3 contos - advocef.org.br · de anselmo a verdes trigos 34 domingo no clube 48 homem, um eterno...

88
ndice Apresentação Contos Crônicas A estranha mania da Caixa 4 A leitura me dá sorte 20 A mosca 82 De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é bicho infantil, né não? 78 Natal pagão 77 O guarda-noturno 17 O Mosquito 86 O velho general e a dama de ouros 24 Paixão adolescente 70 Passagem 84 Pensamento - força motriz da humanidade 62 Quotidiano 32 Í 3 A noiva 60 A porta 50 A trucada 56 A viagem da leitura 88 Assédio 8 Café para quatro 30 Cento e cinquenta 42 Cinco da manhã 72 Em carnaval também se ama 44 Inocente no mundo de Kafka 16 Não há sabedoria na cova a que se destina 7 O cofre 12 O pufe 39 Perspectiva 69 Sorte Grande 58 Uma vez após o cinema 36

Upload: builiem

Post on 10-Dec-2018

232 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

ndiceApresentaçãoContos

CrônicasA estranha mania da Caixa 4A leitura me dá sorte 20A mosca 82De Anselmo a Verdes Trigos 34Domingo no clube 48Homem, um eterno insatisfeito 65Impermanência 66Menino é bicho infantil, né não? 78Natal pagão 77O guarda-noturno 17O Mosquito 86O velho general e a dama de ouros 24Paixão adolescente 70Passagem 84Pensamento - força motriz da humanidade 62Quotidiano 32

Í3

A noiva 60A porta 50A trucada 56A viagem da leitura 88Assédio 8Café para quatro 30Cento e cinquenta 42Cinco da manhã 72Em carnaval também se ama 44Inocente no mundo de Kafka 16Não há sabedoria na cova a que se destina 7O cofre 12O pufe 39Perspectiva 69Sorte Grande 58Uma vez após o cinema 36

Page 2: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

ndiceÍPoemas

A duração 68A morte incondicional 38A mulher 54A vida é feita de caminhos 74Amor de areia e mar 81Cálice 85Cartão 55Com atraso famigerado li suas ditosas linhas 74Cristal na noite 68Desconstruindo-se 68Desculpas perversas 85Direito Penal em versos 6Espera 80Etapas 23Fica comigo 76Gosto feminino 55Luísa 23Mais que 6Mensagem de Ano Novo 80Nuvenzinha (My little cloud) 55O amor 75O dizer sem palavras já rompeu o vento 75Olhos ao mar 81Paradoxo 23Por detrás dos sinais 85Razões de um cantor 74Renovação 22Roubei um verso 22Saga da figueira - A estória de Governador Valadares/MG 28Sem limites 75Silêncio 80Sucessão cinematográfica vital 38Tantas são as poesias da vida 76Todos os sonhos 76

2 Revista de Literatura da ADVOCEF

Page 3: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

Apresentação

3Revista de Literatura da ADVOCEF

Letras e sentimentos

A Associação Nacional dos Advogados da Caixa Econômica Federal -

ADVOCEF, com alegria e júbilo, apresenta sua primeira Revista de

Literatura.

Nascida de uma proposição do associado Jayme de Azevedo Lima,

apresentada no XVII Congresso Nacional da ADVOCEF, aprovada por

unanimidade, a Revista de Literatura tomou forma e corpo com a adesão

entusiasmada de muitos companheiros.

Participam do projeto autores já conhecidos através das publicações

da ADVOCEF. Essenciais, desbravadores, eles valorizam a obra e

acompanham os novos talentos, ou simplesmente desconhecidos, que se

mostram agora para todos. Advogados e escriturários, os autores são

todos integrantes da área jurídica da Caixa.

A concepção gráfica diferenciada emoldura com carinho a produção

desses escritores e poetas. Dá o devido destaque a textos em prosa e

verso que tratam do amor, das relações humanas, das sensações vividas

no cotidiano. Alguns autores põem em cena situações e gentes do seu

habitat profissional - que abrange a Justiça e, especialmente, o Jurídico

da Caixa.

A Revista pretende ir além do mero exercício de aproximação entre

as pessoas que tornaram a ideia uma realidade. Consolidando em suas

páginas uma resenha da produção literária desse segmento, ela propicia

um profundo reconhecimento do valor de cada um para a totalidade da

categoria.

Receba este exemplar como demonstração do afeto dos que fazem

do Jurídico da Caixa um órgão peculiar, composto de trabalhadores que

se expressam, também, através da arte, a boa arte.

Desejamos um ótimo 2010, repleto de graças e de realizações. Que

não nos falte trabalho e que nos disponhamos, sempre, a dar uma parada,

para refletir e (re)ler as manifestações de sensibilidade e de cultura com

que somos brindados.

Boa leitura!

Diretoria Executiva da ADVOCEF

Page 4: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

4 Revista de Literatura da ADVOCEF

A estranha mania da CaixaÉder Maurício Pezzi López

A primeira coisa que percebi quando entrei naCaixa foi que ela não era aquele típico enteabstrato e impessoal que constitui uma pessoajurídica. A "Caixa" era mais do que isso. Ela équase uma verdadeira pessoa, com sentimentos,bondade, malícia. Em tempos de dissídio coletivo,tem gente que diz "a Caixa tá sacaneando!", "aCaixa tem que abonar os dias parados!", "a Caixadisse que vai dar aumento", e assim por diante. Dáquase pra ver a cara dela às vezes. Até quemduvida dessa personalidade dela, e adora dizer "euganhei a causa", "eu cobrei a dívida", "eu assinei ocontrato", na hora do aperto manda um clássico "aCaixa errou", "a Caixa perdeu", falando com umavoz baixinha entre os dentes. Então, visto que elaexiste, vamos agora falar da sua estranha mania:trocar o nome das coisas.

A nossa velha e boa Caixa tem um vícioincontrolável de dar novos nomes para as coisas,criar novas siglas, rebatizar áreas inteiras. Não queela também não goste de mudar as coisas deverdade, na sua substância. Nada disso. O fato éque, antes de qualquer coisa, ela tem um gostoespecial por ficar horas pensando no novo nomeque as coisas terão. Olhem só: um dia ela viu queo nome SEREN estava meio batido e resolveumudar o nome dos jurídicos regionais para CEJUR,reforçando mais o "jur", talvez pra botar maisjuridicidade no órgão. Não satisfeita, mudou paraJURIR, botando o "jur" bem no começo, pra dizerlogo a que vinha aquele setor da empresa. Essestempos mesmo, depois de ligar umas três vezespara o mesmo número achando que tinha errado oramal, descobri que a antiga GITER tinha viradoGICOT, e a GIPRO agora se chamava GICOP.

E as mudanças não envolvem só osfuncionários que estão do lado de dentro. Temgente de fora que também se atrapalha toda. Háalguns anos, uma colega minha quase saiu no tapano consultório médico para que aceitassem o"Saúde Caixa" dela. A secretária do médico insistia

que eles só aceitavam o PAMS, e não tinhaconversa. O plano de saúde tinha mudado denome (de novo), e algumas pessoas estavammenos atualizadas do que o necessário.

Se a Caixa fosse participar de uma entrevistadessas da televisão, onde fazem aquele "batebola" de perguntas curtas, e perguntassem qual olivro de cabeceira, acho que todos sesurpreenderiam. Alguns esperariam algum livro doKeynes, ou de Adam Smith, ou até de Karl Marx,mas todos estariam tremendamente enganados. Olivro preferido da nossa querida Caixa é "Marcelo,Martelo, Martelo", aquele clássico da literaturainfantil sobre o menino que adorava mudar onome das coisas. Ao invés de chamar colher de"mexedor", a Caixa gosta de alterar o nome degerências, superintendências, escritórios, oumesmo de transformar um no outro, só para mudarde "EN" para "SR".

Na realidade, essa obsessão por criar títulos enomes meio que acabou ganhando vida própria naempresa, e os próprios funcionários acabaraminventando as suas próprias siglas. Quem játrabalhou em agência pode até não saber o que é

Page 5: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

5Revista de Literatura da ADVOCEF

o "boletim de ocorrências diárias" (acho que é isso), masconhece o "BOD" como velho amigo e companheiro do diaa dia. O problema é que sempre tem gente que abusa. Háalguns anos, na época em que corriam rumores deprivatização da Caixa, uns empregados marotos soltaramo boato de que estavam adiantadas as negociações com aempresa americana Organizational Design andManagement Co. (ODAM), as quais previam uma série demedidas de enxugamento de salários e cargos. Seriaentão formado o conglomerado CEF-ODAM. A Caixa, éclaro, não gostou da nova sigla - nem da brincadeira - eresolveu cortar o mal pela raiz. Mandou reformar o logo daempresa e eliminar toda e qualquer alusão à "CEF". Dalipara a frente era só "Caixa", e fim de papo.

Se as mudanças são complicadas para quem está naativa, para os aposentados isso é um verdadeiro drama. Écomum ver alguns ex-colegas tentando visitar seu antigolocal de trabalho, não raro trazendo uma daquelascarteiras compridas debaixo do braço, acompanhados dealgum netinho que carrega um sorvete recém comprado.Esses tempos mesmo vi um deles na portaria do prédio daAlmirante Barroso, no centro do Rio, dizendo que tinhatrabalhado na GEAFI. Não vi o desfecho da conversa, maslembro de ouvir a atendente dizer que ali não tinhanenhuma área com esse nome, e que ele deveria estarenganado. Enganado não. Atrasado, porque a área játinha mudado de nome, pelo menos umas três vezes. Naverdade, acho que a cada mudança a Caixa deveriamandar uma espécie de glossário para os colegasaposentados lerem e fazerem as devidas conversões, atépara poderem conversar uns com os outros.

A realidade - sou forçado a reconhecer - é que todosnós temos uma dificuldade enorme de aceitar asmudanças, especialmente aquelas que mudam o nomedas coisas e, às vezes, até a maneira como chamamos onosso próprio local de trabalho. Contudo, talvez issoseja o início das verdadeiras transformações, e umaforma de a gente não se acomodar, deixando deacreditar que tudo pode de alguma forma sermelhorado. Mas há que se ter cuidado, pois o tiro podesair pela culatra. Uma vez chegou uma mensagem damatriz para todas as agências, determinando que o jácitado BOD passasse a ser feito por meio de formulário,o que alteraria radicalmente a sigla do documento. Oresultado foi uma outra mensagem no dia seguinte,cancelando a anterior e, principalmente, fazendorenascer o nome do velho BOD, que conseguiu vencer amania da Caixa. Pelo menos dessa vez.

Page 6: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

Direito Penalem versos

Penal é o ramo do DireitoFaltem-me recursos, "engenho e arte",Faço dele, modéstia à parte,Uma fonte de cultura e inspiração!

Ainda que tudo vá para os ares,Talvez, quiçá, buscar o infinito,Quero degustar, gota a gota,O mal de seu veneno intangível!

Ao que me parece, ao contrárioDo que pensa nobre criminalista alemão,Não se me afigura um "mal necessárioQue, superada a necessidade, só resta o mal".

Não acredito ter o Direito PenalTão-somente pela influência da moralJudaico-cristã, de índole sensacionalPadecer, insólito, no seu próprio calvário!

Não há que se vê-lo, portanto, isolado,Assistêmico e antiquado, doravanteAtribua-se-lhe missão de combater o crimePois, intento, de tamanho calado, incumbeA toda ordem jurídica imposta pelo Estado.

Inconcebível negar ao delito,Fenômeno expansivo metastático,O seu caráter de fato social proscrito,A indicar a ratio cognoscendi do desprezoDo conceito de justo em dada sociedade.

Mais que o mundo jurídicoTão preciso

Tão cheio de normasQue possibilitam

A organização das relaçõesA convivência civilizada

Mais que as ciências nosproporcionam

Impulsionando o desenvolvimentoDa tecnologia

Do conhecimentoTrazendo feitos significativos

Alterando a cada instanteNossa vida civilizada

Vale aquilo que somosAquilo que podemosTransmitir aos outros

Deixando nossa marcaNosso jeito de ser

A fim de vê-lo prosseguirSeu caminho

Mesmo distante de nós

Mais queLuciane Martins de Araújo

Mascarenhas

Manoel Messias Fernandes de Souza

6 Revista de Literatura da ADVOCEF

Page 7: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

7Revista de Literatura da ADVOCEF

Não há sabedoriana cova a que se destinaHenrique Chagas

Final de tarde. Cansado, após ter prolatadoinúmeras e sábias sentenças naquele dia de agosto,o velho magistrado sonha com a aposentadoria quenão tardará. Da pauta, ainda restou o julgamentode um simples pedido de alvará. Começou a lê-lo,com a calma e a serenidade que lhe são peculiares:"Libera a tua boca pra sorrir/ O melhor remédio protédio é se divertir/ livre-se do passado que viveu/pra ficar também de bem como eu (libera)/ Dane-setudo que te sufocar/ tudo aquilo que te impede depoder voar/ Libera geral".

Sentiu-se como se adentrasse num programainfantil de televisão; entretanto, diante de si seprosternava um pedido de autorização para saquedo FGTS, onde o interessado alegou que a suaconta vinculada se encontrava paralisada há trêsanos. O interessado sustentou que o entrave sedava por meras questões burocráticas, com as quaisele não concordava. Por isso fundamentou seupedido no "libera geral".

O interessado declarou-se frustrado com oindeferimento da tutela antecipada pedida(indeferida por inadequação processual, diga-se depassagem), que não correspondeu à suaexpectativa. Esperava que o pedido fosse concedidosem procedimento, sem processo, sem delongas,sem formalismos, sem burocracias, "zás traz".

Afirmava ainda que caso não houvessereconsideração, e, se não lhe fosse deferido oalvará, de nada valeria ter batido às portas domagistrado, pois o interessado poderá sacar oFGTS, na própria Caixa, no seu aniversário em abrilvindouro, pelo que, ao contrário, melhor seráarquivar o processo.

Incrédulo, palpitava ansioso o coração.Perguntava-se que teria dito a Caixa, defensora doFGTS, nas suas manifestações, em contraposição ao"libera geral".

"Tudo tem o seu tempo determinado, e hátempo para todo propósito debaixo do céu/ Hátempo de nascer, e tempo de morrer; tempo deplantar, e tempo de arrancar o que se plantou;/ .../tempo de buscar, e tempo de perder; tempo deguardar, e tempo de deitar fora;/ tempo de amar, etempo de aborrecer; tempo de guerra, e tempo depaz."

O inesperado texto sapiencial e bíblico doCoelet, trazido pela defesa, impregna suas retinascomo fachos de luz e o atordoa em dilemaexistencial. Sabe que não se deve desperdiçar otempo e que não há qualquer sabedoria na cova aque se destina.

A defesa diz que não é tempo de liberar geral.Tudo tem o seu tempo debaixo dos céus, e otempo de liberar o saque daquela conta vinculadaestá descrito na lei, que é a vontade democráticada sociedade, vontade essa que impede a liberaçãogeral de qualquer coisa! Pelo contrário, disciplina oinstinto, a vontade individual e os desejos de cadaum. Se fosse permitido a todos fazerem o que bementenderem, com certeza não viveríamos emsociedade. "Libera geral" só fica bem na doce eencantadora voz da bela moça de Santa Rosa e nossonhos infantis de cada um.

O interessado tinha pleno conhecimento deque seu direito ao saque dar-se-ia em abrilvindouro, após a data de seu aniversário,independentemente de qualquer decisão. Mas abriljá passou. Já era agosto.

Lá fora venta muito como em todo mês deagosto; e, vez ou outra, forma-se um redemoinhode poeira, que se agita, se retorce e logo seacalma. E reaparece em outro lugar.

Tudo é vaidade, diz o Coelet. Tudo tem seutempo debaixo dos céus. Fechou os autos e foipara casa.

Page 8: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

8 Revista de Literatura da ADVOCEF

AssédioAndré Falcão de Melo

Em saia justa. Melhor: calça. Mais apropriado.Me vi assim. Meados dos anos 90. Um pouco maiscedo, o prelúdio de minha advocacia na empresaem que trabalho até hoje. Para ficar na remissão àspeças do vestuário, diria de mim, quando tudocomeçou, como ainda de calças. Senão curtas, nomeio das canelas. O responsável pelo ajustedesmesurado daquela peça de roupa ao meu corpoera, então, alta autoridade em município dointerior do nordeste. Gerente de banco oficial, empleno século XXI, ainda é uma "autoridade" numacidade pequena do interior do nordeste brasileiro,o que dizer de um juiz de Direito. Era a profissãodo sujeito. A fama lhe era desfavorável. Corrida àboca miúda. O que eu sabia, por ouvir dizer, é quenão era muito afeito às práticas ombreadas com ahonestidade.

Conheci-o naquelas plagas. Precisava, então,impulsionar o andamento de um processo que porlá tramitava, mas que decerto estava esquecido,como tantos outros assim permanecem, dormindonas gavetas empoeiradas de cartórios por estepaís. Certamente, não fosse tomada a iniciativa depedir-se ao magistrado para dar prosseguimento aofeito, decerto do sono os autos não acordariam.Assim, lá fui, ansioso para provar ao meu chefe,aos colegas mais velhos e, principalmente, a mimmesmo, que era capaz de consegui-lo, apesar dapouca experiência e da cara ainda imberbe. Masestava inseguro. Tanto porque teria que pedir aomagistrado que realizasse o trabalho para o qual épago pelo erário - inaceitável, mas comum -, comoem face da já referida má fama do dito cujo.

Cheguei à cidadezinha e logo me dirigi aocartório. Estava puto da vida comigo, porque mepercebi preocupado e receoso. Perdoe-me aexpressão chula, complacente leitor, mas era assimque me sentia, muito desapontado mesmo. Haviaum único serventuário na mal cuidada sala. Pedi-lheos autos para exame, após identificar-me,orgulhoso, como advogado. O mandado expedido

pelo juiz naquela Carta Precatória, destinado àcitação do devedor da minha empresa, estava hámeses com o Oficial de Justiça encarregado decumpri-lo. Surpreendeu-me mais ainda, porém, oequívoco no rito processual adotado pelomagistrado, o que recomendava um rápido,digamos, colóquio com a referida autoridade, comvistas à correção do inusitado erro. O problema erafazê-lo sem lhe ferir as suscetibilidades. Osadvogados chamam essa conversa de "embargoauricular", ou "embargo de orelha", figuraevidentemente inexistente nos compêndiosacadêmicos. Servia para deduzir algum pedido sema necessidade de sua formalização em petiçãoescrita. Pedi pra me anunciar ao juiz. Não mais queum minuto depois retorna o escrivão (era escrivão,o servidor). Abre a porta do gabinete do magistradoe me convida a entrar.

- Como vai, Excelência? - cumprimentei a fera,tentando aparentar naturalidade e experiência.

- Tudo bem, doutor! Em que posso servi-lo?Beleza! Então o sujeito não era tão mau como

imaginei...- Excelência, na verdade não pretendo tomar

muito do seu tempo. É simples o que vim solicitar.- Percebo que o senhor ainda é muito jovem...

Tenho um filho que está cursando Direito. Creioque se formará dentro de dois anos - disse-me ojuiz, com uma simpatia que, entretanto, não meconvencia.

- É verdade. Comecei a advogar há menos deum ano. Peço para me perdoar se a minhainexperiência propiciar algum transtorno maior.

- Não se preocupe, doutor. Todos nós já fomosinexperientes um dia, não é? - repetiu o velhochavão. Mas, pelo menos, grosseiro não foi.

Continuamos a conversar um pouco sobreamenidades. Resolvi era chegada a hora de abordaros fatos.

- Bem, excelência, sem querer tomar mais do seutempo, vim aqui para verificar o que podemos fazer

Page 9: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

9Revista de Literatura da ADVOCEF

para agilizar o andamento deste processo. Verifiqueique Vossa Excelência já determinou a citação dodevedor, restando apenas que seja cumprida pelomeirinho. Observei, também - disse, com cuidado edevagar, tentando diminuir a gravidade do equívoco-, que há um engano no rito procedimentalimprimido à Carta Precatória, já que não se cuida deexecução fiscal, mas execução hipotecária...

- Ah, é? Deixe ver. Tem razão. Vou determinar aretificação, bem como que o Oficial devolva omandado aos autos, devidamente cumprido, em 48horas. Está bom para o senhor?

Ufa! Inacreditável! Missão cumprida. Agora, devolta para Maceió. E não me saí mal, afinal.

Desde então, anos se passaram e raríssimasvezes o encontrei, ocasiões em que me limitava acumprimentá-lo, não havendo jeito de passardesapercebido. Sua fama de desonesto já sealastrava por toda a região. Daí a principal razão,certamente, a me empurrar para longe da criatura.Ou simplesmente era intuição.

Um dia, almoçava, toca o telefone. Não seiporque, senti algo estranho. Juro! Umpressentimento ruim. Atendi. Era ele. Esfriei. Quediabos queria comigo? Nunca antes telefonou pramim. Aliás, como descobriu o número do meutelefone? Explicou que queria contratar meusserviços advocatícios, só que deveria ser realizadoem outra cidade. Gelei. Por que eu? Senti,intuitivamente, que deveria declinar do convite,escapar de suas mal-cheirosas garras. Mas comofazer isto sem parecer indelicado ou, pior, sem terde lhe passar uma descompostura? Precisava ganhartempo enquanto pensava numa saída.

- Sei... mas... do que se trata? - perguntei,investigando e, ao mesmo tempo, fingindointeresse.

- Prefiro acertar os detalhes pessoalmente.Podemos nos encontrar?

- Ca... ca... claro... Mas para quando seria oserviço? - balbuciei, rogando ao Senhor uma luz.

- Para a próxima sexta-feira. Um carro commotorista poderá levar o doutor e trazê-lo de volta.

Foi a deixa que eu precisava. Obrigado, Deus!Numa vomitada só, disse-lhe:

- Oh, Excelência, lamento! Infelizmente, nessedia estarei em Salvador, pra receber um parenteque retorna de viagem. Lamento, mas terei quedeclinar do convite.

- Humm... Tudo bem, então, doutor - disse-me,levemente desconfiado. Ou foi imaginação minha?

Alívio. Senti um desafogo imenso. E nem sabiado que se tratava. Mas desconfiei que não seriaalgo muito, deixe-me ver... ortodoxo. É que de umlado, a fama, má; de outro, um pressentimentoruim. Seria este influência daquela? Sei lá. Via dasdúvidas, fiquei com a sensação de que pulei umafogueira.

O fato é que mais uma vez me admoestara. Maisuma vez, porém, felizmente, saí incólume.Incomodara-me, de qualquer sorte, ter-se sentido àvontade para me procurar. O assédio, porém, nãocessaria aí.

Passaram-se alguns meses e eis que o encontreinovamente, agora num evento sócio-político,bastante informal e interativo, onde noscumprimentamos rapidamente. Tudo estava bem,até que chegada a hora do primeiro intervalo,quando seria oferecido um lanche pela empresaorganizadora.

- Doutor, como vai? Tenho um processo, contrauma empresa para a qual o senhor presta seusserviços advocatícios, que deve estar retornandodo Tribunal e sobre o qual gostaria de lhe falar.Segundo a publicação oficial, o senhor seria oadvogado responsável pelo acompanhamento dofeito.

Engoli em seco. De novo, não!- É...? Sobre o quê... o processo...? - escapa,

rapaz, escapa!, pensei.Esclareceu-me.Novo alívio.- Não sou eu, doutor. Esse processo é

acompanhado por outro colega. É que a empresadispõe de advogados diversos a defendê-la,conforme o assunto discutido em juízo. Apenas aprocuração é uma só, com todos os nossos nomes.Lamento.

Mais uma vez a admoestação, pensei. Mais umavez não sabia o que pretendia, mas intuitivamentedesconfiava. Mais uma vez tive que buscar umasaída liminar - para ficar no jargão jurídico. E eraverdade. Não era eu o advogado responsável pelacondução daquele processo. Despedi-me. Precisavapôr um fim nisso! Conseguira evitar indispor-mecom o dito cujo, ou mesmo demonstrar-lhevigorosamente minha irresignação, caso se cuidassede pleito indecoroso. Lograra até mesmo evitar ir

Page 10: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

10 Revista de Literatura da ADVOCEF

às vias de fato, a depender do que me pedisse. Maso cara não largava do meu pé! Praga!

Nesse ínterim, os organizadores pediram aalguns participantes para discorrerem sobre algumtema, previamente sorteado. A mim me coube falarsobre educação. Não queria. Porém, algo mecompelira a aceitar a incumbência. Algo mais doque apenas gentileza com os solicitantes.

Pus-me a pensar em como abordaria o assunto.Mas não me saía da cabeça, também, anecessidade, premente, de resolverdefinitivamente aquele problema. Isolei-me.Buscava concentrar-me no meio àquele burburinho.Os dois fatos a me martelar a cabeça. Pensei,pensei... Ideia! Claro! A solução estaria no própriodiscurso.Teria de ser singelo, como a natureza doevento reclamava, e evidentemente ligado aotema, tal como me foi atribuído, mas tambémdeveria ser objetivo quanto ao recado - queprecisava indiretamente transmitir-lhe - de queseria uma péssima ideia propor-me algo desonesto.

É fato, reconheço, que sequer pude constatarse eram irregulares as pretensões que o fizeramassediar-me. Afinal, delas me desvencilhei atéantes de serem deduzidas, por cautela ditada porminha intuição. Mas não me arrependia. Antes, aocontrário, agora sentia a necessidade de pôr umobstáculo definitivo a qualquer outra novainvestida que viesse a dirigir contra mim. Nutria,para isto, a íntima expectativa de que o "aviso"fosse captado e que me deixasse em paz de umavez por todas. Se ele, por si só, não se aperceberada minha honestidade, eu a mostraria, então.

Voltamos à sala de trabalhos. Avisam-me, meudiscurso, por enquanto preparado apenas em minhamente, seria o último. Melhor. Assim, poderiaaprimorá-lo, improvisado que seria, alinhavando asideias principais em tópicos para não me perder.Em verdade, todavia, só pensava em como neleencaixar a parte direcionada ao meu algoz. Deveriaser simples e direta, mas de modo que só elepudesse saber-se dela destinatário. Aquilo poderiasignificar o fim daquele tormento. Engraçado,pensei novamente, eu sequer sei o que queria, nasvezes em que me procurou, e já tanto meincomodara. Imagino-me se soubesse...

Chegou a minha vez. Pedi ajuda divina. E fui.Normalmente tenso em situações assim, dessa vezestava até eufórico para começar.

Iniciei desenvolvendo os tópicos que alinhavei,no intervalo e durante parte dos discursos que meantecederam, sobre a importância da educaçãopara o desenvolvimento de uma sociedade, oquanto nosso País se ressentia de sua falta, e comoé imprescindível à formação de verdadeiroscidadãos. Depois, parti para a defesa da tese deque o alcance desses objetivos imprescindiria dorompimento com paradigmas arcaicos incrustadosna própria ordem vigente, o que somente se dariaem outro ambiente: um ambiente de desordemcriativa, de revolução. Uma revolução na educação!Portanto, grandes avanços, grandes mudanças,grandes progressos, talvez não se coadunassem - aomenos não em muitos casos - com a ordem jáestabelecida. Ordem para o progresso? Ordem aolado do progresso? Ordem condição para oprogresso? Assim não me afigurava. Teríamos quemudar nossa bandeira. Ao menos em nossa alma.

Fechava o silogismo, então, asseverando que aordem não permitia a criatividade, antes aengessava, donde com ela contraditória eobstáculo ao progresso. A desordem, assim, seriaum ambiente a ele mais propício e, portanto, àdisseminação de uma melhor educação. Emcircunstâncias que tais, os avanços viriam. Osprocessos revolucionários são prenhes deles.

Preparava, porém, ao mesmo tempo efinalmente, o terreno para o fecho do discurso, seuclímax, que se traduziria, também, no própriorecado à malfadada autoridade.

- Penso, assim, amigos, que a educação nestepaís necessita de um movimento verdadeiramenterevolucionário, de rompimento com os paradigmaspostos pela ordem vigente e passivamente aceitoshá décadas. Entretanto, o que me causa estupor eindignação é que a revolução que apregoo há de sedar, antes, para incutir, ou restabelecer, naspessoas a assimilação de um valor que, entretanto,é básico, e cujo ensino, outrossim, não deveria sermais necessário difundir. Antes já deveria estarenraizado em cada cidadão, nessa e em outrasordens que se lhe seguissem.

Tomei um gole d'água, respirei fundo econtinuei.

- É verdade. E é uma lástima não esteja. Arevolução na educação há de ser promovida, sim.Mas, primeiramente, para disseminar um valoresquecido entre nós. Pasmem! Refiro-me à

Page 11: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

11Revista de Literatura da ADVOCEF

honestidade! Sim! Infelizmente, haveremos de começartudo de novo. Pelo bê-á-bá, mesmo! Ensinar que o bom éser honesto. E não o contrário. Que é errado roubar,enganar, corromper, desprezar, humilhar, apropriar-se doque é dos outros ou do bem comum, e etc. Inclusive oetc.

Nova parada. Não parava de sentir a boca seca. Quistomar outro gole, mas não me senti à vontade para fazê-lo, já que há pouco o fizera. Achei que chegara a hora. Elejá deveria estar vestindo a carapuça, estivesse eu sendoclaro. Concluí.

- Aprendi, com meus pais - tantos de vocês devem tê-lo, também -, que o maior prazer que se pode desfrutarnessa vida é o de poder deitar a cabeça no travesseiro, ànoite, e fazê-lo com a consciência tranquila, sem pesoextra. Dormir tranquilo, diziam-me eles, era o maior bemda vida, porque significava que estávamos sendo bons,corretos, cumprindo os nossos deveres e respeitandonossos semelhantes. Pena constatar, contudo, que osdesonestos, neste País, estão dormindo muito melhor doque nós. Muito obrigado.

Aplausos se seguiram. Mal os ouvia. Em mim mesmo,só a expectativa de que o meu "recado" houvessealcançado a consciência do sujeito, ou, faltando-lhe ela, oque existisse em seu lugar. Vácuo o fosse. Mas que ohouvesse recebido e se entendido dele destinatário.

Deram-se por encerrados os trabalhos; liberados oscomes e bebes. Como outros colegas, que efusivamentevieram regozijar-se com minhas palavras de há pouco,também ele veio me cumprimentar. Porém, notei oconstrangimento em sua voz, em sua fronte, em seu olhar.Mal me fitava.

- Hummm... Olha só... Que discurso, doutor. Parabéns- disse, oferecendo-me a mão, com um sorriso amarelo amoldar, e escancarar, o nítido desconforto que sua faceespelhava.

- Obrigado - respondi, disfarçando minha satisfação e ovelado propósito de tudo aquilo. Retribuí o cumprimento.

Rapidamente se distanciou. A distância, agora, eraquerida por ambos. Houvera me cumprimentado, paratentar disfarçar o mal-estar e a carapuça que o sufocava.Eu, fingindo-me de morto, constatei que estavafinalmente livre. Logo me vira rodeado de colegasnovamente, leve e satisfeito por haver-me posto a salvo.

- Hummm... Que salgados gostosos! Que ar puro! Temmais uma cervejinha, aí?

Page 12: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

12 Revista de Literatura da ADVOCEF

O cofreFrancisco Spisla

A apreensão tomava conta de seu corpo.Sentia um vazio no estômago e uma sensaçãoestranha que o incomodava sobremaneira.Aquele não saber o que fazer, como começar,por que ir, atazanava-o. O sono não vinha,apesar da constante mudança de posição. Olençol que fora carinhosamente estendido sobrea cama já não tinha identidade. Parecia maisuma corda de grosso calibre, daquelas queseguram navios ancorados. E ele era um navioque balançava e jogava para os lados, semencontrar descanso.

O sol já espiava se valia a pena aparecer, eele não dormira um minuto sequer. Xingava-sepor escolher o último dia da licença de trânsitopara viajar. Não ia conseguir dormir no ônibuscomo, aliás, nunca conseguira. Umaimpaciência enorme dava-lhe nos nervos,inclinando-o à neurose. O barulho dosautomóveis tornava-se mais intermitente,mostrando o dia que começava a trabalhar.

- Droga! - vociferou ao perceber a hora deabandonar o leito que se tornara maldito pornão lhe possibilitar o descanso.

Nem o banho, nem o café foram suficientespara animá-lo. O gosto ruim da noite nãodormida persistiu em sua boca. Os olhosardiam, os músculos estavam enrijecidos e ocorpo esquecera os reflexos.

Ainda tinha inúmeras coisas para resolverantes de viajar. Contudo, não possuía ânimo. Aeterna mania de deixar tudo para a últimahora jogava contra, deixando-o mais agoniado.E mais. Toda a sua família, a partir domomento que soubera da transferência, nãocessava de admoestá-lo: "Por quê? Você temtudo aqui... Vai deixar sua mãe preocupada.Vai abandonar sua família?"

Não aguentava mais aquilo. Criado em"berço esplêndido", a ruptura do cordãoumbilical surgia-lhe por demais violenta. Suafragilidade colidia com a violência e a rudezado desconhecido. No fundo, sentia-se arrasado.Mas tinha decidido: iria para o interior nãotanto porque quisesse, mas tanto falaram etanto prometeram que resolveu. Além do mais,ganharia uma função para trabalhar de caixaque, para ele, era algo fenomenal. O que lheatrapalhava, porém, era o seu caráterescrupuloso. Não confiava em si mesmo. Tinhamedo do desconhecido e de não poderdesempenhar bem o seu papel. O medo do erroaliava-se ao medo do fracasso.

Mentiu em casa sobre a hora do embarqueporque queria fugir, de tão perdido que sesentia. Queria desistir, abandonar tudo, não ir.Mas seu ego não tolerou jamais a falta deresponsabilidade.

Page 13: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

13Revista de Literatura da ADVOCEF

À tardinha, moído de cansaço, esperou oinstante em que a família ainda não se tinhareunido, pegou sua enorme mala e dirigiu-se àrodoviária.

No começo da viagem ficou pensando namãe batendo à porta de seu quarto avisandodo horário do ônibus. Reviu a insistência do paiao ver a luz que deixara acesa com a finalidadede enganá-los. Anteviu a agitação de todos aoperceberem que ele já tinha ido. Melhor, tinhafugido. E isso forçou uma lágrima que não eranem de tristeza, nem de saudade, e sim deraiva, de apreensão, de agonia, de desânimoem saber que chegaria ao destino arrasado.

Seu corpo cansado cedia espaços apequenos cochilos, todavia, sempre frustradospor solavancos do veículo na estradadesgastada. Isso inchava ainda mais o balão deangústia em que se tornara. A boca seca eamarga ansiava por algum líquido que asparadas ocasionais não podiam oferecer. Asomar, havia a estonteante e fétida fumaça decigarros que obnubilava seu cérebro.

Obsesso, desceu no posto de desembarquenaquela cidadezinha da fronteira do Brasil coma Argentina. Um lugarejo com uma rua, umasvinte casas, a igreja e a prefeitura. Foi o queviu na primeira olhada. Até perguntou aomotorista:

- É aqui mesmo?Desceu. Parado, com a imensa mala ao

lado, ficou observando o ônibus levantar apoeira vermelha, bonita aos primeiros alboresdo dia. Depois de um enorme suspiro, começoua andar ainda não resolvido para onde. Na rua,nada nem ninguém. Apenas um cachorrorebocando uma cachorra, cena que achouesdrúxula.

Sentia-se como em um planetadesconhecido, um alienígena. O que fazer?Aonde ir? O logotipo do banco em uma placafê-lo decidir-se ficar postado em frente atéque chegasse alguém. Comeu um pacote debolachas sentado na escada, mas sem asensação de estar matando a fome porque nãoa sentia.

Era muito cedo ainda, cinco e meia, paraque alguma pessoa surgisse. Ele já não sesentia humano, pois o tempo não passava. Nãosabia no que pensar, nem o que fazer. Umcarreiro de formigas no jardim chamou-lhe aatenção e desejou ser uma delas. Nãopensavam, não tinham angústia nenhuma.Eram felizes, pois nunca cansavam.

Quando deu por si, percebeu a passagemde algumas pessoas que olhavam com ummisto de curiosidade e receio: "Quem eraaquela pessoa?" O mal-estar aumentou. -"E seacharem que sou um ladrão e resolverem meprender e bater?", - pensou baseado noestereótipo que fazia das pessoas de cidadesdo interior em relação aos estranhos. Omedo apertou-lhe a bexiga e uma sensaçãode diarreia obrigou-lhe a comprimir asbochechas da nalga. Suou frio quando umhomem, de rosto sério e brabo, veio em suadireção.

- Suponho que você é o novo caixa, certo?- Si... Sim... - tossiu e tentou falar quando

a tensão diminuiu.- Por que não veio antes?Não respondeu e não gostou da provocação.

O homem, que era o gerente do banco,levantava a porta e preparava-se para entrar.Não olhava para ele: antipatia à primeira vista.Dentro do prédio perguntou-lhe secamente:

- Qual o seu nome?- Ãhã! Ah! Aloísio...- Está gostando daqui? - interrompeu o

gerente ironicamente.Era piada? Apenas chegara...- Não deu para sentir ainda - estava claro

que não tinha gostado.- É... Hoje você já vai pegar no duro. Se

tivesse vindo antes... - mudou de assunto ogerente. - O outro caixa fez uma exceção ehoje ainda vem para lhe dar umas dicas eentregar o serviço. Depois, tem de ir embora.

Aloísio, que tinha relaxado um pouco,novamente voltou a se sentir mal. A pose dogerente achando-se dono da cidade nãopassava pela sua garganta.

Page 14: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

14 Revista de Literatura da ADVOCEF

- Coloque este trambolho em algum canto,senão o pessoal da cidade vai pensar que aqui épensão. Temos que manter a imagem... Vocêtem aí o memorando da transferência?

Tirou da capanga também o cartão-ponto eentregou-os.

- Ah! Ah! Aloísio Tavares!? Você é parentedo Zé Tavares lá da gerência financeira?

- Não, não sou.- Sorte a sua, porque o cara é dose, é um

mala, igual à sua, mas sem alça. Ah, ah, ah,ah - riu sozinho.

Aloísio começou a se sentir perseguido.Enquanto escondia sua mala numa pequenasala, matutava em como seria trabalharnaquele lugar distante e desconhecido.Despertou de suas cogitações com o chamadodo gerente:

- Aloísio! Telefone para você.- Para mim?! Como?! - admirou-se. - Alô!.- Alô! É você, meu filho?- Oi, mamãe!- Por que você fez isso? Quer matar sua

mãe e seu pai do coração?- "Oh, meu Deus! Será que não vão me

deixar em paz?" - pensou.- É que me enganeino horário do ônibus e tive de sair correndo.Desculpe, mamãe.

- você está bem, filhinho?- Sim, estou... mamãe. Vou ter de desligar

porque tenho muito serviço aqui - mentiu aoperceber o olhar atravessado do gerente. -Tchau, mamãe. Um beijo. Vou escrever logo,tá?!

Ao desligar percebeu que outras pessoas seencontravam na agência. Todos olhavamcuriosos.

- Este é o novo colega de vocês, o Aloísio.Este é o Roberto, nosso caixa, que você vaisubstituir.

- Oi, tudo bem?- Margarida e Rosilene, nossas estagiárias.- Oi! - achou-as muito bonitas, e para ele

não combinavam com o lugar.- Este é o Clóvis, nosso boy. Bem, pessoal,

vamos lá! - e simplesmente abandonou-os na

agência saindo para suas visitas institucionais.Aloísio ficou pensando por que o gerente

não se apresentara.- Lá vai ele jogar bola - comentou entre

dentes o caixa que estava sendo substituído. -Venha até aqui que vou lhe mostrar o que vocêvai fazer. Desculpe se estou meio com pressa,mas é que vou embora hoje e tenho muitascoisas a arrumar. O serviço você deve saberporque fez o curso, é óbvio - brincou. - Mas háalguns detalhes... - e passou bom tempofalando das peculiaridades do lugar, do "jeitão"dos clientes de uma maneira que Aloísio foificando traumatizado. Na verdade ele era umtanto gozador e carregou nas tintas ao falar dopovo.

A concepção que ficou para Aloísio era a deque aquela agência bancária ficava à beira doinferno. Fora o cansaço, que era patente emseu semblante, havia aquele temor. Robertopercebeu:

- Você está se sentindo bem? Está com umacara cansada...

- Não é nada. Foi a viagem - estava, sim,preocupado com o seu trabalho, com, comoimaginava, aquelas pessoas estranhas, rudes, eaté violentas que achava que iria atender naboca do caixa.

- Bem... Acho que já disse tudo. Ah! Já iaesquecendo do mais importante. Há umamulher que... - foi interrompido pelo gerenteque voltara e o chamava. - Você mesmo vaisentir... Dá licença. Boa sorte.

Foi o bastante para pô-lo em polvorosa.Tudo o que tinha visto desde que chegara, tudode informação que Roberto lhe repassara fezum peso enorme nas suas costas, deixando-obastante angustiado. Queria segurá-lo pelamanga para que lhe dissesse o que seria aquelamulher? A encarnação do mal? O que fazia? Erauma bruxa? Uma prostituta que a todosperseguia? Por que o cuidado com ela?

Seus pensamentos esvaíram-se, pois aagência fora aberta e ele tinha de se preocuparcom o serviço. A galeria de personagens que foiatendendo jamais imaginou que existisse. As

Page 15: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

15Revista de Literatura da ADVOCEF

pessoas tiravam os sapatos ao entrar, e ocheiro de chulé era por demais forte para seuestômago. Alguns chegavam sujos e rasgadosdiretamente da lida na roça. Um chegou atécom o revólver na cintura. Deixavam-noatônito, imaginando um assalto com um"tresoitão" encostado no seu nariz. Nemimaginou que pudesse ser um policial civil.

Aquela tensão não o largava, e já estavaenojado daquele povo. E nem prestou atençãode que não eram muitos os daquela situação.Mas tudo o sufocava. E o tempo não passava.Tinha vontade de gritar, de largar tudo, decorrer, de ir embora daquele lugar. Era umpesadelo sentir-se arrasado daquela forma, porquê? Uma força carcomia-o e temia desmaiar,apagar. Sentiu um alívio quando o gerenteliberou-o para o almoço:

- Tem uma hora - disse seco.Levou quase esse tempo até descobrir um

restaurante bem simples, no qual engoliu umapéssima comida, lastimando-se por não terperguntado a ninguém do banco onde podiacomer bem. Recheou o estômago porque ocorpo estava fraco, senão como aguentar até ofinal do expediente?

Por volta das três e vinte, entrou naagência uma mulher que ele logo intuiu seraquela falada pelo ex-caixa. Entrou descalça,com roupas rasgadas e sujas. Estava suando,o que a obrigava a passar o braço para limpara testa e jogar os cabelos para trás. Nãolimpou, contudo. Lambuzou. De seu narizescorria um filete de catarro de uma griperecém-vinda.

Aloísio tonteou. Enojou-se. Mas ninguém naagência reparou na mulher que se dirigia atéele. E perante os olhos esbugalhados do rapaz,colocou a mão direita no meio dos fartos seiosdizendo:

- Vim depositar.Um maço de notas de mil cruzeiros

apareceu umedecido e roto. Os barões todosestavam amassados. Ele achou um absurdo.Sua aversão cresceu. Pegou uma guia dedepósito para preencher, mas foi interrompido:

- Moço, tem mais... - e enfiou a mão sujana frente, por dentro das calças de jeansdesbotado, remexeu lá no fundo e tirou outromaço de notas recendendo o forte enauseabundo fedor. Ficou enjoado. Sua visãoturvou-se. Teve de se segurar, e com aversãonão disfarçada, pegando com o polegar e oindicador, longe do corpo e de outros dedos,jogou o monte de dinheiro na gavetaperguntando:

- Quan... Quan... quanto tem aí?- Quinhentos mil...O caixa não conferiu. De que forma? Seria

o mesmo que pegar em um cadáver putrefato.Depois que a mulher saiu e a agência foi

fechada, tinha de conferir e fechar o caixa. Eteve a nítida impressão de que o gerenteolhava de rabo de olho. Ao abrir a gaveta, nãoaguentou. Tudo estava impregnado daquelefedor. E de repente, carimbos, almofada,canetas, a máquina Burroughs e o dinheirotodo na gaveta sentiram a golfada doregurgito. O arroz, o feijão, os pedaços decarne ainda não aproveitados pelo organismoesparramaram-se por todo o guichê.

Em meio ao silêncio sepulcral na agência, ogerente, com um sorriso sardônico, perguntou:

- Quer que eu ligue para mamãe?

Page 16: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

16 Revista de Literatura da ADVOCEF

Inocente no mundo de KafkaHenrique Chagas

Véspera de feriado prolongado. Ansiedadedobrada. Fui indicado para atuar como prepostonuma audiência judicial. Não há como fugir, mas omeu gerente garantiu-me que será coisa rápida,coisa de quinze minutos. Sei não!

Recende um clima de velório sem defunto.Assim é o clima da sala de audiências. Um senhorde uns 60 anos, barbas grisalhas mal cortadas,dentes amarelados por nicotina, está acompanhadodo seu advogado, gordo, paletó um número menor.

Quinze horas em ponto. O juiz olha para o altocomo quem busca a onisciência divina. Permaneceatento a todo e qualquer gesto. Tudo temimportância magnânima. Dá-me a sensação de queo processo se reveste dos desígnios celestiais.

Pergunta por Epaminondas. Não teria outronome quem se diz apostador contumaz de loterias.Afirma que rotineiramente aposta os mesmosnúmeros 17, 22, 25, 32, 40 e 44 em jogos da Sena.Desatento, conferiu o resultado e atirou ocomprovante do jogo ao lixo. Quando ficousabendo que ninguém levantara o prêmio,constatou tratar-se dos números que semprejogou. Consequentemente, diz ser ele o únicoacertador.

É obvio que o sujeito não tem qualquer direito,penso. Onde está o bilhete? Ele jogou no lixo. Nãopossui qualquer prova material do que afirma.

Afirma que o 25 corresponde à primeira dezenada placa da sepultura de sua irmã, o 40 correspondeà última dezena da sepultura de seu genitor -palavra ditada por seu advogado, estou certo disto-, também sepultado no mesmo campo santo, e o44 corresponde ao ano do seu nascimento.

Nas perguntas, o advogado da Caixa quer sabera razão dos outros números jogados. Fica emsilêncio e nada responde. Penso, ele não tem

outras pessoas afins das quais também se lembredos números das placas de sepultura.

Na oitiva das testemunhas, todos repetem omesmo. Epaminondas gosta de jogar, joga sempreos mesmos números e acertou a Sena, mas jogou opapel no lixo e é o único ganhador daquele prêmio.Verdadeiro teatro. Olhares e gestos calculados.Imagino-me num julgamento na ágora de Corinto.Que diriam Sêneca, Galião ou Dionísio? Que importao bilhete? O que verdadeiramente importa é queaquele senhor fez o jogo e acertou os númerossorteados, é o que ele afirma. Será ele o sortudo?Ou seria apenas uma ficção jurídica? A do jogadorcontumaz que nunca ganhou nada e quando ganha,perde o bilhete. O apelo à piedade tocou-me ocoração.

Quase dezenove horas. O juiz chama oprocesso à conclusão. Nada mais formal. Falta-lheapenas um turíbulo para nos envolver com fumaça ecom o perfume do incenso. Levanta, imbuído dasabedoria de todos os deuses do Olimpo, porDionísio ou por Cícero, profere a sentença. Nadacompreendo. Ouço que o autor optou por umaação ordinária, de cunho declaratório, mas comfulcro no velho princípio de repúdio aoenriquecimento sem causa ou locupletamentoindevido. Resmungo um palavrão. Sou fulminadocom o olhar severo do juiz. Sinto-me debaixo damesa. O tempo passa e não sei quem tem razão,pelo contrário, acho que perdemos.

Então, finalmente, o juiz diz que a Caixa nãoserá responsabilizada por enriquecimento semcausa porque não obteve aumento patrimonial eque o valor do prêmio foi repassado para aSeguridade Social. Dá por encerrada a audiência eponto final. Perplexo e aturdido, saio sem saber seEpaminondas acertou ou não na loteria.

Page 17: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

O guarda-noturnoJayme de Azevedo Lima

Certa vez, na pequena Ribeirão, a comunidadereunida na década dos anos 70, resolveramcontratar um guarda-noturno, para dar maissegurança à população que vivia no centro dapequena cidade. Incontinenti, promoveram acontratação de um senhor que já tinha cerca de70 anos de idade, mas contava a seu favor o fatode ter sido vigilante noturno e pedreiro em SãoPaulo na juventude, além de ter uma arma única,que disparava tiros de sal.

Acrescente-se que era um trabalho quecomeçava às 22h e terminava às 6h, e o cidadãocontratado tinha um sério problema de insônia.Logo, adaptava-se perfeitamente às atividadespropostas, de circular por algumas ruas, apitar dequando em quando como sinal de que as coisasestavam tranquilas, ou emitir vários silvos quandoa situação fosse de perigo.

Não havia um quadro de marginalidade oucrime organizado na cidade. As pessoas de bem eos jovens se reuniam nas sextas-feiras paraorganizar as chamadas "pacholas"; ou seja,furtava-se a galinha do vizinho, através detécnicas avançadas de ataques aos galinheiros, ena casa de algum deles se deliciavam com arroz egalinha temperada na cachaça. O supremo golpede mão era ter o dono do galinheiro comoconvidado. No restante da noite, serestas econversa fiada.

Havia um rapaz que tinha o hábito de furtarem casas que ficavam vazias, levando bujões degás, roupas e outros gadgets, quer fosse uma bolaou uma bicicleta. Era morador da zona, umautêntico filho de puta, que dava trabalho para asmães (afinal todas as putas cuidavam dele),incomodava a polícia e já havia tocado piano nadelegacia (fichado como rufião e larápio).

O guardião nomeado era um homem queaparentava os anos vividos. Sua tez era escurecidapelo trabalho no campo. Até se aposentar, suasmãos traziam calos do tempo de pedreiro em São

Paulo e da capina no campo. Cabeça branca,poucos dentes, as roupas humildes e batidas,combinadas com um velho botinão de elástico, jáesgarçado pelo tempo, um cordão de apito e avelha arma atravessada na cintura.

Eis que em uma dessas madrugadas sem lua,próximo ao jardim da igreja, o velho guardiãonotou movimentos por sobre o muro da casa doturco. Aliás, turco em Ribeirão é pleonasmo.Alguns dizem que a cidade devia se chamarRibeiruth, em homenagem aos sírios-libaneses queajudaram a colonizar a cidade e que nós,carinhosa e erradamente, chamamos de turcos.

O velho, ao perceber os movimentos ágeis dogatuno, não vacilou ao apitar de forma estridentee dar ordem de prisão. A adrenalina corria solta.Era o primeiro caso em quase um ano de serviço,era chegada a hora de mostrar seu valor, de fazervaler seus parcos salários. Novo aviso, e o gatunosobre o muro olhava entre assustado e desafiadorpara o velho guardião. Como um gato, deslizavaentre os cacos de vidro que ocupavam toda aextensão do muro de quase dois metros de altura.

- Pare... Pare, senão eu atiro, é o últimoaviso...

Piiiiiiiiiii!!.Não havia retorno. Por força da adrenalina, a

sinapse já havia ocorrido, desligando os neurôniosdo velho guarda e não permitindo o raciocíniolegal. A velha arma estava em sua mão direita,engatilhada. O velho posicionou-se de pernasabertas. Juntou a mão esquerda, envolvendo ostrês dedos inferiores da mão direita, e, segurandopor baixo a coronha de madeira gasta, estendeu obraço para fazer mira, arqueando ainda mais aspernas. De repente... Sob a sua mira estava obundão do marginal, que se preparava para saltarmuro adentro e escapar pelo fundos.

O pipoco foi seco, o cheiro de pólvora e afumaça ocuparam espaço à volta do velho. Omarginal soltou um grito dolente e escorregou pela

17Revista de Literatura da ADVOCEF

Page 18: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

18 Revista de Literatura da ADVOCEF

parede. Vestia um short preto curto. A pólvorae o sal encheram sua bunda, causando umferimento, se não letal, pelo menos vergonhoso,por ter sido apanhado naquela posição.

A gritaria, o som do apito, o tiro que ecoava, ochoro do larápio, tudo serviu para acordar apopulação da região, que de imediato acercou-seda cena. O policial militar vindo da delegaciavizinha aproximou-se e, vendo o marginal abatidocom sangue escorrendo e fazendo um escarcéu,nada perguntou - apenas providenciou para que oferido fosse levado ao hospital e o velho guardião,à delegacia, para averiguações, com aconsequente apreensão da arma.

Delegado novo, cidade velha. Era precisomostrar serviço e, sem hesitar, o bacharel abriuinquérito contra o velhinho, por atentar contra avida da pessoa humana, causar ferimentos gravese vexatórios em um cidadão que, na calada danoite, foi encontrado caído ao lado do muro dacasa do turco.

Estava aberto o processo. O velho guarda-noturno recebeu o apoio da população que opagava e, agradecido, dizia a todos que agoraestava indiciado. Analfabeto, achava que serindiciado era um luxo.

Eram férias escolares e estava eu no 5º ano deDireito. À época, havia o que se chamavaautorização para ser licitador junto à Ordem dosAdvogados, sistema bem mais eficaz que osatuais exames da OAB, algo idiota eincompreensível, porque tira os jovens do seucampo de trabalho e não deixa que o mercadojulgue quem pode continuar na carreira. Bom,voltemos aos fatos.

O juiz, oriundo da capital, tinha se apaixonadopela cidade. Tanto que, ao ser promovido pormerecimento, pediu a promoção por antiguidade,pois assim poderia continuar em Ribeirão,curtindo a cidade, seus amigos, suas pescarias e aconversa de bar.

Era amigo de meus tios. Ao passar no posto degasolina de um deles, onde se reuniam ospalpiteiros locais, ao me ver promoveu deimediato uma intimação. Disse ele que, comoformando e licitador, eu deveria acompanhar ocaso e estar presente na audiência paraapresentar a defesa do guarda-noturno.

Entre nervoso e excitado com meu primeirocaso criminal, fui fazer vistas para os autos, visitarum velho advogado para pedir conselhos, leratentamente o processo e verificar o que poderiaestar ao meu alcance. Preparei-me para a defesa,dando ênfase ao trabalho do velho, mostrandoquem era o larápio e rufião que estava sobre omuro e que não tinha sido alvejado no chão. Pedia juntada de fotografias feitas em Polaroid (ummust dos anos 70), em que apareciam manchas desangue no alto do muro. Preparei um libelo emdefesa do trabalhador e estudei como desancar omarginal e mostrar o seu passado.

Começou a audiência. Lá estavam o juiz, opromotor, o escrivão e, graças a Deus, umadvogado de verdade, o que tirava um peso deminha consciência. Estava também o velho réu,com sua roupa batida, seu olhar triste, umsemblante distante de quem não esperava maisnada da pouca vida que tinha pela frente.

Foi feita a leitura do libelo acusatório. Opromotor itinerante deu uma rápida olhada nosautos e promoveu suas acusações, sem sequerolhar para o juiz ou para o réu. De pé, olhandopela janela do Fórum, deitava sua peroraçãoestudada e gasta que servia para diversasacusações. Era como receita de bolo: para cadacrime capitulado no Código Penal havia umdiscurso adredemente preparado.

O juiz passou a palavra a este pobre licitador,que, gaguejando, deu inicío à defesa, dizendo emlatim que a justiça era a arte do bem e daequidade e, daí em diante, falou tudo de que selembrava. Inquirido o advogado dativo, estecavalheirescamente declinou da defesa afirmandoque eu já tinha feito um bom trabalho.

De toga, calmo, com a voz firme, o magistradopassou a ditar a sentença para o escrivão,enquanto o pobre réu tentava pescar algumaspalavras compreensíveis para ele naquele mar defloreados vernaculares. A flor do Lácio em toda suaplenitude da boca de juiz, promotor, advogados,licitador e até do escrivão.

Disse o juiz:- Condeno o réu a três anos de cadeia a serem

cumpridos na Penitenciária Central do Estado doParaná, em Curitiba, pelo crime de lesão corporalgrave, conforme se depreende dos autos. Ao

Page 19: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

19Revista de Literatura da ADVOCEF

mesmo tempo, concedo a sursis, para que oapenado cumpra a pena em liberdadecondicional, devendo, nesse período, cursar oMobral (Movimento Brasileiro de Alfabetização),apresentar sua caderneta de notas a cada seismeses no Cartório do Fórum e, ao final de trêsanos, o diploma de alfabetizado. Lancem onome do apenado no rol dos culpados até ocompleto cumprimento da pena.

Encerrada a audiência.Cumprimentos entre advogados, juiz e

promotor. Já estávamos na soleira do Fórumquando mãos calosas envolveram meus braços.O réu, perdido e assustado, perguntou-me:

- Dotô... Eu tô preso ou tô sorto?- Cê tá solto, meu velho, agora é só fazer o

Mobral que ficará livre.Continuei a andar, quando fui alcançado

novamente:- Dotô, será que eu posso ir pra cadeia lá na

capitar?- O quê?- É o seguinte, dotô, eu não tenho mais

idade para aprender a ler, a vista e a cabeça tãocansada, num dá mais!!

- Não tem jeito, agora o juiz determinou eassim será!

Passados alguns anos, voltei à cidade, jáadvogado e trabalhando. Procurei saber de meucliente.

Disse-me o dono do bar:- Ah, o velho guardião! Ele morreu. Alguns

dizem que de desgosto por não conseguiraprender a ler, mas o médico disse que seucoração não aguentou tantas vicissitudes navida, tanto esforço no campo. Morreu deataque cardíaco fulminante.

Nunca mais soube de mais nada, mas semprepenso em qual verdade acreditar, se nodesgosto da velha mente cansada ou se noesforço final do coração experimentado. Se asentença foi dura demais, ou se nosso paíscontinua tão injusto como antes. Se o defendide forma suficiente ou se isso pouco importavapara quem o julgava ou para o burocrata que oacusava. Até hoje... Não sei a resposta!

Page 20: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

20 Revista de Literatura da ADVOCEF

A leitura me dá sorteHenrique Chagas

Carrego comigo a lembrança do meu pai, JoséTerra, sempre lendo. Embora nunca tivessefrequentado uma escola, lia todo e qualquer jornalque caía à sua frente. Um velho livro ou pedaço dejornal, tudo era objeto de leitura. O embrulho doaçougue era sempre guardado para que fosse lidoe relido.

Toda vez que ia da roça para a cidade, casotivesse algum trocado, ele comprava o jornal dodia. Quando não tinha, não se envergonhava,pedia um exemplar velho, mesmo que fosse dedias anteriores. Sempre trazia um jornal, epassava horas lendo e relendo. Desde criançaassistia a esta cena, repetitiva e incansável. Elenão apenas se contentava em ler, comentava commamãe as notícias e as opiniões dos jornalistas.

Foi com ele que aprendi a ler e a escrever. Eleacompanhou-me no aprendizado através dacartilha "Caminho Suave". Pequeninho, eu queriaser como meu pai, saber ler, para ler os jornais eentender o que estava acontecendo no mundo,no mundo que eu imaginava existir além do sitioda Onça Pintada (onde nasci e cresci). Antesmesmo dos meus seis anos, eu já sabia ler eescrever (meu primeiro dia de aula foi umadecepção: o professor nos ensinou a fazer traçosverticais, horizontais e diagonais).

Ficava emocionado com a leitura da poesia deCamões na primeira página do Estadão. Poucoentendia e nem sabia que por trás daqueles versosdecassílabos havia textos censurados, históriasque a ditadura militar decidira que eu não deveriasaber.

Meu pai lia diariamente a Bíblia, conhecia cadalivro, cada capítulo e cada versículo. Ai domissionário que ousasse lhe fazer proselitismo, sedava mal, pois tinha que checar cada palavra ditaou mal interpretada. Adorava as histórias contadaspor meu pai, eu imaginava cada cena: desde avelhice de Matusalém, dos homens gigantes da

Cananeia, do sacrifício de Isaac, até a venda deJosé aos mercadores egípcios.

Li várias vezes a História Sagrada, um livrogrosso que meu pai ganhou de um caixeiroviajante; fiquei impressionado com as peripéciasdo Rei Davi e seus filhos. Chocou-me a morte deAbsalão, que morreu porque suas trançasenroscaram nos galhos de uma árvore quando, emdisparada, debaixo passava a cavalo. À época,concluí que a razão estava no assassinato de seuirmão, por vingança ao estupro de Tamar, mas eunão sabia e ninguém me explicava o que seria o talestupro.

Não bastassem as leituras, ouvia rádio. A partirdas seis da matina, meu pai sintonizava as ondascurtas, que traziam o trabuco de VicenteLeporacce e o pulo do gato do José Paulo deAndrade. Aquilo que lia nos jornais tinha algumareferência ao que ouvia no rádio. Fazia algumsentido. Embora não entendesse exatamente oque acontecia no mundo, queria entendê-lo.

Nem havia completado dez anos e játrabalhava na roça de arroz, milho ou algodão. Eranatural manejar a enxada ou passar carpideira detração animal. Mesmo pequeno, embora fraco,meio raquítico, tinha destreza suficiente até para

Page 21: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

21Revista de Literatura da ADVOCEF

escapar do serviço, me esconder debaixo de umaárvore e ler um livro. Papai nunca moveu ummúsculo contra tal atitude, achava que ele atégostava, pois me fornecia livros. Certa vezapareceu em casa com alguns livros que compraranum sebo em Paraguaçu Paulista, entre eles "SeisEstudos de Piaget". Talvez tenha compradoporque achou barato, interessante, e porquetinha duas crianças brincando com uma bicicletana capa. Falo sério, juro que li e não entendiabsolutamente nada. No entanto, quando nafaculdade me foi indicada a leitura de JeanPiaget, por sorte ainda tinha (e tenho) aquelevelho livro comprado num sebo por papai.

Depois que fui para o colégio interno lá emMarília, eu não estudava as lições das aulasregulares do Colégio Cristo Rei. Odiava repetiraquela decoreba toda. Eu aproveitava o tempono salão de estudos para ler, eu lia qualquercoisa, da enciclopédia Barsa aos livros da coleçãoBrasiliana. Sempre acreditei que a leitura medava sorte na hora das provas; difundia estaversão aos colegas, que não acreditavam naminha mandinga. Eu afirmava que bastava colocaro caderno debaixo do travesseiro, enquantodormia o conhecimento adentrava meu cérebropor osmose. Tinha quem acreditasse.

Nas aulas, eu sempre tinha um exemplo paradizer aos professores, tinha indagações econseguia compreender as lições dadas, por issonão precisava estudar; e conseguia essa proezaporque não estudava, eu lia. Até hoje mantenhoa mesma sorte. A leitura me dá sorte: eu lhegaranto.

Page 22: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

22 Revista de Literatura da ADVOCEF

Roubei um versoMilton Magalhães

RenovaçãoLuiz Sergio e Silva

Tenho carícias inventadasExclusivamente e só pra ti

Um arsenal de muitos beijosE muito ainda pra sentir

Se me encontro nas trincheirasDe tantas longas solidõesTenho a dar-te universosE doces, loucas emoções

E, assim, quando te vejoComo um navio que lá se vaiJá fica em mim uma saudadePor que me deixas neste caisSe tudo aquilo no horizonteÉ pouco pra o que tens aqui

Tenho carícias inventadasExclusivamente para ti

Ah neste mar, nesta luzTudo enfim

Ah vem ficar, me levarAté o fim

Foi assim, roubei um versoDe um poeta amigo meu

E por isso te confessoQue foi ele quem te deu

As palavras que eu queriaTe dizer e me perdi

Em carícias inventadasExclusivamente para ti

A imponente árvore no terreno em frenteParece querer dar-me uma lição.De vida!

Ainda há pouco estava seca,A imagem da agonia, embora erguida.Sem viço, sem cor, sem luz.Triste!

Mas hoje um vento mais afoito,Causando rebuliço,Lançou em minha varandaAlgumas flores e sementes.

Deixou-me curioso o que vi,E meu olhar seguiu em direção à árvore.Pude então constatar:As flores e as sementesVinham dela, novamente bela!

Milagre do Tempo!O que parecia morte explode em vida,Generosa, alegre, contagiante.

Daqui, do alto da minha contemplação,A mente em desassossego pelas dores do corpo eda alma,Concentro em ser o mais convicto possívelE então digo:- Eu sou essa árvore!

Fecho os olhos,Sentindo a comunhão com o universo à minhavolta.Calcando em mim, com todas as forças,A certeza do que acabara de dizer.

É tempo de viver!

Page 23: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

23Revista de Literatura da ADVOCEF

Do alto de prédio vejo a cidade com suas ruas calmase carros nervosos,Com seus prédios imensos e suas janelas minúsculas,Com suas pessoas caminhando em seus passosperdidos.

Em frente à minha janela vejo o corpo deteriorado deum prédio,um prédio que parece ter morrido da triste doença dasolidão,entre prédios jovens e opulentos parece encurvar-seem abandono.

Mas, dois prédios prendem minha atenção:o Teatro Guaíra,eterna (etérea) ida e vinda de músicos e atores quedesperta a vida.E o prédio do Hospital das Clínicas,pessoas de gestos contidos e falas sussurradas comoque embalando a morte em sono eterno.

Será a cidade ou a vida um imenso paradoxo?

Fiat Lux:E fez-se a luz.

Da escuridão uterina,Numa explosãoDe dor e alegria

De sangue e lágrimasIlumina-se o mundo

Nas retinas miopizadaspelo breu das entranhas.

E milhões de lumensEnvolvem de energiaAquele tenro corpo

Que, com divina auréola,Nem humano parece.

Talvez Santa Claralhe clarificou

Ou Santa Luziaa luziu

Com um raio de solEm seu sol-riso

lhe batizou,Assim: LUÍSA.

Escrito por ocasião do nascimento deminha filha primogênita.

Ilusão:olhar

quererpedir

Desilusão:amarter

sentir

Traição:chorarperderver ir

ParadoxoLilian Deise de Andrade Guinski

LuísaJairdes Carvalho Garcia

EtapasLilian Deise de Andrade Guinski

Page 24: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

Era pontual.Toda quinta-feira, na hora do almoço, ele

chegava, com seu ar simpático, um sorriso norosto já entrado nos anos, os cabelosencanecidos, com entradas longas. Erapequeno, não mais que 1,65m. Seus ternoseram bem cortados, elegantes e próprios paraum homem que obtivera bastante sucesso emsua carreira, tanto militar quanto política.

Após breve e animada conversa para pôrem dia a semana, eu, na qualidade de diretorda instituição financeira, já estava acostumadoa receber o velho e, apesar da diferença deidade, ficava fascinado com suas estórias eescondia dele a história que vivi por força dasdiversas decisões que ele tomou ao longo desua vida.

Após um cafezinho e um elogio à secretária,ele se punha de pé e, um pouco trôpego,segurava meus braços e juntos deixávamos ogabinete, meu local de trabalho. Íamos emdireção ao restaurante onde os empregadosfaziam suas refeições, no velho sistema debuffet, via bandejas.

Era uma distância razoável e a cobríamosem cerca de 20 minutos, andando devagar,respirando o ar que vinha da Mata Atlânticaque rodeia a região noroeste da capitalparanaense. O caminho era um jardim bemcuidado, o que nos levava a fazer brevesparadas para observar flores, borboletas,libélulas e árvores frondosas.

Era tempo de ouvir suas memórias, escutarseu riso, desfrutar de seu bom humor, própriodos que sentem que cumpriram o dever e nãodeixariam esta vida em brancas nuvens.

Flashback

Início dos anos 60. O chamado norte novíssimodo Paraná era desbravado. Minha mãe, professora,mulher combativa, patriota, getulista, era o oposto demeu pai, coletor estadual, um udenista de quatrocostados. Mas viviam em paz. Mesmo assim, porexpressarem suas opiniões, éramos jogados de umacidade para outra, pelo governo pessedista de Lupion.

Morávamos em uma pequena cidade, onde aluz acabava às 20 horas, na fronteira com o Estadode São Paulo, na beira do Rio Iapó. Terra de muitaareia, de ladrões como Diabo Loiro, Carne Seca,Sete Dedos, Carniceiro e tantos outros. Lugar ondese dormia ouvindo o miado das onças nas matasdos arredores e o chiado do velho fogão tocado apó de serra.

Meu velho dormia com a Winchester 44 de 12tiros ao lado da cama, pronto para nos defenderdos malfeitores. Minha mãe nos tirou da escola no2º ano primário, ao ouvir uma professora gritar"É favor ponhar os livros em riba da carteira".Na próxima mudança faríamos apenas exames emum colégio administrado por freiras e, assim, meuirmão e eu passamos a temporada brincando eestudando em casa.

Certa noite, quando parte da cidade já dormia,ouvimos o ronco de um jipe 51 vindo da região deNova Esperança. Foi uma surpresa quando o ronco dovelho transporte parou à nossa porta, colocando meupai em alerta, já com a Winchester em suas mãos.

– Ó de casa! Pode abrir que sou de paz!– Quem é? – perguntou o meu velho.– Sou eu, o cartorário de Nova Esperança, e

nosso candidato a governador. Podemos entrar econversar um pouco?

O velho generale a dama de ourosJayme de Azevedo Lima

24 Revista de Literatura da ADVOCEF

Page 25: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

25Revista de Literatura da ADVOCEF

Estávamos, meu irmão e eu, enrodilhados nasaia de nossa mãe, assustados, quando os doishomens adentraram a nossa casa. Com guarda-póe chapéu na mão esquerda, o candidato estendeu amão direita, cumprimentou-nos um a um, pediulicença e sentou no velho sofá alegando uma dornos rins, por causa das costelas de vaca que fazia ojipe andar aos solavancos pela estrada.

Um jantar foi preparado rapidamente à luz develas, um vinho foi servido. Comeram com muitavontade e, após um cafezinho, começaram aconversar:

– E então, amigo Tuta, o que faz perdido nestacidade, neste fim de mundo de Deus, tão longe dosseus?

– É a velha politicagem, major. Para calar minhamulher, nos mandam para bem longe de tudo e detodos.

– E o que posso fazer para ajudá-lo?– Bem, major, gostaria de vê-lo eleito. É uma

nova década e muito tem que ser feito. Entretanto,creio que não verei tudo acontecer. Portanto, sepossível, gostaria de voltar para a Coletoria deJacarezinho, no norte velho, onde estarei junto demeus familiares e terei melhores oportunidades.

– Pois considere este seu pedido uma ordem.Assim que eu ganhar a eleição, vá para Curitiba eeu o enviarei para Jacarezinho.

Meu velho não foi, mas minha mãe sim.Quando o novo governador a viu, de imediatomandou chamá-la e cumpriu sua promessa,nomeando meu velho para onde ele queria, àrevelia dos apaniguados que viviam e trabalhavamem Curitiba, sobreviventes do governo anterior.

Foi meu primeiro contato, quando aindamenino. Vi um homem em busca de seus sonhos.Pelo rádio ouvi seu nome como eleito. E estávamosde volta, ao colégio e à cidade que queríamos.

Em nossa lenta caminhada em direção aorefeitório, paramos para apreciar uma cerejeira emflor. Após breve comentário sobre as bonitas festaspromovidas pelos imigrantes japoneses na época daflorada das cerejeiras no norte do Paraná, lembreiao velho general dos cafezais em flor, também nonosso norte paranaense. Foi então que ele apertoulevemente meu braço:

– Meu amigo, posso lhe fazer um pedido?– Claro, o que o senhor quiser, se estiver ao

meu alcance.

– Como você bem sabe, eu recebo muitassolicitações. Às vezes procuro atender, às vezes éimpossível. Desenvolvi um sistema e quero passá-loao jovem amigo.

– Como quiser, o senhor manda e não pede –brinquei.

– Pois bem, quando eu ligar e lhe pedir algopara alguém, não precisa atender. Mas se euescrever uma nota e assinar em vermelho, ligue-me.Se o portador lhe estender um pedido meuassinado em azul, por gentileza atenda.

Eu ri muito e disse:– É um bom sistema, vou ficar atento à sua

recomendação.E assim prosseguimos para o nosso feijão com

arroz via bandejão. Lembranças dos bivaques,segundo o velho general.

Final da década de 70. A ditadura corria soltapelo país. Nos porões, intelectuais, jornalistas,estudantes, homens e mulheres tinham suas vidasceifadas simplesmente porque pensavam, ouporque lutavam pela liberdade, pela democracia e,alguns, pelo socialismo democrático. Não erapossível pensar, não era permitido falar. Para driblara censura, jornais traziam receitas de bolo no lugardas notícias censuradas. A música buscava, demaneira subliminar, levantar o povão:

Cai o rei de ourosCai o rei de espadaCai, não fica nada.

E outra:

Senhor, afasta de mim este cáliceDe vinho tinto de sangue.De muito gorda, a porca já não anda...

E assim ia a vida nas trevas de pós-64 e nadécada de 70, dias e noites de medo e de sufocopolítico. Mas o velho general, pertencente aoestablishment, virou de novo governador, senador eministro. Era um democrata calado pelasobrigações da farda. Dizem as lendas que no dia dogolpe ele havia preparado duas declarações, umaem apoio ao Jango, outra em apoio aos milicos. Erao político que florescia e se sobrepunha à farda. Àsua maneira, era humanista e desenvolvimentista.Ainda assim, no Paraná, muitos sofreram.

Page 26: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

26 Revista de Literatura da ADVOCEF

Creio que estávamos vivenciando seu terceirogoverno quando já se avizinhavam fortes sinais daredemocratização do país. Ainda assim a luta eranecessária, e lá vinha minha mãe de novo,voluntariosa, defendendo presos políticos, visitandoprisões. Presidente do Movimento Feminino pelaAnistia no Paraná, com ela vinha Terezinha Zerbini.Em minha casa passavam noites em claro emdiscussões políticas pessoas como Jards Macalé e aPimentinha, a talentosa Elis Regina. Quem saía dopresídio ia direto para lá, em busca de informações,não raro de roupas e até mesmo de trabalho. Naluta pela melhoria da qualidade de vida e deganhos dos professores, lá estava ela, à frente, debraços dados, segurando faixas, gritando palavrasde ordem.

Toda manhã olhávamos com atenção para ovelho fusca que amanhecia com bilhetes do CCC(Comando de Caça aos Comunistas), dirigido pordelegados do DOPS, e não raro tínhamos queapertar os parafusos das rodas, que estavam todossoltos. Tentaram, mas não a intimidaram!

Em certa greve, com movimentação deprofessores em direção ao Palácio do Governo, acavalaria atacou, espalhando os grevistas, namaioria mulheres. Gritos, choros, desmaios.Apontando para minha mãe, o major comandantedas operações gritava em alto e bom som:

– É aquela lá!– Pega ela, desce a borracha!– A ordem é prendê-la, vão pra cima!Mas os soldados não cumpriram a ordem. Já a

conheciam, sabiam de sua luta e o que tinha feitopela corporação. Era desumano, era covarde, eassim deixaram que todos corressem para longe dafúria do major louco de babar, que via, talvez,naquela operação, um degrau para chegar atenente-coronel.

Dele, ninguém se lembra mais!

Epílogo

– Uma sobremesa, ministro? Era como eu o chamava, o último cargo que

havia ocupado, já que não ficava bem chamá-lo depresidente da maior empresa de energia do país.Logo ele, que tinha também criado uma companhiacuja energia alavancou o progresso e mudou operfil sócio-econômico da região.

– Como qualquer coisa, os anos de políticaforjaram em mim um estômago de ferro –redarguiu o velho.

– Creio que sim – disse-lhe. – Em políticaaprende-se a comer cobras e lagartos, a sobrepujaro nojo que sentimos dos acordos espúrios quealguns consideram válidos na luta pela sobrevivênciapolítica.

– Você é jovem, ainda, muito jovem. Não sedesencante tão cedo.

– Embora jovem, ministro, minha alma já éanciã face ao que vi e vivi, e um dia, com tempo,vou lhe contar.

Mas não houve tempo. O velho general, ex-governador, ex- ministro, ex-presidente da maiorempresa de energia do país, foi abatido pela forçainexorável do tempo, morreu após curtaenfermidade.

Dele ficaram lembranças e algumas ideias decomo fazer política. Entre elas:

– Tal como na guerra, não deixe oscompanheiros feridos em combates largados nocampo de batalha. Resgate-os.

– Assuma todos os cargos que lhe oferecerem.A máquina anda sozinha. De vez em quando faça“cara de bravo”, mas dedique-se a conhecê-la emelhorá-la. Busque as boas ideias e saibacompartilhar a administração.

– Seja leal, sempre. Ainda que sua lealdadevenha a ser reconhecida depois, seja honesto. Tantovale um botão como um milhão, será semprecorrupção se não for ganho de forma legal.

– Dinheiro não é tudo, o poder é que vale. Sevocê detiver o poder, dinheiro não lhe faltará. Nãoengane ninguém, mas isso não significa que nãotenha que ser mais esperto e exercer suainteligência com competência.

– Não hesite em lutar contra seus inimigos, mastraga-os para o seu campo de batalha e vença-ospelas suas regras. Não se deixe intimidar. Os que oatacam sempre estão, no fundo, mais temerosos.

– Seja um bom homem. Entre o pensamentocartesiano e o humanista, fique com o segundo.Esqueça os números, pense com o coração.

Respondi que levava a vida respeitando afilosofia das quatro palavras que se iniciam com aletra “H“. Ou seja, honra, honestidade, humildadee humor.

Page 27: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

27Revista de Literatura da ADVOCEF

– É uma postura de caráter bastante resumida,não é? Você tem espírito prático e isso é bom –dizia o velho.

Ele se foi, mas a senhora permanece,combativa, lutando contra a ignorância,manifestando suas posições em crônicas que dãono cravo e na ferradura, principalmente nas usadaspelas cavalgaduras do PT que estão no poder, semter plano de governo e capacidade de decidir.Gente chinfrim, sem estofo, sem cultura política,apenas a velha cultura sindical atrelada a chefetes.

Lutou contra a ditadura e os governos militares,foi às ruas em defesa da classe como professora, foiàs prisões e aos porões da ditadura em defesa daanistia, foi conselheira da Polícia Civil no Paraná,mudou o perfil de avaliação dos delegados e ládeixou uma oração aos policiais, que até hoje é lidaem momentos especiais.

Não tolera a incompetência petista, comotampouco tolerava a imbecilidade e a violência dosmilicos. Bate na direita e bate na esquerda. Narealidade, bate duro em quem quiser violentarainda mais este país. Luta contra a corrupção e, pormais que tenha direito a receber indenização peloque passou, não aceita, pois quem luta pela pátriadela nada pode pedir.

Claro que minha mãe é minha heroína, nãopor ser quem me gerou, mas por ser quem lutou econtinua lutando quixotescamente, combatendomoinhos na defesa da democracia, da igualdade eda educação, como a única forma de tirar o paísdeste marasmo.

A senhora continua e o velho general já passou,mas ambos têm algo em comum. Lutaram, aliaram-se, foram antagonistas, foram parte da forja quevai fazer deste país um lugar diferente um dia. Elenos holofotes, ela nas ruas, com a pena e seustextos nos jornais. Ele no comando, ela naliderança, ambos inteligentes, ambos trazendo àsua maneira o amor pelo Brasil.

É, não se fazem mais políticos comoantigamente.

Page 28: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

28 Revista de Literatura da ADVOCEF

Saga da figueiraA estória de Governador Valadares/MG

Jairdes Carvalho Garcia

Cum lincença, senhoriasPra mode me apresentáQui num dediquin de prosaMinha história vô contá.Eu cheguei numas correderaDas água que vai pro máCê num sabe a canseraQui deu essas água domáPulavam qui nem burro chocroEra difícil se aprumá,Tanto barro ingoli,Qui num dá nem pra lembráSó lembro do gosto do barroCês num vão acreditáEra ducim qui nem meladoQui nem bala de gomáEntonce resovi Rio DoceAquelas água chamá.

Já perto de uma pedraQui, de tão alta, beija o céuApiei da minha canoaNum porto perdido ao léuE parei pra pernoitarPruque já tava um breuDe longe vi um vultoQui juro qui num era o meuPois aquele troço estranhoEra bem maió qui euMe aproximei de mansinhoQui o bicho nem percebeuQuando tava bem pertinhoVeja só o que assucedeuO trem que eu achava ser bichoFicô queto, nem se mexeuQuando eu nele cutuqueiNem um uivo o bicho deuSó aí qu'eu apercebiA lerdeza deste infielAquele bicho grandeQue tanto medo me deuEra só uma veia arvreEnsombrano aquele breuLogo vi qui era uma figueraPois figo era o fruto seuE Figuera do Rio DoceO lugar assim chamei.

Já tava madruganoQuando um baruião oviE um monte de gente cantanoAvistei perto daliTinham cara bem pintadaBunito igual colibriE as coisa toda à mostraComo no dia que nasciBrincavam, pulavam e cantavamComo uma juritiEu não sei se por invejaOu por medo que sentiMirei bem meu bacamarteE espantei eles daliDês então não tive sossegoNão sei quantos de mim morriSó sei que muito mais matamoDos que viviam aliBotocudos, PataxósCrenaque e Maxacali.

Di dia cum o sol a pinoE cuma fome de leãoResovi buscá comidaNo meio du aluviãoPerto duma ribanceraDefronte de um ribeirãoSenti um brio nos oioE um peso no coraçãoSerá queu tava sonhanoOu era alucinaçãoSerá que aquele brioEra a luz do meu caxãoApertei bem os meu zoioE firmei bem a visãoE cheguei bem de pertinhoBem rentinho ao rês do chãoAí peguei aquele brioCom as parma da minha mãoE abri de leve os oioPra ver a assombraçãoMas qui sombração qui nadaFoi aí queu vi entãoQuera uma pedra luminosaIgual luz de lampiãoE tinha tantas delaFincadas naquele chãoE di cores tão sortidaQui nem pena de pavãoQueu até esqueci da fomeE do medo do sertão.

Page 29: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

29Revista de Literatura da ADVOCEF

Eu num sô americanoNem índio, não sinhôTamém num sô baianoNem capixaba num sôEu num sei quá estradaOu caminho pronqueuvôE tamém quais num intendoO lugar aonqueutôMas uma coisa é certaComo a fé no meu SinhôMermo ainda não sabenoAonde eu tô e pronqueuvôUai, eu sei que sô mineroDas montanha, dos cantadôE sou de Valadare, mai brodiA terra que me criô.

E o tempo foi passanoAs mata se acabôE a bonita figueraNem sua sombra restôOnde só tinha bicho,Índio, pedra e flôComeçô a pipocáO povo de ao derredóPra aumentá a bastançaDe gente que aqui chegôFincaram no chão uns fechoE o trem por aqui passôQuando já tava crescidaNutrida por seus sinhôO arraiá da figueraMuita fama conquistôE, num sei se foi ironiaOu se foi mermo amôResolvero lhe dá o nomeDo nosso governadô.

Valadare cresceu tantoQue é difícil até contáMas a Califórnia daquiFoi pra Califórnia de láMeus parente queu visitavaTodo dia sem faiáAgora vejo uma vezPor ano e oie láTem gente que vai e não voltaNem notícia tem pra dáPode ser que enricôOu sumiu, morreu, sei láTalvez teja sem tempoDe cumigo proseáPruquê lá a vida é duraSó tem tempo pra trabaiáE as famia aqui distanteÉ preciso sustentáEste deve ser o preçoDos dola que vem de lá.

Page 30: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

30 Revista de Literatura da ADVOCEF

Café para quatroRodrigo Mello

Faz frio. Mas já se vai indo o inverno severo. Étempo de um frio mais ameno. Hoje, porém, chovee o dia vem com os ombros pesados de nuvens.Com a culpa de chover. Faz um frio úmido. É dessesdias desgraçados, sem luz. Dia em que oscobertores, mantas e afins são os verdadeirospersonagens da noite. E com eles, a chaleira velhade aço inox, onde a água ensaia o primeiro baile damanhã, acordada pela chama. Próximo, vem ogrande vidro de conserva, até a metade de café,encimando o velho balcão azul-claro de fórmica, nasua vez. A baixa temperatura provoca um resmungoinconformado da chaleira, antecedendo a fervura.

Nesses orquestrados elementos, não hápressa, a não ser pelo calor, esgueirando-se embusca do ar. O coador de pano de algodão,manchado pelas incontáveis investidas da águaquente e do negrume do café, está a postos, emposição de sentido. Há uma entropiaremanescendo ali, entre um e outro artefato. Nemmesmo o olho astuto e aguçado pode ver oderradeiro resultado expectando da cadeira depalha e madeira, a um par de metros à frente dofogão, junto à mesa também de madeira, suja emaltratada pelo tempo, pelos copos de cerveja,pelos vinhos e cafés derramados. Entretanto, nobalcão azul, acontece da água límpida ao impactarno pó do coador virar-se no precioso líquido, frutoda fusão de dois insumos separadamenteimprestáveis ao observador.

No rosto de Antônio, um sujeito mestiço egrisalho, de olhos profundos e pequenos, de lábiossulcados e grossos, há uma impaciênciapreguiçosa, a antecipação do resultado alquímicodos elementos que observa. Mas não é ele quemopera o processo todo, apenas o assiste. Seubraço direito dorme sobre o tablado da mesa. Osolhos experientes acompanham os movimentosdali, sabem que sequer precisam do gesto depescoço para atentar à Janete, a que prepara ocafé.

Para e vê Janete. Ela não para e o vê. Há umprotocolo a ser seguido. Na casa de Antônio eJanete, todos o sabem. Pensa nos movimentosdos pés da companheira. Será que deles resultariaharmonia alguma? Pisca demoradamente. Abre osolhos inundados de realidade. Os segundos se vão,breves. Os minutos, contudo, são tão longos enem parecem ser feitos de segundos, segundopensa.

Finalmente acontece. O líquido é inseridohabilmente na garrafa térmica verde de alça deplástico quebrada, e o odor preenche as narinasdo sujeito grisalho. São 6h15min, toda a operaçãonão consumiu 10 minutos. A feição pétrea deAntônio torce os traços pela primeira vez emminutos. A expressão revela uma satisfaçãocontida; o olhar vitorioso da paciência. Os braçosgordos de Janete, a velha e boa Janete, pensaele, carregam a garrafa e o açucareiro translúcidoaté a mesa, ambos vindos da pia.

Outro levantar de braços de Janete, o que lhecusta o erguer da blusa de lã branca desnudandoparte de sua barriga, e a xícara e o pires sãotrazidos à festa, junto ao tablado, onde Antônionão mais está. Foi-se ao balcão em busca dumacolher de chá, completando o conjuntoinstrumentário de que precisa.

Ouve-se o ruído. Somente isso: ouve-se-o. É odespejar do café fumegante sobre a cerâmicaxícara branca de motivos florais. Enche-a aoterceiro quarto. O raspar da colher no fundoaçucareiro, onde rareia o açúcar caçado, colhendoo adoçante. Logo, Antônio percebe, no silêncio dafavela onde mora, nomeada em favor de umfalecido seringueiro, apenas o tilintar de suacolher circulando entre as bordas da xícara. Pensano que teria feito o tal sujeito, Chico Mendes, dequem sabia a profissão de conversa de ônibus oude bar. E como seria a seringueira de perto, só atinha visto na televisão, num desses programas denoticiário que o incomodam em dia de clássico no

Page 31: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

31Revista de Literatura da ADVOCEF

Orlando Scarpeli. Janete abre a janela de madeirada sala-cozinha, ou cozinha-sala, dependendo daprioridade eleita, e por pouco não pega em cheioo João, o vizinho dos fundos, que desviou numgolpe de vista, enquanto pegava o rumo para otrabalho. Ao invés da claridade, o que entra é aparede do barraco do lado, dum composto depapelão, telha e madeira, meio torto, meiobêbado, como o proprietário, pendendo as pernasem direção ao casebre quase geminado deAntônio. Essa é a paisagem do velho Antônio: umcasebre em desmancho e um filete de céu, dondeele faz sua adivinhação meteorológica apertandoos olhos e baixando a cabeça à frente,mendigando um bocadinho de céu a mais. Nãotem jeito, conclui, é chuva mesmo o dia inteiro.Recolhe o pescoço, sorve o último gole de café eaperta vigorosamente a rosca da garrafa térmica.Olha a porta, vê Janete de saída, carregando umasacola prateada com a marca de boutique. Ela sevira e sorri, e vai batendo a porta bruscamente.

Terminado o ritual, Antônio veste sobre acamisa de manga comprida um moletom novo, azulmarinho, com dizeres em palavras desconhecidas,tateia-as como se suas mãos soubessem-nasmelhor que os olhos. Escutou um "oi, compadre",procurou a voz e viu o velho Vicente com quemtrabalhou em algumas obras, lá nos idos dos anosoitenta. Hoje o compadre é aposentado, tem ascostas ruins de levantar tijolo, saco de cimento earmação de ferro, disse-lho. Ergueu a mão emresposta e sorriu sincero. Apanhou a maleta demão onde guardava, desafiando o bom e velhoprincípio da interpenetração de corpos, umacamisa reserva, o sabonete e toalha, o pente, asmeias, as roupagens íntimas, a marmita e a garrafade café. Alceou-a ao ombro e manuseou as chavesdo cadeado da casa, o qual fechou no ferrolho daporta, tomando o rumo acidentado do ponto deônibus na rua da frente.

A caminhada lenta e determinada atravessouo terreno baldio com o mato espreitando ascanelas de Antônio, umedecendo levemente suacalça de tecido grosso e indefinido pelas gotasde orvalho nos talos das gramíneas. A terra dalicobria-se de paus, tábuas, um ou outro vergalhãoenferrujado e de sujeira de construção. Umacena cotidiana. Desbravou a catanduva andando

com os passos longos e altos, percorrendo-a numpulo. Pôs-se em posição de sentido na espera dotransporte que, segundo seus cálculos, nãotardaria a passar por ali.

Uma chuva fina calhou de cair, maltratandouma senhora idosa, desabrigada da água que vinhade lado devido ao vento. A anciã apossou-se doestreito banco de espera do ponto, jogando abolsa de nylon ao seu lado. Os presentes, unsquatro ou cinco, deixaram de protestar àinconveniência de terem os pés molhados dechuva. Houve silêncio. Desse último veio o recadodistante do motor possante, um ronronar,transformado em rugido na medida daaproximação do ônibus. Antônio fitou o mostradorde seu relógio de pulso e através do vidroarranhado viu: 6h e 27min. Olhou à esquerda. Dodeclive da rua nasceu o vulto imponente doônibus, exibindo o rosto indiferente do motorista.

De relance, percebeu no barraco do outro ladoda rua a janela de uma outra cozinha abrindo-se.Pôde ver Carlos, cuja graça lhe era anônima,sentado à mesa com o olhar dormido. No fundouma desconhecida Maria aprumava-se em buscados apetrechos do café da manhã, esticando osbraços ao alto, procurando o bule. Sentindo osolhares sem saber de onde, Carlos devassou apaisagem e lá encontrou os olhos de Antônio.Fitaram-se, um e outro, a figura de cada umlongamente, até que se atreveu entre eles apaquidérmica figura metálica. Antônio embarcou,seguindo logo atrás da idosa senhora, aquela,posseira do banco do ponto deixado no passadodos minutos consumados. Carlos, retirado dopensamento no outro, observou Maria, ele tinha amão estendida sobre a mesa e esperava solene oalquímico misturar de dois elementos que,isoladamente, pareciam ser não mais que águaquente e pó...

Page 32: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

32 Revista de Literatura da ADVOCEF

QuotidianoFloriano Benevides de Magalhães Neto

Pensativo, após mais um dia de trabalhoduro, ele chegou ao morro onde mora suanamorada. Na vila ao lado, uma senhora corriado marido com uma mala de filhos. No ponto doônibus, um descuidista arrebatava a bolsa deuma mulher. A flor que ele traz na mão,comprada com o pouco do trocado que lhe restano bolso, leva no galho um bilhete escrito peloseu parco romantismo.

Vida que explora a todos por dinheiro! Osalário que não remunera nem a vontade detrabalhar, o medo de não poder comprar oalmoço de amanhã; o sonho de possuir um carroque se realiza no ônibus nosso de cada dia...Alegria é dia de pagamento; o resto do mês édesilusão e dor de cabeça.

Cada segundo é o futuro, vai ser presente eserá passado, num ritmo do qual o relógio não sedesvia, seja qual for o espinho ou a flor que nosespera. O tempo, esse sádico que nos engelha apele e transforma a criança que brinca noquintal num idoso que sofre para atravessar arua...

Em casa, dois cômodos o esperam. Suascompanhias são a geladeira que vez por outraenguiça, o fogão de duas bocas que quasesempre reclama a falta de gás, uma mesa velha eum colchão posto em cima da cama que range denoite, fazendo zoada junto com o radinho depilha que ele usa muito para escutar os jogos dotime do coração.

Encosta os olhos na janela do vizinhotentando pescar a novela que passa e penetranum mundo de milionários e riquezas. Grandecontraste: em seu mundo não há piscinas, iates,muito menos dólares. Só o balde d'água enchidona cacimba. Ora! - pensa - por que jogar na casada gente um mundo só para abrir nosso apetite

abrandado pela miséria? Apesar de tudo, notíciaboa é na televisão ou no jornal do vizinho. Jáperceberam quanto custa um jornal? E o preçodos minutos para acessar a internet na loja dobairro?

Pela manhã, abre uma gaveta onde seacumulam contas e estremece junto com asubnutrição que leva para mais um dia detrabalho. Sente-se como uma engrenagem nãolubrificada prestes a quebrar e ser jogada forana próxima manutenção.

Lá num morro próximo - contou um vizinho -,de madrugada as pessoas saíram correndo eavisando uns aos outros:

- A chuva vai derrubar nossas casas!Houve um corre-corre às cinco da manhã com

tudo que se podia levar nos ombros. Ospequenos casebres iam desabando um a um,ante a correnteza da água que vinha morroabaixo.

Na rua de trás alguém guardava umas telhaspara cobrir a casa. Um malandro da área vendeuas telhas e sumiu com o dinheiro.

Ele desceu do ônibus e viu umabalroamento. Um carro enfiado na traseira deum ônibus. Pedaços de vidro por toda parte,pedaços de vida que vão dentro da ambulância,que sai avançando semáforos querendo nocaminho, e aos gritos, cicatrizar todas as feridase salvar a vida daquela pessoa.

Vida que às vezes se confunde com aespuma que corre para dentro da pia após osabão haver cumprido sua missão de lavaralguma coisa! Um conjunto de emoções sesucedendo como o DVD que passa mostrandoum filme, ferindo a cada milímetro nossossentimentos e destruindo nossos ideais, atéque a máquina quebre, a tela estrague e a

Page 33: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

33Revista de Literatura da ADVOCEF

saudade chegue e permaneça no escorrer daslágrimas de quem chora nossa falta!

Na solidão do seu quarto, põe a roupa parasecar e se lembra do passado, o grito de seu pai:

- Não jogue bola agora, menino. Vocêalmoçou, faz mal!

Naquele tempo sentia-se protegido. Só tinhaque brincar. Tinha roupa, carinho, apenas aobrigação de estudar. Havia gente que sepreocupava com ele. Preocupação de sua parteera apenas ir à escola, executar suas atividadesdiárias e brincar. E ainda ficava chateadoquando as férias escolares acabavam...

Tinha planejado ser rico. Concluiriafaculdade. Teria casa com piscina, arcondicionado, uma esposa bonita. Tudo de bome do melhor. Mas, todavia, frustração!

Sentou-se na cadeira, que pelo buraco noassento se podia ver o cimento do chão.Procurou folhear uma revista velha tentando lero miúdo de uma notícia, sem os óculos que asua vista já exigia, contudo não tinha dinheiropara comprar.

Mais tarde escutava somente os gritos danoite que tentava, a todo custo, escapar dainvasão próxima do dia!

Ele tem que dormir. Pela manhã bem cedo oônibus espremido o espera. Vida de pobre éassim! - dizia um morador, numa resignação quenão cabe mais no nosso tempo atual.

Tudo é passível de mudança. E ele estátentando fazer por onde. E não fogem de suacabeça as lembranças de sua ex-mulher e deseus filhos, todos tão distantes. Mas, porenquanto, sente-se confortado porque aspessoas que tanto ama não estão fazendo partedeste quotidiano.

Page 34: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

34 Revista de Literatura da ADVOCEF

De Anselmo a Verdes TrigosHenrique Chagas

Nasci numa segunda-feira, alguns dias após amorte de Albert Camus, o existencialista argelino.Eu sequer tinha nome para o batismo. Aindanascituro, tia Porcina persuadiu por meses paraque eu fosse nomeado Anselmo, estavaabsolutamente certa deste nome para mim. Jáhavia convencido boa parte da família de queJuscelino ou Brasilino, embora fossem nomes damoda, não seria bom nome para um filho dosTerras.

Para ela e boa parte da família, Anselmo eramais nome, tinha toda uma carga culturalimportante, mas enfrentou o veto fatal de minhamãe. Coube a meu pai colocar fim à celeuma, semqualquer justificativa: "Levará o nome do freiHenrique de Coimbra!" Emudeceram todos. Mamãeassentiu, afinal (confessou-me alguns anos antesde sua morte) tivera um candidato a namoradocom este nome. Assim, eu, filho de José Terra, fuibatizado Henrique Chagas.

Se com o nome sela-se um destino, levei asério o traçado por meu pai. Em plenaadolescência, com apenas quatorze anos, saí decasa, deixei meus pais e meus irmãos, ingresseinum seminário católico; não tinha a intenção deser padre, rezar missa ou aconselhar quem querque seja (meu pai sabia disto), queria ser umpalestrante, um mensageiro, um profeta, umdisseminador de boas novas. Assim, tornei-me,como que predestinado pelo nome, religioso,apenas frei, irmão, cujos votos renunciei aosvinte e dois anos, idade certa para dar novo rumoà vida. Quedou-se o frei, todavia restou em mim ogosto pela difusão de boas novas, de cultura, dearte e literatura, e, enfim, das coisas do espírito.

Não, eu não acredito que o nomepredetermina os rumos que a vida dá. Sou euquem dá os rumos à minha própria vida. Mesmo

que eu me chamasse Juscelino, Brasilino, Albertoou Anselmo, talvez até tivesse que pagar algumaspromessas (essa foi sutil), mas chegaria ondecheguei. Bobagem, tudo besteira, eu gosto domeu nome. O que importa mesmo, digo-lhe, é quepertenço à tribo dos Terras.

Resolvida a questão do nome, a coisa pegoumesmo foi quanto ao sobrenome. Afinal, levamosum nome de família e fazemos questão deperpetuá-lo. Eu, filho de José Terra, fui batizado eregistrado com um sobrenome simples, curto egrosso, que lembram as chagas do servo sofredor,do messias que há de vir, como profetizou Isaías.Quis saber o porquê de portar o sobrenomeChagas se meu bisavô, meu avô e meu pai traziamconsigo o nome da família Terra. Descobrir oporquê não é uma tarefa fácil.

Por ocasião da Grande Guerra, meu pai quisalistar-se nas forças expedicionárias para lutar aolado dos aliados, todavia não tinha documentos,nenhum documento, nem mesmo o simplesregistro de nascimento, nem ele, nem meus tios,nem meus avós e muito menos os bisavós. Então,a simples solução, naqueles anos quarenta, foitodos comparecerem ao Cartório e promoverem oregistro coletivo dos membros da família. Meu avôresolveu que não se registraria como AntônioTerra, tinha sede por mudanças.

Foi meu tio Sebastião Terra quem meconfessou a referida transgressão à tradição donome familiar. Ele foi totalmente contra, achouaquilo um absurdo sem tamanho. Entretanto, meuavô quis homenagear dois amigos, um que tinha osobrenome Leite e outro Chagas e colocou no seuregistro o nome de Antônio Leite das Chagas;todos os seus filhos levaram, então, o novosobrenome. Contudo, todos eles continuaramchamados pelo sobrenome Terra. Em Cruzália, no

Page 35: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

35Revista de Literatura da ADVOCEF

jazigo dos meus avós e do meu pai, grafei osobrenome Terra, foi por este nome familiar quesempre foram conhecidos.

Eles foram enterrados na terra, na fundura desete palmos, sequer tiveram caixão ou urnafunerária, segundo o testemunho de minha tiaJoana Terra. Antônio Terra, minutos antes demorrer, havia tomado banho, mas teve o corpolavado novamente, numa cerimônia de lavaçãototalmente improvisada numa casa de pau apique. Quando enterramos meu pai, sendo quesua única exigência foi que o corpo fosseenterrado na terra viva, fiz questão de jogar sobreele um punhado de terra. E todas as vezes quevisito seu túmulo, assim como ele fazia, deixosobre ele uma pedra redonda do tamanho do meucoração. São costumes trazidos pela família Terra.

Abro parênteses para contar outro costumefamiliar interessante. Minha mãe nos ensinou que,ao varrermos a casa, o serviço deve começar pelasala, trazendo todo o pó, a sujeira, os ciscos paraa porta da cozinha. Jamais se deve varrer a sujeirada casa pela porta principal. Regra simples, masque se desobedecida constitui-se em sacrilégio. Omotivo para tal ensinamento reside no umbraldireito da porta. Lá devia estar aposto um objetode metal chamado mezuzá, que protege a casa detudo o que é ruim ou danoso.

Todos estes costumes justificam a motivaçãodos ancestrais em trocar de sobrenomes, apenasuma forma de sobreviver às perseguições. Ogoverno Dutra foi implacável com a raça. Assimentendi as sérias razões para que meu avôhomenageasse seus amigos Leite e Chagas.Entretanto, também não creio que o sobrenomedos meus ancestrais tenha sido mesmo Terra; nãotenho nenhuma certeza. Talvez pudesse ser outroou outro. Quem sabe?

O que sei é que, um dia, pretendo mudar omeu sobrenome. Acho o nome Henrique Chagasmuito curto e pequeno, quero a ele acrescentarum novo sobrenome que criei há dez anos: VerdesTrigos. Ora, até mesmo o ex-planeta Plutão, quesempre foi e será sem nunca ter sido, estámudando de nome para plutoide. Contudo, Plutãocontinua na mesma órbita ao redor do Sol, muitoalém de Netuno.

Page 36: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

Não estava achando o filme muito bom, naverdade gostava muito pouco de cinema,principalmente quando, sendo uma películaestrangeira, tinha que ficar lendo aquelas frasesna parte de baixo da tela, não conseguiaacompanhar o enredo. Na verdade estava aliapenas para fazer a vontade da noiva e de umcasal de amigos, todos querendo ver aquele"maravilhoso" filme. Do seu ponto de vista eraapenas uma história boba como tantas outras,mas, cada um, cada um...

Contava os minutos para o fim da sessão, jácomeçava a sentir o sono a lhe fustigar.

Pronto, aquelas letrinhas mágicas "The End" euma moça bem bacana segurando uma tocha, asluzes se acendem, finalmente, todos começam ase levantar, que bom poder esticar as pernas, duashoras ali sentado, paradinho, é demais.

Que maravilha, aos poucos todos vão saindo,ganhando as calçadas, naquele tempo os cinemasainda não eram dentro de shopping centers, eramsalas enormes, com fachadas vistosas echamativos letreiros luminosos, onde, em regra,encontrava-se o anúncio do filme em cartaz.

O ar da rua daquele início de outono estavabastante agradável, já levemente frio, uma luatímida tentava se exibir por detrás de volumosas eescuras nuvens.

As rodas dos bondes produziam nos trilhos umrangido característico ao parar para apanhar aspessoas que já se aglomeravam no ponto maispróximo.

Sim, bondes eram comuns naquela Porto Alegrede meados do século passado, época em que aspessoas, para ir ao cinema, verdadeiramente seesmeravam no trajar. As mulheres de sapatos desaltos altos, vestidos bem cortados, segundo aúltima moda que espelhavam as revistasespecializadas; os homens invariavelmente deterno e gravata e a indefectível camisa branca.

Rogério Spanhe da Silva

Uma vez após o cinema

Nosso personagem não era diferente. Fatiotacompleta, a única que possuía, camisa engomada,gravata, tudo muito elegante e alinhado.

A noite se delineava para um final semsobressaltos. Tomar o bonde, acompanhar a noivae o casal de amigos até o bairro, deixar a noiva emcasa e retornar ao centro da cidade para umaalmejada noite de profundos sonhos. Já era capazde sentir o calor e o perfume das cobertas,sempre muito bem cuidadas pela proprietária dapensão, uma polaca simpática, mas extremamentebrava e rigorosa com seus hóspedes.

Foi quando, subitamente, de um sobressaltoalgo novo se anunciou. Primeiramente de maneiradiscreta, suave, quase imperceptível. Entretanto,com o passar dos minutos a situação começou aganhar contornos verdadeiramente dramáticos.Algo no âmago de seu ser parecia ter entrado emum crescente estado de entropia convulsivaacompanhado de constantes ondas de calafrios.Num primeiro momento, e que bom que jáestavam na rua, ao permitir a liberação silenciosade considerável volume de substâncias gasosas, asituação aparentemente parecia ter arrefecido,mas quando tudo levara a crer ter acalmado oquadro piorou drasticamente.

Algo repentinamente insistia em vir ao mundo,como um vulcão por séculos adormecido que deuma hora para outra entra em erupção, com todaaquela lava correndo perna abaixo, digo,montanha abaixo.

Pequenas gotas de suor lhe escorriam pelafronte e pelo pescoço.

Estava fazendo um esforço danado,descomunal mesmo, para não demonstrar suaangustiante situação.

E aquele bendito bonde que não vinha, a ruajá estava ficando deserta, e aquele bonde nãovinha, de todos os bairros já haviam passado, demuitos até mais de uma vez, e aquele bonde não

36 Revista de Literatura da ADVOCEF

Page 37: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

vinha, aquela espera só fazia aumentar o seudesespero.

Decididamente não escutava mais nada do quelhe falavam, apenas se limitava a responder "ah é","pois é" e coisas do gênero.

Sua resistência estava a cada minutoliteralmente se liquefazendo.

Quando o desastre já parecia inevitável, umadesculpa lhe surgiu: aproveitar para ir a um barpróximo para comprar cigarros.

Cigarros? Mas ele não fumava!Sabia que esta mania de hábitos ditos

saudáveis ainda ia lhe custar caro.Ah! Ideia reformulada, comprar os cigarros para

um colega de pensão, o bonde estava atrasadomesmo.

Dada a esfarrapada desculpa, saiu o maisrápido que pôde, só não correu porque não seriatecnicamente recomendável e seguro.

Finalmente chegou ao bar, o recinto desejadoestava em reformas, não poderia ser usado, quemsabe no restaurante ao lado. Ocupado. No postode gasolina em frente, trancado, ninguém sabiadas chaves. Que suplício, que desespero!

Finalmente, na farmácia a salvação.Alívio, um sentimento de vitória sobre forças

quase sobrenaturais, ou bastante naturais,dependendo do ponto de vista.

Feito o serviço, notou a ausência de qualquervestígio do material normalmente usado naoperação de rescaldo, ou qualquer outrosubstitutivo.

Gritar estava fora de cogitação, não iriasacrificar sua dignidade neste ponto da batalha.

Logo hoje tinha que ter esquecido o lenço?A contragosto fez a opção: sacrificaria numa

atitude desesperada a única peça disponível.Era macia, a mais nova que tinha, artigo caro,

uma extravagância que cometera.Abandoná-la naquele estado lhe doeu na alma

e, sobretudo, no bolso.Ninguém entendeu por que, apesar do bonde

estar vazio, insistia em ficar de pé. Somente elesabia da aspereza daquela calca de lã.

Também ninguém compreendia direito quando,somente gostando de música sertaneja, afirmavaperemptoriamente que um samba-canção tem oseu valor.

37Revista de Literatura da ADVOCEF

Page 38: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

38 Revista de Literatura da ADVOCEF

Na mente humanaComo no cinemaPassa a fitaCores diversasFilme da vida.Passa um homem na fitaCom ele passa uma mulherCom eles o amorCom eles a vida.Amor, vida, filme da gente!A vida toda em saudadesSegue eternamenteE os corações unidosNum golpe de amorDizem aos seresQue o mundo é ilusãoE a vida, dor.Mexe-se no ar uma cabeçaDuas cabeças mexem-se no arEsfrega-se na outra uma pernaAs mãos se apertamOs caminhos da vida abrem-se eternos.Seguem os seresContinua o filmeDesaparecem os seresHá cortes na fitaSurgem novas personagensPersiste o filme.Eis que nos rostos jorram sorrisosNa mente pensamentosEm pensamentos a vidaA vida no homemO homem no UniversoE o mundo abre em sonhos.

SucessãocinematográficavitalManoel Messias Fernandes de Souza

A morte incondicionalRobério César Camilo dos Santos

A tarde contempla seu instante inesperado,enquanto isso eu me morro fácil e lentamente,

em cada fotografia tirada, morro um pouco,em cada filho que nasce, mais um pouco,

e quando um amigo se vai eu morro muito.

Minha natureza também, pouco a pouco, morre.Minha pele, minhas rugas, meus cabelos cada vez mais escassos,minha luta, meu amor, minha vida e tudo mais e mais profundo,

submergindo como cidades, como homens e coisas à minhafrente:

meus amigos, minha família, uma flor encontrada na rua,submerge,

tudo mais e mais perdido, e eu morto, vivendo intensamente,morto, morrendo a cada beijo, a cada transa, a cada amor.

À frente avisto um bar, uma causa, um derrame, um suicídio,homens caminham para um ataque de nervos,

para um ataque cardíaco, e eu a escrever para um futuro pósfuturo,

e um reconhecimento talvez, após a minha morte.

E eles morrem e eu morro, calmo, claro, polido,o pior é que já tenho plena consciência disso, e mesmo assim

continuo a caminhar para a morte, continuo a escrevernuma luz branca e calma, continuo com meus afazeres,

com meus chiliques e meus pileques sem qualquer temor[ou receio de mim.

No escritório, nas aulas da faculdade que assisto,e estudo, e trabalho, e amo meu dia repleto de compromissos:

escrevo uma carta, um poema a um amigo que já morreu,um poema que vai daqui até meu peito, pós passado, ultra

presente,e sem perceber a morte nos sonda: avalia, escolhe,

dissimula, absorve,e nem notaste o pôr-do-sol, tão pouco a lua, entretanto,sabendo, sem perceber, vais morrendo, pouco a pouco.

Andas pelas ruas, distraído, sem ser notado, sem ver amigos,pessoas passam por ti sem precisar teu nome, teu grito,

morrendo.E nem percebes isso, e o tempo já não te pertence,

já não te segue de mãos dadas como se nunca fosse acabar,e andas como se fosses o tecido enriquecido, a casa habitada,

como se o momento fosse teu e propício para viver,e morres meramente enquanto teu corpo vaga e lentamente

apodrece,e morres plenamente sem deixar ao menos vestígios.

Page 39: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

39Revista de Literatura da ADVOCEF

Depois de quinze anos casada, com apenas umfilho, decidiu que tinha que mudar muita coisa nasua vida. A relação conjugal estava estremecida,não havia mais amor, mais carinho, maiscompartilhamento. O comodismo era mais forte.Mas não pretendia fazer nada de muito radical.Nada de abandonar o marido, pois a mudançanesse campo provocaria muitos traumas. Dava parair vivendo e levando o casamento, mesmo semintimidade. E nisso a culpa era sua. Deixara que ocorpo se desenvolvesse além do limite que tinhapreparado para fisgar um marido: um rosto lindonum corpo de manequim. Conservava ainda traçosda antiga beleza, mas deixara que as rugas e asmanchas comandassem o inevitávelenvelhecimento. Tinha quarenta anos num rostode sessenta. Diferentemente de sua mãe que eraexatamente o inverso graças às massagens,cremes, filtro solar e bons hábitos alimentares. E aíestava o grande e grave problema. Sua boca nãotinha o controle do abre e fecha devidamenteregulado. Permanentemente aberta recebia asconstantes visitas dos salgadinhos, dos doces, dasmassas e das carnes gordas. Seu estômago é quecomandava a boca. Então as carnes gordastransformaram-na em gordas carnes. Com umagravante: suas ancas ficaram excessivamentedesproporcionais ao resto do corpo cheio,tornando-a alvo de muitas piadas. Suas ancas,cheias de carne e gordura, mesmo que não sequisesse fazer trocadilho, eram realmenteabundantes.

Pois todo este conjunto desleixado acabou porafastar o marido que não queria nenhumaintimidade com aquela mulher que não era mais aimagem que tinha sido carimbada em seu álbum dorelacionamento. E eis a razão pela qual tinhamapenas um filho. E se não tinha se separado eraporque o marido não queria, preso que estava arígidos princípios religiosos quanto ao casamento eà família. Ela também continuava casada porquetinha tudo o que queria, além de se dar muito bem

Francisco Spisla

O pufe

com as cunhadas e a sogra. A combinação perfeitapara um casamento de fachada. O fato de se darmuito bem com a parcela feminina da família domarido, que dela eram cúmplices, pois, de certaforma e em certa medida, tinham os mesmosproblemas, dava-lhe o sossego necessário para queaquela situação conjugal não sofresse revés.

O lampejo para a necessidade de mudança foiquando, de certa feita, percebeu uma situaçãocomprometedora do seu marido. Bastante sutil,mas com o carimbo da infidelidade. Nada lhequestionou, para ninguém contou, nenhumamedida tomou, nem para provar o fato, nem paracobrar os compromissos conjugais. E assim agiuporque, abalada com a descoberta, resolveu tomarum banho com sais e ervas para relaxar, pensar, ealgo lhe chamou a atenção. Ao lado da banheirahavia um espelho enorme, fetiche do casal noinício do casamento. Nua, ela se viu inteira gorda,cadeiruda, peluda. Tudo o que seu maridodetestava. E pensou: "E se me separasse, quemiria me querer?..."

Ficou parada longo tempo na frente doespelho, olhando, mirando, girando seu corpocheio, medindo e contando estrias e buracos decelulite, apalpando-se sem qualquer prazer. Depoisentrou na banheira, a hidromassagem funcionando,e chorou. Chorou muito. E decidiu mudar. Decidiumudar sua vida. Fechou os olhos e se viu vinteanos atrás: bonita, sensual, desejável.

Não se impôs limites, nem cogitou que muitode que fora era impossível ser reconstituído. Nessaagonia começou por caminhos tortuosos e sem fim.Consultou médicos sem experiência emtratamentos de obesidade. Frequentou academiasde ginástica em que os instrutores apenas sabiamcomo "bombar", e nada entendiam sobre exercíciosde emagrecimento com equilíbrio. Experimentoudieta da lua, dieta disso e daquilo, aceitou receitade remédios de amigas que tinham emagrecido.Por conta própria passou a comer somente saladasquando estava acordada. Mas, de madrugada, num

Page 40: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

40 Revista de Literatura da ADVOCEF

certo sonambulismo, assaltava a geladeira e comiadesde sorvete até carne crua.

Tudo isso provocou alterações na saúde comproblemas estomacais, intestinais, principalmentede constipação, que lhe davam uma aparênciaainda mais gorda, com a consequência natural einconveniente da flatulência. E, pior ainda, nocampo da urologia, tinha bexiga solta emdeterminadas situações. Como de risodescontrolado. Não podia cair na gargalhada que semolhava toda.

O marido acabou por perceber toda essamudança no comportamento e, de um modo queainda demonstrava cuidado com a esposa, sugeriu-lhe consultar um especialista, de uma maneira"cheia de dedos" para não dizer claramente queprecisava de um tratamento psicológico.

Ela aceitou a sugestão depois de verificar comas cunhadas e a sogra. Mas estas exigiram umapsicóloga mulher, pois achavam que ela entenderiamelhor o problema dela.

E assim foi. Na primeira consulta relatou suavida e como chegou ao que era. Contou a visão quetivera dela mesma perante o espelho e a firmedecisão de mudar sua vida, mas sem abandonar afamília e sem desatar os laços conjugais. Informousobre todas as medidas que tinha tomado e osproblemas que provocaram. Na segunda sessão, apsicóloga, experiente, já tinha uma noção exata doque era necessário. Sugeriu que antes de atacar osproblemas do corpo, deveria efetuar uma mudançaconcreta ao redor dela. Trocar de carro, trocar decasa, mudar de hábitos. Depois veriam o que fazercom o corpo e o casamento.

É claro que tudo isso exigia suporte financeirodo marido, uma vez que ela era apenas dona decasa, um outro problema não resolvido em sua vida.Ele, inexplicavelmente, concordou. Talvezdesconfiando que sua mulher soubesse de seucaso, queria evitar um escândalo, pois talcomportamento no seio familiar nunca tinhaacontecido antes. Então ela ganhou um carro novo.E achou uma casa bonita e prática para novamoradia. As coisas estavam mudando. Estava maisjovial e um pouco, mas só um pouco mesmo, maismagra. Mas alguns dos seus problemas dedesequilíbrio gastrourointestinal ainda perduravam.Principalmente aquele da bexiga. Numa dasconsultas, quando falou à psicóloga que ia mudarde casa, foi questionada se tinha comprado outros

móveis, pois o novo lar deveria ter uma decoraçãocondizente com a necessidade das mudanças.Como disse que pretendia usar os mesmos,imediatamente a profissional retrucou que daquelejeito não haveria mudança nenhuma, apenastentativa de adequar e rearrumar as mesmas coisasem outro espaço. E indicou um decorador queparecia conhecer do que as pessoas precisavampara novas empreitadas, capacidade que tinhadesenvolvido lendo revistas de psicologia.

O decorador então foi contratado, e visitando acasa onde ainda ela morava verificou que tudo erabranco, branco até demais. Com trejeitosexcessivamente alongados, informou que brancocansa, porque, contraditoriamente, relaxa demais:

- O branco demonstra falta de decisão, o queindica ausência de motivação. E por causa do quepretende para sua vida daqui para a frente, nunca,nunquinha, deverá mais usar o branco na decoração.

Ela se convenceu e aceitou a sugestão detonalidade de cor que fosse mais puxado para o"quente" como motivador da vontade de fazer algonovo. Segundo ele, essa tonalidade deveria penderpara o marrom por causa da cor da madeira queevoca a natureza. E disse isso citando Lavoisierquanto à constante mudança, de forma teatral,misturando inglês e francês, com certeza inspiradoe tentado pela plateia feminina presente, sogra,cunhadas, sobrinhas, excitadas com a presença dodecorador, profissional que ninguém da famíliatinha até então utilizado:

- Darling! Dans la nature rien ne se perd, rienne se crée, tout se transforme - com direito até abiquinho na pronúncia.

Como todas olhassem estranhamente para elesem ter entendido, completou desanimado:

- Traduzindo para as que não dominam o idiomachique: "Na natureza nada se perde, nada se cria,tuuudo se transforma", não é, meu bem?

E lá foi ela com os projetos do decorador,acompanhada da cunhada preferida e da sobrinha detreze anos - mãe e filha perfeitamente afinadas nanobre profissão de dar palpite nos problemas dosoutros - ao trabalho de compra dos móveis. Viajarampara a capital, pois as compras tinham de ser numacidade grande, numa mega loja de móveis, atividadetambém complementar das mudanças. Encontraramo que pretendiam em questão de formato etamanho, mas nada na tonalidade indicada peloespecialista em decoração psicológica.

Page 41: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

41Revista de Literatura da ADVOCEF

Quando já iam se retirando para procurar outraloja, ela viu dois enormes pufes brancos. Nãoestavam nos projetos de mudança da decoração, e odecorador com certeza teria dito que era uma coisamuito brega. Mas quando os viu lembrou de umacena num filme francês da década de sessenta, quea psicóloga havia indicado como parte da assimilaçãodas mudanças porque se referia ao período em queocorreram grandes alterações estruturais dasociedade no mundo todo a partir da França. Dofilme, que ela não entendeu nada, lembrou apenasde uma cena de sexo bastante excitante em cima deum pufe. Então, aquela lembrança, naquelemomento, mostrou que havia uma saudade a sertratada. Por conta própria, resolveu incorporar talelemento decorativo à sala, é lógico querespeitando a cor que o mestre lhe indicara.

Já se imaginava num domingo com toda afamília reunida, e após um lauto almoço à base defeijoada, caipirinha e cerveja chegar ao canto maisaconchegante da sala, jogar-se sobre o pufe edormir a tarde toda, ressonando qual uma gata,preguiçosamente. E depois que todos os parentesse retirassem, seu marido chegar suave elentamente, se aconchegar e com ela namorarcomo há anos não faziam.

A digressão sonhadora foi acompanhadainconscientemente pelo ato de se jogar sobreaquela convidativa peça de mobília. Bem, mas oresultado não acompanhou a suavidade daimaginação. Assim que aquele corpo, um tantoquanto avantajado e desproporcional, mesmo parao tamanho do móvel, atingiu o tecido que pareciacouro, estufado para dar a impressão de maioraconchego, um barulho seco ecoou: "Ploft!". E logoa seguir, o ar foi forçado a sair de pronto,provocando um barulho estranho ao escapar por um

pequeno rasgo aberto. O som estranho chamou aatenção dos passantes.

A cunhada e a sobrinha, que sabiam só darpalpites e não resolver problemas, fizeram de

conta que não a conheciam e sumiram da loja.Ela, refestelada, pela situação inesperada teve

um acesso de riso incontrolável. E quanto maistentava levantar, mais se esparramava no pufegigante. As gargalhadas ecoavam como gritos dearara num viveiro. Gargalhadas que acabaram porcontaminar a todos os que pararam para observar acena e tentar ajudá-la a levantar.

O pior veio a seguir. Aquele riso descontrolávelsoltou sua bexiga. Ainda sentada inundou o pufe. Equando conseguiu ficar em pé, enquanto o líquidomorno ainda escorria pelas pernas, verificou que apeça estava encharcada. Uma grande manchaúmida se formara no local moldado por suasnádegas. Ainda rindo, mas com menor intensidade,sentiu-se envergonhada, e olhou para umavendedora que estava ao seu lado. Não chegou aperceber nela um desejo imenso de gargalhar,lágrimas já assomando nos olhos, boca espremida,segurando-se ao máximo pela exigência doprofissionalismo e do atendimento respeitoso. Setivesse o mesmo problema urológico, com certezajá teria acompanhado as mesmas águas.

A vendedora respirou fundo, recompôs-se eperguntou:

- E aí, gostou? - essa maneira irônica de seexpressar provocou-lhe um novo acesso de riso queconseguiu transferir para um de tosse.

Mas ela não percebeu, envergonhadíssima queestava pelo ocorrido.

- Gostei! É o que eu sempre quis. Vou levar -não tinha outra saída.

Um pufe branco, solitário e estranho, no meiode móveis e sala em tons castanhos? Não dava, nãocombinava. Em seu íntimo, pediu desculpas àpsicóloga e ao decorador. Adeus, reforma!

Page 42: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

42 Revista de Literatura da ADVOCEF

Cento e cinquentaRodrigo Mello

Do estacionamento onde havia deixado o carro até a portacentral do prédio do Fórum não poderia haver muito mais que unscento e cinquenta passos, aproximadamente. A distância,contudo, não afastava o tom de procissão havido no primeiropasso na lajota fria e cinzenta de um dia assemelhado no invernodo final de julho. Os passos de Alberto lançavam-se longos elentos, claudicantes enquanto avançavam pelo terreno dodesconhecido, por uma terra de incertezas e vida nova.

Não dera nem cinco passos e os olhos buscavam a lonjura queseus pés nunca alcançariam. Habitavam, aqueles, um passado queia de remoto a quase agora. Olhou à sua volta e pensou, olhandoos funcionários que voltavam de seus almoços apressados eburocráticos, quantas vezes esse mesmo caminho fora trilhado portantas angústias como a dele e, sorrindo de meio lábio, apostouque milhares também foram as vezes em que outros em seu lugarformularam a mesma ideia, o mesmo clichê. Não sabia algo outro ase pensar, talvez da mesmíssima forma nenhum de seuspredecessores o soubesse.

Ali estava ele, Alberto, caminhando na direção de um outrosenhor austero e alinhado, com ares de indiferença constante,pacientemente olhando ao seu redor procurando algo ou alguém.Sem demora e tomado por uma alegria de sinceridade duvidosa, osenhor de terno avistou o desolado Alberto subindo a rampa.Abriu-se num sorriso largo e aproximou-se com boa velocidade ebraço esticado para um firme aperto de mãos, aquele senhorgordo como a crueldade da vida.

- Não se preocupe, Alberto, será rápido, muito rápido.As palavras não ecoaram bem. O senhor de terno não sabia, ou

anestesiara a percepção, de que mais um casamento de quinzeanos chegava ao fim num triste epílogo judicial. Não tiveram,Alberto e Miriam, embates exaltados, pratos quebrados, filhoscomplexados e nem sequer um ou outro amante que fosse sabido.Nada dessas coisas, em geral, faz parte de um divórcio bemsucedido, digno de nota de coluna social, quase merecedor deorgulho do fracasso. Aqui, entre os dois, interveio somente otédio de não se gostarem mais. O senhor gordo e alinhadoalcançou a porta de vidro e num gesto atabalhoado escancarou aentrada cruzando-a logo após Alberto. Na passagem o guarda olhouAlberto como se soubesse dele o motivo de estar ali, racionalizoupara si que todos que adentravam pelas portas certamente

Page 43: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

43Revista de Literatura da ADVOCEF

recebiam olhares como aquele, pois ninguém alifincava o pé sem que algo de errado acontecesse.

Sem nenhum interregno, sem preparações,aquecimentos, Alberto avistou Miriam logo ao sairdo elevador e lembrou-se de tantas coisas aomesmo tempo que quase esboçara umarrependimento sincero de estar ali. Miriammantinha os olhos baixos numa expressãoindiferente, a sinopse da vida a dois nos últimostempos. Depois de milhares de discussões sobremotivos que ninguém podia fazer passar porrelevantes, não mais residia ali o substrato básicodo entendimento entre duas pessoas. Fosse nadiscordância obsessiva de Alberto sobre asprioridades na reforma da casa, fosse na negativacada vez mais veemente de Miriam de debater apossibilidade de terem um filho, as situaçõesdiuturnas, e algumas noturnas, não mais sesustentavam.

Fizeram amor pela última vez há dois meses, efoi bom. Beijaram-se na boca, pela última vez, hátrês semanas, numa recaída temerosa para ambos,e foi bom. Nos instantes imediatamente seguintesaos dois bons momentos reincidiram no erro dediscutir sobre assuntos irrelevantes, utilizandofrases como "você sempre fez isso...", "é sempreassim mesmo", "eu sabia que você ia dizer...".Alberto pensou sobre esses novos encontros comgosto de passado. Miriam abriu um largo sorrisoquando o viu e trocaram um abraço breve eapertado. Entraram pela sala de audiência daquelaVara de Família e foram indicados aos seusrespectivos lugares, vez que ambos sentavam alipela primeira vez. Sem tirar os olhos um do outro,acompanharam apenas de ouvido as formalidadeslegais, meneando a cabeça, afirmativamente ounegativamente, conforme o caso se apresentasse.

Depois de brevíssimos minutos, uns cinco, e deum dossiê passando na cabeça do ex-casal, o juiz,imponente e desconhecedor absoluto dos fatosreais, declarou-os divorciados.

Quando saíram dali Alberto olhou para Miriammecanicamente como se devesse um olharcompulsório, a prática de tantos anos agoraencerrada por sentença de estranhos, pelasociedade que nem os conhece. Virou-se e, numametáfora conveniente, cada qual dos ex-casadostomou um elevador diferente, em momentosdiferentes. Mais cento e cinquenta passos e o ex-

cônjuge, atual divorciado, carregando seu gostoamargo recém conquistado entre os lábios, tomouas chaves do carro dirigindo-se à sua, isso mesmo, àsua casa, buscando seu uísque para talvez sorvê-loem excesso sem as preocupações maritaiscostumeiras. Nem mesmo isso devia a alguém, etudo decidido por despacho.

O epílogo zunia apropriado, exatamente comoos cubos de gelo tilintando nas bordas do sextocopo já pela metade. Seu quarto não tinha maisporta-retratos, só as lembranças penduradas porum fio em sua cabeça zonza. O telefone rasgou osilêncio, chacoalhando Alberto com um susto.Primeiro recusou-se a mexer um músculo paramover-se de seu mau-humor plenamentejustificável, depois deixou-se escorregarhesitosamente pela poltrona que Miriam odiava e,decorrido o quinto toque, lançou suas forças até ocriado-mudo. Catou o aparelho desdenhosamentecom o rosto contorcido de desprazer. Ouviu seucolega Carlos abrandar-lhe o espírito e convidá-lopara fazer coisas de solteiro, coisas que Albertonão conhecia muito bem. Mal baixou o telefone nogancho e um novo soar despertou veemente.Surpreendeu-se ao ouvir Miriam do outro lado.Ligara para ver se tudo ia bem nas horas póstumasdo casamento.

Miriam disse uma ou duas besteiras, insistiunuma obscenidade inesperada e disse que iria atéele. Ele protestou sem convicção e ela lançou a voznum timbre conhecido, concupiscente. Sem dizermais, ele apenas disse que estaria na portaria doedifício em vinte minutos, esperando-a para visitaro motel de sempre para comemorar as novas coisascom o mesmo velho sabor.

Page 44: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

44 Revista de Literatura da ADVOCEF

Em carnaval também se amaAndré Falcão de Melo

Pense numa menina linda! Era um pitéu, umfilé, uma gata, uma coisa, uma... sei lá, a mulherera demais, me'irmão! Falando sério. Sem exagero.A rainha daquela empresa em Maceió. E acircunscrição do seu reinado é porque era aquinascida e aqui trabalhava. Mas disputaria essetítulo nobiliárquico natural em qualquer lugar destePaís, quiçá do mundo. Ôxe, poderia dizer, até, douniverso! Duvido alienígena mais bonita.Descomedimento, não! Juro! Mas me vou abster dedescrevê-la. Cada um de vocês - caro leitor ouleitora que se esteja prestando a ler o que narro -que imagine alguém que pudesse provocar esseestupor de admiração estética que acabo dealardear. Certamente, não estarão longe dodesenho harmônico que a compreendia.

Mas, como nem tudo é perfeito... era chata. E,aí, vou fazer o mesmo apelo dantes: pense numamenina chatinha! Metida, a figura. Há quementenda sua beleza justifique assim fosse. Mas nãopara Sandoval. Sei, sei que o nome do cabra, porsua vez, é meio feinho, mas o sujeito era tidocomo bonitão. Não se engane. Quem vê cara nãovê coração. Ou, adaptando o dito popular àscircunstâncias: quem só vê o nome não vê o dono.Não era, porém, em matéria de beleza, uma versãomasculina de Soninha (assim a chamavam). E, seera, o defeito é meu, que não sou especialistanessa ciência.

A vida da bela (e presunçosa) jovem eracomum. Ingressara, há pouco mais de dois anos,por concurso, naquela empresa pública. Formadaem Direito, nunca exerceu. Graduou-se porquequeria um título e desejava (talvez nem desejemais) passar num concurso público ligado à áreajurídica. Nada diferente dos anseios de grandeparte da população juvenil do País. Porém, se nãodespertava admiração por sua essência, tambémnão era execrada por possuir defeitos relevantes.

Salvo a prepotência, notoriamente decorrente daconsciência de sua beleza e, naturalmente, do mauuso dessa percepção. Em suma: uma jovem normal,não afeita a maldades. Mas era metida. Que era,era.

Ele, como querido por muitos, naturalmente sevia invejado por outros tantos. Afinal, além da boaaparência era inteligente, carismático e trazia (eobservava) bons princípios éticos. Mas eramachista. Não no sentido daquele que quer levarvantagem e explorar as mulheres. Masculino, querodizer. Macho. Exatamente o contrário de femininoou de fêmea. Deu pra entender? Não? Hummm...Deixa ver... Pronto. Ter algo com uma mulher queacabou de beijar vários homens numa balada, porexemplo, não era com ele. Nem pra beijar queria:além do medo de pegar "sapinho", tinha nojo.Sentiria como se estivesse beijando a boca deoutro homem. Por tabela. Percebeu? Outros,decerto machos também (e vou afirmar ocontrário?), não fariam essa reflexão. Até achariamo máximo compor com as demais bocas que naquelajá pousaram. "Beijei vinte", "beijei dez", e por aíafora. Mas ele, não. Tá certo, caro leitor ou leitoraadepto da beijação. Entendo sua revolta. Mas eleassim sentia e pensava, ora! Fazer o quê? O caratinha direito, né não? Não se indisponham com ele.Era boa pessoa. Afirmo.

Agora, deixemos como está e fiquemos poraqui. Acho que a descrição feita, dum e doutro,embora silente em detalhes físicos, é suficientepara vocês terem uma ideia razoável de nossosheróis.

De qualquer sorte, fosse como fosse a antipatiasonsa da Soninha, o fato é que Sandoval se tinhacom ela impressionado e mantido o interesse poraquela miragem, mesmo após vir a saber da sua,digamos, não virtude. Também, não é pra menos.Vou nem dizer o porquê, pra não ser repetitivo. Tá,

Page 45: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

45Revista de Literatura da ADVOCEF

eu digo. Tava linda demais, a moça. E, pracompletar, aquelas músicas de carnaval das antigas(frevos e marchinhas) - que o remetiam aoscarnavais de clube de sua adolescência, quandovinha do interior passar o reinado de Momo naCapital, hospedando-se na casa de parentes -davam um tom nostálgico e levemente românticoàquela concorrida noite carnavalesca da cidade. E oimpregnavam. Ela, embora somente houvesseparticipado dos chamados carnavais de clube, comsuas orquestras de frevo e bandas, ainda criança,sentia um imenso prazer em participar daquelesfestejos, tão distantes dos axés da atualidade. Oquadro, assim, estava a desenhar-se: uma lindamulher, um clima de saudade e romantismo, umavontade, desconhecida embora, de conhecer oamor. De ambos. Claro, eu disse que ela era metida,não que não pudesse se apaixonar.

Assim que chegara, a viu. Foi, talvez, o que sediz ser amor à primeira vista. Ela o notou, também.Mas rapidamente. De soslaio. Tão de leve queSandoval não conseguiu sequer ter uma ideiasegura disto. Mas o viu, sim. Asseguro. Tratou logode perguntar quem era aquela beldade.Esclareceram-lhe e a sua fama de menina metida.Tentaram dissuadi-lo. Alguns por amizade, outrospor inveja. Medo de que Sandoval conseguisse oque tantos apenas sonhavam ter.

A verdade, todavia - e sinto-me obrigado aesclarecer o(a) leitor(a) amigo(a) -, é que Sandovalnão causara em Soninha a mesma sensação. E sesim, ela não deixara antever nem pra mim, que lhesconto esta história e deveria sabê-lo, na qualidadede narrador onisciente e onipresente. De qualquermaneira, quando eu chegar ao fim do conto aminha ignorância não terá o menor relevo.

Também não posso deixar de narrar queSandoval, além de orgulhoso (aquela história docabra macho, lembram?), apresentava muita cautelapara abordar uma mulher por quem se encontrasseseriamente interessado. Era, nesse tema, umtímido. E a timidez - dizia para si mesmo -, se oprivava de alguns voos, ao menos o protegia deoutras tantas quedas. Mas, não se engane, o receionão chegava a abortar suas pretensões. Tinhamedo. De um fora, de ser humilhado. Mas não aponto de paralisá-lo.

Assim, à míngua de amigos comuns que osapresentassem, um ao outro, avaliou que a melhorabordagem seria chamá-la para dançar. Quando? Aísão mais quinhentos. Sabedor, já, de sua fama, ecomo continuasse em seu pedestal, resolveu nãolhe dar a mínima. Apenas fazer-se visto por ela.Finalmente, percebeu que ela o vira. E o olhara. Derelance, é verdade. Mas o fez algumas vezes,quando imaginava que ele não fosse perceber.Estava, assim, se dando por satisfeito. Até então.

Os minutos - ou eram as horas? -, entretanto, sepassavam. Nem ele ia dançar, nem ela. Ao revés,flagrara Soninha virando o rosto para umpretendente que se havia aventurado a convidá-laa dançar. E o fez com absoluto desdém. Desprezo,mesmo. Aquilo ferira Sandoval por dentro. Não quenão houvesse gostado de ela não ter ido dançarcom o sujeito. Mas detestava humilhação. Deresto, o sentimento de solidariedade à vítima vierajuntar-se à antipatia, que também já começara anutrir, e ao inicial enlevamento, que, de qualquersorte, ainda perdurava. Tudo num aparenteparadoxo. Vai se entender o amor, né leitor(a)?

O fato é que, ao tempo em que se viaencantado pela moçoila, também percebeu

Page 46: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

46 Revista de Literatura da ADVOCEF

dedicar-lhe certa raiva. Àquela menina, pudesse -pensava -, aplicava-lhe uma lição. Gostaria de lhedizer que ela não era melhor do que ninguém,apenas porque bonita, que ela tinha que respeitaras pessoas, tratá-las com educação, essas coisas.Totalmente apaixonado! Para tanta ira contida, sómesmo tomado pela paixão.

Tomou o último gole de cerveja. Indagava a simesmo se chegara o momento de chamá-la paradançar. Ela ou qualquer outra que aparecesse nocaminho, já que considerava a hipótese de levarum fora daquela pretensiosa, apesar dos olharesagora mais amiúde trocados. Resolveu acender umcigarro. Chegou a tomá-lo em sua mão, pô-lo entreos dedos, mas quando ia acendê-lo, isqueiro aindano bolso, a orquestra começou a tocar sua músicapreferida. Não podia esperar mais. Inclusive, jáestava ficando tarde. Ou cedo, considerando-seser, já, adiantada madrugada. Partiu, resoluto.Medo arrefecido pelo incentivo dos olhares furtivoscorrespondidos, e pelas cervejas que ingeriu.

Soninha estava recostada em uma pilastra, oraobservando o movimento do salão, ora conversandoamenidades com alguma colega. Parecia distante,em sua realeza. Foi quando percebeu a vinda deSandoval em sua direção. Seu coração começou abater forte. Não disse que ela já se haviaenamorado também? A distância entre ambos foiencurtando, e ela se aperreando. Quando eleestava já se aproximando e, abrindo-lhe um sorriso,parecia vir convidá-la a dançar - para o quê mais iriaaté ali, àquela altura, se não para isso? -, Soninha,antes mesmo que ele balbuciasse qualquer palavra,antecipou-se-lhe e dirigiu-lhe um gestocontundente de que não queria dançar, acenandoem sua direção, negativamente, ao tempo em quedeixava transparecer em sua face um misto deexpressão de enfado e intolerância.

Sandoval não podia acreditar. Pudesse voltar, ofaria. Mas já estava quase esbarrando na garotaquando recebeu o soco. Sim, leitor, desculpe-me,mas foi como um murro. Nessa hora, até eu, quenada faço a não ser lhe contar essa história,solidarizo-me na sua humilhação. O que poderiafazer? Aceitar a negativa, que mais parecia umareprimenda pelo desaforo de ter tido a ousadia delhe dirigir a palavra que, aliás, sequer foi dita? Foientão que lhe veio a luz.

- Como? Desculpe, mas vim perguntar se vocêtinha fogo para acender o meu cigarro - disse,mostrando-lhe o cigarro apagado entre os dedos.Soninha sentiu as pernas fraquejarem, a faceenrubescer. A expressão de cansaço e desdém, quehavia um segundo ostentava, transmudara-se numsorriso amarelo. Não sabia o que dizer. Balbuciouum pedido de desculpas.

- Pensei que você vinha me chamar para dançar.Não sei dançar essas músicas... - concluiu, com umsorriso amarelo, visivelmente transtornada. Nadapassou desapercebido por Sandoval, que a estaaltura sentiu voltar o chão aos seus pés e o domínioda situação.

- Bom, então, já que fósforo vejo que você nãotem, nada impede que dancemos, ora! Vamos lá? Eutambém não sei. Aprenderemos um com o outro -disse-lhe Sandoval, expressando a maior simpatiaque pôde, com um largo sorriso nos lábios. Soninha,completamente desnorteada, sem forças pararesistir, e tentando remediar o vexame por elaprópria açodadamente causado, aceitou o convite.

Todos olhavam perplexos. Os verdadeirosamigos, torcendo por um e outro, cheios deadmiração. Os nem tanto, babando de inveja. Aliás,a bisbilhotice foi tanta que, num piscar de olhos, osalão ficou repleto de curiosos amigos comuns, a

Page 47: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

47Revista de Literatura da ADVOCEF

dançar ao redor do casal, de modo a não perder umsó detalhe.

Sandoval não se deu por satisfeito. Lembram-seque sentira um certo desejo de vingar seus pares,horas atrás? Agora, sentia com ainda mais fervor avontade de lhe dar uma lição, que pusesse abaixoaquele nariz empinado de uma vez por todas.Deixou passar algum tempo - algo parecido com ametade da música, já que não podia se arriscar aser convidado a sair do salão por Soninha, tão logofindasse a que estavam dançando -, afastou umpouco mais o seu corpo do dela e,escancaradamente, enfiou a mão no bolso dacamisa, de lá tirando seu isqueiro. Acendeu ocigarro, com ele, na frente dela. Tragou. Tudo sob oseu olhar atônito. Ele sorriu, enquanto soltava afumaça para o lado. Soninha, que há temposprocurava o chão ilusório de rainha em queacostumada a pisar, sentiu-se literalmenteplanando. Tentando um sorriso, agora já amarelopálido, disse-lhe, em tom de brincadeira:

- Cachorro - ao que ele lhe respondeu, sempresorrindo:

- Tô cansado. Pensando bem, quero dançar maisnão. Vamos sair?

- Está bem - disse-lhe. E saíram, cada qual parao seu lado, sob o olhar estupefato dos presentes.

(..........)- Menina, a noiva está linda, deslumbrante

mesmo!- E que simpatia! Que

sorriso! Vou querer umvestido assim no meu.

- Quanta felicidade dessesdois... hummm...

- Ai, ai, que inveja...!- É o casal mais bonito da

cidade, sem sombra de dúvida.- Olha o guardanapo da

recepção! Que mimo: S & S.- Soninha e Sandoval.

Page 48: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

48 Revista de Literatura da ADVOCEF

Domingo no clubeArcinélio Caldas

Numa dessas tardes fagueiras de verão, aoretornar do Farol de São Tomé, ao encontro do pôrdo sol no bairro de Donana, portal campista daBaixada da Égua, durante uma parada para beberágua, tomar um café e visitar o amigo Renato daFarmácia, tricolor inveterado, encontrei-me com oDr. Patrick, médico obstetra de mão cheia, sujeitoinfluente, muito engraçado ao falar e dotado dopoder de ocupar espaços em reuniões sociais comsuas tiradas repentistas, frutos de sua invejávelpresença de espírito.

No momento daquele encontro casual, estavaele acompanhado do capataz de uma das fazendasdo Dr. Guilherme Miranda a falar sobre as últimasenchentes na região, onde ocorreram situaçõesinusitadas, envolvendo pessoas, suas casas,lavouras e animais.

Fez festa ao me ver e, imediatamente,introduziu-me na conversa que já ia adiantadasobre canaviais submersos e máquinas agrícolasarrastadas pela correnteza, asseverando:

- Imagine você que esse sujeito trabalhou o anotodo na lavoura e, na hora da colheita, perde para achuva os frutos que lhe dariam o rendimentonecessário à manutenção da pequena fazenda e aopreparo do futuro.

- É assim mesmo, não dá para reclamar, pois aágua, mesmo em abundância, é uma dádiva deDeus - interveio, por sua vez, o capataz.

Justifiquei minha pressa em chegar logo àcidade e convidei-o para passar o domingo no Clubedo Almirante, onde poderíamos colocar em dia osassuntos e rever os amigos de longa data que, comcerteza, lá estariam. Despedimo-nos, havendo eleafirmado que aceitava o convite e que no domingoestaria presente.

No domingo combinado, por volta das onzehoras da manhã, aparece nas hostes do C. R.Saldanha da Gama o Dr. Albertino, rábula precioso,contando a meia idade, muito habilidoso no trato

com o público em geral, pois abusava da arte defalar e influenciar pessoas.

Logo que me viu, veio alegre ao meu encontro,coincidentemente no momento em que tambémchegava para os cumprimentos e efusivos abraços oDr. Patrick, o qual estava acompanhado de esposa efilhos. Apresentei-os, mas senti que já seconheciam de algum lugar, pois percebi umaausência de empatia entre os dois.

O Dr. Patrick logo desviou o olhar e comentouque alguns conhecidos seus já estavam no bar dabocha:

- Vejam lá o Nielsen, o Chico Preto. Chico temestado recluso na Bahia, em Barra de Caravelas, masvem a Campos ver os filhos universitários, Joyce eRolam.

Dispersaram-se, indo as crianças, dois meninos(um de doze, outro de dez anos), para o campo defutebol; a esposa, para a borda da piscina tomarsol; e o Dr. Patrick, muito branco, de um coloridoimpróprio para o solarium, procurou a sombra, nobar da quadra de bocha, onde passou a dissertar,entre um copo de cerveja e outro, sobre medos efobias.

Já estava constituído o fã-clube do Dr. Patrick.Todos mantinham os olhos vidrados no envolventecontador de estórias que, vez ou outra, fazia-osgargalhar a ponto de chamar a atenção dos diversosouvintes das narrativas sobre futebol do Dr.Albertino, que se encontrava na mesa ao lado, nasegunda pista de bocha. Na ocasião, cercado porum sem-número de associados, o advogadomanifestava sua opinião sobre o desempenho dostricolores no atual campeonato brasileiro.

- Vejam vocês que os três principais clubestricolores do Brasil, São Paulo, Fluminense eGrêmio, não têm mantido um bom desempenho, àaltura de suas estórias, glórias e grandeza. OFluminense está novamente a bater nas portas dorebaixamento, o São Paulo e o Grêmio lutando para

Page 49: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

49Revista de Literatura da ADVOCEF

ficar no G4, apresentam uma campanha pífia, cheiade altos e baixos, denotando a existência deproblemas de gestão.

Neste momento notei que o Dr. Albertinosentiu-se incomodado com as efusivas citações doDr. Patrick e, nesse antagonismo e disputa pelocontrole da plateia ouvinte, encerrou o assuntosobre os embates futebolísticos da semana e bebeuum copo de cerveja estupidamente gelada pararefrescar a garganta e lavar a alma, como se fosseuma inefável massagem no ego ferido pelaprosopopeia dissertada pelo Dr. Patrick na mesa aolado.

E não teve outra chance o Dr. Albertino, a nãoser como fizeram os outros, igualmente ouvir o queexplanava entusiasticamente o médico falante.Surpreendeu-se o notável advogado Albertino coma propriedade das colocações que fazia o Dr. Patricksobre superação da dor. Tal eloquência causou-lhe,dava para notar, uma ponta de ciúme, haja vista aatenção que dispensavam os interlocutores aoassunto palpitante que veio à baila. Dizia na roda odetentor da palavra:

- A dor é tão ruim, que causa o medo e gera achamada algofobia, porta de entrada da psicopatia,capaz de se tornar uma doença crônica, muitasvezes insuperável e causadora de transtornos edepressões que interferem no sistema imunológicodo indivíduo.

Nesse momento, o Dr. Albertino, que não seaguentava mudo, faz uma intervençãologomáquica, atravessa a prosa em curso e diz,aparentemente assumindo o controle da situação:

- Nunca padeci desse mal, mas sempre fuipropenso a sortilégios e maus agouros. Não podiaver, por exemplo, uma coruja no mato, que mepreocupava com os azares da vida. Se um gatopreto atravessasse a minha frente, era o bastantepara não viajar mais naquele dia e no outrotambém; se pisasse em corda então, ou passassedebaixo de escada, ficava uma semana preocupadocom os prejuízos que daí podiam advir.

A conversa prosseguiu e, de um polo a outro,diversos participantes citaram experiênciasdesconfortáveis em situações anacrônicas, como airritação da mão suja de graxa; banho em chuveirode que sai pouca água; uso de sunga sem elásticopara prender à cintura; barba por escanhoar com

barbeador cego; mergulho em piscina com poucaágua, dentre outras tantas situações irritantes.

Dr. Patrick, vendo escapulir o controle da parolapor ele iniciada e não aceitando as rabulices do Dr.Albertino, asseverou enfaticamente:

- Eu não como nada que voa e nem quemergulha!

Isso aparentemente lhe devolveria a rédea doparlatório, não fosse alguém perguntar, em tomdesafiador:

- Por que você não come nada que voa e nemque mergulha?

Em resposta, tentando retomar a dianteira dogrupo de ouvintes, diz o médico:

- Não como nada que voa e nem que mergulhaporque só como carne de vaca, carneira, cabrita ecoelha.

A resposta atravessada do Dr. Patrick foibastante para aguçar a mente do Dr. Albertino que,num arroubo de vingança por lhe haver sidoarrebatada a cena principal da conversação naqueledomingo, saiu-se com esta:

- Está bem, Dr. Patrick, o senhor não come nadaque voa, nem que mergulha. Respeito suaspreferências gastronômicas, mas suponho que a suailustríssima esposa sabe nadar, não é mesmo?

Entre risos dispersaram-se os ouvintes queesboçavam os mais variados comentários.Encerrou-se nesse clima de festa o inebrianteconfronto verbal. Ao menos até o próximodomingo no clube.

Page 50: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

50 Revista de Literatura da ADVOCEF

A portaSatiro Lazaro da Cunha

Era sábado, fazia calor, e várias pessoasencontravam-se reunidas na calçada doMercadinho Amazonas, misto de bar e mercearia,localizado na comercial da 407 Norte em Brasília.Uns bebiam cerveja geladinha, outros preferiamuísque, e tinha aqueles que gostavam mesmo erade uma boa cachaça. Turma bastante heterogêneaaquela, vista a questão do ponto de vista social:ali conviviam pacificamente cidadãos das maisvariadas classes e profissões, como médicos,bancários, advogados, funcionários públicos,trabalhadores da construção civil, porteiros deblocos residenciais, comerciantes, jornalistas eassim por diante.

Mas naquele local eram todos iguais.Ninguém jamais se jactava de sua posição socialou evitava compartilhar a presença dos maishumildes e desfavorecidos pela sorte.

Aliás, essa parece ser uma característicamarcante de Brasília. Ali não se observa a odiosasegregação de classes, pelo menosostensivamente, como sói acontecer em outrascidades brasileiras, onde ricos e pobres não semisturam jamais.

O papo rolava solto, quando alguém deu oalarme: estava acontecendo uma briga feia entre osíndico do Bloco I da SQN 407 e alguns moradores,e parece que o Silvino Fumaça estava envolvido. Anotícia gerou apreensão. Afinal de contas, o Silvinoda Silveira, este o seu nome, era indiscutivelmenteuma das pessoas mais benquistas pelo grupo. Oapelido foi colocado diante de um acontecimentoinusitado: certa vez fumou literalmente metadedas cédulas de seu salário mensal recebido navéspera. Tudo começou quando o garçom dorestaurante onde fora com uns amigos manifestoudesconfiança sobre sua capacidade de pagar aconta. Não deu outra: pediu o isqueiro ao garçom,pegou uma cédula, a de maior valor, e a foiqueimando mediante grandes baforadas. Repetiu ogesto muitas vezes, queimando várias cédulas, e

Page 51: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

51Revista de Literatura da ADVOCEF

quando os amigos perceberam que o salário iria todoembora, convenceram-no a não continuar com abrincadeira, para alívio do garçom que, nesta altura,já imaginava a possibilidade de vir a ser processado econdenado a indenizar o cliente, principalmentequando ele se apresentava como advogado velhaco eespertíssimo.

Mas volvendo ao nosso sábado, chegou outranotícia: alguém avisou que Silvino vinha trazendonas costas uma porta que acabara de retirar de seuapartamento. Sim, mandara tirá-la, para que osíndico bisbilhoteiro com quem brigara há poucotivesse mais liberdade para fiscalizar a vida alheia,explicou mais tarde.

E uma cena incomum aconteceu: surgiu naesquina a esguia silhueta do Silvino arrastando nascostas a pesada porta, lembrando o ator LeonardoVilar carregando a cruz em cena do filme "OPagador de Promessas".

E firme no mister de bem cumprir a decisãotomada, dirigindo-se ao dono do estabelecimentocomercial, bradou:

- Sr. Mahmoud! Este cidadão mineiro dirige-se aesse gigante para pedir um grande favor. Quero,desde agora, nomeá-lo fiel depositário desta portaque mandei tirar do meu então inviolável lar, queagora deverá ser devassado para atender àcompulsiva obsessão em futricar a vida alheiadaquele síndico cabotino que só veio ao mundopara atuar sob os auspícios de Satanás.

Mahmoud, comerciante libanês radicado nacidade há vários anos, mesmo sem entender bem osignificado de fiel depositário, mas compreendendoque o pedido era para guardar a porta no subsolode seu estabelecimento, aquiesceu.

Acomodada a porta e satisfeito por conseguirseu intento, Silvino, dirigindo-se à curiosa plateia,disse com voz pausada e solene:

- Meus amigos, de toda essa vil peçonha reergo-me sobranceiro - naturalmente aludia ao síndico. Ecom expressão grave arrematou:

- O grande mineiro Carlos Drummond deAndrade, referindo-se ao escritor francês FrançoisMauriac, disse: "não tem ele muitas portas, nemsua porta muitos segredos". Devo afiançá-los deque o mesmo ocorre comigo.

E após pronunciar esta enigmática frase retirou-se do local lentamente. A plateia quedou silente

até que o Jaimes Abrahão, depois de sorver umgole de uísque on the rocks, disse muito sério:

- Não estou entendendo mais nada!Só depois de alguns meses e acatando as

inúmeras súplicas da esposa foi que Silvino,resoluto, buscou novamente a porta, reinstalando-a na sua moradia, e, diga-se de passagem, pararefrigério da alma do estressado síndico, que desdeo acontecimento ficara bastante preocupado com ofato de o vizinho ter passado a viver de modo umtanto vulnerável, correndo o risco de se tornarvítima de furtos, diante da teimosia empermanecer sem a porta de entrada, com oapartamento permanentemente aberto.

Mas a história não para por aqui. Se, de umlado, Silvino chegara a tirar a porta, diante dasanha do síndico bisbilhoteiro, por outro lado tinhasede de vingança e arvorou-se também no direitode investigar a vida pregressa do outro.

Neste sentido, aliou-se ao porteiro do blocoresidencial, o Francisco, que, a seu turno, tambémnão nutria nenhuma simpatia pelo síndico, que,aliás, recentemente, demonstrando seu notóriopedantismo, havia determinado de maneiracontundente a todos os serviçais do bloco que ochamassem de doutor. Doutor Ambrósio. Quem ochamasse simplesmente de senhor Ambrósio erarepreendido veementemente. Por orientação doSilvino, Francisco, o porteiro, com seu jeitinhosonso e matreiro, indagou ao síndico em qualprofissão ele havia recebido o título de doutor.

- Sou formado em Direito pela UnB com cursode doutorado. Sou doutor advogado - respondeu osíndico circunspecto.

Dias depois, Francisco confidenciou ao Silvinoo que descobrira sobre a mulher do síndico.Atraente, bem mais jovem do que o síndicosexagenário, sua mulher contava cerca de 30 anose parece que era useira e vezeira em "pular acerca".

Silvino passou a exercer atividades detetivescas,juntamente com o auxílio de Francisco, e seguindo-acerto dia viu quando deixou o carro numestacionamento comercial e ali embarcouimediatamente em outro veículo que estava à suaespera. No volante do carro um garotão, querapidamente rumou para a saída norte em direção àcidade satélite de Sobradinho e em lá chegando

Page 52: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

52 Revista de Literatura da ADVOCEF

dirigiram-se a um motel, onde permaneceram porvolta de duas horas, tendo, ao depois, regressadopelo mesmo caminho, sendo que a moça pegou seucarro e, toda lépida e esbaforida, dirigiu-senovamente para a sua quadra residencial.

Tudo visto e registrado pelo Silvino, que osseguira sorrateiramente. Este síndico metido adoutor vai pagar caro por se meter comigo, pensavaSilvino, que já arquitetara seu plano. Doravante,iria provocar sem trégua aquele presunçoso eafetado síndico, executando debaixo de sua janelauma música cuja letra insinuava, de modo jocoso, oque fazer com mulher namoradeira. E a partir deentão, o síndico teve de tolerar, por semanas a fio,a música gravada pela dupla Tião Carreiro ePardinho, tocada debaixo do bloco de modoestridente, nestes termos:

Quem tem mulher que namoraQuem tem burro empacadorQuem tem a roça do matoMe chama que jeito eu douEu tiro a roça do matoSua lavoura melhoraE o burro empacadorEu corto ele na esporaE a mulher namoradeiraEu passo o coro e mando embora.

Nem precisa dizer que o síndico ficou com apulga atrás da orelha. Com que propósito aquelemorador meio doido do primeiro andar tocavaaquela música amiúde? Estava lhe mandando algumrecado? Cismava o síndico, agora meio cabisbaixo,pois já notara que alguns moradores lhe dirigiamolhares cheios de cinismo.

E Silvino, não satisfeito pelo que já tinha feitoe implacável na raiva hidrófoba que adquirira pelosíndico, foi verificar se ele se encontravaregularmente inscrito na OAB local.

Veja só, advogado o homem não é, exclamouSilvino ao constatar que não havia qualquer registrode inscrição na Ordem. Talvez fosse apenas ummero bacharel em Direito, mesmo assim duvidava.Certa vez ouvira do próprio síndico que ele haviafeito seu curso na UnB (Universidade Federal deBrasília). Lembrou-se então de pedir ajuda ao Pará,alto funcionário da universidade, que tinha acesso

a diversos arquivos, inclusive históricos escolaresde ex-alunos.

E foi com a valiosa ajuda do Pará que descobriutoda a verdade. Na época da ditadura, era comum osórgãos de segurança e repressão do governo militarinfiltrarem espiões nas universidades para ajudar nasinvestigações comandadas pelo então SNI (ServiçoNacional de Informações). Secretamente, erammatriculados como alunos, estudavam regularmenteem diversos cursos e nem sequer os professoressabiam. Tinham seus nomes incluídos na lista dosvestibulares como se aprovados fossem.

Era exatamente o caso do nosso síndico. Teveseu nome incluído na lista dos aprovados novestibular realizado pela UnB em 1968. Só que eratão fraco que não logrou aprovação na maioria dasmatérias, e dois anos depois a universidade teveque jubilar aquele estudante que havia sidoadmitido no curso de Direito de paraquedas, comose dizia à época.

Diante de tal constatação, Silvino, cheio deregozijo, mas agora já sentindo remorso pelo queainda pretendia fazer, conjurava. Já não erasuficiente o que tinha feito? Merecia o síndicopassar por mais um vexame junto aos moradores?

Pois bem, merecia sim! Era por demaisconsabido que o mesmo adotara a rotina,comodista e preguiçosa, tendo por si a forçapoderosa da inércia; ali campeavam soltos opreconceito, orgulhoso e pedantesco; amaledicência perversa, atrevida e covarde; afrivolidade pretensiosa e a má-fé pérfida eimpudente. O assédio ao quixotesco síndico deviacontinuar para fincar barreiras às arbitrariedadesaté então perpetradas por ele.

Mandou escrever numa faixa de tecido brancocom letras garrafais uma frase e, aproveitando queo síndico em um final de semana tinha viajado paraPirenópolis, cidade turística próxima do DistritoFederal, no dia seguinte, bem cedo, para não servisto, com a ajuda de Francisco, prendeu a faixa nasacada principal do prédio em local bem visível.

A faixa permaneceu naquele local todo o finalde semana para surpresa de alguns moradores epara gáudio de outros, que também detestavam osíndico. Este retornou à residência no domingo àtarde e a primeira coisa que percebeu foi a faixa,com os seguintes dizeres:

Page 53: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

53Revista de Literatura da ADVOCEF

NESTE BLOCO MORA UM CORNO, MAS NÃO TEMNENHUM DOUTOR ADVOGADO!

Humilhado pelo que considerava mais umaassacadilha contra si, o síndico, naquele instante,resolveu que deveria mudar de residência.Necessitava se resguardar das injúrias e abjeçõesque lhe imputava aquele atrevido morador.

Dias após o acontecido, mais um sábadotranscorria lentamente, a turma toda reunida nacalçada do Mercadinho Amazonas, a tarde jámorrendo, e, de repente, foguetes espocaram emfrente ao Bloco I, despertando a curiosidade detodos. Até que alguém esclareceu: um caminhão demudanças ia deixando a quadra lentamente com omobiliário e demais utensílios do síndico. E osfogos de artifício eram por conta da comemoraçãopromovida pelo Silvino e alguns moradores.

Diante do fato, um amigo de Silvino exclamou:- Eta, mineirim bom de briga esse meu amigo

Silvino! É do tipo que dá um boi pra não entrarnuma briga, mas quando entra, dá uma boiada pranão sair.

Page 54: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

Revista de Literatura da ADVOCEF54 Revista de Literatura da ADVOCEF

A mulherAntônio Dilson Pereira

Como se deve pensar a mulher?Pergunta difícil de responder, não é?Pode-se pensá-la de forma abstrata,esquecendo-se algum atributo que a retrata.Não é fácil, como esquecer suas formas, ancas e peitos?Não tem jeito.E sua sensibilidade, seus sentimentos, sua intuição?Não é possível ignorar, isso vem do coração.Volto à estaca zero.Não é o que quero.Impotente, reconheço, não tenho muita saída.É melhor pensar a mulher como pensa o poeta,para quem se trata de um ser perfeito.Merecedor de todas as atenções, admiração e respeito.Pensar nela de outro jeito é vê-la em seu composto,obrigando a destacar suas partes, como seu rosto.Imaginar a mulher em seu todo é identificar:sentimentos, sensibilidade, compreensão, intuição,talentos, pernas, peitos, braços, bunda e coração.Alguns exaltam os sentimentos, a sensibilidade e a intuição,estes atributos, sem dúvida, são-lhe inerentes, vêm do coração.Outros veem a beleza física: rosto, colo, pernas, peitos e bunda,esta parte, nesta perspectiva, às vezes, abunda.É difícil falar de mulher quando ela nem sempre o é.Tem-se avós, mães, irmãs e filhas, em quem só vemoscompreensão,fruto da grandeza do amor e do coração.Logo, mulheres não são.Pernas, colo, peitos e bunda, nestes casos, não contam.Outros são os atributos que despontam.Sentimentos, sensibilidade, amor e intuição,tudo é compreensão.Têm-se, ainda, as sogras que não são assim constituídas,são elas seres esquisitos, desses atributos desprovidas.Daí porque se devem colocar avós, mães, irmãs e filhasem outro patamar, em outra perspectiva.As sogras, por suas esquisitices, é melhor esquecer.Caso contrário, vai-se aborrecer.Conclusão: bom mesmo é ver a mulher como um ser perfeito.Concordar com o poeta, não tem outro jeito.

Page 55: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

CartãoRodrigo Mello

Toma estas flores como arautos do meu amor.

Qual a ocasião?Ora!

Porque hoje é hoje,Porque amanhã é um plano

E nesse nosso mundo insanoHá pouco tempo para o agora.

Qual a ocasião?Porque um homem sonha,

Uma mulher chora,Alguém canta,

Alguém inspira o poeta,Porque teus olhos são encanto

Ou um casal se beija,E respira em conjunto a manhã mais certa.

E há dia para o espantoE tempo para o esperanto.

Por que haveria de ser outra coisa?Porque hoje é hoje,

Porque hoje só pode ser isso,Passadiço entre ontem e o porvir

Como cortiço de almas e esperanças.

Mas muito mais principalmente,Pelo fato mais veemente de todos:

Porque hoje não é mais ontem,E amanhã não tarda a virar anteontem.

Gosto femininoRobério César Camilo dos Santos

As mulheres, meu Deus!Lindíssimas são as mulheres.Não deve ser só maquiageme aqueles decotes que as deixam lindas.

Não devem ser só os cabelos, os adereçosque elas usam ao corpo que tanto as elevam(brincos, plataformas, pulseiras, anéis...),que tanto fascinam e nos deixam loucos.

Há algo mais belo que a abissal moldura,que o belo cruzar e descruzar das pernas.Há um jeito inequívoco cheio de graçae pirraça que desanda os olhos e anima o sexoquando de um lado ao outro as nádegas balançam.

É um olhar que encanta, desestabiliza,é uma boca ardente, são os olhos fáceis,o jeito de pisar, a forma de ir e vir, e de ficar,mesmo a maneira de andar, de tropeçar, e de cair;elas primeiro se desequilibram; e se caem,quando caem, não se levantam, se armam.

É uma bolsa ao ombro e um charme ao corpo que tudoconstade incompreensível, de comunicável, de inconfundível.Uma plataforma ao pé, um mexer peculiar nos cabelosque é charme, que é viço ou simplesmente desprezo.

Como são lindas as mulheres, sobretudo as moças,as tímidas, as frágeis, as vaidosas, de tal forma assenhorascom um andar de madame e aquele olhar de menina,sempre prontas para o amor; cansadas, se de coraçãovazio,passeiam acesas quando acalentadas, ou se a solidãotermina.

É uma calma quando falam, uma harmonia quandoandam,que mesmo com pressa, não correm, desfilam,que mesmo tão lentas, encantam e suavizam a vida.

E por sobre os olhos de quem as vê passarfica a bela silhueta tão cheia de graça e desenvoltura,(ou só o gosto feminino repleto de charme, encanto,doçura)que nos quebra a face de dureza e nos mostra umpouco de ternura.

Nuvenzinha(My little cloud)José Sotrati Junior

Bela nuvenzinhaDe singela formaQue se conformaToda branquinhaSob o impulso

Sussurros do ventoQue em seu alento

Que eu tanto repulsoVilão insensato

Num simples atoEmpurra-te, faceira,

Por brincadeiraNo céu sem fim

Pra longe de mim.

55Revista de Literatura da ADVOCEF

Page 56: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

A trucadaAntônio Dilson Pereira

56 Revista de Literatura da ADVOCEF

Sérvulo, bom cidadão, como muitos da época,décadas de 60/70, levava vida normal. Anormalidade de então incluía o aperitivo e o choppcom os amigos no final do expediente, no CachorroQuente ou no Bar Triângulo, na rua XV deNovembro, centro de Curitiba. Ali se comia um bifecom queijo delicioso. Era o happy hour de hoje,menos sofisticado. As esposas/companheiras nãochiavam e nem apareciam nesses locais.Respeitavam os costumes.

Ao aperitivo, seguia-se quase sempre umaesticada no Bar Palácio ou, algo menos inocente,como um pulinho às Águas Belas, à Boneca doIguaçu, em São José dos Pinhais, uma passadinhanas boates da cidade, mais recentemente, umpulinho no La Round ou no Roda D'água, ali em SantaFelicidade, onde se podia dançar um pouco. Nessasesticadas, dando sorte, pintava alguma conquistapassageira, um namoro, uma aventurazinha, semconsequência mais grave. Afinal, o machismopredominava, eram poucas as mulheres quetrabalhavam, eram mais compreensivas e não seconhecia o induvidoso DNA.

Nosso personagem havia mantido curtoromance com Débora. Terminaram sem maioresproblemas ou traumas, tudo muito civilizado. Ficoua amizade. Nunca mais se encontraram, até queele assumiu cargo de algum relevo. Notícia dejornal. Débora leu a notícia. Bateu uma ponta desaudade. Pegou a agenda e ligou para o antigotelefone do Sérvulo. Conseguiu, por intermédio decolegas dele, seu novo telefone. Ligou e oconvidou a visitá-la. Havia se submetido a pequenacirurgia e convalescia. Convite aceito, prevaleceua solidariedade do bondoso Sérvulo. De posse donovo endereço da moça, lá se foi nosso bomcidadão depois do expediente. Bem recebido,conversaram, recordaram os bons momentos que

passaram juntos e por aí ficou a visita. A jovem foisincera, informou que vivia um novo romance. Seuatual amado havia lhe montado a casa. Aconvalescente se portou como tal, estava emrepouso. O visitante despediu-se, ela agradeceu avisita e nada mais aconteceu.

Dias depois, um telefonema. Do outro lado dalinha, voz masculina vai direto ao assunto: você édono do automóvel placa tal? Resposta afirmativa,veio outra pergunta: você esteve na casa daDébora noutra noite? Novamente positiva aresposta. O homem do outro lado da linhacontinuou sem rodeios: olha aqui, eu montei acasa para me divertir, não para os outros. Sérvulotentou explicar que nada havia acontecido. Foiinterrompido, telefone desligado na cara, sem amenor consideração.

Passados alguns dias. Novo telefonema e umconvite para um encontro. Convite aceito, lá sefoi o Sérvulo. Ao chegar no local, próximo de suacasa, ficou preocupado mas foi em frente. Dentrodo carro, a Débora e seu novo amado. Convidado,entrou no carro, naquela época nem se pensavaem sequestro. O parceiro da jovem não fezrodeios e foi logo dando o recado: olha, meuamigo, sei que você saiu com a Débora dez vezes.Por vez que saiu com ela, você vai fazer umadoação de (deu um valor), para uma instituição decaridade que indicarei depois. (O valor totalestaria hoje na casa dos R$ 10.000,00, muitoelevado para quem vivia de salário, mesmo queexercendo cargo gerencial.)

Proposta feita, sem direito a negociação,seguiu-se um alerta: sei onde você mora (deu oendereço), sei o nome de sua esposa e de seusfilhos (citou um por um). Se a doação não forfeita, contarei à sua esposa seu romance com aDébora. Muito bem casado, Sérvulo perturbou-se.

Page 57: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

57Revista de Literatura da ADVOCEF

Ficou de dar resposta posteriormente. Ochantagista de primeira viagem, orgulhoso de suaesperteza, entregou-lhe seu cartão de visitas.

Atordoado, Sérvulo procurou um amigo.Nervoso, contou-lhe a história e lhe mostrou ocartão. Combinaram se encontrar no dia seguinteem seu gabinete, naquele tempo não existia bina.Por volta das 10h30, horário em que os homens,normalmente, estavam trabalhando, seu colegaligou para a casa do aprendiz de chantagista, sob aalegação de que o Natal se aproximava e desejavamandar alguns brindes, perguntou o nome daesposa e dos filhos do novo amor da Débora.Obtida a informação, agradeceu à prestimosasenhora e orientou o Sérvulo para que ligasse parao chantagista amador, mandasse-o à merda, e foilogo adiantando:

- Se houver resistência, informe que seucasamento já acabou, há muito você procura umjeito de cair fora e não encontra. Não quermagoar a família. Mas, se sua mulher tomarconhecimento do romance com a Débora, comcerteza o expulsará de casa e aí você sairá semremorsos. Como ficará muito grato pelo favorfeito, agradeça e reforce o agradecimento,informando-o que, em reconhecimento, retribuiráa gentileza, comunicando à esposa dele seuromance com a moça, só que informando seuendereço atual e se colocando à disposição paralevá-la até lá. Não esqueça, cite para ele o nomeda esposa, dos filhos e o endereço dele.

Nosso personagem ficou na dúvida e seucolega insistiu: tem de trucar agora, se pagar umavez, vai pagar de novo...

Não deu outra, o Sérvulo seguiu a orientação,fez a ligação, demonstrando segurança e firmeza,trucou. O outro não levantou para seis, correu e ojogo acabou. Nunca mais deu notícia...

Page 58: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

Rogério Spanhe da Silva

Sorte Grande

Numa destas semanas o prêmio da Mega-Sena estava acumulado, e como de costume lávieram aquelas reportagens com os apostadores,o que fariam se ganhassem, seus sonhos, etc.

Assistia eu a uma dessas originais einteressantes matérias, quando me lembrei deuma história que conheço desde criança, sendoque a primeira vez que ouvi foi de minha avó eoutras tantas de minha mãe, que me levou arefletir sobre essa coisa que chamamos desorte, estrela, sei lá.

O fato que lhes conto é real, vinculado a umdos mais tradicionais produtos da Caixa, aLoteria Federal.

Embora hoje o termo tenha caído um poucoem desuso, talvez pelo crescimento de espéciesde loterias, há um tempo não muito remoto,era comum falar-se em "Sorte Grande", fulanopegou a "Sorte Grande", "trocando de casa e decarro, vai ver que pegou a Sorte Grande", etc.

Pegava a "Sorte Grande" aquele quecomprasse, em qualquer extração, um bilheteinteiro e o respectivo número fossecontemplado no primeiro prêmio. Não raro ovalor seria suficiente para bem encaminhar avida do sortudo, principalmente quando oprêmio aumentava em datas ou eventosespeciais como Natal, Carnaval, Grande PrêmioBrasil de Turfe, etc.

Pois bem, Rocco era um imigrante italiano,cruzou o grande oceano ainda menino, cerca dedezessete anos, trabalhou, voltou para a Europa,casou, retornou à América, teve filhos, desbravoubairros da cidade, viu a família crescer.

Quase a vida inteira Rocco trabalhou comocomerciante, mais especificamente comerciavafrutas, não tinha gosto pelas verduras oulegumes, os considerava grosseiros; as frutassim, estas valiam o tratamento que lhesdispensava, retribuíam com seus perfumesvariados, com sua riqueza de cores e matizes,alegravam tanto os olhos quanto satisfaziam a

volúpia do paladar, assim como a melodia dasóperas que tanto apreciava. Tinha um sensoestético naturalmente refinado, embora lhefaltasse cultura.

O tempo passou, o peso dos anos se fezsentir, a aposentadoria.

Para não permanecer totalmente parado,incomodado em ficar em casa sem ter o quefazer, e para aumentar os escassos recursos,por sugestão de patrícios que já se dedicavamao ramo, Rocco começou a trabalhar combilhetes de loteria, trabalho mais leve, maistranquilo, sem as madrugadas para buscar oureceber mercadorias, tarefa jádemasiadamente árdua para um homem na suaidade.

Possuidor de uma simpatia singular, nãodemorou a formar uma considerável freguesia,quase todos imigrantes como ele, italianos,portugueses, alemães, judeus, turcos, árabes.A todos tratava como amigos, recebendo emtroca a mesma consideração.

Desde os tempos de sua chegada ao NovoMundo, Rocco presenciou muitos dos iguais aele terem a satisfação de pegar a "SorteGrande". Ficava imaginando o que faria comtanto dinheiro, dinheiro que era tão suado paraganhar. Receber assim, de mão beijada, umaverdadeira fortuna, dar mais conforto para afamília, talvez voltar uma vez mais a sua terranatal, ajudar os filhos, agora já com suasfamílias.

Volta e meia dizia à mulher que gostaria depegar a "Sorte Grande" mesmo que fosse paramorrer logo após, apenas para sentir asatisfação que tal graça deveria proporcionar epara deixar como legado algo mais do quehonradez e bons exemplos.

58 Revista de Literatura da ADVOCEF

Page 59: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

Num determinado sábado, quente, pois jáera quase verão, Rocco, após a costumeiravisita aos clientes, chegou para almoçar,chateado. Não havia encontrado três de seusmelhores fregueses, prenúncio de prejuízo, trêsbilhetes inteiros, e eram de uma extraçãoespecial, mais caros.

Após a refeição deitou um pouco, o sono nãoveio, o prejuízo iminente não lhe saía dacabeça.

Resolveu fazer algo inédito, foi procurar osclientes durante a tarde.

Encontrou apenas um, determinadocomerciante português, freguês regular, bomcliente.

Um dos números lhe agradava, mas nãoqueria ficar com o bilhete, porque estavafazendo obras na loja, uma padaria, havia feitopagamentos pela manhã, estava sem dinheiro.

Na ânsia de reduzir o prejuízo iminente,Rocco pegou o bilhete, colocou no bolso dacamisa do português dizendo que clienteespecial tem crédito, que pagasse depois.

Naquele bolso Rocco colocou inteiro o bilheteque poucas horas depois seria sorteado com oprimeiro prêmio, a tão sonhada "Sorte Grande".Estava em suas mãos e ele a vendeu fiado,como se uma força misteriosa estivesse adeterminar que o outro e não ele fosse oescolhido.

Seria tudo apenas obra do acaso ou haverá,como acreditam alguns, uma conspiraçãoinvisível em tudo que fazemos ou que nosacontece?

Duvido que algum dia se chegue a umaresposta satisfatória.

Apenas para concluir, o comercianteportuguês pagou o bilhete.

Ironicamente, como queria, Rocco não ficouintegralmente no prejuízo.

59Revista de Literatura da ADVOCEF

Page 60: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

60 Revista de Literatura da ADVOCEF

A noivaJosé Irajá de Almeida

Naquele tempo tudo era verde. Miríadesde majestosos pinheiros perdiam-se napaisagem até onde a vista alcançava. Aolonge, a cantilena compassada deimpiedosos machados se fazia ouvir,anunciando que o progresso chegava aosCampos Gerais.

As tropas que vinham do Rio Grande doSul, levando gado para São Paulo, passavampela velha estrada do Maracanã. Tropeiroscansados encontravam pouso e abrigo nasproximidades da Capela de Santa Bárbara doPitangui. Ali rezavam pedindo a Deusproteção contra os perigos da viagem e paraque os animais não se extraviassem.

Fazendeiros reclamavam, não queriamgado alheio em suas terras, os animaisacabavam com as cercas, sujavam a água.

Surgiu então uma nova estrada, logobatizada de Rua das Tropas. Um pequenopovoado começou a se formar ao longo daestrada, muitos pousos e currais para o gadoforam instalados.

Numa colina, local sem interesse para osgrandes fazendeiros, foi erguida uma novacapela, a de Santa Bárbara ficara distante.

Ao redor da nova capela o povoadoprosperava, nobres erguiam belas moradas,comerciantes abasteciam de víveres ostropeiros, peões e escravos alforriadosofereciam-se para a condução do gado.Desse vilarejo nasceria uma cidade, que maistarde receberia o nome de Ponta Grossa.

Foi esse pequeno vilarejo que serviu depalco para um sombrio e aterrorizante casode paixão e loucura. Os antigos contam deboca em boca, juram que é a mais puraverdade, mas a história oficial nadaregistrou.

Coronel Albertino era um ricofazendeiro, de origem portuguesa, pioneiro

na região, casado com a formosa Mariana, comquem teve cinco filhos homens e uma menina, acaçula, que se chamava Eleonora.

Eleonora, menina mimada do pai, sapeca, faziatravessuras e colocava a culpa nos irmãos. Para amãe não maroteava, a lembrança de doloridaspalmadas punha fim aos folguedos.

Eleonora crescia viçosa, bonita de fazerinveja, puxara à mãe. Chamava a atenção quandoia às quermesses na Casa de Telhas, sempreenganchada ao braço do orgulhoso pai, o CoronelAlbertino.

Todos os vilarejos daqueles tempos tinham umlouco, o louco oficial. A vilinha tinha um, era oDamião.

O "Loco Damião" não incomodava, vivia dabondade das velhas senhoras do lugar, que davamcomida, café e alguns trocados. Às vezes elecantava de noite, mas não metia medo emninguém.

Damião parava na frente da casa do CoronelAlbertino, sabia que ali não ganharia nem umtostão, só queria ver Eleonora na janela.Esperava.

Eleonora ia à janela só para zombar de Damião,fazia careta, mostrava a língua, jogava limão.Damião sorria um sorriso de cinco dentes.

- Ô menina linda, vem cá! - murmurava Damião,apaixonado. A menina ria ainda mais do infeliz.

Não tardou e Eleonora, tal qual uma rosa,desabrochou, transformando-se na mais bela moçado vilarejo. Era hora de casar.

Há muito que a moça estava prometida para ofilho do seu José Morais da Rocha, comerciante,também pioneiro, dono do maior armazém daregião. Domingos da Rocha, o filho, era moço demuita cultura, estudara no Rio de Janeiro,conhecia Paris.

Domingos logo se rendeu aos encantos damoçoila e seu amor era correspondidoplenamente. Os dois se encontravam à tardinha,

Page 61: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

61Revista de Literatura da ADVOCEF

conversavam na varanda sob o olhar atento damãe.

Damião passava em frente da casa, espreitavaaquele casal na varanda, seguia cabisbaixo.

O casamento foi logo marcado, seria uma festacomo nunca antes se tinha visto naquele lugar.

Gente entrando e saindo apressada da casa doCoronel, eram os preparativos para a festança.Damião, sem entender, tudo observava, paradoem frente ao sobrado.

- Sai daí, ô besta! Ela vai casar e vai emboradaqui! - gritou um piá, caçoando de Damião.

Num lampejo de lucidez ele entendeu o quetudo aquilo significava, então o coração do loucogelou. Não podia aceitar que nunca mais veria seuplatônico amor, o único motivo que tinha paracontinuar vivendo.

Era madrugada de sexta-feira. Chovia. Ocasamento seria no sábado. Damião, encharcado,olhava a casa escura. Tomara uma decisão, teriaEleonora para si, não deixaria seu grande amorpartir.

Entrou na casa, não era costume se trancar aporta, chegou ao quarto de Eleonora. A mãosegurando o terçado. A luz dos relâmpagos,através de uma fresta na janela, iluminava o rostoangelical da moça. Damião contemplava extasiado.

Um golpe certeiro no meio do peito. Trovejou.Silêncio. Eleonora estava morta.

Damião queria a moça e a levaria. No auge daloucura, decepou a cabeça daquele corpo semvida. A chuva não cedia. Saiu carregando seuhorrendo troféu. Rastros de sangue pela casa.

Amanheceu. Tragédia feita. Mariana entrou emdesespero, desmaiava, queria morrer. O Coronelchorava de raiva, reuniu os capangas paraencontrar o assassino.

Damião fora visto ensanguentado. Foi Damião.Prenderam Damião. Espancaram para que contasseonde escondera a cabeça. Nenhuma palavra.

Morreu de tanto apanhar, mas a cabeça deEleonora jamais foi encontrada.

Era noiva, seria enterrada com o vestido docasamento.

Ninguém viu a noiva sem cabeça, só o padre eas três rezadeiras que a vestiram enquanto diziamladainhas. Lacraram o caixão.

Mariana definhou, morreu logo. O Coronelviveu um pouco mais, perdeu a fortuna e o gostopela vida, dizia que estava pagando os pecadosque cometera. Domingos foi embora, nunca maisse soube dele.

Hoje o cemitério onde Eleonora foi enterradanão mais existe, fizeram uma escola em cima, oColégio Senador Correia.

Dizem que nas noites de sexta-feira, sempreque chove, o espírito de Eleonora pode ser vistovagando nas redondezas da Catedral de Sant'Ana.Dizem que só terá paz no dia em que alguémencontrar a cabeça e enterrá-la junto ao corpo.

Acredite, essa história é verdadeira. Sealguém, ao passar em Ponta Grossa, na Vilela ou naVila Estrela, vir na varanda de uma casa um velhorodeado de crianças de olhos arregalados, quepreste atenção, pode ser que ele esteja contandoa história da noiva sem cabeça.

Page 62: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

62 Revista de Literatura da ADVOCEF

Pensamento -força motriz da humanidadeFrancisco das Chagas Nunes

Na trajetória da humanidade a espéciehumana, o homo sapiens, apesar de dotado daforça que move e impulsiona todos os seus atos,no caso específico o pensamento, tempaulatinamente desaprendido a pensar.

O que difere essencialmente o homem dosanimais é precisamente essa faculdade inata, masprincipalmente desenvolvida pela espécie humana,que é o ato de pensar ao longo de sua existência.

O francês Descartes revolucionou a filosofia doseu tempo, sintetizando-a no famoso adágio queficou gravado na história e na mente dospensadores do mundo todo: "Penso, logo existo".Vinculou o filósofo a razão da existência humanaao ato de pensar.

Entretanto, na história da espécie o homemtem renunciado, até por um processo natural deacomodação, a aprender a exercitar o pensamentocriativo, preferindo ao invés adotar fórmulaspreexistentes, modelos acabados, obras prontas,seja pela preguiça mental que é natural ao serhumano, seja pela adesão ao caminho de fazersempre as coisas mais fáceis.

O fato concreto é que essa espécie que sesupõe pensante, o homem lato sensu, nessareferência implicitamente incluída a mulher, temabdicado ao longo de sua existência à nobre artede pensar, refletir, tirar as conclusões e, coroandoo processo de reflexão, extrair lições para si epara o resto da humanidade.

Nas ilações do Padre Vieira, não o festejadoVieira português dos "Sermões", mas o nosso Vieiratupiniquim, o cearense Padre Antônio Vieira, nãotão ilustre quanto o seu famoso homônimo eantecessor, porém não menos inteligente einventivo, a arte de pensar é um modelogradualmente desprezado pela humanidade quenão raro reprime quem pensa; nessa linha tortuosade conduta, às vezes por pura preguiça, emalgumas ocasiões por velhacaria, prefere o serhumano apoderar-se dos pensamentos de outrem eardilosamente apresentá-los como seus às vezessem qualquer disfarce.

Ou então usar a lógica alheia para encobrir oujustificar a deficiência de seu julgamento, ou suaprópria falta de lógica.

Page 63: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

63Revista de Literatura da ADVOCEF

Para muitos, o homem que pensa é um maluco,um inadaptado, um revoltado, em suma umfracassado porque não consegue alimentar-se dasfórmulas em vigor, dos modelos prontos eacabados, preferindo buscar ele próprio nasfantasias das suas lucubrações mentais conceber erealizar um trabalho intelectual, cujo resultadoconsista em uma obra original sem qualquersimilaridade com as existentes no mundo físico.

Isso é tarefa, dizem, destinada aos iluminados,às mentes superiores, aos superdotados, comojustificativa daqueles acomodados e de menteenferrujada pela preguiça e pelo tempo, para osquais é melhor adotar o caminho mais fácil decopiar o que já existe, do que quebrar a cabeçaou dar tratos à bola para tentar fabricar algo novoe original.

Nessa ótica, o ato de pensar e, emconsequência, a criação de novas ideias passou aser tipificado, em várias etapas da história dahumanidade, como grave delito, por contrariar ospadrões estabelecidos.

O religioso, físico e matemático italianoGalileu Galilei, já em idade provecta,experimentou e conviveu com as atribulaçõesdesencadeadas pelas perseguições promovidaspela Inquisição da Igreja Católica porque ousou, apartir de seus estudos e pesquisas, defender ateoria heliocêntrica em substituição à teoriageocêntrica estruturada por Aristóteles ePtolomeu, posteriormente contestada porCopérnico e adotada por Galileu, segundo a qualnão era a Terra o centro do universo e os demaiscorpos celestes também não orbitavam ao redordo globo terrestre, porém ao sol cabe esse papel,no que se convencionou denominar de teoriaheliocêntrica.

Pois Galileu sofreu as perseguições econdenação da Igreja Católica, sendo obrigado a,de público, abjurar suas crenças, não obstante assuas convicções mais íntimas.

O ato de pensar foi criminalizado e reprimidoao longo da história da humanidade por seucaráter inovador, sendo geralmente atribuído aopensador, na esfera repressiva, os mais diversosepítetos, tais como: blasfemadores, apóstatas,ateus, infiéis, traidores, contestadores e, maisrecentemente, anarquistas, socialistas ecomunistas.

O ato de pensar tem sido questionado desdeos primórdios, e os gregos, apontados entre osmais antigos mestres dessa arte milenar, adotarama desprezível tática de rotular de idiotas aquelesque tinham ideias próprias e originais, no dizer dePadre Antônio Vieira.

Para os acomodados, que é a maioria, o lógicoe racional, como asseverado por Vieira em seucompêndio "Penso, Logo Desisto!", é "o alunoraciocinar com a lógica do mestre, o escravopensar com a cabeça do patrão" e o civil pensar damesma forma que o militar.

A propósito do último, constitui este umacategoria de pessoas cuja rigidez do regulamentomais impede o homem de pensar.

O militar é um homem que dorme, acorda, sealimenta e exerce o seu mister sempre pautadoem estrito regulamento de caserna, constituindograve infração dos seus deveres pelo menos ousarpensar que aquilo que faz não é inteiramentecorreto, e crime de lesa pátria manifestar-secontra os regramentos militares ou as ordensemanadas dos escalões dirigentes.

Em nome dessa cega obediência, muitos errose infrações aos direitos dos cidadãos foram ouestão sendo cometidos no mundo, inclusive noBrasil, como cotidianamente divulgado pelaimprensa, e há muitas censuras ao período doscognominados "anos de chumbo", nos quais o paísfoi governado pela elite militar que foi acusada deordenar atos de repressão política, naquela época,sem a observância das regras de respeito aosdireitos dos acusados por atos de subversão daordem interna.

Nos tempos recentes presenciamos econtinuamos testemunhando os desmandos emassacres perpetrados pela potência mundial, osEstados Unidos da América do Norte, em paísespobres e subdesenvolvidos do continente asiático(Iraque e Afeganistão) contra populações de civisindefesos, inclusive crianças que são as maisafetadas, em nome de um pretenso combate aoterrorismo internacional e à destituição degovernos acusados de possuir armas de destruiçãoem massa, a partir de provas forjadas comoaconteceu no caso do Iraque e, agora mesmo,essa ofensiva desencadeada internacionalmenteao Irã e à Coreia do Norte, ao suposto de queaquelas nações aspiram implantar um programa

Page 64: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

64 Revista de Literatura da ADVOCEF

nuclear que lhes dê suporte à produção de armasatômicas.

No caso da Coreia, até com alguma razão,porque a ditadura instalada no poder temseguidamente manifestado ambições de produzirartefatos nucleares. No Irã, apenas suspeitas.

O caminho que parece mais adequado, em taiscasos e outros similares, é a via diplomática paraencontrar a melhor maneira de solucionarquestões e conflitos nacionais e internacionais, afim de que não aconteça o mesmo que aconteceuao Iraque, quando foram forjadas provas pelogoverno americano de George Bush, as quaisposteriormente foi constatado serem falsas, a fimde justificar uma guerra de destruição em massacontra um povo sofrido e secularmente oprimidopor ditaduras feudais e semifeudais, atitudeinsana de um país contra o outro, o que somentegera ressentimentos e faz proliferar o apoio agrupos comprometidos com o terror, sem qualquerfreio ético ou limite.

No caso específico, há insinuações de que ainvasão ao Iraque, justificada pelos americanoscomo uma medida para implantar um estadodemocrático de direito no país e afastar umgoverno ditatorial que financiava e apoiava gruposterroristas mundiais, não teve outro objetivosenão o econômico de apoderar-se do controledas enormes reservas de petróleo daquela nação,o que, em se confirmando, demonstraria umafaceta perversa e selvagem do capitalismointernacional e, em particular, do americano, como seu poderio econômico e militar.

Não é o propósito deste escrito fazer aapologia à balbúrdia, à desordem, à insegurança eao desapreço às regras legais estabelecidas econdutas sociais, seja no âmbito territorial deuma nação ou internacional.

No entanto, é preciso estar atento e demente aberta para contemporizar e entender asparticularidades culturais de cada povo erespeitar os seus princípios éticos, valores e oseu modo de vida; auxiliar se possível asmudanças, ajudar a promover as inovações úteis,a ciência, estimular a criatividade e osformuladores de novas ideias, valorizar, enfim, oprocesso criativo do homem, com vistas aodesenvolvimento material e espiritual de cadapovo, a partir da perspectiva de que para afrente é que se anda, sem apego aos postuladospregressos ou com os olhos permanentementepousados no retrovisor.

Sintetizando, é preciso pensar. Pensar deforma positiva e esforçar-se para afastar damente os pensamentos negativistas e o mais quelhe diga respeito, porque isto não constrói, nãoé bom para o homem, nem individualmente comopessoa nem como coletividade.

E não somente pensar, porém buscar colocarem prática o lógico e racional, a fim de que nãoprevaleça a razão e a lógica dos egoístas, dosvaidosos, dos espertos, dos ladinos, enfim, dosinescrupulosos e desonestos de qualquerquilate.

Page 65: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

Homem,um eterno insatisfeitoAfonso Batista da Silva

Sócrates já filosofava - "o ser humano é um constante insatisfeito". Nofilme "O Todo Poderoso", com Jim Carrey, de 2003, é bem nítido isso; quandose realizam todos os desejos do homem, o mundo vira um caos. Os homensnão sabem o que querem!

O homem, apesar de toda a sua inteligência, é como um boi numaboiada. Segue a multidão. Não consegue ter vontade própria, salvo rarasexceções. É um ser único. Mas se diferente for, se sente um ET. É rotuladocomo um ser diferente. E mesmo sendo único em todos os requisitos, nãoaceita, quer ser igual. Mas como ser igual se o que qualifica é asingularidade?

Assim, surgem teorias capitalistas que o "rotulam" como uma simplesmercadoria, com frases de efeito, "ninguém é insubstituível". Entretanto,todos são únicos e todos querem ser, mas sempre seguem os outros por,exatamente, não saberem o que querem da vida. Mas exatamente por seremúnicos que o mercado o qualifica como comum. Se todos são únicos, todossão comuns, todos são iguais.

E mais, o ser humano é imediatista, salvo raras exceções, se desvirtuapor que pensa no agora, pensa no hoje, não vislumbra o todo e assim seguerumo a maioria, como um ser impensante. É um ser semelhante ao divino eage como um animal irracional. É tão racional que não confia nem na suaracionalidade e segue a multidão achando exatamente que o mais racional éseguir outros de sua espécie. Age como um animal. Pensa - posso estarerrado, mas vários vão comigo! E mesmo sabendo que pode decidir, optapor deixar que os outros decidam por ele.

Por preguiça de pensar ou por insegurança, o ser humano segue como umanimal irracional. Seguindo a boiada.

Não tenha preguiça de pensar! Use o que de mais divino você tem, a suaracionalidade. Use o livre arbítrio a seu favor. Pense. Reflita. Estude.Filosofe. Inspire.

65Revista de Literatura da ADVOCEF

Page 66: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

ImpermanênciaLeopoldo Viana Batista Júnior

66 Revista de Literatura da ADVOCEF

Ao passar defronte àquela caiçara, já umtanto desgastada pela lambida das espumassalgadas das marolas, e ciente de que nelaarranchava-se um velho e sábio índio, acuriosidade me obrigou a afinar a vista nadireção do seu vão maior.

Pupila dilatada e adaptada ao ambiente, vi,ao fundo, em corta-luz, entre uma grande boiade vidro e antiga tralha, um vulto sentado aochão de areia, recostado, displicentemente, emuma das linhas laterais da pequena palhoça,cosendo, sobre o colo, desbotada redemalhadeira, indicativo de que aquele abancadoera o velho e quase extinto jangadeiro que euprocurava.

Cumprimentando-o com um simples olá epedindo licença para continuar adentrando,percebi que o já bem enrugado marinheiroaguardava apenas que seu corpo magro - comouma jangada muito usada e com cordas e pausapodrecidos, segundo ele próprio afirmariaposteriormente - se desmanchasse,pausadamente, nas ondas mansas dos maresnordestinos, rangendo como despedida, nadamais.

Tentei iniciar conversa dizendo-lhe, meiodesinteressadamente, que costumavaescrevinhar sobre aquilo que me vinha à telha, e,no meu caminhar por sobre as finas areiasbrancas daquela praia em direção à sua caiçara,ficara a pensar sobre a vida, de modo que,sabendo da sua imensa sabedoria, acreditava,certamente, obter um mote para o escrito. Nãolhe dei tempo de responder e já emendei minhafala perguntando-lhe se era verdade que osjangadeiros viam o mundo absolutamente firmee equilibrado, mas que isso se dava apenasquando aportados.

Olhando-me com leve ar de riso - o queindicava bom sinal -, afirmou que lhe pareciaestranho alguém falar sobre equilíbrio quandonunca enfrentara uma vaga. Ou dizer sobrefirmeza, com terra sob os pés. Assim, oatrevimento do escrever - disse com ênfase - "oque vier na espia", como que há pouco ouvira,algumas vezes permitia atiçar o pensamento;outras, não passava de puro enchimento decabeça de camarão.

Nesse momento, já bastante desconfiado dasminhas próprias falas e do "alto" da minhaignorância, aventurei instigá-lo sobre histórias depescador, ouvindo do enferrujado homem do marque todas as histórias de pescadores já haviamsido ditas por tantos outros, ao longo de mais decinco mil anos. Mas, olhando-me fixamente,perguntou se eu, assim como ele, também sentiaque seu pensamento doía por testemunhar seucorpo velho em pique derradeiro.

Opa! Estava melhorando a conversa! Exceto acomparação da idade, que me preocupou. Jáhavia eu, claro, ouvido alguém afirmar que sentiadores físicas, por ver seu corpo envelhecer, o queme parecia natural, todavia, mostrava-se aprimeira vez que alguém afirmava que o seupensamento doía ao ver seu corpo envelhecer,invertendo a ordem das coisas.

Pensamento que dói?Desconsertado, mas com cérebro abrasado

naquele instante, ouviria, em sequência, falasainda mais interessantes. Disse-lhe que algoassim não havia me acontecido até então, masgostaria de entender o que com ele ocorrera.

Pois bem, parecia que o fato havia disparadoo gatilho da conversa, ou melhor, daquilo que euachava que era. Continuou o velho marujo adizer, também, que, um dia desses, estava ele

Page 67: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

67Revista de Literatura da ADVOCEF

absorto, enquanto remendava a maltratada caçoeira, e teve, como há muitodesconfiava, quando navegava nos seus pensamentos, a nítida certeza de inexistir.

- Você quer experimentar? - olhou para mim, displicentemente, perguntando-me.- Ou melhor, quer se certificar de que você não existe? - continuou.

"Eita gota"! A partir desse ponto, eu já estava muito curioso, interessado e quaseassustado. Tudo que eu aprendera até aquele momento fora que - porque pensava epossuía discernimento - existia, diferentemente dos que existiam sem consciênciado pensar.

- Feche os olhos por alguns segundos - continuou fitando-me -, é necessário quese concentre. Saiba, desde logo, que apenas aqueles que possuírem o privilégio, outiverem a chance da certeza da sua impermanência, conseguirão entender o quesentirão agora.

- Veja. Mantenha os olhos fechados. Abstraia-se. Olhe para dentro de você: vocênão é nada!

- É que a força da sensação do nada é tão grande e absoluta que somente aqueleque tem o dom, repito, de senti-la, saberia do que falo. D'outra forma, não teriacomo compreender. Mesmo assim vou dizer, quem sabe você entenderá?

- O nada é muito real. Sinta: nada - prosseguia.E continuou, pacientemente, afirmando-me que a impermanência é como uma

consciência estupenda da sua própria inexistência.- A impermanência é a inversão dos sentidos, é a ausência de tempo em

marcação, é a marca da solidão eterna, é a certeza de que nada há, paradoxalmente.E a consciência da impermanência é a real crença no nada, porque nada se faz com onada, senão a sensação profunda de continuar a nada ser.

- A impermanência, meu caro - afirmava, ainda, o índio -, é o ocaso do ser, orejuvenescer do idiota, o banzo do estrangeiro em sua própria terra. Eimpermanecer, tendo consciência disso, é um estado de espírito maior e maistranquilo que o complexo do querer, do sofrer, do estar, do realizar. É simplesmentedeixar que o nada absoluto prossiga, que é, aliás, para onde, e somente aonde, seirá, se se for.

- Eis que nascer, viver, sonhar, morrer são fases do inexistir, pois que tudo se vaisem registro de e para si, somente alguns retardam, sem saber, suas impermanênciaspara que delas conheçam, ou melhor, percebam sua inexistência, e,momentaneamente, permaneçam sem consciência.

Abri os olhos. Acho que o fiz imediatamente após ouvir aquela última frase, mas aquestão do tempo já era relativa, daí minha incerteza se assim ocorrera. O fato é quenão mais vi o velho índio jangadeiro que há pouco me falava recostado na palhada. Omote do escrito, que procurava inicialmente, já tomara dele emprestado. Semdespedidas, uma pena, pois gostaria de dizer-lhe o que percebi da experiência.

Entretanto ouvi, parecendo muito longínquo, o som, e mesmo assimentrecortado com o farfalhar dos coqueiros vizinhos, do estribilho de uma cançãoque assim dizia: Ô Marinheiro... Marinheiro só... Quem te ensinou a nadar? Foi otombo do navio, ou foi o balanço do mar?

Page 68: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

Meus pés vão sumindo,Não os posso sentir mais.Estão me desconstruindo,Para que possa haver paz.

Meus sapatos lustrosos,As barras do meu vestir,Evaporam-se, gasosos,

Passo a deixar de existir.

Meus joelhos não se dobram,Minha oração é sem voz.

Os pecados, que me cobram,Tornam minha angústia atroz.

A cintura é uma lembrança,Meu abdômen se contrai,O meu fim lépido avança,Sei que a vida se esvai.

O meu peito, já robusto,Ora não é mais que só pó.

Sem medo, rancor ou susto,Parto sem gerar dó.

Meus pensamentos se calam,Nada mais resta de mim.

Os braços da morte me embalam,No meu triste e lento fim.

Desconstruindo-seJosé Sotrati Junior

O objeto abjetoDesprende o que apreende

E a imagem interageNo signo que a designa.

Como dizer o visto,Se o visto já não é o táctil?!

Como representar o presenteSe a duração não dura?!

A palavra carece de certeza.A imagem carece de verdade.

O real é o inventado.

A duraçãoJairdes Carvalho Garcia

Cristal na noiteJosé Sotrati Junior

Morreu.O peso dos anos fechou-lhe os olhos.Olhos de azul-cristal.Cegas testemunhas de muitas vidas.Olhar de cristalino saber.Calou-se.O peso das histórias desabou em silêncio surdo.Brincava seus brincos de metal.Surdas testemunhas de mil amores recorrentes.Calou-se o azul-cristal.Morreram, sua voz, seu falar.Fada solitária em seu céu particular.Sofre, calada, o peso das horas.Pesa-lhe a dor do saber.Cegas procuras em noite de luar marmóreo.A noite pesa sobre seus ombros.Atlas do amor, que se perde em luz.Noites de saber.Fada solitária.Fez a magia de fazer-me ver.Ressuscitou-me de minhas mágoas.Fez-me querer, ouvir, falar.Fez-me viver.Doou-se a mim inteiramente.Foi minha mestra no sofrer sorrindo.Hoje a noite não fala.As estrelas se escondem para chorar lágrimas de luz.A Lua se encolhe, minguante, minguada.A noite se cala.O cristal do céu se une ao azul do mar num último adeus.Morreu.

68Revista de Literatura da ADVOCEF68 Revista de Literatura da ADVOCEF

Page 69: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

69Revista de Literatura da ADVOCEF

Duas horas da manhã na cidade deFlorianópolis. A madrugada indócil deinverno desce sobre tudo a mantagelada do orvalho preciso. Nosrecônditos mais expostos da AvenidaBeira Mar Norte só mesmo a respiraçãoprofunda e descompassada dos casaisnamorando acalora a noite. Osrecônditos são carros, carros e maiscarros de vidros embaçados que sóescondem os rostos, mas revelam asintenções explícitas.

Num bom e velho Gol motorbatedeira, do início da década de 80,Inácio e Samira namoramimpacientemente. O carro é mais velhoque os namorados e, ainda, tem maisexperiências em namoros madrugadoresque eles.

De toda maneira, os olhos deSamira, verdes e límpidos, fecham-semais do que abrem e os lábios e a línguasão a visão do corpo inteiro quando elaprocura Inácio. Ele, por sua vez, abremais os olhos castanhos de modo amover melhor o corpo robusto e acabeleira negra aos ombros comgentileza, evitando movimentosestabanados e perigosos à sua amada.

A descrição perfeita da dança nagraça da menina magrela de cabelosclaros e rosto alvo e do rapaz lento eávido seriam as próprias janelasesfumaçadas e cada vez mais assim.Samira sabe exatamente fazer aquiloque nunca fez. Conhece-o há algumassemanas somente e, sendo moça defamília religiosa, sabe-se pecadorairremediável e assaz.

PerspectivaRodrigo Mello

Há horas estão ali e os beijos e afagos vãotransformando-se de criancice em carícia e deafagos em toques de mulher em homem e vice-versa. Quando por fim Inácio arremete suas mãospara livrar a blusa de Samira da prisão de sua calça,ela cessa a dança inteira reprimindo com um olharindeciso o abuso do namorado precipitado. Correos olhos imediatistas pela paisagem: só janelas ejanelas que não dão vistas para nada e nemninguém. Diz ela "Não, Inácio, isso não" com a féde um Judas vendido. "Tudo bem", diz ele.

Dá-se meia hora e ela o puxa e desgarra aprópria blusa da prisão do resguardo e guia-lhe amão quente, mundo proibido adentro. Numinstante, Inácio toca os seios arredios edespreparados de Samira com as mãos desejosas,trêmulas e confusas.

Pausa do momento: sobrevém o parar dotempo corrente, dessas paradas apenasconhecidas em ocasiões como esta: ocasiões deprimeiras vezes.

Samira e Inácio mudaram o mundo parasempre. Foi a consumação dele e a perdição delacomo moça religiosa. Foi a redenção dele e arendição dela no mundo opressor dos homens. Foia presença dele e a sublimação ao inverso delacomo mulher. Foi o toque dele e o arrepiar dela nomundo só dos dois.

Page 70: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

Paixão adolescenteFloriano Benevides de Magalhães Neto

70 Revista de Literatura da ADVOCEF

Em um fim de tarde, uma linda borboletinhadourada cruzou seu caminho. E ele a foi seguindoaté onde pôde; depois mergulhou numa profundasensação de perda, numa solidão melancólica,imaginando a possibilidade de nunca maisencontrá-la.

Era linda, marcante, inesquecível. Como nuncaele houvera visto ou imaginara conhecer. Uma cordourada que nela, na harmonia e beleza de seusmovimentos graciosos e delicados, ficava aindamais bonita.

Por sorte, no outro dia a reencontrou e entreeles foi se criando uma confiança, uma amizade,uma cumplicidade que o deixava orgulhoso defazer parte daquele universo mágico.

A tarde parecia pequena, o tempo era pouco,a vontade era grande de fazer parar o relógio paraficarem ali, os dois, talvez não eternamente - elese contentaria em ficar só até quando conviesse aela, pois obviamente devia ter seus afazeres.

Ela era a imagem da sensibilidade. Aquele localjá não era o mesmo quando não estava lá;tornava-se obscuro, perdia a luz, além do brilhoincomum que fazia parte do corpo daquelaborboletinha. Para a sua amiguinha ele levavachocolate, bombom, e tudo o mais fazia pensandona felicidade da bela coleguinha.

Não media esforços, não economizava. Na horade comprar imaginava a maneira agradecida deficar "sem jeito" da amiga tão linda. Então elecomprava; e corria feliz e ansioso, contando ashoras para a sua chegada. Podia parecer, mas nãoera uma loucura tão louca assim.

À noite, às vezes alta madrugada, pensava:onde andará a minha amiguinha? Por que bandas,com quem, e sentia ciúmes, uma vontade de estarcom ela, e sonhava. No sonho a gente podeultrapassar os limites do impossível e construir a

realidade nos moldes dos nossos desejos evontades!

No dia em que ela não aparecia, ele ficavatriste, pensativo, amargurado, uma vontade desair correndo atrás dela e só parar quando aencontrasse. Por que a vida é assim, cheia decompromissos e de horas marcadas? Por que nãolhe dá a liberdade de estar na hora em que quisercom a sua borboletinha dourada?

Ele escrevia bilhetinhos que faziam seusolhinhos brilhar e sorrir agradecidos, o que o faziaescrever mais e mais. Falava de amizade, decarinho, de amor, de paz, de beleza. E ela lhe dizia:

- Eu ainda vou retribuir a tua amizade. Aindavais encontrar uma mulher que te ame e que temereça!

Ele replicava:- Não precisas te preocupar; tua presença já é

o bastante. A minha vida se tornou mais doce emais sublime a partir do dia em que descobri oque é conviver contigo.

Decerto que queria fosse ela a mulher que oamasse, pois a desejava muito, tinha louca paixãopor ela. No entanto, alguns sonhos não se tornamrealidade. Realidade que, na maioria das vezes,não concretiza nossos sonhos ou, às vezes, nosenche de pesadelos...

Page 71: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

71Revista de Literatura da ADVOCEF

Entretanto, um dia ela se foi e nunca maisvoltou. Contudo, restou não um vazio, e sim umagrande saudade de um tempo que não pôde parar,de uma vontade que ficou no meio do caminho,de um sonho que não se realizou, um desejo queapesar de tudo ficou como uma linda página deamor, como poucos antes contados.

Que pena ele não ter podido ficar com ela,aquela borboleta dourada, mas que na verdade erauma linda garotinha loura - que adorava fotografarborboletas e admirar suas diversas cores -deslumbrante, que o deixava cheio de amor, depaixão e desejo de ficar para sempre com ela e setornarem felizes para sempre, como nos maislindos contos de fadas...

Porém, a vida tem que continuar, e outra háde aparecer em seu caminho. Mas provavelmentenenhuma mais igual àquela, que para ele era amelhor, a escolhida, mas que se perdeu nadistância, no tempo, nos desencontros e na suatimidez que não o permitiu declarar a ela o seuverdadeiro sentimento.

Apesar de tudo, foi marcante, profunda, comotodas as paixões loucas e desmedidas que temos,e permanecerá para sempre no mais profundo dossentimentos, pueril, belo e intenso, tal qual umlindo amor adolescente.

Page 72: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

72 Revista de Literatura da ADVOCEF

Cinco da manhãRodrigo Mello

O cenário era simples: uma boate turva, doisdrinques por terminar, três meninas numa roda,quatro adolescentes falando besteiras, cinco horasda manhã. O rodopiar das luzes não poderia sermais indiferente, elas rodando como se tivessemque cumprir expediente e mal pudessem esperartodos partirem logo.

Na roda, Carlos era um dos quatro rapazesdisparando asneiras. Ele paquerara durante toda anoite a mesmíssima menina, até dançaram umamúsica, e ela, como mulher bela que era,simplesmente o ignorara em suas investidas maisousadas, dentro da normalidade esperada dascoisas. Sim, porque se houvesse uma mulher com aqual teria chances nulas na boate,inequivocamente seria por ela que ele seinteressaria. Por outro lado, se a sina fosse esta,nunca haveria nada a perder, visto que, partindo dachance zero, de sentir-se menor, bem, diabos, àscinco da manhã, a boate vazia era praticamente ohabitat ideal para alguém em desespero de causa.

Porém, entre o fracasso mais absoluto e asegurança estática de não ir, cria-se o maior temorde todos: o de jamais saber.

Carlos esticou o drinque meio vazio e tomoumarcha à frente, do jeito que deveria ser feito.Embora as mãos suassem a cada avanço dado e ocoração pulsasse à beira do infarto fulminante, eletomou, passo por passo, o espaço entre os dois atéparar a um braço dela. No fundo os risinhos echacotas espalhavam-se, tanto na rodinha dasmoças, quanto na dos rapazes. Logo ocorreu aCarlos algo básico, mas necessário nessas ocasiões:ele não pensara numa frase pronta, num sorriso,num cumprimento, num olhar, num gesto ouatitude a tomar naquele exato instante. Derepente a música invadiu-lhe os ouvidos. "Querdançar?", perguntou tímido, quase balbuciando."São cinco da manhã, já estou indo", respondeu amenina de voz macia num descarte tão doce quenem pareceria embaraçoso, fossem diferentes ascircunstâncias.

Page 73: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

73Revista de Literatura da ADVOCEF

O rapaz desmanchou o sorriso por um instante e, comose fosse a última coisa a se dizer: "Então, a última dança danoite", sorriu com todos os dentes e lábios e esticou a mãooferecendo-a. "Tá bom", ela concordou, sem qualquerdemonstração perceptível de agrado ou descontentamento,apenas a concordância plana, rasa, direta.

Por sorte, os deuses da madrugada, se é que estavameles acordados a horas tantas, decidiram encerrar oexpediente deixando tocar a música lenta indispensável aomomento. Os dois dançaram abraçados, trocando algumaspalavras, quando finalmente uma outra a chamou, "Joana,vamos". Quando iam se despedindo ela disse "Você demoramuito". "Eu sei", ele desculpou-se.

Para a estória dar certo, contudo, algum evento mágicosempre deve tomar lugar, de modo a facilitar a catarse doleitor e do autor, esperançosos do final ideal. Mas Joana,determinada a frustrar todas as expectativas mais caras aoscorações românticos, deu de costas após sorrirmaliciosamente (talvez tenha dito "a gente se vê" ou outroimpropério desses) e deixar um beijo de consolação norosto do rapaz.

A porta da boate fechou depois da silhueta esguia deJoana deslizar, arrastando seus longos cabelos castanho-claros. O sinal iminente da derrota. A porta bateu, a músicaacabou, o povo sumiu, a noite esfriou, e agora, Carlos?Joana se foi, o final fadou-se infeliz. Voltando ao grupo deamigos, recebeu só mesmo o escárnio e alguns menearesde apoio resoluto, inerentes ao mundo masculino.

Foi quando se abriu outra vez a entrada, agora permitindoa passagem de uma das amigas de Joana. Apressada, a meninanum quase correr, quase andar, aproximou-se de Carlosestendendo o braço. Na extremidade, entre os dedos médioe indicador, um papel irremediavelmente amassado. O rapazesticou-se e alcançou-o, enquanto a moça, com a satisfaçãodo dever cumprido, girou sobre os calcanhares e partiu semoferecer mais que um piscar de olhos secreto, que sópoderia significar algo, algo importante ou urgente, ou sertroça, ou ainda algo muito secreto mesmo, ou ininteligívelde verdade.

Por óbvio, a solução do problema dar-se-ia de formademasiado simples: o desdobrar do bilhete. Esperou amenina-mensageira ir-se, desaparecer da boate, damemória. E como isto, o conto, e aquilo, o suspense,aspiravam pelo desenlace, o jovem Carlos trouxe à vista anota ainda não desfraldada. Ali, desenhadodescaradamente na dobra do papel, um coração. Carlossorriu para si e a quem quisesse ver, pois coraçõesdesenhados em bilhetes, ao menos os que se prezem, sópodem significar uma coisa...

Page 74: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

74 Revista de Literatura da ADVOCEF

A vidaé feita de caminhosLuciane Martins de AraújoMascarenhas

Com atrasofamigerado li suas

ditosas linhas

Razões de um cantorMilton Magalhães

Enquanto existir uma voz que canteE se levante ante a multidão

Enquanto existir um olhar amigoE um sorriso ingênuo eu faço canção

Enquanto existir no mundo uma criançaE o orvalho da noite molhar os jardins

Eu sei que no mundo ainda há esperançaE que ainda existe um lugar para mim

Levanta teu braço, companheiro!Empenha a tua vida no irmão

Pois vozes, ideias e a cultura de um povoNão morrem nas grades de uma prisão

Nem mesmo a mágoa que trago no peitoVai conseguir abafar o meu cantar

Pois basta ver o sol a cada diaE o mistério de um pássaro a cantar

Motivos me sobram para inspiraçãoA força, a liberdade e a emoção

Acordes naturais do CriadorCriar na vida uma lei: o amor!

A vida é feita de caminhosÀs vezes vastos e fáceis de se seguirMas muitas vezesEsses caminhos além de tortuososSão cheios de galhosEntraves, espinhosO que dificulta o nosso percursoO prosseguir

Há pessoas que têm o dom deAparar os galhosTirar os entravesRetirar os espinhos que nos machucamQue dificultam nossa passagem

Para tornar nosso caminho possívelMenos penosoMais acolhedorAté que por fimPodemos nos deparar com outra realidade

Que nossos caminhos se tornaramMais belosMais fáceisMais primaverisCom pássaros, flores, música e dança

Por sabermos que junto a nósDentro e foraAlgo diferente e forteNos move

Com cuidado redobrado.Ora sorri, ora sofri, mas sempre com os olhos

cuidadosos,Para bebericar do conhecimento e entender as

palavras.Você brincava com as palavras como brincávamos

em infânciaCom as lobeiras de carrinho,

Automóvel dos mais possantes.

É por demais deliranteUm saber tão grande...

Abarcando o tema de forma abrangenteE se a amiga citada sou eu, mais emoção ainda!!!

Marta Faustino

Page 75: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

75Revista de Literatura da ADVOCEF

O dizer sem palavrasjá rompeu o ventoMarta Faustino

Rasgou as armadilhas do somE superou a distância e a voz

A primeira fez lua cheiaCheia de vida e de amorEm nosso coraçãoNa respiração ofegante do maratonistaNa lua vazia dos momentos de dor

A cada centésimo de segundoNosso coração e nossos olhosEncheram-se das flores e das cores da primaveraCheiro e gosto de primeiro amorPaz para o mundoTranquilidade dentro de nós.

Nosso sangue se misturou na névoa da Via LácteaE de repente... Descemos para o mundoE temos o mesmo sangue em nossas veiasTornamo-nos irmãos do tempo e do ventoQue sopra em nossos cabelosAnunciando a primavera vermelhaE de todas as cores.

Sem limitesRobério César Camilo dos Santos

Amo-te tanto, de meu coração nunca duvides.A dúvida no amor fá-lo fraco, cria o defeito.

Não há culpa no coração que ama poucoMas a ele sempre há quem ame muito.

Amada, hoje meu coração não está sozinho.Pois te ama, enfim, meu coração, sem ter limites

Porque o limite para o amor é o próprio afetoE neste simples coração é o que mais clama.

Amiga, amada, amante, no meu coração vige a saudadea cada minuto por todo momento em que estás distante,

no limite do sem fim que abrange o peito.

Amo-te por fim, sem culpa, sem alarde e sem defeitos.Os corações amantes se resumem no infinito,e de tanto amar-nos é que sou feliz e canto.

O amorManoel Messias Fernandes de Souza

O amor é como a música bonitaQue entre nós flui suavemente,

É fogo que queima sem arder,É fogo que arde sem queimar,

O amor é soturna dorQue no coração parte em flor,

Da humanidade é original sementeQue ao germinar por entre a genteFaz-nos sentir no fel o doce saborDe que amamos e somente amor.

Quem pensa que o amor é algo diferenteCertamente nunca sentiu no peitoO doce calor dessa chama quente!

Page 76: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

Todos os sonhosDe quem quer amar

Estão no caminhoDe alguém encontrarQue tenha nos olhosO brilho de estrelasE busque horizonte

MelhorPara tê-la

Você que não paraVocê que não sara

Desta loucura de amor idealEscute a poesia

Do amor a alegriaQue a vida é um sonho

Você é real!

Seus problemas de criança burguesaSua maior riquezaPor que não dizer

São mil irreais proezasDe fúteis belezas

De muitas palavrasE de pouco fazer

Papai, mamãe, famíliaE se vai então todo o dia

Explicando sempre os nãos!A resposta da sua alegria

Não é a psiquiatriaA sua explicação

Feliz é ter alvoroçoDos lábios os gostos

De tantos loucos beijarBrincar de escada e de roda

Fazer da vida bemVida para mais vidas

Assim alegrar

Você que não paraVocê que não sara

Desta loucura de amor idealEscute a poesia

Do amor a alegriaQue a vida é um sonho

E você, ah...Você é real!

Todos os sonhosMilton Magalhães

Tantas sãoas poesias da vidaMarta Faustino

Que não se pode dizer que inexistem.O viver já é poéticoPara quem a poesia corre nas veias,Misturada com o sangue claro

Claro e cristalino!Vidas se entrelaçando com destino ao coração.Traves da vida em combustão.Marasmo dos dias de antanhoEm conluio com a pós-modernidade.

E tudo muito cheio de saudade!

Fica comigoLuciane Martins de AraújoMascarenhas

Sou parte de todas as coisasE todas as coisas também integram meu serO ar, a terra, as plantas, a água, o fogoO ser humano, suas obras

Aqueles que vieram antes de mimCarrego comigoUma parcela de cada umQue somados e unidos formaramUm ser diferenteMarcado de forma luminosaPrincipalmente por aqueles com os quais pudeconviver eSorver o amor, a sabedoria, a esperança, a fé

Fica comigoAquela parcela que também saiuPara integrar outros seresCom os quais convivo e dedico meu amorQue partilham um pouco de mimQue é tudo issoPara mais uma vez recriarE poder continuarComo uma sementeA incrível aventura da vida

76 Revista de Literatura da ADVOCEF

Page 77: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

77Revista de Literatura da ADVOCEF

Natal pagãoFrancisco Spisla

Confesso que nos últimos anos a época doNatal, para mim, não tem sido de muita alegria. Oscontemporizadores de plantão já estão dizendo: "-Calma. É tempo de festa, de congraçamento". Poisé. Mas me incomoda, como a muitos também, omotivo dessa festança toda. Lembro até do Natalpassado quando foi pedido a um amigo umacrônica, e ele, gentilmente, declinou dizendo quedo jeito que anda o Natal não se sentia nem umpouco animado para escrever nada. Talvez nesteano ele continue com o mesmo pensamento. E eutambém ando assim. Não sei se os anos que mepesam nas costas é que estão provocando isso, mastalvez o saudosismo também tenha alguma coisa aver. Mas me propus escrever algo porque, acima detudo, alguém tem que lembrar como deveefetivamente ser o Natal e também para fazer umacatarse e não ficar estressado, já que o quepodemos fazer fica restrito quase só à família e aosmais próximos.

Talvez seja muita pretensão, e talvez estejasendo amargo demais com minhas observações,mas se não se contar o que se passava em outrostempos, ninguém saberá por que essa data setornou uma festa pagã. E o irônico nisso é que aorigem da comemoração nesta época do ano foiuma festa pagã. O cristianismo, como forma deseduzir, ou melhor, catequizar e angariar simpatiapara sua mensagem, numa forma de sincretismo,utilizou a festa do deus Mitra que anunciava a voltado Sol em pleno inverno no hemisfério norte, comopara dizer: "- Já que vocês adoram um serinanimado, por que não adoram a Cristo, que émaior que o Sol e muito mais luminoso?" E assimforam surgindo festas, encenações, árvoresenfeitadas e o presépio, criado por Francisco deAssis, um xará meu lá dos idos de 1200, se bem quea única coisa que temos em comum é o nome, asantidade é só dele. E tudo isso para mostrarapenas uma coisa: a celebração da vida, através donascimento de Jesus Cristo.

No meu tempo de infância, fazer o presépio eenfeitar a árvore era uma das maiores e melhoresexpectativas que tínhamos. Cortar pinheirinhos ecatar barba-de-velho nas árvores hoje pode serentendido como atitudes antiecológicas, mas

naquele tempo havia compensações, comorealmente plantar outras árvores e não tirar alémdo necessário. Distribuir os personagens todos numestrado era o mesmo que brincar com osbonequinhos do forte apache, brincadeiraamainada com a santidade da tarefa. O laguinhotinha patos e peixinhos, e era feito com a lata dagoiabada cascão e tinha até água (hoje o fiscal dadengue não deixaria). O trabalho era esmerado e aise a gente quebrasse um dos bonequinhos, muitobem feitos de gesso. O que acontecia às vezes,quando inventávamos lutas para os personagens,fazendo com que no ano seguinte houvesse pastorcom uma perna só, José com a cabeça faltandopedaço e a lembrança de uma dolorida varada demarmelo. O interessante é que os três reis magos(há rei mago? Se eu fosse mago não sei se quereriaser rei e vice-versa!) iam caminhando e no dia doNatal estavam perto da manjedoura com ospresentes. O mais importante no dia do Natal era amissa do galo, à meia-noite, o único dia no ano quenossos pais deixavam ficar acordados até mais tardecrianças e adolescentes. Naqueles tempos do séculopassado, não havia essa quantidade de brinquedos.Ganhávamos um só, que serviria para brincar o anointeiro e era bem simples. Não havia essa inflação dePapais Noéis que hoje se encontra em cada esquina.O velhinho tinha uma tarefa educativa, não servia,como hoje, para vender telefones celulares e atécerveja. Quem via um Papai Noel ficava famoso, pormais que tivesse ficado agarrado nas pernas da mãeou chorasse no colo dele. Outra diversão era ficarpintando bolachas de mel com um palito e umpreparado de clara de ovo batida e anilina. E no diade Natal, cantávamos Noite Feliz com alegria real,pois era uma noite feliz.

Mas... engraçado, todas essas lembranças estãome dando uma certa tranquilidade, me deixandofeliz. Acho que se quando era criança tudo issoacontecia, por que eu não posso hoje fazer comomeus pais faziam? Chega de reclamar da épocautilitarista, do Natal pagão. Vou fazer a minhaparte. Vou fazer meu presépio e sair nas noitesatrás da estrela guia. Vou encontrar o Menino Jesuse mostrar que Ele é mais importante que o velhobarbudo.

Page 78: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

78 Revista de Literatura da ADVOCEF

Não lembro exatamente qual a idade. Lembro-me, com bastante clareza, daquele Natal na minhacidadezinha brejeira, porque naquele dia percebique o velho Noel, apesar de estar a me presentear,não era o real presenteador, mas, somente,apresentador.

E isso me vem à mente agora com muitafidelidade. Não sei bem o porquê daquelapercepção, somente lembro que alguma coisa medizia que o presente ofertado não havia sidocomprado por ele, Noel.

Pois bem, apesar da pouca idade, já medesencantava com essa estória de que alguém dáalguma coisa a outro sem qualquer interesse einduzia, por consequência, que assim ocorria,também, com o velhinho de barbas (literalmente)de algodão. A propósito, estava ele vestido muitomais apropriadamente para atuar no time doprofano pastoril encarnado - daqueles queaparecem no rabo-da-gata das festas de ruasinterioranas e do qual parecia ele o própriopalhaço comandante das umbigadas naspastorinhas (assunto proibido, comentado pelosmeus irmãos mais velhos) - do que mesmo alguémvindo do frio das neves para o calor úmido daquelePiemonte do brejo.

Mas, apenas hoje, vejo que poderia estar, decerta forma, enganado. É que a experiência nos vaimostrando que existem muitos Noéis na vida, semnecessariamente usarem daquelas espalhafatosasvestes. Mas isso é outra história, para outro dia...

A verdade é que alguns cidadãos, já bemadultos e grandinhos, têm visto, com algumafrequência, até seres extraterrestres, e alguns, maisforte ainda, declaram que foram até mesmoabduzidos. Ora, e por que eu não acreditava novelho Noel? Se nesta terra de Nosso Senhor ocorretudo isso e mais alguma coisa, por que umvelhinho vindo das neves, nem que fosse da Festadas Neves da nossa Capital, não poderia estar em

Menino é bicho infantil,né não?Leopoldo Viana Batista Júnior

nosso interiorano brejo? Vejam vocês, as minhasfantasias de criança já se dissolviam ou seconfundiam. Negava eu a máxima de que menino ébicho infantil?

Todavia, deixando ao lado o bom velhinho,lembro-me, também, de que outra coisa mechamava ainda mais a atenção naquele final detarde: era a alegria que sentia pelo recebimento emsi do presente, independentemente de quem o haviaoferecido, do seu valor financeiro ou mesmo da suaimportância visual, pois que sabia vindo dos meusqueridos pais.

Lembro de haver ficado admirado eextremamente feliz com aquele pequeno pacote.

Ilustração: Ronaldo Selistre

Page 79: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

79Revista de Literatura da ADVOCEF

Após o desembrulhar, estava o presente emum saquinho plástico transparente. Em seu interioralgumas cartelas de bingo na cor preta e branca,soltas, de madeira, com números em alto relevo eum punhado de pedras numeradas.

Não havia tabuleiro conferente ou globogiratório para misturar as pedras, somente o queacima descrevi.

Pois é, vejam vocês, o mais simples dos jogosde bingo e eu todo feliz. A curiosidade é que essefoi o primeiro presente que lembro realmentehaver recebido. E fiquei com ele, preso por umadas mãos, balançando o saco na frente de todomundo, inocentemente, com a cabeça erguida,passeando na calçada em frente lá de casa, de umlado para outro, provavelmente para que todoscompartilhassem da minha alegria e vissem o meusaquinho balançando. Imagino hoje a cena e,atenção, não proponho nenhum trocadilho!

Lembremo-nos, a tempo, repetindo-se, que,para a criança, o custo financeiro do presentepouco valor tem diante da sua representaçãoemocional, né mesmo?

De certo modo, exatamente por menino serbicho infantil, como diz o filósofo Marques Júnior,lembro-me que alguns colegas pirralhos davizinhança receberam bolas de futebol e eu, umbingo. As bolas eram daquelas vermelhasamarronzadas. Quando chutadas fortemente,principalmente em ambiente fechado - como umaboa sala -, o estalido mais parecia um tiro deespingarda soca-soca, deixando o ouvido de quemchutava zunindo e o couro do pé quase soltandode tão queimado, e, mesmo assim, estavam elestambém muito alegres com o que haviamrecebido. Hoje, creio que naquela idade meu pai jáhavia identificado em mim o jogador"exageradamente grosso" que sempre fui. Ouseria influência de minha mãe, em defesa dosvários biscuits em cima da cristaleira na sala dafrente lá de casa?

Menino é mesmo bicho infantil, né não?Apesar de desconfiar do Papai Noel, o querepresentava a ausência de uma fantasia típica daidade (isso necessita ser estudado analiticamente),estava eu extremamente feliz com um simplesbingo presenteado. Bons tempos aqueles.

É natural que ainda hoje fantasio algumascoisas, claro. Mas acho que meu pragmatismo ébem mais antigo do que pensava, né não?

Page 80: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

80 Revista de Literatura da ADVOCEF

EsperaLuiz Sergio e Silva

Chuvinha fina.A gota d'água paira sobre a folha da roseira.

Bolha pura e translúcida.Certamente, um dia, a terra dela precisará.

Por ora, esse doce afago na verde folha.

Sol.A gota evapora-se rumo ao céu.

Deixando a folha,Que amadurece e vai ao chão.

Espera.A ação da rota lenta e contínua.

Novo dia.A mesma gota d'água

Que ontem se fez vapor,Novamente cai em desejada chuva.

A folha apodreceE se entranha no solo úmido.

Terra fecunda.Passa um passarinho e semeia

O germe de um novo verde.

SilêncioManoel Messias Fernandesde Souza

Suspenso, ao longe, um céu anilado...Serenos, baixam sobre as nossas almasOs eflúvios da tarde...Não sei se estou vivoOu se sonho nesta tarde que desce...

Com o coração atado à vida(Ou quem sabe absortoNa ilusão de estar vivendo!)Contemplo calado aquelas velasQue navegam destemidasO largo rio de meu pensamento...

Entretenho-me a olhar para elasA navegarem brancas e silenciosasComo se lhes fosse a própria existênciaUma mudez infinita e as águas calmasDe um vasto rio a navegar...

Mensagem de Ano NovoFloriano Benevides de Magalhães Neto

Às vezes procuramos em coisas ou em pessoasAlgo indefinível, que não está onde procuramos,Não está nos outros, e sim em nós mesmos,Imobilizados, trancafiados, desprezados e esquecidos.

E por mais que tentemos procurar, apesar do esforço,Nunca conseguiremos encontrar em local algum,Porque perdemos o jeito de olhar para dentro de nós,Para os nossos sentimentos, prazeres e projetos,Onde verdadeiramente nos encontramosE podemos tentar tomar o leme de nossa vida.

Durante o ano há sempre a oportunidade de se refletir,Para se repensar o que passou, nossos erros e acertosRelembrar os bons momentos, perdoar e absorverO que nos magoou ou constrangeu em algum momento.

Quando se vislumbra o nascer de um Novo Ano,Temos que buscar o que nos toca fundo na alma,Numa infindável busca de uma satisfação interior,A realização dos sonhos mais ocultos e mais desejados.

A felicidade pode estar perto e não a podermos alcançarTal como o fruto bom e doce no alto de uma árvoreAo qual renunciamos por um amargo no galho mais baixo,Que com bem menos esforço podemos pegar.Aqueles sonhos que se tenta concretizar dia a dia,Aos quais não se deve permitir que o pano negro da desilusãoSe sobreponha à chama de luz que exala de cada pessoa.

Devemos seguir adiante, os amigos verdadeirosEstarão conosco, do nosso lado, a cada ano, cada diaTorcendo sempre por um Feliz Ano Novo!

Page 81: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

Amor de areia e marJosé Sotrati Junior

A cada diaA areia ansiosa

Espera pacienteO beijo das ondas

A banhar ternamenteSua face sequiosa.

A cada diaA areia sequiosaEspera ansiosa

A onda, paciente,Chegar docemente

Em sua face ardenteCom beijos roubados

Cheia de cuidadosPara ao se afastarCom ela não levar

Grãos de sua pureza.

A areia espera o marEm ondas escaldantesA se lançar delirantesSobre seu seio febril.A areia espera e senteSabe ser gratificante

Sua espera conscienteDe unir-se ao mar anil.

A areia ao sabor do ventoSabe, o mar tem seu tempo,

E ao vê-lo aproximarSabe deixar-se amar.

Vejo-te perdidaOlho-te sem jeito

Tão distraídaJunto ao parapeito.

Contemplas o marCom os olhos molhados

A lhe balançarPra todos os lados.

O mar silenciosoMas ainda agitadoOlha-te orgulhosoEstá apaixonado.

E a lágrima à toaQue surge sozinha

Percorre a proaNo mar se aninha.

E o milagre se fezSem se explicar

Esverdeou-lhe a tezCom seu verde olhar.

E o mar esverdeadoPor seus olhos ficou

Mais enamoradoTal como agora estou.

De ti me acercoE entendo o mar

Também eu me percoNo teu verde olhar.

Olhos ao marJosé Sotrati Junior

81Revista de Literatura da ADVOCEF

Page 82: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

Revista de Literatura da ADVOCEF

A moscaJosé Irajá de Almeida

82

Era um domingo chato. Lá fora uma cigarrachata, com seu assovio chato, anunciava que odomingo chato custaria a passar.

Pego meu jornal, vasculho em busca de algointeressante que mereça ser lido e, mal chego àpágina de economia, tenho minha concentraçãointerrompida por uma enorme mosca entrandopela janela da varanda emitindo ruidosos bzzz. Odomingo era dos insetos.

Era uma daquelas moscas bem verdes, suacarapaça era de um brilho tão intenso quelembrava aqueles brinquedos coloridos doParaguai. Suas asas, pequenas em relação aocorpo, vibravam freneticamente e venciam comfacilidade a lei da gravidade. Sem dúvida, era umbelo espécime do reino dos insetos.

A mosca, após alguns rasantes, pousatranquilamente sobre a página aberta do jornal evai logo disparando:

- Olá, seu humano estúpido!- Por que essa agressão gratuita? - perguntei,

depois de passado o susto.- Ora, porque vocês, humanos, são todos uns

estúpidos, inconsequentes, ignorantes que seespalham por toda a Terra e só sabem produzir lixo!

- Espera aí! - argumentei. - Só lixo, não! A raçahumana domina o planeta, mas produz muitascoisas boas também. Veja as obras monumentais emáquinas maravilhosas que já fizemos, veja oquanto a ciência está desenvolvida. As espéciesdevem evoluir e a nossa está à frente, é a maisavançada de todas.

- Bz, bz, bz - zombou a mosca verde. - O que éisso que você chama de bom? O que é isso quevocê chama de evolução? Tudo isso não passa deuma montanha de lixo. Veja o que vocês estãofazendo com o planeta nessa sua buscadesenfreada por lucro, por riquezas. Vocêsdestroem tudo, queimam as florestas, matam osanimais, contaminam o ar, as águas, e o resultado?Montes e montes de lixo!

- Mas... - tentei argumentar, sem sucesso.- E tem mais! - prosseguia a mosca arrogante. -

Esse lixo que vocês produzem é o lugar ideal paraque nós, os insetos, nos multipliquemos aosbilhões até o dia em que invadiremos suas casas e,finalmente, dominaremos o mundo!

Ora, ora, uma mosca fascista, era só o que mefaltava! - pensei.

Tentando assumir o controle do debate,argumentei com veemência:

- Ainda assim somos os mais evoluídos e osúnicos que podem resolver esses problemas emudar o curso da história. Os programas dereciclagem de lixo estão em plena evolução, logoseremos capazes de reaproveitar toda a sujeiraque produzimos. Grandes usinas de reciclagemestão sendo construídas mundo afora. As florestasestão sendo replantadas, o uso das águas estásendo racionalizado, os mares estão sendoprotegidos da exploração predatória. Nossascrianças estão recebendo educação adequadapara aprender a proteger e zelar pelo meioambiente.

Page 83: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

83Revista de Literatura da ADVOCEF

- Bzzzzz, bzzzz, bzzzz! - a mosca quaseexplodiu de tanto rir. - Você é um sonhador, meuamigo! Olhe à sua volta, pergunte quantas pessoasseparam o lixo em suas casas, pergunte emquantas cidades há coleta seletiva e eficiente.Olhe as florestas tombando e ardendo em chamas,olhe os mares sujos de óleo. Perceba esse calorescaldante. Perceba a fúria do vento, não há maisárvores para detê-lo. E vocês, "evoluídos", são osgrandes responsáveis por isso!

- Nada disso! - rebati. - Os homens estãoaprendendo com seus próprios erros. Ainda hátempo para reverter a situação. A humanidadeestá despertando para a necessidade de viver emharmonia com a natureza. O mundo, em breve,será um lugar melhor para todos, inclusive serálivre de doenças e pragas como você.

- Duvide-o-dó! - debochou minha amiguinhaverde. E por falar em doenças, deixe-me contaralgo sobre nossos grandes aliados, os vírus. Elessão nossas melhores armas nessa guerra contravocês, humanos. Assim como os insetos, elesproliferam no meio do lixo que vocês criam. Essesvírus embarcarão em nossos corpos e osespalharemos por todos os cantos da Terra!

Parei um pouco para refletir. Creio que esseserzinho verde tinha certa razão. Nós somos araça dominante, nenhum outro ser vivo é capazde pensar e criar coisas tão fantásticas como asque o homem cria; porém, nenhum outro ser vivo

é capaz de produzir tanta destruição quanto ohomem.

O homem é a única criatura que,conscientemente, mata outros seres por merocapricho. Mata, inclusive, seu próprio semelhante!Será que merecemos continuar sendo a raçadominante? Será que a humanidade é capaz deperceber o caos no qual, aos poucos, estámergulhando?

Reflexões à parte, a mosquinha neofascistacontinuava seu discurso inflamado:

- A humanidade está com os dias contados,meu rapaz! Seu destino está traçado. Continuem apoluir o ar até o dia em que a atmosfera se tornevenenosa, aí eu quero ver vocês respirarem. Queágua você irão beber? Água contaminada porresíduos de esgoto e de petróleo? E para asdoenças, vocês criarão vacinas? Bz, bz, bz... Paracada vacina que vocês criam, surge um novo emais resistente vírus. É só uma questão de tempo,a raça humana está numa grande encruzilhada enão sabe como agir, ou não quer agir. O fim é seufuturo. Então nós, os insetos, únicos serescapazes de sobreviver nesse caos, assumiremos ocontrole, o mundo será nosso! Nós somos osherdeiros do mundo e... não, não... espere!

Paft!!!

Page 84: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

Leopoldo Viana Batista Júnior

Passagem

Deitada lateralmente, gemia baixinho; noinstante final, absolutamente calada, como queredimida dos seus sofrimentos; como últimosmovimentos, moveu seus grandes olhos negrosem minha direção, que, lânguidos, fitaram-me, com compreensão, em despedida, esuspirou, como que transmitindo seuderradeiro adeus.

É fácil falar daquele ser, não obstante aemoção que me invade. É que fora ela, emvida, uma criatura alegre, tranquila e ciosa dassuas obrigações. Enquanto nossa verdadeiragovernanta, fora também ferrenha defensorade todos, mesmo aqueles que não eram seusfilhos, como os componentes da minha família,e o fizera com força e determinação. Emalguns momentos, porquanto personalidadedecidida e deveras protetora, reagianegativamente à presença de outras pessoasem nossa casa.

Parecia estar em vigília constante e emtodos os lugares sempre, bastava a presença deum de nós, certamente ali a encontraríamos.Passara por essa vida cercada do carinhodaqueles que a amavam, tendo oferecido, àsua maneira, as mais claras demonstrações dededicação e zelo.

Desde muito nova, mostrara-se facilitadoraaos relacionamentos consigo e com aquelescom quem convivera. Colocara, nesse mundo,registre-se que sozinha - pois seu parceirosequer deles tomou conhecimento -, trêsrebentos que muito cedo seguiram seuspróprios destinos, o que a fizera, mesmo queraramente, mostrar-se macambúzia.

Possuíra imensa capacidade de expressão ecomunicação. É bem verdade que não

necessitava sequer da verbalização para fazê-lo. Comunicava-se com as expressões dos seusolhos redondos e do seu corpo, quandogesticulava parcimoniosa e graciosamente.Raras vezes, observei expressões tristes quedescobriam levemente seus alvos dentes.

Amiga, companheira, boa índole e sanguebom seriam qualidades que facilmente nelacabiam. Todavia, onde estivesse dominava seussemelhantes com imensa rapidez. Bastava umseu olhar, um contato mais amiúde, e logoestava ela a continuar como centro dasatenções, reinando. Tivera uma ajudante deordens, que, malgrado mais nova, partiradeste mundo mais cedo que ela própria,deixando-a reconhecidamente triste por algumtempo. Parecia que o destino insistia em deixá-la, como deixou, sozinha.

Ao final de sua vida, tendo passado portodos os momentos que um ser de boa cepapoderia obter, recebera a provação de suportarum câncer ósseo, devastador, rapidamentealastrado por seu organismo, que a fez sofrerpor alguns dias até sua passagem definitivadesta vida.

Com o carinho que o momento permitia ecom a face molhada por algumas teimosaslágrimas, depositei seu corpo velhinho e inerte,agora descansado, ao pé de um majestosocoqueiro, e roguei que, doravante, sua imensaenergia positiva se transformasse em alimentopara aqueles que venham a possuir o privilégiode provar dos frutos daquela árvore. Além domais, a cada suave brisa, o leve balouçar dasverdes folhas da palmeira, e seu farfalharcaracterístico, trará em mim a lembrança,Lassie, da sua existência.

84 Revista de Literatura da ADVOCEF

Page 85: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

85Revista de Literatura da ADVOCEF

Perdidos na velocidade do som e da luzDos faróis dos carros e das bebidas vividasDos vãos da noite e do medo da cidade escondidaDos fantasmas do cais e da calmaria da brisa perdida.

Já são negros os sonhosE de ventos de areia todos os ritosA pairar o silêncio e o vazio das luasDa contramão abatida, perdida, esquecidaDa garrafa vazia surge a fria poesia concreta das ruas.

Da bala que vem com o tempo o cruzamento da históriaNa gíria dos meninos sonhadores e nas camisas furadasHá uma placa de PARE meio embriagada na memóriaCalada e despedaçada na fala muda de pais frustrados

Da vida já basta toda elaTudo é um duro aprendizadoEntre o poste e o meio fioHá uma vida cortadaOh meu filho! O que tu fizeste com tua estrada?

As luzes piscam freneticamenteComo em uma Rave com música sincopadaOs fliperamas caducaram com seus designs brilhantesOlha as belas meninas maquiadas na calçadaE o meu pobre autorama do Ayrton Senna lá em casa.Cuba Libre! Gin, chop, Pitu, Ballantines,Negroni, Dry Martine, Cosmopolitan,Gasolina, Álcool e Óleo Diesel.

"Há que endurecer sem perder la ternura"Ainda guardo o pôster do Che GuevaraOh, é minha linda chica rubra!Te abracei mãe na escada e tu me dizes quase chorando:

PARE,PARE,PARE

A vida é feita de muitas cobranças e culpasPara elas inventamos muita insensatez e desculpasPara cada culpa um rol de cinquenta desculpasPara cada desculpa um rol de mais cinquenta e umaculpas

A balança pesa e a idade chegaE com elaMais culpas e desculpas e culpas e desculpasA vida poderia ser considerada perversa

Se a resposta não estivesse nas ligações nervosasDe nossos neurônios máximosNo recôndito de um cérebro controvertido e complexo

Especialista (como nós) em esconder sentimentosEmbaixo do tapete e nas vielas neuronaisEspecialista em culpas e desculpas

É duro sentir o que eu sinto.É fácil sentir o que eu sinto.É curto sentir o que eu sinto.É duplo sentir o que eu sinto.

Tenho um sentimento dentro do peito,talvez seja vontade mesmo de um beijo,

talvez um motivo brando, apenas,[uma esperança tímida

ou só meio cálice de viver.

É fácil sentir o que eu sinto,estou repleto de um tanto,um tanto largo e profundo,

vasto de amor, eterno em tudo.

CáliceRobério César Camilo dos Santos

Desculpas perversasMarta Faustino

Por detrás dos sinaisMilton MagalhãesParceria com Max Miller

Page 86: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

O MosquitoJayme de Azevedo Lima

O espaço era moderno, sala ampla, cadeirasconfortáveis, carpet de 50mm imitando umgramado, uma mesa enorme e três poltronaspresidenciais. Tudo embaixo das arquibancadas doestádio mais moderno do Brasil, a Arena daBaixada, sede do Furacão - o Clube AtléticoParanaense -, campeão brasileiro da viradado milênio e que, nesse ano, vinhaenfrentando dificuldades homéricas parase manter na primeira divisão.

Os atletas foram convocados para apalestra motivacional a ser dada por umsenhor de cabelos brancos, perfil atlético,um rosto forte e vincado pelo tempo, umbigode gauchesco e um par de olhosespertos, mas cansados. Os atletasprofissionais, alguns com 34 anos ou mais,todos com passagens por timesinternacionais, pela Europa, Ásia e África,grande parte formada por jovensesperançosos de uma carreira profícua.

O psicólogo apresentou opalestrante, não disse seu nome eapenas falou que ele estava ali para lhescontar uma história.

O velho agradeceu, tossiu e, de pé,começou a contar sobre a vida de um jovem queaos 17 anos era reconhecido no colégio interno ena cidade como um craque fora de série, e olha queeram os anos 60, do Brasil bicampeão do mundo, dePelé, Djalma Santos, Garrincha, Nílton Santos,Gilmar e outros que vieram a ser chamados em 1969de "feras do Saldanha". Era o tempo da bola decapotão, chuteiras de couro, trava de prego ebiqueira.

Ele sabia tudo sobre posicionamento emcampo, táticas, estratégias e treinava com afincoos fundamentos do futebol, quer fosse o passe, ocruzamento, chutes a gol de qualquer distância.Treinava dia e noite, cruzava a bola cem vezes atéacertar seguidamente a marca do "penalty". Batia

faltas como ninguém, fazia da prática o seuexercício diário.

Era ponta direita, cruzava com perfeição e nãose importava de ser garçom, de servir. Aliás, nãocruzava a bola. Quando partia em velocidade para ogol adversário, parava, cortava o zagueiro comdribles desconcertantes, em um átimo levantava acabeça e dava o passe com açúcar para osatacantes marcarem.

O padre alemão era o técnico do time e sempredizia: o Abatiá faz gols, mas quem joga mesmo é oMosquito. E não tardou para que levassem TiãoAbatiá para os coxas-brancas e pouco tempo depoisMosquito estreava no rubro-negro. Fez três gols edeu passe para mais três contra um time pequeno

86 Revista de Literatura da ADVOCEF

Ilustração: Ronaldo Selistre

Page 87: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

87Revista de Literatura da ADVOCEF

do interior, fazendo a pequena torcida vibrar.No próximo jogo já falavam de Mosquito comoum craque com visão de jogo, com postura, umfutebol limpo e, sobretudo, solidário. Nosegundo jogo não fez gol, mas deu três passesque valeram o ingresso e a vitória atleticana.

Finalmente veio o maior clássico, o Atletiba,Furacão versus Coxas, no campo deles, dosbranquelos. Jogo difícil. Mosquito já tinhacolocado os atacantes em condições diversasvezes. O empate persistia, até que aos 44minutos do segundo tempo, acossado, cansado,Mosquito lançou e, de cabeça, Sicupira marcouum golaço. Um a zero, torcida em delírio,jogadores abraçados, quando perceberamMosquito caído na área. Ao cruzar, no embateviril e jogo limpo, seu joelho bateu contra o dolateral Nilo e todos sentiram a dor e o drama deMosquito, que saiu carregado.

Na década de 60, cirurgias de joelho eramuma temeridade e problemas patelaresimpediram que Mosquito, aos 20 anos de idade,continuasse no futebol. Entretanto,claudicando e de bengala, ele continuou suavida, formou-se em Direito e continuouajudando jovens a bater na bola com carinho, apassar com ambos os pés, a cruzar, bater faltas,a jogar com alegria, a ser solidário, a buscarvencer com humildade, com honestidade, e aviver com muito humor. Nunca mais jogou.

Disse ainda aos jogadores: "Somente a uniãode vocês, a dedicação em campo, buscando abola como se fosse um prato de comida, não terbola perdida, ter amor à camisa e respeito aotorcedor, somente assim, solidários, garçonsque sirvam ao companheiro melhor colocado, éque vocês, juntos, encontrarão o caminho davitória".

Dito isso, agradeceu e foi em direção àporta, claudicando e apoiado em uma velhabengala.

Alguns jogadores, com algumas lágrimasescorregando pelo rosto, de pé aplaudiam aovelho.

Aplaudiam Mosquito.

Page 88: 3 Contos - advocef.org.br · De Anselmo a Verdes Trigos 34 Domingo no clube 48 Homem, um eterno insatisfeito 65 Impermanência 66 Menino é ... desbravadores, eles valorizam a obra

A viagem da leituraJairdes Carvalho Garcia

"(...) E lá estava eu escalando aquelamontanha de pedra. Mochila às costas, andartrôpego, respiração ofegante, vontade férrea. Osuor, tal qual as águas do mar, ardia nos olhos,miopizando a visão. As pernas, anestesiadas pelador, insistiam na empreitada hercúlea. As mãos,esfoladas pela corda, procuravam fendas onde seagarrar. E assim foram cinquenta, cem, cento evinte metros e nada do cume. Pareciainalcançável, inatingível, inacessível. Mas oobjetivo traçado era maior. Não poderiasimplesmente desistir. Meu limite era superar atodo instante minhas próprias limitações. Súbitocomeça a chover. A água da chuva e o suor do meurosto embotam-me ainda mais a visão. As pedrasesverdeadas pelo lodo tornam-se escorregadiascomo pisos ensaboados. Pelo menos parte do meucansaço é aliviado com as águas pluviais. Obastante para me despertar um novo ânimo.Ânimo que se renova a cada centímetro deescalada e se esvai a cada tropeço ou escorregão.Já nem sei se deveria ter encarado tãomonstruosa parede natural. Será que fui louco aoaceitar tal desafio, como me alertaram?! Oesmorecimento me abate como um soco depugilista. A mochila, outrora leve como palha,torna-se pesada feito chumbo. Tenho umavontade medrosa de voltar. Mas como retornar sejá estou a tantos metros do chão?! Chorar?! Nemforças tenho. Melhor gritar! É mesmo, melhorgritar. Talvez alguém me ouça. Aprumo as pregasvocais, tomo fôlego e... Ah, que sensaçãomaravilhosa! Parece que todos os meus problemasse desfizeram no ar, como nuvens de fumaça.Sinto-me novamente um desbravador tão forte e

audacioso como Ulisses. Até a chuva, assim comoveio, foi-se. Meus braços, pernas, vistas parecemser dotados de superpoderes. Alguns minutosdepois e já estou no pico. Uma alegria esfuziantese apossa de mim. Sou, neste momento, o senhorda montanha. A emoção é tão forte que, por umátimo, me esqueço do que fui fazer ali. Osuficiente para um sono arrebatador me derrubarqual pluma naquela relva molhada. Acordoassustado com picadas de formiga e vejo que nãofoi um sonho. Eu realmente conseguira escalaraquela portentosa montanha. Domino o êxtase,abro a mochila, preparo o material ainda intacto,confiro as amarras, estico o parapente, invoco ossantos protetores do ar e... Indescritível! Voar,sentir o ar bater de encontro ao rosto, olhar doalto as paisagens minúsculas é a melhor sensaçãojá experimentada por um ser humano. Ver ospássaros planando a meu lado, tocar as nuvens,mirar o infinito do horizonte é um privilégio dedeuses. E eu me sinto, neste momento único, umdeus. Claro que um deus limitado por asasartificiais, mas mesmo assim, um deus. Só percoeste sentimento de divindade quando umatérmica imprevisível arremessa minhas asas contraa montanha de pedra. Mal tenho tempo de pensarno que fazer e vejo meu rosto frente a frenteàquela impassível crosta pétrea. Num ato de puroreflexo, tento com uma das mãos arremessar obalão reserva, mas..."

- O que é isso, meu filho? O que você estáfazendo acordado até esta hora? Deixe já esselivro e trate de dormir!

88 Revista de Literatura da ADVOCEF