3 meu professor inesquecível

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    EditoraRosely M. Boschin i

    Coordenação editorialMarco Polo R. Henriques

    Assistente editorialRosângela Barbosa

    CapaACPalma Comunicação

    Ilustrações da capa e mioloPaulo Caruso

    RevisãoMaria Alayde Carvalho

    Diagramação Join Bureau

    Copyright © 1997 by Ana Maria Machado,Bartolomeu Campos de Queirós, FannyAbramovich, Içami Tiba, Ignácio de LoyolaBrandão, Ivan Angelo, Jean-ClaudeBernardet, Lya Luft, Marcos Rey, MarinaColasanti, Walcyr Carrasco

    Todos os direitos desta edição são reservadosà Editora Gente.Rua Pedro Soares de Almeida, 114São Paulo, SP - CEP 05029-0 30Telefone: (11) 3670-2500Site: http://www.editoragente.com.br E-mail: [email protected]

    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Meu professor inesquecível: ensinamentos e aprendizados contados por algunsdos nossos melhores escritores /organização de Fanny Abramovich . — São Paulo :Editora Gente, 1997.

    Vários autores.ISBN 978-85-7312-125-4

    1. Escritores brasileiros 2. Memórias autobiográficas 3. ProfessoresI. Abramovich, Fanny. II. Título..

    97-3036 CDD-869.98503

    índices para catálogo sistemático:

    1. Escritores brasileiros : Século 20 : Reminiscências : Literaturabrasileira 869.98503

    2. Século 20 : Escritores brasileiros : Reminiscências : Literaturabrasileira 869.503

    http://www.editoragente.com.br/mailto:[email protected]:[email protected]://www.editoragente.com.br/

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    P r e f á c i o

    Para participar desta antologia, foram convidados onzeescritores. Homens e mulheres, de gerações diferentes, cita-dinos, interioranos, estrangeiros. Para cada um se pediu quefalasse sobre o seu professor inesquecível. Do jardim de infância, colegial ou da universidade. De algum curso extraclas-se ou membro da família. Que tivesse deixado marcas porter sido o melhor ou o pior. Como quisessem. Vieram abordagens literárias — claro —, mas em que se reflete sobre oeducacional. Humor, lirismo, emoção deslizam pelas páginas fluentes e envolventes.

    As marcas deixadas — de cada professor, para cadaautor — são fruto da memória desencadeada. Borbulhamlembranças. Seguem-se descrições detalhadas, atmosferasrecriadas, os cheiros impregnantes, as roupas, os gestos, apostura, a letra informativa ou corretiva, as dicas, os diálogos travados, as paredes desenhadas. Afluem recordações

    nítidas, vividas, plenas. Há quem se lembre do jeito dos cadernos, dos livros recomendados ou estudados, das históriascontadas, das conversas sussurradas ou compartilhadas, dosempurrões decisivos.

    Os professores escolhidos (a alfabetizadora, o pai, osmestres da vida, os ensinantes de conhecimentos específicos, o marido, os inúmeros e consecutivos, o único, o maiscobiçado e aparentemente inatingível) são desenhados com

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    suas veias, seus trajes, seu tom de voz, seu jeito de pisar, suaafetividade, sua clareza e perspicácia, seu estabanamento,suas cobranças e seus olhares imperativos ou interrogantes.Retratos belos, sensíveis, poéticos, mergulhantes. Irresistíveis!Também, são textos de alguns dos melhores escritores brasileiros contemporâneos.

    Os professores escolhidos o foram por ter sido apresen

    tadores do mundo, agentes de transformação pessoal, responsáveis por encaminhamentos significativos, por revelações,por descobertas decisivas, por ser paradigmas, por momentosiluminadores/hilários/desconcertantes/ampliantes. Suas sig-nificâncias éticas, suas exigências e expectativas, sua compreensão do real interesse de cada aluno depoente- escrevinhadorpermeiam todos os parágrafos.

    Acompanham- se métodos, cutucadas, abrangências,cumplicidade, aprontações, sustos, espantos, ganas, reencontros posteriores. Também a sedução, os envolvimentos,as cobranças, as portas abertas, a curiosidade respondida,as enganações, as dádivas e dúvidas, as relações afetivas.Retratos feitos e refeitos.

    Cada professor, mestre, ensinante escolhido ficou namemória por décadas por ter sido um modelo, uma referência marcante e clarificadora de como ser. Pelas páginas deste livro, se respira, transpira, pelos poros atravessamsaudades. De um ser especial, duma escolha feita, dum caminho encontrado.

    Marcas deixadas por professores em criadores para serlidas por professores e alunos. Com prazer, gostosura, identi

    ficação, propulsionadoras das próprias memórias e da seleção significativa. Provocativas e instigantes para repensar opapel do professor na vida de cada um. Marcas fundantes naformação das gentes. Inesquecíveis!

    Fanny Abramovich

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    H a s t e s , b o l in h a s e s a pa t o s APERTADOS

    Marina Colasanti

    y l o contrário de quase todos os adultos que conheço, não fiz jardim de infância. Nem pré. Não freqüentei grupo escolar. Não aprendi oHino à Bandeira. Não desfilei no7 de Setembro. Ninguém me disse que as aves que aquigorjeiam não gorjeiam como lá. Não chamei minhas professoras de tia nem de dona. Em resumo, não tive uma educação de criança brasileira.

    E isso porque brasileira não era. Até os 11 anos fuieducada na Itália, durante a guerra — a Segunda —, numtempo que era de exceção mas que eu vivia como normalporque não conhecia outro. O percurso do meu ensino primário não foi exatamente regular. Tive muitas professoras,nem sempre terminei o ano com a mesma com quem ohavia começado. Estudei em tantas cidades, em tantas mesas ou carteiras. Houve momentos em que atravessei cam

    pos cobertos de neve para ir à aula, em que deslizei ladeiraabaixo sobre o gelo, sentada na pasta. Outros em que estudei tateando no bolso as conchas que havia catado um diaantes na praia. E os dias em que largava a aula no meioporque a sirene do alarme antiaéreo tocava e meu pai vinhame buscar de moto — esses, inconsciente como toda criança, eram os de que mais gostava. Inesquecível para mim é

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    esse processo picotado e imprevisível, em que de algumamaneira tudo estava sempre recomeçando e sendo novo,em que meu único colega constante era meu irmão e emque as professoras, os rostos das professoras, se acendiame se apagavam, como faróis apontando o caminho.

    Duas eu destaco pela importância especial que tiveramem minha vida, ensinando- me coisas de que nunca mais

    abriria mão. A primeira. E a última.

    A primeiraEra magra e alta, de cabelos compridos até os ombros,

    encaracolados nas pontas. Talvez não fosse alta, eu é que erapequena. E o encaracolado era de permanente. O nome delaesqueci. Junto com o nome esqueci uma porção de coisasdela, esqueci quase tudo. Mas guardei o essencial: que ela meseduziu para a arte de ler e escrever e que, com as ferramentas que me deu, ganho a vida até hoje.

    Ela era jovem, e tinha um irmão. O irmão é importantenessa história de sedução, embora não me lembre de jamaistê-lo encontrado. Um irmão desenhista. Hoje sei que era umdesenhista medíocre, provavelmente um mau desenhista.Mas quando vi seus quadros pela primeira vez, cobrindoquase todas as paredes da casa dela, me pareceram de umabeleza intransponível.

    Minha família vivia naquela época em uma cidade pequena, pouco mais que uma antiga aldeia de pescadores,que ganhava algum movimento nos meses quentes graças

    aos veranistas. Imagino hoje que a escola, a única disponível, não fosse boa. E apenas uma dedução, ninguém mefalou isso, não se davam muitas explicações às crianças. Oque sei, com certeza, é que pela mão da nossa governanta,numa manhã que a distância tornou luminosíssima, meu irmão e eu chegamos diante da porta da casa da professora.E a porta se abriu.

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    Três degraus para baixo, uma espécie de sala meio escura, de pouquíssimos móveis, uma porta aberta para o jardim. E nas paredes, ao alto — pelo menos para mim —,postos em duas e até mais fileiras, aqueles quadros, aquelesquadros todos, grandes aquarelas e pastéis confundindo suascores com o brilho dos vidros. Eram cabeças de Cristo coroadas de espinhos e gotejando sangue, pintinhos saindo do

    ovo, galos cantando na cerca, vasos de flores, gatos e novelos. Em sua profusão foram meu primeiro encantamentoartístico. Posso até dizer que foram meu primeiro museu.

    Tão forte a atração que mal reparei na professora. Sódepois de alguns minutos ela entrou de fato no meu olhar. Eali está até hoje, suave, pálida, leve. Não vejo nenhuma corna roupa. Devia estar de cinza. Mas a saia era dançantecontra as pernas finas, e os sapatos baixos eram certamentepretos. Caminhava à nossa frente, conduzindo- nos à salaseguinte. A sala das crianças. Aquela que — nem ela nem eusabíamos ainda — ia ser minha sala de aula.

    Aqui tudo era luz. Paredes claras, uma janela aberta depar em par, uma porta dando para a cozinha — que tranqüi-lizadora aquela proximidade. No canto, entre janela e porta,no ponto de máxima claridade, a mesa redonda. E ao redorda mesa, ocupadas com suas tarefas, cabeça baixa sobre oscadernos, umas cinco ou seis crianças. Calculo retroativamente que fossem cinco ou seis, mas talvez fossem mais,dez até. Naquele dia, entretanto, eu ainda não sabia contar.

    Cada uma estava empenhada em fazer uma coisa diferente. Isso me pareceu absolutamente encantador, acredi

    tando eu que cada uma fizesse aquilo que bem entendia.Logo iria descobrir que não era assim. Cada criança faziaexatamente aquilo que tinha que fazer, aquilo que a professora mandava, como em qualquer escola. A diferença estavaem que as necessidades variavam de uma criança para outraporque cada criança estava em um nível de aprendizado.Digamos que aquela era uma espécie de aula particular co

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    letiva. Crianças de várias idades, em estágios distintos, passavam suas manhãs sob a orientação e o olhar amorosa daprofessora, ciscando conhecimentos ao redor da mesa comoos pintinhos ciscavam nos quadros da outra sala. Nem sequer havia quadro-negro. E pra quê? Os novos dados, asdúvidas, as correções, tudo era resolvido individualmente,dito quase num sopro junto ã bochecha, enquanto a mão da

    professora guiava mãozinhas gordotas.Na ponta dos pés, para alcançar com o olhar o tampoda mesa, eu espiava o que as crianças faziam. Várias, empe-nhadíssimas, traçavam hastes.

    E isso mesmo, hastes. Eu sou do tempo, nem tão distante, em que se acreditava que ter uma boa letra era importantena vida, e que uma boa letra se adquiria desde o princípio.Então, antes de qualquer outra providência, antes de saberidentificar uma única vogal, a criança empunhava um lápis deponta não muito afiada para não rasgar o papel e, no caderno quadriculado, começava a traçar hastes do tamanho decada quadradinho, uma ao lado da outra, interminavelmente.Só depois de passados alguns dias, já capacitada a produzirhastes razoavelmente retas, a criança-estudante passava àetapa seguinte.

    A etapa seguinte eram bolinhas. Também estas do tamanho dos quadradinhos, também estas enfileiradas, preenchendo páginas e páginas do caderno. As bolinhas eram deimportância vital porque, além de servir para fazer a barrigadas letras que têm barriga, seriam utilizadas adiante paraaprender Matemática, uma bolinha + uma bolinha = duas

    bolinhas.Já se percebe que a próxima fase do trabalhoso avanço do

    saber era uma alternância de hastes e bolinhas, cada uma emseu quadrado, independentes, mas de namoro armado, olhoposto na união que fatalmente se daria de uma haste e umabolinha, união que, graças ao acréscimo de um rabicho aqui oude uma curvinha ali, geraria afinal a tão esperada letra.

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    Foi nesse ponto daquela manhã brilhante, em que erguida sobre a ponta dos pés eu alcançava a revelação quasemística da escrita, que deparamos com um fator complican-te. Eu não tinha sido levada ali para aprender. Minha funçãoera apenas acompanhar meu irmão, que, ele sim, ia ser alfabetizado.

    Na sala por onde eu havia passado, os quadros conti

    nuavam luzindo na penumbra. Aqui, em plena luz, faziam-sehastes e bolinhas, estando mesmo uma ou duas criançasmaiores a escrever palavras. E a professora, já toda doce esolícita, debruçava-se para o meu irmão, acomodava- o nacadeira, enquanto a governanta, segurando firme minhamão, preparava a despedida...

    Fui rápida no gatilho. Ninguém ia me tirar dali. Ninguém ia me impedir de fazer hastes, de chegar um dia àsbolinhas. Meus uivos de choro teriam feito inveja ao corpode bombeiros. De nada adiantou professora e governantaexplicarem que meu irmão era mais velho, que eu era muitopequena, que dali a um ano... A única coisa óbvia para mim— e como era possível que não o fosse para elas? — era que,exatamente por ser meu irmão o mais velho, tudo o que elefazia tornava-se duplamente desejável para mim e que exatamente por ser pequena eu devia fazê- lo também, única maneira de equiparar- me a ele.

    Vendo que eu não parava de chorar e que, temendoser arrastada, cravava os pés no chão e me agarrava àmesa com as duas mãos pondo em risco a exatidão dashastes alheias, a professora — talvez parcialmente enter

    necida por tão frenético amor ao aprendizado — achoumais fácil fazer minha vontade. Trocando um olhar de entendimento com a governanta, “Só por hoje”, disse. Empilhou almofadas em uma cadeira, me depositou no alto dasalmofadas, empurrou a cadeira para junto da mesa, empurrou um caderno quadriculado para a minha frente. Providenciou um lápis.

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    dos, um apartamento a que se chegava por um último lancede escadas fora do alcance do elevador e que, abrindo- se aporta, oferecia somente o corredor estreito pontuado peloterceto quarto-banheiro- cozinha e, ao fim, a sala. Agoraapaguem o conceito que vocês têm de sala com sofá, poltrona, mesa de centro, estante de TV. E, no mesmo espaçonão muito generoso em que isso caberia, ponham um biom

    bo com um pano de damasco jogado por cima, ponhamdois altos espelhos venezianos, de moldura pálida e superfície escura, uma cômoda antiga, a porta verde-escuro de umarmário que entreaberta deixa ver lá dentro incontáveis garrafas coloridas, uma fruteira branca e algumas conchas.

    Agora posicionem a um lado a grande cama turca cheia dealmofadas de sedas já gastas. Ao centro, sobre um estrado,ponham a bela cadeira de braços. E no meio, como ummínimo bosque, as madeiras escuras dos cavaletes. Não háninguém sentado na cadeira do estrado porque hoje não sepinta modelo. Pintam- se dois arenques num prato.

    Mas para que isso tudo fique pronto é necessário aindadespejar a luz. A luz quase dourada que vem das clarabóiasdo alto. E a luz clara e fria, cortante, reflexo do mar queentra pelas grandes janelas da frente. O ateliê é de cara parao azul.

    Nesse ambiente, Caterina. Tão magra que vejo as veiassob a pele branquíssima, e nos primeiros tempos estremeçoquando move as mãos, de medo que os pulsos se partam.Quase loura — mas a cor muda de vez em quando ao sabordas tinturas —, de cabelos curtos, às vezes retidos por uma

    faixa de gaze azul-pavão, que ela arremata em grande laçolateral. Veste uma espécie de avental de pintor, indefinido elimpo. Calça babuches com meias soquete. E fuma desbraga-damente, segurando o cigarro no alto com os dedos finos. Aidade dela jamais saberei, mas certamente não é jovem.

    Durante alguns anos serei a aluna mais jovem do ateliê.Talvez a favorita de Caterina. Que me chama à minúscula

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    cozinha a pretexto de me dar água e em vez disso, escondidodos outros, me dá o sorvete que ela mesma fez. Que meconvida nas manhãs de domingo, quando não há alunos, eela pinta enquanto o marido fuma cachimbo. Que me ensina, pincelada a pincelada, os segredos da profissão.

    Aqui também se começava fazendo hastes, só que hastes de outra natureza. Primeiro desenhar objetos. Passado

    algum tempo, desenhar naturezas- mortas. E só bem depois,modelo vivo. Na mesma ordem, pintar naturezas- mortas— quantas maçãs pintei na minha vida, quantas garrafas!— e depois pintar modelo vivo, mas, atenção, as primeirasvezes quase sem cores, só com tons de terra e branco, nemsequer preto, que é criatura de difícil manejo e temperamento invasor.

    Era italiana, Caterina, como eu. Do norte, porém. Defamília e modos aristocráticos. Contava- me de seus estudosde pintura, ainda jovem, da academia de arte onde se haviaformado. E me dizia de quando, ainda tão moça, o primeiromarido a trancava em casa, por ciúme, e as vizinhas botavam tubos de tinta e solventes na cestinha que ela desciacom um barbante pela janela. Conversava, largava o cigarro, vinha por trás do meu cavalete, olhava e, sem interromper a conversa, ia apontando os defeitos, as soluções. Asvezes, raramente, pegava o pincel da minha mão e então,como se numa mágica que eu jamais alcançaria, misturavarapidamente as tintas na palheta, e apenas com um toqueaqui e uma pincelada ali iluminava o quadro inteiro, construía aquilo que estava mal definido e fosco.

    Uma tarde, o grande convite: não quereria ir com ela àBienal de São Paulo? A emoção que senti era provavelmente muito maior que o convite. Viajamos de ônibus, à noite,vento entrando por todas as frinchas, um frio dos diabos.Baixamos em um hotelzinho no centro, modesto, o tempode largar as malas. E lá fomos nós. Tão grande a Bienal,tanto quadro para estudar, para comentar. Ela parava diante

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    de cada um, e me explicava, me mostrava, me dava umaaula. Ficamos até a hora do fechamento — fora chovia edentro já não havia quase ninguém, mas nós não íamos arredar pé antes que nos expulsassem.

    Repetimos a dose no dia seguinte, encasacadas e alimentadas a sanduíches. Viajamos à noite, exaustas. Mas euhavia aprendido a ver criticamente uma exposição, e tinha

    começado logo por uma das mais complexas do mundo.Pintar um ovo. Coisa de grande delicadeza. Se você o

    pintar muito branco, me dizia Caterina, vira ovo de gesso.Mas, se meter umas sombras coloridas, uns reflexos de cor,vira ovo de Páscoa. Um ovo muito redondo não é um ovo,é uma bola. Um ovo perfeitamente oval é de madeira, daqueles de remendar meias. O segredo de um ovo pintadoestá na gentileza do olhar e na firmeza do toque. Velásquez,esse sim, sabia pintar ovos por fora e por dentro.

    Sapatos apertados. Coisa fácil de resolver. Você o en

    che de álcool, me dizia Caterina, dá uma boa chacoalhada, joga fora o álcool, enfia rápido o pé. Havia riscos, porém,me advertiu; uma vez fizera o truque do álcool, enfiara ossapatos e fora à festa, mas com o passar das horas os pésdoíam tanto que se vira obrigada a passar o resto da noitesentada num sofá ao lado de uma velhinha surda. É que,amaciados os sapatos pelo álcool, enfiara o pé direito nosapato esquerdo e vice-versa.

    Caterina era assim. Distraída com as coisas do cotidiano, capaz de vestir a roupa pelo avesso e de deixar queimara comida, mas atenta, muito atenta, às nuances das cores edos gestos.

    Divertia-se usando-me para escandalizar as alunas maisvelhas, senhoras que, a pintar garrafas, preferiam botões derosa. Com seu jeito um tanto aéreo, Caterina lançava omote, um comentário qualquer sobre fidelidade conjugal,por exemplo, ou sobre a suposta superioridade dos homens,

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    e pedia minha opinião. No princípio eu respondia de maneira inocente, cuidadosa até, mas a partir de certo ponto percebi a brincadeira e passei a responder de forma radical,provocativa.

    Era o suficiente para que uma das senhoras segurasseseu pincel com mais vigor e entrasse na conversa, logo secundada por outra, armadas ambas de santa indignação, na

    defesa daqueles princípios sagrados que minhas afirmações juvenis pareciam ameaçar. Tratava-se, na verdade, de um jogo entre nós duas, não contra as outras, mas a favor danossa cumplicidade, do temperamento libertário que a velhamestra partilhava com a jovem aluna.

    Eu ainda tinha, dos meus tempos de criança, um teatrode marionetes, desmontável, belíssimo. Um dia Caterina medisse que estava com vontade de pintar uma série de quadros de marionetes. Feliz por poder colaborar, empresteimeu teatrinho. Nunca mais o pedi de volta. Com o tempo,ambas nos esquecemos dele. O teatrinho acabou largadoem algum fundo de armário. Mas minhas marionetes continuam representando seu papel, pendentes das paredes dequem sabe quais casas, pintadas com toda a sua eloqüênciapor Caterina.

    Quando cheguei à idade da faculdade, fui para Belas-artes, deixei minha mestra. Ainda falei com ela durante umtempo. Depois, nunca mais.

    Passaram-se muitos anos. Tornei-me jornalista. Pareide pintar. Tornei-me escritora. Voltei a pintar. E um dia fizuma exposição dos meus quadros. Mandei convite paraCaterina.

    Ela não foi à inauguração. Nem eu a esperava naquelanoite. Sabia que teríamos que ter um espaço só nosso parapodermos falar de pintura como falávamos antes. E de fatoela veio, numa tarde em que eu me encontrava sozinha nagaleria. Estava ainda mais frágil, embora isso parecesse im

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    possível. As veias azuis, os pulsos, e aquela elegância intactados gestos agora de pássaro. Que honra foi para mim elagostar dos meus quadros. Que prazer ouvi-la comentar omeu trabalho com o mesmo sutil rigor que me havia ensinado naquelas tardes frias da Bienal de São Paulo. Ela estavacontente de ver que, afinal, nada havia se perdido. Eu, felizde poder oferecer- lhe essa certeza.

    Caterina Barattelli já morreu. Talvez a minha primeiraprofessora também tenha morrido. Mas as duas estão vivasem mim, tão vivas na minha memória e no meu relato comoestavam na manhã e na tarde ensolaradas em que pela primeira vez as encontrei. E, quando quero, desço três degraus,entro na sala penumbrosa onde só os quadros cintilam, sigoaté a sala das crianças, sento, e pouso as mãos na mesa,espalmadas. Ou então passo pela Vieira Souto, levanto acabeça, vejo o ateliê lá em cima, as janelas fechadas, e cá debaixo eu as abro, me debruço, e ouço Caterina, que da cozinha me chama para beber água.

    Marina Colasanti já publicou 31 livros.Nasceu na África. Quando criança tomavabanho no Mar Vermelho, depois foi para aItália banhar- se no Mediterrâneo e acabouno Brasil, mergulhando no Atlântico. Nãoé à toa que se chama Marina. Pinta — é ailustradora dos seus livros. E não é trocadilho, mas também borda. E tremenda cozinheira. E poeta. Tem duas filhas. E, emmeio ao ruído que tudo isso faz, conseguemanter um diálogo constante e intensocom o mundo das fadas.

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    F o r a m m u it o s , o s p r o f e s s o r e s

    Bartolomeu Campos de Queirós

    Linha mãe guardava com cuidados de sete chaves, sobre a cômoda do quarto, três cadernos. No primeiro,ela copiava receitas de amorosos doces: suspiros, amor-em-pedaços, baba-de-moça, casadinhos, e fazia olho-de-sogra decor. No segundo caderno, ela anotava riscos de bordados,com nomes camuflados em pesares: ponto-atrás, ponto desombra, ponto de cruz, ponto de cadeia, laçadas e nós. Noterceiro, ela escondia longas poesias, boiando em sofrimentos: A Louca d’A\ bano, Tédio, O Beijo do Papai. Eu reparava seus cadernos, encardidos pelo tempo e pelo uso, admiravasua letra redonda e grande, com caneta de molhar, sem aindadesconfiar das palavras. Eu sabia do todo, sem suspeitar daspartes. Durante muitas tardes, com o pensamento enfastiadode passado, ela passava as páginas, lentamente, espreitandoas folhas vazias, como se cansada de escrever e de pouco

    exercer. Eram sempre as mesmas comidas, os mesmos pontos, a mesma poesia e muito por decidir.Meu pai, junto ao rádio no alto da cristaleira e longe do

    meu alcance, protegia alguns poucos livros sobre homenscélebres, com vidas prósperas sem precisar viajar de sol asol. Aos pedaços ele lia os compêndios, escutando a Voz do Brasil ou o Repórter Esso. Eu apreciava seu silêncio, sem

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    me aventurar em perguntas ou demandas. De vez em quando ele interrompia a leitura e me acariciava com os olhos,me amando sem mãos, como se me desejando outros futuros diferentes do seu. Seu jeito me arranhava por não sermeu anseio me fazer herói ou mártir. Eu queria saber, massem perdê- lo. Lastimando a ausência de futuro, ele fechavao livro, reparava as horas e buscava o sono. Seu dia era

    pequeno para trabalhar por todos nós. E nos livros, eu percebia, estava escrito o já não mais possível a ele. Eu sabiairrealizável, sem querer nascer de novo.

    Na pequena capela da praça morava uma imagem desanfAna. Minha irmã levava piedosos ramos de flores, colhidos na horta, e trocava pedidos balbuciados. Eu encaravaa santa com seu livro aberto sobre os joelhos ensinando aMenina Maria. Eu espiava o livro de gesso, indagando o quea futura Mãe de Deus não sabia ainda. O que estava guardado em abençoado livro e que a Rainha desconhecia? Aproveitava as suspeitas e rezava por mim, pelas minhasdesconfianças. Mesmo sabendo repetir o credo, o pai-nos-so, a ave-maria, meu coração se aventurava a interrogar oPerfeito por me ofertar tanta incoerência para sobreviver.

    Meu irmão, o mais velho, se debruçava sobre a mesa eexaminava, enfastiado, seu livro de leitura. Passava horas soletrando, com desalento, seus afazeres. Os deveres lhe pareciaminsossos, pois, constantemente, pedia a meu pai para lhe tomar as lições . Meu pai negava por não necessitar mais de lições. Já trabalhava e amava. Minha mãe, propensa a justificarfracassos, elogiava o esforço do filho maior, o suposto respon

    sável pela família em caso de desgraça, mesmo reconhecendonão serem os livros o seu caminho. Eu invejava o lugar de meuirmão estudando os afluentes do Rio Amazonas, a rosa-dos-ventos, os pontos cardeais, as três caravelas. Eu sonhava rio,vento, direção e barco sem querer partir. E, se partir, deixarbilhete sobre o norte buscado. Se sufocado em desejos, eu viviacheio de medo de minhas vontades virarem verdades.

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    Minha avó, toda manhã, ainda em jejum, arrancava apágina da folhinha Mariana e lia as recomendações. Meditava, cambaleando no meio da sala, sobre o pensamento escrito no verso do papel para depois conferir a fase da Lua,a previsão das enchentes e estiagens. Em seguida acendiamais uma vela para os santos do dia: santa Genoveva, sãoPhilippus, são Clemente Maria, santo Antão, santo Agripi-no. Eu reparava sua fé e guardava o papelzinho como searmazenando sabedoria, como se acreditando na possibilidade de o passado se repetir no futuro. Minha mãe, de soslaio, espiava minha avó e continuava sem anotar receita deolho-de-sogra em seu primeiro caderno.

    Maria Turum, empregada antiga de meu avô, sabia deum tudo sem conhecer as letras. Conforme o meu olhar, elame oferecia um pedaço de doce ou me abraçava em seucolo. Combinava o tempo de chuva com comida de angu,carne moída e quiabo, sem consultar caderno de receitas.Se meu avô pisasse mais forte, ela apressava o almoço; e, setossia durante a noite, vinha um prato de mingau, com pedaços de queijo, no café da manhã. Ao apertar com os dedos um grão de feijão, sabia se estava cozido ou se precisavade mais um caneco de água. Olhava o céu e deixava a roupapara ser lavada em outro dia, pois faltaria sol para corar oslençóis. Nunca notei interesse seu diante das paredes domeu avô. Ela parecia não pensar além da casa. Não haviahorizonte lá fora. Só conhecia o mundo tocado pelos olhos.E em sua alma, eu compreendia, não cabia mais amor alémdaquele dividido entre nós e revelado na limpeza da casa, nocarinho da cozinha, na roupa alvejada no varal.

    Meu avô, arrastando solidão, escrevia nas paredes dacasa. As palavras abrandavam sua tristeza, organizavam suacuriosidade silenciosamente. Grafiteiro, afiava o lápis comofazia com a navalha. A cidade era seu assunto: amores desfeitos, madrugada e fugas, casamentos e traições, velórios eheranças. Contornava objetos: serrote, tesoura, faca, ma

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    chado — e ainda escrevia dentro dos desenhos um pouco dodestino de cada coisa; o serrote sumiu, a tesoura quebrou, omachado perdeu o corte. Eu, devagarinho, fui decifrandosua letra, amarrando as palavras e amando seus significados. Meu avô era um construtivista (sem conhecer nem aEmília do Lobato) pela sua capacidade de não negar sentidoàs coisas. Tudo lhe servia de pretexto.

    Eu restava horas sem fim, de coração aflito, seduzidopelas histórias de amor, de desafeto, de ingratidão, de mentiras do meu primeiro livro — as paredes da casa de meuavô. Assim, percebi o serviço das palavras — facas de doisgumes. Meu avô desdizia verdades eternas com as mesmaspalavras com que escreverama Bíblia Sagrada: “A bondadede Deus só não deu asa à cobra porque a cobra não cobrou;à noite todos os pardos são gatos; para quem sabe ler, umpingo nunca foi letra; em casa de ferreiro pobre, até o espeto é de pau porque não tem nem fogo”. Essa sua capacidadede negociar com as palavras, de buscar seus avessos, me

    atordoava e me seduzia.Meu avô poderia ter sido meu primeiro professor se fi

    zesse plano de aula, ficha de avaliação, tivesse licenciaturaplena. O fato é que ele não aplicava prova, não passava dever de casa nem brincava de exercício de coordenação motora. Jamais me pediu que acompanhasse o caminho que ocoelhinho fazia para comer a cenourinha nem me deu florpara colorir. Minha coordenação motora eu desenvolvi andando sobre muros ou pernas de pau, subindo em árvores,acertando as frutas com estilingue ou enfiando linha naagulha para minha avó chulear. Também, coelho não usava ainda nem na Páscoa, ocasião em que se comungavacoordenando a hóstia para não esbarrar nos dentes nem grudar no céu da boca. Meu avô escancarava o mundo com letrabonita e me deixava livre para desvendar sua escritura.

    Mesmo assim, cada dia eu conhecia mais palavras emais distâncias, combinando melhor as orações. E suas pare

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    des mais se enchiam de avisos sobre o mundo e as fronteirasdo mundo. Eu decorava tudo e repetia timidamente. Eramtranqüilas suas aulas, e o maior encanto estava em meu avôcultivar as dúvidas. Se ele escrevia “o mundo é uma bola besta sem eira nem beira”, eu desconfiava se estava dizendo sera Terra redonda ou se a Terra era uma piada sem tamanho.Eu concluía ser as duas coisas. Às vezes ele me pegava esti

    cando o pescoço, tentando alcançar um pedaço mais longe,um parágrafo mais alto. Ele me apontava a cadeira. Eu buscava e ele me ajudava a subir. Minha avó gritava: “Menino,desça daí, esse velho não é certo nem dá certeza”. Meu avôvoltava para a janela e continuava lendo o mundo, seu únicoe maior livro.

    Não sei se aprendi a fazer contas com meu avô. Elemais me ensinava a “fazer de conta”. No entanto, eu diferenciava o mais alto do mais baixo, o bife maior do menor, asnoites mais frias das noites mais quentes, o mais bonito domais feio, a montanha mais longe, a dor mais pesada, a tristeza mais breve, a falta mais constante. Mas acreditava, ehoje ainda mais, não ser a casa de meu avô uma escola. Elanão possuía cartazes de cartolina nas paredes, vidro comsemente de feijão brotando, cantinho de leitura com livrinhosinfantis, lista de ajudantes do dia, tanque de areia, palhacinhode isopor, flanelógrafo de feltro verde. Meu avô devia suporque escola fosse o mundo inteiro, a vida inteira, com noite edia, perdas e ganhos, dores e tristezas, sonos e sonhos.

    Mas eu somava o tempo de ausência de meu pai transportando manteiga, as horas sonoras do relógio, os suspiros

    na bandeja. Meu avô não usava toquinhos coloridos, tampi-nhas de garrafa, palitos de picolé nem me exigia uniforme.Ele nunca me convidou para fazer “rodinha”. Aprendi, porém, e como ninguém, a dar nós cegos em barbante, seupassatempo preferido. Meu avô me dizia: “Um bom nó cegotem que ser ainda surdo e mudo”. Penso ter vindo daí essaminha paixão pelos abraços e pelos laços.

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    Em minha casa ninguém atribuía importância às minhas leituras. Eu aproveitava pedaços de jornais que vinhamembrulhando coisas e lia em voz alta, procurando atençõese reconhecimentos. Meu pai me olhava e repetia sempre:“Menino, deixe de inventar histórias, você não sabe ler, nunca foi à escola” ou “Menino, deixe esse papel e vá procurarserviço melhor pra fazer”.

    Passei a duvidar da escola. Parecia-me um lugar só paradar autorizações. Se a escola não autorizasse, eu não poderiasaber. O medo desse lugar passou a reinar em minha cabeça.Comecei a dar razão ao meu irmão, já capaz de dirigir o caminhão assentado em um travesseiro de paina. Mas logo meveio uma idéia: quando entrar para a escola, eu faço de contaque esqueci tudo e começo a aprender de novo. “Uma mentirinha é um santo remédio para botar um ponto final em conversa fiada”, me ensinou meu avô, coisa que comecei a praticarpara encurtar perguntas e me livrar de incômodos. Havia pessoas que gostavam de indagar muito mais do que deviam.

    Cheguei de uniforme novo costurado pelo carinho deminha madrinha. O caderno era Avante, com menino bonito na capa, sustentando uma bandeira com um Brasil despa-ginado pelo vento. Menino rico, forte, com sapatos e meiassoquete. O estojo de madeira estava completo: dois lápisJohann Faber com borracha verde na ponta e mais umapontador de metal. Um copo de alumínio, abrindo e fechando como o acordeom de Mário Zan, completava as exigências da escola. Só minha cabeça andava aflita paraesquecer. E esquecer é não existir mais. Isso não é tarefafácil para quem aprendia em liberdade, escolhia pelo prazer,guardava pela importância.

    Fui acolhido por dona Maria Campos, minha primeiraprofessora, com livro de chamada, caderno com plano deaula encapado com papel de seda. No pátio ela nos leu dacabeça aos pés, conferindo a limpeza do uniforme, as unhaslavadas, o cabelo penteado. Pela primeira vez me senti o seu

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    livro. Miúdo, descalço, morria de inveja do menino Avante guardado no embornal. Fui o primeiro da fila. Dona MariaCampos segurou minha mão e a fila foi andando em direçãoà sala de aula. Mão fina e macia como o algodão da painei-ra, que minha mãe colhia aos tufos e costurava travesseirocom cheiro de mato. Meu coração disparou de amor e mão.Comecei, assim, naquele depois de meio-dia, a praticar mi

    nha promessa: tomar bomba no tudo já aprendido e começar branco como o caderno Avante.Dona Maria vestia-se por todo o sempre com roupa

    clara, sapatos fechados, meias de seda, blusa bordada embranco sobre branco e mais um lenço preso no cinto ou napulseira do relógio para assear as mãos depois de escreverno quadro-negro. Ela me emprestou seu lenço quando minha mãe viajou doente para a capital. Eu não usei. Preferiusar, como de costume, a manga da camisa, com medo desujar no nariz e ela não mais gostar de mim. Todo o cuidadoera pouco para não perder o seu amor. Sua alvura na roupa,seu olhar capaz de ver muito depois das coisas, sua vozmansa — mistura de fortaleza e doçura — me instigavam aosilêncio. Ela não pedia, mas eu a presenteava.

    Encher o caderno com fileiras e fileiras de a,e, i, o, u foi o primeiro exercício. Vaidosa, ela me apresentava os sinais para escrever e ler o mundo. Ganhar o seu visto feitocom lápis azul ou vermelho riscava com alegria toda a minhavida. Eu me esforçava, caprichava na letra e mordia a línguano canto da boca. De carteira em carteira, ela corrigia osexercícios deixando no ar um cheiro de paineira e primavera.

    Estação que eu não distinguia “a olho nu”, mas imaginava.Um dia dona Maria Campos trouxe Lili, menina quegostava muito de doce e olhava pra mim. Lili foi o meu primeiro amor. Eu lia os cartazes, colava as sílabas, recortadas,com grude de polvilho, mentindo descobrir pela primeiravez as palavras. Vencia as horas folheando a cartilha, lendoaté o fim, em silêncio, guardando em segredo os depois. A

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    professora jamais soube do meu adiantamento. Na primeiracarteira eu prestava atenção a tudo, sendo elogiado comomenino aplicado, cheio de futuros. Nunca soube se precisava mesmo de suas lições ou de seu carinho. E isso ela bemme presenteava. Eu aprendia para ela. Mas, se não me esqueci de sua presença, valeu a pena.

    Fui escolhido para declamar no auditório da escola uma

    poesia. Ser escolhido já significava um prêmio. Decorei e repetia para as galinhas, os chuchus e a paineira o poema, cheiode medo de gaguejar e de decepcionar minha professora:

    Eu comi ontem no almoço A azeitona de uma empada,Depois botei o caroço Sobre a toalha engomada.Mas a mamãe logo nota E me ensina com carinho:O caroço não se bota Sobre a toalha, meu benzinho.O que ela me diz eu ouço Sempre com muita atenção E perguntei- lhe: o caroço, mamãe,Onde boto então?Toda pessoa de linha,De educação e de trato,O osso, o caroço, a espinha Põe no cantinho do prato.Eu depressa lhe respondo Com respeitoso carinho:Mas meu prato é redondo,Meu prato não tem cantinho!

    Não me lembro do autor dos versos ou se eram anônimos como eu, naquele fim de mundo, naquele miolo da Ter

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    ra arredondada e sem aparentes arestas. Contudo, se nãocaíram no esquecimento, não devem ficar ignorados comooutras coisas mais. Também não sei se eram aritméticaaqueles problemas passados no quadro-negro, dividindo asdúzias de ovos e bananas, fracionando laranjas e maçãs emquatro ou oito partes iguais. Os litros de leite, se bem melembro, divididos entre todos, me sugeriam pensar se a generosidade era um dom da vaca, do fazendeiro ou dos dois.Sei que nesses atos singelos, praticados com gestos amorosos, dona Maria Campos me ensinou demais, muito alémdas paredes de meu avô. Ou melhor, me ensinava seremmuitos os lugares da escrita e da leitura. De suas históriaslidas no fim da aula, eu ainda guardo o cheiro do livro.

    Ingênuo, supondo ser a vida um processo de soma e nãode subtração, juntei de cada um dos meus mestres um pedaçoe protegi em minha intimidade. Concluo agora que, de tudoaprendido, resta a certeza do afeto como a primordial metodologia. Se dona Maria me tivesse dito estar o céu no inferno

    e o inferno no céu, seu carinho não me permitiria dúvidas.Os cadernos de receitas de minha mãe, os livros velhos

    de meu pai, as paredes de meu avô, o livro de sant’Ana, amudez de Maria Turum, a fé viva de minha avó, a preguiçade meu irmão e tudo o mais, tudo ficou definitivamente impossível de ser desaprendido. Só não me convenço de tercomido apenas a azeitona da empada.

    Bartolomeu Campos de Queirós, minei

    ro, escritor e educador. Autor, entre outroslivros, dePor Parte de Pai, Ciganos, Ler, Escrever, Fazer Contas de Cabeça, Minerações, Cavaleiro das Sete Luas e Indez. Recebeu, entre outros prêmios: Jabuti,Bienal de São Paulo, Orígenes Lessa eFNLIJ.

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    O VELHO OU O HOMEM DOS 800 VOTOS

    Marcos Rey

    lesmo antes de saber ler eu já vivia num mundo dehistórias, que meu pai, um gráfico, me contava. A realidadepara mim resumia-se em escovar os dentes e amarrar ossapatos. O resto, fantasia das Mil e uma noites e de mil historietas infantis. Algumas, ele próprio inventava, mas nãoera seu forte. Geralmente fazia a maior confusão, improvisando finais que nenhuma relação tinham com o princípio.Sua memória nunca foi grande coisa. Ah, faltou- me dizerque nessa época, enquanto me contava histórias, ia tomando bons goles de vinho. Gostava de beber a qualquer hora,principalmente nos fins de tarde, quando o dia já dizia adeus.Tendo terminado seu trabalho, íamos para o fundo do quintal. Toda casa tinha um, comprido e arborizado.

    Ele levava sempre uma folha de jornal: camuflagem deuma garrafa de vinho. Mamãe, no entanto, que o conhecia

    bem, andava desconfiada.— Vou contar histórias ao menino.— Não sabia que conhecia tantas.— Conheço centenas, minha cara.íamos felizes para o ex tremo da casa e sentávamo- nos

    sobre caixotes. Eu adorava suas histórias, que me custavam

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    uma condição, um compromisso. Eu não poderia falar sobreo vinho ã minha mãe.

    — Receita médica — confidenciou.É... Ele estava doente. Mas não queria que ela soubes

    se, coitada. Por que fazê-la sofrer? Por quê?— É grave, pai?— Se beber vinho regularmente, não.

    A guarda de tal segredo tornava-me mais responsável,quase adulto. A cada um de seus longos goles no gargalo dagarrafa, eu crescia.

    — Como acaba a história, pai?— Qual?— A que está contando.— Refere-se à Branca de Neve?— Essa o senhor já contou, mas pode contar outra

    vez.

    — Bem, o Lobo Mau andava pela floresta de olho naBranca de Neve. Seguia a menina por toda parte, o malvado.

    Estranhei.— Não foi esse lobo que comeu a avozinha de Chapeu-

    zinho Vermelho?Meu pai hesitou. Era ou não era? Eu exigia.— Primo dele.— A inimiga da Branca de Neve não era a bruxa? Meu

    pai virou a garrafa.

    — E quem diz que não? Diabo de bruxa.— O que o lobo faz nessa história?— Pergunta oportuna. Ele passava pela floresta, como

    se não quisesse nada, quando viu a menina com os cincoanões.

    — Sete anões, pai.

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    — No momento eram cinco. Dois estavam em casacom gripe. T inham tomado muito sorvete. E cuidado vocêtambém com os gelados. Mas o lobo se deu mal porque oPequeno Polegar, usando um estilingue, deu cabo dele. Diasdepois Branca de Neve e o Pequeno Polegar casavam-se.

    — Ela não casou com um príncipe, pai?O contador de histórias ia virar novamente a garrafa,

    mas se deteve.— Um príncipe? — Sim, foi com um príncipe.— Em segundas núpcias — esclareceu. — Coisas da

    vida. Algum tempo depois, com o auxílio de uma cartilha, ele

    me ensinou a ler, tarefa então mais complicada porque cavaloera assim —cavallo. Farmácia era assimpharmacia. Ontemera hontem. E a cidade de Niterói escrevia-seNictlneroy.

    Dentro de casa, porém, não me sentia ainda alfabetizado. O prazer da leitura eu descobriria, também com ele, nosanúncios expostos no interior dos bondes, osreclames, como então dizíamos. Notadamente nocamarão, o bondefechado, apelido derivado de sua cor vermelha. Silabando.eu lia os anúncios um a um. Na maioria remédios. Capiva-rol, Biotônico Fontoura, Xarope São João. Eu e todo mundo porque a própria propaganda, uma novidade, chamava aatenção geral. Os bondes eram uma cartilha animada paraos meninos daquela geração.

    Meu pai, um Luiz com z, era filho de italianos, porém

    seus elos com a Itália limitavam-se à comida e ao vinho. Achava os italianos excessivamente ruidosos e pouco requintados. Gostava dessa palavra. Nasceu em Campinas,mas veio jovem para São Paulo e encantou- se pela cidade.Mesmo sem motivo, não passava um dia da semana sem ir“lá embaixo”, o velho centrão, que o atraía como um ímãpossante.

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    Ignorava a periferia. Uma vez disse: “Prefiro morarmal, mas morar perto”. Foi ele quem ergueu o dedo, apontando-me o Martinelli, ainda em andaimes. Levou-me paraconhecer o Viaduto do Chá e presenciar a abertura da Novede Julho. Outra de suas paixões citadinas eram os bairrosricos. Aos domingos, pela manhã, costumava passear àsombra das mansões dos barões do café, em Higienópolis.Quando via uma delas desocupada, dava um jeito de visitá-la. Lembro- me de nós percorrendo uma infinidade de cômodos vazios de um verdadeiro palácio. Ele punha os olhos emtudo, observando os detalhes da construção. Amava lustres,escadas de mármore e ladrilhos portugueses. Nos banheirosexultava se as torneiras fossem douradas. Homem exigente.Requintado, sim. Quando o ouvi dizer ao vigia que desejavacomprar a propriedade, fiquei entusiasmado. Ainda ignorava o alto muro de pedras separando as classes sociais. Aosairmos, perguntei se compraria a mansão.

    — Não percebeu os vazamentos nas paredes? Seria

    um péssimo negócio. Ou não?

    Uma de suas paixões mais vivas era a política. Viviadiscutindo com parentes e amigos. Dizia-se um cidadão idealista, desses que não vendiam seu voto. Não perdia um comício desde a mocidade, quando ouvira Rui Barbosadiscursando em campanha para a Presidência da República.

    Admirava os políticos que empolgavam a praça com suaspalavras e promessas sonoras. Sonhava um mundo melhor.Depois dos comícios ia cumprimentar os oradores, à saídado palanque, e, simpático e bem falante, às vezes era convidado para jantares e banquetes. Meu pai costumava dizer-lhes que tinha oitocentos votos no bolso.

    — O senhor disse 800?— Oitocentos.Naqueles tempos, porém, freqüentar comícios era pe

    rigoso e desaconselhado. Muitos terminavam em corre-cor

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    re e pancadaria. Acontecera de ele chegar em casa sem ochapéu ou sem um dos sapatos. Prometia, então, à minhamãe não retornar aos comícios, mas só promessa.

    Reconheço, todavia — era um vira-casaca. Impressiona-va-o mais a sonoridade das palavras do que o conteúdo. Econstantemente mudava de ideais e partidos políticos. Foi comunista, getulista várias vezes, udenista, democrata- cristão, e

    só não foi trotskista porque sempre se atrapalhava com essapalavra. Ao envelhecer tornou- se um descrente — mais doshomens que dos partidos. E, mesmo próximo dos políticos,não falava mais dos oitocentos votos. O emprego que lhehaviam prometido na Imprensa Oficial jamais se concretizara.Eram uns ingratos.

    Na revolução de 32, com quase todo o comércio fechado, inclusive sua gráfica, meu pai apresentou- se para lutar.

    Alguém lhe dissera que tudo não passaria de um passeio ao

    Rio de Janeiro, onde uma tal cerveja Cascatinha fazia furor.Mas, considerado idoso, o recusaram para as trincheiras.Deram- lhe, porém, um revólver e um distintivo. Homens desua idade teriam a incumbência de policiar a cidade.

    — Prefere trabalhar de dia ou de noite? — perguntaram- lhe.

    — De noite, lógico.— Se por questões familiares preferir o dia...— Isto é uma guerra, não é?Seu horário de guarda ia das dezenove à meia-noite.

    Geralmente ultrapassava de longe esse horário. Escolheupara exercer a vigilância os quarteirões do centro, próximosda querida Avenida São João, sua conhecida desde quandoapenas uma rua — Rua São João. Um trecho cheio de restaurantes, pastelarias, botequins e casas suspeitas.

    Havia também lá o famoso Bar Automático, movido aníqueis, que dispensava garçons, imitação de bares norte

    a i —

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    americanos. Segundo meu pai, por lá pululavam espiões econtra- revolucionários. O alto comando ignorava isso. Masficou sabendo. Meu pai apresentou um sucinto relatório desuas observações. Gente muito estranha circulava à noitepor aqueles quarteirões ou se reunia nas esquinas.

    O relato devia ser verdadeiro porque o vigilante recebeu até uma pequena ajuda de custos para misturar- se com

    aquelas pessoas e descobrir suas tramas. É. Tramava-se namadrugada. Sacrificado, mas com o apoio moral do comando, passou a voltar para casa só ao amanhecer e sem acusarmedo de suas missões arriscadas. Pelo contrário, satisfeitocom o dever cumprido, voltava alegre, cantarolando. A mar-chinha Taí, de Shubert de Carvalho, era uma de suas preferidas. O teu cabelo não nega, outra.

    Observando seu esforço, em três meses de revolução,tive a primeira decepção de minha vida na noite em que nãosaiu para visitar a cidade. Abrira um livro, descansadamente.

    — O senhor não vai, pai?— Perdemos a revolução, meu filho. Já devolvi o revól

    ver e o distintivo. Eram todos contra nós, os paulistas. Masnão faça essa cara de choro. O mundo não acabou. E paravocê está tudo começando.

    Quando o assunto é cordialidade, bem viver, sempreme lembro de meu pai, nisso um mestre. No fim da vidasofreu de catarata, doença de velhos. Para ele, leitor apaixonado, um castigo. E vivia dando esbarrões. Certa vez quasederruba um transeunte apressado.

    — O senhor não enxerga? — bradou o homem, irritado.

    — Realmente não, cavalheiro.— Não vá dizer que é cego.— Tenho catarata. Nas duas vistas. Estou voltando do

    médico. Já marcaram o dia da operação.

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    — Desculpe-me — lamentou o outro. — O senhoraceitaria um café?

    — Mas claro.O homem não só pagou o café como uma cerveja e

    bolinhos de bacalhau. Como seu carro estava estacionadonas proximidades, ofereceu uma carona. E foi a primeiravisita a aparecer no hospital após a operação. Levou um

    pacote de frutas, assinalando o início de uma grande amizade. Durante anos o homem que ele atropelou na rua conduziu-o a toda parte em seu carro e prestou-lhe um mundo defavores.

    Meu pai, um boêmio, estava sempre me advertindo doperigo que representavam certos puros, pessoas sem vícioalgum, alardeando honestidade e sentimentos religiosos. Nogeral referia-se aos amigos de minha mãe, ansiosos por con-vertê-lo.

    — Perto deles, abotoe o paletó — aconselhava. — Sãofalsos e podem nos roubar a carteira.Desdenhava o jogo. O álcool, não. Dizia que vinho é

    uma bebida sagrada. O próprio Cristo — era cristão, embora não tivesse religião — o multiplicara em diversas ocasiões,com agrado geral. Conhecia bem esse trecho bíblico. Equem éramos nós para atribuir pecado ao Salvador?

    Pensando bem, ele tinha razão.Fumante, sofreu um choque quando o médico o proi

    biu de fumar. Questão de vida ou morte. Ficou casmurro e

    desanimado. Até dos livros andou afastado. Para ele o mundo sem fumaça era real demais, duro e sem graça. Mas, como tempo, conversando, conversando, fez tanta amizade como médico, tanta, que ele suspendeu a proibição com a promessa de que meu pai não exageraria nos cigarros. E, embora ele nunca houvesse fumado, aceitou certa vez umcigarro tentadoramente oferecido por meu pai.

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    Além de vinho e cigarros, meu pai também gostava deler, como já foi dito. Quando sobrava dinheiro, compravalivros, que ele próprio encadernava. Recusava-se a ler livrosemprestados e a emprestá-los. Com prazer, alinhava em suaestante romances de Machado de Assis, Eça de Queirós,

    Anatole France, Emile Zola, Oscar Wilde e muitos outros.Sem preconceitos, admirava também romances de aventuras e policiais. Qualquer gênero lhe agradava se estivessecheio de emoções ou lhe provocasse riso.

    Às vezes, já na velhice, me surpreendia lendo e apreciando autores que estavam muito acima da compreensãoda média popular. Como o alemão Thomas Mann, porexemplo, com seu desafiante A Montanha Mágica. Seriaele, meu pai Luiz, um homem muito mais profundo do queeu imaginava? Para testar sua capacidade, recomendava- lhea leitura de outros escritores também considerados complexos, elitizados, de difícil entendimento.

    — Gostou desse, papai?Houve uma pausa. Se não houve, faço-a agora.— Não. Ele pensa que sabe tudo, mas é um imbecil.— Um imbecil? Mas...— Garanto-lhe. Um imbecil.E a incógnita permanecia.Seria meu pai Luiz um homem muito mais profundo do

    que eu imaginava?Quando eu já era um rapazinho levou- me a um res

    taurante do Bixiga para comer pizza e beber vinho. Estran

    geiro.— É caro, pai.— E daí? As doenças também saem caro. Mas diga.

    Como vai se saindo nos estudos?— Bem, graças aos livros da nossa biblioteca. Li um

    montão.

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    — Não seja apenas um estudioso, como a maioria dosdoutores. Eles desconhecem o mundo, desconhecem o homem. Não gostaria que fosse um desses. Que tal?

    — Tem razão.— Refiro-me ao vinho.— Está ótimo, pai.— Já que é sua opinião, peça mais uma garrafa.

    Algumas décadas depois de tudo isso, tendo o tempovoado sobre nós, como pássaros em revoada, o telefone tocou certa manhã. Pessoas de minha família pediam- me paraver o velho. Dirigi-me para sua casa, tentando não pensarem nada, não adivinhar. Entrei em seu quarto ensolaradocomo se se tratasse de uma visita comum. Olhei o cinzeiro.Se houvesse um cigarro aceso, tudo bem. Não havia.

    Vestindo pijama, ele estava estirado em sua cama, sobre as cobertas, sorrindo. O que o faria sorrir tão cedo?Minha mãe e meus irmãos entraram logo em seguida. Também ignoravam por que sorria. Mas não tinham boas noticias para mim.

    Marcos Rey nasceu muito paulistano, em1925, quando seu nome era EdmundoDonato. Estreou publicando contos na antiga Folha da Manhã. Em 1953, lançavao romance Um Gato no Triângulo, só recentemente relançado. Escreveu depoisCafé na Cama, O Enterro da Cafetina e Memórias de um Gigolô, este traduzidopara diversos idiomas e adaptado, comoos dois anteriores, para o cinema, além devertido para a televisão. Escreveu ainda

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    Ópera de Sabão, O Último Mamífero do Martinelli, A Arca dos Marechais e outros. Desde 1981 escreve romances juvenis para a Editora Ática, tendo começadocom O Mistério do Cinco Estrelas. Hácinco anos faz crônicas quinzenais para a

    Veja em São Paulo, já reunidas em livro,O Coração Roubado. E membro da Academia Paulista de Letras e em 1995 ganhou o troféu Juca Pato, conferido, emvotação, ao Intelectual do Ano.

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    U m a b c d e m e s t r e s

    Ana Maria Machado

    *^São tantos meus professores inesquecíveis que é impossível escolher um só. Posso fazer uma longa lista. Talvezem ordem alfabética, um modesto ABC, inspirado nos poemas populares. Como este, em homenagem à Virgem Maria:

    Diz um A, ave-maria Diz um B, bondosa e bela,Diz um C, céu dos mortais, e um D, divina estrela,Esperança nossa,Facho de luz...Tento pensar nos mestres que me deixaram marcas

    fundas:

    A de Aloísio Carvão,Barthes é o número 2,

    Ceciliano vem então,Dezenas virão depois.Mas seria nessa ordem? Entre eles mesmos, brinco de

    trocar de lugar:

    Abel de A lmeida será,Barthes também tem que ser,

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    Carvão na certa estará,De outros não posso esquecer.

    Vejo então que, independentemente da ordem alfabética, esses três são meus primeiros. No pódio. Um ABC mutante: Ceciliano Abel de Almeida, Roland Barthes e AloísioCarvão. E decido que vou evocá- los em outra ordem, a cronológica, na minha vida. Aproveitando para, aqui e ali, recordar também outros professores queridos.

    Nenhum me deixou marcas tão fundas quanto Ceciliano Abel de Almeida, meu mestre de vida. Mas nunca freqüentei as aulas que deu em classe, numa sala. Foi professorde Física e Matemática (sobretudo Geometria e Trigonome-tria), durante mais de cinqüenta anos, em Vitória. Com eleestudaram gerações de capixabas. Seus alunos (já com boaidade a esta altura, pois o professor Ceciliano morreu aos86 anos, em 1965) sempre o recordaram pelo rigor, pela

    competência, pelo modelo ético e pela dedicação:“Severo, severíssimo, mas delicado e dedicado ao extremo. Aluno reprovado em primeira época era convidado apassar as férias inteiras indo diariamente à sua casa, aquelamesma casa onde ele veio a morrer, no horário da manhãou da noite, para assistir às aulas que ele ministrava aos ditos reprovados, gratuitamente, para que eles pudessem fazer os exames de segunda época. (...) Ele não ensinouapenas Matemáticas (...) mas a ser varões, viris, honestos,sóbrios, modestos e pobres de pecúnia terrena”.1

    A mim, evidentemente, não ensinou a ser varão nemviril. Mas foi o modelo absoluto de como deve ser uma pessoa de bem, homem ou mulher. E me ensinou de tudo. Comoantes formara minha mãe. Era pai dela. Mas, além de meuavô, era professor todas as horas do dia, todos os dias da

    1 Dessaune, Jair Etienne. “Varão Ilustre”, in A Gazeta, “Caderno Literário”, Vitória, 20/6/65.

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    semana. Muito além da Matemática. Quando um dos netosfalava errado, ele jamais deixava passar, sempre explicando:

    — Não é “para mim falar”, “mim” não pode ser sujeito, é uma flexão oblíqua do pronome, tem que ser regidopor uma preposição.

    Ou então:— Use o verbo adequado. “Colocar” significa “co-lo-

    car”, localizar ao lado. Deixe de bobagem e diga “botar”.Em Manguinhos, onde passávamos as férias em casa

    dele, me ensinou a conhecer as plantas pelas famílias, mecontou como Lineu as classificara, como Mendel fundara agenética a partir da observação de diferentes feijões. Repetiaas experiências conosco. Fazia com que os netos observassem, comparassem, concluíssem. Perguntava muito. Porexemplo, queria que descobríssemos por que a porteira rangia, por que se formava a fumaça da fogueira, por que seguiaem determinada direção... Explicava o funcionamento da

    maré, as fases da Lua, desenhava a rosa-dos-ventos, ensinava a descobrir em que sentido soprava a menor aragem — epremiava o neto que captasse o instante exato em que, todanoite, a brisa se convertia em terral e passava a ir da terrapara o mar. De noite, sentávamos na areia da praia e elemostrava as constelações, aproveitando para contar históriasda mitologia grega, que dera nome aos corpos celestes.

    Também engenheiro, tinha aberto a Estrada de Ferro Vitória-Minas, e estava acostumado à vida dura dos acampamentos na floresta densa, entre operários, mateiros e encontros com índios — saga que contou num livro apaixonante,que mereceu elogios de gente importante como CâmaraCascudo, Gilberto Amado, M. Cavalcanti Proença.2Andarilho incansável, todo dia escolhia dois netos para irem comele andar no mato — um privilégio e um prêmio. Andava

    2Almeida, Ceciliano Abel de.O Desbrauamento das Selvas do Rio Doce, Coleção Documentos Brasileiros, Editora José Olympio, Rio de Janeiro.

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    depressa na frente, sem olhar para trás, muitas vezes abrindo picadas com o facão, e logo desaparecia entre as árvores.Deixava sinais para que o seguíssemos, além de explicarcomo devíamos prestar atenção ao sol, ao riacho que corria.Era uma aventura. Hoje desconfio que ele devia estar sempre por perto, nos vigiando e protegendo às escondidas.Mas o fato é que com isso nos deu um raro sentido de orientação — nunca me perdi, nem mesmo em cidades estrangeiras cheias de becos ou em mercados populares.

    À medida que fui crescendo, o leque de aprendizado foise alargando vertiginosamente. Discutíamos política, literaturae ele fazia questão de que eu pudesse fundamentar minhasopiniões com um bom conhecimento do tema. Ensinou-me aouvir o que o outro dizia e a ir pensando e preparando os argumentos devagar, para refutar se não concordasse. Adoravaquando eu lhe trazia algo que não conhecia e podia aprendercomigo. Como Guimarães Rosa: “Mestre não é quem sempreensina, mas quem, de repente, aprende”. Aos 80 anos, quan

    do minha avó morreu, teve dois enfartes em um mês. Recuperando-se, decidiu que queria fazer duas coisas: andar a cavalona fazenda e voltar a estudar Inglês. Claro que fez o que quis.E tivemos maravilhosas conversas sobre os romances inglesesque íamos descobrindo. Ao mesmo tempo, continuava exigindo minha leitura de ensaios, sobretudo da Brasiliana, como eledizia. Fez-me ler um livrão de Fernando de Azevedo sobre aeducação no Brasil, nossos historiadores clássicos eCasa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre. E quando saiu oBandeirantes e Pioneiros, de Vianna Moog, lemos juntos, capítulo a capítulo — ele em Vitória e eu no Rio —, discutindo aleitura por carta. Aliás, as nossas cartas são um capítulo à parte. Tenho uma coleção de cartas dele, amarradinhas com laçode fita, como coisa de namorado antigo. Vão desde eu meninaaté as vésperas de meu casamento, quando ele morreu.

    Esse mestre de vida só me deu aula uma vez. Quandoeu estava no terceiro ano científico, nas férias de julho, co

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    mentei que estava com medo de ser reprovada em Física.Logo a matéria dele! Foi um choque, não acreditou. Foiseco e definitivo:

    — Impossível, você sabe Física. Eu mesmo ensinei. E seique você aprendeu. Isso não se desaprende. É para sempre.

    Expliquei que estava com uma coleção de notas baixíssimas porque encaminhava bem os problemas, mas sempreerrava na resposta final, e a professora tirava os pontos daquestão inteira. Muito diferente do que acontecia em Química, matéria em que o professor Victor Notrica (outro demeus mestres inesquecíveis e queridos, paraninfo e amigo)aproveitava o raciocínio, certo para resolver o problema, esó descontava meio ponto pelo erro final — sempre o mesmo, a vírgula do decimal. Vovô Ceciliano me mandou fazeruma divisão de decimais. Fiz. Na hora de botar a vírgula,apliquei a regra, não confiei, desloquei.

    — Por que você fez isso?

    — Porque não é lógico dividir um número por outro eencontrar um maior. Só pode estar errado, então corrigi.Como é que se pode dividir um número de maçãs por umnúmero de meninos e cada um ganhar mais maçãs do quehavia no começo?

    — Pois errou. E errou mais ainda quem lhe meteu nacabeça essa noção de que divisão tem qualquer coisa a vercom maçãs e meninos...

    — É só um exemplo concreto, para facilitar...— Pois, minha filha, não esqueça nunca, a Matemática

    não é concreta. Toda a beleza dela está justamente em seruma poderosa criação abstrata do espírito humano. E necessário entendê- la como uma abstração.

    — Mas quando a gente divide alguma coisa...— Dividir não é repartir! Não me venha mais com suas

    maçãs! — interrompeu, irritado. — Lembre-se apenas de quedivisão é uma operação aritmética que consiste em, dados

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    dois números, obter um terceiro que multiplicado pelo segundo reproduza o primeiro. Em caso de dúvida, faça a prova.

    No mês seguinte tirei boa nota em Física. E não esqueci nunca mais.

    Mas, a essa altura da vida, eu já sabia que não ia tomaro caminho científico, por mais que a admiração pelo professor Victor me atraísse para a Química e me tentasse a seguir

    seus passos. O estranho é que, embora sempre tivesse adorado meus professores de Português, não me passava pelacabeça fazer Letras. No Ginásio Mello e Souza, dona Laísera meu ídolo — eu queria ser como ela, cortar meu cabeloigual ao seu, me vestir com a mesma elegância, ter o sorrisoe as covinhas dela... E saber Português como ela, era tãobonita a maneira como ela sabia, de dentro, nada era decorado. Dona Laís me marcou muitíssimo e tenho certeza deque exerceu uma influência duradoura na minha relaçãocom o idioma. Mostrava a lógica da linguagem nos exercícios constantes de análise sintática — toda aula dava umperíodo como dever de casa, cada dia mais difícil, desafiosótimos e estimulantes, era uma alegria conseguir resolver,eu tinha paixão... E, além dela, minha queridaMrs. Libânio,de Inglês, era uma amiga, uma pessoa terna, afetiva, queconfiava em mim e me estimulava. Nos momentos difíceisda adolescência, quando eu precisava de uma figura materna substituta, ela foi uma dessas preciosas “mães postiças”.

    Depois, no científico, já no Colégio de Aplicação, umasérie de professores de Língua e Literatura (sobretudo Margarida Alves Ferreira e Carlos Lemos) me encaminhou e

    deixou no ponto exato para que eu pudesse entrar na faculdade de Letras com sucesso. Mas nem percebi. Achava quetinha horror a Latim, como todo mundo, e estava preocupada com política, num colégio altamente politizado. E, porcausa de dois maravilhosos professores de Geografia (Maurício Silva e Artur Weiss), inteligentes e criativos, acabei seguindo os passos deles.

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    No curso de Geografia, minha professora inesquecívelensinava era História — Maria Yedda Linhares, uma mulherbrilhante e admirável. Mas não demorei muito a trancarmatrícula e ir embora, decepcionada com aquela Geografiaárida e tão pouco voltada para a economia e o humano. Sóaí, claro, fui me dar conta de que devia estudar Letras. Mas

    já sabia que era artista, ia ser artista sempre, e não tinha

    escolha. Essa descoberta — e muito mais — eu devo a Aloí-sio Carvão.

    Todo mundo conhece Aloísio Carvão como um dosmaiores pintores brasileiros, um dos mestres do neoconcre-tismo, um colorista da grandeza de Volpi, um criador rigoroso e disciplinado que jamais perde o lirismo. Mas em 1957,quando fui estudar Pintura com ele no Museu de Arte Moderna, eu era uma menina que não tinha como avaliar isso.Só sabia que ele me sacudiu por dentro, me virou pelo avesso, me renasceu.

    As aulas de Carvão pareciam muito simples. Num grupo pequeno de alunos, fazíamos alguns exercícios de composição, de observação, nada de mais. Mas o principal é quededicávamos as aulas quase inteiras a analisar e comentar ostrabalhos feitos em casa, as telas em que estávamos trabalhando. Em outras palavras: eram quatro horas semanais decrítica e autocrítica, em que tínhamos que aguçar a percepção, saber ver e refletir sobre o que víamos, ir além da superfície do objeto. Todos falávamos, muito livremente.Carvão sabia estimular a manifestação de cada um, forçava

    a opinião a se desprender dos mais tímidos, cobrava fundamentação para cada análise, não admitia que houvesse omenor traço de agressividade ou presunção, controlandoatentamente qualquer impulso inconsciente que descambasse para o pessoal. Impossível dizer quanto aprendi com esseexercício constante. Mas sei que desenvolvi com ele um rigor e uma exigência indispensáveis a qualquer criador.

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    O que acontecia não era apenas que aprendíamos acriticar o trabalho dos colegas, a ver pintura em geral — comuma atitude válida para qualquer arte. O mais importante éque, enquanto um de nós trabalhava numa tela, já ia imaginando o que os outros poderiam achar, ouvindo por antecipação que aquela composição era óbvia, o tratamento erafácil e estereotipado, a cor estava suja, a superfície se limita

    va a ser chapada, a solução era a mesma que já tinha sidoexplorada num trabalho anterior e assim por diante. Paraevitar ouvir isso — que era muito duro —, o jeito era consertar, começar de novo, sair para outra. No fim de algum tempo, eu estava craque em ver as armadilhas em que podiacair, não conseguia me contentar com uma tela apenas bonita. E, apesar disso, todos continuávamos ouvindo críticas— principalmente do mestre. Comigo, então, era implacável, e mais de uma vez me fez chorar. Mas era impossível sermais terno e amoroso. Eu podia sofrer, mas tinha certeza deque ele só me exigia o que sabia que eu podia buscar dentro

    de mim. O negócio era descobrir como. Só quem já passoupor processos semelhantes pode entender plenamente asagruras dessa busca e a euforia de uma eventual descoberta.Carvão me ensinou algumas coisas para toda a vida. Dearte, principalmente. Mas também de caráter — algo queme faz associar a integridade de um artista à própria dignidade do ser humano. Sem facilitário, sem correr atrás domercado e da fama, sem seguir modismos, sem levar a sérioas críticas sem fundamento, sem desprezar a opinião alheiailuminadora. Mas no fundo sempre achei que ele era maissevero comigo do que com alguns dos outros.

    Há poucos anos, num encontro casual, mais uma denossas conversas carinhosas, tomamos uns vinhos e ele resolveu me confessar uma coisa:

    — Sabe, Ana Maria, eu tenho um pouco de remorsoem relação a você...

    E explicou:

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    — Eu era meio duro com todos os alunos. Mas comalguns, como você e o Áquila, eu era especialmente exigente, muito mais. Porque eu achava que vocês tinham talento,então tinha que apertar... Com o Áquila deu certo, mas comvocê... Acho que exagerei na dose. De vez em quando penso nisso: será que eu não te fiz desanimar de ser pintora?

    Disse a ele a verdade. Acho que não. Eu mesma é que

    fui descobrindo que minha forma de expressão era mais verbal que visual, embora nunca tenha deixado de pintar paramim mesma. Mas trouxe para a literatura as lições inesquecíveis que ele me deu. Devidamente adaptadas dos problemas com linha, cor, textura e espaço para palavras, períodos,personagens e estruturas narrativas.

    Nessa passagem, foram muito importantes os professores com quem estudei no curso superior. Na faculdade, antesde mais nada, o professor Lisboa. José Carlos Lisboa, de Espanhol. Se neste texto eu tivesse optado por falar apenas deum mestre, limitando- me àqueles com quem tive aulas regula-res, numa classe com carteira e quadro-negro, sem dúvidateria sido ele meu professor inesquecível. Mas o que mais melembro dele não era em sala de aula — embora seus ensinamentos tivessem ficado, desde o Cid e o romanceiro medievalaté o arrojo das metáforas de Lorca e Alberti, passando porCervantes, Lope de Vega, Calderón e Quevedo. Tudo regadoe desbravado pelos maravilhosos teóricos a que o professorLisboa me apresentou, em uma fantástica coleção da Editorial Gredos — Leo Spitzer, Dámaso e Amado Alonso e tantos

    outros. Mas o professor Lisboa tinha uma coisa especial, forados muros da faculdade: osohrinhato. Não sei como começou, já o encontrei formado. Mas o fato é que em toda turmaselecionava alguns alunos (talvez tendo em vista sua possívelindicação futura para uma bolsa de estudos do Instituto Hispânico, em Madri, que também acabei ganhando) e os incorporava aosobrinhato, levando-os a freqüentar sua casa, uma

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    experiência única. Lá éramos recebidos por ele e sua mulher,Teresinha Pinto (que antes de assim virar minha amiga já erainesquecível professora de meus irmãos no Colégio de Aplicação), pelos filhos dela, por outros alunos dele de outras séries, por ex-alunos, colegas e pela imensa família dele, deMinas, que volta e meia vinha ao Rio e se hospedava lá — eincluía até sua irmã, a poeta Henriqueta Lisboa. Morava numapartamento na Voluntários — que vim a conhecer muitobem, até nos detalhes de encanamento e lixeira, pois anosmais tarde morei lá, num negócio de pai para filha, quando oprofessor Lisboa me fez sair de São Paulo e vir trabalhar comele na fundação da Escola de Comunicação da UFRJ e mecedeu o imóvel (então vazio e usado apenas para escritório).Mas nessa ocasião estava ocupado e vivia cheíssimo. Antesde mais nada, abarrotado de livros — e que livros! As estantesse derramavam da sala e dos quartos pelos corredores, penduravam-se no teto e se abriam em generosos empréstimos epresentes. Mas não se pense que o ar da casa era sisudo e

    empoeirado. O professor nos recebia em seus trajes caseiros:sempre um macacão de sarja azul, folgadão, desses de operário. E seguíamos diretamente para a mesa de pingue- pongue,que dividia com as estantes todo o espaço disponível da salae onde nos fins de semana o revezamento com bolinha e raquete não cessava o dia inteiro enquanto os outros “sobrinhos” esperavam a vez e se espalhavam como podiam pelacasa, discutindo tudo — sobretudo literatura, arte e política.Impossível avaliar o que aprendi nesse processo ou listar asincontáveis pessoas fantásticas que conheci então, ou os amigos verdadeiros que até hoje dividem comigo as memóriasmarcantes dosobrinhato. Dou apenas dois exemplos, ambos

    já mortos, como o professor: o sambista Ismael Silva (levadopor Celso Cunha, claro) e o crítico Hélcio Martins.

    Como se tudo isso não bastasse, na faculdade ainda fuinovamente aluna de minha querida Margarida Alves Ferreira (a essa altura, já como assistente de Cleonice Berardinelli,

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    outra mestra notável, de Literatura Portuguesa). E de Marle-ne Castro Correia, Celia Teresinha Pinto e Maria Arminda

    Aguiar — três outras assistentes que fizeram minha cabeça.Para não falar em mestre Alceu Amoroso Lima, que por sisó merecia um artigo inteiro, louvando seu entusiasmo vibrante, sua eterna juventude, sua chama que nos incendiavade sede de justiça e amor à palavra — e que mais tarde seria

    paraninfo de nossa turma. Dando aula sobre Euclides daCunha, seguia a descrição do texto, ia imitando o andar dosertanejo e se transformava no personagem. Contava comocarregou Graça Aranha nos ombros para tomar de assalto a

    Academia. Comungava com Murilo Mendes e Jorge de Limae transformou isso em paixão dos alunos. Uma vez pediuque levássemos um violão e deu aula de poesia ao som demúsica. Outra vez, me deu nota 20 num trabalho sobre Gra-ciliano e escreveu embaixo: “10 pelo conteúdo literário, 10pela densidade humana”. Para valer. Fiquei dispensada doúltimo trabalho — mas fiz, só para dar de presente a ele.

    Com mestres desse calibre, saí de lá pronta para o quedesse e viesse. E veio Roland Barthes. Mas veio aos poucos.

    No início de 1970, após prisões e perseguições, nomeio de toda aquela barra da ditadura, não dava mais paraficar no Brasil e resolvemos ir embora. Meu marido tinhauma bolsa encaminhada na Europa e fomos para a França.Chegando lá, o ano letivo estava no meio. Para não perdertempo, entrei como ouvinte em vários cursos para decidironde me matricularia depois. Acompanhei as aulas das

    grandes estrelas da Semiologia: A .J . Greimas, Tzvetan To-dorov, Claude Bremond, Gerard Genette. As que mais meatraíram foram as de Christian Metz (com quem cheguei acursar um semestre regular) e Roland Barthes, com quem jásentia maior afinidade e que já era meu preferido. Gostariaque ele pudesse me orientar na preparação da tese de doutorado, que eu começara no Brasil e tivera que interromper,

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    levando uma mala de livros e fichas. Mas trabalhar com eleera um sonho impossível. Havia quase 2 mil pretendentes.Nessa época, ele dava um amplo seminário num teatro paracaber todo mundo. Apenas uns privilegiados, menos de vinte, eram escolhidos para o grupo reduzido que toda semanase reuniria com ele em volta de uma mesa, no salão de umnobre “hotel” do século XVIII, dando para um pátio de pe

    dras onde as árvores melancolicamente perdiam suas folhas.Nem tentei. Era muito capim para minha égua. Matriculei-me apenas como ouvinte, no auditório gigante.

    No dia da primeira conferência, antes de começar, eleleu o nome de meia dúzia de pessoas que deveriam procurá-lo no intervalo. Entre eles, o meu — para total surpresa. Naplatéia, eu e meus amigos, os cineastas Zelito Viana e CacáDiegues, conjeturávamos o que poderia ser. Mas subi ao palco no intervalo, disputando um lugar em torno da mesa doprofessor. Uma multidão se acotovelava para chegar pertodele. Tenho horror a essas situações. Fiquei para trás. Desisti. No final, quando já íamos descer de volta às cadeiras, elereparou em mim — difícil não reparar, com minha barrigade grávida. Perguntou meu nome. E aí, surpresa:

    — Madame Machado? La brésiíienne?Eu mesma, né... Sorri amarelo, constrangida, todo

    mundo me olhando. E ele:— Era só para dizer que a senhora foi selecionada para

    o grupo que vai fazer tese comigo. Pode passar no meu escritório terça- feira para uma entrevista?

    Claro que podia. Mas como me escolheu? Eu nem ousara me candidatar...

    Na entrevista, fiquei sabendo. Ele vira meu currículo.Ficou impressionado com a quantidade de coisas que eu játinha feito em minha pouca idade — não sabia que o Brasilnão tem preconceito contra jovem, que estávamos criandonovas faculdades na ocasião e o pessoal qualificado para

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    ocupar as cátedras era raro. Mas me disse que ficou na dúvida. Havia duas hipóteses: ou eu era muito competente eele me queria por perto, ou eu era uma arrivista “entrona”,do tipo que pisa nas pessoas, passa todo mundo para trás enão hesita em seu carreirismo. Quis me conhecer. Era umsemiólogo em tempo integral, estava sempre observandosignos e analisando sua significação. Quando me viu recuando

    da multidão que se acotovelava a seu redor e percebeu queeu desistia de falar com ele para não me meter naquela competição de tietagem, chegou à conclusão de que a primeirahipótese era correta. E me chamou.

    Foi o início de uma bela amizade e uma inesquecívelrelação com um professor marcante. Logo de início, perguntou- me o tema da tese que eu queria fazer. Quando contei que estudava, havia dois anos, o papel dos nomespróprios na geração do texto de Guimarães Rosa, ficou sério, acendeu um cigarro e começou a levantar problemasconcretos que apareceriam por ocasião do fichamento domaterial. Fiquei pasma. Como podia saber? Era verdade. Eu

    já encontrara esses problemas, já quebrara a cabeça comeles, quase desistira, mas finalmente encontrara uma solução — que envolvia fichas de cores diferentes, escrevendocom tintas de cores diferentes, mudando de cor à medidaque o uso do nome variava no universo rosiano. Parececomplicado, mas era um ovo de Colombo, simplicíssimo depois de descoberto. Ele ficou animado, disse que era umasaída muito engenhosa, me fez explicar em detalhes. Emseguida, admitiu que eu poderia desenvolver um artigo de

    vinte laudas sobre o tema, mas jamais uma tese de duzentaspáginas. Era melhor escolher outro assunto, aconselhou. Fiquei frustrada e furiosa. Discuti, me exaltei, desconfio atéque fiquei meio agressiva, afirmando que ele nem desconfiava da grandeza do Rosa, não percebia a riqueza do materialque eu tinha nas mãos, o grau de consciência da linguagemque tinha o autor. Argumentei, dei exemplos. Barthes ouvia

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    calado, reclinando para trás a cadeira, a cinza enorme pendurada no cigarro preso ao canto esquerdo da boca. Depoisriu, abriu a gaveta de baixo da escrivaninha, mexeu numaspastas, tirou uns papéis e me deu:

    — Há anos eu esperava pela senhora. Leia com atenção, faça o uso que quiser e depois me devolva. Não voumesmo lidar mais com isso.

    Eram umas vinte páginas de anotações e fragmentossobre o nome próprio em Proust. Um tesouro! Barthes contou que era fascinado pelo tema, já pensara em se dedicar aele, mas enveredou por outros caminhos, esbarrou nas dificuldades com as fichas e empacou, ficando só com aquelasnotas. Guardadas na gaveta, à espera de um aluno que aslevasse adiante. Eu era a terceira a aparecer falando emnome próprio. Mas os dois anteriores não tinham resistidoao questionamento cerrado a que acabara de me submeter.

    Nesses dois episódios, ele falou pouco e observou muito.Mas nem preciso dizer que, quando falava, Roland Barthesera um deslumbramento, uma iluminação para a inteligência,um modelo de raciocínio e de integridade intelectual, um casoraro de leitor apaixonado e teórico coerente. Bem- humorado, irreverente, irônico, sensível, obcecado pela lucidez, fascinado pelas infinitas possibilidades da linguagem, Barthes foipara mim uma prova viva de que é possível haver um intelectual brilhante que fuja de rótulos e desconfie de si mesmo, queesteja sempre disposto a pensar por sua própria cabeça, contra as correntes, contra o corrente, e que a maior recompensa está na própria alegria das descobertas mentais.

    Toda essa carga intelectual não impedia que fosse umadoce pessoa no trato. Foi carinhoso comigo quando meu filhonasceu, continuou alimentando uma troca amiga quando volteipara o Brasil e me escrevia de vez em quando, insistindo emacompanhar o que eu andava fazendo. Um dia, ao entrar emsala, os alunos estavam comentando que ia haver na Universidade de Urbino, na Itália, um curso intensivo de verão, com

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    dez horas de aulas de Semiologia por dia durante um mês eprofessores como Umberto Eco. Perguntou-me se eu ia fazer,respondi que não. Em nossa entrevista da terça seguinte, insistiu, adivinhou que era só por falta de dinheiro, confirmei.

    — Então lhe consigo uma bolsa.— Tem bolsa? Eu não sabia... Então, vou pedir.— Não, não tem. Mas todos me conhecem, são meus

    amigos, nunca pedi nada a eles. Vou pedir uma bolsa paravocê e acho que dão.

    Deram. Fiz o curso. Maravilhoso presente de RolandBarthes, com o qual eu nem ousava sonhar.

    Quando finalmente entreguei a tese, uma das observação que fez o retrata mais do que a meu trabalho, e por issotranscrevo. Ao final da avaliação do meu ensaio comentou:

    — Não posso deixar de dizer uma palavra sobre sua linguagem. Sempre encontro alunos que abusam do jargão, masnão dominam os conceitos a que ele se refere. Seu trabalho é

    o inverso disso. A conceituação é rigorosa, mas você evita o jargão técnico sempre que pode, substituindo-o por imagens emetáforas. Por que foge da terminologia mais exata quandoestá tão à vontade entre tudo aquilo a que ela se refere? Estouenganado ou isso revela uma crítica implícita a todos nós?

    Expliquei que desejava que o livro um dia fosse publicadono Brasil e pudesse ser entendido por estudantes e professores que não precisavam conhecer Semiologia para compreender Guimarães Rosa. Ele riu e aprovou. Aquele riso meiocontido, irônico, com que sempre o tenho vivo na memória.

    Memória viva de todo o ABC de professores, mestres demuito mais do que o ABC. Podia vir um D de Darcy Ribeiro,com quem nunca estudei mas com quem muito aprendi quando trabalhamos juntos. E Lauro Oliveira Lima, dinâmico e irreverente desconsertador de certezas, mestre de meus filhosa me ensinar por tabela. E tantos, tantos outros, como Paulo

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    Freire e Anísio Teixeira, com quem meu caminho se cruzoupoucas vezes, mas que me ensinaram o mundo — e hoje nãoestão mais aqui. Podem ser procurados na cantiga de rodaque aprendi com a dona Jurema, minha primeira professora,lá no jardim de infância, entoandoCarneirinho carneirão:

    Olhai pro céu,olhai pro chão, pro chão, pro chão...

    Ana Maria Machado, pintora, professorauniversitária, jornalista, livreira e escritora,nasceu no Rio de Janeiro. Após se formarem Letras Neolatinas, estudou com RolandBarthes, sob cuja orientação fez sua tesede pós- graduação na Ecole Pratique desHautes Etudes, em Paris.Começou a escrever em 1969 e já publicou cerca de cem livros, tanto para adultosquanto para crianças. Seus livros venderam mais de 4 milhões de exemplares etêm sido objeto de numerosas teses universitárias — inclusive fora do país. Suaobra para crianças e jovens está traduzidae publicada em dezessete países e recebeutodos os principais prêmios no Brasil e alguns no exterior. Sua obra para adultos,também premiada, é considerada pela crítica uma das melhores da literatura brasi

    leira contemporânea.Nos últimos quinze anos, vem exercendoatividades na promoção da leitura, tantonacional quanto internacionalmente. Deuseminários da Unesco em países em desenvolvimento e fez conferências em quasetodos os continentes.

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    M i n h a P r i m e i r a H i s t ó r i a

    Ivan Angelo

    £ u odeio professores. Eu odeio professores. Eu sempre vou odiar professores. Ficava repetindo isso para meacalmar e depois de umas cem vezes já conseguia aceitar ofato de que ia bombar. Eu não tinha problema nenhum comeles, a não ser o fato de eles terem vários problemas comi

    go. O de História, Zé Raimundo, me botava para fora dasala assim que chegava. Chamava de molecão e botava parafora. E depois me cobrava a lição de casa, que eu não tinhafeito porque ele não me deixava assistir à aula. Dona Rosa,de Religião, achou que eu estava querendo acabar com otrabalho dela quando eu disse que religião tinha de ser ensinada em História e deveria explicar igualmente todas as religiões, até a dos ín