direito fundamental do trabalho (godinho)

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    DIREITOS FUNDAMENTAISNA RELAO DE TRABALHO1

    Maurcio Godinho Delgado2

    Resumo: Estudo do conceito de direitos fundamentais, sua matriz nahistria da democracia e das constituies contemporneas. Integraodos direitos fundamentais do trabalho no conceito de direitos funda-mentais constitucionais. Ncleo dos direitos fundamentais do trabalhona ordem jurdica trabalhista. Efetividade dos direitos fundamentaisdo trabalho no Brasil e possibilidades de sua expanso s relaes detrabalho no sentido genrico.

    Palavras-chave: Direitos fundamentais. Direitos fundamentais do trabalho.Expanso dos direitos fundamentais do trabalho.

    Abstract: The study of the concept of fundamental rights, its matrix inthe history of democracy and modern constitutions. The integration ofthe labor fundamental rights in the concept of the fundamental constitu-tional rights. The core of labor fundamental rights in the juridical labororder. The effectiveness labor fundamental rights in Brazil and possibili-

    ties of its expansion to the relations of work in the generic sense.Keywords: Fundamental rights. Labor fundamental rights. Expansion of thelabor fundamental rights.

    1 DIREITOS FUNDAMENTAIS: MATRIZES ANALTICAS

    Direitos fundamentaisso prerrogativas ou vantagens jurdicas es-

    truturantes da existncia, armao e projeo da pessoa humanae de sua vida em sociedade.

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    Direitos fundamentais na relao de trabalho

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    conceito recente na Histria, cuja primeira manifestao re-levante se vericou nas revolues polticas de ns do sculo XVIII(Estados Unidos da Amrica: 1776; Frana: 1789) que, pioneiramente,

    incorporaram as idias dos lsofos e polticos iluministas preceden-tes ou de seus contemporneos (Voltaire, Montesquieu, Rousseau,Diderot, Benjamin Franklin, por exemplo). Evidentemente, de algummodo, esta primeira manifestao tambm pode ser encontrada na jento consolidada tradio inglesa de restrio poltico-institucionalaos poderes do soberano.

    O rol inicial daquilo que, posteriormente, seria chamado de direi-tos fundamentaisera, entretanto, restrito, quer no plano de seu prprioconceito, quer no plano de sua projeo na sociedade. Envolvia liber-dades essencialmente individuais (de manifestao, de reunio, delocomoo, de escolha de atividade econmico-prossional), ao ladode restries ao poder poltico institucionalizado (liberdades civis epolticas, basicamente).

    Tambm era signicativo o fato de esse rol dirigir-se estritamenteaos integrantes das elites sociais, econmicas e polticas, no contem-plando a grande maioria dos integrantes das respectivas sociedades.

    Nessa linha, o leque inicial dos chamados direitos fundamentaisno chegava a introduzir efetiva inovaona histria humana. quej existiram experimentos sociopolticos de grande participao daselites na vida econmica, social e poltica da correspondente sociedade,como ilustrado por Atenas da Antiguidade clssica.

    Desse modo, o conceito de direitos fundamentais somente adqui-riu relevncia e consistncia e seu prestgio cultural recente com

    o advento da inovadora incorporao, em sua matriz, dos vastos seg-mentos socioeconmicos destitudos de riqueza que, pela primeiravez na Histria, passaram a ser sujeitos de importantes prerrogativase vantagens jurdicas no plano da vida em sociedade.

    Esse fato decisivo e indito somente iria ocorrer a partir dasegunda metade do sculo XIX, na experincia principalmenteeuropia. No por coincidncia, ele se confunde com o adventodo Direito do Trabalho.

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    Matrizes Analticas

    O conceito de direitos fundamentais e, por conseqncia, direitos

    fundamentais do trabalho pode ser examinado sob duas ticas rele-vantes: de um lado, sob o ponto de vista scio-histrico e poltico, emespecial em face da noo e desenvolvimento da democracia; de outrolado, sob o ponto de vista da dogmtica jurdica, especialmente no to-cante s cartas constitucionais dos Estados contemporneos. No Brasil,essa perspectiva encontra seu pice na atual Constituio da Repblica.

    2 DIREITOS FUNDAMENTAIS E DEMOCRACIA

    Sob a tica da noo e desenvolvimento da democracia no Ociden-te, o conceito e a realidade dos direitos fundamentais, notadamente dotrabalho, coincidem com a armao mxima j conhecida na histriado capitalismo das estruturas e prticas democrticas no seio do Estadoe da sociedade civil.

    A democracia, como regime diferenciado na vida humana, aptoa combinar regras de liberdade e igualdade na convivncia social,distinguiu-se por conferir, pioneiramente, na Histria, poder a gran-des segmentos de indivduos e grupos sociais destitudos de riqueza.Jamais anteriormente na Histria houve sistema institucional que assegurasse

    poder aos segmentos sociais destitudos de riqueza. Tal sistema comeou aser construdo nos pases de capitalismo central apenas a contar da se-gunda metade do sculo XIX, institucionalizando-se, contudo, somenteao longo do sculo XX; atingiu seu pice, por m, no perodo seguinte Segunda Guerra Mundial mesmo permanecendo estruturalmente

    desigual a sociedade circundante.No por coincidncia, a construo da democracia ocidental fez-se

    em sintonia com a construo do prprio Direito do Trabalho, atingindoseu clmax com o perodo de incorporao constitucional dos direitosfundamentais do trabalho, no ps-guerra, na Europa Ocidental.

    O Direito do Trabalho consolidara-se, respeitadas as peculiarida-des nacionais europias, como o patamar fundamental de armao dacidadania social da grande maioria das pessoas que participavam dosistema econmico, mediante a oferta de seu labor e, nessa medida, veioa se constituir em um dos principais instrumentos de generalizao da

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    democracia no plano daquelas sociedades. que o Direito do Trabalhose mostrou, por dcadas, um dos mais ecientes e disseminados me-canismos de distribuio de renda e de poder no plano da sociedade

    capitalista: distribuio de renda principalmente por meio das normasreguladoras do contrato de emprego (Direito Individual do Trabalho);distribuio de poder por meio das normas e dinmicas inerentes aoDireito Coletivo Trabalhista, embora, normalmente, as duas dimensesdesse ramo jurdico atuassem do modo combinado.

    Nesse contexto, a noo histrica de direitos fundamentais dotrabalho aproxima-se da prpria noo de Direito do Trabalho.

    3 DIREITOS FUNDAMENTAIS E CONSTITUIO

    Embora o fenmeno da constitucionalizao do Direito do Tra-balho tenha se iniciado ao nal da segunda dcada do sculo XX, serapenas aps a Segunda Guerra Mundial, com as novas constituiesdemocrticas da Frana, Alemanha e Itlia (e, dcadas depois, Portu-gal e Espanha), que a noo de direitos fundamentais do trabalho sesolidicou na seara constitucional. Tais Cartas Magnas, relativamenterecentes, no somente ampliaram a insero de regras trabalhistas emseu interior, como tambm e principalmente consagraram princpiosde direta ou indireta vinculao com a questo trabalhista.

    Nesse plano, por exemplo, oprincpio da dignidade da pessoa hu-mana com necessria dimenso social, da qual o trabalho seu maisrelevante aspecto , ao lado do princpio da subordinao da propriedade sua funo socioambiental, alm doprincpio da valorizao do trabalho e,

    em especial, do emprego, todos expressam o ponto maior de armaoalcanado pelo Direito do Trabalho na evoluo constitucional dosltimos sculos.

    No Brasil, esse pice de armao constitucional encontra-se naCarta de 1988, como se sabe. Ali todos esses princpios, a par de outrostambm relevantes, espraiam-se pelo corpo constitucional, conferindouma das marcas mais distintivas de tal constituio perante as demaisj existentes na Histria do Pas.

    Na verdade, so quatro os principais princpios constitucionaisarmativos do trabalho na ordem jurdico-cultural brasileira: o da

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    valorizao do trabalho, em especial do emprego; o dajustia social; o dasubmisso da propriedade sua funo socioambiental; e o princpio da dig-nidade da pessoa humana.

    Trata-se de efetivos princpios constitucionais do trabalho. Soeminentemente constitucionais, no apenas porque reiteradamente en-fatizados no corpo normativo da Carta Magna de 1988, mas sobretudopor fazerem parte do prprio ncleo losco, cultural e normativodaConstituio. So princpios que acentuam a marca diferenciadora daCarta de 1988 em toda a Histria do Pas e de todo o constitucionalismobrasileiro, aproximando tal Constituio dos documentos juspolticosmximos das sociedades e Estados mais avanados, no plano jurdico,na Europa Ocidental.

    claro que alguns deles justia social, submisso da proprieda-de sua funo socioambiental, dignidade da pessoa humana noconcentram efeitos exclusivamente ou essencialmente apenas no planotrabalhista, uma vez que produzem repercusses para mltiplas sea-ras jurdicas, econmicas, sociais e culturais. Mas todos, sem dvida,atingem de maneira exponencial a dimenso laborativa da existnciahumana e social.3

    Valorizao do Trabalho

    A valorizao do trabalho um dos princpios cardeais da ordemconstitucional brasileira democrtica. Reconhece a Constituio a es-sencialidade da conduta laborativa como um dos instrumentos maisrelevantes de armao do ser humano, quer no plano de sua prpriaindividualidade, quer no plano de sua insero familiar e social.

    A centralidade do trabalho, na vida pessoal e comunitria daampla maioria das pessoas humanas, percebida pela Carta Magna,que, com notvel sensibilidade social e tica, erigiu-a como um pilarde estruturao da ordem econmica, social e, por conseqncia, cul-tural do Pas.

    Sabiamente, instituiu a Constituio que o trabalho, em especialo regulado, assecuratrio de certo patamar de garantias ao obreiro, o mais importante veculo (se no o nico) de armao comunitriada grande maioria dos seres humanos que compem a atual sociedade

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    capitalista, sendo, desse modo, um dos mais relevantes (se no o maiordeles) instrumentos de armao da Democracia na vida social.

    medida que democracia consiste na atribuio de poder tambma quem destitudo de riqueza ao contrrio das sociedades estritamen-te excludentes de antes do sculo XIX, na Histria , o trabalho assume ocarter de ser o mais relevante meio garantidor de um mnimo de podersocial grande massa da populao, que destituda de riqueza e de ou-tros meios lcitos de seu alcance. Percebeu, desse modo, com sabedoria,a Constituio a falcia de instituir a democracia sem um correspondesistema econmico-social valorizador do trabalho humano.

    A valorizao do trabalho est repetidamente enfatizada pelaCarta Constitucional de 1988. Desde seu Prembulo essa armaodesponta. Demarca-se, de modo irreversvel, no anncio dos Princ-pios Fundamentais da Repblica Federativa do Brasil e da prpriaConstituio (Ttulo I). Especica-se, de maneira didtica, ao tratar dosdireitos sociais (arts. 6 e 7) quem sabe para repelir a tendnciaabstracionista e excludente da cultura juspoltica do Pas. Concretiza-se, por m, no plano da Economia e da Sociedade, ao buscar reger aOrdem Econmica e Financeira (Titulo VII), com seus PrincpiosGerais da Atividade Econmica (art. 170), ao lado da Ordem Social(Ttulo VIII) e sua Disposio Geral (art. 193).

    A Constituio no quer deixar dvidas, pois conhece, h scu-los, os olhos e ouvidos excludentes das elites polticas, econmicas esociais brasileiras: o trabalho traduz-se emprincpio,fundamento, valore direito social.

    A demonstrao normativa das determinaes constitucionais bas-

    tante transparente. J em seu Prembulo, a Constituio dispe-se a

    [...] instituir um Estado Democrtico, destinado a assegu-rar o exerccio dos direitos sociais e individuais, a liberdade,a segurana, o bem-estar, odesenvolvimento, aigualdadee a

    justia comovalores supremos de uma sociedade fraterna,pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia sociale comprometida, na ordem interna e internacional, com asoluo pacca das controvrsias [...] (grifo nosso).

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    Em seu Ttulo I (Dos Princpios Fundamentais), a Constituioxa seremfundamentosda Repblica Federativa do Brasil, ao lado deoutros, a dignidade da pessoa humanae os valores sociais do trabalhoe da

    livre iniciativa (art. 1, III e IV).No mesmo ttulo, estabelece a Carta Magna, em seu art. 3:

    Constituem objetivos fundamentaisda Repblica Federativado Brasil:I construir uma sociedade livre, justa e solidria;II garantir o desenvolvimento nacional;III erradicar a pobreza e a marginalizao e reduzir as desi-

    gualdades sociaise regionais;IV promover o bem de todos, sem preconceitos de ori-gem, raa, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas dediscriminao (grifo nosso).

    O enquadramento didtico do trabalho como direito social est expli-citado no art. 6 da Constituio, concretizando-se em inmeros direitosque se listam no art. 7. Perceba-se, a propsito, que esse enquadramento

    no reduz, normativamente, o patamar de armao do trabalho (deprincpio, valor e fundamento para direito social); ele claramente deveser compreendido como um acrscimo normativo e doutrinrio feitopela Constituio, de modo a no deixar dvida de que o trabalho ocu-pa, singularmente,todas as esferas de armao jurdica existentes no planoconstitucional e do prprio universo jurdico contemporneo.

    Ao tratar da Ordem Econmica e Financeira e dos PrincpiosGerais da Atividade Econmica (Ttulo VII, Captulo I, art. 170), a

    Constituio dispe que a ordem econmica [...]fundada na valoriza-o do trabalho humanoe na livre iniciativa (grifo nosso). Fundamentoe valorizao, a um s tempo, como se nota. Estabelece ainda a CartaMagna que tal ordem econmica

    [...] tem por m assegurar a todosexistncia digna, con-forme os ditames da justia social, observados os seguintes

    princpios:I soberania nacional;II propriedade privada;III funo social da propriedade;

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    IV livre concorrncia;V defesa do consumidor;VI defesa do meio ambiente;

    VII reduo das desigualdadesregionais esociais;VIII busca do pleno emprego;IX tratamento favorecido para as empresas de pequenoporte constitudas sob as leis brasileiras e que tenham suasede e administrao no Pas (grifo nosso).

    Por m, ao tratar da Ordem Social, em sua Disposio Geral,a mesma Constituio reenfatiza que a [...] ordem social tem comobase oprimado do trabalho, e como objetivo o bem-estare ajustia sociais(Ttulo VIII, Captulo I, art. 193, grifo nosso).

    Registre-se, em concluso, que os ttulos que tratam da ordemeconmica e da ordem social na Carta Mxima tambm conferem aotrabalho o status de objetivo e nalidade de tais ordens concretas davida humana e comunitria. Com isso, a Constituio completa feixenormativo incomparvel no corpo e sentido de suas disposies.

    Valorizao do Trabalho Regulado: emprego

    A tradio abstracionista e excludente da cultura juspoltica doPas pode sentir-se tentada a enxergar, nos comandos constitucionais,referncia estrita noo de trabalho, mas no de trabalho regulado,isto , aquele submetido a um feixe jurdico de protees e garantiasexpressivas. No caso da histria do capitalismo ocidental, inclusiveno Brasil, a regulao mais abrangente e sosticada do trabalho situa-se no empregoe sua relao socioeconmica e jurdica especca, o

    vnculo empregatcio.Efetivamente, excludas modalidades autnomas de labor su-

    mamente especializado e, por conseqncia, valorizado no sistemaeconmico, a oferta de trabalho no capitalismo, inclusive o brasileiro,tende a no gerar para o prestador de servios vantagens econmicase protees jurdicas signicativas, salvo se induzidas ou impostas taisprotees e vantagens pela norma jurdica interventora na respectivacontratao. O complexo mais sosticado dessas normas jurdicas

    encontra-se, classicamente, no Direito do Trabalho, essencialmenteregulatrio da relao de emprego.

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    O emprego, regulado e protegido por normas jurdicas, desponta,desse modo, como o principal veculo de insero do trabalhador naarena socioeconmica capitalista, visando a propiciar-lhe um patamar

    consistente de armao individual, familiar, social, econmica e, atmesmo, tica. bvio que no se trata do nico veculo de armaoeconmico-social da pessoa fsica prestadora de servio, uma vez que,como visto, o trabalho autnomo especializado e valorizado tambmtem esse carter. Mas, sem dvida, trata-se do principal e mais abran-gente veculo de armao socioeconmica da ampla maioria daspessoas humanas na desigual sociedade capitalista.

    Por tais razes, a correta leitura constitucional do princpio da va-lorizao do trabalho conduz noo de valorizao do trabalho regulado,o qual, no capitalismo, confunde-se, basicamente, com emprego. Nessequadro, que melhor se compreende a postura constitucional de, nocontexto da regulao da Ordem Econmica e Social (Ttulo VII), nocaptulo regente dos Princpios Gerais da Atividade Econmica, terxado como princpio [...] a busca do pleno emprego (art. 170, VIII).

    Justia Social

    A Constituio Democrtica Brasileira erige a justia social comoum de seus fundamentos, um de seus princpios bsicos. Em seuTtulo I, Dos Princpios Fundamentais, refere-se aos [...] valoressociais do trabalho e da livre iniciativa (art. 1, IV), rmando entre osobjetivos fundamentais da Repblica [...] construir uma sociedadejusta e solidria [e] erradicar a pobreza e a marginalizao e reduziras desigualdades sociais e regionais (art. 3, I e III). Em coerncia

    submete, logo a seguir, o direito de propriedade [...] sua funosocial (art. 5, XXIII).

    Como se no bastasse, no ttulo que trata da ordem econmica enanceira (n VII), xa a Carta Magna osprincpios gerais da atividadeeconmica, (re)enfatizando o comando jurdico de justia social. Aordem econmica,fundada na valorizao do trabalho humanoe na livreiniciativa, tem por m assegurar a todos existncia digna, conforme osditames da justia social, observados os seguintesprincpios: [...] III

    funo socialda propriedade; [...] VII reduo das desigualdadesregionaisesociais; VIII busca dopleno emprego (art. 170; grifo nosso).

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    No ttulo seguinte (n VIII), que trata da ordem social, estabelece, comodisposio geral, que a [...] ordem social tem como base o primado do trabalho,e como objetivoobem-estare ajustia sociais (art. 193, grifo nosso).

    Nota-se que a Constituio de 1988, mais uma vez com grandeatualidade, incorporou o notvel avano na concepo dejustia social,que se deslocou do simples, embora instigante, conceito de iderio,para o conceito maior deprincpio, isto , comando jurdico instigador doordenamento do Direito e das relaes sociais.

    desnecessrio enfatizar que a constitucionalizao do ideriode justia social, como princpio, produz-lhe mudana de natureza,

    imantando-lhe dos poderes normativos concorrentes prprios a esseselementos integrantes do Direito.

    Registre-se que o princpio da justia social dispe que, inde-pendentemente das aptides, talentos e virtudes individualizadas,cabe s pessoas humanas acesso a utilidades essenciais existentes nacomunidade.

    O princpio rene, em sua frmula ampla e imprecisa (a qual cer-tamente responde por seu sucesso nos ltimos dois sculos), todas as

    vertentes que entendem, em maior ou menor extenso, que a realizaomaterial das pessoas no passa apenas por sua aptido individual debem se posicionar no mercado capitalista. Esta realizao materialdepende tambm de fatores objetivos externos ao indivduo, os quaisdevem ser regulados ou instigados por norma jurdica.

    Admite-se que a expresso tem indissimulvel sentido redun-dante: anal, todo mecanismo de justia, como instrumento de gestointerindividual ou de grupos, j tem, por si mesmo, carter social.

    No obstante esse defeito formal em sua expresso reveladora, aidia de justia social alcanou prestgio na cultura contempornea,como frmula sintetizadora das diversas concepes que se opem regncia exclusiva do mercado econmico na realizao individual,material e social das pessoas. medida que o Direito do Trabalho a prpria armao de algumas dessas concepes (j que esseramo traduz uma interveno normativa na regulao meramentebilateral das relaes trabalhistas), o princpio da justia social age

    como um comando instigador ao desenvolvimento e avano desseramo jurdico especializado.

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    Submisso da Propriedade sua Funo Socioambiental

    A Constituio da Repblica brasileira, em consonncia com os

    princpios da valorizao do trabalho e da justia social a par doprprio princpio constitucional mximo, da dignidade da pessoa hu-mana , reconhece o sistema capitalista no Pas, a propriedade privadados meios de produo e de qualquer bem material ou imaterial, mas,inqestionavelmente, submete tal propriedade sua funo social e,na mesma medida, funo ambiental.

    A submisso da propriedade sua funo socioambiental, aomesmo tempo em que arma o regime da livre iniciativa, enquadra-o,

    rigorosamente, em leito de prticas e destinaes armatrias do serhumano e dos valores sociais e ambientais. inconstitucional, paraa Carta Mxima, a anttese o lucro ouas pessoas; a livre iniciati-va e o lucro constitucionalmente reconhecidos e, nessa medida,protegidos so aqueles que agreguem valor aos seres humanos, convivncia e aos valores da sociedade, higidez do meio ambientegeral, inclusive o do trabalho.

    A pura e simples espoliao do trabalho, a degradao das relaessociais, o dumping socialcongurado pela informalidade laborativa oupelo implemento de frmulas relacionais de acentuada desproteoe despojamento de direitos, a depredao do meio ambiente, todasso condutas ilcitas para a ordem constitucional do Brasil emboramuitas vezes, toleradas ocialmente, quando no mesmo instigadaspor normas ou prticas oriundas do prprio Estado.4

    O princpio da submisso da propriedade sua funo socioambien-tal est claro na Carta Magna, em distintos momentos normativos.

    J no Ttulo II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais), em seuCaptulo I, tratando dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos,xa o art. 5 ser [...] garantido o direito de propriedade (inciso XXII),ressalvando-se, no inciso imediatamente seguinte, XXIII, que [...] apropriedade atender a sua funo social.

    O Ttulo VII (Da Ordem Econmica e Financeira), em seu Cap-tulo I (Dos Princpios Gerais da Atividade Econmica), no art. 170,

    estabelece claramente o mencionado princpio:

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    Art. 170 A ordem econmica, fundada na valorizaodo trabalho humano e na livre iniciativa, tem por m as-segurar a todos existncia digna, conforme os ditames da

    justia social, observados os seguintes princpios:I soberania nacional;II propriedade privada;III funo social da propriedade;IV livre concorrncia;V defesa do consumidor;VI defesa do meio ambiente;VII reduo das desigualdades regionais e sociais;VIII busca do pleno emprego;IX tratamento favorecido para as empresas de pequenoporte constitudas sob as leis brasileiras e que tenham suasede e administrao no Pas.

    O princpio da submisso da propriedade sua funo socioam-biental novamente enfatizado pela Constituio, no instante em queesta trata da ordem social (Ttulo VIII). Aqui, cuidadosamente, a CartaMagna vincula o meio ambiente ordem social (Captulo VI, art. 225),enquadrando em seu conceito tambm o meio ambiente do trabalho(Ca-

    ptulo II, art. 200, II e VIII).Oua-se o comando objetivo da Constituio, em seu Ttulo VIII

    (Da Ordem Social) e respectivo Captulo VI (Do Meio Ambiente):Art. 225 Todos tm direito ao meio ambiente ecologicamente equili-brado, bem de uso comum do povo e essencial sadia qualidade de vida,impondo-se ao Poder Pblico e coletividade o dever de defend-lo epreserv-lo para as presentes e futuras geraes.

    No mesmo Ttulo VIII, tratando da ordem social, no Captulo II,referente Seguridade Social, em sua Seo II, relativa normatizaoda sade, ca explicitada a vinculao do meio ambiente do trabalho realidade maior do meio ambiente geral: Art. 200 Ao sistema nicode sade compete, alm de outras atribuies, nos termos da lei: [...] II executar as aes de vigilncia sanitria e epidemiolgica, bem como asde sade do trabalhador; VIII colaborar na proteo do meio ambiente,nele compreendido o do trabalho.

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    Dignidade da Pessoa Humana

    O princpio da dignidade da pessoa humana traduz a idia de que

    o valor central das sociedades, do Direito e do Estado contemporneos a pessoa humana, em sua singeleza, independentemente de seu statuseconmico, social ou intelectual. O princpio defende a centralidade daordem juspoltica e social em torno do ser humano, subordinante dosdemais princpios, regras, medidas e condutas prticas.

    Trata-se do princpio maior do Direito Constitucional contempor-neo, espraiando-se, com grande intensidade, no que tange valorizaodo trabalho.

    O princpio da centralidade da ordem jurdica, poltica e social noser humano resulta de conquista cultural recentssima, atada ao desen-volvimento da Democracia na histria dos ltimos duzentos anos eefetivamente manifestada apenas a partir de meados do sculo XX. Anoo de que o valor central das sociedades a pessoa humana, em suasingeleza e independentemente de sua riqueza ou status social, um dos avan-os jurdicos mais notveis na histria juspoltica da humanidade.

    disso que trata o princpio da dignidade da pessoa humana, al-ado, hoje, ao ncleo dos sistemas constitucionais mais democrticos.Nessa posio, tornou-se, de fato, [...] o epicentro de todo o ordena-mento jurdico 5(FLRES-VALDS, 1990, p. 149).

    Uma das pioneiras e certamente a mais importante, por seu im-pacto cultural referncias ao princpio consta da Declarao Universaldos Direitos do Homem, de 10-12-1948, aprovada pela Assemblia Ge-ral da ONU, em Paris. Ali se fala da dignidade da pessoa humana [...]

    como base da liberdade, da justia e da paz (SILVA, 2000, p. 167).De fato, o Prembulo da Declarao inicia-se com meno dignidade: Considerando que o reconhecimento da dignidade inerentea todos os membros da famlia humanae de seus direitos iguais e inalien-veis o fundamento da liberdade, da justia e da paz do mundo [...].E seu primeiro artigo tambm se constri com suporte nesse funda-mento: Todos os homens nascem livres e iguais em dignidadee direitosso dotados de razo e conscincia e devem agir em relao uns aos

    outros com esprito de fraternidade. Mais frente (art. XXIII, 3), aDeclarao ainda vincularia a dignidade humana ao trabalho: Todohomem que trabalha tem direito a uma remunerao justa e satisfatria,

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    que lhe assegure, assim como sua famlia, uma existncia compatvelcom a dignidade humana, e a que se acrescentaro, se necessrio, outrosmeios de proteo social.6

    A partir dessa poca, depois da Segunda Guerra Mundial, o princ-pio passaria a compor o ncleo basilar de grande parte das constituiesdemocrticas construdas.

    A Constituio da Alemanha, de 1949, abria-se, em seu art. 1,estabelecendo: A dignidade do homem inviolvel. Consider-lae proteg-la obrigao de todo poder estatal7 (LEDUR, 1998, p.84). A Carta Magna Lusitana, de 1976, em seu art. 1, tambm dispe

    que Portugal uma Repblica soberana, baseada na dignidade dapessoa humana [...]. E a Constituio espanhola, de 1978, por suavez, estabelece que A dignidade da pessoa, os direitos inviolveisque lhe so inerentes, [...] so fundamento da ordem poltica e dapaz social (art. 10).8

    No Brasil, a primeira Constituio a mencionar o tema foi a de1946. Contudo no se referiu dignidade como fundamento geral davida social e poltica, relacionando-a apenas com o trabalho: A todos

    assegurado trabalho que possibilite existncia digna [...], dispunhao art. 145, pargrafo nico, no ttulo que tratava da Ordem Econmicae Social. Alm da circunscrio limitada da referncia, ela no conferiastatus de fundamento ou princpio dignidade humana na ordemjuspoltica e social do Pas.

    As constituies autocrticas de 1967 e 1969 (esta, produto denova redao, dada pela Emenda Constitucional n 1) mantiveram ameno dignidade da pessoa humana, circunscrita rea do trabalho.

    A ordem econmica e social tem por m realizar o desenvolvimentonacional e a justia social, com base nos seguintes princpios: [...] II valorizao do trabalho como condio da dignidade humana (art.160, CF/1969).

    A Constituio Democrtica de 1988 absolutamente inovadora,na tradio brasileira, nesse aspecto. De fato, alou o princpio dadignidade da pessoa humana, na qualidade de princpio prprio, aoncleodo sistema constitucional do Pas e aoncleode seu sistema

    jurdico, poltico e social. Passa a dignidade a ser, portanto, princpio(logo, comando jurdico regente e instigador). Mas no s: princpiofundamental de todo o sistema jurdico.

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    Em seu art. 1, no Ttulo I, tratando dos princpios fundamen-tais, a Lei Mxima estabelece que a Repblica Federativa do Brasil,formada pela unio indissolvel dos Estados e Municpios e do Distrito

    Federal, constitui-se em Estado Democrtico de Direito e tem comofundamentos: [...] III a dignidade da pessoa humana (grifo nosso).No mesmo ttulo, art. 3, est insculpido que [...] constituem objetivosfundamentais da Repblica Federativa do Brasil: [...] I construir umasociedadelivre, justa e solidria trs requisitos essenciais de garantiada dignidade humana.

    No Ttulo VII, que trata da Ordem Econmica e Financeira, aoxar os Princpios Gerais da Atividade Econmica, o art. 170 tambmse reporta dignidade do ser humano: A ordem econmica, fundadana valorizao do trabalho humano e da livre iniciativa, tem por massegurar a todos existncia digna, conforme os ditames da justia social[...] (grifo nosso).

    A dignidade humana passa a ser, portanto, pela Constituio,fundamento da vida no Pas, princpio jurdico inspirador e normativo e,ainda, m, objetivo de toda a ordem econmica.

    Note-se que o art. 170 arrola, ademais, diversos princpios fun-damentais que servem ao objetivo de perseguir, diuturnamente, [...]assegurar a todos existncia digna.

    Finalmente, ao tratar da Ordem Social, a Carta Magna rmauma das dimenses essenciais da dignidade da pessoa humana, suadimenso social: Art. 193 A ordem social tem como base o primadodo trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justia sociais.

    A Constituio brasileira, como visto, incorporou o princpio da

    dignidade humana em seu ncleo e o fez de maneira absolutamenteatual. Conferiu-lhe status multifuncional, mas combinando unitaria-mente todas as suas funes:fundamento,princpioe objetivo. Assegurou-lhe abrangncia a toda a ordem jurdica e a todas as relaes sociais.Garantiu-lhe amplitude de conceito, de modo a ultrapassar sua visoestritamente individualista em favor de uma dimenso social e comu-nitria de armao da dignidade humana.

    Insista-se que, para a Constituio Democrtica brasileira, a dig-

    nidade do ser humano ca lesada, caso este se encontre privado deinstrumentos de mnima armao social. Como ser social, a pessoa

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    humana tem assegurada, por esse princpio iluminador e normativo,no apenas a intangibilidade de valores individuais bsicos, comotambm um mnimo de possibilidade de armao no plano comu-

    nitrio circundante. Alm de suas diversas outras relevantes dimen-ses, o princpio da dignidade do ser humano repele, conforme bemexposto por Flrez-Valdz (1990, p. 149), [...] a negao dos meiosfundamentais para seu desenvolvimento como pessoa ou a imposiode condies infra-humanas de vida.

    Tudo isso signica que a idia de dignidade no se reduz, hoje,a uma dimenso estritamente particular, atada a valores imanentes personalidade e que no se projetam socialmente. Ao contrrio, o quese concebe inerente dignidade da pessoa humana tambm, ao ladodessa dimenso estritamente privada de valores, a armao social do serhumano. A dignidade da pessoa ca, pois, lesada, caso ela se encontreem uma situao de completa privao de instrumentos de mnimaarmao social. Na medida dessa armao social que desponta otrabalho, notadamente o trabalho regulado, em sua modalidade maisbem elaborada, o emprego.

    Conforme se percebe por essa matriz constitucional to enfti-ca, o conceito de direitos fundamentais do trabalho, mais uma vez,confunde-se com o Direito do Trabalho, por ter este se armado, clas-sicamente, como o patamar mais elevado de valorizao do trabalhodas grandes maiorias populacionais ao longo de toda a histria dahumanidade.

    4 DIREITOS FUNDAMENTAIS DO TRABALHO:

    ABRANGNCIAOs direitos fundamentais do trabalho, na vertente histria da

    democracia no Ocidente e na matriz constitucional mais avanada,inclusive no plano da atual Constituio da Repblica brasileira,confundem-se com o Direito do Trabalho, principalmente em seu planoregulatrio do contrato bilateral entre empregador e empregado (a parde outros trabalhadores legalmente especicados como os porturios-avulsos, por exemplo). que esse plano normativo de regulao docontrato de emprego assegura o mais elevado padro de armaodo valor-trabalho e da dignidade do ser humano em contextos de

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    contratao laborativa pela mais ampla maioria dos trabalhadores nasociedade capitalista.

    evidente que no se est falando do trabalho altamente sostica-do, que se oferta indistintamente no mercado de labor por prossionaisaptos a preservarem sua autonomiaao longo da prestao laborativa. Demaneira geral, tais prossionais autnomos jamais tiveram (na maioriadas vezes, sequer necessitaram, sob qualquer tica) um direito especiala regular suas vinculaes com os tomadores de servios nem nahistria capitalista dos pases centrais, nem na histria brasileira.

    Est-se falando, evidentemente, das grandes camadas populacio-

    nais de pessoas que ingressam na vida econmico-social por meio daoferta subordinada, pessoal, no eventual e onerosa de seus servios,as quais formam, segundo o padro europeu (padro percentual que,certamente, aplicvel a pases como o Brasil), mais de 80% das pessoaseconomicamente ocupadas no mercado de trabalho. Est-se falandodas grandes massas da populao, das grandes maiorias, dos novosseres humanos e cidados contemplados, desde ns do sculo XIX e,principalmente, no sculo XX, pela democracia.

    No Brasil, esse padro est dado por distintos princpios e regrasnormativas. Em primeiro plano, as regras e princpios trabalhistasinseridos na Constituio da Repblica. Ilustrativamente, em seuPrembulo, em seus Princpios Fundamentais arts. 1 a 4 , emalgumas dimenses normativas de seu art. 5; nos arts. 6 e 7, espe-cicadores de inmeros direitos sociais fundamentais. Tambm estpresente em certos dispositivos de Direito Coletivo, regulatrios dedireitos fundamentais, constantes dos arts. 8 at 11 (embora aqui no se

    possa dizer, evidentemente, que todo o modelo coletivo constitucional,inclusive na parte de clara inspirao e dinmica no necessariamentedemocrticas, corresponda a direito fundamental do trabalho).

    O conceito de direito fundamental do trabalho, contudo, volta aestar presente, sem dvida, na Constituio, por meio dos princpios,valores e fundamentos das ordens econmica e social, que sejam ar-mativos da dignidade da pessoa humana e da valorizao do trabalho. o que se passa, por exemplo, com o art. 170 (Princpios Gerais da

    Atividade Econmica), com o art. 193 (Disposio Geral relativa Ordem Social), com os arts. 196 e 197, alm do art. 200, II e VIII (todostratando da sade), tambm com o art. 205 (tratando da educao), alm

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    dos arts. 225 e 227, que tratam das garantias a crianas e adolescentesno Pas (em acrscimo regra protetora j lanada no art. 7, XXXIII,da mesma Constituio).

    Os direitos fundamentais do trabalho esto dados tambm pelostratados e convenes internacionais subscritos pelo Brasil, [...] naquiloque no reduzam o patamar de garantias asseguradas internamenteno prprio pais (art. 5, 2, CF/88).

    Tais direitos fundamentais do trabalho tambm constam, eviden-temente, da legislao heternoma estatal, a qual completa o padromnimo de civilidade nas relaes de poder e de riqueza inerentes

    grande maioria do mercado laborativo prprio ao capitalismo (caputdo art. 7, CF/88).

    5 DIREITOS FUNDAMENTAIS E RELAO DE EMPREGO:EFETIVIDADE

    O reconhecimento da estrutura e eccia jurdicas dos direitosfundamentais do trabalho, no caso brasileiro, no signica atestar sua

    efetividade em sntese, sua eccia social.Ao contrrio, no Brasil, sempre foi cuidadosamente tecida umaestratgia elitista muito coerente ao longo da Repblica (sem tocar emtodo o perodo escravagista anterior) de segregao das mais amplascamadas da populao de qualquer padro signicativo de civilidadenas relaes de trabalho.

    Neste quadro, mesmo o mais abrangente perodo de generalizaodas leis trabalhistas da poca republicana perodo tambm caracte-

    rizado por forte represso poltico-ideolgica, como se sabe no semostrou desconectado dessa estratgia elitista. De fato, a ditaduraVargas, embora tenha generalizado o Direito do Trabalho para o setorurbanizado da sociedade brasileira, teve o cuidado de deixar no limbojurdico simplesmente a exponencial maioria da populao do Pas,uma vez que no estendeu a legislao trabalhista ao campo. Noobstante, formalmente, essa extenso tenha se iniciado dcadas depois,com o Estatuto do Trabalhador Rural de 1963 (Lei n. 4.414/63), na pr-

    tica, no se consumou sequer mais de 40 anos aps a dcada de 1930,j que o Estado no possua aparelho estruturado para tornar efetivatal regulao dos contratos laborativos. Nem o Ministrio do Traba-

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    lho e, muito menos, a Justia do Trabalho (e, em nenhuma medida, oMinistrio Pblico do Trabalho) chegaram a ter presena signicativano campo brasileiro at os anos 80 do sculo XX.

    Com a transferncia macia da populao rural para a zona ur-bana, acelerada desde os anos 60 at atingir o percentual de 80% deurbanizao em ns da dcada de 1990, tal processo secular de segre-gao poderia ter sido rompido ou, pelo menos, atenuado. No foi,porm, o que se passou.

    que a dcada de 1990 assistiu a uma espantosa rearmao daclssica estratgia de segregao social das grandes massas do mercado

    de trabalho brasileiro, de modo a no estender o Direito do Trabalho,regulatrio dos contratos bilaterais entre empregador e empregados, grande maioria dopessoal ocupado(terminologia da Pnad, do IBGE)do mercado laborativo do Pas.

    A renovao da tradicional e eciente estratgia de concentraode renda deu-se, de um lado, pelo crescente desprestgio das regrasjurdicas regentes dos contratos de emprego no desenrolar da dcadade 1990, como tambm pela adoo diversicada de modalidades

    antigas, renovadas e, at mesmo, inovadoras de desregulao e/ouprecarizao trabalhistas.

    O resultado da rearmao dessa clssica estratgia concentra-cionista de renda resultou no fato de o Pas ostentar um ndice de for-malizao do trabalho empregatcio pessoas regidas pelo Direito doTrabalho em torno de apenas 30% do pessoal ocupado (pesquisa Pnad/IBGE, 2001), em contraponto a ndices superiores a 80% caractersticosde importantes pases europeus (Frana e Alemanha, por exemplo).

    Para a democracia brasileira, portanto, to relevante quanto cor-reta identicao dos direitos fundamentais do trabalho, ser sua realefetividade. Eis um desao jamais proposto democracia brasileira, emsua histria, at ns do sculo XX. Provavelmente, um dos maioresdesaos para a construo democrtica neste incio do sculo XXI.

    6 A EC N. 45/2004 E A AMPLIAO DA ABRANGNCIADOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO TRABALHO

    A Emenda Constitucional n. 45, de dezembro de 2004, concreti-zando a chamada reforma do Judicirio, ampliou o foco da competncia

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    da Justia Especializada para as aes oriundas da relao de trabalho, eno mais simplesmente relao de emprego.

    Essa modicao amplia a abrangncia do conceito de direitosfundamentais do trabalho, de modo a atingir as demais relaes detrabalho no empregatcias? Para responder a essa pergunta, ne-cessrio delimitar, ainda que rapidamente, a extenso do conceito derelao de trabalho.

    Relao de Trabalho: delimitao

    Nesta delimitao, importante reconhecer certas conquistas inter-

    pretativas da racionalidade jurdica nos meses seguintes reforma.A mais importante delas parece ser a excluso das relaes de con-

    sumodo mbito das chamadas relaes de trabalho, mantendo-se aquelesvnculos na competncia da Justia Comum Estadual.

    a) Relaes de Consumo

    O fundamento para a diferenciao entre os dois vnculos jurdi-

    cos e respectivas competncias judiciais tambm constitucional(almda distncia resultante da estrutura jurdica dos dois ramos jurdicoscomparados). Anal, a Carta Magna reporta-se aos vnculos de con-sumo e a seu direito especializado de modo muito prximo JustiaComum Estadual, estruturando um sistema de efetividade jurisdicionalminucioso e eciente nessa direo.

    Nessa linha, consultar, ilustrativamente e de maneira conjugada, os seguintes preceitos da Constituio: art. 5, XXXII o Estado

    promover, na forma da lei, a defesa do consumidor; art. 170, V (ca-ptulo sobre os princpios gerais da atividade econmica): instituicomo princpio da ordem econmica a defesa do consumidor; art. 48,ADCT-CF/88: determina a elaborao clere do Cdigo de Defesado Consumidor (Lei n. 8.078, de 1990 que, em seu art. 5, IV, nocontexto da Poltica Nacional das Relaes de Consumo, prev a[...] criao de Juizados de Pequenas Causas e Varas Especializadaspara a soluo de litgios de consumo); art. 98: determina Unio,

    DF, Territrios e Estados a criao de juizados especiais, para causascveis de menor complexidade e infraes penais de menor potencial

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    ofensivo (Lei n. 9.099/95: Juizados Especiais Cveis e Criminais; Lein. 10.259/2001: Juizados Especiais Cveis e Criminais no mbito daJustia Federal); arts. 125 e seguintes tratam da Justia Estadual,

    no mencionando competncia (exatamente por esta sergerale resi-dual, ao passo que a competncia dos outros ramos do Judicirio ,necessariamente, especializada).

    Observados os princpios, regras e institutos dos dois ramos ju-rdicos comparados, percebe-se que Direito do Trabalho e Direito doConsumidor tm como trao comum, em sua relao material bsica, oenfoque protetivo quanto ao economicamente fraco, trabalhador (em-pregado) e consumidor. Em conseqncia, a razo de existir essencialdesses dois ramos jurdicos , sem dvida, aproteo ao hipossuciente.A propsito, no foi por outra razo que o CDC se construiu comodiploma legal de concepo, estrutura e comandos jurdicos muitoprximos queles inerentes ao ramo justrabalhista clssico

    Mas tm os dois segmentos normativos especializados como traosdiferenciais a circunstncia de a relao consumerista ser, de maneirageral, espordica (embora possa ser, tambm, contnua), alm de en-volver qualquer sujeito de direito, inclusive pessoa jurdica.

    Ora, o sistema judicial de proteo ao hipossuciente trabalhadorest muito bem estruturado na Justia do Trabalho, ao passo que osistema judicial de proteo ao consumidor tambm est muito bemestruturado na Justia Comum. No haveria fundamento consistentepara a Constituio que tambm erige a celeridade e a efetividadedo processo judicial como direito e princpio fundamentais (art. 7,LXXVIII) e a ecincia como princpio de estruturao e funcionamento

    do Estado (art. 37, caput) ignorar a racionalizao e a especializaoj consolidadas nesses segmentos judiciais.

    Alm disso, o Direito do Consumidor, regra geral, lana sua tutelajurdica sobre o destinatrio da mercadoria ou do servio alienados eno sobre seu prestador, em contraponto com o Direito do Trabalho querma sua tutela jurdica sobre o prestador laborativo. Nessa dimenso,os dois ramos se chocam, produzindo o Direito do Consumidor, casoconfundido com o Direito do Trabalho, perigosa desconstruo das

    razes de existncia do segmento juslaborativo especializado.

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    Todos esses riscos foram afastados com a manuteno, pela CartaMagna, da fronteira institucional entre Justia Comum Estadual e Jus-tia do Trabalho, no que tange anlise das relaes consumeristas.

    b) Relaes de Pessoa Jurdica

    Outra importante conquista interpretativa da racionalidadejurdica, nesses poucos meses seguintes reforma do Judicirio, aexcluso das relaes de prestao de servios por pessoa jurdica do mbitodo conceito de relaes de trabalho.

    Aqueles vnculos se mantm, portanto, na competncia da Justia

    Comum Estadual (ou Federal, se for o caso de competncia em razoda pessoa).

    A expresso agregada pela EC n. 45/2004, instituindo a compe-tncia material da Justia do Trabalho (art. 114, I, CF/88: [...] aesoriundas da relao de trabalho), abrange, desse modo, somenteprestaes de labor porpessoa natural.

    evidente que isso no signica que no se possa em determinadalide como clssico dinmica processual trabalhista investigar a

    verdadeira relao entre as partes, percebendo-se, na pessoa jurdica,um mero simulacro de vnculo jurdico efetivo de uma pessoa naturalprestadora de servio para algum tomador.

    Tambm evidente que a ampla expresso constitucional (aesoriundas da relao de trabalho) afasta antigas ressalvas processuaisno tocante responsabilizao de pessoas jurdicas em lides oriundasda relao de trabalho.

    c) Delimitao da Relao de Trabalho

    Efetivadas estas duas excluses (relaes de consumo e prestaesde servios por efetivas pessoas jurdicas), constata-se a amplitude danova expresso constitucional (sem embargo do respeito ao debateacerca de outras excluses, porm de menor relevncia).

    Neste contexto, retoma-se a pergunta central deste tpico: o alar-gamento da competncia da Justia do Trabalho, de modo a abranger

    aes oriundas da relao de trabalho, tem o condo de alargar aamplitude do conceito de direitos fundamentais do trabalho, a m deatingir as demais relaes de trabalho no empregatcias?

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    Direitos Fundamentais para todo o trabalho?

    A idia de extenso da noo e contedo jurdicos dos direitos

    fundamentais do trabalho a toda modalidade de trabalho humano parece,em uma primeira anlise, atraente.

    Anal, por que no tratar de modo igualitrio, juridicamente, to-dos os seres humanos que despendem energia em prol da elaboraode bens e servios? No concretizaria essa extenso, de maneira maisadequada, o conceito bsico de justia?

    No obstante o aparente carisma dessa proposio, ela deve serdebatida melhor. Em primeiro lugar, os experimentos que o legisladortem feito, nas ltimas dcadas, no Ocidente e neste pas, de alargamentode certo esturio de direitos trabalhistas para, supostamente, fora dasfronteiras da relao de emprego, tm se destacado como artifcios dedesregulamentao e/ou exibilizao trabalhistas. Em sntese, comoa anttese ao alargamento dos direitos fundamentais, erigindo-se, naverdade, como mecanismo em prol de sua pulverizao.

    Nesses vrios experimentos, tm-se atenuado o enquadramento

    da clssica relao de emprego, criando-se situaes supostamentenovas de contratao trabalhista, com direitos mais restritos do queos tradicionalmente assentados. No se desconhece que as situaesespecialmente reguladas so, efetivamente, empregatcias; porm,mediante artifcios normativos, confere-se a elas tratamento jurdicomenos favorvel.

    o que usualmente se tem feito com o trabalhador jovem (no Brasilj se chegou a admitir o salrio-mnimo de menores, abaixo do modesto

    padro geral do Pas, em certo perodo do regime autoritrio ps-1964!).Nesse grupo, englobam-se os trabalhadores sujeitos aprendizagem(contrato especial que hoje pode se estender at os 23 anos! Lei n.11.180/2005; art. 428, CLT) e os trabalhadores estagirios (que no tmlimite etrio, a propsito).

    o que se tem feito com os inmeros incentivos contratao atermo articialmente estimulada, na dcada de 1990, na Espanha,na Argentina e no Brasil, por exemplo (neste pas, mediante o pacto

    precrio da Lei n. 9.601/98). o que tambm, reiteradamente, se sugere realizar com respeito

    a certos empregadores, como, ilustrativamente, os micros e pequenos

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    empresrios (projeto de lei, regulador da Micro e da Pequena Empresa,atualmente em exame do Congresso Brasileiro, prev direitos maisrestritos para os respectivos empregados).

    Tais experimentos de precarizao trabalhistas tm, de um modoou de outro, se tornado recorrentes nos pases ocidentais nas ltimasdcadas, como se sabe.

    A idia de extenso dos direitos fundamentais a todo tipo de tra-balho, se no manejada com sensatez e prudncia, poderia, simplesmente,agregar fora tendncia de desregulamentao e exibilizao doDireito do Trabalho. que essa extenso tenderia a supor, por bvio,

    a diminuio do rol de tais direitos, em face das inmeras especici-dades dos distintos segmentos de prestadores de servios ( evidenteque seria invivel estender todosos direitos fundamentais trabalhistas auma pessoa fsica que realizasse seus servios de maneira efetivamenteautnoma e impessoal, no tocante aos respectivos tomadores).

    Em segundo lugar, o valor-trabalho armou-se na histria docapitalismo por doiscaminhos principais, porm sumamente distintos,construdos em face da diferenciao substantiva de realizao desse

    valor. No parece correto simplesmente se desconhecer a relevnciade tal diferenciao.

    H, de um lado, o trabalho livre, autnomo e signicativamente es-pecializado, mediante o qual o prestador detm parte signicativa dosmeios de sua prpria produo. A reunio dessas duas circunstnciasno mesmo indivduo torna bastante vivel sua maior e melhor ar-mao no contexto socioeconmico circundante (armao que podeviabilizar, inclusive, a incorporao, a seu favor, de outras modalidades

    de prestao laborativa, realizada por outros trabalhadores).A propsito, esse tipo de trabalho livre nunca necessitou, ao longo

    da Histria, de ramo jurdico especializado para sua tutela, uma vezque tendia (e tende) a se armar, no plano econmico-social, por suasprprias foras. Geralmente correspondeu a estratos reduzidos da socie-dade, porm detentores de razovel poder socioeconmico, comercian-tes e artistas das sociedades antigas e medievais, efetivos prossionaisliberais e congneres da sociedade capitalista contempornea.

    O elogio ao valor-trabalho, que caracterstico essencialmente domundo contemporneo, alterou o statusdesses prossionais, retirando-

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    os dos intertcios das velhas sociedades e colocando-os no seio dosnovos segmentos hegemnicos, porm no lhes fez caudatrios denenhum ramo jurdico especializado, uma vez que o clssico Direito

    Civil lhes fornecia a tutela jurdica essencial.No parece, desse modo, pertinente falar em extenso de direitos

    fundamentais laborativos a este segmento socioeconmico especco.

    verdade que existe, de outro lado, o trabalho livre, mas subor-dinado, caracterstico, regra geral, de segmentos sociais destitudosde riqueza. Esse tipo de labor generalizou-se apenas na sociedadee economia recentes, uma vez que a grande massa de trabalhadores

    era, anteriormente, nos sistemas pr-capitalistas, escrava ou servil. Aliberdade desses trabalhadores subordinados lhes permitiu, ao longoda Histria capitalista, agregar-se e se organizar; com isso, tornaram-se capazes de pressionar seus tomadores de servios, no plano dasociedade civil, pressionando tambm o Estado, de modo a alcanar aelaborao de ramo jurdico especializado que lhes conferisse efetivaarmao no plano socioeconmico e cultural.

    Construiu-se, em conseqncia, o Direito do Trabalho no mundo

    ocidental, a partir de ns do sculo XIX ramo jurdico que hoje jrepresenta o pice dos direitos fundamentais no mundo laborativo.

    Extenso de Direitos

    Postas essas ressalvas, no se pode desconsiderar a real existnciade relaes de trabalho subordinadas, mas que, efetivamente, no seenquadram no tipo jurdico do labor empregatcio e que, por isso,situam-se fora do Direito do Trabalho e de seu patamar civilizatriobsico. Relaes vivenciadas por prestadores de servios destitudosda fora competitiva dos autnomos clssicos acima mencionados oque torna tais trabalhadores reais hipossucientes, ao mesmo tempoem que apartados do ramo jurdico trabalhista de proteo (o que ossegrega a constrangedor limbo jurdico).

    O caso brasileiro tpico corresponde aos trabalhadores eventuais(no exatamente os porturios-avulsos, que, tradicionalmente, em vir-tude de sua alta organizao poltico-sindical, conquistaram o mantonormativo prprio do Direito do Trabalho).

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    Direitos fundamentais na relao de trabalho

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    No tocante aos efetivos trabalhadores eventuais (ao lado decerta frao hipossuciente dos autnomos), possvel imaginar-sea construo de um processo extensivo dos direitos fundamentais

    trabalhistas, embora evidentemente adequados especicidade detais relaes laborativas. Algo como um patamar jurdico essencial,que lhes assegurasse um direito fundamental ao trabalho digno,conforme tese elaborada por Gabriela Neves Delgado (2006).

    7 AVANO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DOTRABALHO

    No obstante a possibilidade de um caminho extensivo dos di-reitos fundamentais a certas relaes de trabalho no empregatcias caminho submetido a importantes riscos e desaos, como aqui ex-posto , parece claro que a via mais factvel e eciente para o avanodos direitos fundamentais do trabalho passa pelo prprio alargamentodesse ramo jurdico especializado.

    No se trata somente da pura e simples busca de efetividade doDireito do Trabalho processo que, em pases como o Brasil, j produ-ziria impressionante impacto socioeconmico e cultural; trata-se, sim,da efetiva ampliao da base de incidncia desse ramo normativo.

    O que se prope uma adequao renovao, talvez em certoconceito especco desse campo do Direito, de modo a melhor adapt-lo dinmica do mercado de trabalho contemporneo. Tal adaptaopoderia permitir, a um s tempo, alargar o campo de incidncia jusla-borativa, alm de conferir resposta normativa ecaz a alguns de seus

    mais recentes instrumentos desestabilizadores.Est-se falando do conceito de subordinao, inerente relaode emprego.

    Como se sabe, o conceito de subordinao hoje dominante o quea compreende como a situao jurdica, derivada do contrato de em-prego, em decorrncia da qual o trabalhador acata a direo laborativaproveniente do empregador. uma situao jurdica que se expressapor meio de certa intensidade de ordens oriundas do poder diretivo

    empresarial, dirigidas ao empregado.

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    Maurcio Godinho Delgado

    Revista de Direitos e Garantias Fundamentais- n 2, 2007

    Em paralelo a essa conceituao hegemnica, construiu o Direitodo Trabalho noo ampliativa desse elemento integrante da relaode emprego, denominando-a de subordinao objetiva.

    A subordinao objetiva, ao invs de se manifestar pela intensida-de de comandos empresariais sobre o trabalhador (conceito clssico),despontaria da simples integrao da atividade laborativa obreira nosnsda empresa. Com isso, reduzia-se a relevncia da intensidade deordens, substituindo o critrio pela idia de integrao aos objetivosempresariais.

    Embora vlido o intento da construo terica da subordinao

    objetiva, ela no se consolidou, inteiramente, na rea jurdica, porser frmula desproporcional s metas almejadas. Tal noo, de fato,mostrava-se incapaz de diferenciar, em distintas situaes prticas, oreal trabalho autnomo e o labor subordinado, principalmente quandoa prestao de servios se realizavafora da planta empresarial, mesmoque relevante para a dinmica e ns da empresa.

    Noutras palavras, a desproporo da frmula elaborada, tendentea enquadrar como subordinadas situaes ftico-jurdicas eminente-

    mente autnomas, contribuiu para seu desprestgio.A readequao conceitual da subordinao sem perda de consis-

    tncia das noes j sedimentadas, claro , de modo a melhor adaptaresse tipo jurdico s caractersticas contemporneas do mercado detrabalho, atenua o enfoque sobre o comando empresarial direto, acen-tuando, como ponto de destaque, a insero estrutural do obreiro nadinmica do tomador de seus servios.

    Estrutural , pois, a subordinao que se manifesta pela insero

    do trabalhador na dinmica do tomador de seus servios, indepen-dentemente de receber (ou no) suas ordens diretas, mas acolhendo,estruturalmente, sua dinmica de organizao e funcionamento.

    A idia de subordinao estruturalsupera as diculdades de enqua-dramento de situaes fticas que o conceito clssico de subordinaotem demonstrado, diculdades que se exacerbaram em face, especial-mente, do fenmeno contemporneo da terceirizao trabalhista. Nessamedida, ela viabiliza no apenas alargar o campo de incidncia do

    Direito do Trabalho, como tambm conferir resposta normativa ecaza alguns de seus mais recentes instrumentos desestabilizadores emespecial, a terceirizao.

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    Direitos fundamentais na relao de trabalho

    Revista de Direitos e Garantias Fundamentais- n 2, 2007

    Direitos Fundamentais: instrumentos de ampliao

    O processo de avano dos direitos fundamentais nas relaes

    de trabalho permite se vislumbrarem, em sntese, trs importantescaminhos que podem (e devem) se concretizar de maneira harm-nica e combinada: a) de uma parte, pela contnua e crescente busca deefetividade do prprio Direito do Trabalho ramo que consiste, semdvida, no mais elevado patamar jurdico j atingido pelos prestadoresde servio subordinados na sociedade capitalista; b) de outra parte,pelo alargamento da prpria abrangncia desse segmento jurdico, emespecial mediante a reconstruo do conceito do mais relevante ele-

    mento integrante da relao de emprego, a subordinao; c) nalmente,pela construo de um processo extensivo dos direitos fundamentaistrabalhistas a determinados vnculos no empregatcios, ainda querespeitada a necessria adequao dessa matriz jurdica especicidadede tais relaes trabalhistas lato sensu.

    REFERNCIAS

    BRASIL. Constituio [da] Repblica Federativa do Brasil. 11. ed. So Paulo:Revista dos Tribunais, 2006.

    CHOMSKY, Noam. O lucro das pessoas? Neoliberalismo e ordem global. Riode Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

    DELGADO, Gabriela Neves. Direito fundamental ao trabalho digno. SoPaulo: LTr, 2006.

    DELGADO, Maurcio Godinho. Princpios de direito individual e coletivo

    do trabalho. 2. ed. So Paulo: LTr, 2003.FLORZ-VALDZ, Joquim Arce y. Los princpios generales del derecho ysu fornulacin constitucional. Madrid: civitas, 1990.

    FRANCO FILHO, Georgenor de Souza (Org.). Tratados internacionais. SoPaulo: LTr, 1999.

    LEDR, Jos Felipe. A realizao do direito do trabalho. Porto Alegre: SAFE,1998.

    SILVA, Jos Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. So Paulo:Malheiros, 2000.

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    Maurcio Godinho Delgado

    NOTAS

    1 Palestra realizada no XI Congresso Nacional dos Procuradores do Trabalho,

    em Braslia/DF, em 25-3-2006.2 Doutor em Filosoa do Direito (UFMG, 1994); mestre em Cincia Poltica

    (UFMG, 1980); desembargador federal do Trabalho (TRT: 3 Regio MinasGerais); professor de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da PUC-Minas; autor das obras: Curso de direito do trabalho(6 edio, So Paulo:LTr, 2007); capitalismo, trabalho e emprego:entre o paradigma da destruio e oscaminhos de reconstruo (So Paulo: LTr, 2006) e de outros livros e artigosnessa rea temtica.

    3

    O presente estudo sobreprincpios constitucionais do trabalho, constante desteitem, foi retirado, essencialmente, do Captulo II da obra deste autor, emsua 2 edio, Princpios de direito individual e coletivo do trabalho (SoPaulo: LTr, 2003, p. 32-73).

    4 Noam Chomsky publicou importante livro intitulado com a anttese acimaexposta: O lucro ou as pessoas? neoliberalismo e ordem global. Rio de

    Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.5 Diz Flrez-Valdz (1990, p. 149) que [...] a dignidade da pessoa implica

    situar o ser humano no epicentro de todo o ordenamento jurdico.6 Texto retirado da coletnea de documentos internacionais organizada

    por FRANCO FILHO, Georgenor de Souza, Tratados Internacionais, SoPaulo: LTR, 1999, p. 406-412, grifo nosso.

    7 O autor sustenta que a Carta Magna Alem foi a que [...] pela vez primeiracuidou de atribuir dignidade da pessoa humana ostatusde princpio edireito fundamental (loc.cit.).

    8 As referncias a essas constituies democrticas so retiradas de JosFelipe Ledur, 1998, p. 84.