taylor charles esfera publica

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    A ESFERA PBLICA

    Charles Taylor

    Traduo: Artur Moro

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    Covilh, 2010

    FICHA TCNICA

    Ttulo: A Esfera PblicaAutor: Charles TaylorTraduo: Artur Moro

    Coleco: Textos Clssicos de FilosofiaDireco da Coleco: Jos Rosa & Artur MoroDesign da Capa: Antnio Rodrigues TomComposio & Paginao: Jos M.S. RosaUniversidade da Beira InteriorCovilh, 2010

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    Nota do tradutor

    Agradeo ao editor, Joaquim Soares da Costa, a amvel autoriza-o para, desde j, se proporcionar aos cultores e apreciadores dafilosofia, portugueses e outros, a ocasio de saborear estas pginasde Charles Taylor sobre a natureza, a especificidade e a importn-

    cia da esfera pblica. O seu contedo compe o captulo 6 dovolume, Imaginrios sociais modernos, publicado em Fevereiro de2010 pela editora Texto e Grafia.

    O conhecido filsofo canadiano oferece aqui uma profunda ecristalina reflexo sobre o devir da(s) modernidade(s) que perfila(m)o Ocidente, e intercala o conceito de esfera pblica com o temado grande desenquadramento da cultura europeia relativamenteao horizonte metafsico do passado pr-moderno e com o movi-mento crescente da secularizao. O todo constitui um fresco filos-fico de reflexo poltica de grande alcance.

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    A Esfera Pblica

    Charles Taylor

    O econmico foi talvez a primeira dimenso da sociedade civil aalcanar uma identidade independente do regime poltico. Mas foiseguido, pouco depois, pela esfera pblica.

    A esfera pblica um espao comum em que, supostamente,os membros da sociedade se encontram atravs de uma variedadede meios imprensa, electrnica e tambm encontros face a face para discutirem assuntos de interesse comum e, deste modo, seremcapazes de formar a seu respeito uma mente comum. Digo umespao comum porque, embora os meios sejam mltiplos, como

    tambm as trocas que neles tm lugar, eles se encontram, suposta-mente e em princpio, em intercomunicao. A nossa discusso ac-erca da televiso atende, agora, ao que se disse no jornal da manh,que, por seu turno, se refere ao debate radiofnico de ontem, eassim por diante. Eis porque, habitualmente, falamos da esferapblica no singular.

    A esfera pblica uma caracterstica central da sociedade mod-erna, de tal modo que ela, mesmo onde , de facto, suprimida oumanipulada, tem de ser simulada. As modernas sociedades de-spticas sentiram-se, em geral, compelidas a ziguezaguear entre

    os movimentos. Editoriais nos jornais partidrios, pretendendo ex-pressar as opinies dos escritores, so propostas consideraodos seus concidados; organizam-se manifestaes de massas, pre-tendendo dar livre expresso indignao sentida de grandes nmeros

    in Imaginrios Sociais Modernos, Texto e Grafia, Lisboa, 2010, Cap. 6

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    A Esfera Pblica 5

    de pessoas. Tudo isto se passa como se estivesse a acontecer oprocesso genuno, formando uma mente comum atravs da troca,embora o resultado seja, desde incio, cuidadosamente controlado.

    Nesta discusso, recorro em particular a dois livros muito inter-essantes. Um foi publicado j h quase trinta anos, mas foi recen-temente traduzido para ingls, a saber, A transformao estruturalda esfera pblica de Jrgen Habermas, que lida com o desenvolvi-mento da opinio pblica na Europa ocidental do sculo XVIII; o

    outro uma publicao recente de Michael Warner, As cartas daRepblica, que descreve o fenmeno anlogo nas colnias ameri-canas da Gr-Bretanha1.

    Um tema central do livro de Habermas a emergncia na Eu-ropa ocidental setecentista de um novo conceito de opinio pblica.Publicaes dispersas e intercmbios de grupos pequenos ou lo-cais chegam a erigir-se como um grande debate, do qual emergea opinio pblica de uma sociedade inteira. Por outras palavras,entende-se que pessoas amplamente separadas, partilhando a mesmaviso, se associaram numa espcie de espao de discusso, no qual

    foram capazes de trocar ideias com outras e alcanar este pontofinal comum.

    Que este espao comum? uma coisa algo estranha, quandonele se pensa. As pessoas aqui envolvidas nunca, por hiptese, seencontraram, mas vem-se como ligadas num espao comum dediscusso atravs dos meios de comunicao no sculo XVIII,meios editoriais. Livros, panfletos e jornais circulavam entre opblico educado, transmitindo teses, argumentos e contra-argumentos,referidos uns aos outros e refutando-se entre si. Estes eram ampla-mente lidos e, muitas vezes, discutidos em encontros face a face,

    em salas de visitas, cafs, sales e em lugares mais (autorizada-1 Jrgen Habermas, The Structural Transformation of the Public Sphere, trad.

    Thomas Burger (Cambridge, MA: MIT Press, 1989); Original alemo: Struktur-wandel der ffentlichkeit(Neuwied: Luchterhand, 1962); Michael Warner, The

    Letters of the Republic (Cambridge, MA: Harvard University Press, 1990).

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    mente) pblicos, como o Parlamento. A viso geral daqui resul-tante, se que havia alguma, contava como opinio pblica nestenovo sentido.

    Este espao uma esfera pblica no sentido por mim aqui uti-lizado. Que uma concluso conte como opinio pblica reflecteo facto de que uma esfera pblica s pode existir, se for imaginadacomo tal. S se todas as discusses dispersas forem encaradas pe-los seus participantes como reunidas numa grande permuta, que

    tem sentido falar do seu resultado como opinio pblica. Tal nosignifica que a imaginao seja omnipotente. H condies ob-jectivas: internas, por exemplo, que as discusses locais fragmen-trias se refiram umas s outras; e externas, ou seja, deve havermateriais impressos, que circulam a partir de uma pluralidade defontes independentes, para que existam as bases do que se podedivisar como discusso comum. Como muitas vezes se referiu, aesfera pblica moderna, para prosseguir, confiou no capitalismoimpresso. Mas, como mostra Warner, a prpria imprensa, e at ocapitalismo impresso, no forneceu uma condio suficiente. Tin-

    ham de se captar no contexto cultural adequado, onde as compreen-ses comuns essenciais poderiam surgir2. A esfera pblica era umamutao do imaginrio social, crucial para o desenvolvimento dasociedade moderna. Foi um passo importante na longa marcha.

    Estamos agora numa posio algo melhor para compreenderque tipo de coisa uma esfera pblica, e porque ela era nova nosculo XVIII. , como venho dizendo, uma espcie de espao co-mum em que pessoas, que nunca se encontram, se compreendema si mesmas como expostas discusso e capazes de chegar auma mentalidade comum. Seja-me permitido introduzir uma ter-

    minologia nova. Podemos falar de espao comum quando as pes-soas se renem num acto comum de focagem em vista de qualquerpropsito, seja ele o ritual, o prazer de um jogo, uma conversa oua celebrao de um acontecimento importante. A sua focagem

    2 Warner, Letters, cap. l.

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    comum, e no apenas convergente, porque parte daquilo a que,por comum concordncia, eles assistem, o objecto ou o intentocomum, em conjunto, e no justamente a mesma coisa com quecada pessoa, por acaso, se preocupa. Nesta acepo, a opinio dahumanidade oferece uma unidade simplesmente convergente, aopasso que a opinio pblica nasce, supostamente, de uma srie deaces comuns.

    Um gnero intuitivamente compreensvel de espao comum

    estabelecido quando pessoas se renem para algum fim, seja numnvel ntimo para a conversao ou numa escala mais ampla, maispblica, para uma assembleia deliberativa, um ritual, uma cele-brao ou o prazer de um desafio de futebol ou uma pera. Oespao comum que surge do ajuntamento num certo local o queeu pretendo chamar de espao comum tpico.

    Mas a esfera pblica algo de diferente. Transcende tais es-paos tpicos. Poderamos dizer que ela agrupa uma pluralidadedesses espaos num espao mais amplo de no-assembleia. Amesma discusso pblica passa, supostamente, pelo nosso debate

    hoje, pela conversa sria de algum amanh, pela entrevista no jor-nal na quarta-feira, e assim por diante. Chamo metatpico a estetipo mais amplo de espao comum no local. A esfera pblica queemerge no sculo XVIII um espao comum metatpico.

    Tais espaos so, em parte, constitudos por compreenses co-muns; isto , no so redutveis a tais entendimentos, mas no po-dem existir sem eles. Gneros novos, sem precedentes, de espaosexigem compreenses novas e sem antecedentes. Assim acontececom a espera pblica.

    O que novo no a metatopicalidade. A Igreja e o Estado

    eram espaos metatpicos j existentes. Mas a clarificao da novi-dade traz-nos s caractersticas essenciais da esfera pblica comoum passo na longa marcha.

    Vejo-a como um passo nesta marcha, porque esta mutao noimaginrio social foi inspirada pela moderna ideia de ordem. Duas

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    caractersticas sobressaem a tal respeito. Uma j estava implicada:a sua identidade independente do poltico. A outra a sua foracomo ponto de referncia da legitimidade. A importncia das duasclarificar-se-, se recorrermos idealizao original, por exemplo,com Grotius e Locke.

    Em primeiro lugar, na idealizao de Grotius-Locke, a sociedadepoltica encara-se como um instrumento para algo de pr-poltico;existe um lugar para se estar, mentalmente, fora da poltica, a par-

    tir do qual se poderia, por assim dizer, julgar a sua aco e a suaprtica. Este o que se reflecte nos novos modos de imaginar avida social independente do poltico, a saber, a economia e a esferapblica.

    Em segundo lugar, a liberdade essencial aos direitos para cujadefesa existe a sociedade. Ao responder a esta e noo subjacentede agente, a teoria atribui grande importncia exigncia de que asociedade poltica se baseie no consentimento naqueles que por elaesto ligados.

    Ora, teorias contratuais do governo legtimo j antes tinham ex-

    istido. A novidade presente nas teorias do sculo XVII que elassituam a exigncia do consentimento num nvel mais bsico. Nose trata justamente de que um povo, concebido como j existente,tenha de dar o seu consentimento aos que pretendem govern-lo.O contrato original arranca-nos agora ao estado de natureza e, in-clusive, funda a existncia de uma colectividade que tem algumaspretenses sobre os seus membros individuais.

    Esta exigncia original de um consentimento, histrico de umavez por todas, como uma condio de legitimidade pode facilmentedesdobrar-se em exigncia de consenso corrente. O governo deve

    aliciar o assentimento dos governados no apenas originaria-mente, mas como uma condio incessante de legitimidade. Tal o que comea a pairar na legitimao da opinio pblica.

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    Estas caractersticas da esfera pblica podem clarificar-se, ar-ticulando o que novo nestes dois nveis: o que a esfera pblica

    faz; e o que ela .Primeiro, o que ela faz, ou antes, o que nela se faz. A esfera

    pblica o lugar de uma discusso que potencialmente implicatoda a gente (embora, no sculo XVIII, a exigncia implicasse ape-nas a minoria educada ou ilustrada), em que a sociedade podechegar a uma mente comum acerca de matrias importantes. Esta

    mente comum uma viso reflexiva, emanando do debate crtico,e no apenas uma soma de algumas concepes presentes na popu-lao3. Como consequncia, tem um estatuto normativo: o governodeve ouvi-la. Havia duas razes para isso, das quais uma tendia aganhar terreno e, por fim, a absorver a outra. A primeira que estaopinio ser provavelmente ilustrada e, por isso, o governo teria a

    3 Isto indica como a noo de opinio pblica, prpria do final do sculoXVIII, est longe do objecto da actual pesquisa de sondagens. O fenmenoque o estudo da opinio pblica procura medir , luz da minha distino,uma unidade convergente, e no precisa de derivar da discusso. anloga

    opinio da humanidade. A ideia que est na base da verso setecentista tardiaprovm, nesta passagem, de Burke, citado por Habermas (Structural Transfor-mation, 117-18): Num pas livre, todos os homens pensam que tm algo a vercom todos os afazeres pblicos; que tm um direito a formar e a expressar sobreeles uma opinio. Sujeitam-nos apreciao, ao exame e discusso. So cu-riosos, entusiastas, atentos e ciosos; e ao fazerem de tais assuntos os temas quo-tidianos dos seus pensamentos e das suas descobertas, grandes nmeros obtma seu respeito um conhecimento razovel, e alguns at um conhecimento muitoconsidervel. . . Noutros pases, pelo contrrio, nenhuns, a no ser os homenscujo cargo a tal os induz, se ocupam ou reflectem sobre os afazeres pblicos e,relativamente fora destes, no se atrevem a formular opinies uns com out-ros; por isso, este tipo de capacidade a extremamente raro nesta altura da vida.Nos pases livres, esta sabedoria e esta sagacidade pblica efectiva encontram-se, muitas vezes, mais nas oficinas e manufacturas do que nos gabinetes dosprncipes em pases onde ningum se atreve a ter uma opinio, at que deparecom elas.

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    prudncia de segui-la. Este enunciado de Louis Sbastien Mercier,citado por Habermas4, expressa claramente esta ideia:

    Les bons livres dpendent des lumires dans toutes les classesdu peuple; ils ornent la vrit. Ce sont eux qui dj gouvernentlEurope; ils clairent le gouvernement sur ses devoirs, sur sa

    faute, sur son vritable intrt, sur lopinion publique quil doitcouter et suivre: ces bons livres sont des matres patients qui at-tendent le rveil des administrateurs des tats et le calme de leurs

    passion.(Os bons livros dependem das luzes em todas as classes do

    povo; adornam a verdade. So eles que j governam a Europa;ilustram o governo sobre os seus deveres, os seus erros, o seu ver-dadeiro interesse, sobre a opinio pblica, que ele deve auscultar eseguir: estes bons livros so mestres pacientes que aguardam o des-pertar dos que administram os Estados e a calma das suas paixes.)

    Kant, de modo eminente, tinha uma viso similar.A segunda razo desponta com a concepo de que o povo

    soberano. O governo no , ento, apenas sbio em seguir a

    opinio; est tambm moralmente obrigado a faz-lo. Os gover-nos ho-de legislar e governar no meio de um pblico pensante.Ao tomar as suas decises, o Parlamento ou a corte deve recolhere levar a cabo o que j emergiu do debate ilustrado entre as pes-soas. Daqui procede o que Warner, seguindo Habermas, chamade princpio de superviso, que insiste em que as actas dos cor-pos governantes sejam pblicas, abertas ao escrutnio dos cidadosdotados de discernimento5. Tornando-se pblica, a deliberaolegislativa informa a opinio pblica e permite-lhe ser sumamenteracional, ao mesmo tempo que se expe a si mesma sua presso

    e, deste modo, reconhece que a legislao deve, em ltima anlise,sujeitar-se aos claros mandatos desta opinio6.4 Habermas, Structural Transformation, 119.5 Warner, Letters, 41.6 Ver o discurso de Fox, citado in Habermas, Structural Transformation,

    65-66: decerto justo e prudente consultar a opinio pblica...Se a opinio

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    A Esfera Pblica 11

    A esfera pblica , pois, um lugar em que se elaboram con-cepes racionais que devem orientar o governo. Isto acaba porse encarar como uma caracterstica essencial de uma sociedadelivre. Como afirmou Burke, Num pas livre, todo o homem pensaque ele se deve preocupar com todos os assuntos pblicos7. H,decerto, algo de muito novo a este respeito no sculo XVIII, emcomparao com o passado imediato da Europa. Mas, poderiaperguntar-se, isto novo na histria? No ser esta uma carac-

    terstica de todas as sociedades livres?No, existe uma diferena subtil, mas importante. Faamos

    uma comparao entre a sociedade moderna com uma esfera pblicae uma repblica ou polis antiga. Nesta ltima, podemos imaginarque o debate sobre assuntos pblicos se pode levar a cabo num con-junto de contextos: entre amigos num banquete, entre aqueles quese encontram na gora e, em seguida, naturalmente na ekklesia,onde o assunto acaba por ser decidido. O debate desenrola-se e,por fim, chega sua concluso no corpo competente que toma de-cises. A diferena que as discusses fora deste corpo preparam

    para a aco ultimamente empreendida por algumas pessoas, den-tro dele. As discusses no oficiais no esto dele separadas,adquirem um estatuto prprio e constituem visivelmente uma es-pcie de espao metatpico.

    Mas isto o que acontece na moderna esfera pblica. Ela um espao de discusso que, de forma muito consciente, se encaracomo existindo fora do poder. Supe-se que ouvida pelo poder,mas no , em si mesmo, um exerccio de poder. O seu estatuto

    pblica no se ajustar minha; se, depois de eu lhes apontar o perigo, eles noo virem mesma luz que eu, ou se pensarem que outro remdio prefervel

    ao meu, deverei considerar como meu dever perante o meu rei, perante o meupas, perante a minha honra, retirar-me, para que eles possam seguir o plano queacharem melhor, mediante um instrumento adequado, ou seja, por meio de umhomem que com eles pensou. . . Mas uma coisa clarssima: devo fornecer aopblico os meios para formar uma opinio.

    7 Citado in Habermas, Structural Transformation, 117.

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    12 Charles Taylor

    extrapoltico , neste sentido, crucial. Como veremos frente, eleliga a esfera pblica a outras facetas da sociedade moderna quetambm se vem como essencialmente extrapolticas. O estatutoextrapoltico no se define negativamente como uma ausncia depoder. Encara-se tambm de modo positivo: porque no um ex-erccio de poder, a opinio pblica pode, idealmente, desprender-sedo esprito partidrio e ser racional.

    Por outras palavras, com a moderna esfera pblica, desponta

    a ideia de que o poder poltico deve ser fiscalizado e vigiado poralgum de fora. O elemento novo no era, decerto, a existncia deuma vigilncia externa, mas sim a natureza desta instncia. Nose define como a vontade de Deus ou a lei da Natureza (emboraele se pudesse pensar para articular estas), mas como um gnerode discurso que provm da razo, e no do poder ou da autoridadetradicional. Como Habermas refere, o poder tinha de ser domadopela razo: veritas, non auctoritas facit legem8.

    A esfera pblica era assim diferente de tudo o que a precede.Uma discusso no oficial, que todavia pode chegar a um veredicto

    de grande importncia, define-se como fora da esfera do poder. Vaibuscar algumas imagens s antigas assembleias (gesto visvel so-bretudo no caso americano) para projectar o pblico inteiro comoum espao de discusso. Mas, como mostra Warner, ela inova emrelao a este modelo. Os que intervm so como oradores per-ante uma assembleia. Mas, diferentemente dos seus modelos nasefectivas assembleias antigas, aspiram a uma certa impessoalidade,a uma certa imparcialidade, a uma escusa do esprito partidrio.Esforam-se por negar a sua prpria particularidade e, deste modo,por ir alm de toda a viso privada ou parcial. Warner chama-

    lhe o princpio de negatividade. Podemos v-lo no s como omeio afim imprensa, em contraste com o meio oral, mas tambmcomo expressando a caracterstica crucial da nova esfera pblica

    8 Ibid., 82.

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    14 Charles Taylor

    trapoltico. A Repblica das Letras era um termo comum que osmembros da sociedade internacional dos sbios em intercmbio sedavam a si mesmos no final do sculo XVII. Tal fenmeno foi umprecursor da esfera pblica; na realidade, contribuiu para a config-urar. Aqui estava uma repblica constituda fora do poltico.

    A analogia e a diferena deram-lhe a sua fora e apontam paraesta imagem: era uma repblica enquanto associao unificada,agrupando todos os participantes ilustrados atravs dos limites polti-

    cos. Mas era igualmente uma repblica, por ser livre de sujeies:os seus cidados s a ela deviam obedincia, enquanto se ocu-passem das Letras.

    Algo disto foi herdado pela esfera pblica do sculo XVIII. Noseu seio, os membros da sociedade renem-se e perseguem um fimcomum: formam e deliberam formar uma associao que, todavia,no constituda pela sua estrutura poltica. Isto no se verifi-cava na polis ou na repblica antiga. Atenas era uma sociedade,uma koinonia, apenas como politicamente constituda. O mesmose aplicava a Roma. A sociedade antiga adquiria a sua identidade

    pelas suas leis. Nos estandartes das legies, as letras SPQR indi-cavam "Senatus populusque romanus", mas o "populus"era, aqui,o conjunto dos cidados romanos, isto , os definidos pelas leis. Opovo no tinha uma identidade, no constitua uma unidade ante-rior e exterior a essas leis. Isto reflectia, como acima vimos, umacompreenso pr-moderna da ordem moral/metafsica, subjacente prtica social.

    Em contrapartida, ao projectar uma esfera pblica, os nossosantepassados do sculo XVIII inseriam-se a si mesmos numa asso-ciao, neste espao comum de discusso, que nada devia s estru-

    turas polticas, mas se mirava como existindo independentementedelas.Este estatuto extrapoltico um aspecto da novidade da esfera

    pblica: que todos os membros de uma sociedade poltica (ou,pelo menos, todos os membros competentes e ilustrados) deveriam

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    ser vistos como formando tambm uma sociedade fora do Estado.Na realidade, esta sociedade era mais ampla que qualquer Estado;estendia-se, para alguns objectivos, a toda a Europa civilizada. Eisum aspecto estranhamente importante e corresponde a uma carac-terstica crucial da nossa civilizao contempornea, que emergenesta altura e que visvel em outros lugares diferentes da esferapblica. Ocupar-me-ei disto por momentos, mas, primeiro, temosde dar o segundo passo.

    bvio que uma sociedade extrapoltica, internacional, no por si s algo de novo. Foi precedida pela cosmpole estica e, demodo mais imediato, pela Igreja crist. Os europeus estavam habit-uados a viver numa sociedade dual, organizada por dois princpiosmutuamente irredutveis. A segunda faceta da novidade da esferapblica deve, pois, definir-se como a sua secularidade radical.

    Recorro aqui a um uso muito particular deste termo, em queele se aproxima do seu significado original como expresso paraum certo tipo de poca. Est, decerto, intimamente relacionadocom um significado comum de secularidade, que se centra na re-

    moo de Deus, da religio ou do espiritual do espao pblico. Nome refiro a este significado, mas a algo que contribuiu para ele, asaber, uma deslocao na nossa compreenso do fundamento dasociedade. Apesar de todo o risco de confuso, existe uma razopara utilizar aqui o termo secular, porque, na sua real etimologia,assinala o que est em jogo neste contexto, que tem algo a ver como modo como a sociedade humana habita o tempo. Mas este modode descrever a diferena exige uma alguma indagao preliminar.

    Esta noo de secularidade radical, porque contrasta no scom um fundamento divino da sociedade, mas com qualquer ideia

    de sociedade enquanto radicada em algo que transcende a acocomum contempornea. Se remontarmos s ideias pr-modernas,descritas no captulo 1, descobrimos, por exemplo, sociedades hi-errquicas que se concebem a si mesmas como encarnando algumaparte da Cadeia do Ser. Por detrs das pessoas que ocupam os car-

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    gos da realeza, da aristocracia, etc., residem as Ideias ou as Real-idades metafsicas persistentes que aquelas pessoas momentanea-mente corporificam. O rei tem dois corpos, um deles o particular,perecvel, que agora alimentado, vestido e, mais tarde, ser sepul-tado11. Nesta perspectiva, o que constitui uma sociedade enquantotal a ordem metafsica que ela encarna12. As pessoas agem den-tro de um marco que existe anteriormente e independente de suaaco.

    Mas a secularidade no contrasta apenas com igrejas divina-mente estabelecidas ou Grandes Cadeias. tambm diferente deuma compreenso da nossa sociedade enquanto constituda poruma lei que foi nossa desde tempos imemoriais. Porque tambmesta situa a nossa aco dentro de um marco que nos religa a todos,faz de ns uma sociedade e transcende a nossa aco comum.

    Ao invs, a esfera pblica uma associao que no con-stituda por nada alm da aco comum que nela levamos a cabo:chegar a uma mente comum, onde for possvel, mediante a troca deideias. A sua existncia enquanto associao justamente, deste

    modo, a nossa aco conjunta. O que possibilita esta aco co-mum um marco que no precisa de se estabelecer numa dimen-so transcendente aco, ou mediante um acto de Deus ou numaGrande Cadeia ou por meio de uma lei que nos chega desde temposimemoriais. Eis o que a torna radicalmente secular. E isto leva-nosao corao daquilo que nela novo e sem precedentes.

    este um enunciado seco. Importa, decerto, tornar ainda maisclara esta noo de secularidade. Porventura, assaz bvio o con-traste com Corpos Msticos e Grandes Cadeias. Mas reclamo umadiscrepncia com a sociedade tribal tradicional, o tipo de coisa pe-

    culiar aos povos germnicos, que fundaram os nossos modernos11 Ver E. Kantorowicz, The Kings Two Bodies (Princeton: Princeton Univer-

    sity Press, 1957).12 Para um exemplo extra-europeu desta concepo, ver Clifford Geertzs Ne-

    gara (Princeton: Princeton University Press, 1980), onde se descreve o Estadobalins antes da conquista.

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    regimes polticos do Atlntico-Norte, ou tambm com o que con-stitua as antigas repblicas e poleis. E isto poderia contestar-se.

    Essas sociedades eram definidas por uma lei. Ser tudo isso,porm, muito diferente da esfera pblica? Ao fim e ao cabo, sem-pre que queremos actuar nesta esfera, deparamos com um nmerode estruturas j estabelecidas: existem certos jornais, cadeias deteleviso, casas editoras e assim por diante. Actuamos dentro doscanais que elas fornecem. No ser isto anlogo a qualquer mem-

    bro de uma tribo, que tem de agir igualmente no seio de estruturasestabelecidas de chefias, concelhos, encontros anuais, etc.? Mu-dam, sem dvida, as instituies da esfera pblica; os jornais vo falncia, as redes de televiso fundem-se. Mas nenhuma tribo per-manece absolutamente fixa nas suas formas; tambm estas evoluemao longo do tempo. Se algum pretendesse afirmar que esta estru-tura preexistente vlida para a aco em curso, mas no para osactos fundadores que instituram a esfera pblica, a resposta pode-ria ser a de que impossvel identificar estes na corrente do tempo,e tambm no tocante tribo. E se desejarmos insistir em que tem

    de haver tal momento, ento deveramos notar que tambm muitastribos transmitem lendas de um acto fundador, por exemplo quandoum Licurgo estabeleceu as suas leis. Ele agiu, decerto, fora das es-truturas existentes.

    A meno de aces no interior de estruturas suscita semel-hanas. Mas existe uma diferena importante que reside nas re-spectivas compreenses comuns. Numa esfera pblica em fun-cionamento, a aco decerto, em qualquer altura, levada a cabo noseio de estruturas anteriormente constitudas. Existe, de facto, umordenamento das coisas. Mas este arranjo no usufrui de qualquer

    privilgio sobre a aco efectuada dentro dele. As estruturas foramestabelecidas durante actos anteriores de comunicao no espaocomum, em situao de paridade com aquelas que agora levamosa cabo. A nossa aco presente poder modificar estas estruturas o que perfeitamente legtimo , porque estas se encaram to-s

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    como precipitados e facilitadores de semelhante aco comunica-tiva.

    Mas a lei tradicional de uma tribo goza habitualmente de umestatuto diferente. Poderemos, sem dvida, alter-la ao longo dotempo, seguindo a prescrio que ela prpria fornece. Mas elano se concebe como um precipitado e um facilitador da aco.A abolio da lei significaria a abolio do sujeito da aco co-mum, porque a lei define a tribo como uma entidade. Enquanto

    uma esfera pblica poderia de novo iniciar-se, mesmo onde todosos meios de comunicao foram abolidos, fundando simplesmenteoutros novos, uma tribo s pode retomar a sua vida com base nacompreenso de que a lei, embora interrompida talvez na sua efic-cia pela conquista externa, se encontra ainda em vigor.

    Isto o que pretendo dizer, ao referir que aquilo que consti-tui a sociedade, que torna possvel o agente comum, transcendeas aces comuns levadas a cabo dentro dela. No se trata ape-nas de as estruturas requeridas para a aco comum de hoje sur-girem como uma consequncia da de ontem, a qual todavia no

    era diferente da de hoje na sua natureza. A lei tradicional , certa-mente, uma condio prvia de qualquer aco comum, em qual-quer poca, porque este agente comum no poderia existir sem ela.Neste sentido, ela transcendente. Em contrapartida, numa as-sociao puramente secular (na minha acepo), o agente comumemerge simplesmente na e como o precipitado da aco comum.

    A distino crucial subjacente a este conceito de secularidadepode, assim, relacionar-se com este problema: que que constituia associao? Ou, por outras palavras: que que faz deste grupode pessoas, ao persistirem ao longo do tempo, um agente comum?

    Onde este algo que transcende a esfera das aces comuns em queo agente se empenha, a agremiao no secular. Onde o factorconstitutivo to-s esta aco comum irrelevante se os actosfundadores ocorreram j no passado ou esto agora a ter lugar temos a secularidade.

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    Este tipo de secularidade moderno; surgiu muito recente-mente na histria da humanidade. Naturalmente, houve todos ostipos de agentes comuns momentneos e tpicos que surgiram daaco comum. Junta-se uma multido, as pessoas gritam protestose, em seguida, a casa do governador apedrejada ou o castelo incendiado. Mas, antes da era moderna, uma aco comum, du-radoira, metatpica era inconcebvel numa base meramente sec-ular. As pessoas conseguiam ver-se a si mesmas s como con-

    stitudas como tais por algo de transcendente aco, fosse umafundao por Deus ou uma Cadeia do Ser que a sociedade incorpo-rava ou alguma lei tradicional que definia o nosso povo. A esferapblica do sculo XVIII representa, assim, uma instncia de novognero: um espao e uma aco comuns metatpicos sem uma con-stituio transcendente aco, um agente baseado simplesmentenas suas prprias aces comuns.

    Mas que dizer dos momentos fundadores que as sociedadestradicionais, muitas vezes, "recordavam"? Que dizer da aco deLicurgo ao fornecer as suas leis a Esparta? Tais momentos mostram-

    nos, decerto, exemplos do factor constitutivo (aqui a lei) oriundoda aco comum: Licurgo prope, os Espartanos aceitam. Mas prprio da natureza de tais momentos fundadores no se situ-arem no mesmo plano que a aco comum contempornea. Osactos de fundao so transferidos para um plano superior, paraum tempo herico, para um illud tempus, que no se divisa qual-itativamente num nvel semelhante ao que hoje fazemos. A acofundadora no como a nossa aco, no justamente um actosimilar mais antigo cujo precipitado estrutura o nosso. No sim-plesmente mais antigo, mas noutro gnero de tempo, um tempo

    exemplar13

    .13 Descrevo este quadro da conscincia pr-moderna do tempo, implicando

    diferentes modos de um tempo superior, in Charles Taylor Die Modernitaetand die saekulare Zeit, in Krrysztof Michalski, ed., Am Ende des Milleniums:

    Zeit and Modernitaeten (Stuttgart: Klett Kotta, 2000), 2885.

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    Eis porque sou tentado a utilizar o termo secular, apesar dosmal-entendidos que ele possa suscitar; claro que, por ele, nopretendo dizer apenas "no associado religio"14. A excluso muito mais ampla. Pois o sentido original de secular era este: "dapoca", isto , pertencendo ao tempo profano. Aproximava-se dosentido de "temporal", na oposio de temporal/espiritual, comoantes vimos.

    Em pocas mais antigas, a compreenso era que este tempo

    profano existia em relao (era rodeado, trespassado difcil en-contrar aqui as palavras justas) com tempos superiores. As con-cepes pr-modernas do tempo foram sempre, aparentemente, mul-tidimensionais. O tempo era transcendido e assentado pela eternidade,seja a da filosofia grega ou a do Deus bblico. Nos dois casos, aeternidade no era justamente o tempo profano infindo, mas umaascenso para o imutvel, ou um tipo de reunio do tempo numaunidade; da a expresso "hoi aines tn ainn"ou"saecula saecu-lorum"(pelos sculos dos sculos).

    O relacionar platnico ou o cristo de tempo e eternidade no

    eram os nicos quefazeres na cidade, mesmo na cristandade. Ex-istia igualmente o sentido muito mais difundido de um tempo defundao, um "tempo das origens", como Eliade lhe chama15, quese referia de modo complexo ao momento presente no tempo or-dinrio, em virtude de, muitas vezes, poder ser abordado ritual-mente e a sua fora ser, em parte, reapropriada em certos momen-tos privilegiados. Eis porque ele no podia, simplesmente, situar-se

    14 Como questo de facto, excluir a dimenso religiosa no sequer umacondio necessria do meu conceito de secular, para no falar de suficiente.Uma associao secular baseia-se to-s na aco comum, que exclui qualquer

    fundao divina para esta associao, mas nada impede as pessoas assim asso-ciadas de prosseguirem a sua forma religiosa de vida; na realidade, esta formapode at exigir que, por exemplo, as associaes polticas sejam seculares. H,por exemplo, motivos religiosos para adoptar uma separao entre Igreja e Es-tado.

    15 Mircea Eliade, The Sacred and the Profane (New York: Harper, 1959), 80.

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    sem ambiguidade no passado (no tempo ordinrio). O ano litrgicocristo recorre a este tipo de conscincia do tempo, amplamentepartilhada por outras religies, ao reavivar os acontecimentos "fun-dadores"da vida de Cristo.

    A norma universal foi, aparentemente, ver os importantes es-paos e agentes metatpicos como constitudos de algum modo porum tempo superior. Os Estados e as igrejas viam-se como existindoquase necessariamente numa dimenso pluritemporal, como se fosse

    inconcebvel que tivessem o seu ser s no tempo profano ou habit-ual. Um Estado que incorporasse a Grande Cadeia estava ligado aoreino eterno das Ideias; um povo definido pela sua lei reatava como tempo fundador em que ele fora estabelecido; e assim por diante.

    A secularizao moderna pode ver-se, sob um certo ngulo,como a rejeio de tempos superiores e a afirmao do tempo comopuramente profano. Os acontecimentos existem, agora, s nestanica dimenso, em que eles se encontram a maior ou menor dis-tncia temporal e em relaes de causalidade com outros aconteci-mentos da mesma espcie. Surge assim a noo moderna de simul-

    taneidade em que acontecimentos de todo irrelacionados na causaou no significado se mantm juntos apenas em virtude da sua co-ocorrncia no mesmo ponto na nica linha do tempo profano. Aliteratura moderna, bem como os meios de comunicao, apoia-dos pela cincia social, habituaram-nos a pensar a sociedade emtermos de fatias de tempo verticais, sustentando mirades de even-tos, relacionados e no relacionados. Creio que Benedict Andersontem razo, ao dizer que este um modo tipicamente moderno deimaginao social, que os nossos antepassados medievais teriamachado difcil de compreender; de facto, onde os acontecimentos

    no tempo profano esto relacionados, de forma muito diferente,com um tempo superior, afigura-se antinatural agrup-los, lado aolado, na moderna relao de simultaneidade. Isto traz consigo umapresuno de homogeneidade que era essencialmente negada pela

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    preponderante conscincia do tempo16. Voltarei, mais tarde, a estetema.

    Ora, o movimento a que tenho dado o nome de secularidaderelaciona-se, decerto, com esta conscincia do tempo radicalmenteexpurgada. Surge quando as associaes se localizam firmementee de modo pleno no tempo homogneo, profano, quer se negue, ouno, inteiramente o tempo superior ou nele se admita ainda a ex-istncia de outras associaes. Tal o que acontece com a esfera

    pblica, e nisto reside a sua natureza nova e (quase) sem prece-dentes.

    Talvez eu possa agora prolongar esta discusso e tentar estab-elecer o que era a esfera pblica. Era um novo espao metatpicoem que os membros da sociedade podiam trocar ideias e chegar auma mente comum. Enquanto tal, constitua um agente metatpico,mas que se concebia como existindo independentemente da consti-tuio poltica da sociedade e inteiramente dentro do tempo pro-fano.

    16 Em Imagined Communities, Anderson vai buscar a Benjamin um termo

    para descrever o moderno tempo profano. V este tempo como um tempo ho-mogneo, vazio. A homogeneidade refere o aspecto por mim descrito, de quetodos os acontecimentos se inserem agora no mesmo gnero de tempo. Mas avacuidade do tempo leva-nos para outro problema: o modo como espao etempo acabam por se ver mais como contentores que coisas e acontecimentosenchem de forma contingente do que constitudos por aquilo que os enche. Esteltimo passo insere-se na imaginao metafsica da fsica moderna, como pode-mos ver em Newton. Mas trata-se do passo para a homogeneidade, que crucialpara a secularizao, tal como a concebo.

    O passo para a vacuidade parte da objectivao do tempo, que foi um el-emento muito importante da viso do sujeito moderno da razo instrumental.Num certo sentido, o tempo foi espacializado. Heidegger, na sua compreen-

    so da temporalidade, moveu um ataque cerrado a toda esta concepo; ver emespecial Sein and Zeit(Tbingen: Niemeyer, 1926), seco 2. Mas a distinoentre secularidade e objectivao do tempo permite-nos situar Heidegger no ladomoderno da linha divisria. A temporalidade heideggeriana tambm um mododo tempo secular.

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    Um espao extrapoltico, secular, metatpico: eis o que era e a esfera pblica. A importncia de compreender isto reside, emparte, no facto de que ela no era o nico espao assim, de queestava inscrita numa evoluo que transformou toda a nossa com-preenso do tempo e da sociedade, pelo que temos, inclusive, difi-culdade em recordar aquilo que ela antes era.

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