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Na página anterior: o Argus, um dos mais emblemáticos bacalhoeiros portugueses. Muitos navios levavam galinhas e porcos para consumo na viagem. Em cima: os homens do mar enfrentavam Invernos muito rigorosas (fotografias (Imagem cedida pelo capitão Francisco Paião para o livro "A Frota cedidas pelo capitão Francisco Paião para o livro "A Frota Portuguesa do Bacalhau"). Portuguesa do Bacalhau").

flhavo é um viveiro de antigos comandantes dos bacalhoeiros portugueses, navios de pesca à linha ou arrastões, que andavam meses a fio pelos mares gelados da Terra Nova, em especial durante o período do Estado Novo. O bacalhau era uma espécie de

"pão político" e a aposta no "grande ofício" ficou marcada por rituais nacionalistas como a bênção dos bacalhoeiros.

LÚCIA CRESPO [email protected]

aldemar Aveiro recorda s dias passados a bordo do navio de pesca àli-nha Viriato e, mais tarde, no arrastão Coimbra. Passava meses nos ban-cos gelados da Terra Nova na faina da pesca do bacalhau. Aos 8;3 anos, o capitão mantém bem vivas as memórias de uma tradição secular que ga-nhou fôlego durante o Estado Novo. Nasceu em Í lhavo, terra de gente com salitre no sangue, onde moram vários dos homenS que comandaram os antigos bacalhoeiros. Ílhavo é um viveiro de comandantes, recordados em livros editados em 2017 como "'Dibu to a CapitãeS de Ílhavo", de Ana Maria Lopes, ou "A Frota Portuguesa do Bacalhau, urna história em ima-gens", de Jean-Pierre Andriewc, emhaixaal( ›r infonnal da memória por-tuguesa na Terra Nova. Nas obras, estão descritos dramas e glórias des-tes lobos-do-marque andaram pelo Canadá, pela Gronelândia e até pela Sibéria a pescar bacalhau.

Grande parte desta herança cultural está também presente na obra "Portugal no Mar:llometis que foram ao Bacalhau", coordenada pelo in-vestigador Alvaro Garrido e editado pelo Museu Marítimo de Í 1 havo (MMI). Olivro apresenta 17 mil fotografias e funciona como um memo-rial e um tributo às famílias que viveram o drama épico da pesca do "fiel amigo". Para comemorar o seu 80.° aniversário, o MMI lançou este ano

o portal Homens e Navios do Bacalhau, espécie de museu virtual onde podem serencontrados os nomes dos marinheiros e dos seus navios.

Lá está o capitão Valdemar Aveiro, que tem publicado vários- livros cheios de vida e de memórias dos antigosbacalhoeinrs. "ma dessas obras chama-se4480 Graus Norte- Reo rd ações da Pescado 1.1acalltau"etem de serlida.Lá está Vitorino ~alheira, que se celebrizou no filme -The Whi-te Ship", realizado por Flector Lem ieux, que retrata a companha queo na-vio Santa Maria Manuela realizou em 1966. Lá está, também, o capitão Francisco Paião, pai de Aníbal Machado Palão, admi nistrador da empre-sa Pascoal e Filhos, e tio do falecido ca ntor Carlos Palão. Esta família ficou conhecida sobretudo por causa de Adolfo Simões Paião Júnior, coman-dante da Campanha do Argus, que deu origem a um livro e a um filme da autoria do australiano Alan Vil I iers. Outros capitães estão, de alguma for-ma, retratados em obras como "Epopeia dos Bacalhaus", série documen-tal de 1984 produzida por Oscar Cruz e realizada por Francisco Manso, que viria a assinar -A Grande Aventura", documentário com guião de Al-varo Garrido, No ano passado, a história destes homens foi contada no do-cumentário“A um mardedistância", realizado por Pedro M agano e escri-to porAbel Coentrão.

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ANÁLISE

unau

Valdemar Aveiro, Vitorino Ramalheira e Francisco Pa ião são alguns dos capitães da antiga frota bacalhoeira portuguesa. "São homens na casa dos 80, 90 anos, quase uma centena deles ainda estão vivos e eu tive o privilégio de os poder entrevistar, conhecer e ouvir as suas histórias. São grandes figuras humanas, viveram metade das suas vidas no mar, comandaram navios artesanais que faziam viagens transoceânicas e, por isso, têm muito justamente uma aura heróica", conta Álvaro Ganido, professor na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, que tem vindo a es-tudar a história das pescas em Portugal. Dirigiu o Museu Marítimo de Ílhavo, onde permanece como consultor.

"É claro que estes homens foram integrados na oligar-guia corporativado Estado Novo,sendo essenciais paraaefi-ciência das empresas e da 'campanha do bacalhau', mas eram sobretudo grandes marinheiros, navegadores,comandantes de homens, em regra severos, e herdeiros reais dos velhos nautas portugueses. O seu carisma e autoridade nas comu-nidades de pescadores onde havia bacalhoeiros fazem com que ainda se mantenha uma certa hierarquização na comu-nidade, sobretudo em í ihavo. Eles são tratados por 'senhor capitão'. Eu próprio os trato assim", acrescenta o investiga-dor, que publicou obras como "O Estado Novo e a Campa-nha do Bacalhau" ou "Economia e Política das Pescas".

"Ílhavo é uma dinastia de capitães da Marinha Mercan-te Existem várias gerações de pescadores muito habilido-sos edisputados em Portugal, alguns vão para a Marinha de Guerra, outros aprendem agi vemareamanejarnavios com o pai ou como avô. ílhavo é um viveiro local de oficiais náu-ticos, único a nível nacional. Ainda hoje os pilotos das bar-ras e os comandantes de navios em Portugal são quase to-

dos filhos dos velhos capitães da pesca do bacalhau", subli-nha Álvaro Garrido.

O RASTO PORTUGUÊS NO CANADÁ Durante as campanhas do bacalhau na Terra Nova, ha-

via um lugar especial onde os portugueses se abrigavam. Em ovelhoportode St John's, também designado por "São João da Terra Nova". Era lá que os naviosda frota portuguesa as-sentavam e repunham energias e onde os pescadores cria-ram fortes relações com a comunidade local. Parte dessas ligações estão registadas no livro "A Frota Portuguesa do Ba-calhau" pelo canadense Jean-PierreAndrieux, que, através da sua colecção de fotografias, documentos e testenrwrhes, difunde a memória dos portugueses nas províncias atlânti-cas do Canadá.

O trabalho deste memorialista é aplaudido por Álvaro Garrido. "A memória que na Terra Nova ficou, muito sim-pática relativamente à presença portuguesa e aos seus ho-mens e navios, tem sido aos poucos vencida pelo esqueci-mento. As gentes locais e a própria diplomacia portuguesa têm negligenciado este grande património humano que, des-de inícios do século XVI, marcou as relações de Portugal como Canadá. Jean-Pierre Andrieux - ele próprio amigo de muitos capitães portugueses -tem remado contra a maré e tem conseguido grandes lanços", escreve, no prefácio do livro, o professor da Faculdade de Economia de Coimbra.

O capitão Valdemar Aveiro conta até que uma vez ouviu da boca de um inspector canadiano o seguinte "Secada por-tuguês frouxesse de Portugal, no bolso, uma pedra, e todos a lançassem ao mar no mesmo Sítio, quando demandam por exemplo °porto de St John's, vocês teriam aqui uma ilha por-

tuguesa.""Se a menina fosse àTerra Nova, aperceber-se- ia da forma apaixonada e saudosa com que muita gente fala dos portugueses. Mas essa memória está adesaparecer. E o maior naufrágio que pode acontecer é o do esquecimento."

BACALHAU POLÍTICO

\pesar da tradição secular da pesca do bacalhau, a ver-dade é que a dependência externa foi sempre avultada. His-toricamente, o país é um grande importador de bacalhau. "Não obstante Portugal ter sido dos primeiros a armar na-vios para a 'grande pc..ca', jamais dominou a pescaria. A sua posição relativa no mercado internacional do produto, pau-tada pela condição de 'grande importador', permaneceria imutável até aos nossos dias", frisa Álvaro Ganido. "Quan-do o Estado Novo se institucionaliza, no início dos anos 30, a dependência externa do bacalhau era das que mais pesa-va na balança comercial e na balança de pagamentos. Por-tugal apenas produzia 11% do bacalhau que consumia, im-portando da Terra Nova, da Noruega e da Islândia"

Salazar quis reabilitar o "grande oficio", dotando-lhe uma forte centralidade política. A 5 de Junho de 1934, ar-ranca a chamada "campanha do bacalhau". "Há um progra-madesubstituiçãode importações, muitosemelhante à cam-panha do trigo, baseada em mecanismos proteccionistas, sobretudo no subsídio dos preços, que perdurou pratica-mente até 1974. Durante o Estado Novo, em média, produ-ziu-se 60% das necessidades de consumo em Portugal. O país chega mesmo produzir 80% do bacalhau consumido no mercado interno", descreve Álvaro Garrido.

A aposta económico-financeira neste subeector foi tam-bém um projecto de afirmação de autoridade do Estado, tor-

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Entre 1934 e 1967, o "bacalhau político" serviu de instrumento estabilizador da organização social.

Na página anterior: um grupo de pescadores no convés do navio durante

uma escala em St John's (fotografia cedida por Dave Quinton a Jean-

-Pierre Andrieux). Em cima: um tripulante sentado no mastro do navio. Ao lado: os Invernos bem rigorosos. (Fotografias cedidas pelo capitão Francisco Palão para o livro "A Frota Portuguesa do Bacalhau").

nando a pesca do bacalhau num emblema político, que chegou às telas americanas em filmes como "Lobos do Mar", de 1937, uma adaptação da obra-prima de Rudyard Kipling onde o protagonis-ta interpreta a figuradopescadorportuguêsManueLl látoda uma propaganda do regime sobre a épica da pesca do bacalhau, apre-sentando-a como um reencontro da nação com o período doura-do dos descobrimentos. Este programa foi bem combinado com rituais nacionalistas, bem patentes na bênção dos bacalhoeiros. celebrada em Belém todos os anos", sublinha o investigador.

Entre 1934 e 1967, o "bacalhau político" serviu de instru-mento estabilizador da organização social. "Esta era uma ten-dência da época, sobretudo como modelo do fascismo italiano, usado para o trigo e para o arroz, uma fórmula imitada por Sa-lazaredepois adaptada pelos seus ministros do Comércio e In-dústria, Sebastião Ramires e, posteriormente, Teotónio Perei-ra. Na economia política do regime, existem dois produtos-cha-ve para a soberania alimentar, o trigo e o bacalhau - o "pão dos mares", o "bacalhau político", metáfora de uma fórmula usada na I Repúblicaparao chamado "pão político",queera o pão sub-sidiado, conta Álvaro Ganido.

Esta elaboração propagandística tinha como uma das figu-ras centrais Henrique Tenreiro, conhecido como o patrão das mares e objecto de uma biografia política por parte do investi-gador. O assessor de Tenreiro, de nome Jorge Simões, tinha sido repórter da pesca do bacalhau no Diário da Manhã e na Emis-sora Nacional e foi o autor do texto "Heróis do Mar", que ins-pirou um filme de propaganda com o mesmo nome, realizado em 1949 por Fernando Garcia.

A FROTA BRANCA "A pcsm é como um jogo, uma questão desorte", um dia a for-

tuna, noutro a miséria. A .frase do escritor Raul Brandão, repes, cada por Álvaro Garrido, descreve a dureza do oficio dos pesca-dores de bacalhau, que passqvam seis ou sete meses no mar, su-jeitos a uma vida desobfrvivência. Enfrentavam também a incer-teza e O deSemprego, Nada estava garantido. Nem apropria vida. O Estado recUsava á si nd icalização d ( »4 I lomens do maré temia a sua contestação. Para conter a agitação social, "mitigando alio-breza e honrando a pobreza", estes pescadores 'Caninos primei-ros beneficiários das parcas modalidades de providência conce-didas pelo Estado aos activos das pescas e suas famílias, escreve Álvaro Garrido. Foi lançada então a "obra social das pescas" pela Junta Central das Casas dos Pescadores que fez com que os pes-cadores fossemos primeirosareeeberpensiks de retbrma cabo-no de família para os filhos, destaca o investigador.

Mas osperigosda vidaem alto-mar aumentaram durante á Guerra Mundial. "A pesca do bacalhau era uma actividade anis cada pelo facto de implicar viagens longas com navios, em regra, frágeis, e campanhas de pesca muito duradouras. Por consegu n-te,o risco de acidentes eraelevado. Durante a II Guerra, houve epi-sódios mais trafficos, com o torpedeamento por submarinos ale-mãesdos dois lugres Maria daGlóri a e Delães que resultou, num dos casos, em muitas vítimas mortais", conta Alvaro (anido. "E haVia um fenómeno trágico, mas absolutainente si ido, que era a deserção dos pescadores. Dos oito sobreviventes ó)nana da Glória que foram repescados por um navio da guarda costeira norte-americana, quatro desertaram para o Canadá."

Os dilemas e os perigos da neutralidade portuguesa durante a guerra jogara' wse completimente na pesca do bacalhau. "Era muito perigoso mantera frota em laboração, mas Salazar teimo-samente mantém essa laboração porque as neo....ssidades do abas-tecimento eram mais gritantes do que nunca. O Estado-Maior Naval, por razões de segurança na navegação, mandou pintar de branco os cascos dos navios. Os veleiros portugueses, muito lx)-nitos, juntav am-se no cais deSt John's e tornas-se uma espécie de bilhete-postal". Era a Frota Branca ou The White Flcet, que despertou grande curiosidade mundial. " Depois da guerra, boa parte dos navios mantiveram a cor branca e tornaram-se quase uma lenda internacional porque já ninguém pescava à linha com pequenos botes, nem haviaveleiros de pesca transoceânica de ba-calhau em nenhuma outra frota. Portugal manteve parte deste método primitivo de pesca até 1974"

As guerras coloniais viriam a aumentara dificuldade em man-ter a paz social entre os pescadores do bacalhau."Nos anos 60, foi activado um decreto-lei que isentava de serviço militar os pesca-dores de bacalhau que realizassem seis campanhas consecutivas. Isso significava não ir para a guerra de África. Muitas vezes sur-gia °dilema: ir para uma guerra ou para outra.. Mas as memórias do trabalho humano da pesca do bacalhau são muito plurais e muito diversas entre si. Há pescadores que evocam algum trau-ma, outros que não", salienta Álvaro Ganido.

Pouco a poucó começa o declínio da pesca do bacalhau no Atlântico Norte. No final dos anos 50, acumulam-se tensões na já frágil composiçãóde interesses na indústria e no negóciodo ba-calhau. Por outro lado, no pásguerra, os Estados-nação preocu-pam-se em "territorializar" os seus recursos e assiste-se ao alar-gamento do mar territorial de 3 milhas náuticas para 12 milhas, queviria a ser, anos-mais tarde, objecto de tratado multilateral na Convenção das Nações Unidas sobre° Direito do Mar.A adesão de Portugal à Associação Europeia de Comércio Livre (EFTA), em1960, acelerou °parcial abandonodas políticas e práticas pro-teccionistas.Asguerras coloniaisvieram agravarocenário.Aobra de fomento da "grande pesca", um dos grandes baluartes da eco-nomia política doEstado Novú, eStava então a desmoronar-se.A partir da adesão de Portugal à Comunidade Económica Euro-peia (CEE), o país torna-se mais dependente do exterior.

Actualmente, a produção nacional de bacalhau está abaixo dos 3%, sublinha Álvaro Ganido, que vai lançar o livro "As Pes-cas em Portugal" para a Fundação Francisco Manuel dos Santos e foi convidado pela Universidade de Oviedo para leccionar um curso sobre história económica e cultural de Portugal através da pesca do bacalhau. Conhecer a história do "pão dos mares" é, de facto, conhecer parte do país. w