29.05. taylor, charles. imaginários sociais modernos

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Introdução O problema número um da ciência social moderna foi, desde o início, a própria modernidade: esta amálgama, historicamente sem precedentes, de novas práticas e formas institucionais (ciência, tecnologia, produção industrial, urbanização), de novos modos de vida (individualismo, secula- rização, racionalidade instrumental) e de novas formas de mal-estar (alie- nação, ausência de sentido, uma sensação de dissolução social iminente). Hoje, é necessário equacionar o problema a partir de um novo ângulo: haverá aqui um único fenómeno ou deverá antes falar-se de "múl- tiplas modernidades", e o plural reflectirá então o facto de que outras culturas não-ocidentais foram modernizadas à sua maneira e não poderão entender-se de modo adequado, se tentarmos captá-las numa teoria geral que, originalmente, foi projectada tendo em mente o caso do Ocidente? Este livro explora a hipótese de que podemos arrojar alguma luz sobre os problemas originais e contemporâneos acerca da modernidade, se conseguirmos chegar a uma definição mais clara das autocompreen- sões que a constituíram. A modernidade ocidental é, nesta perspectiva, inseparável de um certo tipo de imaginário social, e as diferenças entre as múltiplas modernidades de hoje hão-de entender-se sob o ponto de vista dos divergentes imaginários sociais implicados. Esta abordagem não é idêntica àquela que se poderia centrar nas "ideias", em contraste com as "instituições", da modernidade. O imaginário social não é um conjunto de ideias; é, antes, o que possibilita, mediante a atribuição de sentido, as práticas de uma sociedade. Este ponto crucial é desenvolvido no capítulo 3. O meu objectivo é, aqui, modesto. Gostaria de esboçar uma descrição das formas do imaginário social que alicerçaram a ascensão da moderni- dade ocidental. A minha atenção centra-se nà história ocidental, e não chega a mencionar a variedade das actuais modernidades alternativas. Mas espero que uma certa definição mais estrita da especificidade ocidental nos possa ajudar a ver, com maior clareza, o que é comum às diferentes sendas da modernização contemporânea. Ao escrever isto, inspirei-me muito, sem dúvida, na obra pioneira de Benedict Anderson, no seu Imagined 11

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Introdução

O problema número u m da ciência social moderna foi, desde o início, a própria modernidade: esta amálgama, historicamente sem precedentes, de novas práticas e formas institucionais (ciência, tecnologia, produção industrial, urbanização), de novos modos de vida (individualismo, secula-rização, racionalidade instrumental) e de novas formas de mal-estar (alie-nação, ausência de sentido, uma sensação de dissolução social iminente).

Hoje, é necessário equacionar o problema a par t i r de u m novo ângulo: haverá aqui u m único fenómeno ou deverá antes falar-se de "múl-tiplas modernidades", e o plural ref lect i rá então o facto de que outras culturas não-ocidentais foram modernizadas à sua maneira e não poderão entender-se de modo adequado, se ten ta rmos captá-las numa teoria geral que, originalmente, foi projectada tendo em mente o caso do Ocidente?

Este livro explora a hipótese de que podemos arrojar alguma luz sobre os problemas originais e contemporâneos acerca da modernidade, se conseguirmos chegar a uma definição mais clara das autocompreen-sões que a consti tuíram. A modernidade ocidental é, nesta perspectiva, inseparável de u m cer to t ipo de imaginário social, e as diferenças entre as múltiplas modernidades de hoje hão-de entender-se sob o pon to de vista dos divergentes imaginários sociais implicados.

Esta abordagem não é idêntica àquela que se poderia centrar nas "ideias", em contraste com as "instituições", da modernidade. O imaginário social não é um conjunto de ideias; é, antes, o que possibilita, mediante a atribuição de sentido, as práticas de uma sociedade. Este ponto crucial é desenvolvido no capítulo 3.

O meu objectivo é, aqui, modesto. Gostaria de esboçar uma descrição das formas do imaginário social que alicerçaram a ascensão da moderni-dade ocidental. A minha atenção centra-se nà história ocidental, e não chega a mencionar a variedade das actuais modernidades alternativas. Mas espero que uma certa definição mais estrita da especificidade ocidental nos possa ajudar a ver, com maior clareza, o que é c o m u m às diferentes sendas da modernização contemporânea. Ao escrever isto, inspirei-me muito, sem dúvida, na obra pioneira de Benedict Anderson, no seu Imagine d

11

iMAtiiNÁRK >S S( M IAIS M( >1 >1 KN< )S

Communities1, e t ambém na obra de Jürgcn I labcrmas, de Mi< liacl Warner, de Pierre Rosanvallon e de outros facto que reconhecerei , à medida que o tema se for desfraldando.

A minha hipótese de base é a de que, no centro da modernidade ocidental, existe uma nova concepção da ordem moral da sociedade. Esta começou por ser apenas uma ideia nas mentes de alguns pensadores influentes, mas, mais tarde , veio a configurar o imaginário social de amplos estratos e, em seguida, de sociedades inteiras. Tornou-se agora, para nós, tão auto-evidente que temos dificuldade em vê-la como uma concepção possível ent re outras. A t ransmutação desta visão da ordem moral em nosso imaginário social é a concretização de certas formas sociais que caracterizam essencialmente a modernidade ocidental: a economia de mercado, a esfera pública e o autogoverno das pessoas, entre outras.

1 Benedict Ander son , Imagined Communities (Londres : Verso, 1991).

WÊtÊÊHtÊÊÊÊÊÊÊtÊKÊÊÊÈKÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊ

I. A ordem mor.il moderna

Começo pela nova visão da ordem moral. Esta foi formulada, com a máxima clareza, nas novas teorias do Direito Natural que emergiram no século xvii, sobretudo como uma resposta à desordem doméstica e internacional suscitada pelas guerras de religião. Grotius e Locke são ac|ui, para o nosso propósito, os mais importantes teóricos de referência.

Grotius vai buscar a ordem normativa, que está na base da sociedade política, à natureza dos membros que a constituem. Os seres humanos são agentes racionais, sociáveis, que são supostos colaborarem pacificamente para benefício mútuo.

Iniciada no século XVII, esta ideia veio, cada vez mais, a dominar o nosso pensamento político e o modo como imaginamos a nossa sociedade. Irrompe na versão de Grotius como uma teoria daquilo que a sociedade política é, ou seja, do que ela fomenta e de como ela se realiza. Mas qual-quer teoria deste tipo oferece também, de modo inevitável, uma ideia da ordem moral: diz-nos algo acerca do modo como temos de viver em conjunto na sociedade.

A imagem da sociedade é a de indivíduos que chegam a instituir uma entidade política sobre u m certo fundo moral preexistente e com certos objectivos em vista. O fundo moral é um fundo de direitos naturais; as pessoas têm já entre si algumas obrigações morais. Os fins perseguidos são certos benefícios comuns, dos quais o mais importante é a segurança.

A ideia subjacente da ordem moral realça os direitos e as obrigações que, como indivíduos, temos uns para com os outros, mesmo antes ou para além do vínculo político. As obrigações políticas encaram-se como uma extensão ou aplicação desses laços morais mais basilares. A própria autoridade política só é legítima porque é objecto do consentimento dos indivíduos (o contrato original), e este contrato cria obrigações vinculatórias, graças ao princípio preexistente de que as promessas são para cumprir.

A luz do que depois se fez com esta teoria do contrato, inclusive no final do mesmo século por meio de John Locke, surpreende até que ponto são insípidas as conclusões ético-políticas que Grotius dela extrai. Assu-mindo que os regimes legítimos existentes assentavam, em última análise,

IMAtiINÁRIOS Si XI A IS M< >DI UN< >S

cm algum consentimento deste tipo, a radicação da lcgitimld.idr polític a no consentimento não é destacada de modo a contestar as credenciais dos governos existentes; a finalidade do exercício é antes desvalorizar os motivos para insurreição que eram instigadas de forma irresponsável por zelotas confessionais. Grotius procura , pois, fornecer u m fundamento f i rme , para lá das cavilações confessionais, às regras básicas da guerra e da paz. No contexto do início do século XVII, com as suas incessantes e atrozes guerras de religião, esta ênfase era de todo compreensível.

Locke é o pr imei ro a usar esta teoria como uma justificação da revo-lução e como base para u m governo limitado. Os direitos podem agora ser seriamente alegados e defendidos em face do poder. O consentimento não é apenas u m acordo originário para insti tuir governo, mas u m direito contínuo de participar na definição dos impostos.

Nos três séculos seguintes, desde Locke até hoje, embora a linguagem do contrato se possa ter esbatido e seja usada apenas por uma minoria de teóricos, a ideia subjacente da sociedade como existindo para o benefício (mútuo) dos indivíduos e para a defesa dos seus direitos ganha uma impor-tância cada vez maior. O u seja, torna-se a visão dominante , empurrando anteriores teorias da sociedade e outras mais recentes para as margens da vida e do discurso políticos, e engendra, por isso, pretensões cada vez mais amplas sobre a vida política. A exigência do consenso originário, mediante o compromisso do consentimento na tributação de Locke, torna--se a doutrina plenamente desenvolvida da soberania popular, sob a qual agora vivemos. Á teoria dos direitos naturais acaba por gerar uma densa rede de limites à acção legislativa e executiva, graças às constituições solidamente implantadas, que se to rna ram uma característica importante da governação contemporânea. A presunção de igualdade, implícita no ponto inicial do estado de Natureza, onde as pessoas se encontram fora de todas as relações de superioridade e inferioridade' , aplicou-se em

1 N o Second Treatise on Government, J o h n Locke def iniu o es tado de Na tureza como

u m a condição "em que é r ec íp roco todo o p o d e r e t oda a jur isdição, n i n g u é m tendo mais

do que o ou t ro : is to vê-se sobre tudo no fac to de que as Cr ia turas da m e s m a espécie e

ca tegor ia nasce ram p r o m i s c u a m e n t e para todas as mesmas vantagens da Natureza , e o

u s o das mesmas faculdades seria en t r e elas igual , sem subordinação ou sujeição, a não

ser que o Senhor e M e s t r e de t u d o colocasse, p o r qualquer Declaração mani fes ta da sua

Vontade , u m sobre os o u t r o s e lhe confer isse , med i an t e u m d e c r e t o evidente e claro,

u m Di re i to indubitável ao D o m í n i o e à Soberania". Ver Locke's Two Treatises of Government,

I A ORDliM MDKAI MODI KNA

contextos ta<la vtv m.iis numerosos, desaguando em múltiplas estipulações de tratamento igual ou de nào-discriminação, que são uma parte integral das constituições bem firmadas.

Por outras palavras, durante estes úl t imos quatro séculos, a ideia de ordem moral implícita nesta visão da sociedade sofreu um duplo alargamento: em extensão (mais pessoas se regem por ela; tornou-se predominante) e em intensidade (as suas exigências são mais pesadas e mais ramificadas). A ideia passou, por assim dizer, por uma série de "redacções", cada uma delas mais rica e mais exigente do que a anterior, até ao dia de hoje.

Esta dupla expansão pode descrever-se de vários modos. O discurso moderno do direito natural começou n u m nicho algo especializado. Forneceu aos filósofos e aos teóricos legais uma linguagem para falar da legitimidade dos governos e das regras da guerra e da paz, as doutrinas inaugurais do direito internacional moderno . Mas, em seguida, começou a infil trar-se e a t ransformar o discurso noutros nichos. U m desses casos, que desempenha u m papel crucial no que aqui apresento, é o m o d o como a nova ideia da ordem moral começa a inf lect i r e reformular as descrições da providência de Deus, e a ordem que ela estabelecera entre os humanos e no cosmos.

Mais importante ainda para as nossas vidas é, hoje, o m o d o como esta ideia de ordem se to rnou cada vez mais central nas nossas noções de sociedade e de política, refazendo-as ao longo do processo. No decurso desta expansão, esta ideia converteu-se de simples teoria que animava o discurso de alguns peritos, em parte integrante do nosso imaginário social, isto é, no modo como os nossos contemporâneos imaginam as sociedades em que habitam e que man têm.

Ao migrar de u m nicho para vários, e de uma teoria para o imaginário social, a expansão é igualmente visível ao longo de u m terceiro eixo, tal como é definido pelo t ipo de exigências que esta ordem moral nos faz.

Por vezes, uma concepção da ordem moral não traz consigo uma real expectação do seu cumpr imento integral. Isto não significa ausência de expectação, pois, de ou t ro modo não seria uma ideia de o rdem moral , no sentido em que uso o te rmo. Ela encarar-se-á como algo a que se aspira: será concretizada por alguns, mas o sentido geral poderá ser o de

ed. Peter Laslett (Cambridge, Inglaterra: Cambridge University Press, 1967), par te 2, cap. 2, par. 4 , p. 287.

IMA(ÍINAkI< >S S( (CIAIS M( >I>I:KNON

que só uma minoria conseguirá efectivamente .icgul l.i, pi lo menos nas condições presentes.

Assim, o Evangelho cristão gera a ideia de uma comunidade dos santos, inspirada pelo amor por Deus, pelos outros e pela humanidade, cujos membros são refractários à rivalidade, ao ressentimento recíproco, ao amor do lucro, à ambição de mandar, e quejandos. Na Idade Média esperavam que só uma minoria de santos aspirasse realmente a esta ordem, vivendo, no entanto, num mundo muito afastado desse ideal. Mas, na plenitude do tempo, esta seria a ordem dos que se juntam em redor de Deus na disposição final. Podemos falar, aqui, de uma ordem moral, e não justamente de um ideal gratuito, porque se pensa que ela se encontra no processo de plena realização. Mas desta ainda não chegou o tempo.

Uma analogia longínqua noutro contexto residiria em certas defi-nições modernas de utopia, que nos remetem para uma feição das coisas que se podem realizar em certas condições eventualmente possíveis, mas quê entretanto servem de padrão de orientação.

Diferentes, sem dúvida, são as ordens que exigem, aqui e agora, uma efectuação mais ou menos plena. Isto pode entender-se de dois modos. Num, considera-se que a ordem está efectivada, que é subjacente ao modo normal das coisas. As concepções medievais da ordem política eram, muitas vezes, deste tipo. Na compreensão dos "dois corpos do rei", a sua existência biológica individual concretiza e exemplifica um "corpo" régio que não morre. Na ausência de circunstâncias excepcionais e escandalosa-mente desregradas, por exemplo na altura de alguma usurpação terrível, a ordem está plenamente realizada. Não nos oferece tanto uma prescrição quanto uma chave para compreender a realidade, tal como a Cadeia do Ser o faz em relação ao cosmos que nos rodeia. Fornece a chave hermenêutica para entender o real.

Mas uma ordem moral pode estar numa outra relação com a reali-dade, como ainda não realizada, antes exigindo ser integralmente levada a efeito. Fornece uma prescrição imperativa.

Resumindo estas distinções, podemos dizer que uma ideia de ordem moral ou política pode ser ou derradeira, como a comunidade dos santos, ou para o aqui e agora; e se este for o caso, ela pode ser hermenêutica ou prescritiva.

A ideia moderna de ordem, em contraste com o ideal cristão medie-val, foi, desde início, encarada como para o aqui e agora. Mas desloca-se

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I A n u m M MOKAI MODI RNA

decerto .ii) longo «I»• iini.i acuda c, de mais hermenêutica, torna-se mais prescritiva. lai como 1 <>i utilizada no seu nicho original por pensadores como Grotius e Pufendorf , oferecia uma interpretação daquilo que deve estar na base dos governos estabelecidos; estes, radicados num contrato supostamente f undador, fruíam de uma legitimidade inquestionável. A teoria do direito natural era, na sua origem, uma hermenêutica de legitimação.

Mas a teoria política pode, já com Locke, justificar a revolução, e torná-la até moralmente imperativa em certas circunstâncias; ao mesmo tempo, outras características gerais da situação moral humana facultam uma hermenêutica da legitimidade em relação, por exemplo, à proprie-dade. Mais tarde, e nesta direcção, tal noção de ordem será inserida em redacções que exigem mesmo mudanças mais revolucionárias, incluindo as relações de propriedade, reflectidas, por exemplo, em teorias influentes como as de Rousseau e Marx.

Deste modo, ao deslocar-se de u m nicho para muitos e ao migrar de teoria para imaginário social, a ideia moderna de ordem viaja ainda ao longo de u m terceiro eixo e os discursos que ela engendra estendem-se ao longo da senda que vai desde o hermenêut ico ao prescritivo. Duran te o processo, acaba por se entrosar com uma ampla série de conceitos éticos, mas o elemento comum das amálgamas resultantes é o uso essencial que fazem desta compreensão da ordem política e moral , derivada da moderna teoria do direito natural.

Esta expansão em t rês eixos é, sem dúvida, notável. Exige uma explicação; infelizmente, não faz par te das minhas intenções de focagem bastante restri ta oferecer uma explanação causal da origem do imaginá-rio social moderno. Ficarei satisfeito se conseguir clarificar algumas das formas que assumiu. Mas a própria natureza destas ajudará a focar com maior rigor os pontos da explicação causal, sobre a qual oferecerei, mais tarde, alguns pensamentos de forma não sistemática. Por agora, quero continuar a explorar as características peculiares desta ordem moderna .

U m ponto crucial que deveria ser evidente a par t i r do que foi refe-rido é que a noção de ordem moral , por m i m utilizada, vai além de uma agenda proposta de normas que deveriam governar as nossas relações mútuas e /ou a nossa vida política. O que uma compreensão da ordem moral acrescenta a uma apercepção e aceitação das normas é uma identi-ficação das características do mundo, da acção divina ou da vida humana,

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IMAGINÁMOS N< XIA IS M( > I»I UN< )S

que tornam certas formas boas c (até ao ponto assiiul.ido) r m*« ju ÍVfis Por outras palavras, a imagem da ordem inclui uma delinlç.io nào só do (jue é recto, mas do contexto em que faz sentido intentar e esperar levar a efeito (pelo menos em parte) o que é recto.

E claro que as imagens da o rdem moral que, através de uma série de transformações, descendem das inscritas nas teorias do direito natural de Grotius e Locke são um pouco diferentes das incrustadas no imaginário social da era pré-moderna . Vale a pena realçar aqui dois tipos importantes da ordem moral pré-moderna, porque podemos vê-los a ser gradualmente ultrapassados, deslocados ou marginalizados pela corrente grocio-lockeana, durante a transição para a modernidade política. U m deles baseia-se na ideia de que uma Lei que regeu u m povo desde tempos imemoriais t em dele e que, em cer to sentido, o define como povo. Esta ideia esteve, apa-rentemente, difundida entre as t r ibos indo-europeias que, em períodos diferentes, i r romperam na Europa. Foi muito poderosa na Inglaterra do século XVH sob a forma da Antiga Consti tuição e tornou-se uma das ideias nucleares que justificaram a rebelião contra o rei1.

Este caso deveria ser suficiente para mostrar que tais noções nem sempre são conservadoras no seu teor. Mas deveríamos igualmente incluir nesta categoria o sentido de ordem normativa que parece ter sido transmi-tido, através das gerações, em comunidades camponesas, que graças a ele desenvolveram u m quadro da "economia moral", a par t i r do qual poderiam criticar os f retes a eles exigidos pelos senhores ou t ambém as exacções que lhes eram feitas pelo Estado e pela Igreja2. Aqui, mais uma vez, a ideia recorrente foi, aparentemente, a de que uma originária distribuição aceitável de encargos fora deslocada por usurpação e deveria ser rejeitada.

O out ro t ipo de ordem moral organiza-se em to rno de uma noção de hierarquia na sociedade que expressa e condiz com uma hierarquia do cosmos. Estas foram, com frequência, teorizadas na linguagem eduzida do conceito platónico-aristotélico de Forma, mas a noção subjacente emerge também for temente nas teorias de correspondência: por exemplo, o rei está no seu re ino como o leão entre os animais, como a águia entre as

1 VerJ . G. A. Pocock, The Ancient Constitution and the Feudal Law, 2 . ' e d . (Cambridge,

Inglaterra: Cambr idge Universi ty Press , 1987) .

2 O t e r m o "economia mora l " foi buscar-se a E. P. Thompson , "The Moral Economy

of the English C r o w d in the Eighteenth Cen tu ry , " Past and Present 50 (1971), pp. 76-136.

I, A ( )IU >1 M M< >U Al M( >I >I UNA

aves, e assim por diante. I )esla visão deriva a ideia de que as desordens no reino humano hão de ecoar na natureza, porque está ameaçada a efectiva ordem das coisas. A noite em que Duncan foi assassinado foi perturbada pelo "queixume ouvido no ar, estranhos gritos de morte", e permaneceu escura, apesar de o dia já ter começado. Na terça-feira anterior, um fal-cão fora morto por uma coruja caçadora de ratos e, durante a noite, os cavalos de Duncan tornaram-se bravios, "resistindo à obediência, como se fizessem / guerra à humanidade3."

Nestes dois casos, sobretudo no segundo, temos uma ordem que tende a impor-se pelo curso das coisas; as violações levam a uma reacção adversa que transcende a esfera meramente humana. Trata-se, aparente-mente, de uma característica muito comum nas ideias pré-modernas da ordem moral. Anaximandro liga todos os desvios do curso da natureza à injustiça, e diz que tudo o que resistir à natureza há-de, por fim, "pagar reciprocamente a pena e a retribuição pela sua injustiça, segundo o juízo do tempo"4. Heraclito fala da ordem das coisas em termos semelhantes, ao dizer que se, alguma vez, o sol se desviasse do seu curso determinado, as Fúrias se apoderariam dele e o trariam de volta5. E, claro está, as Formas platónicas estão activas na configuração das coisas e dos acontecimentos no mundo da mudança.

Nestes casos, vê-se muito bem que uma ordem moral é muito mais do que um conjunto de normas; contém ainda o que se poderia chamar uma componente "ôntica", identificando características do mundo que tornam exequíveis as normas. A ordem moderna que deriva de Grotius e de Locke não é auto-realizadora no sentido invocado por Hesíodo ou Platão ou no das reacções cósmicas ao assassínio de Duncan. É, pois, tentador pensar que as nossas noções modernas de ordem moral carecem inteiramente de uma componente ôntica. Mas seria um erro. Existe uma diferença importante, mas ela reside no facto de que esta componente

3 Macbeth, 2 .3 .S6; 2.4.17-18. Ver t a m b é m Charles Tailor, Sources of the Self (Cam-bridge: Harvard Universi ty Press , 1992), p. 298 .

4 Ci tado in Louis D u p r é , Passage to Modernity ( N e w Haven: Yale Univers i ty Press, 1993), p. 19.

5 " O sol não ul t rapassará os seus l imites; se o fizer, as Erínias, servas da Justiça, hão-de encontrá- lo" Citado in George Sabine, A History of Political Theory, 3.a ed . (Nova Iorque: Hol t , R inehar t and Wins ton , 1961), p. 26.

I M A G I N A M O S SOCIAIS M()|1| U N O S

é agora uma característica mais concernente .1 IIÓN, IUIUMIION, <lo que relativa a Deus ou ao cosmos, e não na suposta aUNêucia lotai <lc uma dimensão ôntica.

O que é peculiar à nossa compreensão moderna de ordem sobressai mais claramente se nos centrarmos no modo como as idealizações da teoria do direito natural diferem das que antes eram dominantes. Os imaginários sociais pré-modernos , sobretudo os de t ipo hierárquico, eram estrutu-rados por vários modos de complementaridade hierárquica. A sociedade era vista como constituída por ordens diferentes. Estas exigiam-se e complementavam-se umas às outras, mas tal não significava que as suas relações fossem verdadeiramente mútuas , porque elas não se situavam no mesmo nível. Pelo contrário, formavam uma hierarquia em que alguns t inham maior dignidade e valor do que outros. U m exemplo é a idealiza-ção medieval, muitas vezes repetida, da sociedade de t rês ordens: oratores, bellatores, laboratores — os que rezam, os que lutam e os que trabalham. E claro que cada u m precisa dos outros, mas não há dúvida de que temos aqui uma escala descendente de dignidade; algumas funções eram, na sua essência, superiores a outras.

É crucial para este tipo de ideal que a distribuição de funções seja uma par te fulcral da ordem normativa. Não se trata de cada homem ter de desempenhar as suas funções características para os outros, no pressuposto de eles terem entrado nestas relações de troca, enquanto mantemos aberta a possibilidade de que as coisas poder iam ter um arranjo diferente (por exemplo, num mundo onde todos, em par te , rezam, lutam e trabalham). Não, a própria diferenciação hierárquica é encarada como a ordem genuína das coisas. Era pa r t e da natureza ou forma da sociedade. Nas tradições platónica e neoplatónica, esta forma já actuava no mundo, e qualquer ten-tativa para o desviar dela viraria a realidade contra si mesma. A natureza da sociedade seria alterada com esta tentativa, Daí o t r emendo poder da metáfora orgânica nestas teorias mais antigas. O organismo afigura-se o lugar paradigmático das formas em acção, tentando sarar as suas feridas e curar as suas doenças. Ao mesmo tempo, o alinho das funções que ela exibe não é apenas contingente; é "normal" e justo. Q u e os pés estejam abaixo da cabeça é como deve ser.

A idealização moderna da o rdem afasta-se radicalmente desta visão. Não se trata de já não haver lugar para uma Forma de t ipo platónico em acção: em ligação com isto, qualquer distribuição das funções que uma

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I A OllDI M MORAL MODIIRNA I

.sociedade possa desenvolver e tida por contingente; justificar-se -á, ou não, de modo instrumental; não pode, por si própria, definir o bem. O princípio normativo básico é, de facto, que os membros da socie-dade satisfaçam as necessidades uns dos outros , se ajudem mutuamente , em suma, se compor tem como criaturas racionais e sociáveis que são. Complementam-se de modo recíproco. Mas a diferenciação funcional par-ticular de que necessitam para tentar fazer o que é mais eficaz não possui um valor essencial. E adventícia e potencialmente alterável. Em certos casos, pode ser meramente temporária, como acontecia com o princípio da polis antiga, e podemos então ser governantes e, ao invés, governados. Noutros casos, ela exige uma especialização vitalícia, mas não há nisso um valor inerente e todas as vocações são iguais aos olhos de Deus. Seja como for, a ordem moderna não confere nenhum estatuto ontológico à hierarquia ou a qualquer es t ru tura part icular de diferenciação.

Por outras palavras, o ponto básico da nova o rdem normativa é o respeito e o serviço recíprocos dos indivíduos que const i tuem a sociedade. As es t ru turas reais destinavam-se a servir os fins e era sob esta luz que eram ins t rumenta lmente avaliadas A diferença poderia ser ocultada pelo facto de que as ordens mais antigas garant iam também uma espécie de serviço mútuo : o clero reza pelos leigos, e os leigos defendem / t rabalham para o clero. Mas o pon to crucial é jus tamente esta divisão em tipos no seu ordenamento hierárquico, ao passo que na nova compreensão começamos com indivíduos e com a sua dívida de serviço mútuo , e as divisões desvanecem-se à medida que dispensam esta dívida de modo mais eficaz.

Assim Platão, no Livro 21 da República, infere a necessidade de uma ordem de serviço recíproco a par t i r da falta de auto-suficiência do indi-víduo. Mas bem depressa se torna claro que a es t rutura desta ordem é o ponto básico; a última dúvida elimina-se ao vermos que há-de estar em analogia e interacção com a ordem normativa na alma. Em contrapart ida, no ideal moderno, o ponto fundamental é o mú tuo respeito e serviço, to ta lmente realizado.

Aduzi duas diferenças que dist inguem este ideal do anterior, as ordens platonicamente configuradas de complementaridade hierárquica: a Forma já não actua na realidade, e a distribuição de funções já não é em si mesma normativa. Uma terceira diferença acompanha este processo. Para as teorias de derivação platónica, o serviço recíproco que as classes

IMAGINÁRIOS SOCIAIS MOI>l UNOS

prestam umas às outras, quando se encontram na rclaçao cm recta, implica levá-las à condição da sua mais elevada vir tude; de lacto, este <• o serviço que a ordem plena presta, por assim dizer, a todos os seus membros. Mas, no ideal moderno , o respeito e o serviço recíprocos visam o Comento dos nossos objectivos comuns: vida, l iberdade, sustentação de si e da família. A organização da sociedade, como acima afirmei, não é avaliada quanto à sua forma inerente, mas de modo instrumental. Podemos agora acrescentar que a organização é instrumental relativamente às condições básicas da existência como agentes livres, e não à excelência da vi r tude — embora possamos julgar que necessitamos de u m elevado grau de virtude para nela desempenhar o nosso próprio papel.

O nosso pr imeiro serviço de uns para os outros era, assim, utilizando a linguagem de uma época ulterior, o provimento da segurança colectiva, tornar as nossas vidas e a nossa propriedade seguras sob a lei. Mas também prestamos u m serviço recíproco, ao realizarmos a t roca económica. Estes dois fins principais, a segurança e a prosperidade, são agora os objectivos principais da sociedade organizada, que poderá vir a encarar-se como algo na natureza de uma troca frut ífera ent re os seus membros constitutivos. A ordem social ideal é aquela em que os nossos fins se mis turam e cada u m deles, ao reforçar-se, ajuda os outros.

Esta ordem ideal não se concebia como uma simples invenção humana. Era antes uma ordem arquitectada por Deus, na qual tudo se harmoniza de acordo com os desígnios divinos. Mais tarde, no século xvni, o mesmo modelo é projectado no cosmos, numa visão do universo enquanto con-junto de partes perfei tamente entretecidas, em que os fins de cada tipo de criatura se mis turam com os de todas as outras.

Esta ordem define a meta para a nossa actividade construtiva, na medida em que ela reside no nosso poder de a subverter ou realizar. Naturalmente , quando olhamos o todo, vemos até que ponto a ordem já se encontra realizada. Mas, ao mi ra rmos os afazeres humanos, vemos quanto dela nos desviámos e a subvertemos; ela torna-se a norma a que devemos tentar regressar.

Esta ordem concebia-se como evidente na natureza das coisas. Natu-ralmente, se consul tarmos a revelação, descobrimos t ambém a exigência aí formulada de que nos devemos ajustar a ela. Mas só a razão nos pode expressar os propósitos divinos. As coisas vivas, incluindo-nos a nós, esforçam-se por se preservar a si mesmas. Tal é a acção de Deus:

22 |

r I A ORDI M MORAI MODI UNA

l'cz I )eus o homem e plantou nele, como em todos os outros animais, um forte desejo de autopreservação, e abasteceu o mundo de coisas aptas para a l imento e vestuário e de outras precisões da vida, pô-lo ao serviço do seu desígnio, para que o homem vivesse e habitasse por algum tempo sobre a face da Terra, e não para que esta interessante e maravilhosa peça de arte houvesse de mor re r novamente por sua própria negligência, ou ausência de necessidades.. . Deus . . . falou--lhe, (isto é) guiou-o pelos seus sentidos e pela sua razão . . . para o uso daquelas coisas que eram úteis à sua subsistência, e a ele dadas como meios da sua preservação. . . Pois, tendo o desejo, o forte desejo de preservar a sua vida e o seu ser, sido ele plantado como u m princípio de acção pelo próprio Deus, a razão, que era a voz de Deus nele, só podia ensiná-lo e garantir-lhe que, ao seguir esta natural inclinação, que ele tinha para preservar o seu ser, ele fazia a vontade do seu Criador1 .

Sendo dotados de razão, vemos que não só as nossas vidas, mas todos os seres humanos se hão-de preservar. Além disso, Deus fez de nós seres sociáveis, pelo que "cada u m está obrigado a conservar-se a si próprio, e a não abandonar arbitrariamente a sua Situação; assim, pela mesma razão, quando a sua Preservação não entra em concorrência, ele deverá, tanto quanto puder, proteger o resto da humanidade2 ."

De modo semelhante, Locke argumenta que Deus nos deu os nossos poderes de razão e de disciplina para podermos , com a máxima eficiência, tratar da tarefa da nossa autoconservação. Daí que devamos ser "Industriosos e Racionais"3. A ética da disciplina e do melhoramento é uma exigência da ordem natural que Deus planeou. A imposição da ordem pela vontade humana é também exigida pelo seu esquema.

Podemos ver, na formulação de Locke, até que ponto ele encara o serviço mútuo em termos de troca profícua. A actividade "económica" (isto é, ordenada, pacífica, produtiva) tornou-se o modelo do comporta-mento humano e a chave para a coexistência harmoniosa. Em contraste

1 Locke's Two Treatises, p a r t e 7, cap. 9, par . 86 , p. 223.

2 Ibid., pa r t e 2, cap. 2, par. 6 , p. 289; ver igua lmente p a r t e 2, cap. 11, par . 135,

p. 376; e Some Thoughts concerning Education, par . 116.

3 Locke's Two Treatises, p a r t e 2, cap. 5, par. 34, p. 309.

I ! IMAUINÁKK )S S( H IAIS M( )l)liUN( )S

com as teorias da complementaridade hierárquica, eiic<intramo nos numa zona de concórdia e de serviço mútuo, não ao ponto d< transcendermos os nossos fins e propósitos comuns, mas, pelo contrário, 110 processo de os levarmos a cabo de acordo com o desígnio de Deus.

Esta idealização estava, no início, em profunda dissonância com o modo como as coisas, de facto, aconteciam; portanto, com o imaginário social efectivo em quase todos os níveis da sociedade. A complementaridade hierárquica era o princípio segundo o qual as vidas das pessoas realmente actuavam, desde o reino à cidade, à diocese, à paróquia, ao clã e à família. Temos ainda algum sentido vivo desta disparidade no caso da família, porque só no nosso tempo é que as antigas imagens da complementaridade hierárquica entre homens e mulheres estão a ser plenamente desafiadas. Mas este é um estádio derradeiro numa longa marcha, u m processo em que a idealização moderna , avançando ao longo dos três eixos acima dis-

cu t idos , ligou e t ransformou o nosso imaginário social em quase todos os níveis, com consequências revolucionárias.

A natureza genuinamente revolucionária das consequências garantiu que aqueles que, pela primeira vez, acataram esta teoria não conseguiam ver a sua aplicação n u m conjunto de áreas que, hoje, nos parecem óbvias. A poderosa persistência das formas hierarquicamente complementares da vida — na família, entre o amo e o escravo na economia doméstica, entre o senhor e o camponês no domínio, entre a elite educada e as massas — fez surgir como eVidente que o novo princípio da ordem se deveria aplicar dentro de certos limites. Isso não foi, muitas vezes, percebido como uma restrição. O que se nos afigura como uma flagrante inconsistência, por exemplo, quando os Whigs [liberais] do século xvni defenderam o seu poder oligárquico em nome do povo, não passava, para os próprios líderes Whig, de simples senso comum.

De facto, eles inspiravam-se numa compreensão mais antiga de "povo", dimanada de uma noção pré-moderna de ordem, do primeiro t ipo acima mencionado, onde um povo é constituído como tal por uma Lei que existe desde sempre, desde tempos imemoriais. Esta Lei pode conferir a liderança a alguns elementos que assim, mui to naturalmente, falam em nome do povo. Inclusive as revoluções (ou o que consideramos como tal) no início dos tempos modernos eram levadas a cabo de acordo com esta compreensão; assim, por exemplo, os monarcómacos nas guerras

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I A (»Kl >1 M Ml >KAI M< lOFKNA

francesas de religião, que não concederam o direito à rebelião às massas desorganizadas, mas aos "magistrados subordinados". Foi esta igualmente a base da rebelião do Parlamento contra Carlos I.

Esta longa marcha está hoje, porventura, a chegar ao seu termo. Ou talvez sejamos igualmente vítimas de uma restrição mental, pela qual as gerações futuras nos acusarão de inconsistência ou hipocrisia. De qualquer modo, algumas extensões muito importantes desta jornada ocorreram há muito pouco tempo. Mencionei, a este respeito, as relações de género contemporâneas, mas devemos também recordar que, ainda não há muito, segmentos inteiros da nossa sociedade supostamente moderna permane-ciam fora deste imaginário social moderno. Eugen Weber mostrou como muitas comunidades dos camponeses franceses foram remodeladas só no final do século xix e inseridas na França como uma nação de 40 milhões de cidadãos individuais1. Esclarece em que medida o seu anterior estilo de vida dependia de modos complementares de acção que estavam longe de ser iguais, sobretudo mas não só entre os sexos; havia também o destino dos irmãos mais novos que renunciavam à sua parte da herança para man-ter íntegra e viável a propriedade da família. Num mundo de indigência e de insegurança, de escassez sempre ameaçadora, as regras da família e da comunidade eram, aparentemente, a única garantia de sobrevivência. Os modos modernos do individualismo afiguravam-se um luxo, uma complacência perigosa.

Tal é fácil de esquecer porque, depois de estarmos bem instalados no imaginário social moderno, ele afigura-se-nos o único possível, o único que faz sentido. Ao fim e ao cabo, não somos todos indivíduos? Não nos associamos em sociedade para nosso benefício mútuo? Como avaliar de outro modo a vida social?

A nossa inserção em categorias modernas leva-nos, com facilidade, a fomentar uma visão de todo distorcida do processo, e sob dois aspectos. Primeiro, tendemos a ler a progressão deste novo princípio de ordem, e a sua remoção dos modos tradicionais de complementaridade, como a ascensão do "individualismo" à custa da "comunidade". No entanto, a nova compreensão do indivíduo tem como sua inevitável vertente motriz uma nova compreensão da socialidade, a sociedade de mútuo benefício, cujas

1 Ver Eugen Weber , Peasants into Frenchmen (Londres : Chat to and W i n d u s , 1979), cap. 28.

IMAíilNÁItK )S S( >1 1 AIS M( )|>l KN< )S

diferenciações funcionais são, cm última análise, contln^i i*l«t < cujos membros são fundamentalmente iguais. Tal c o <|iic em i>n ai .1 ncnle de vista. O indivíduo afigura-se prioritário porque lemos .1 desarl icnlação tias formas mais antigas de complementaridade como a erosão da comunidade enquanto tal. Aparentemente, def rontamos um problema persistente de como induzir ou forçar o indivíduo a alguma espécie de ordem social, a conformar-se e a obedecer às regras.

Esta experiência recorrente de rup tu ra é assaz real. Mas não deveria ocultar-nos o facto de que a modernidade é t ambém o nascimento de novos princípios de socialidade. A rup tu ra ocorre, como podemos ver no caso da Revolução Francesa, porque as pessoas são expulsas das suas formas antigas — por meio da guerra , da revolução ou da brusca mudança económica — antes de conseguirem encontrar pé nas novas estruturas, isto é, associar algumas práticas t ransformadas aos novos princípios para constituir u m imaginário social viável. Mas isto não prova que o indivi-dualismo moderno seja, por sua própria essência, um factor dissolvente da comunidade, nem que a condição política moderna seja a definida por Hobbes: como resgataremos indivíduos atomizados do dilema do prisio-neiro? O problema real, recorrente, foi mais bem definido por Tocqueville ou, nos nossos dias, por François Furet .

A segunda distorção é familiar. O princípio moderno afigura-se-nos tão evidente — não somos, por natureza e por essência, indivíduos? — que somos aliciados por uma explicação "subtractiva" do advento da moder-nidade. Tivemos apenas de nos l ibertar dos horizontes arcaicos e, em seguida, a concepção da ordem de serviço mútuo foi a alternativa óbvia que nos restou. Não precisava de inteligência inventiva ou de esforço construtivo. O individualismo e o benefício mútuo são as ideias residuais evidentes que persistem, depois de nos termos livrado das religiões e metafísicas passadas.

Mas o reverso é que é verdadeiro. Os seres humanos, na maior parte da sua história, viveram em modos de complementaridade, mesclados com u m maior ou menor grau de hierarquia. Houve ilhas de igualdade, como a dos cidadãos da polis, mas surgem implantadas num mar de hierarquia, assim que as vemos de uma perspectiva mais ampla. Isto sem referir quão estranhas são estas sociedades para o individualismo moderno . Deveras surpreendente é que tenha sido possível chegar ao individualismo moderno, não apenas ao nível da teoria, mas t ambém através da transformação e

I A OKI» M MOUAI MODI UNA

da descoberta do im.i|'iiúi i<> social. Dado cjue este imaginário se coligou com sociedades de um podei sem precedentes na história humana, parece impossível e irracional tentar resistir. Mas não devemos cair no anacro-nismo de pensar que sempre assim foi.

O melhor antídoto para este e r ro é trazer, de novo, à mente algumas das fases da longa e, muitas vezes, conflituosa marcha pela qual esta teoria acabou por se apoderar da nossa imaginação. É o que em par te irei fazer, à medida que o meu argumento se expande. Nesta fase, quero condensar a discussão anterior e delinear as principais características desta compre-ensão moderna da ordem moral . Isto pode esboçar-se em três pontos, a que acrescentarei, em seguida, um quarto:

1. A idealização original desta ordem de m ú t u o benefício surge numa teoria dos direi tos e do governo legít imo. Começa com os indi-víduos e concebe a sociedade como estabelecida por m o r deles. A sociedade política é olhada como u m ins t rumen to para algo de pré-polí t ico.

Este individualismo significa uma rejeição da noção, antes predo-minante , de hierarquia, segundo a qual u m ser humano só pode ser um agente moral genuíno quando inserido numa totalidade social mais ampla, cuja verdadeira natureza deve exibir uma complementaridade hierárquica. Na sua forma original, a teoria grocio-lockeana opõe-se a todas as concepções, de que a de Aristóteles é a mais proeminente , que negam que alguém possa ser u m sujeito humano plenamente idóneo fora da sociedade.

A medida que esta ideia de ordem avança e gera novas redacções, une-se novamente a uma antropologia filosófica que, mais uma vez, define os seres humanos como seres sociais, incapazes de funcionar moralmente por si mesmos. Rousseau, Hegel e Marx fornecem os exemplos mais antigos, e são hoje seguidos por uma falange de pensadores. Mas, a meu ver, trata-se ainda de redacções da ideia moderna , porque o que elas estabelecem como uma sociedade bem ordenada incorpora, enquanto elemento crucial, relações de serviço mútuo entre indivíduos iguais. Esta é a meta , inclusive para aqueles que pensam que o indivíduo burguês é uma ficção e que o objectivo se pode alcançar só numa sociedade comunista. Mesmo vinculado a conceitos éticos antagónicos aos dos teóricos do direito natural e, na

IMAíiINÂUK >N S()('IAIS M< (I M UN( )S

realidade, mais perto do Aristóteles que eles rejeitaram, o cerne da ideia moderna continua a ser uma iJcc force no nosso mundo.

2. Como instrumento, a sociedade política capacita estes indivíduos para se ajudarem uns aos outros em benefício mútuo, ao proporcionar a segurança e ao encorajar a t roca e a prosperidade. Quaisquer dife-renciações no seio da sociedade hão-de ser justificadas por este telos [fim]; nenhuma forma, hierárquica ou não, é intrinsecamente boa.

O significado disto, como acima vimos, é que o serviço mútuo se centra nas necessidades da vida comum, e não intenta garantir aos indivíduos a suprema vir tude. Visa assegurar as suas condições de existência como agentes livres. Aqui, t ambém, redacções ulterio-res implicam uma revisão. C o m Rousseau, por exemplo, a própria liberdade torna-se a base para uma nova definição de vir tude, e uma ordem do verdadeiro benefício mútuo torna-se inseparável daquela que garante a vir tude da autodependência. Mas Rousseau e os seus seguidores ainda põem o acento tónico na garantia da liberdade, da igualdade e das necessidades da vida ordinária.

3. A teoria começa com os indivíduos, que a sociedade política deve servir.. Mais importante ainda, este serviço é definido em termos da defesa dos direitos dos indivíduos. A liberdade está no centro destes direitos. A importância da liberdade é atestada na exigência de que a sociedade política se baseia no consentimento dos que por ela estão vinculados.

Se ref lec t i rmos no contexto em que esta teoria actuava, podemos ver que a ênfase crucial posta na liberdade era sobredeterminada. A ordçm do benefício mú tuo é u m ideal a construir . Serve de guia para aqueles que querem estabelecer uma paz estável e, em seguida, refazer a sociedade para a aproximar cada vez mais das suas normas. Os proponentes da teoria já se vêem a si mesmos como agentes que, através da acção desinteressada, disciplinada, podem reformar as suas próprias vidas e t ambém a ordem social mais ampla. São entidades pessoais protegidas, disciplinadas. A actuação livre é essencial à sua autocompreensão. A ênfase nos direitos e o pr imado da liberdade entre estes não deriva jus tamente do princípio de que a sociedade deve existir por mor dos seus membros; reflecte t ambém o sentido que os seus detentores têm da sua própria actuação e da situação que esta actividade normativamente exige no mundo, a saber, a liberdade.

I A (>IU >1 M Mi »UAI M()|)l UNA

Assim, a ótica aciui operante deveria definir-se tanto nos termos desta condição de actuação como nos termos das exigências da ordem ideal. Deveríamos pensar nela como numa ética da liberdade e do mútuo benefício. Ambos os termos nesta expressão são essenciais. É por isso que o consentimento desempenha um papel tão relevante nas teorias políticas que dimanam desta ética.

Resumindo, podemos dizer que (1) a ordem do mútuo benefício vigora entre indivíduos (ou, pelo menos, agentes morais que são inde-pendentes de ordens hierárquicas mais amplas); (2) os benefícios incluem c rucialmente a vida e os meios de vida, embora a salvaguarda destes se relacione com a prática da virtude; e (3) a ordem institui-se para garantir a liberdade e expressa-se facilmente em termos de direitos. A estes pode acrescentar-se um quarto ponto:

4. Há que garantir, a todos os participantes igual acesso a estes direitos, a esta liberdade, a este benefício mútuo. O que se indica por igualdade há-de decerto variar, mas que ela deve ser de algum modo afirmada é uma consequência da rejeição da ordem hierárquica.

São estas as características cruciais, as constantes recorrentes na ideia moderna de ordem moral, ao longo das suas variadas redacções.

2. Que é ti 111 "imaginário social"?

Nas páginas anteriores utilizei, várias vezes, o t e rmo "imaginário social". Chegou, porventura , o tempo de to rnar mais claro o que aqui está implicado.

Por imaginário social entendo algo de mui to mais vasto e profundo do que os esquemas intelectuais que as pessoas podem acoitar, quando pensam, de forma desinteressada, acerca da realidade social. Estou a pensar sobretudo nos modos como imaginam a sua existência social, como se acomodam umas às outras, como as coisas se passam entre elas e os seus congéneres, as expectações que normalmente se enf ren tam, as noções e as imagens normativas mais profundas que subjazem a tais expectações.

Há importantes diferenças entre imaginário social e teoria social. Adopto o t e rmo imaginário (1) porque a minha focagem incide no modo habitual como as pessoas "imaginam" o seu ambiente social, e isto não se expressa, muitas vezes, em termos teóricos, mas apoia-se em imagens, narrativas ç lendas. Acontece t ambém que (2) a teoria é, com frequência, a posse de uma pequena minoria , ao passo que aquilo que é interessante no imaginário social é a sua partilha por largos grupos de pessoas, se não por toda a sociedade. O que leva a uma terceira diferença: (3) o imagi-nário social é a compreensão comum que possibilita práticas comuns e u m sentido de legitimidade amplamente part i lhado.

Acontece, muitas vezes, que o que começou como teorias adoptadas por umas quantas pessoas acaba por infil trar o imaginário social, pr imeiro talvez das elites, e em seguida de toda a sociedade. Foi o que sucedeu, grosso modo, às teorias de Grotius e Locke, embora as t ransformações tenham sido muitas ao longo do caminho e as formas últimas bastante variadas.

O nosso imaginário social é, em qualquer época, complexo. Incor-pora u m sentido das expectações normais que temos uns dos outros, o t ipo de compreensão c o m u m que nos possibilita levar a cabo práticas colectivas que consti tuem a nossa vida social. Isto inclui a lgum sentido do modo como todos nos ajustamos a exercitar a prática comum. Seme-lhante compreensão é, ao mesmo tempo, factual e normativa; ou seja, temos u m sentido de como as coisas habitualmente se passam, mas ele

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está entretecido com uma ideia de como cl.is deviam •.< i, «I< qu> falsos passos invalidariam a prática. Consideremos a nossa pi.illi .1 d< escolher governos mediante eleições gerais. Uma parte da compreensão de fundo que, para cada um de nós, dá sentido ao acto de votar é a nossa .»percepção da acção integral, envolvendo todos os cidadãos, em que cada um escolhe individualmente, mas entre alternativas idênticas, e estas micro-escolhas se combinam numa decisão vinculatória, colectiva. Essencial à nossa compreensão do que está implicado neste tipo de macrodecisão é a nossa capacidade de identificar o que constituiria uma infâmia: certos tipos de influência, compra de votos, ameaças e quejandos. Por outras palavras, este tipo de macrodecisão tem de satisfazer certas normas, se há-de ser o que pretende ser. Por exemplo, se uma minoria pudesse obrigar todos os outros a conformar-se com as suas ordens, o resultado deixaria de ser uma decisão democrática.

Nesta compreensão das normas está implícita a capacidade de reco-nhecer casoa ideais (por exemplo, uma eleição em que, de forma autó-noma, cada cidadão exercia ao máximo o seu juízo, em que cada um era ouvido). E, para lá do ideal, existe alguma noção de uma ordem moral ou metafísica, em cujo contexto as normas e os ideais ganham sentido.

O que eu chamo de imaginário social estende-se para lá da compre-ensão básica imediata que dá sentido às nossas práticas particulares. Não se trata de uma extensão arbitrária do conceito porque, assim como a prática sem a compreensão não faria sentido para nós e, deste modo, não seria possível, assim também esta compreensão supõe, se é para fazer sentido, uma apreensão mais ampla de toda a nossa situação: como atendemos uns aos outros, como chegámos até onde estamos, como nos relacionamos com outros grupos, e assim por diante.

Esta apreensão mais vasta não tem limites claros. Tal é a natureza peculiar daquilo que os filósofos contemporâneos descreveram como o "fundo"1 . E, de facto, no seio desta compreensão em grande parte não--estruturada e inarticulada da nossa situação global que as características particulares do nosso mundo nos mostram o sentido que elas têm. Ela nunca se pode expressar adequadamente na forma de doutrinas explícitas,

1 Ver as discussões in H u b e r t Drey fus , Being in the World (Cambr idge : M I T Press, 1 9 9 1 ) e J o h n Searle, The Construction of Social Reality (Nova Iorque: Free Press , 199S) ,que se valem da obra de Heidegger , Wi t tgens te in e Polanyi.

) Qlll í UM "IMAUINÁKIO SOCIAI"? 1

devido à sua natureza irrestrita e indefinida. Eis outra razão para aqui lalar de um imaginário, e não de uma teoria.

A relação entre as práticas e a compreensão de fundo que está por detrás delas não é, por tan to , unilateral. Se a compreensão possibilita a prática, c também verdade que a prática suporta, em ampla medida, a compreensão. Podemos, em qualquer altura, falar do "repertório" de acções colectivas à disposição de um dado g rupo da sociedade. Estas são .is acções comuns que os indivíduos sabem como empreender, desde uma eleição geral, envolvendo toda a sociedade, até ao modo de saber como iniciar uma conversa polida, mas solta, com u m grupo casual no átrio de recepção. As avaliações que temos de fazer para as levar a cabo, sabendo com quem falar, quando e como, incluem u m mapa implícito do espaço social, dos tipos de pessoas a que nos podemos associar em que modos e em que instâncias. Porventura, não inicio a conversa, se o g rupo for socialmente superior a m i m ou de categoria mais elevada ou se for cons-tituído apenas por mulheres.

Esta captação implícita do espaço social não se assemelha a uma descrição teórica de espaço, distinguindo diferentes tipos de pessoas e as normas a eles associadas. A compreensão implícita na prática está para a teoria social na mesma relação em que a minha capacidade de m e mover num ambiente familiar está para um mapa (literal) desta área. Sou muito bem capaz de me orientar, sem ter de adoptar a perspectiva da visão de conjunto que o mapa me oferece. De modo semelhante, durante a maior par te da história humana e da vida social, funcionamos graças à apreen-são que temos do reper tór io comum, sem o auxílio da visão teórica de conjunto. Os seres humanos actuaram com base num imaginário social, muito antes de alguma vez se darem ao trabalho de teorizar acerca de si mesmos2 .

2 O modo como o imaginário social se estende bem além do que foi (ou pode ser) teorizado está ilustrado na interessante discussão de Francis Fukuyama sobre a economia da confiança social. Algumas economias acham difícil construi r empresas não estatais de grande escala, porque é inexistente ou fraco um clima de confiança que se estenda além da família. O imaginário social nestas sociedades assinala discriminações — entre parentes e não parentes — para fins de associação económica que, em grande par te , passaram assaz despercebidas nas teorias da economia que todos par t i lhamos, incluindo as pessoas dessas sociedades. Os governos podem ser induzidos a adoptar políticas, alterações legais, incen-tivos, etc. , sob o pressuposto de que a formação de empresas de qualquer escala figura no

IMAíiINÁKIl >S S<)('I AIS M< )DI KN( )S

Outro exemplo poderia ajudar-nos a tornai mali < on< I< la a atnpli

tude e a profundidade desta compreensão implícita. < hyanl/amos, por exemplo, uma manifestação. Quer isto dizer que este acto se encontra já no nosso reper tór io . Sabemos como havemos de nos juntar, arranjamos bandeiras e marchamos. Sabemos que temos de permanecer dentro de certos limites, quer espacialmente (não invadimos certos espaços) quer no modo como ela impressiona os outros (a vertente de u m limiar da agressividade, não violência). Compreendemos o ritual.

A compreensão de fundo que, para nós, torna possível este acto é complexa, mas uma par te do que lhe confere sentido é uma imagem de nós mesmos como falando a outros com os quais estamos de alguma maneira relacionados — digamos, são compatriotas ou per tencem ao género humano. Há aqui um acto de fala, emissor e receptores, e alguma compreensão do modo como eles podem estar nesta relação recíproca. Há espaços públicos; já estamos nalgum tipo de conversação uns com os o'utros. Como todos os actos de fala, ele é dirigido a uma palavra já antes pronunciada em vista de uma palavra a ser proferida1 .

O modo de discurso ref lecte a base em que nos posicionamos rela-t ivamente aos nossos receptores; a acção é assertiva; visa impressionar, talvez até prenunciar certas consequências, se a nossa mensagem não for ouvida. Mas visa igualmente persuadir; persiste este lado da violência. Concebe o receptor como alguém com que se pode, e deve, argumentar.

O sentido imediato do que fazemos, levar a mensagem ao Governo ou aos nossos concidadãos de que, por exemplo, os cortes devem acabar, encaixa bem num contexto mais amplo, no qual nos vemos a nós mesmos como permanecendo numa relação contínua com outros, no qual é apropriado dirigir-nos a eles deste modo e não, digamos, com uma súplica humilde

seu r e p e r t ó r i o e necessita apenas de encora jamento . Mas o sent ido de u m a barre i ra rígida da conf iança rec íproca e m t o r n o da família p o d e res t r ing i r severamente o reper tó r io , por m u i t o que se consiga demons t ra r teor icamente às pessoas que elas poder iam te r uma situação m u i t o melhor , se mudassem o m o d o de fazer negócio. O mapa implíci to do espaço social t e m fissuras fundas , que es tão p r o f u n d a m e n t e ancoradas na cul tura e no imaginár io , para lá do alcance da co r r ecção median te u m a m e l h o r teor ia . Francis Fukuyama, Trust (Nova Iorque: Free Press , 199S).

1 Mikhai l Bakht in , Speech. Genres and Other Late Essays (Austin: Universi ty of Texas Press , 1986).

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} Q U E fi UM "IMAGINÁRIO S O C I A P P I

ou com ameaças de insurreição armada. Podemos acenar rapidamente a tudo isto dizendo que este tipo de demonstração tem o seu lugar normal numa sociedade estável, ordenada, democrática.

Não quer isto dizer que não haja casos — Manila 1985, Tiannamen 1989 - em que a insurreição armada seria perfei tamente justificada. Mas justamente o objectivo deste acto nestas circunstâncias é convidar a tirania a abrir a por ta para uma transição democrática.

Podemos ver como a compreensão do que fazemos neste exacto momen to (sem o que não poder íamos levar a cabo esta acção) tem o sentido que t em, por causa da nossa apreensão da situação mais vasta: do m o d o como cont inuamente estamos ou estivemos em relação com os ou t ros e com o poder . Isto, por seu t u r n o , abre perspectivas mais amplas sobre o lugar onde nos encont ramos no espaço e no t e m p o — a nossa relação com as outras nações e os ou t ros povos (por exemplo, com modelos ex ternos de vida democrát ica que tentamos imitar , ou de t i rania de que t en tamos distanciar-nos) — e t ambém sobre o ponto em que nos encont ramos na nossa história, na narrativa do nosso devir; reconhecemos assim esta capacidade de nos manifestarmos pacificamente como uma realização da democracia , alcançada laboriosamente pelos nossos antepassados, ou algo a cuja possibilidade efectiva aspiramos através desta acção c o m u m .

Este sentido de posicionamento no panorama internacional e na história pode ser invocado na iconografia da própria manifestação, como em Tiannamen em 1989, com as suas referências à Revolução Francesa e as suas citações do caso americano por meio da Estátua da Liberdade.

O contexto que dá sentido a qualquer acto é, assim, amplo e pro-fundo. Não inclui todas as coisas do nosso mundo , porque as caracterís-ticas relevantes que conferem sentido não podem ser delimitadas; mas podemos dizer que o dar sentido provém de todo o nosso mundo , isto é, do sentido que temos da nossa situação global no tempo e no espaço, entre os outros e na história.

U m a par te impor tante deste contexto mais amplo é aquilo a que, antes, chamei de sentido da ordem moral. C o m isto pretendo apenas sig-nificar uma apreensão das normas subjacentes à nossa prática social, que são par te da compreensão imediata que possibilita esta prática. Haverá, por isso, também um sentido, como antes afirmei, do que torna exequíveis estas normas. Também isso é uma porção essencial do contexto da acção.

! I M A C I N A u I O S s o c i a i s m o d k r n o s

As pessoas não fazem manifestações pelo impossível, pelo ulnplio 1 ou se fazem, então isso torna-se, ipso facto, uma acção algo tlileiciile P.irte do que estamos a dizer, ao marcharmos em Tiannamen, e qur uma sociedade (um pouco mais) democrática é possível, que podemos construí la, apesar do cepticismo dos nossos governantes gerontocratas.

Aquilo em que esta confiança se baseia — por exemplo, que os seres humanos podem conjuntamente defender uma ordem democrát ica, que tal está dent ro das nossas possibilidades humanas — incluirá jus tamente as imagens da o rdem moral mediante as quais compreendemos a vida e a história humanas. Deveria já ser claro, a par t i r do que antes se disse, que as nossas imagens da ordem mora l , embora possam confer i r sentido a algumas das nossas acções, não t endem necessariamente para a conci-liação com o statu quo. Podem, por isso, realçar a prática revolucionária, como em Manila e em Pequim, tal como podem subscrever a ordem estabelecida.

A moderna teoria da ordem moral infiltra-se e t ransforma gradual-mente o nosso imaginário social. Neste processo, o que originalmente é uma idealização t ransmuta-se cada vez mais num imaginário complexo, por ser assumido e associado a práticas sociais, em par te tradicionais, mas modificadas, muitas vezes, pelo contacto. Isto é crucial para aquilo que acima apelidei de extensão da compreensão da ordem moral . Não se poderia ter convertido na concepção dominante na nossa cul tura, sem esta penetração/ t ransformação do nosso imaginário.

Assistimos à ocorrência de t ransições deste t ipo, por exemplo, nas grandes revoluções fundadoras do nosso m u n d o ocidental contemporâ-neo, a Americana e a Francesa. A transição foi, na pr imei ra , mui to mais suave e menos catastrófica, porque a idealização da soberania popular se associava, de m o d o relat ivamente aproblemático, à prática existente de eleição popular de assembleias, ao passo que, na segunda, a incapacidade

1 Não quer is to d izer que as utopias não t e n h a m o seu própr io t ipo de possibilidade. P o d e m descrever regiões longínquas ou fu tu ras sociedades remotas que hoje não podem ser imitadas , que talvez nunca consigamos imitar . Mas a ideia subjacente é que estas coisas são r ea lmen te possíveis, no sent ido e m que res idem na predisposição da na tu reza humana . Tal era o que pensava o n a r r a d o r do livro de More : os habitantes da Utopia vivem de acordo c o m a na tureza . Ver Bronislaw Baczko, Les lmaginaires Sociaux (Paris: Payot, 1984), p. 75. É t a m b é m o que Platão pensou , o que fo rneceu u m dos modelos para o l ivro de More e para u m grande n ú m e r o de ou t ros escri tos "utópicos".

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(,xii i' um "imaginArio soc ia l"? !

(Ir tr.ulu/ir o mesmo |>i ineípio para um conjunto estável e consensual de práticas foi uma fonte imensa de conflitos e de incerteza, durante mais de um século. Mas, nos dois grandes acontecimentos , houve alguma cons-ciência do pr imado his tór ico da teoria, que é essencial à ideia moderna de uma revolução, pela qual nos decidimos a refazer a nossa vida política de acordo com princípios consensuais. Este const rut iv ismo tornou-se uma característ ica nuclear da moderna cu l tura política.

Quais são jus tamente as implicações, quando uma teoria pene t ra e t rans forma o imaginário social? Quase sempre as pessoas empreendem, improvisam ou são induzidas a novas práticas. Estas ganham sentido em v i r tude da nova visão, que começou por ser articulada na teoria; esta visão é o contexto que confere sentido às práticas. Por isso, a nova compreensão torna-se acesssível aos part icipantes de um modo que antes não existia. Começa por def in i r os contornos do seu m u n d o e pode , no f im de contas, vir a impor-se como a caucionada configuração das coisas, demasiado óbvia para ser digna de menção.

Mas este processo não é unilateral , u m a teoria a elaborar u m imaginário social. At r ibuindo sentido à acção, a teoria surge como aceitável, é-lhe dada, po r assim dizer, uma configuração par t icular enquanto contexto das práticas. Algo de semelhante à noção de Kant de uma categoria abstracta que se torna "esquematizada" quando é aplicada à realidade no espaço e no t empo, a teoria é esquematizada na densa esfera da prática comum 3 .

N e m o processo precisa de t e rmina r aqui. A nova prática, com a compreensão implícita que engendra, pode ser a base para modif icações da teoria que, por seu t u r n o , pode inf lect i r a prática, e assim por diante.

O que eu designo por longa marcha é u m processo pelo qual novas práticas, ou modificações de outras antigas, se desenvolvem através da improvisação em certos g rupos e estratos da população (por exemplo, a esfera pública entre as elites educadas no século xvin, os sindicatos entre os trabalhadores no século XIX), ou foram iniciadas por elites de m o d o a recru ta r uma base cada vez mais ampla (por exemplo, a organização jaco-bina das secções em Paris). De modo alternativo, no decurso da sua lenta expansão e ramificação, u m conjunto de práticas alterou gradualmente o

2 Immanuel Kant, "Von d e m Schematismus der re inen Verständnisbegriffe," in Kritik der reinen Vernunft, Edição da Academia (Berl im: Wa l t e r de Gruy t e r , 1968), 3, pp . 133-39.

I IMAUNAKH )S '.< X IAIS UNI >'.

seu significado para as pessoas e, por isso, ajudou > l oiiMlluli um novo imaginário social (a "economia"). E m todos estes < a.sos, o i< sultado foi uma profunda transformação do imaginário social nas sociedades oci-dentais e, deste modo, do mundo em que vivemos.

38

J. O espectro <lo idealismo

Que eu haja começado esta discussão da modernidade ocidental com uma ideia subjacente de ordem que foi, primeiro, uma teoria e, mais tarde, ajudou a configurar imaginários sociais, terá talvez, para alguns leitores, um sabor a "idealismo", a atribuição às ideias de uma força autónoma na história. Mas a flecha causal, essa, vai decerto na direcção contrária. A importância do modelo económico na moderna compreensão da ordem reflectirá assim o que acontece no terreno, por exemplo, a ascensão dos mercadores, das formas capitalistas de agricultura, o alargamento dos mercados. Isto fornece a explicação correcta, "materialista".

Penso que este tipo de objecção se baseia numa falsa dicotomia, a que existe entre ideias e factores materiais como agentes causais antagóni-cos. Na realidade, o que vemos na história humana são séries de práticas humanas coexistentes e concomitantes, isto é, práticas materiais levadas a cabo por seres humanos no espaço e no tempo e, muitas vezes, mantidas de forma coerciva, e simultaneamente concepções de si mesmo, modos de compreensão. Estes, como já se referiu na discussão dos imaginários sociais, são, com frequência, inseparáveis, porque as autocompreensões são a condição essencial para que a prática tenha sentido para os partici-pantes. Dado que as práticas humanas são o tipo de coisa que faz sentido, são-lhes inerentes certas ideias; não é possível distinguir as duas de modo a perguntar: o que causa o quê?

O materialismo, para ter sentido, deve formular-se de modo diferente, à maneira como G. A. Cohen faz na sua explicação magistral do materia-lismo histórico1. Uma tese do género seria a de que certas motivações são dominantes na história, as motivações por coisas materiais, por exemplo económicas, em vista dos meios de vida ou talvez do poder. Isto poderia explicar uma transformação progressiva dos modos de produção em formas "mais elevadas". Num dado caso, um certo modo exigiria certas ideias, formas legais, normas geralmente aceites e tudo o mais. Reconhece-se,

1 Ver G. A. Cohen , Karl Marx's Theory of History ( O x f o r d : O x f o r d Univers i ty Press, 1979) , a cuja análise r ecor r i nos parágrafos seguintes .

IMAGINÁMOS'SOCIAIS MODlKNOS

assim, na teoria marxista que o capitalismo plenamente • l< '(envolvido é

incompatível com as condições feudais do trabalho; ele renuri lói malmente (segundo a lei) trabalhadores livres que se podem deslocar e vender o seu trabalho, como acharem bem.

A tese materialista afirma aqui que, em tudo o que envolve o modo de produção, formas legais e ideias, e o primeiro que constitui o factor crucial. A motivação subjacente que impele os agentes a adoptar o novo modo levou-os t ambém a aceitar as novas formas legais, porque estas lhe eram essenciais. A forma da explicação é aqui teleológica, não uma ques-tão de causação eficiente. Na explicação histórica supõe-se e incorpora-se uma relação causal eficiente: porque as formas legais proporcionam o modo capitalista (causação eficiente), os agentes cujo movimento básico se dirigiu para este modo foram induzidos a favorecer as novas formas legais (mesmo se inicialmente não t inham noção do que estavam a fazer). Eis uma explicação-em-vista-de ou, por outras palavras, uma exposição teleológica. •

Deve dizer-se que o materialismo, assim formulado, se torna coe-rente , mas à custa de ser implausível enquanto princípio universal. Há muitos contextos em que podemos discernir que o motivo económico é pr imordial e explica a adopção de cer tas ideias morais, como quando os publicitários nos anos 1960 adoptaram a nova linguagem do individualismo expressivo e se v i ram, no f im de contas, compelidos aos novos ideais. Mas uma explicação em te rmos económicos da difusão da doutr ina da salvação pela fé, na época da Reforma, não é mui to plausível. A única regra geral na história é que não existe uma regra geral que identifique uma só ordem de motivação como a permanente força impulsora. As ideias surgem sempre na história envolvidas em certas práticas, mesmo se estas são apenas práticas discursivas. Mas as motivações que levam à adopção e à difusão destes conjuntos podem ser mui to variadas; na reali-dade, nem sequer é claro que tenhamos uma tipologia de tais motivações (económicas versus políticas versus ideais, etc.), que seja válida ao longo da história humana.

Mas, jus tamente porque as ideias surgem em tais conjuntos , dizer alguma coisa sobre o modo como a nova ideia de ordem mora l adquiriu a força que lhe pe rmi t iu conf igurar os imaginários sociais da moderni -dade, poderá ser úti l e dissipar t a m b é m todo o mal-es tar a propósito do idealismo.

f O I M'l <TH<> I X ) 11)1 Al ISMO

Já mencionei um contexto, onde de certa forma reside a origem desta ideia moderna de o rdem, nas práticas discursivas dos teóricos que reagiam à destruição ocasionada pelas guerras de religião. O seu fito era encontrar uma base estável de legitimação para lá das diferenças confes-sionais. Mas toda esta tentativa precisa de se inserir num contexto ainda mais amplo: naquilo que se poderia rotular de abrandamento ou domes-ticação da nobreza feudal, que se estendeu desde o final do século xiv até ao século xvi. Isto é, a t ransformação da classe nobre dos chefes militares semi-independentes, muitas vezes com séquitos numerosos, que em teoria deviam obediência e fidelidade ao rei mas, na prática, eram mui to capazes de usar o seu poder coercivo para todo o t ipo de fins, não sancionados pelo poder real, numa nobreza de servidores da Coroa/nação, que poder iam, muitas vezes, fornecer uma competência militar, embora já não fossem capazes de actuar independentemente neste domínio.

Na Inglaterra, a mudança ocorreu principalmente sob os Tudors, que inst i tuíram uma nobreza de novo serviço sobre o que restava da antiga casta guerreira , que devastara o reino nas Guerras das Rosas. Na França, o processo foi mais longo e mais confli tuoso, implicando a criação de uma nova noblesse de robe ao lado da velha noblesse d'épée.

Esta t ransformação alterou a autocompreensão das elites nobres e da pequena aristocracia, o imaginário social que elas t inham não de toda a sociedade, mas de si mesmas enquanto classe ou o rdem den t ro dela. Trouxe consigo novos modelos de sociabilidade, novos ideais e novas noções da formação requer ida para desempenhar o seu papel . O ideal já não era o do gue r re i ro semi- independente , o preux chevalier, com o aposto código de honra , mas o do cortesão, ac tuando j un t amen te com out ros no conselho e no serviço do poder real . O novo gent i l -homem não reivindicava, em princípio, um t re ino nas armas, mas u m a educação humaníst ica que o capacitaria para se to rna r u m governante civil. A fun-ção era agora aconselhar e persuadir , p r ime i ro , os colegas e, po r f im, o poder reinante. Era necessário cultivar as aptidões de auto-apresentação, re tór ica , persuasão, criação de amizades, aparência imponen te , aco-modada e aprazível. Se os antigos nobres viviam nas suas propr iedades rodeados de servidores, que eram seus subordinados, o novo pessoal de posição elevada t inha de actuar nas cor tes ou nas cidades, onde as relações hierárquicas e ram mais complexas, f r equen temen te ambíguas e, po r vezes, ainda indeterminadas , porque a intr iga hábil poder ia num

41

ima<;inAki< >s s(»ciais m< >i>i hn< >s

instante alçar alguém ao píncaro (o os erros podi i imi pii < ipii ti uma queda abrupta)'.

Daí a nova impor tância , para as elites, da !<n m.u,.u> humanista. I m vez de se ins t ru i r o filho para o torneio , que ele leia I la-.mo ou Castiglione, para que saiba como falar de m o d o adequado, causai' uma boa impressão, conversar de forma persuasiva com outros numa ampla variedade de situações. Esta formação fazia sentido no novo t ipo de espaço social, nos novos modos de sociabilidade, em que os filhos da nobreza e da pequena aristocracia deveriam abrir o seu caminho. O paradigma que define a nova sociabilidade não é o combate r i tual izado, mas a conversação, o discurso, o agradar, o ser persuasivo, n u m con-tex to de quase-igualdade. Não quero sugerir com isto uma ausência de hierarquia, porque a sociedade da cor te estava pejada dela, mas antes um contexto em que a hierarquia t em, em par te , de ser posta entre parêntesis por causa da complexidade, da ambiguidade e da inde termi-n a ç ã o , a n t e s referidas. Aprende-se a falar com as pessoas numa ampla série de níveis, no inter ior de cer tos constrangimentos comuns de polidez, porque isto é o que exige ser agradável e persuasivo. Não se pode chegar a nenhum lado, se se estiver sempre a puxar dos galões e a ignorar os que estão abaixo de nós, ou com a língua tão presa que não se possa falar aos que estão acima.

Estas qualidades estavam, muitas vezes, reunidas no te rmo "cortesia", cuja etimologia aponta para o espaço em que elas t inham de ser exibidas. O t e rmo era antigo, remontando à época dos trovadores e passando pela florescente corte borgonhesa do século xv. Mas o seu significado alterou--se. As cortes mais. antigas eram lugares em que os guerreiros semi--independentes se reuniam, de tempos a tempos, para torneios e exibições hierárquicas em to rno da casa real. Mas quando Castiglione escreve o seu bestseller 0 Cortesão, o contexto é a cidade-corte da Duquesa de Urbino, onde o cortesão tem a sua morada permanente e onde a sua ocupação é aconselhar o seu príncipe. A vida é uma contínua conversação.

1 Esta é a t ransição a que Michael M a n n , ao falar do caso inglês, dá o n o m e de deslocação do Estado "coordenado para o Estado orgânico" (1: 458-63) . No con t ex to dos r eg imes const i tucionais des te p e r í o d o (Inglaterra , Holanda), associa-a à cr iação do que ele chama a "classe-nação" (480) . Michael M a n n , The Sources of Social Power (Cambr idge , Inglaterra : Cambr idge Univers i ty Press , 1986).

I O ESI'I (TUODO 11)1 Al ISMO

No seu M|iinl u .itlo ulterior, cortesia veio a associar-se a out ro te rmo, "civilidade", lambem este invoca u m denso cenário.

Um elemento crucial neste relato começa na noção renascentista de civilidade, o antepassado da nossa "civilização", e com igual força. E o que nós temos e outros não, os quais carecem das excelências, dos ref inamen-tos, das realizações impor tantes que valorizamos no nosso modo de vida. Os outros eram os "selvagens". Como podemos ver a par t i r dos te rmos , o contraste sintético subjacente é entre a vida na selva e a vida na cidade.

A cidade, segundo os antigos, vê-se como o lugar da vida humana no seu melhor e mais elevado ponto . Aristóteles esclarecera que só na pólis os humanos alcançam a plenitude da sua natureza. O t e rmo civilidade está ligado à palavra latina que traduz pólis (civitas); de facto, utilizavam --se t ambém derivações da palavra grega com u m sentido in t imamente relacionado: no século xvii, os Franceses falavam de u m état policé como de algo que eles possuíam, e os sauvages não. (Mais à f rente , discuto a importância do ideal de sociedade 'polida'.)

Assim, par te do que este t e rmo designava era o modo de governo. Há que ser governado de uma maneira ordenada, sob u m código legal, segundo o qual governantes e magistrados exerciam as suas funções. Os selvagens eram encarados como desprovidos destas coisas, em vir tude da projecção neles da imagem do "homem natural". Mas aquilo de que realmente careciam era, na maior par te dos casos, das acções do que concebemos como u m Estado moderno , u m ins t rumento incessante de governação em cujas mãos se concentrava uma grande par te do poder sobre a sociedade, de modo a poder modelá-la de formas relevantes2 . Devido ao seu desenvolvimento, este Estado veio a encarar-se como uma característica definidora de u m état policé.

O modo de governo requerido pela civilidade garantia t a m b é m u m certo grau de paz doméstica. Não se harmoniza com a grosseria, com a violência aleatória e ilegítima ou com as arruaças públicas, quer ent re os jovens aristocratas quer entre o povo. Natura lmente , no princípio dos tempos modernos , estas coisas abundavam. E istó alerta-nos para uma diferença importante entre o lugar que a civilidade t inha no discurso

2 Isto inclui, mas ul t rapassa o i m p o r t a n t e "monopó l io do uso leg í t imo da força física", de que fala Max Weber . "Politics as a Vocation," H . H . G e r t h e C. W r i g h t Mills eds. , Max Weber (Nova Iorque: O x f o r d Universi ty Press , 1964) , p. 78 .

IMAtlINÁHH IS S< (CIAIS M< >1 >1 KN< )S

renascentista e aquele que a civilização detém no IIONNU I M

nossos jornais da manhã , as notícias acerca dos massacii . n.i II.. ni t no Ruanda ou do colapso do governo na Libéria, tendemos a vei m.-, n.i |»...•.. tranquila do que chamamos civilização, embora sintamos algum embai açu em dizê-lo em voz alta. U m mot im racial na nossa pátria pode per turbar a nossa equanimidade, mas depressa nos recompomos.

Na época do Renascimento, as elites entre as quais circulava este ideal t inham plena consciência de que ele não só era inexistente no estran-geiro, como estava incompleto no seu país. A gente comum, embora não ao nível dos selvagens na América e até mui to acima dos povos europeus grosseiros e marginais (por exemplo, os Irlandeses, os Russos) ' , t inha ainda u m longo caminho a percorrer . Mesmo os membros das elites governantes precisavam de ser sujeitos a uma forte disciplina em cada nova geração, como propunha em 1551 uma lei veneziana da educação pública2. A civilidade não era algo que se obtinha num cer to estádio da história e que se poderia dar por adquirido, que é o modo como tendemos a pensar acerca da civilização.

A civilidade re f l ec t i a a t rans ição que as sociedades europeias estavam a atravessar desde cerca de 1400 , e po r m i m descr i ta como a domest icação da nobreza . O novo (ou r ecen temen te redescober to ) ideal re f lec t ia u m novo esti lo de vida. Se c o m p a r a r m o s , po r exemplo, a vida da nobreza inglesa e da pequena ar is tocracia , antes das Guer-ras das Rosas, com o m o d o como viviam sob os Tudors, a di ferença é impress ionante : o combate já não é u m a pa r t e do est i lo no rma l de vida desta classe, excep to nas guer ras ao serviço da Coroa . Algo de semelhan te a este processo persis te ao longo de qua t ro séculos , até que , cerca de 1800, u m país civilizado normal é aquele que pode ga ran t i r u m a paz domés t ica cont ínua e em que o comérc io subst i tu iu , em larga medida , a g u e r r a como a act ividade p r e d o m i n a n t e com que

1 John Hale, The Civilization of Europe in the Renaissance (Nova Iorque: Macmil lan, 1993), 362. Spenser falou da "selvagem bru ta l idade e da (abominável) imundíc ie dos Ir landeses; ver Anna Bryson, From Courtesy to Civility (Oxfo rd : O x f o r d Univers i ty Press, 1998) , p. S3. U m a visão c o m u m era a de que "as pessoas grosseiras [são] po r natureza rudes , enfadonhas , descor teses , bru tas , selvagens, c o m o se fossem bárbaros" (citado in Bryson, From Courtesy to Civility, Civilization of Europe, p . 64.)

2 Hale, pp. 3 6 7 - 6 8 .

t, () I Sl'l < 11« ) l)() II )EAI ISMO

a socied.idt política si- p reocupa ou, pe lo menos , pa r t i lha a p ree-minência com a gue r r a .

Mas esta mudança não sobreveio sem resistência. Os jovens nobres eram capazes de acessos de desordem, os carnavais oscilavam na estreita linha entre a troça e a violência real, os salteadores eram numerosos, os vagabundos podiam ser perigosos, os mot ins urbanos e as sublevações camponesas, provocados pelas condições intoleráveis da vida, eram recor-rentes. A civilidade t inha de ser, até cer to ponto , u m credo mili tante.

O governo regulamentado era uma faceta da civilidade, mas havia outras: u m certo desenvolvimento das ar tes e das ciências, que hoje chamaríamos de tecnologia ( também aqui, como a nossa civilização); o desenvolvimento do autodomínio moral racional; e t ambém, de forma crucial, o gosto, as atitudes, o ref inamento — em suma, a boa educação e as boas maneiras3 .

Mas estes desenvolvimentos, não menos do que o governo regula-mentado e a paz doméstica, encaravam-se como os f rutos da disciplina e da formação. Uma imagem fundamental era a da civilidade como resultado do adestramento ou da domação de uma natureza originalmente selvagem, bruta 4 . Eis o que subjaz à etnocentricidade, para nós surpreendente , dos nossos antepassados. Por exemplo, eles não viam a sua diferença relati-vamente aos Ameríndios como a que existe entre duas culturas, assim diríamos hoje, mas como a que existe entre cultura e natureza. Nós somos adestrados, disciplinados, formados, e eles não. O cru enfrenta o cozido.

E importante não esquecer que há uma ambivalência neste contraste. Muitos eram tentados a af i rmar que a civilidade nos enerva, nos torna débeis. Talvez a elevação da vir tude se deva encontrar precisamente na natureza não adulterada5 . E, naturalmente , havia honrosas excepções a toda esta perspectiva etnocêntrica, como Montaigne6 . Mas a compreensão geral dos que pensavam dentro do contraste selvagem/adestrado, fosse qual fosse o lado para que tendiam, molda o processo que nos t rouxe do

3 Ibid., p. 366. O t e r m o "polido" é, claro es tá , o u t r o emprés t imo do t e r m o grego, t r aduz ido po r "civil".

4 Ibid., p. 367. Ver a es tá tua de Carlos V t r i u n f a n d o sobre a selvajaria.

5 Ibid., p. 369-71.

6 Ver Montaigne, "Les Cannibales ," in Essais (Paris : G a r n i e r / F l a m m a r i o n , 1969), l ivro 1, cap. 31.

IMAGINÁMOS S< (CIAIS M( >1 )| I<N( )S

pr imei ro para o segundo como implicando u m a Ni vri ih . iplm. I i|< m definiu-a como "o bordão de Circe que domava o homem i i In t.> <111< com ele eram tocados, pelo que cada u m é levado ao n-spcilo . .1 jusi.t obediência onde, antes, todos eram ferozes e desregrados1 ." C) "bordão de Circe" é uma grande imagem literária e faz com que a disciplina sadia pareça fácil, mas a segunda par te da frase indica que esta t ransformação é uma árdua caminhada. A civilidade exige o trabalho sobre si mesmo, não deixar as coisas como estão, mas elaborá-las. Implica uma luta para nos reconfigurarmos.

A compreensão que o alto Renascimento teve da cortesia aproxima-a, pois, da compreensão de civilidade2, própria da mesma época. Esta con-vergência reflecte a domesticação da aristocracia e a grande pacificação interna da sociedade sob o nascente Estado moderno (a guerra exterior era uma questão diferente). Ambas as virtudes designam as qualidades que se requerem para suscitar a coesão no novo espaço social da elite: "Pela cortesia e humanidade', todas as sociedades entre os homens são mantidas e preservadas" e "os sinais basilares da civilidade são a quietude, a concór-

d i a , o acordo, a camaradagem e a amizade." As virtudes que promovem a harmonia social .e, sobretudo, a paz incluem, tal como a civilidade, "a Cortesia, a Gentileza, a Afabilidade, a Clemência, a Humanidade"3 .

A discussão da civilidade remete-nos para uma terceira faceta da transição para uma elite pacificada. A civilidade não era uma condição natural dos seres humanos, nem era de fácil obtenção. Exigia grandes esforços de disciplina, a domação da natureza grosseira. A criança encarna a condição "natural" da ausência de lei e t em de ser trabalhada4 .

Precisamos, p.or isso, de entender a noção de civilidade não no con-tex to da domesticação da nobreza, mas relativamente à tentativa, muito mais difundida e ambiciosa, de maquilhar todas as classes da sociedade mediante novas formas de disciplina — económicas, militares, religiosas, morais — que são uma característica marcante da sociedade europeia

1 Justus Lipsius, Six Bookes of Politickes, t r ad . Wi l l i am Jones (Londres , 1S94), 17; c i tado in Hale, Civilization of Europe, p. 360.

2 Este é o processo que Bryson descreve na sua br i lhante obra From Courtesy to Civility. Aprend i m u i t o com este l ivro.

3 Ci tado in ibid., p. 70 .

4 Bryson realça igua lmen te este ponto ; ver ibid. , p. 72.

I O liSPECTKO DO II »1 Al ISMO 1

desde, pelo menos, o século xvii. Esta t ransformação foi reforçada pela aspiração a uma reforma religiosa mais completa, s imultaneamente pro-testante e católica, e pelas ambições dos Estados de alcançar maior poder mil i tar e, consequentemente, como condição necessária, uma economia mais produtiva. De facto, estes dois programas estavam, muitas vezes, interligados; os governos da Reforma viam a religião como uma boa fonte de disciplina e as Igrejas como ins t rumentos vantajosos, e muitos reformadores religiosos encararam a vida social regulamentada como a expressão essencial da conversão.

A noção puritana da vida boa, por exemplo, via no santo u m pilar de uma nova ordem social. Perante a indolência e a desordem dos monges, mendigos, vagabundos e gentis-homens ociosos, ele "entrega-se a u m negócio honesto e decoroso, e não suporta que os seus sentidos sejam mortificados com a ociosidade"5. Isto não significa uma actividade qualquer, mas aquela a que ele se entregou como vocação vitalícia. " Q u e m não tem u m negócio honesto do qual habitualmente se ocupa, e não estabelece nenhum trajecto a que se possa dedicar, não pode agradar a Deus." Assim se expressava o pregador pur i tano Samuel Hieron'1.

Estes homens são industriosos, disciplinados, fazem trabalho útil e, acima de tudo, pode confiar-se neles. "Estabeleceram trajectos" e, desse modo, são mutuamente previsíveis. Pode construir-se uma ordem social sólida, fiável, nas alianças que eles fazem uns com os outros. Não são tentados pela maldade, porque a ociosidade é a principal raiz que alimenta todo o t ipo de males: "O cérebro de u m homem ocioso depressa se torna a loja do d iabo. . . Donde nascem, nas cidades, os motins e as m u r m u r a -ções contra os magistrados? Não se pode oferecer dela uma causa maior do que a ociosidade7."

C o m tais homens, pode construir-se uma sociedade segura, bem ordenada. Mas, claro está, nem toda a gente será como eles. Todavia, o projecto puri tano pode lidar com esta dificuldade: governaria o divino, deveria ser mantido sob controlo o degenerado. O magistrado, como pen-sava Baxter, deve forçar todos os homens "a aprender a palavra de Deus e

5 H e n r y Crosse, Virtue's Commonwealth; c i tado in Michael Walzer , The Revolution of the Saints (Cambr idge , MA: H a r v a r d Universi ty Press , 196S), p. 208.

6 Ci tado in Walzer , Revolution of the Saints, pp . 211-12.

7 D o d e Cleaver, Household Government, sig. X3 ; c i tado in ibid., p. 216.

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! I M A G I N Á M O S SOCIAIS MODI U N O S

a caminhar do um modo ordenado c pacífico... <iu< • • I• . .< j , im li V.KION

a uma profissão voluntária e pessoal do cristianismo1," 1 1.1 < ii.i i.imhéin, no fundo, a mesma ordem que Calvino erigira cm (ícnchr.i

Assim, enquanto a Reforma calvinista definia a senda para .1 verdadeira obediência cristã, parecia também oferecer a solução para as graves, e até pavorosas, crises sociais da época. A regeneração espiritual e a salvação da ordem civil pareciam caminhar lado a lado.

Por outras palavras, podemos dizer que, enquanto as elites da Idade Média tardia, na tura lmente clericais, mas com uma crescente componente leiga, desenvolveram ideais de mais intensa devoção e chegaram a exigir a re fo rma da Igreja, membros das mesmas elites — ora as mesmas pessoas, ora outras — estavam a desenvolver/recuperar o ideal da civilidade, com as suas exigências de uma existência social mais ordenada, menos violenta. Havia alguma tensão entre as duas, mas t ambém simbiose. Vieram a inflectir-se reciprocamente e, na realidade, a ter tlma agenda.sobreposta.

Assim, neste contexto, por detrás do facto de que o ideal da civilidade desenvolve uma agenda activa e t ransformadora, existe uma complexa história causal. Com o tempo, é decerto reforçada pela reivindicação cada vez maior do poder mili tar e, por isso, fiscal; daí, a realização económica por populações trabalhadoras, educadas, disciplinadas. Mas, cm parte, é t ambém o resultado da simbiose e da inflexão mútua com a agenda da reforma religiosa, em que o melhoramento se chegou a encarar como um dever por si mesmo, como vemos na ética do neo-estoicismo.

Negativamente, é em parte uma tentativa de evitar perigos reais para a ordem social e, em par te , uma reacção a práticas como o carnaval e as festas de balbúrdia que t inham sido aceites no passado, mas que se torna-ram profundamente perturbadoras para os que aspiravam a novos ideais. É aqui que a simbiose com a reforma religiosa desempenha, outra vez, u m papel óbvio, porque este tipo de susceptibilidade perante a exibição per turbadora do vício foi realmente uma característica da consciência religiosa severa.

Vemos exemplos claros no campo da moralidade sexual. Em muitas partes da Europa, na Idade Média, toleravam a prostituição, que se afigurava

1 Richard Baxter , Holy Commonwealth (Londres , 1659), p. 274; c i tado in Walzer,

Revolution ojthe Saints, p . 224.

4 8

t. O I M'l ( TUO DO IIII'At ISMO

uma |)roliluM,i sensível contra o adultério e a violação, com todas as suas conseqüências disruptivas'. Inclusive, o Concílio de Constança organizou bordéis temporários para o vasto número de participantes que afluíram à cidade. Mas as novas tendências na devoção orientavam-se para a pureza sexual e visavam desviar o foco principal dos pecados da violência e da divisão social; altera-se, por isso, a atitude perante a prostituição. Torna--se inconcebível encorajá-la, mas é também profundamente perturbadora. Desponta uma espécie de fascínio-repulsa, que se expressa nos esforços difundidos e contínuos para redimir as mulheres perdidas: não se pode permit ir que isto continue; há que agir.

Como consequência, no início da Idade Moderna, as elites, sob a força conjunta destes dois ideais, viram-se cada vez mais contra uma vasta gama de práticas populares. Diminui a sua tolerância perante o que elas consideram como desordem, turbulência e violência incontrolada. O que antes se aceitava como normal é agora visto como inaceitável, e até escandaloso. Já durante o século xvi e mesmo depois, os motivos complexos, que tenho vindo a descrever, levam ao lançamento de quatro tipos de programas:

1. Promulgam-se novos tipos de leis dos pobres. Estas implicam uma importante mudança, e até inversão, do que antes acontecia. Na Idade Média, existia uma aura de santidade em torno da pobreza. Não é que esta sociedade, com uma consciência extrema da hierarquia, não tivesse um desprezo robusto pelos indigentes e incapazes no fundo absoluto da escala social. Mas, justamente por isso, a pessoa pobre oferecia uma ocasião de santificação. Segundo o discurso de Mateus 25, ajudar uma pessoa necessitada é ajudar Cristo. Uma das coisas que os poderosos deste mundo faziam para compensar o seu orgulho e as suas ofensas era presentear os pobres. Faziam-no os reis, também os mosteiros e, mais tarde, igualmente os burgueses ricos. As pessoas abastadas deixavam uma cláusula nos seus testamentos, segundo a qual, no seu enterro, se deveriam dar esmolas a um certo número de pobres, os quais, por seu turno, deveriam orar pela alma do defunto. Contrariamente ao relato do Evangelho, a oração de

2 Ver John Bossy, Christianity in the West: 1400-1700 (Oxfo rd : O x f o r d Univers i ty Press, 1985), pp . 40 -41 .

IMAGINÁRIOS SOCIAIS MOI» RNOS

Lázaro, atendida nos ccus, poderia apressai o liif.n "«xo do rico no seio de Abraão1.

Mas, no século xv, em par te como resultado «!<• um aumento da população, de más colheitas e de um consequente afluxo dos pobres às cidades, t em lugar uma mudança radical nas atitudes. Adopta-se uma nova série de leis dos pobres , cujo princípio é dis-t ingui r n i t idamente ent re aqueles que são capazes de t rabalhar e os que, em rigor, não t êm ou t ro recurso a não ser a caridade. Os pr imeiros são expulsos ou postos a t rabalhar por u m salário mui to baixo e, com frequência , em condições severas. Aos incapazes de t rabalhar há que fornecer alívio, mas novamente em condições mui to controladas, as quais, muitas vezes, acabam por implicar a reclusão em inst i tuições, semelhantes, em certos casos, a prisões. Fazem-se t a m b é m esforços para reabil i tar os filhos dos indigentes, para lhes ensinar u m mester , para torná-los membros úteis e tra-ba lhadores da sociedade2 .

Todas estas operações — fornecer trabalho, auxílio, t re ino e reabili-tação — podem implicar segregação, quer como medida de economia quer como medida de controlo. Isto inaugura o período daquilo que foi chamado, segundo Michel Foucault, legrand renfermement (a grande reclusão), que veio a englobar outras classes de pessoas desamparadas, e mormente os loucos3 .

2. O governo nacional, os governos citadinos, as autoridades eclesiásticas ou alguma combinação dos mesmos, chegaram, muitas vezes, a criticar duramente certos elementos da cultura popular: charivaris, carnaval, festas que fomentavam a barafunda, dança nas igrejas. Também aqui vemos uma inversão. O que antes se encarara como normal, e em que toda a gente estava preparada para participar, parecia agora de todo condenável e assim, num certo sentido, profundamente perturbador.

Erasmo condenou o carnaval que viu em Siena, em 1509, como não cristão, por duas razões: a primeira, porque continha "vestígios do paganismo antigo"; e a segunda, porque "as pessoas se entregavam

1 Ver Bronislaw G e r e m e k , La Poterne ou la Pitié (Paris: Gal l imard , 1987) , p. 35.

2 Ibid., p. 180.

3 Michel Foucaul t , Histoire de la Folie à l'âge classique (Paris: Ga l l imard , 1958).

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à lieeiieio.NÍdadc'"t. O puri tano clisabctano Philip Stubbes atacou "o vício horrível da dança pestífera", que levava ao "apalpar obsceno e ao toque impuro" e, por isso, se tornou "uma iniciação na prostituição, u m preparativo para a l ibertinagem, uma provocação à imundície e u m intróito para todos os tipos de lubricidade5 ."

Como Burke salienta, os homens da Igreja t inham criticado estes aspectos duran te séculos6 . Novo é (a) que o ataque religioso se tenha intensificado, por causa das novas preocupações acerca do lugar do sagrado, e (b) que o ideal de civilidade, as suas normas de disciplina, polidez e ref inamento , t enham alienado as classes dirigentes destas práticas.

3. Duran te o século xvii, estes dois tipos de acção foram subsumidos n u m terceiro: as tentativas feitas pelas es t ru turas estatais de cunho absolutista ou dirigista em desenvolvimento, na França e na Europa central , para configurar , através de ordenanças, o bem-es tar econó-mico, educativo, espiritual e material dos seus súbditos, no interesse do poder, mas t a m b é m da melhoria. O ideal de u m Polizeistaat bem ordenado foi p redominante na Alemanha, desde o século xv até ao século xviii7. O ímpe to para esta actividade dirigista adveio da si-tuação.a seguir à Reforma, em que o governante de cada te r r i tór io teve de enf ren tar a reorganização da Igreja (nas regiões protestan-tes) e de impor a conformidade (em todos os terr i tórios) . Mas as tentativas de controlo estendem-se ao século seguinte e abarcam os objectivos económicos, sociais, educativos e morais. Estes cobriam par te do campo que já explorámos: a regulamentação da assistên-cia e a supressão de algumas festas e práticas tradicionais8 . Mas,

4 Citado in Peter Burke, Popular Culture in Earlj Modem Europe (Aldershot , Inglaterra: Scholar, 1994), p. 209.

5 Ci tado in ibid., p. 212.

6 Ibid., p. 217.

7 Na tu ra lmen te , isto não significa u m "Estado policial" na acepção con temporânea . Polizei (ou t ro t e r m o derivado de polis) " t inha a conotação de adminis t ração no sent ido mais amplo, ou seja, meios inst i tucionais e p roced imen tos necessários para garan t i r à população do t e r r i t ó r io u m a existência pacífica e ordeira ." Mare Raeff , The Well-ordered Police State ( N e w Haven: Yale Universi ty Press , 1983), p. 5.

8 Ibid., pp. 61, 86-87 , 89.

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no século xvi, expandcm-se e t en tam ostabolet ei \ i >n n|,u i .iç.io, aumentar a produtividade c inculcar nos seus niiI>«III«»•• inii.i vls.io mais racional, diligente, industriosa e orientada p.ir.i .1 | u< >«tii(,.«<). A sociedade devia ser disciplinada, mas com o objectivo de induzir à autodisciplina' .

Em suma, isto significava impor algumas características do ideal de civilidade em estratos cada vez mais amplos da população. Sem dúvida, um dos motivos principais desta imposição era criar uma população da qual se pudessem extrair soldados obedientes e eficazes e os recursos para os pagar e armar. Mas muitas destas ordenanças p ropõem a melhoria (do seu ponto de vista) como u m fim em si mesmo. A medida que entramos no século xvni, os fins da legisla-ção incorporam cada vez mais as ideias do Iluminismo, pondo uma ênfase sempre maior nos aspectos produtivos e materiais da activi-dade humana, em nome dos benefícios que t rar iam aos indivíduos e à sociedade como u m todo2 .

4. Vemos todo este desenvolvimento sob outro ângulo, se olharmos para a proliferação dos modos de disciplina, dos "métodos", dos procedi-mentos. Alguns destes surgem na esfera individual como métodos de autodomínio, de desenvolvimento intelectual ou espiritual; outros são inculcados e impostos num contexto de controlo hierárquico. Foucault nota como, no século xvi, se multiplicam os programas de adestramento baseados na análise rigorosa do movimento físico, dividindo-o em partes e, em seguida, exercitando as pessoas numa forma estandardizada. Estes programas encontram-se em pr imeiro lugar nos exércitos, que inauguram novos modos de t re ino militar; em seguida, alguns dos princípios chegam a aplicar-se às escolas, aos hospitais e, mais tarde , às fábricas3.

Entre os programas metódicos que t inham em vista a t ransforma-ção do Si mesmo, u m dos mais conhecidos consistia nos exercícios espirituais de Inácio de Loiola, a meditação destinada à transformação espiritual. Mas estas duas ideias fulcrais, meditação orientada pelo

1 Ibid., p. 87.

2 Ibid., p. 178.

3 Michel Foucaul t , Surveiller et Punir (Paris: Ga l l imard , 197S), p a r t e 3, cap. 1.

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método, surgem também inesperadamente, um século mais tarde, no programa proposto por Descartes (que, no fim de contas, fora educado pelos Jesuítas em Laflèche).

Se reuni rmos estas duas facetas, vemos, por um lado, o desenvol-vimento de um novo modelo de sociabilidade de elite ligada à noção de civilidade, em que o paradigma é a conversação em condições de quase igualdade; vemos, por out ro , o projecto de alargar esta civilidade, para lá dos estratos governantes, a sectores mui to mais amplos da sociedade. Há aqui afinidades como a moderna noção de ordem moral. A sociabilidade como conversação poderia sugerir u m modelo de sociedade mais como troca recíproca do que como ordem hierárquica, ao passo que o projecto de t ransformar não-elites através da disciplina pode indicar que as carac-terísticas da civilidade não permanecerão para sempre propriedade de uma única classe, mas são susceptíveis de uma ampla difusão. Ao mesmo tempo, o próprio objectivo de t ransformação das pessoas sugere uma ruptura com as noções mais antigas de o rdem, no modo semi-platónico de uma Forma ideal subjacente ao real e actuando em vista da sua pró-pria efectuação — ou, pelo menos, f rente a tudo aquilo que a infr inge, tal como os elementos que expressavam o seu hor ror perante o c r ime de Macbeth. Harmoniza-se antes com a noção de ordem enquanto fórmula a ser efectivada em artifício construtivo, que é justamente aquilo que a ordem moderna oferece; as sociedades emergem de uma acção humana através do contrato, mas Deus forneceu-nos o modelo que devemos seguir.

Estas são afinidades possíveis, mas, s imultaneamente, há outras. Por exemplo, a sociedade como conversação pode atribuir uma nova relevância ao ideal de autogoverno republicano, como fez na Itália renascentista e, mais tarde, na Europa do Nor te , sobretudo na Inglaterra, durante e após a Guerra civil4. O u pode continuar presa dent ro daquele out ro agente de t ransformação social, o Estado monárquico "absoluto".

O que, segundo parece, impeliu decisivamente a consciência social da elite para o âmbito do imaginário social mode rno foram os desenvol-vimentos da nova sociabilidade que ocorreram no século XVI I I , sobretudo na Inglaterra, onde começaram u m pouco antes. Este per íodo assistiu a

4 Ver J. A. G. Pocock, The Machiavellian Moment (P r ince ton : P r ince ton Univers i ty Press , 1975).

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um alargamento <lo estrato social da elite, os <pi< . ,i,n nu i i • >1 v l<lo«( no governo ou na administração da sociedade, para incluli os i|iu ocupa vam essencialmente das funções económicas, quer pohjiic m membros da classe já dominante se t inham virado para estas funções, tornando-se, por exemplo, proprietários em ascensão, quer porque se abrira um lugar para comerciantes, banqueiros e, em geral, os que t inham património.

As condições de quase-igualdade têm de superar u m largo fosso. Sem gerarem a noção inteiramente contemporânea de igualdade, a com-preensão da qualidade de membro na sociedade alargou-se e separou-se da pequena aristocracia específica ou das características nobres, embora preservando a linguagem da nobreza. A compreensão alargada de civili-dade, chamada agora de "polidez", permaneceu encaminhada para o fito de suscitar harmonia e facilitar as relações sociais, mas tinha de congregar pessoas de diferentes classes e actuar em diversos locais novos, incluindo cafés, teatros e jardins1. Como na anterior ideia de civilidade, ingressar na sociedade polida implicava alargar a perspectiva pessoal e entrar num modo de estar mais elevado do que o meramente privado, mas o acento põe-se agora na virtude da benevolência e num estilo de vida menos abertamente competitivo do que o fomentado pelos antigos códigos do guerreiro ou do cortesão. A sociedade elegante do século xvin suscitou mesmo uma ética da "sensibilidade".

Este relativo distanciamento da hierarquia e a nova centralidade da benevolência aproximaram mais a época do moderno paradigma de ordem, acima descrito. Ao mesmo tempo, a inclusão das funções económicas na sociedade intensificou a afinidade entre civilidade e esta noção de ordem.

Esta transição, do século XVII I é, num certo sentido, uma transição crucial no desenvolvimento da modernidade ocidental. A sociedade polida e elegante tinha um novo tipo de autoconsciência, que se poderia cha-mar de "histórico" num novo sentido. Não estava apenas insolitamente consciente da importância das suas bases económicas; tinha também uma nova compreensão do seu lugar na história, como um modo de vida que pertencia à sociedade comercial, uma fase da história a que recentemente se tinha chegado. O século XVI I I gerou novas e gradativas teorias da histó-ria, que encaravam a sociedade humana desenvolvendo-se através de uma

1 Ver Philip Cár t e r , Men and the Emergence of Polite Society (Londres : Longman,

2001), pp . 25, 36-39.

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série de estádios, definidos pela forma da sua economia (por exemplo, de caçador recolector, agrícola), culminando na sociedade comercial contemporânea2 . Isto levou as pessoas a ver, sob u m novo prisma, toda a transição, por m i m apelidada de domesticação da nobreza e t ambém a pacificação interna das sociedades modernas. O comércio, le doux commeice, foi dotado com o poder de relegar os valores marciais e o estilo mil i tar da vida para u m papel subordinado, pondo f im à sua predominância secular na cultura humana®. As sociedades políticas já não podiam entender-se simplesmente em termos perenes; era necessário atender à época em que as coisas aconteceram. A modernidade foi uma época sem precedentes4 .

2 Ver, po r exemplo, Adam Ferguson, An Essay on the History of Civil Society (Londres : Transact ion Books, 1980).

3 Ver Alber t H i r s c h m a n n , The Passions and the Interests (P r ince ton : P r ince ton Univers i ty Press, 1977).

4 Ver L G. A. Pocock, Barbarism and Religion (Cambr idge : Cambr idge Univers i ty Press, 1999); Karen O 'Br ien , Narratives of Enlightenment (Cambridge: Cambr idge Universi ty Press , 1997); e P ier re Manen t , La Cité de l'Homme (Paris: Fayard, 1994), p a r t e 1.