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ISEG

Passa um ano sobre a trágica morte do jurista e fi-nanceiro eminente, do cidadão íntegro e culto e do po-lítico coerente e determinado que foi o Prof. SousaFranco, primeiro presidente do Gabinete de Estudos daCTOC. A Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas e aRevista «TOC» não podiam ficar indiferentes à memó-ria do Prof. Sousa Franco, à sua obra e ensinamentose, de forma sentida, o seu enorme empenho em cola-borar connosco. O texto que se segue sobre a faceta defiscalista do Prof. Sousa Franco provém de uma co-municação de António Carlos dos Santos, que com eleconviveu de perto durante quatro anos de governação.Esta comunicação foi apresentada em Setembro de2004 numa sessão de homenagem em boa hora orga-nizada pela Associação Fiscal Portuguesa, a quemmuito agradecemos a disponibilização do texto.

A Direcção da CTOC e da Revista «TOC»

Conheci o Professor Sousa Franco na já longín-qua década de 80. Contactos esporádicos emcolóquios, congressos, alguma troca de corres-

pondência, na altura não por causa da fiscalidade, maspor causa do Direito Económico.Contactos breves, é certo, mas marcantes. Para além dasua fulgurante inteligência, da sua capacidade de ob-servação – Alexis Carrel escreveu, não sem razão, queobservar é menos fácil que raciocinar – ficou-me a ima-gem de um homem de fortes convicções, mas abertoao novo, frontal, mas dialogante, despojado de sober-ba e de arrogância, mas sem falsas modéstias. Alguémmuito longe da imagem do intelectual elitista sitiado natorre de marfim de um conhecimento meramente li-vresco. Alguém que se preocupava genuinamente comas pessoas em concreto e não apenas com as ideias oucom o Homem em abstracto.

Voltei a encontrá-lo nos anos 90, agora como meu pro-fessor de Direito Económico Comunitário e meu orien-tador numa dissertação de mestrado sobre auxílios deEstado de natureza fiscal. E este reencontro, de con-tactos mais intensos, transformou as anteriores im-pressões em certezas. Mas sobretudo acrescentou ou-tras. As de um professor sempre disponível, semprepronto a ouvir, a aconselhar, a discutir as questõesmais sensíveis ou controversas, a concordar, a pôr re-servas, a discordar, a polemizar, mas antes de tudo aincentivar o estudo e a investigação.A seu convite, tive o privilégio de com ele trabalhar econviver de perto durante os quatro anos do primeiroGoverno de António Guterres, onde Sousa Franco, co-mo ministro das Finanças, foi responsável pela intro-dução do euro e impulsionador de muitas e importan-tes reformas financeiras, sendo um dos governantesque mais contribuiu para uma governação que procu-rava conciliar rigor com consciência social.Fui então descobrindo novas competências do Pro-fessor Sousa Franco: a sua capacidade como estrate-go, as suas qualidades de liderança, a sua intuiçãopolítica, a sua entrega às causas que abraçava, o seudesprendimento, o seu enorme apego ao lado nobreda política – a política como serviço público –, ape-go tão grande quanto o desprezo que votava ao la-do mesquinho da politiquice. E, acima de tudo, a suacoerência: Sousa Franco esteve sempre rigorosamen-te no mesmo campo, o da social-democracia. Emtempos de pós-Revolução, a maioria dos políticos éque foi deslizando para posições mais liberais ouconservadoras. Descobri ainda, nessa época, a sua inesgotável ener-gia e capacidade de trabalho e, surpresa das surpre-sas, o seu britânico sentido de humor. Os almoços decoordenação da equipa – um por semana, todas asquartas-feiras, antes das reuniões do Conselho de Mi-nistros – eram perpassados, mesmo em períodos

Este texto é um tributo a António de Sousa Franco, desaparecido há precisamen-te um ano (9 de Junho de 2004). Nele se evocam as qualidades ímpares do pro-fessor, fiscalista e estadista e se revelam alguns episódios curiosos. Relatos dequem com ele privou de perto.

António Carlos dos Santos*

Sousa Franco, fiscalista*

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mais críticos, de um tal humor e boa disposição quepediam meças aos programas da “Contra-Informação”.Depois da experiência governativa, continuei a con-tactar regularmente com o Professor Sousa Franco.Ainda hoje, reencontro-o, com saudade, na leitura oureleitura de partes da sua imensa obra. Não apenasa obra do fiscalista, mas a do cultor das ciências fi-nanceiras e das ciências jurídico-económicas que,em meu entender, muito influenciaram o olhar dofiscalista.Como fiscalista, a obra de Sousa Franco é multifaceta-da, projectando-se em várias dimensões: a técnica, acientífica, a pedagógica e a política.A dimensão técnica manifesta-se sobretudo no seu tra-balho como investigador, em particular nessa presti-giada instituição que é o Centro de Estudos Fiscais, on-de trabalhou entre 1965 e 1968, para ser retomada maisrecentemente como jurisconsulto e advogado e comodirector do Gabinete de Estudos da Câmara dos Téc-nicos Oficiais de Contas. Nos primeiros anos de acti-vidade profissional, a expressão mais visível desta fa-ceta técnica foi o esboço de um projecto de estatutodos benefícios fiscais escrito em 1969 em parceria como Prof. Alberto Xavier e que constituiu uma importan-te fonte do actual Estatuto, aprovado 20 anos mais tar-de. Outro trabalho muito importante dessa mesmaépoca foi o estudo sobre a dupla tributação de divi-dendos, juros e royalties publicado em 1971 na revis-ta «Ciência e Técnica Fiscal».Mas a dimensão técnica, por muito importante quefosse, não era a principal preocupação intelectual deSousa Franco como fiscalista. Não era, de facto, a téc-nica fiscal ou a dogmática do direito fiscal que pre-ocupavam um espírito inquieto como o do Professor,mas sim o conhecimento científico dos sistemas fis-cais.A sua visão científica da fiscalidade e do direito fiscalera eminentemente histórica e sistémica. Ressalta dosseus textos que a fiscalidade só pode ser compreendi-da como produto da história de um povo, em particu-lar da sua história económica, política e cultural. Elanão é um fenómeno isolado. Pelo contrário: deve seranalisada como sistema e em interacção com outrossubsistemas da sociedade, em particular com o siste-ma socioeconómico, com o sistema político, com o sis-tema jurídico, com o sistema psicossociológico. Alémdisso, a fiscalidade, nunca o esqueçamos, é um instru-mento ao serviço de valores, desde logo os da justiça,e não um fim em si mesmo. A fiscalidade é, acima detudo, uma questão de cidadania e uma condição da ci-vilização.

A perspectiva sistémica era já muito visível na obra ini-cial de Sousa Franco.A visão intra-sistémica da fiscalidade levou-o à análiseda relação do direito fiscal (visto como o ramo do Di-reito que rege os impostos e outras receitas de carác-ter obrigatório, que disciplina os poderes do Estado nasua obtenção, definindo procedimentos, situações egarantias jurídicas que impeçam uma amputação arbi-trária do património dos particulares, e como parte in-tegrante, embora específica, do direito financeiro) comoutros ramos do Direito. De um lado, com o direito ci-vil, como nos estudos “Aspectos Fiscais do novo Có-digo Civil” (1967) e “O Código Civil e o Direito Fiscal”(1972). De outro, de forma indirecta, as relações como direito constitucional, como nos estudos, mais tar-dios, sobre “O sistema financeiro e a constituição fi-nanceira no texto constitucional de 1976” (1979) ou so-bre a constituição económica, este último em colabo-ração com Guilherme d’Oliveira Martins. Numa pala-vra: a fiscalidade como fenómeno que religa socieda-de civil e poder político.A visão inter-sistémica levou-o a aprofundar a relaçãodo sistema fiscal com o sistema social, como no seutrabalho sobre “A Família no Direito Fiscal Português”(1969) e, sobretudo, a relação do sistema fiscal portu-guês com o sistema económico e financeiro.Estudos como “Relações entre as estruturas dos sis-temas fiscais e o desenvolvimento económico nospaíses em vias de desenvolvimento” (1968), “Princí-pios de política fiscal nos incentivos ao desenvolvi-mento económico” (1969), “O sistema fiscal portu-guês e o desenvolvimento económico e social”(1969), “O sistema fiscal como instrumento de polí-ticas de estabilização, redistribuição, desenvolvi-mento e justiça social” (1979) são, entre outros tex-tos dispersos em capítulos de manuais, em prefáciosde livros ou em entradas de enciclopédias, clara-mente demonstrativos desta perspectiva.No final dos anos 70 e durante ao anos 80, inicia-seuma segunda linha de preocupações do Prof. SousaFranco como fiscalista. A sua atenção volta-se entãopara temas típicos do federalismo financeiro e fiscal:de um lado, os temas da relação entre a fiscalidadeportuguesa e o direito e a política de integração euro-peia, de que são exemplos os trabalhos sobre “A har-monização fiscal na CEE” (1983) ou “O sistema fiscalportuguês face à integração europeia” (1985); de ou-tro, os temas ligados à fiscalidade regional e local, co-mo ocorre com os estudos “O financiamento das es-truturas regionais” (1985), “A autonomia tributária dasregiões” (1987) e se prolonga no estudo “Os poderes

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financeiros do Estado e do município: sobre o caso dasderramas municipais” (1995).Enfim, nos anos 90, o Prof. Sousa Franco abriu-se a no-vas áreas de reflexão, em parte motivadas pela suaacção no Governo, como transparece de múltiplas in-tervenções sobre a importância da Administração Tri-butária na realização do sistema fiscal, as dificuldadesda reforma fiscal face aos micropoderes fácticos, os as-pectos fiscais da introdução do euro. Três temas deenorme actualidade sobressaem nesta fase: o da re-lação entre a fiscalidade e o ambiente: o da questão dadeslocalização dos factores de produção não laboraisnem dominais pela concorrência fiscal, pela integraçãodos grandes espaços económicos, pela globalizaçãointernacional, e o do problema da relação do sistemafiscal e do direito fiscal com os sistemas de informação,com a nova revolução digital, tecnológica e comuni-cacional, a qual exige provavelmente um corte episte-mológico com o aparelho conceptual do actual direitofiscal e a construção de um novo paradigma.A perspectiva histórica e sistémica é igualmente umtraço da dimensão pedagógica da sua obra.A relação íntima entre as finanças públicas, a econo-mia pública, o direito financeiro, a política financeirae a fiscalidade é o cerne dos seus textos de ensino uni-versitário, com especial relevo para os sucessivos ma-nuais de finanças públicas e direito financeiro, cominúmeras edições e reimpressões.

“O saber fiscal ou dá frutosou não serve para nada”

O que mais impressiona neste percurso é, antes detudo, a capacidade de, em cada momento, SousaFranco distinguir o que é verdadeiramente impor-tante do que é acidental ou acessório. E, em segui-da, a capacidade de agir em conformidade com areflexão efectuada. Pensamento e acção: é esta dia-léctica que distingue os verdadeiros intelectuais. Asduas coisas estão eminentemente ligadas, pois co-mo escreveu Sousa Franco “o saber fiscal ou dá fru-tos ou não serve para nada”. “Não há verdadeirohomo sapiens que não seja homo faber”.De facto, todas as preocupações teóricas e meto-dológicas de Sousa Franco, como financeiro e co-mo fiscalista, fizeram sentir-se ou consolidaram-sena sua acção política e nas múltiplas intervençõesque fez como ministro das Finanças do XIII Gover-no Constitucional. É nomeadamente a óptica sis-témica que atravessa a acção do fiscalista como po-lítico.

De forma realista e premonitória, Sousa Franco di-zia, no último ano da legislatura, que nem tudo oque foi feito estava consolidado e que iria haver re-trocessos em vários domínios (como ocorreu, porexemplo, com a Administração Tributária, com aUnidade de Coordenação da Luta contra a Evasão eFraude Fiscais e Aduaneira (UCLEFA), com o Con-selho Nacional de Fiscalidade, com o Defensor doContribuinte, para só falarmos das questões orgâni-cas). Tal como dizia, que nem tudo o que estavaprogramado iria ser objecto de continuidade e bas-ta ler a Resolução do Conselho de Ministros n.º119/97, contendo os quadros gerais para a reformafiscal para o Portugal desenvolvido no limiar do sé-culo XXI, para nos inteirarmos deste facto.Mas, optimista que era, dizia ainda que muitas dasreformas iriam permanecer (como, aliás, aconteceucom a Lei-Geral Tributária, com a Reforma do Có-digo de Procedimento e Processo Tributário, a Re-forma do Imposto do Selo, dos Impostos Especiaisde Consumo, o Regime Unificado das InfracçõesTributárias, o regime da fiscalização tributária, acriação da Câmara dos TOC e da Ordem dos ROC,a transformação dos abatimentos à matéria colectá-vel em deduções à colecta, a política de convençõesde dupla tributação, a criação da Direcção-Geral deInformática e Apoio aos Serviços Tributários eAduaneiros (DGITA), a profunda extensão da RedeInformática dos Impostos e das Alfândegas (RITTA),a repartição virtual de finanças, etc.) e que muitasideias, então lançadas talvez prematuramente, tardeou cedo fariam o seu percurso, porque a necessi-dade assim obrigaria.Conciliando acção política, espírito universitário epedagogia cívica, o Prof. Sousa Franco preocupou--se ainda em promover um conjunto de trabalhos ede documentos que são testemunhos de uma épo-ca e de um projecto reformista para realização aolongo de seis anos (não de seis meses) e de queapenas cito os Relatórios Estruturar o Sistema Fiscaldo Portugal Desenvolvido, o Relatório que contémo Balanço de uma legislatura, os sete volumes dasPalavras no Tempo», o livro intitulado «Debate so-bre a Reforma Fiscal», dedicado à discussão do Re-latório Silva Lopes, e muitos estudos efectuados pe-los melhores especialistas sobre a reforma dos im-postos sobre o rendimento (IRS e IRC), do impostosobre o património, do imposto automóvel, sobre areavaliação dos benefícios fiscais, sobre a fiscalida-de do sector financeiro, sobre a fiscalidade interna-cional, sobre as provisões bancárias, sobre o repor-

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te de prejuízos, sobre a reorganização dos serviçosaduaneiros, sobre a reforma da Administração Tri-butária, a melhoria dos serviços da inspecção tribu-tária, a política fiscal ambiental, a fiscalidade locale regional. Estes são, entre vários outros, marcosimportantes para quem não abdique de fazer umareforma fiscal séria e a sério.É tempo de terminar. Mas não resisto a contar duaspequenas histórias. A primeira, revela a dimensãocultural do fiscalista. Durante uma assembleia doCIAT, visitei com Nunes dos Reis, ao tempo direc-tor-geral dos Impostos, a belíssima Igreja de SãoFrancisco, na Baía, onde descobrimos uma santa,para nós desconhecida, e que dava pelo nome deSanta Coleta. Com tão sugestivo nome, pensámosque poderia ser uma boa padroeira para o fisco.Quando contei a nossa descoberta ao Prof. SousaFranco, ele informou-me que Coleta era um dimi-nutivo de Nicolette (como a escritora Colette), no-me dado por seu pai em agradecimento a São Ni-colau pelo nascimento de tão tardia filha e que San-ta Coleta tinha vivido no tempo do cisma do Oci-dente, nos séculos XIV-XV, estando na origem dareforma dos conventos das monjas da Ordem Fran-ciscana. E, logo de seguida, mandou-me um bilhe-tinho (a sua forma pessoal de “correio electrónico”)onde acrescentava que Santa Coleta, a Virgem, vi-veu enclausurada durante quatro anos e que tevetoda a gente contra a sua reforma: clérigos, laicos,as próprias monjas, sofrendo calúnias e humi-lhações. Aí pensámos que o melhor era deixar SãoMateus como padroeiro do fisco, que até nem se es-tava a portar mal, e atribuir a Santa Coleta a pro-tecção da reforma fiscal em curso.A segunda história diz respeito à quinta dimensãodo Prof. Sousa Franco como fiscalista, a do contri-buinte. Não me refiro à alergia que tinha em relaçãoà papelada, em particular ao preenchimento dosimpressos dos impostos, tarefa que deixava, comgosto, ao seu Técnico Oficial de Contas, o presi-dente da CTOC. Refiro-me, sim, ao ar espantadocom que dizia um dia em que tinha contratado al-guém (não me lembro se marceneiro, se canaliza-dor ou empreiteiro) para fazer umas obras em casae, no final, quando pediu ao ilustre prestador deserviços o recibo, este lhe perguntou: – Mas, senhorministro, sempre quer recibo com esse tal IVA? Co-mentário de Sousa Franco, que mais tarde veio ausar em intervenção pública: para conhecer a reali-dade, muitas vezes mais vale estar atento às vozesda sociedade que reler os livros dos doutores.

Era assim o Professor Sousa Franco. Um poço de in-teligência, de energia, de sensibilidade. Há pesso-as, muito poucas, que têm a magia de iluminar e co-lorir, no quotidiano, a vida dos outros. Que, com oseu exemplo, transformam a vida e os outros paramelhor. E o Prof. Sousa Franco era uma delas.Dizia Benjamin Franklin que na vida só duas coisassão inevitáveis, a morte e os impostos, a primeira,por certo, bem mais inevitável que a segunda.Mas todos temos a sensação que a morte do Prof.Sousa Franco, por certo a prazo inevitável, não ti-nha que ser agora e desta maneira.Se a morte não o colhesse trágica e prematuramen-te, teria acrescentado ao seu brilhante currículo oseu desempenho, sem dúvida excelente, como de-putado ao Parlamento Europeu. Se a morte nãoirrompesse de, forma brutal e intempestiva, pode-ria ter mesmo sido, na minha suspeita opinião, umexcelente Presidente da República.Mas mais importante que tudo, se uma morte tão es-túpida não o levasse do nosso quotidiano, teríamoshoje aqui connosco um Amigo.E, como canta Sérgio Godinho, “Coisa mais precio-sa, na vida, não há”. ★