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Revista Expedições: Teoria da História & Historiografia V. 5, N.2, Julho-Dezembro de 2014 53 ROMANTISMO, SATTELZEIT, MELANCOLIA E “CLIMA HISTÓRICO” (STIMMUNG) Marcelo de Mello Rangel 20 RESUMO: Nosso argumento é: 1 Gonçalves de Magalhães e os primeiros Românticos em geral escreveram suas poesias e artigos no interior do “tempo histórico” moderno, em especial do Sattelzeit (17501850), e, 2 Suas reflexões são constituídas no Sattelzeit e são determinadas por um “clima histórico” que chamamos de melancólico, o que significa dizer um horizonte caracterizado por sentimentos como a contrição, cautela e medo radicais, a desesperança e o pessimismo, e, no limite, o desespero em relação à existência humana, num sentido mais amplo, e ao futuro do Império do Brasil, mais especificamente. Assim, dividiremos nosso texto em 3 partes. No primeiro momento, discutiremos as noções de “tempo histórico” e de Sattelzeit. Logo em seguida, analisaremos os temas “clima histórico”, “clima histórico” no Império do Brasil, e, por fim, na terceira parte, tematizaremos o pessimismo no interior da poesia de Magalhães, historicizandoo, ou seja, descrevendoo como próprio ao seu “tempo histórico”, a modernidade, e ao seu “clima histórico” melancólico. PALAVRASCHAVE: Romantismo. Gonçalves de Magalhães. Melancolia. Sattelzeit. ROMANTICISM, SATTELZEIT, MELANCHOLY AND ATMOSPHERE (STIMMUNG) ABSTRACT: Our argument is: 1 Gonçalves de Magalhães and the first Romantics wrote his poems and articles within the modern "historical time", especially the Sattelzeit (17501850), and, 2 His reflections are given in Sattelzeit and are determined by a "historical climate" we call melancholy, which means one horizon characterized by feelings of contrition, caution and extreme fear, hopelessness and pessimism, and, ultimately, despair about human existence, in a broader sense, and the future of the Empire of Brazil, more specifically. Thus, we will divide our text into 3 parts. At first, we discuss the notions of "historical time" and Sattelzeit. After, we will analyze the themes "historic climate", "historic climate" in the Empire of Brazil, and, finally, in the third part, we will thematizing the pessimism within the poetry of Gonçalves de Magalhães, historicizing it, or describing it as its own "historical time", the modernity, and its "historic climate" melancholy. KEYWORDS: Romanticism. Gonçalves de Magalhães. Melancholy. Sattelzeit 20 Professor do Departamento de História e do Programa de PósGraduação em História da Universidade Federal de Ouro Preto UFOP. Este texto foi apresentado no “III Congresso Internacional de Filosofía de la Historia: Dimensiones de la Experiencia Histórica”, na Universidade de Buenos Aires UBA, no ano de 2012, por isto conserva algumas características próprias a uma comunicação. Agradeço aos meus caros Eduardo Henrique Barbosa de Vasconcelos da UEG e Alexandre de Sá Avelar da UFU pela amizade e diálogo. Email: [email protected] . Artigo submetido em 28/08/2014 e aceito para publicação em 12/12/2014.

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Período Regencial e Clima histórico

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  • Revista Expedies: Teoria da Histria & Historiografia V. 5, N.2, Julho-Dezembro de 2014

    53

    ROMANTISMO,SATTELZEIT, MELANCOLIA E CLIMA HISTRICO (STIMMUNG)

    Marcelo de Mello Rangel20

    RESUMO: Nosso argumento : 1 Gonalves de Magalhes e os primeiros Romnticos em geral escreveram suas poesias e artigos no interior do tempo histrico moderno, em especial do Sattelzeit (17501850), e, 2 Suas reflexes so constitudas no Sattelzeit e so determinadas por um clima histrico que chamamos de melanclico, o que significa dizer um horizonte caracterizado por sentimentos como a contrio, cautela e medo radicais, a desesperana e o pessimismo, e, no limite, o desespero em relao existncia humana, num sentido mais amplo, e ao futuro do Imprio do Brasil, mais especificamente. Assim, dividiremos nosso texto em 3 partes. No primeiro momento, discutiremos as noes de tempo histrico e de Sattelzeit. Logo em seguida, analisaremos os temas clima histrico, clima histrico no Imprio do Brasil, e, por fim, na terceira parte, tematizaremos o pessimismo no interior da poesia de Magalhes, historicizandoo, ou seja, descrevendoo como prprio ao seu tempo histrico, a modernidade, e ao seu clima histrico melanclico.

    PALAVRASCHAVE: Romantismo. Gonalves de Magalhes. Melancolia. Sattelzeit. ROMANTICISM,SATTELZEIT,MELANCHOLYANDATMOSPHERE(STIMMUNG)

    ABSTRACT: Our argument is: 1 Gonalves de Magalhes and the first Romantics wrote his poems and articles within the modern "historical time", especially the Sattelzeit (17501850), and, 2 His reflections are given in Sattelzeit and are determined by a "historical climate" we call melancholy, which means one horizon characterized by feelings of contrition, caution and extreme fear, hopelessness and pessimism, and, ultimately, despair about human existence, in a broader sense, and the future of the Empire of Brazil, more specifically. Thus, we will divide our text into 3 parts. At first, we discuss the notions of "historical time" and Sattelzeit. After, we will analyze the themes "historic climate", "historic climate" in the Empire of Brazil, and, finally, in the third part, we will thematizing the pessimism within the poetry of Gonalves de Magalhes, historicizing it, or describing it as its own "historical time", the modernity, and its "historic climate" melancholy.

    KEYWORDS: Romanticism. Gonalves de Magalhes. Melancholy. Sattelzeit

    20 Professor do Departamento de Histria e do Programa de PsGraduao em Histria da Universidade Federal de Ouro Preto UFOP. Este texto foi apresentado no III Congresso Internacional de Filosofa de la Historia: Dimensiones de la Experiencia Histrica, na Universidade de Buenos Aires UBA, no ano de 2012, por isto conserva algumas caractersticas prprias a uma comunicao. Agradeo aos meus caros Eduardo Henrique Barbosa de Vasconcelos da UEG e Alexandre de S Avelar da UFU pela amizade e dilogo. Email: [email protected]. Artigo submetido em 28/08/2014 e aceito para publicao em 12/12/2014.

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    Sobre o tempo histrico moderno e o SattelzeitTempo histrico, de acordo com Koselleck, significa um conjunto especfico de

    homens, ideias, instituies e prticas, reunidos a partir de um sentido fundamental. Segundo

    o historiador alemo, um tempo histrico nasce a partir da crise de um sentido fundamental.

    Foi justo isto que ocorreu por volta do sculo XV, em linhas gerais, quando o sentido

    fundamental Deus entra em crise, ou seja, no mais capaz de organizar os homens de forma

    imediata (transcendental). Esse o incio do tempo histrico moderno ou da modernidade,

    se preferirmos.

    O tempo histrico moderno se inicia, ento, a partir de uma crise especfica, da

    quebra do valor de verdade do sentido Deus, ou ainda, da perda de sua imediatidade, ou de

    sua vigncia no tematizada. Na modernidade, o sentido Deus ainda orientava os homens, no

    entanto, nem todos os homens e nem sempre de forma imediata, e, a um s tempo, nenhum

    sentido ganhara valor de verdade , ao menos at a primeira metade do sculo XIX, quando sedestacam as instituies Estado e Histria , e os homens, por conseguinte, experimentavam uma crise no que diz respeito s relaes entre si, e, num sentido mais amplo, no que

    concerne delimitao e organizao do real.

    Em linhas gerais, o tempo histrico moderno fora determinado por uma ausncia

    de sentidos imediatos suficientes organizao do mundo, e isto porque o prprio mundo se

    movera/transformara de forma radical, tornando precrios os sentidos disponveis at ento,

    movimento que Koselleck chama de atualizao do futuro enquanto aindano21. O que temos, assim, a reduo do espao de experincia, o qual no reunia um repertrio

    adequado s conjunturas inditas que iam sendo experimentadas.

    No interior do tempo histrico moderno, ainda de acordo com Koselleck, houve um

    momento de radicalizao dessa experincia de desorganizao do mundo, o Sattelzeit. A

    experincia do Sattelzeit estendeuse, em linhas gerais, entre 1750 e 1850, e pode ser caracterizada por uma acelerao profunda do tempo, ou seja, pela multiplicao de

    acontecimentos e conjunturas inditas para as quais os homens em geral no reuniam 21 fundamental ressaltar que a atualizao do futuro enquanto aindano, ou ainda, o movimento de diferenciao do horizonte histrico, explicado por Koselleck como sendo provocado pelos prprios homens, ou ainda, pela tenso e atualizao, necessrias, de suas determinaes ontolgicas ou metahistricas experincia e expectativa. Como podemos ler: Mas nossos dois conceitos no se encontram apenas na execuo concreta da histria, na medida em que a fazem avanar. Como categorias, eles fornecem as determinaes formais que permitem que o nosso conhecimento histrico decifre essa execuo. Eles remetem temporalidade do homem, e com isto, de certa forma metahistoricamente, temporalidade da histria. (KOSELLECK, 2006, p. 309. Grifo nosso)

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    sentidos suficientes. Se, ao longo dos primeiros sculos da modernidade, at mais ou menos

    1750, o Estado fora capaz de ocupar o espao de relevncia at ento prprio Igreja,

    produzindo sentidos e orientaes significativos atravs do mtodo prognstico, no Sattelzeit,

    o prprio Estado e os prognsticos perdem parte de sua fora organizacional.

    Explicando melhor: Ao longo dos primeiros sculos da modernidade o Estado foi

    capaz de orientar os homens mesmo que reconhecendo os limites dos sentidos que ele mesmo

    disponibilizava, e isto atravs dos prognsticos. O prognstico um estudo, uma investigao

    do passado a partir do presente, orientado pela compreenso de que o futuro seria, em ltima

    instncia, indito e imprevisvel. Tratase de um mtodo que reconhece seus limites e, no obstante, insiste na tarefa de disponibilizar sentidos prprios organizao do mundo, ou

    ainda, antecipao dos homens em relao ao futuro enquanto aindano. Ele percorre o seguinte caminho: a partir da investigao do presente, dos sentidos que vigem no presente,

    passa anlise do passado, buscando identificar, nele, no passado, a vigncia desses sentidos

    que se estenderam at o presente, que mantiveram, mais ou menos, seu potencial de

    organizao do mundo at o presente, a despeito de acontecimentos inditos e imprevisveis.

    Caso tenha sucesso, caso encontre no passado sentidos fundamentais organizao do mundo

    no presente, resta, ento, a possibilidade, apenas a possibilidade, desses sentidos que

    permaneceram significativos, apesar da irrupo de acontecimentos inditos, continuarem

    vigendo no futuro. Assim, em tempos de crise, ao longo do tempo histrico moderno, os

    homens iam se orientando e se reorganizando.

    O que ocorre, no entanto, que entre os anos de 1750 e 1850, no Sattelzeit, houve

    uma acelerao ainda mais profunda no que tange ao acontecimento dessas conjunturas

    maximamente inditas, elas passaram a se constituir/a irromper umas aps as outras muito

    rapidamente, expondo os homens a relaes at ento maximamente inditas, dificultando a

    produo e a prpria confiana nos prognsticos. Em outras palavras, os homens em geral j

    no encontravam mais em seus presentes a estabilidade mnima necessria anlise e

    compreenso de sentidos vigentes que poderiam ter se mantido fundamentais desde o

    passado, resistindo a um conjunto de transformaes significativas, tornandose, assim, possivelmente capazes de resistir, uma vez mais, a novas conjunturas que irrompessem no

    futuro. Ou ainda, no se tinha tempo para insistir, como antes, em prognsticos, e mais, as

    prprias transformaes eram to intensas e incessantes que se passou a crer que algo mais

    propriamente novo (dotado de sentido) estava (quase) comeando a se concretizar, de modo

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    que no seria mais to adequado propor investigaes prognsticas a partir do passado

    (KOSELLECK, 2006, p. 205327). Esta acelerao profunda afasta ainda mais o espao de experincia do horizonte

    de expectativas, ou seja, um repertrio de sentidos especfico que organizara certa vez o

    mundo e a sua fora de organizao em relao s novas conjunturas que se conformavam

    incessantemente. Assim, os homens se encontravam expostos a conjunturas maximamente

    inditas e no possuam sentidos adequados compreenso e organizao dessas

    conjunturas, cada vez mais frequentes e instantneas.

    O Sattelzeit significa, ento, uma espcie de mundo desorganizado ou para utilizar

    um termo caro a Durkheim um momento de anomia, de ausncia de sentidos e regras

    capazes de organizar os homens entre si, no interior do qual os homens no se encontravam

    propriamente preparados para agir de forma adequada e solucionar os desafios inditos que

    iam sendo colocados por esse presente instantneo. Nesse momento da modernidade, os

    homens em geral encontramse receosos e contritos (gravemente preocupados/desconfiados), por um lado, em muitos casos pessimistas e desesperanados, por outro, e at, no limite,

    desesperados, o que produz uma atmosfera ou um clima histrico especfico o da

    melancolia. nesse tempo histrico que Gonalves de Magalhes e os primeiros Romnticos

    encontramse, e por esse clima histrico melanclico, prprio modernidade, que eles so orientados. Passamos, assim, ao nosso segundo ponto, anlise do clima histrico.

    Clima histrico (Stimmung)Nosso segundo objeto de investigao o clima histrico (Stimmung). Clima

    histrico um termo utilizado por filsofos e historiadores como Heidegger, Hans Ulrich

    Gumbrecht e Valdei Lopes de Arajo. Esse termo uma traduo possvel da palavra alem

    Stimmung, que pode significar tambm: atmosfera, tonalidade afetiva, sentimento, pthos,

    entre outros.

    Utilizamos a noo de clima histrico tambm a partir das reflexes de Martin

    Heidegger, compreendendoo, em linhas gerais, como uma espcie de mbito sentimental constitudo historicamente, no interior/ou a partir da experincia de um determinado tempo

    histrico, capaz de orientar de forma significativa pensamentos e aes.

    Dizendo ainda em outras palavras, um clima histrico o mesmo que um conjunto

    de sentimentos especfico que se sedimentam e se tornam transcendentais no interior de um

  • Revista Expedies: Teoria da Histria & Historiografia V. 5, N.2, Julho-Dezembro de 2014

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    tempo histrico determinado, podendo se reconstituir de acordo com acontecimentos

    histricos e experincias do tempo.

    Por exemplo: A Revoluo Francesa e as Rebelies Regenciais, estas ltimas ao longo

    dos anos 30 do sculo XIX, no Imprio do Brasil. Estes acontecimentos aprofundaram a

    acelerao do tempo experimentada ao longo do tempo histrico moderno quer na Europa

    quer no Imprio do Brasil, tornando possvel a experincia radical da acelerao do tempo que

    Koselleck chamou de Sattelzeit. Eles contriburam para o aparecimento incessante de situaes

    inditas para as quais os homens, na Europa e no Imprio do Brasil, no possuam um

    repertrio de solues adequado, o que os levou a insistir em um conjunto amplo

    (radicalmente aberto) de significados e sentidos maximamente inditos, alis, justo por esse

    motivo, homens como Bernardo Pereira de Vasconcelos, que haviam participado da chamada

    revoluo liberal do 7 de abril, junto a Feij e a Evaristo da Veiga tendo, ele tambm, participado deste movimento de intensificao (ou experimentao) de determinados

    significados e sentidos maximamente inditos liberados pela Revoluo Francesa, por exemplo

    se empenharam em realizar o regresso conservador, ou ainda, como afirmara o prprio Bernardo, ento contrito e profundamente cauteloso foi preciso buscar no estrangeiro a experincia que nos faltava, a atuao irresistvel que ento exerciam sobre ns as ideias, as

    instituies e os costumes franceses... mas era chegada a hora de frear a revoluo, o que o

    fizera afirmar em 1838: "Fui liberal, ento a liberdade era nova para o pas, estava nas

    aspiraes de todos, mas no nas leis, no nas ideias prticas; o poder era tudo, fui liberal.

    Hoje, porm, diverso(apud CARVALHO, 1999.)22.

    A exposio de Bernardo Pereira de Vasconcelos, que poderia ser ratificada pelas

    reflexes de um Justiniano Jos da Rocha, atravs de seu panfleto Ao, reao e transao,

    publicado em 1855, evidencia (resguardando seu tom teleolgico) que o Perodo Regencial (e

    mesmo boa parte da dcada de 20) fora um momento de acelerao profunda do tempo,

    provocada pela adeso e concretizao das ideias e sentidos liberados a partir de

    acontecimentos como a Revoluo Francesa, a Independncia dos Estados Unidos, a

    Revoluo Industrial e as independncias na Amrica Latina. Multiplicaramse jornais que discutiam temas disponibilizados por estes acontecimentos, intensificando e provocando

    circunstncias maximamente inditas determinadas por anomia (desordem), que

    instauraram, por sua vez, uma atmosfera ou um clima histrico melanclico, ou ainda, de

    22 Sobre o clima de contrio e de medo, prprio ao perodo regencial, ver: GONALVES, 1995 e MATTOS, 1999.

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    contrio e de cautela, de medo, de pessimismo e de desesperana, e, no limite, de

    desespero23. Clima que seria superado, na segunda metade do sculo XIX, quer na Europa

    Ocidental quer no Imprio do Brasil, a partir da preponderncia imediata, ou seja, pouco

    tematizada, do Estado (e tambm da disciplina Histria), vide as reflexes de um Hegel, e, no

    Imprio do Brasil, em especial, a consolidao do Estado Saquarema, atrelado aos interesses

    do Caf produzido na Corte e nas provncias contguas So Paulo e Minas Gerais, como anota

    Ilmar Rohloff de Mattos em seu Tempo Saquarema (2004).

    Desse modo, multiplicamse, ao longo dos anos 30, no Imprio do Brasil, discursos melanclicos determinados por sentimentos como a cautela e a gravidade, o medo, o pessimismo e a desesperana, e, no limite, o desespero, entre eles as poesias de Gonalves de Magalhes e boa parte dos textos produzidos no interior do primeiro Romantismo, ou seja,

    escritos por Torres Homem, Araujo Portoalegre, Pereira da Silva, entre outros, e, tambm, por homens mais diretamente ligados ao Estado, protagonistas do chamado RegressoConservador, entre eles Bernardo Pereira de Vasconcelos e o Visconde do Uruguai.

    AmelancoliadeMagalhes:osSuspirosPoticoseSaudades.Magalhes viaja para a Europa, mais especificamente para a Frana, em julho de

    1833, onde fica at o final de 1836. L, junto a Torres Homem e a Araujo Portoalegre, participa de muitas reunies no Instituto Histrico de Paris, assiste a cursos na Sorbonne, viaja

    pela Europa, escreve dois livros de poesia que foram publicados sob o ttulo de SuspirosPoticose Saudades, e, junto a seus companheiros, organiza e publica os dois nmeros da RevistaNiteri, peridico que considerado a primeira manifestao propriamente Romntica no Brasil.

    Assim que lemos os Suspiros, chamanos ateno uma compreenso de fundo acerca do real. Para Magalhes, o real aparece como sendo determinado pela transformao

    incessante, ou ainda, pela devenincia. Dizendo ainda de outra forma, os homens em geral

    sempre estariam expostos a relaes e conjunturas inditas e imprevisveis, para as quais as

    suas instituies e o seu repertrio de ideias, sentidos e prticas no seria adequado. E, aqui,

    temos uma primeira concluso importante, a de que Gonalves de Magalhes possui uma

    compreenso ontolgica, ou ainda, uma compreenso acerca do real em sua totalidade, e

    mais, que essa compreenso prpria, ou melhor, adequada, ao seu tempo histrico. Ou

    23 Sobre o problema da acelerao do tempo no Brasil Imprio, em especial nas dcadas de 1820 e de 1830, ver: ARAJO, 2008.

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    seja, a compreenso ontolgica de que o real deveniente prpria e adequada experincia

    da acelerao do tempo e ao crontopo historicista (Modernidade), para usar um termo

    caro a Gumbrecht, e isto porque esta compreenso precisa contar com a percepo de que o

    tempo um agente necessrio, autnomo e imediato de transformaes.

    E, como desdobramento dessa compreenso ontolgica, Magalhes compe um

    juzo antropolgico (melanclico), ou seja, evidencia aquilo que so os homens em geral

    entes determinados pelo sofrimento. Segundo o poeta, os homens seriam entes diferentes em

    tudo, no entanto, idnticos em relao a uma nica caracterstica a necessidade de sofrer. E,

    mais uma vez, temos uma compreenso que adequada ao tempo histrico, e mais, ao

    clima histrico que o do poeta. Enfim, o juzo antropolgico de Magalhes est

    diretamente relacionado experincia, tambm, percepo de tempo prpria ao tempo

    histrico moderno a de que o tempo um agente necessrio, autnomo e imediato de transformaes24, ou seja, que o tempo se transforma necessria e velozmente , e mais, ele est em consonncia e intensifica, a um s tempo, o seu clima histrico, marcado pela

    cautela e gravidade, pela desesperana e pelo pessimismo, e, no limite, pelo desespero. Em

    outras palavras, o poeta afirma que o real deveniente, e mais, que o homem est fadado ao

    sofrimento no interior deste real, (tambm) porque ele se encontra no interior de um tempo

    histrico no qual a experincia da reduo do espao de experincia (acelerao do tempo)

    est disponvel, e, ainda, no interior do qual, os homens em geral encontramse profundamente incomodados por essa experincia.

    Como acabamos de ler, a compreenso ontolgica disponibilizada por Magalhes

    evidencia que a existncia humana exposta, incessantemente, a relaes e conjunturas

    inditas e imprevisveis, ou seja, o que est em questo aqui que os homens em geral esto

    sempre expostos a circunstncias para as quais no possuem respostas adequadas, o que

    significa dizer que esto sempre atarefados, empenhados na produo de sentidos adequados

    s circunstncias inditas no interior das quais sempre se descobrem uma vez mais.

    24 Hans Ulrich Gumbrecht (1999, p.460) sublinha que a modernidade, em especial a partir do sculo XVIII, ao experimentar o tempo a partir de uma acelerao radical, tendeu a compreendlo (perceblo) como sendo um agente autnomo e necessrio no que tange produo de diferenciaes, e isto a despeito das coordenadas espaotemporais, como podemos ler: ... porque a crena de que o tempo um agente natural e inevitvel de mudana no mundo cotidiano no estava institucionalizada at o incio da era moderna. Esta crena se tornou o elemento central numa construo do tempo que hoje chamamos de conscincia histrica, e que tendemos a interpretar equivocadamente como uma condio imutvel da vida humana. Depois de 1500, a concepo do tempo como um agente necessrio de mudana comeou a solapar a validade dos exemplos histricos....

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    Bem, nessas circunstncias, os homens em geral se veem na necessidade de

    investigar, e, aps erros e acertos, produzir ideias, instituies e sentidos mais ou menos

    adequados. No entanto, como vimos, algo acontece incessantemente. Para Magalhes, a

    existncia humana sempre exposta a novas situaes inditas para as quais no possui

    respostas adequadas, e, por fim, os homens se descobrem, ainda uma vez mais, atarefados,

    obrigados a construir novos sentidos e respostas para novos tempos que j nascem fadadas

    desatualizao ou caducidade.

    O homem sofre, segundo Magalhes, porque sempre est necessariamente

    empenhado na produo de ideias, instituies, prticas e sentidos adequados a circunstncias

    inditas, e isto, sempre uma vez mais. Sofre tambm porque, alm de sempre estar

    empenhado na produo de novos sentidos, ele precisa afastarse daqueles sentidos com os quais tinha intimidade.

    Alis, justo por isto que o tema da morte to caro ao Romantismo, porque ela

    lembra aos homens de sua determinao fundamental, a de que eles so fadados ao

    sofrimento, construo incessante de novos sentidos, e mais, ao afastamento significativo,

    perda, daqueles sentidos com os quais tinha intimidade, o sentirse sempre fora de casa, para lembrarmos de Hlderlin e de Novalis.

    Ento, por fim, acompanhemos algumas poesias de Gonalves de Magalhes, as

    quais so ideais compreenso desta Stimmungmelanclica que descrevemos:

    Para que vim eu ao mundo (...) Quanto mais penso, mais creio/ Neste mistrio profundo;/ E a mim mesmo ento pergunto:/ Para que vim eu ao mundo?/ Como resposta esperando,/ Escuto silencioso;/ No corao, que palpita,/ Murmura um som lutuoso./ Soa essa voz em meu peito/ Como em caverna profunda,/ Como um suspiro exalado/ Pela vaga gemebunda./ Para a dor, me diz, nasceste;/ Para a dor, para o tormento:/ Teus males s tero termo/ Coo teu ltimo momento.

    No te rias, fortuna!/ Teu riso me suspeitoso;/ Contra a desgraa no clamo;/ No quero ser venturoso./ Vaite, fortuna,/ No me atormentes;/ J te no creio;/ Em tudo mentes./ Enquanto te procurava/ Andei errados caminhos;/ E das rosas que murcharam/ S me restam os espinhos./ Vaite, fortuna,/ No me atormentes;/ J te no creio;/ Em tudo mentes./ Por coisa to transitria/ loucura amofinarnos;/ Os bens que hoje nos outorgas,/ (...) Com bem pouco me contento;/ Conformeime coa desgraa;/ J me tenho por ditoso,/ J rejeito a tua graa./ (...) No sei o que a ventura,/ Nem sei se sou desgraado./ Por bens que podem ser males,/ Eu no troco o meu estado./ (...) Rpidos passam os dias,/ E a cada passo que damos,/ morte, que sempre certa,/ Ligeiramente marchamos./ (...) S ditoso na terra/ Quem vive em paz com sua alma;/ Quem das penas que aqui sofre,/ S do cu espera a palma.

    possvel, meu Deus, que tanto sofra/ Um msero mortal, e quinda viva?/

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    Queres ver do teu servo/ A alma, de padecer j calejada,/ Sem murmurar, sem blasfemar, t onde/ A pacincia leve?/ Em mim acaso novo J preparas? Ou o meu corao no de humano,/ Ou a dor j o tem empedernido/ Coo reiterado combate. (MAGALHES, 1999, p. 150)

    O que est em questo aqui que os primeiros Romnticos, entre eles Magalhes,

    Torres Homem, Arajo Portoalegre e Pereira da Silva, redigiram seus textos a partir do clima histrico melanclico (bem com intensificaramno), o que os levou produo de compreenses graves, e, no limite, pessimistas e desesperanadas em relao prpria

    existncia, e, tambm, ao futuro do Imprio do Brasil, em especial no que tange s

    consequncias provocadas pela instituio escravido, entre elas a moral egosta,

    sentimento que aprofundaria esta precariedade dos homens.

    No entanto, e isto no teremos tempo suficiente para analisar aqui, ao mesmo

    tempo em que afirmavam que o futuro do Imprio estava gravemente ameaado, e, no caso

    de Torres Homem, por exemplo, determinado pela necessidade da decadncia, seus textos

    estiveram, por outro lado e de forma algo paradoxal, comprometidos com um projeto de

    moralizao da ptria e de formao da nao significativos, responsveis, de certa

    forma, pelo o que Ilmar Rohloff de Mattos (2005) chama de expanso para dentro.

    Enfim, um projeto moral e nacional positivo/propositivo e influente sua poca,

    no entanto, intimamente marcado e delimitado pelo seu clima histrico a melancolia.

    REFERNCIASBIBLIOGRFICAS:ARAJO, Valdei Lopes de. A Experincia do Tempo. Conceitos e Narrativa na Formao Nacional Brasileira (1813 1845). So Paulo: Hucitec, 2008.

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