implica em respeito lei. Sua proteo constitui uma obrigao jurdica para todo homem ou grupo social que a utiliza. Esta questo no deve ser ignorada nem pelo homem nem pelo Estado; art. 9. A gesto da gua impe um equilbrio entre os imperativos de sua proteo e as necessidades de ordem econmica, sanitria e social; art. 10. O planejamento da gesto da gua deve levar em conta a solidariedade e o consenso em razo de sua distribuio desigual sobre a Terra.

    4 Para o Oxford English Dictionnary, valor se resume a uma quantia econmica, que pode ser objeto de troca ou que surta um retorno equivalente pelo objeto em questo.

  • interesses econmicos, os povos do mundo se juntem em uma cruzada em

    favor da gua. Esta miscelnea de dispositivos postos nesta declarao

    surpreende, pois nunca se declarou nada a favor do nome de um direito. Trata-

    se aqui do reconhecimento da gua como um direito humano fundamental, pois

    associada est a sua existncia prpria vida, dignidade da pessoa humana.

    Esta preocupao que foi emergindo no seio da comunidade

    internacional foi resultando de inmeras reivindicaes como mencionado.

    No princpio estas reivindicaes pairavam sobre o individualismo,

    na seara das liberdades negativas, aps partindo para o estado de bem estar

    social, culminando, hoje, em reivindicaes coletivas calcadas em polticas

    pblicas de incluso social, e j atualmente em polticas de incluso ambiental.

    Isto no aconteceu isoladamente, devido a uma evoluo das j

    citadas reivindicaes que se transformaram e modificaram a condio humana

    atravs da histria. Houve mudanas na rea cientfica e estudos foram sendo

    desenvolvidos. Uma destas vertentes foi o chamado desenvolvimento

    sustentvel.

    Esta abordagem do desenvolvimento no nico e simplesmente

    voltado economia, encontra seu sustentculo em cinco pilares: o social,

    territorial, econmico, poltico e, objeto desta anlise, o ambiental5. Sachs

    (2004, p. 13) traz a noo de sustentabilidade:O desenvolvimento, distinto do crescimento econmico, cumpre esse requisito, na medida em que os objetivos do desenvolvimento vo bem alm da mera multiplicao da riqueza material. O crescimento uma condio necessria, mas de forma alguma suficiente (muito menos um objetivo em si mesmo), para se alcanar a meta de uma vida melhor, mais feliz e mais completa para todos.

    Direitos que se tornaram consagrados e positivados permeiam a

    rbita do social e do econmico, sem menosprezar os outros pilares como a

    poltica, fundamental para estabelecer um rumo para os objetivos de um povo,

    como em uma retomada da leitura de Locke e outros contratualistas.

    Mas o foco desta abordagem a questo ambiental e centralmente

    os recursos hdricos. E esta, assim como outras reivindicaes na esfera

    ambiental, passa a sugerir que as polticas pblicas se convertam para a

    incluso de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

    5 SACHS, Ignacy. Desenvolvimento: includente, sustentvel, sustentado. Rio de Janeiro: Garamond. 2004, p. 15-16.

  • relembrado aqui, que o direito aos recursos hdricos, bem como

    ao meio-ambiente, desemboca ao direito ao desenvolvimento sustentvel.

    Bedin (2003, p. 381) resgata a sua trajetria:(...) direito ao desenvolvimento sustentvel, que deve ser materializado atravs de aes humanas direcionadas construo de uma vida saudvel e produtiva, em harmonia com a natureza. Por isso, para alcanar o desenvolvimento sustentvel, (...) a proteo ambiental deve constituir-se em parte integrante do processo de desenvolvimento.

    As aes humanas como mencionado, so os pontos balizadores

    para que se garanta uma efetividade na busca pela sustentabilidade e,

    consequentemente para que se preservem os recursos hdricos de forma a

    manter tais recursos sempre em harmonia com as outras garantias e direitos

    da pessoa humana.

    Tambm a aproximao da gua como um direito, objeto desta

    anlise, no aufere ao problema uma soluo adequada para a crise hdrica

    que se impe h muitos anos, como no demonstrativo das declaraes j

    mencionado. Pilar (internet) faz uma comparao com o problema da fome:Seria ingnuo afirmar que o reconhecimento do direito gua como direito humano iria resolver o problema dos bilhes de pessoas que no tem acesso a esse recurso. A histria j demonstrou que o fato de um direito estar explcito no garante o seu cumprimento. O direito a uma alimentao adequada foi formalmente declarado, contudo estima-se que 777 milhes de pessoas nos pases subdesenvolvidos no tm acesso a uma alimentao suficiente e adequada.

    Ou seja, um direito no se eleva ao patamar de inviolabilidade por

    si s. Isto requer ao humana na forma de gesto de polticas pblicas

    eficientes para sustentar este direito e fazer val-lo como tal.

    Na esteira da efetivao dos direitos ao desenvolvimento

    sustentvel e consequentemente, a aes em pr dos recursos hdricos, h de

    se definir incluso, como o termo a ser adequado no campo ambiental. Sachs

    (2004, p. 39) ajuda a conceituar:O desenvolvimento includente requer, acima de tudo, a garantia dos direitos civis, cvicos e polticos. A democracia um valor verdadeiramente fundamental (A. K. Sen) e garante tambm a transparncia e a responsabilizao (accountability) necessrias ao funcionamento dos processos de desenvolvimento. No entanto, existe uma grande distncia entre a democracia representativa e a democracia direta, que cria melhores condies para o debate dos assuntos de interesse pblico.

  • Como se percebe, a abordagem acerca da problemtica proposta

    vai muito alm de considerar a gua ou qualquer outro recurso natural como

    um direito. Envolve questes administrativas de polticas pblicas de incluso

    scio-ambiental, que vo de encontro efetivao no apenas de direitos, mas

    efetivao da prpria democracia.

    Sabe-se que, especialmente, em nosso pas, se observa uma crise

    administrativa de grande profundidade. Este panorama dramtico e excludente

    em que se transformou a forma de se administrar a coisa pblica reflete

    diretamente em conseqncias desastrosas, pois as deficincias

    administrativas ligadas s necessidades bsicas, ou seja, aos direitos

    fundamentais esbarra na carncia de uma gesto mais includente.

    Esta leitura denota preocupao para com as classes sociais

    menos favorecidas, pois as sadas para uma incluso scio-ambiental a partir

    de medidas de gesto organizacional so pouco vislumbradas. H uma

    necessidade de se investir em melhorias se partindo de baixo para cima e no

    com polticas de incluso que so, em seus nascedouros, autoritrias.

    Apesar de se constiturem democracias libertas do luto do exerccio

    das garantias e liberdades individuais to proclamadas universalmente, os

    pases em desenvolvimento esbarram nas dificuldades de composio do

    cenrio administrativo interno que esto intimamente ligadas s necessidades

    regionais de cada um.

    O manto da globalizao, como Hobsbawm (1995, pg. 401) define

    ps os governos de todos os Estados com a possvel exceo dos EUA,

    com sua enorme economia merc de um incontrolvel mercado mundial.

    Este controle abrupto para as economias mais desfavorecidas dotado de

    tticas econmicas com ntidas intenes de explorao. A inrcia econmica

    dos pases em desenvolvimento juntamente com os problemas internos de

    gesto administrativa - a corrupo, por exemplo - favorecem um Estado fraco

    e inoperante frente s reformas que pretende estabelecer. O resultado disso

    uma quebra do contratualismo.

    Esta superao das necessrias reformas a serem feitas, parte de

    pressupostos localistas. E um dos conceitos que vem tona o da

    sustentabilidade que pode ser compreendida pela atuao e materializao

    scio-ambiental.

  • A anlise de cada um dos pilares citados anteriormente se torna

    ferramenta de estudo e compreenso da anatomia de um pas. Obviamente

    que os pilares do desenvolvimento sustentvel no se autogerenciam. Faz-se

    necessria uma complementao em torno destes conceitos para se buscar

    um nvel de desenvolvimento, isto , saber lidar com a histrica e enraizada

    cultura de dependncia. Neste mbito fatores como a educao e a

    responsabilidade social so fundamentais.

    A incluso scio-ambiental o grande objetivo a ser alcanado, e,

    talvez a nica soluo para o contraponto ao desenvolvimento

    economicamente danoso.

    Esta alavanca competitiva que engloba as regras inflexveis do

    mercado, to ditatorial que capaz de suprimir a democracia do prprio Estado

    Democrtico de Direito por excluso natural, necessita, como visto, de

    incentivo para poder trilhar.

    A questo da gua juntamente com a organizao e a estruturao

    democrtica que se espera das polticas pblicas e das parcerias pblico-

    privadas, sem desmerecer o envolvimento consciente do prprio cidado, se

    pode exemplificar nas palavras de Rivero (2002, p. 192):A segurana hdrica tem sido sempre uma condio essencial existncia da civilizao e do Estado, e esta condio comea a faltar em muitos pases. Segundo a ONU, mais de dois bilhes de seres humanos j carecem de gua suficiente em mais de quarenta pases. O Banco Mundial calcula que um bilho de pessoas no tm sequer gua para beber e cerca de um bilho e setecentos milhes no tm saneamento. A falta de gua potvel e saneamento expe milhes de habitantes das cidades subdesenvolvidas a doenas e morte prematura. A disponibilidade de gua est se tornando um fator determinante de supervivncia nacional.

    Esta perspectiva em relao ao bem mais precioso do planeta

    reflete todo o exposto aqui. A gua no carece apenas de declaraes

    incluindo sua necessidade como vital e digna da condio humana, nem to

    pouco de uma declarao para si mesma refletindo o desespero do mundo

    beira da perda de um bem incomparvel, mas sim de um tratamento

    consciente, que ao lado de outros direitos necessitam ser efetivados.

    3. Reflexo crtica

  • Para associar definitivamente os recursos hdricos aos direitos

    fundamentais, se faz necessria uma leitura do panorama global, de como se

    est tratando com a questo da gua em nvel nacional e internacional.

    Esta busca pela universalizao do reconhecimento dos recursos

    hdricos deve ser interpretada a nvel mundial. Rivero (2002, p. 191-192) traz

    alguns dados:Tambm a gua para produzir alimentos, abastecer a indstria e o consumo humano escassa e difcil de obter no planeta. De toda a gua existente na Terra, 97% so guas salgadas, apenas 3% so guas doces e partes destas esto concentradas em locais no acessveis, como as regies polares e as geleiras. Logo apenas uma porcentagem da gua do planeta doce e est acessvel em rios, lagos e bacias subterrneas (...).

    Os dados referentes s guas mostram a problemtica da questo

    hdrica como uma barreira a ser transposta para este novo sculo. Ressalta-se

    como no mencionado que os dados refletem uma abundncia em gua em

    nosso planeta e, ao mesmo tempo, uma escassez. Esta escassez est ligada

    gua para consumo humano. Rivero (2002, p. 192) continua:Quando no h gua disponvel, o problema bsico ter o que beber. A maioria dos lagos e cursos de gua que atravessam grandes assentamentos humanos est contaminada com produtos agrotxicos, despejos industriais e esgotos domiciliares. Este processo de diminuio do volume e poluio da gua disponvel ainda mais acentuado nos pases pobres.

    Em um prognstico mais arraigado, a questo da gua ir, em um

    futuro prximo, definir quais os pases que possuem condies de se manter

    viveis ecolgica e economicamente. Leite (2000, p.06) continua:Se, nos dias atuais a gua j escassa, as pesquisas dos estudiosos delineiam perspectivas mais drsticas. Prev-se que, em 2025, a populao do planeta atingir 8 bilhes de habitantes. Com isso a demanda pelo precioso lquido aumentar, e os conflitos decorrentes de sua falta sero agravados.

    A previso manifesta acima, qual seja, de uma guerra hdrica,

    permeia os debates internacionais a respeito da falta da gua. J existem

    grandes empresas privadas que se movimentam para explorar este nicho de

    mercado, altamente lucrativo, exatamente pela tendncia escassez. Alguns

    estudiosos classificam a disputa pelo mercado da gua como maior que a

    disputa pelo mercado do petrleo.

    Um exemplo desta batalha invisvel ainda aos olhos da grande

    maioria dos povos, foi o ocorrido na ndia. Em maro de 2000, uma fbrica de

  • refrigerantes conhecida mundialmente, ao se estabelecer em Plachimada, no

    estado indiano de Kerala, obteve permisso para produzir 1.224.000 garrafas

    da empresa.

    A indstria de refrigerantes estava extraindo 1,5 milhes de litros

    por dia. O nvel da gua do Ganges estava baixando. A companhia tambm

    bombeou gua de despejo para dentro de poos secos no interior do

    estabelecimento da companhia, para dispor do seu lixo slido. A gua que foi

    extrada era suficiente para atender s necessidades mnimas de

    aproximadamente 20 mil pessoas. Os mais gravemente afetados, que restaram

    sem casa ou trabalho, chegam ao nmero de 10 mil pessoas.

    Apesar de tudo, a fbrica conseguiu se manter em funcionamento

    at 10 de maro de 2004, apoiada em uma ordem governamental e em

    veredito da Alta Corte de Kerala.

    Em 2004 o Gabinete do Estado de Kerala obrigou a companhia a

    dar fim sua operao. O motivo, uma aguda seca que afligia o distrito de

    Palakkad. Como conseqncia, a indstria de refrigerantes parou sua produo

    em 10 de maro de 2004.

    Assim como no exemplo indiano, milhares de operaes

    semelhantes ocorrem em todo o planeta, com o condo de explorar os

    recursos hdricos sem oferecer segurana.

    No caso da ndia, a questo veio tona devido s tradies

    culturais de seu povo que amparado em uma histrica ligao cultural de

    adorao s guas, reverteu uma situao de explorao.

    Grandes empresas de explorao mundial de gua, como o Grupo

    Suez, lucram bilhes por ano na explorao do recurso. Seria como se uma

    empresa multinacional lucrasse em cima da subtrao de um direito

    fundamental das pessoas, comprometendo a dignidade e o bem-estar das

    mesmas.

    A aproximao que se faz da gua de um direito fundamental,

    levando em considerao o exemplo indiano, coloca o cidado merc das

    vontades dos detentores do poder que exploram um bem econmico sem

    perceber que subtraem ao mesmo tempo qualidade de vida das pessoas, a sua

    dignidade humana em desfrutar de um meio-ambiente equilibrado. Pilar

    (internet) relembra esta aproximao:

  • H uma ntima relao entre a gua e os direitos humanos, visto que esta indispensvel para uma vida digna e condio prvia para o exerccio de vrios desses direitos. Esse posicionamento foi adotado expressamente pelo Comit dos Direitos Econmicos, Sociais e Culturais das Naes Unidas, que diante da excluso hdrica de milhares de pessoas em pases subdesenvolvidos e em pases desenvolvidos, aprovou em sua 29 sesso realizada em Genebra de 11 a 29 de novembro de 2002 a Observao Geral n 15 referente aos artigos 11 e 12, com o ttulo o direito gua, o qual nos termos do documento consiste no fornecimento suficiente, fisicamente acessvel e a um custo acessvel, de uma gua salubre e de qualidade aceitvel para as utilizaes pessoais e domsticas de cada um. Salienta-se ainda que, a noo de fornecimento de gua adequado deve ser interpretada de uma forma compatvel com a dignidade humana e no em sentido estrito, pela simples referncia a critrios de volume e aspectos tcnicos.

    O que se pretende abdicar do conceito meramente explorador de

    recurso natural para um debate tico, compromissado com o ser humano.

    Sachs (2004, p. 15) retoma a questo da sustentabilidade:3 O conceito de desenvolvimento sustentvel acrescenta uma outra dimenso a sustentabilidade ambiental dimenso da sustentabilidade social. Ela baseada no duplo imperativo tico de solidariedade sincrnica com a gerao atual e de solidariedade diacrnica com as geraes futuras. Ela nos compele a trabalhar com escalas mltiplas de tempo e espao, o que desarruma a caixa de ferramentas do economista convencional.

    Obviamente que as questes acerca dos recursos hdricos esto

    dentro desta questo de sustentabilidade ambiental e fora do escopo do

    desenvolvimento exclusivamente econmico, de explorao.

    H que se ressaltar os princpios constitucionais que devem alinhar

    com a correta utilizao dos recursos hdricos. Granziera (2000, p.74-75) traz:Os princpios constitucionais adotados devem ser os que congregam a proteo do meio ambiente nas atividades humanas, como condio de sobrevivncia de toda a vida no planeta. Cabe ao Judicirio exigir que a lei seja cumprida, mesmo quando se tratar de infrao cometida pela Administrao Pblica.

    A sada agregar os direitos humanos constitudos ao longo dos

    anos, de gerao em gerao, passando e fazendo uma leitura pelas

    reivindicaes que foram se materializando e formando um cada vez maior rol

    de direitos, nunca taxativo, mas sempre extensivo.

    O que se deve somar aos direitos humanos o direito condio

    humana. Como o ser humano pode exercer seus direitos da vida, liberdade e

    segurana se outros fatores obstaculizam a chegada a tais direitos? Como

  • usufruir de uma dignidade igualitria em um mundo em que lhe negada a

    condio humana de sobreviver?

    Estes questionamentos refletem a temtica sobre os recursos

    hdricos. Nunca, como neste sculo, a condio humana foi to debatida.

    Passadas as declaraes de direitos, bem com suas geraes, se alcanou um

    nvel de discusso na seara de direitos humanos em que mltiplos fatores se

    coadunam para um viver mais qualitativo. Rivero (2002, p.214) traz

    consideraes a respeito:Ao comear o sculo XXI, o crescente desequilbrio fsico-social entre abastecimento de alimento, energia e gua e populao urbana equivale a uma falha ssmica de natureza sociopoltica, que pode causar tremores de desintegrao nacional. Porm este desequilbrio no considerado nas agendas dos pases subdesenvolvidos. A maioria dos governos mostra absoluta despreocupao quanto ao crescimento urbano e disponibilidade futura de gua, energia e alimentos.

    A constatao feita pelo autor alarmante, pois mesmo sem querer

    colocar centralmente a questo da periferia nesta abordagem, justamente

    nestes pases que h o maior descaso para com os direitos fundamentais.

    Consequentemente, dada a capacidade de no sustentar um nvel de

    respeitabilidade dos direitos humanos, que direitos como ao meio ambiente

    ecologicamente equilibrado e o direito humano gua se perdem em

    abordagens clientelistas, pois o Estado no suficientemente forte para ser um

    Estado garante destes direitos.

    A sociedade civil, certa feita desmantelada e carente de maiores

    articuladores sociais, tambm colabora para a derrocada dos direitos

    fundamentais. Rivero (2002, p. 215) acrescenta:Esta realidade recomenda deixar de lado o mito do desenvolvimento, abandonar a busca do Eldorado e substituir a agenda da riqueza das naes pela agenda da sobrevivncia das naes. A prioridade atual deve ser estabilizar o crescimento urbano e aumentar a disponibilidade de gua, energia e alimento, para evitar que a vida nas cidades dos pases pobres seja um inferno no futuro.

    Esta previso de um futuro catico para o Terceiro Mundo est

    cada vez mais se confirmando, pois catica j a realidade nos pases

    desenvolvidos, no tocante aos recursos hdricos. E, este desespero ambiental

    que est tomando conta dos pases detentores do poder econmico, reflete

    inversamente nos pases em desenvolvimento. H de se priorizar as polticas

    pblicas bem como as parcerias pblico-privadas voltadas para o meio

  • ambiente e traar rumos alternativos ao desenvolvimento meramente

    econmico, resgatando os pilares do desenvolvimento sustentvel.

    Este caminho tambm perpassa pela trilha da efetivao e

    concretizao de uma ordem jurdica justa e confivel, no apenas

    declarando direitos ou gerando direitos, mas sim os mantendo ao alcance do

    cidado para que se possa desenvolver no uma nao economicamente forte,

    mas um pas democrtico. Bobbio (1992, p. 45) assinala com atualidade:Creio que uma discusso sobre os direitos humanos deve hoje levar em conta, para no correr o risco de se tornar acadmica, todas as dificuldades procedimentais e substantivas (...). A efetivao de uma maior proteo dos direitos do homem est ligada ao desenvolvimento global da civilizao humana. um problema que no pode ser isolado, sob pena, no digo de no resolv-lo, mas de sequer compreend-lo em sua real dimenso.

    Talvez os direitos humanos nunca foram compreendidos. Talvez as

    inmeras declaraes de direitos nunca se concretizaram. Esta busca

    incessante pelo respeito aos direitos humanos, como no mencionado por

    Bobbio, perpassa por um desenvolvimento global da civilizao humana. Este

    desenvolvimento global, para se efetivar necessita romper paradigmas, desatar

    os laos de dependncia econmica e comear a se pensar em um futuro cada

    vez mais presente quando se trata de meio ambiente e recursos hdricos. Pois

    o futuro, neste caso, cada vez mais se aproxima do presente.

    Concluso

  • A tarefa de se fazer a leitura das geraes de direitos, bem como

    as reivindicaes que levam a estas geraes, motivos determinantes do

    nascimento de um direito, se mostra mais atual do que nunca. Como na

    retrospectiva histrica de afirmao dos direitos humanos ao longo dos tempos,

    atualmente direitos como ao meio ambiente e, especialmente, aos recursos

    hdricos, caso em tela se mostram debates para se iniciar a construo de um

    futuro de efetivao das garantias fundamentais. A dignidade da pessoa

    humana, direito fundamental e que perpassa por uma crise de fundamentao,

    agrega ao seu redor outros fatores, como o desenvolvimento sustentvel e no

    meramente econmico. A questo da gua se torna como uma chave mestra

    nesta problemtica de incluso scio-ambiental, pois neste direito, bem e

    valor econmico que reside o futuro de uma sociedade que se expande rumo a

    um futuro que ir se mostrar cada vez mais complexo quanto garantia dos

    direitos fundamentais.

    Referncias bibliogrficas

  • BARRETO, Vicente de Paulo. Direitos humanos e sociedades

    multiculturais. In: Anurio do Programa de Ps-Graduao em Direito:

    Mestrado e Doutorado. So Leopoldo: Unisinos. 2003.

    BEDIN, Gilmar Antonio. Direitos humanos e desenvolvimento:

    algumas reflexes sobre a constituio do direito ao desenvolvimento. In:

    Curso de direito internacional contemporneo: estudos em homenagem ao

    Prof. Dr. Lus Ivani de Amorim Arajo pelo seu 80 aniversrio. Coord. DEL

    OLMO, Florisbal de Souza. Rio de Janeiro: Forense. 2003.

    BIELEFELDT, Heiner. Filosofia dos direitos humanos. Traduo:

    Dankwart Bernsmuller. So Leopoldo: Unisinos. 2000.

    BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus.

    1992.

    BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. So Paulo:

    Malheiros. 1999.

    GORCZEVSKI, Clovis. Direitos humanos e cidadania. In: Direitos

    sociais e polticas pblicas: desafios contemporneos. Org. LEAL, Rogrio

    Gesta; REIS, Jorge Renato dos. Santa Cruz do Sul: Edunisc. 2004.

    GRANZIERA, Maria Luiza Machado. A cobrana pelo uso da gua.

    In: Revista CEJ/Conselho da Justia Federal, Centro de Estudos Judicirios.

    n. 12. Braslia: CEJ. 2000.

    HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos: o breve sculo XX: 1914-

    1991. Traduo: Marcos Santarrita. So Paulo: Companhia das Letras. 1996.

    LEITE, Paulo Roberto Saraiva da Costa. gua, bem mais precioso

    do milnio. In: Revista CEJ/Conselho da Justia Federal, Centro de Estudos

    Judicirios. n. 12. Braslia: CEJ. 2000.

    PILAR, Carolina Villar. O direito humano gua. Disponvel em:

    http://www.cori.unicamp.br/CT2006/trabalhos/O%20DIREITO%20HUMANO

    %20a%20aGUA.doc. Acesso em: 02 de novembro de 2006.

    RIVERO, Oswaldo de. O mito do desenvolvimento: os pases

    inviveis no sculo XXI. Traduo: Ricardo Anbal Rosenbusch. Petrpolis:

    Vozes. 2002.

    SACHS, Ignacy. Desenvolvimento: includente, sustentvel,

    sustentado. Rio de Janeiro: Garamond. 2004.

  • SARLET, Ingo Wolfgang. A eficcia dos direitos fundamentais.

    Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2006.