21 cartas de amor

45
Largo José Luis Champalimaud, 4A 1600-110 Lisboa | Portugal Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor 2013 Abraço | 21 Cartas de Amor Carta Afonso Cruz, Ana Bacalhau, Ana Zanatti, António Mega Ferreira, Ethel Feldman, Fernando Leal da Costa, Filipa Leal, Isabel Zambujal, Lídia Jorge, Maria da Conceição Caleiro, Maria Manuel Viana, Miguel Vale de Almeida, Patrícia Portela, Patrícia Reis, Pedro Abrunhosa, Pilar del Rio, Ricardo Adolfo, Ricardo Baptista Leite, Richard Zimler, Rui Zink, São José Almeida Ilustração Agostinho Santos, Ana Vidigal, António Jorge Gonçalves, Ceci e Flávia Lombardi, Danuta Wojciechowska, Fernanda Fragateiro, Isa Duarte Ribeiro, Julio Dolbeth, Luzia Lage, Manuela Bacelar, Mário Vitória, Mariana a Miserável, Marlene Dias e Joana Rosa, Pascal Ferreira, Patricia Portela, Pedro Vieira, Rita Roquette de Vasconcellos, Rita Sá, Ricardo Campos, Rodrigo Prazeres Saias, Tiago Albuquerque Conceito e Design | Nuno Viegas, Ana Brito Coordenação | Ethel Feldman Impressão e Acabamento | xxx xxxx xxx Exemplares Depósito Legal xxxxxx ISBN xxx-xx-xxxx-x

Upload: ethel-silva

Post on 08-Mar-2016

250 views

Category:

Documents


1 download

DESCRIPTION

Coletânea de textos e ilustrações, cuja venda reverte a favor dos projetos da Associação ABRAÇO

TRANSCRIPT

Page 1: 21 Cartas de Amor

Largo José Luis Champalimaud, 4A1600-110 Lisboa | Portugal

Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor

2013 Abraço | 21 Cartas de Amor

CartaAfonso Cruz, Ana Bacalhau, Ana Zanatti, António Mega Ferreira,

Ethel Feldman, Fernando Leal da Costa, Filipa Leal, Isabel Zambujal, Lídia Jorge,Maria da Conceição Caleiro, Maria Manuel Viana, Miguel Vale de Almeida,

Patrícia Portela, Patrícia Reis, Pedro Abrunhosa, Pilar del Rio, Ricardo Adolfo,Ricardo Baptista Leite, Richard Zimler, Rui Zink, São José Almeida

IlustraçãoAgostinho Santos, Ana Vidigal, António Jorge Gonçalves,

Ceci e Flávia Lombardi, Danuta Wojciechowska, Fernanda Fragateiro,Isa Duarte Ribeiro, Julio Dolbeth, Luzia Lage, Manuela Bacelar, Mário Vitória,

Mariana a Miserável, Marlene Dias e Joana Rosa, Pascal Ferreira,Patricia Portela, Pedro Vieira, Rita Roquette de Vasconcellos, Rita Sá,

Ricardo Campos, Rodrigo Prazeres Saias, Tiago Albuquerque

Conceito e Design | Nuno Viegas, Ana Brito

Coordenação | Ethel Feldman

Impressão e Acabamento | xxx xxxx

xxx ExemplaresDepósito Legal xxxxxx

ISBN xxx-xx-xxxx-x

Page 2: 21 Cartas de Amor

Vinte e um anos de encontros e despedidas. Vinte e um anos

no lugar que tomo por minha casa: ABRAÇO.

Com este livro, que comemora o aniversário da ABRAÇO

somos um só, em torno da mesma causa. A que num silêncio

cúmplice diz AMIZADE.

A todos que partiram - o meu ABRAÇO

A todos que foram esquecidos - o meu ABRAÇO

A todos que ainda connosco caminham - o meu ABRAÇO

A todos que conheço e não conheço - o meu ABRAÇO

E nesse ABRAÇO a minha CARTA DE AMOR.

Margarida Martins

prefacio

Page 3: 21 Cartas de Amor

07

Carta de Amorcarta | Afonso Cruz

Ilustracao | Tiago Albuquerque

Page 4: 21 Cartas de Amor

0908

A música andava a tocar-nos à volta da pele, como uma mosca, unia-nos como dedos cruzados por dentro, como veias. Nesse tempo eu tinha vinte anos ou menos, ou se calhar tinha uma eternidade, porque nessa altura não se envelhece, cresce-se. E tu eras uma espécie de chapéu que é aquilo que une a nossa cabeça ao céu. Eras um chapéu de palavras e línguas distantes, e água e vinho, tudo misturado. Os teus dedos faziam-me tropeçar nas palavras, e eu, em vez de seguir em frente com as frases, soluçava, eram sílabas estranhas que normalmente chamamos de gemidos. E havia sempre aquela música que nos unia, uma música que ninguém sabia assobiar, uma harmonia que não era possível tocar no piano. Era assim que nos abraçávamos.

Lembro-me de nos sentarmos, juntos, ao pôr-do-sol.Tu eras um recorte nocturno, preto, eu era luz. Era desse modo que nos dividíamos e era assim que nos misturávamos.

Depois cresci, envelheci, tornei-me rugas. E tu também, mas continuaste a ser um chapéu, e os teus dedos continuaram a fazer tropeçar as minhas palavras. Hoje temos muitos anos, muita velhice acumulada no corpo, e, ao contrário de quando éramos novos, sabemos que vamos morrer.No entanto, isso dá-nos uma sensação de eternidade, algo que nunca tivemos antes, dá-nos uns dias a mais, porque sabemos que temos dias a menos. Continuaremos a ser uma melodia, mesmo depois de tudo se calar.

Page 5: 21 Cartas de Amor

11

Carta a avo saocarta | Ana bacalhauIlustracao | rita sa

Page 6: 21 Cartas de Amor

12

De vez em quando penso em ti. Não tenho muitas memórias tuas, mas tenho as fotos do meu 3 aniversário e algumas fugazes lembranças desse dia. Lembro-me de estar a brincar sozinha em tua casa e de tu vires com os meus primos pelas mãos. Fiquei tão feliz por ter com quem partilhar aqueles brinquedos todos. Depois dessa, guardo mais duas ou três memórias contigo. Lembro-me de estar no teu quarto a ouvir as Doce a cantar o “Amanhã de manhã” e de não parar de dançar. Estava a chover muito nesse dia. Por falar em chuvadas, também me lembro do pai todo aflito a correr para tua casa por causa de umas cheias muito grandes que estavam a afectar Lisboa. Moravas numa casa no rés-do-chão que estava a ficar inundada. Fiquei um bocadinho assustada. Não percebia se estavas bem ou não. Depois, tiveram de te pôr uma placa em madeira e metal à porta, para que ficasses mais protegida de outra chuvada torrencial. A última lembrança que tenho é a da minha mãe a explicar-me que tinha de sair do meu quarto durante uns tempos, porque estavas muito doente e precisavas de ir viver connosco. Naquela altura não se falava muito de cancro e também não tinha idade ainda para perceber. Não me lembro de te ver doente. Também não me lembro do dia em que morreste. Os meus pais souberam guardar-me bem da tua morte. Gostava tanto que pudesses ter ficado um bocadinho mais por aqui. Para ter mais memórias tuas. Naquela altura, era ainda muito pequena para poder gozar bem a tua companhia. Conversar contigo, perceber quem tu eras. Assim, fico só com aquilo que o meu pai me conta e aquelas 3 ou 4 imagens. Apesar de nos termos separado tão cedo, a verdade é que me fazes uma falta enorme.É uma falta diferente da que me faz o meu avô, teu marido. Ele morreu quando era ainda bebé de colo, cedo demais para que me lembre dele. Só o conheço por aquela fotografia em que me está a pegar ao colo. Não ter nenhuma memória ajuda a mitigar as saudades que tenho dele. É estranho, não é ? Ter saudades de alguém que não conheci? Eu acho que se têm saudades de muitas coisas.

13

De coisas que conhecemos muito, de coisas que conhecemos pouco e de coisas que nunca conhecemos. São saudades diferentes. É isso que te estou a tentar explicar. As saudades que sinto de ti são as que sentimos de alguém que conhecemos apenas por uns instantes e que nos levam a imaginar como seria se nos pudéssemos ter demorado um pouco mais um com o outro. Dizem-me que somos parecidas. Olhando para as tuas fotografias, acho que sim. O cabelo, a forma da cara, os olhos. Dizem-me que gostavas muito de dançar. A família do teu lado sempre foi dada à música. Fosse dançar, cantar, tocar, havia sempre alguém com queda para as artes musicais. Se calhar, foi por isso que saí assim, com este gosto por cantar. Nunca saberei com certeza quanto de mim é teu. Um gesto, uma maneira de falar, um sorriso. Essas coisas que pedimos emprestadas aos pais, aos avós, aos tios. É como se uma parte de mim tivesse ficado para sempre por conhecer melhor. Percebes o que te estou a tentar dizer? Espero que sim. O que te quero dizer é que te amo muito, avó. Apesar de não te ver há muitos anos e apesar de não te ter conhecido muito bem. Eu acho que o amor é isso mesmo. Uma presença constante, independente do tempo e do local, que irradia calor e faz com que nos sintamos bem. Não se sabe bem como nasce, nem como se desenvolve. Pode nascer de um olhar, de uma palavra, de uma parecença ou diferença. Pode desenvolver-se até na ausência de uma das partes. O amor habita na nossa memória, mesmo depois de sair da nossa vida. Às vezes, só percebemos o quanto amamos uma pessoa até que a perdemos. Pode parecer triste. E é, em certa medida. Mas olha para esta carta, avó. O amor é a única coisa que é capaz de vencer a morte. A ligação que estabelece entre dois seres é tão vital que consegue permanecer depois de a vida de um deles se ter esgotado. Enquanto houver a minha vida, há este amor que te tenho, avó. Era só isto que te queria dizer.

Beijinho grande da tua neta, Ana

o

Page 7: 21 Cartas de Amor

15

Carta de amorcarta | Ana zanatti

Ilustracao | mario vitoria

Page 8: 21 Cartas de Amor

16 17

Ainda te disse: o meu destino é estar ao teu lado mas não me ouviste. Tinhas pressa de partir, de correr para o futuro, que não era o momento de falar de amor, talvez experimentar beijarmo-nos na net, abraçarmo-nos no telemóvel, que já nada é como era, que o passado mora longe, que eu tinha de me adaptar. Nem o amor, perguntei, mas sabia a resposta: que não era tempo de falar de amor, que eu tinha de acordar para a realidade, que estava em depressão, que talvez um antidepressivo. E porque não, talvez amor?As pessoas correm, fogem, fogem, vão todas a fugir e mesmo quando não fogem a correr, fogem paradas e eu que não lhes fale de amor, ocupadas que estão nas suas tarefas incessantes de concluir que dois e dois são quatro, como se a vida se resumisse a tabuadas e todos os caminhos fossem de um só sentido.Nada que as desvie do seu projecto onde o amor não cabe, como se alguma coisa onde o amor não caiba possa ser inteira.As manhãs aqui são de chumbo, meu amor, as aves sussurram inquietas e dia após dia, todos foram caindo do encantamento.A cidade adoece, contagia vilas e aldeias de corações fechados a cadeado, temen-do que o frio invasor os pare de vez.Vão longe os dias em que acordávamos ao mesmo tempo para nos amarmos, sonhávamos criar filhos e não riqueza, inventávamos paraísos que não fiscais, te enchia o quarto de flores de um mercado que não financeiro.A minha fé no amor merece apenas olhares de desprezo e chacota que fazem de mim um ser lunático, alheado do mundo real mas experimenta, meu amor, experimenta levantar as saias à realidade que nos querem impor e verás quanta mentira ela tem entre as pernas. Enlouqueci, diz-me, enlouqueci?Saíste à procura de um futuro que teima em não se mostrar por cá mas o futuro, meu amor, não passa de um pensamento, só nos resta o presente e é nele que o amor se deve inscrever. Como pode este princípio elementar ter deixado de nos fazer sentido? Desisto de construir uma visão coerente do mundo. A vida ziguezagueia como um rio, é água, torrente imprevisível, ilógica, irracional, mas há-de haver um fio, uma linha transparente e sensível que a conduza e não me venham dizer que é feita de teres e haveres, de bolsas que disparam, de mais-valias e dividendos, de fundos que se afundam, de ratings e acções em queda, de dívida externa. A nossa maior dívida para com todos, para com o mundo, é de amor.Andam nuvens pousadas sobre a terra e apesar de tanto te querer,

é aqui que quero ficar. Pacientemente à espera, como quem espera num hospital, que essa dívida comece a ser paga. Aqui, onde os escravos que mandam no reino nos entopem de promessas de cera. Não creio que sejam gente de grandes sentimentos, são mais de pensar que de sentir, gente que nunca soube que a prosperidade sem paz no coração é geradora de caos e que a paz podre é filha de corações que dissimulam.Gente estranha sem fome de livros, nem de música, nem de teatro, nem de poesia, que decreta nos seus discursos aritméticos, que não há espaço para estados de alma nem países imaginários. Roubam-nos o sono e o sonho, cegos de números, de abstracções e cálculos virtuais.É por isso que permaneço. Em silêncio mas vigilante, a voar por dentro, a aguentar firme até que o tempo, esta nossa invenção cada vez mais enlouquecida e desenfreada, arranque todas as máscaras e nos deixe no osso se for preciso. Mas no osso com coração, quente e palpitante e não com um osso no lugar do coração que se entretém com as suas mentiras, a espalhar uma nebulosa desordememocional no seio de todas as famílias.Já não somos fortes o suficiente para viver sem desculpas ou ter coragem das nossas convicções, carregamos um passado recente que não ilumina o futuro, carregamos um morto. Tudo corre à minha volta menos a dor, essa, quando instalada, é preguiçosa, nunca tem pressa de partir. Tu, pelo contrário, sejas tu já quem fores, meu amor, saíste sem olhar para trás, não te censuro.Como tu, perdi o tecto e o emprego e talvez tenha perdido também o fio ténue que me ligava à realidade jornalística, contabilística, estatística que horror, mas ganhei a rua e o céu, o céu sim, esse mesmo de que já quase todos desistiram.Escuto a voz da cidade que me faz confidências, as águas ainda não estão secas, diz ela, esperam-se acontecimentos e há medo no ar, medo de mudança, essa coisa temível para tantos, onde desaguam todos os medos.Não temas, meu amor, quem sabe amar nada tem a temer.Teme antes a vida em ponto morto, teme que continuem a tratar os teus sentimentos como lixo ou insistam em perturbar a intimidade dos campos de trigo com autoestradas, teme que um dia nada mais te reste no bolso que um cartão com o nome do teu país, a tua fotografia, o teu nome, um cartão de plástico, o único a dar-te a ilusão da cidadania que já não podes usar.Ana Zanatti

Page 9: 21 Cartas de Amor

19

Carta de boas idascarta | Antonio mega ferreira

Ilustracao | fernanda fragateiro

Page 10: 21 Cartas de Amor

20 21

Querida M.,

Partes, portanto. Ou talvez não, a bem dizer nunca chegaste a chegar. Soube a notícia sem surpresa, assim, depressa, num rápido telefonema com que L., vitoriosa, me anunciou a tua decisão. Fico com pena que não tenhas arranjado tempo, ou coragem, para mo dizeres directamente. Mas, de qualquer forma, isso não tem importância. Eu tinha sonhado que ias partir e que te escrevia uma carta. Escrevo a carta para, ao menos uma vez na vida, fazer com que a realidade coincida com o sonho.Há uma coisa que não compreendo: o que é que te fez dar-me a ilusão de que vinhas ter comigo, que querias ficar, que querias começar de novo junto de mim? Não me lembro de to ter pedido, nem de ter posto em prática estratégias para que te decidisses a vir – o que não quer dizer que não as tenha remoído durante muito tempo, antes mesmo de tu me anunciares a tua decisão, antes mesmo de eu ter tentado insinuá-la no teu espírito. Mas não há decisões inocentes, nem omissões desinteressadas. Tu sabia-lo, eu sabia, antes de ti, que tudo são astúcias de casualidades procuradas, de aproximações que se desejam permanentes.E agora, com a frieza absurda que a dor de te ver partir me dá, consigo compreender que houve sinais de que a tua vinda era apenas um ritual de passagem, uma forma de te abalançares a escapar das teias que te prendiam à cidade onde tinhas nascido, ao bairro onde foste criada, ao meio que te viu crescer, aos afetos em que te deixaste enredar. Um dia, estávamos ao fim da tarde naquela casa de chá onde gostavas de me levar, disseste (creio que pela primeira vez) que tinhas curiosidade em conhecer a minha cidade, e eu devia ter suspeitado da palavra, porque a curiosidade é um impulso, não uma vocação. A curiosidade satisfaz-se, e, depois de saciada, acomoda-se à ideia feita que a revelação nos oferece. Somos prisioneiros dela como de uma coisa que desejámos intensamente, mas que, uma vez obtida, deixa de nos interessar. Não se constroem relações duradouras com base numa curiosidade, mas eu estava demasiado dependente do que tu me dizias, da forma como o dizias, para poder situar com precisão os motivos que te levavam a sugerir um desejo com

a discreta elegância de uma aspiração que nada tinha de vital. Mais tarde, quando vieste e começaste a desfazer a mala de viagem, mostraste-me os três primeiros volumes do romance de Proust. E eu, que procurava em cada um dos teus gestos a marca de uma comunhão que até te conhecer procurara evitar, vi nisso o sinal de uma vontade de permanecer, de durar na minha companhia. Devia ter pensado que três volumes de Proust são apenas uma parte da história, uma parte do livro, uma parte do tempo que ele se entreteve a inventar. Por isso, não me teria sido difícil adivinhar que trazias contigo a bagagem suficiente para uma temporada, não para uma vida inteira.Às vezes, sentia-te fora de mim, fora do lugar e da circunstância. Descul-pava-me, desculpando-te, porque, pensava, nunca ninguém é inteiramentede ninguém e, no decurso de duas vidas que escolheram seguir um caminho em comum, há uma infinidade de momentos como esse, em que o que há de mais íntimo em nós pede uma outra dimensão, feita de esqueci-mento e de indiferença em relação ao que temos. Conformei-me a esses teus silêncios alheados e procurei até respeitá-los para lá do razoável, porque, pensava, esse era o refúgio da tua personalidade, o escape para o teu desenraizamento, aqui, numa cidade que até há poucas semanas te fora absolutamente estranha. Talvez devesse ter pensado que, quando se ama alguém verdadeiramente, todas as cidades se tornam semelhantes, cada uma delas é apenas um fundo que muda de cena para cena, mas que não compromete nem o fio da narrativa nem o motivo que a conduz: a tentativa de ver tudo com os olhos dos dois amantes como se tudo fosse apenas uma coisa, apenas o cenário em que se desenrola o absor-vente enredo da paixão.Para ter a certeza de que esta carta não vai parar a mãos e olhos que não a pudessem compreender, não vou sequer enviá-la. É a minha pequena vingança, a de pensar que, apesar de tudo, apenas eu a sonhei como carta, como escrita de uma realidade que não estou disposta a partilhar contigo. Desejo-te, naturalmente, muitas felicidades, mas sei bem que, dentro de mim, apenas espero que não sejas capaz de vivê-las, mesmo que elas surjam no teu caminho. Parabéns à L., que vai receber-te de volta.

Page 11: 21 Cartas de Amor

23

Carta de amorcarta | ethel feldman

Ilustracao | ceci e Flavia lombardi

Page 12: 21 Cartas de Amor

24

Querido Gad,

Ontem, o mar galgou a estrada levantando todas as pedras

da calçada.

Se a natureza do homem fosse a de uma criança, libertava

todas as palmeiras do asfalto. Os pés largariam os sapatos e

o coração pediria perdão pela prisão.

O mar galgou a estrada e tu visitaste-me sorrindo lembrando

as nossas aventuras na areia. O corpo quase todo enterrado

restando somente a cabeça. Sorrindo, cantarolavas:

- Que venha a chuva e nos molhe por fora. Que venha o sol

e nos aqueça por dentro...

Se eu ameaçasse chorar gargalhavas e gritavas:

- Que venha o sol e a chuva enquanto padeço...

Dizias que eles eram como um poema, sem medo dos intervalos

sombrios.

Na noite da tua partida o céu ficou carregado de estrelas

e eu tive a certeza que ias feliz. Um abraço apertado selou o

nosso desejo de vida. Não houve promessas de novo encontro,

nem mágoas na despedida.

Os anos foram passando. O silêncio casou com o meu

cansaço, mudou de cor e virou regaço.

Agora que a vida se aproxima do fim, o mar ganha coragem

e levanta o asfalto da estrada.

Os teus pais deram-me o teu endereço, avisaram que nunca

respondeste a uma única carta.

25

Perguntei se estariam certos do teu paradeiro. Responderam

que sim. Fica a promessa de que me bastará que a leias. A

nossa cumplicidade sempre foi silenciosa.

Hoje, dei conta do pó que mora em cada móvel da minha

casa. Das migalhas de pão que ficaram esquecidas no prato, do

lamento silencioso do meu coração agora tão solitário.

Acordei cansada da demora que se fez continuada,

preguiçosa, invasora do tempo presente. Levantei cada perna

pesada, esquecida que um dia correram ligeiras. Olhei para

o espelho e vi a vida em busca da paz derradeira. O passado

ganhando o presente, engolindo o tempo, inventando

outro segundo.

Eram seis da manhã quando o mar resgatou a nossa praia,

Gad.

Se o tempo fosse outro, sorririas. Com uma pedra em cada

mão rezarias uma oração. A mesma que aprendemos quando

nascemos, um no outro. Preguiçosa, porque a reza se pede

lenta quando amamos.

- Olha esta pedra, Gad!

Em cada pedaço de terra liberta, nasce uma palmeira. Semente

de uma nova existência.

Levanto do chão as pedras que o mar esqueceu. Por nós,

neste compasso que agora danço.

Beijo

Cleo

Page 13: 21 Cartas de Amor

27

Carta de ...carta | FERNANDO LEAL DA COSTA

Ilustracao | MArlene dias E JOANA ROSA

Page 14: 21 Cartas de Amor

Podes ir e podes vir. O momento é indiferente. Sabes que és sempre.

És matéria de que me componho. És açúcar que me alimenta os nervos. És a

gordura que me enforma. És osso que me sustenta. És o choque me faz bater

o coração. És comoção cerebral. És muito mais do que emoção.

És o clarão que me acorda e a escuridão em que me acompanhas. És metade

do que posso deixar.

És a fome que como, és o meu alimento.

És minha dor e meu unguento.

És eterna e transformista. És invenção. És química e calor.

És transformação constante. Poderás ser sofrimento, mas nunca aborrecimento.

És alucinação. És as vozes que oiço, a música que trauteio, o cheiro d

o perfume.

És a face que vejo nos rostos que observo.

És a loucura em que me tornaste. És o meu desespero por não tocar-te.

És instrumento de sopro, piano que percuto, cordas que dedilho. És

a sinfonia

que componho, a orquestra que acompanho.

És todas as línguas que falo. As que provei, as que pronunc

io, as que me ensinaste

e as que ainda não aprendi. És de quem falo, ao meu falo.

És a cor do preto e branco.

És a minha imaginação. Não és o que imaginei.

Aconteceste!

Não te pedi porque, porque não podia pedir. És mais do que poderia ser imaginado.

Mas agora, que me colonizaste, não posso imaginar nada sem que estejas

presente.

És a ficção em que não habito. És o real que me toca, a pele de carícias qu

e

visto. És o que sempre procurei. És o que ainda

não encontrei.

És um voo no vazio. És quem me suspende sem gravidade. És o enjoo da vertigem,

da rotação em que se tornou a felicidade. És o torpor de alegria, após d

escarga

de grande intensidade.

És tudo isto e muito mais. És o que não consigo dizer. És aquilo para que nunca

inventaram palavras. Mas não preciso de outras que não sei.

Por tudo isto, e pelo que ainda não te disse, por tudo

o que me não deixas

dizer-te, és o meu

.... AMOR.

Para Ti.Não sei como, nem se serei capaz. Mas vou tentar.Tenho de te dizer quem És para mim.És todas as mulheres que tive e as que desejei. És todas as que nunca poderei conquistar. És todas e tudo. És síntese.És o que sou, porque me fizeste ser. És criação.Logo que te vi, não te ter beijado foi o meu maior pecado.És a outra hélice do meu DNA. Enrolada em mim. Enrolados. Fundidos. Sem roupa. Sem barreiras que nos separem. Abraçados. Energeticamente ligados. Mergulhados, um no outro. És o meio do meu corpo que se ergue por ti.És a minha outra identidade. És eu, reflectido nos teus olhos. És o brilho da íris.

És principio, porque és desejo, a motivação.És fim, porque nenhuma outra me pode provocar um êxtase que pareça tão final. És irreversível, és o que és afinal.És a galáxia mais distante.És um buraco, negro, que me suga, onde me quero enfiar para não mais voltar. És micróbio que me infectou, bionte que me ocupou, se instalou. Vives em mim. És controlo, és possuidora da “minha” alma que te adora. “Minha” porque é tua. Dei-te tudo em noites de paixão. Mesmo naquelas em que, sozinho, sonhei com o teu corpo debaixo do meu. E naquelas que vivemos, fingimos, em corpos trazidos pela ocasião. Queria-te. Queria Ti antes de te conhecer. És vida. És aquela com quem queria morrer.És certeza, uma afirmação. És todas as regras que quero violar.És libertação, revolução estrondosa.És o grito que dou, quando o prazer me provoca epilepsia. És a inundação com que quero encher-te. És a convulsão com que me entrego.És a água do meu banho. O liquido que escorre, o fluido que não consigo agarrar.És incerteza que me escapa. És os livros que tenho na cabeceira. Na cabeça, no cérebro. És tudo o que li e o que ainda não te escrevi.És chá e café. És manhã e fim de tarde. És as horas dos dias. És os momentos em que estás ausente e nunca deixas de estar presente. És tempo.És gaivotas num parapeito. Longe do mar, em terra, prontas para partir.

28 29

Page 15: 21 Cartas de Amor

31

Carta de amorcarta | Filipa LEAL

Ilustracao | ricardo campos

Page 16: 21 Cartas de Amor

32 33

Vem à Quinta-feira.

É quase fim-de-semana e podemos, talvez, beber uma cerveja

ao cair da tarde, enquanto planeamos a viagem a Paris. E se Paris

for muito caro – sei que isto não está fácil – podemos ir a Guimarães

assistir a um concerto, que ouvir é a maneira mais pura de calar.

Vem à Quinta-feira.

A seguir, temos ainda a Sexta e talvez me esperes à porta do emprego,

e talvez fiques para Sábado e Domingo, e talvez o mundo pare

de acabar tão depressa.

Vem à Quinta-feira.

Mas não venhas nesta, vem na próxima.

Nesta, tenho um compromisso que não posso adiar, é um compromisso

profissional – sabes que isto não está fácil – e talvez nos dê hipótese

de irmos a Paris ou a Guimarães.

Vem na próxima, que eu preciso de tempo para arranjar o cabelo,

para arranjar o coração, para elaborar a lista do que me falta

fazer contigo.

Vem à Quinta-feira e não te demores.

Enquanto te escrevo, já fui elaborando a lista

(sabes como gosto de pensar em tudo

ao mesmo tempo)

e afinal o que me falta fazer contigo

não é caro:

- viajar de auto-caravana,

- dançar na Estrada Nacional,

- ver-te chorar.

Choras tão pouco. Ainda bem que estás contente.

Vem à Quinta-feira.

Se não pudermos ir a Paris ou a Guimarães, não te preocupes.

Vem na mesma, que eu vou apanhando as canas-da-índia, as fiteiras,

eu vou recolhendo a palha e reunindo cordas e lona.

Já estive a aprender no Youtube como se faz uma cabana.

Vem na mesma, que eu vou procurando um lugar seguro.

Vem na mesma porque a cabana, como a casa, só funciona com amor

– ou, pelo menos, é o que diz o Youtube.

Temos ainda tanto para fazer.

Por isso, se algum dia voltares, meu amor, volta numa Quinta.

FILIPA LEAL / Inédito

O Quadro do Amor integra a performance «Poesia, Música e Vasilhame», do VII

Super Bock Laboratório Criativo (programa de responsabilidade social da Unicer).

Page 17: 21 Cartas de Amor

35

Carta ao peter pancarta | isabel zambujal

Ilustracao | danuta WOJCIECHOWSKA

Page 18: 21 Cartas de Amor

36

Meu adorado Peter Pan,Enchi-me de coragem para te contar um segredo. Desde que te conheci, ainda usava os joelhos esfolados e dentes de leite, vivo com a esperança que apareças na janela do meu quarto. Bem sei que só costumas visitar crianças, mas apesar de eu ser adulta, já com A grande, há uma parte de mim que luta para nunca crescer. Por isso, ainda me sinto acompanhada por fadinhas invisíveis e lembro-me bem das tuas palavras: “Todas as vezes que dizemos que não acreditamos em fadas, há uma que morre”. Pela minha parte, estão todas vivas e cheias de saúde.Calculo que andes muito atarefado (até imagino a pobre Sininho com olheiras!), mas sonho ver-te um dia a sobrevoar Lisboa.Ia buscar-te a um dos miradouros da cidade e, com sorte, talvez conseguisse tirar uns dias para me levares à Terra do Nunca. Aqui, na minha terra de sempre, há muitos que também não cresceram, embora tenham bigode, usem gravata e participem em reuniões de condomínio.Comportam-se como crianças embirrentas, passando o tempo a brincar com a felicidade dos outros. É verdade, Peter Pan, e são mais poderosos do que o Capitão Gancho. Eu sei que achas que se pensarmos em coisas boas, elas fazem-nos voar, mas nesta terra é difícil. Andamos zangados e cheios de medo, só se fala em crise, troika, impostos, pobreza, corrupção, injustiça e ódio. Quando disseste à Wendy: “Ódio é uma palavra forte, não achas?”, ela respondeu-te à altura: “Amor também e as pessoas falam como se não significasse nada.”Vens? Fico à tua espera. Não demores, nunca é tempo demais.Um beijo com pozinhos de perlimpimpim,Isabel (a que sonhou assinar Pan)

37

Page 19: 21 Cartas de Amor

39

Carta de amor de ruben para jessicacarta | lidia jorge

Ilustracao | luzia lage

Page 20: 21 Cartas de Amor

40 41

JÉSSICA

Vem sentar-te comigo, Jéssica, à beira do rio. Fitemos o seu curso, e aprendamos

com os antigos que a vida passa, só que nós não a deixaremos passar

tranquilos, fazendo versos e deixando as flores murcharem no regaço, como

eles, sossegadamente.

Não, Jéssica, nós não somos as crianças que eles quiseram ser toda a vida,

ou pelo menos disseram, em versos que tivemos de decorar para sermos alguém

entre os demais, que assim foram entre nascer e morrer, e nunca de assim

ser se cansaram. Mas nós, não, Jéssica, nós não seremos crianças, porque

nunca fomos crianças, e mesmo se alguma vez tivemos a tentação de o ser,

por ser bom ser infantil e sujar os dedos na resina, logo nos proibiram de

o sermos e soubemos que não o tínhamos sido nunca, nem o seríamos jamais

se quiséssemos ter viatura própria e casa com piscina. Por isso, enlacemos

as mãos com força, e esmaguemos as flores entre elas, e abraçados diante

do rio não sejamos nós dois nem crianças, nem adultos, nem homens maduros

em seus tremendos carros pretos, nem velhas raposas cheias de cãs e de

dinheiro, não queiramos ser nada de semelhante, absolutamente nada nem

ninguém que se lhes pareça, para sermos apenas amantes que se amam à

luz do sol, estendidos sobre um banco de jardim.

Crianças? Não, Jéssica, crianças não seremos nunca. Pagãos tristes com

flores no regaço não seremos nunca. Imitadores de deuses distantes, a

viverem serenos no Olimpo distante, não seremos nunca. Nós preferimos

pertencer à relé do mundo, comer carne vermelha e patinhar nos charcos,

longe das ideias coroadas de rosas e perfumes. Somos só gente, nada mais

que gente. Sabemos, desde os cinco anos de idade, que a pessoa de hoje

amanhã é ossos. Gente de hoje, é amanhã poeira. E entre uma coisa e outra

nem a sombra vaga que eles imaginaram a caminho de um lugar de sombras,

ao lado de um barqueiro sombrio , nem essa sombra existe. Nada existe que

não sejamos nós levantados no tempo, cuidando do nosso desejo como um

filho. Por isso, Jéssica, alvoroçadamente, ruidosamente, brutalmente se

for preciso, mostremos a quem passa como nos beijamos, e nos abraçamos, e

fazemos carícias, amor visível diante de toda a gente, e alguém que passe

com uma máquina de filmar que nos grave nesse instante único de fúria,

em que arde a carne, e nela a alma adormece todas as suas ânsias. Façamos

amor à luz do dia, Jéssica, para que todos os transeuntes que estiverem

munidos de um espelho eletrónico retenham no quadrângulo o nosso amor,

se assim o desejarem. Se tudo corre para nada, Jéssica, como eles nos

ensinaram, e o demonstram, dia a dia, pela prática, pelas contas públicas

e pela poesia, então a única forma de quebrar a nossa corrida para a não

eternidade consiste em prolongar o melhor instante da nossa vida, gravando-o

para que não se desfaça em nada, uma vez passado. A nossa

eternidade de um instante, minha amiga. Passe quem passar, beija-me e

abraça-me, Jéssica, querida.

Assim, eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti, porque tu não passarás

além de mim, e eu não passarei além de ti, nesta exposição universal do

instante público de amor nas nossas vidas. Outros que não creiam em nada

e o apregoem como quem vende fruta numa praça, que nós acreditamos em

nós, e isso ninguém nos poderá retirar, por mais que se escrevam leis e salmos.

Vamos, Jéssica, coloca a tua cabeça no meu peito e pendura o teu braço

esquerdo do meu pescoço. Caminhemos enlaçados de tal modo que os velhos

nos chamem de enroscados, e os invejosos da nossa crença em nós mesmos

reclamem pela ordem da polícia e nos apalpem contra a parede, pensando

que temos escondido nos sovacos as riquezas de Sabá. Deixá-los farejar as

nossas amorosas vidas que sempre depararão com o inalcançável. Tudo isso

importa pouco, Jéssica, amiga. Desde que sabemos que não há longe nem há

fado, ficámos a saber também que estamos sós no mundo e essa grandeza

veste-nos como um manto de brocado. Façam o que quiserem, digam o que

disserem, escrevam o que escreverem, os presentes, os futuros, os passados.

Possuirmo-nos um ao outro e termo-nos reconhecido no meio da multidão

é a maior conquista da nossa espécie desarmada. A nossa única conquista.

Podem difundi-la e gravá-la, Jéssica, mãos, corpo, cabelos, roupas enlaçadas,

diante de toda a gente, sem medo que um deus cheio de memória nos olhe e

nos esqueça.

Nós, Jéssica, amanhã, no cafezinho ao lado.

Rúben.

Page 21: 21 Cartas de Amor

43

NO, AMOR PER ME NON HA! NO, QUEL COR CHIUSO E A ME,

Parecias ainda querer dizer.carta | MARIA DA CONCEICAO CALEIRO

Ilustracao | PASCAL ferreira

Page 22: 21 Cartas de Amor

À Alexandra,Nunca pensei que pudesse ainda acontecer, e que tu estivesses nesse dia de banco. Que

trabalhasses naquele hospital quando havia muitos outros, e muitos outros dias para um

clínico estar de banco. Saberias que eu estava internada ali, dois ou três dias à espera,

até fazer o exame, até entrar na máquina no fim-de-semana, numa brecha da urgência,

a qualquer hora portanto, quando calhasse. E zás! Aproveitava. Levantei-me a meio da

noite, na primeira noite, pé ante pé, o que seria escusado porque a gritaria bastava para

abafar sempre a escuridão, torpedeava o sono. Shining. O filme. Um terror.

A tortura do sono no cárcere. Na sala, estavas à média-luz folheando numa revista

qualquer, para ali a monte, tu, fazendo guarda a algum caso por vir. Era eu o caso? Eras

tu, ali. Fogo cruzado? À espera de ajustar contas? Não dormíamos, ninguém deixava.

Sentei-me, contigo à frente. Não, não era verdade que nunca tivesse gostado de ti, pelo

contrário. Vou juntar as peças para te escrever.

Uma longa carta do que foi um breve adeus.

Éramos tão jovens. Adolescentes ainda e não sabíamos que nos havíamos de amar tanto

e configurar do avesso o amor.Findo era o liceu. Tínhamos o tempo todo. Íamos e vínhamos da praia, conferíamos se a maré estava cheia,

avencávamos, verbo inventado por nós, verbo vindo das avencas. Da minha praia. Ali

mesmo, mas eu nunca estava ali, onde parecia estar, dizias. Mas sim nos barcos que demorava

a ver. Não seria bem assim, mas tu até tinhas ciúmes do mar.

Éramos tão jovens. Dormiste lá em casa, lá no meu quarto, na minha cama, lá na cave. Porta para a rua. Directamente.

Era verão, estava calor, muito calor, creio. A janela estava entre-aberta, as tábuas eram

de madeira, tinha grades mas eram largas, em criança eu saltava. O cheiro da trepadeira,

bafo nocturno do jasmim entrava, inebriante, demasiado intenso se a brisa arejava de

feição. Respirávamos rindo fundo. Aquela entrada e saída do cheiro, orquestrada pela

brisa, dirigia a nossa própria respiração. E anotávamos tudo aquilo, o que era sem importância

e acontecia, o que de nós não tinha qualquer defesa. Atenção posta nessas minúcias a

que dávamos voz.Subitamente, pareciam-nos passos. Muito vagarosos, mas nítidos. Cada vez mais. Mais

perto, macerando a princípio a relva. Ou depois, ao longo da fachada sul da casa, a que a

maresia mais enferrujava, haveria ainda uma linha estreita de empedrado? uma caleira

a meio, linha de água para escoar o excesso. Disso não me lembro assim tão bem. Não me

lembro da casa? Será? Não, não é possível; havia um rego, sim; a meio, sim. Por desfastio

até se fazia treino de equilíbrio, ora um pé, ora logo de seguida outro. Sem perder a

linha. O primeiro a desproporcionar-se caía fora. Tão inútil como jogar ao elástico ou ao

mata. Com ringue claro. Ainda tens um? Eu não. Eu já não.

Recordo o timbre do som, lento. Será que trouxe o medo comigo? Reconhecê-lo-ia se

fosse agora, mesmo acolá. O que tenho mais presente é a demora, tamanha ansiedade.

No momento não queríamos fechar a janela, nem as tábuas. Não podíamos. E se esse

alguém estendesse o braço e pelo lado de fora empurrasse os vidros e as portadas. E

se minha mãe nos visse? E se uma mão rompesse? Nenhuma navalha nem coragem para a

cravar. Sei que sentimos medo, muito medo, sei que espaçámos a respiração o mais possível

sustida para nem isso se ouvir. Como se não quiséssemos nem saber que éramos nós a

estar ali. Abraçámo-nos, até aí era banal, apertámos ainda mais o laço. Corpo a corpo

bem ajustado Tínhamos tirado primeiro a roupa, quase quase toda. A pretexto do calor?

A cobrir-nos só o lençol. Depois o som desvaneceu-se. Totalmente. Num ápice, de olhos

bem fechados, nunca saberei porquê, mas foi assim ajoelhei-me na cama e decidida fechei

a janela com as trancas. Suada, pulsando fundo como macho, ainda voltei a estender-me

à tua beira. Escondi-me. A cabeça no ombro, a mão no peito. Como criança, como feto.

Ficámos assim. Posteriormente, aliviada aquela tensão, passámos a outra. Tornou-se

sensível a presença, presença do corpo. Ardente. Do que nele latejava. A mão desceu, a

minha mão desceu e abrindo bem os dedos, os olhos de novo fechados, a minha mão, esta

guiada por ti, abarcou todo o seio. Como se não fosse nada? O polegar sentiu o mamilo,

brincou com ele, tinha medrado e eu desejei-o. Pus-me a desfrutar dele, tu sorriste, tu querias, tu que rias mais, tu sabias mais, eu reclamei baixinho e debrucei-me sobre o teu corpo e duvidei e aquilo agita-se e eu comecei a sugá-lo a sugá-lo, e era bom. A carne ou o sentimento? Tu arrastaste-te e arranhaste-me e eu agarrei-me aos teus cabelos. Não levei a mão mais longe. Só a boca e a boca essa foi longe. Se não tivesse gostado muito de ti não desataria agora fio a fio a meada. Para te responder, por escrito.Uns dias antes, na tua casa já tínhamos entrado numa cegarrega, fechadas no quarto. A tua irmã insuportável podia querer entrar, vi numa folha isolada, um poema que eu queria ler, escrevias poemas, até aprendias música, ouvi-te tocar da vizinha algumas vezes, do piano da D. Laurinda que já deve ter morrido a esta hora, lembro-me bem, vês? Até devias falar francês, os teus pais vinham do Congo belga, sabes que guardei alguns poemas? Aquele, nesse dia, eu tinha encontrado descaído da secretária mas tu não querias... encobri-o, fechei os braços, os braços apertados, cruzando-os com força, corpo inteiro aconchegado à frente, como um ninho que guarda a folha, tu encheste-me de cócegas, tantas e eu sem poder mais abri mão, fiquei sem ele. Amuei, fingi amuar mas as carícias treparam mais, foram muitas. Duvidosas. A certa altura estancámos, percebo que tínhamos estado à beira, longe de mais, ou perto. Numa zona já proibida. A resvalar. Mas isso foi antes daquela noite inteira.Também quis aprender, a minha mãe comprou um piano. Comecei, mas não valia a pena continuar. Arranjei uma desculpa, uma mentira. Seria de alguém que precisou de o deixar num sítio. Passei a teclar o Czerny. À sucapa, como se fosse um crime. Passei a imitar-te e a mentir. Serias tu a tocar às vezes, na cave, no quarto, no piano que a minha mãe tinha comprado para mim.No fim de Setembro, tínhamos ido a Lisboa, ao cinema, ao Quarteto, lembras-te? Apanhámos o comboio das duas, o penúltimo, parava em todas. Vínhamos as duas de mãos dadas até casa. Felizes? Sim. No futuro como vai ser? Perguntei. Tu não entendias o que então eu queria dizer. Por que não há-de ser como agora? Eu sabia que não. Mas não dizia, só sabia que não. Porém amava-te, era a ti a ti que eu amava. Muito. Serias tu a matriz do amor, sempre, o primeiro termo de comparação. Seria o que senti por ti a medida do resto. Só que o corpo leva a melhor. O corpo é o resto que resiste. O corpo arrebata. Gostei a seguir de vários, e houve um e mais um. E eu ia sabendo que não, que ainda não. E eu diferindo, e eu deslocando a parada. O carro alado muito à frente dos bois pragmáticos.Tinhas as pernas arqueadas, as coxas gordas, os joelhos mal feitos num rosto delicado e franzino. Quantas vezes sofri por causa delas?! Como se fossem minhas, e se alguémjudiasse. E eram tuas. É ridículo eu sei. Assim, como com-paixão pelas figuras tristes que fazem os concorrentes na tv. Chamemos-lhe antes solidariedade, cabeça do dragão na décima segunda casa, o meu destino. A minha demência, compartilhar o mesmo pathos, dissolver-me nele. Depois arredar pé, furiosamente. Um dia acorda-se. E a raiva, imoderada rompe com tudo. Às golfadas. Voilá! A tua pulsão, de posse. O cerco, infernal. A minha rejeição intempestiva.

Mais tarde, uma vez, já longe, ele sentou-se numa cadeira. Partiu-se, era evidente era o mais gordo, lia-se no silêncio comprometido da plateia. E eu que estava repartida por outra mesa nesse jantar solene, fiquei com os olhos fechados, lágrimas a querer rolar. Era evidente, era disforme, o mais gordo. E eu que toda a vida andei nas dietas. No corpo ideal, no amor ideal. Na ideia. Se bem que não tivesse as pernas tortas.Mas não digas que nunca gostei de ti. Todavia tenho planetas fortes na oitava casa, a do sexo. E a da morte. L’amour fou.Ma, Che cos’è l’amore?Daqui para a frente, isto em voz off: Senhor! Livra-me do medo e das expectativas, mas não digas que nunca gostei de ti. Não me faças nunca mais voltar ao meu passado! Que agora por escrito, desmemoriando, invento.44 45

Page 23: 21 Cartas de Amor

47

carta de amorcarta | MARIA manuel viana

Ilustracao | isa DUARTE ribeiro

Page 24: 21 Cartas de Amor

48

Antes de começar a escrever-te esta carta (a primeira carta que te escrevo, percebo agora, tantos anos depois, e isso dói-me hoje como nunca me doeu, como se a inexistência de cartas trocadas entre os dois fosse uma falha grava da minha parte, como se eu, que vivo de palavras escritas, tivesse faltado a um qualquer encontro contigo, obrigando-te a ficar sozinho, durante horas, à minha espera), hesitei muito, muito tempo, por não saber como tratar-te. Porque eu nunca te tratei por tu, tu sabes e eu sei, mas a 3ª pessoa verbal é incómoda por escrito, soa mal, fica a dúvida se estamosa falar para um destinatário concreto ou se nos referimos a uma outra pessoa, e parece-me hoje que essa 3ª pessoa se interporia entre eu e tu, por ser uma convenção social que não tem correspondência na gramática, a gramática que tu me ensinaste, pacientemente, quando eu era ainda criança, e que me aborrecia tanto, lembras-te?, e à qual agora regresso tantas vezes, à procura da correcção formal em que tu tanto insistias, num tempo em que eu considerava revolucionário romper todas as regras e todas as normas, e tu ouvias-me sem me responderes que eu estava a dizer os disparates próprios de todas as gerações que se afirmam na oposição à anterior.Hesitava ainda por muitas outras razões, tu sabes, porque me parecia insuficiente tudo o que pudesse escrever agora, tão poucas as palavras existentes para dizer o que é total, íntegro, absoluto. A estas duas dúvidas iniciais respondeste-me tu, como sempre respondeste a tudo o que te perguntei, e nem foi preciso um esforço muito grande de memória para te ouvir explicar-me que o tu é muitas vezes só um artifício literário, uma convenção poética, que a Garrett, por exemplo, nunca lhe ocorreria tratar por tu a Viscondessa da Luz, e no entanto fê-lo, num dos mais belos poemas de todos os tempos, nesses versos que tantas vezes repetimos em voz alta e que ainda hoje me deslumbram e comovem tanto:

49

Também me esclareceste quanto à questão da linguagem, tu que nunca soubeste que essa seria uma das minhas obsessões, a urgência que sinto na invenção duma língua transitória, diferente e diversa para cada momento da nossa vida, com palavras para dizer o desamor, o inominável, a infelicidade, o horror, que esqueceríamos depois, e revejo-te, sério e pausado, contando-me um sonho partilhado por muitos homens, o do esperanto como línguauniversal, neutra e sem fronteiras, uma mátria linguística para os povos do mundo inteiro.Tenho, no quarto, uma fotografia tua, eu que não gosto de retratos porque me fazem sentir ainda mais as ausências, e olho muitas vezes essa foto, pequenina, tirada certamente para o teu primeiro BI e, no teu rosto de menino de dez anos, sério e composto, tento encontrar o meu próprio rosto, eu que sempre afirmei ser parecida contigo, intimidada pela evidente beleza das mulheres da família, em que nunca me revi e que sempre me assustou. Ao lado da cama, na pilha de livros que vou substituindo ao ritmo das leituras, há um que permanece, ano após ano: um livro de contos de J.Supervielle. Contudo, é sempre ao primeiro conto que regresso, porque A menina do alto mar foi uma das primeiríssimas histórias que me contaste, sem precisares do texto que sabias de cor. Não poderia explicar-te o quanto ainda me comove a história dessa menina de doze anos que vivia no fundo do oceano (o mesmo que nos viu nascer, a ti e a mim), numa rua líquida, e que ia todos os dias à escola com uma pasta onde levava os cadernos, uma gramática, uma aritmética, uma história e uma geografia.Diremos as coisas à medida que as formos vendo e sabendo. E o que tiver de continuar obscuro sê-lo-á (…),lias, na tua voz tão pura, e só muitos anos depois, demasiados, eu entenderia que aquela menina, com os seus eternos doze anos, era eu, pai, e é por isso que te escrevo esta carta, para que saibas que também eu terei sempre doze anos, toda a vida terei doze anos, eternamente doze, e que um dia irei ter contigo a esse fundo do mar habitado por estrelas cadentes e peixes voadores, e passearemos os dois de mão dada na rua flutuante dessa cidade líquida, reaprendendo a gramática e a história e a geografia durante a noite do mundo, graves e felizes como convém a um pai e a uma filha.

Vai-te, oh!, vai-te, longe, embora,Que sou eu capaz agoraDe te amar - Ai! se eu te amasse!

Page 25: 21 Cartas de Amor

51

amor ao proximocarta | miguel vale de almeida

Ilustracao | mariana a miseravel

Page 26: 21 Cartas de Amor

52

“Querido próximo, não te amo. Também não te odeio. E, no entanto, não me és indiferente. Temos obviamente um problema lógico a resolver. Vou tentar fazê-lo. O problema começa logo na designação. Quando me ensinaram que deveria amar o próximo percebi que se referiam a pessoas distantes. Tu não eras nem o familiar, nem o amigo, nem o amante. Eras alguém distante ainda que visível, a pessoa que passa na rua, a que vive no andar de baixo, a empregada, um colega de escola entrevisto apenas nos intervalos. Deviam ter-me dito “ama o distante como a ti mesmo” e a coisa logo teria feito mais sentido. Portanto: começámos mal.Não te amo porque não te conheço. Mesmo que te veja, mesmo que os nossos braços rocem no metro, mesmo que te cheire (às vezes não há como evitá-lo). És um qualquer, uma qualquer, e um qualquer próximo é o mesmo que outro próximo e todos os próximos se aproximam na sua distância. Não te amo porque não posso amar abstrações e não quero ser como aquelas pessoas que amam a humanidade ou o povo ou a nação mas não amam ninguém em concreto. Às vezes até estão dispostas a fazer mal às pessoas concretas em nome das Pessoas abstratas.Mas não te odeio, lá está. Não posso odiar o que não conheço. Posso não gostar do cheiro do teu perfume no autocarro e posso até sentir aversão ao teu teatro de cigana romena no chão em frente à pastelaria, mas isso não me faz odiar-te. A não ser que fosse como aquelas pessoas que odeiam, em pacote,os pretos, as mulheres, as bichas, os brasileiros – e odeiam-nos tanto mais quanto eles deixam de ser distantes e se aproximam. Perigosamente próximos. (Felizmente nunca meensinaram, junto com o “ama o teu próximo” um “odeia o teu distante”. E daí não sei.)

53

para isso, compaixão, empatia, sei lá. Não me és indiferente. Percebo que andas ao mesmo que eu.É claro que, se as coisas estiverem a correr bem, isto é, se as notícias não forem muito más, se eu vir mais sorrisos no metro, se os cheiros forem mais suaves, se não me bateres muito à porta, aí eu sinto que qualquer coisa anda bem no mundo dos próximos – ou dos distantes, já nem sei. Mas depois vem a tal de crise e tu tornas-te real demais. A tal de crise que não é crise coisa nenhuma mas uma espécie de revolução feita por pessoas para quem o próximo é umaabstração, o próximo é um distante, o próximo é uma realidade chata que estraga as teorias e não deixa o mundo ser como aquelas pessoas desejam. É então que a gente percebe que quando vivemos em comunidade redistribuímos consoante a nossa riqueza para que os próximos – ou os distantes? – possam viver como gente digna de ser amada. É então que a gente percebe que a tal de crise – ou a tal de revolução – é feita por quem acha que tu és um chato, um aproveita, que andas à boleia dos outros, que és preguiçoso, que és um falhado. E tiram-te tudo: tudo o que nos aproximaria, tudo o que nos tornaria menos distantes. E ao tirarem-te tudo tiram-me a mim tudo também.

E no entanto, como dizia, não me és indiferente. Eu vejo-te, eu oiço-te, eu cheiro-te, às vezes até te sinto. Outra vez: na rua, no metro, no prédio, mas também nas notícias, sobretudo as más, tu apareces-me como coisa concreta, ou pelo menos eu vejo-te como coisa concreta, e não como abstração. E há ali um momento em que há uma parte de mim que vai até ti, ou uma parte de ti que vem até mim, e tudo muda – acho até que há nome

Querido próximo, tu não és a filha que eu amo incondicionalmente.Tu não és o melhor amigo de longa data que trato como irmão. Tu não és o homem que amei ou amo e que me amou ou ama. Não precisas de gostar de mim ou da vida que levo, nem eu preciso de gostar de ti ou da vida que levas. Mas é precisamente por isso que és maravilhoso: és o próximo potencial e a prova viva de que só amo a minha filha porque algum próximo também ama a sua, que só tenho um amigo que é irmão porque alguém tem um amigo que é irmão, que só amo alguém porque alguém ama alguém também. Querido próximo, somos como aquelas coisas, os rizomas: lá muito longe, na outra ponta do campo, pareces um indivíduo, por comparação comigo, que indivíduo pareço nesta ponta de cá. Mas por baixo estamos unidos, na mesma raiz.”

Page 27: 21 Cartas de Amor

55

N. da A. - A oxitocina é considerada a hormona do amor(ou do abraco). Um processo quimico que É libertado duranteum orgasmo, durante o trabalho de parto, ou ainda durante

uma simples conversa ou um olhar mais cumpliceentre dois amigos (ou mesmo estranhos).

Acacio Nobre (1869-1974), homem de referencia do século XIX– para quem foi um fardo viver o século XX –,

construtor de brinquedos e puzzles geométricos, e conhecedor dos movimentos mais obscuros e alternativos das ciencias e das artes

da sua época, foi um homem que a ditadura silenciou e eliminoude (quase) todos os registos da Historia.

Acacio Nobre foi ainda um conhecido praticante de todas as formas de “oxitocinagem”, desafIando todos os tabus sexuais da sua época,

mesmo entre os circulos mais radicais e experimentalistasda paixao e seus derivados, introduzindo na vida moral portuguesa

conceitos alternativos de relacoes humanas que ainda hojesao pouco mencionados.

carta | patricia portelaIlustracao | patricia portela

Page 28: 21 Cartas de Amor

Amesterdão 1, 12 de Dezembro de 1968

Querida Alva,

Escolher ter tempo é escolher não fazer parte deste mundo.2

Com esta carta venho devolver a jóia que me ofereceu há mais de 50 anos e

que tenho trazido sempre comigo, no bolso direito, presa por uma corrente

de relógio. Serviu ela não para ver as horas mas para as passar bem, na

companhia de muitas que já não recordo mas que, ao longo das décadas, me

ajudaram a praticar o meu impossível esquecimento de si.

Prolonguei-me, indeciso, sobre o carácter insuficiente das palavras e dos

desenhos 3, sem me aperceber que só consigo o excelente efeito da simplifi-

cação da Natureza através da Geometria, prova da modernização do mundo.

(...) 4

56

Paris, 1916

Querida Alva, Recebi com tristeza a notícia da morte de mais um poeta modernista. Todos os meus amigos se suicidam, vivem clandestinamente, mudam de identidade, são presos, ou simplesmente desaparecem sem que ninguém se atreva a falar sobre eles. Se não posso escrever a alguém, então estou verdadeiramente sozinho. Peço-lhe que leia as minhas cartas, já não por amor, nem por saudade, nem por interesse, mas por compaixão. Não precisa de retribuir. Como prova da sua leitura, devolva as cartas, abertas, na Brasileira e saberei que as leu. Não precisa de acrescentar às minhas palavras uma única de volta. Basta-me ouvir de si que sou ouvido. Sempre seu, Acácio Nobre

57

Querida Patrícia,

O amor é um processo lento e doloroso

de desintegração contraditória de todas

as partículas.

As do prazer, e todas as outras. Eu e

o Acácio raramente aparecíamos os dois

em público:

o Acácio não falava, eu só dizia merd

a! 5 Por isso ficávamos em casa, pratic

ávamos outras

linguagens e outras ciências para comuni

car.

Só o sexo mede a importância do corp

o quando inteiro na vida de um casal.

Usei espartilho toda a vida e agora qu

e me aproximo do meu centenário vi-m

e obrigada

a fazer uma operação para recolocar m

uitos dos meus órgãos na ordem certa,

pois já me

causavam indisposições várias de tão sub

idos que andavam, dificultando-me os m

anjares ou o

simples acto de me sentar a ler ao fina

l da tarde.

Venha visitar-me. Tenho uma colecção de

fotografias com sorrisos de utilizadoras

da jóia 6 que

Acácio me devolveu quando esteve em L

isboa em 74. Foi a última vez que nos

contactámos.

Nem cheguei a vê-lo. Pediu-me apenas

para que o ajudasse a regressar a P

ortugal para

ver passar a revolução.

Foi a primeira vez que andou de avião

, um dos poucos sonhos ainda não realiz

ado.

Segundo sei, chegou a Lisboa e dirigiu

-se de imediato para uma manifestaç

ão contra a

PIDE. Enquanto me passea

va em Belém, um tiro perdido atingiu

Acácio no Chiado. Nos testículos.

Morreu, segundo a certidão do hospital,

de paragem cardíaca, tal como um poe

ta um mês

antes no Largo do Carmo.

Mas diga-me, Patrícia, não morremos tod

os porque nos pára o coração?

No seu funeral, os 20 conhecidos q

ue estavam presentes (nenhum familia

r) trouxeram

todos um livro, um laço branco, e senta

ram-se todos a beber chá masala latte

7, a comer

bolachas Maria com manteiga e a escrever, celebrando

o grande homem que Acácio foi sem qu

e

ninguém soubesse.

Fui eu quem lhe escreveu o epitáfio: “T

udo poderia ter sido outra coisa”.

Atenciosamente,

Alva

1 De acordo com os registos da PIDE, Acácio nem sempre foi Acácio. Também se chamou Fritz, Eduard Said, Antero Q., Naussibaum e Eduard Bey. O nome de Acácio Nobre surge entre 1890 e 1945, período em que foge de Portugal, é preso em Espanha, desaparece no sul da Alemanha, é dado como morto em Baku, e como reencontrado na Bélgica, é visto em Paris e preso a sete chaves em Amesterdão num asilo onde se reencontrou e conviveu com a irmã de Van Gogh.2 Foi esta a última carta que Acácio Nobre deixou na mesa da cozinha de Alva. Alva tenta recordar-se da última vez que o viu enquanto lê a carta mas não se recorda. Não faz ideia. Dentro do envelope encontra-se a jóia. Devolvida. 3 Espólio AN/18 – apontamentos soltos de Acácio (manuscritos)“As palavras são insuficientes, só o desenho as pode completar.” Diário de Acácio, 1915“O desenho é insuficiente, só as palavras o podem completar.” Diário de Acácio, 1925 4 Carta inacabada em que Acácio comparava a sua teoria da necessidade do estudo da Geometria para o progresso do país com a sua relação amorosa e complexa com Alva, sobre a qual pouco se sabe.

5Quando conheci Alva fiquei deslumbrada. Ela era linda de morrer, esguia, sedutora, mas sofria da doença de Tourett e praguejava constantemente! Acácio sofria de afasia, uma desordem da linguagem provocada pelo uso excessivo de opiáceos e potentes narcóticos, de que abusava para combater as dores crónicas que sentia, resultantes de uma lesão cerebral provocada por um ataque cardíaco durante a sua breve estadia nas trincheiras da primeira guerra mundial. Acácio sofria ainda de criatividade excessiva no uso de neologismos pessoais, de repetição insistente das mesmas frases; de impossibilidade de falar espontaneamente; tudo sintomas habituais. Era também frequente falar através de palíndromos - palavras e números que se podem ler da mesma maneira nos dois sentidos - como radar, osso, ovo, ou mesmo frases como – O lobo ama o bolo, o galo ama o lago, o céu sueco, a droga da gorda, ou a torre da derrota. Acácio, preferia sempre a escrita à conversa. E sempre o beijo à palavra.6Alva ofereceu a Acácio o famoso “pronunciador de prazeres femininos” em ouro que dominou os mexericos e conversas do mulherio francês nos circuitos surrealistas da época. Alva ofereceu-me o pronunciador em 1988 pouco antes da sua morte. Depois de pedir um estudo pormenorizado a um perito forense, descobri que a jóia, afinal, nunca fora usada.7Chá acaciano feito com especiarias indianas e leite de cabra. Com os anos, e o hábito, todos os cafés de Paris e, mais tarde, de Lisboa, mantinham guardado a sete chaves, e numa vitrina própria por baixo do balcão, um serviço de chá para uso exclusivo de Acácio Nobre. Era uma honra servir tal cliente e dizia-se que quem partilhasse com ele este chá garantia uma noite mais vertiginosa do que com qualquer copo de absinto.

Page 29: 21 Cartas de Amor

59

CARTA DE AMORcarta | PATRICIA REIS

Ilustracao | PEDRO VIEIRA

Page 30: 21 Cartas de Amor

60

Para M.Em jeito de carta, em forma de amorMeu queridoAgora que ainda aqui estás ao meu lado, a dormir, deixa-me dizer que nunca te disse tudo. Tudo é muito, sabes? Não, não sabes. Tens treze anos e, com toda a alegria que ainda consegue sobreviver à tristeza própria da adolescência, tu ris e dizes que sabes sempre o suficiente. De certa forma és um sobrevivente. Como eu. Não precisamos de encher os silêncios e podemos ficar apenas assim. A dormir. A ver filmes. No computador. Temos essa facilidade, a economia emocional de quem não está em guerra.Quando a pergunta surgiu pela primeira vez foi há muito tempo. Nesse dia, eu tinha gritado por ti, pedido para ires para dentro da banheira e tu apareceste de fato de banho, de óculos de mergulhador e barbatanas. Estou pronto. E estavas. Na banheira, com animais de borracha e um balde que servia os propósitos de lavar o cabelo sem que a água se atrevesse a ir para a tua cara, veio a dita perguntaMãe, o que é o amor?E eu ri-me, sem palavras, com o cheiro a morango do shampoo e outras coisas na cabeça. Não me recordo com exactidão, não recordo as palavras reunidas. Talvez te tenha dito que o amor era um menino vestido de mergulhador e uma mãe encharcada de água e feliz por estar assim. O amor incondicional das mães. De algumas mães. O amor sem qualquer possibilidadede medida. Isso lembro-me de repetir ao longo dos anos. Sempre a mesma conversa, não é verdade? O amor não se mede.Agora, a história é outra. Estás um rapaz. O teu corpo começa a ter pêlos. Largas o cheiro próprio dos rapazes. Eu desvalorizo, que não faz mal, e coloco spray nos teus ténis sempre que não estás a ver. Não faz efeito, pouco importa, és tu a crescer. Portanto, a questão do amor não está no cheiro artificial do morango e eu não posso vacilar. Tento explicar que é um sentimento e que podes chorar à vontade. Que, por vezes,

61

o coração se transforma num vidrinho, partido e esmigalhado. Recupera com o tempo. Depois, quando já mais calmo, me dizes que não sabes se terás jeito no sexo, sinto o meu coração do tamanho de uma ervilha e adianto-me Nem penses nisso. O sexo não será para já e quando for será bom, será amor. Mas o amor dói.E, enrolado nas roupas da minha cama, como se fosses mais pequeno e não um miúdo com um desgosto amoroso, acrescentas que o sexo mata e é perigosoQuando fazemos amor com alguém, fazemos amor com todas as pessoas com quem essa pessoa dormiu, sabias? O sexo pode matar, percebes?Eu percebo. Tanta sabedoria em plena adolescência. Vem de onde? Do mundo, é evidente. O mundo inteiro que tu tens na mão, nos sonhos que sonhas em separado. O mundo é teu, sabes? Eu entendo, cada vez menos, os centímetros que piso. Sei cada vez menos. O mundo é composto de um conjunto assustador de coisas, mas sobre isso falaremos mais tarde. É o tempo que o mundo traz e o tempo corre veloz, tão veloz.Tens ideia de como tudo é diferente quando se ama como eu te amo? Um dia terás. Um dia serás pai, farás de mim avó e talvez o teu filho, ou filha, apareça com óculos de mergulhador para entrar numa banheira cheia de espuma. As perguntas sobre o amor serão as mesmas? Provavelmente. E sobre o sexo e o corpo também, não penses que te irás safar a essa parte. Educar também é isso. Temos um corpo. Deveríamos ter aulas de dança. Já estou imaginar a tua cara, de enjoo, de rapaz. Dançar? Ó, mãe... Um dia, como estás a descobrir o teu corpo, irás ter um outro corpo colado ao teu e aprenderás que o amor também se dança ao som de uma qualquer música. O amor embala-nos. Embala-nos pela vida, posso garantir-te. Agora que dormes e eu escrevo estas palavras, há tanto ainda por explicar e tanto por viver. O que aqui te deixo, em jeito de carta embrulhado em palavras é apenas, uma vez mais, amor. Dorme bem, meu querido.

Page 31: 21 Cartas de Amor

63

CARTA DE AMORcarta | Pedro abrunhosa

Ilustracao | agostinho santos

Page 32: 21 Cartas de Amor

64

Não há liberdade como estar entre os teus braços apertado, nem o arco prende a crina às cordas duma viola com tal arremesso. Trazes-me a paz na incontidão dos teus lábios e inquietas-me no sossego nu do teu colo.A tua ausência é uma lonjura que dói de tanto te ter presente, enquanto a tua presença é sempre longe de tão perto te querer.

65

que me atravessas como uma prece a alma,

que te escuto no silêncio que deixas ao partir

e que nenhum pássaro voa tão livre nem tão

alto quanto as palavras que calamos porque

nos temos.

Amor é uma cruzada que travo ao teu lado

contra guerreiros de treva e por isso a luta

me não custa mas custaria o fardo de não

ter que a lutar.

Sou pequeno ao teu lado porque me engran-

deces tanto que me apequenas o que te queria

dar.

Por isso, Amor meu, nunca te sintas presa

no meu Abraço porque ele é fruto da vontade

indómita de fazer de ti

o que tu és.

Para sempre e Teu.

Pedro

Dizem que somos a luz um do outro. Discordo.

Somos muito mais a sombra mútua que mais

ninguém pode ver, porque ninguém é tão

reverberantemente iluminado quanto o beijo

nocturno do chão, o beijo que damos marginal

e selvagem e que nos faz um e penumbra

apenas.

Agora que me lês, quero dizer-te o que jamais

lerás em romance, poema ou canção porventura

escrito: Que te sinto na limpidez da música,

Page 33: 21 Cartas de Amor

67

CARTA DE AMORcarta | Pilar del rio

Ilustracao | ana vidigal

Page 34: 21 Cartas de Amor

68 69

Lisboa, dezembro de 2012Querido amigo, doce amigo cujo nome não conheço, embora vivas na minha sensibilidade há anos porque soubeste dar consolo a quem pensaste que dele precisava, tanto tempo depois.Como poderia esquecer a tua história, se é a do amor mais belo? Quando a tua carta me chegou, sem assinatura, porque o nome não acrescentava nada, soube, nesse momento soube, que acabavam de unir-se vontades e perante essa evidência o tempo se desmoronava:a força de um carinho capaz de juntar seres humanos que devotamente se entregam, convivem e avançam, estava ante os meus olhos, num simples papel escrito à mão com tinta que não se apaga, apesar das viagens e das ansiedades que dissipam recordações e até promessas.Era quase Natal. Nesse tempo não terias muitos anos, talvez fosses um adolescente sensível, ou então eras já um homem maduro que percebeu que as palavras escritas precisam de um espelho que lhes devolva o seu melhor eu. E tornaste-te espelho porque leste uma crónica antiga de um escritor português que também era expressão de sentimentos que nos humanizam. O escritor, um homem alto e sério que infundia temor a algumas pessoas que da vida só conhecem a superfície, e que tinha de esconder por trás de grandes óculos uns olhos que demasiadas vezes se humedeciam de emoção, contou na tal crónica, lá pelos anos 70, a história de um menino que tinha pintado a neve de preto. “Mas a neve não é preta”, disse a professora, seguramente mulher de muitas regras e pouca poesia. “No ano em que a minha mãe morreu foi”, respondeu o menino e sentou-se porque não era preciso acrescentar nada mais. Então o escritor, quando soube que isso tinha acontecido numa aldeia portuguesa, assumiu a tarefa e descreveu a história com a intensidade com que se exprimem os melhores, primeiro num jornal e depois num livro que anda por aí, de tradução em tradução, recordando aos leitores a matéria de que somos feitos, os seres humanos e os sonhos. Seguindo a mesma lógica, sessenta, setenta anos depois, tu também escreveste uma carta de amor ao menino a quem a mãe tinha morrido e pintou a neve preta, para consolá-lo, e outra ao escritor que te fez chegar a história maravilhosa, agradecendo-lhe que a contasse assim, mas por alguma razão dirigiste-a a mim, talvez porque intuíste cumplicidades entre nós, ambos leitores com memória e coração.

Respondo-te hoje porque o lugar e o tempo o reclamam, faço-o com palavras apressadas, não tão belas como as do menino do princípio do século, nem como as tuas, que eram de consolo, nem como as do escritor alto e magro, que roçavam sempre o inefável de tão delicadas e fortes, mas escrevo-te com a certeza de que a emoção não se desvaneceu e que ainda que tu e eu sejamos os únicos que restamos para poder contá-lo, aquele instante não deve perder-se mas sim crescer, como a simpatia num mundo ou como o menino que, supomos, cresceu, se fez homem e viveu a sua vida talvez sem saber que foi personagem de um escritor principal.Querido e desconhecido amigo, se esta carta te chegar não respondas: há amores que devem estar no ar, não precisam de outro contacto além da certeza da sua existência para ser e para justificar-se. Nós andamos por aqui, ainda andamos por aqui, sabemos que sentimos com a intensidade dos descobridores, que amamos como se fôssemos pioneiros, que estamos disponíveis para todos os encontros embora nunca nos vejamos. Não é necessário, insisto, que me procures, basta saber que florescemos, que nos emocionamos diante da neve preta pintada por um menino cuja mãe morreu, feito épico contado anos depois por um escritor alto e magro que agora nos tutela a partir de uma oliveira, símbolo da sabedoria. Podemos, querido amigo, fazer juntos, onde quer que ambos estejamos, algo maior do que todas as grandezas: não desistirmos de nós. Porque hoje o menino, a mãe e o escritor habitam em nós, que temos idade de sonhos e energia para expressá-los. E nenhum pudor absurdo que nos iniba de nos apresentarmos como amantes, pessoas que caminham juntas sem medo de precipícios, carícias e cartas de amor.Aqui vão, querido amigo, as letras que te devia. Contêm um profundo e generoso afeto porque abarcam várias sensibilidades, muitos anos e o carinho de quem sente com corpo e alma, se é que não são a mesma coisa. De quem ama, em definitivo, porque sabe que se não o fizesse morreria e seria o fim da história.Um abraço e as minhas mãos: deixo-te as minhas mãos para que as acaricies e as beijes: de alguma maneira guardam neve preta, aquela de então e a pessoal neve preta de agora.Pilar del Río

(Pilar del Río é jornalista)

Page 35: 21 Cartas de Amor

71

CARTA DE AMORcarta | ricardo adolfo

Ilustracao | rodrigo PRAZERES saias

Page 36: 21 Cartas de Amor

Amor,Muitos parabéns! Faz hoje um ano. Para que não viva uma dúvida se-

quer, aqui deixo escrito que foram as melhores 8760 horas da minha

vida. Nunca pensei que fosse possível sentir tamanha felicidade. A verdade é

que ainda não acredito que algo tão maravilhoso possa ter-me acontecido,

muito menos ao teu lado.

Há 525600 minutos atrás, estavas linda de chorar. O teu vestido preto

justinho, de costas decotadas, era maravilhoso. Podia ter desmaiado

quando te viraste. O detalhe do colar de pérolas virado para trás era

deslumbrante. De frente estavas radiosa, de costas magnífica. Para tornar

tudo ainda mais perfeito, continuas tão bela que cada vez que te vejo

sinto uma dor no esterno.

Foi a melhor decisão que poderíamos ter tomado. Perdoa-me ter demorado

tanto a aceitar o nosso destino. Mais uma vez, tu viste primeiro. Se não

fosse o meu retardamento emocional, já poderíamos viver neste estado

ilegal de felicidade há muito tempo. Prometo tentar tudo para compensar

os dias miseráveis que desperdiçámos em vão.

A festa foi perfeita. Desde a cerimónia ao palácio em ruínas, cada

segundo mais memorável do que o anterior. A tua capacidade de criar

momentos inesquecíveis brilhou como nunca e deixou todos encantados.

E se os convidados não eram muitos, eram os que queríamos mesmo ter

ali ao nosso lado no dia mais importante das nossas vidas. O discurso

dos padrinhos devia ser publicado. É injusto para o resto do mundo que

aquelas palavras morram ali.

O senhor Cardoso, mestre de cerimónias, esteve muito bem. Simples,

esperançoso, sem lamechices nem mentiras fáceis. Vou recomendá-lo.

E até o sol, que em Dezembro nunca dá a cara, radioso, nos fez uma

surpresa calorosa.

Se não soubesse, diria que tivemos muita sorte, mas como te conheço

tão bem sei que foi tudo planeado até à última vírgula por ti. Inclusive a

falta de comparência dos nossos pais e da chuva.

Queria ter engolido as tuas lágrimas redondinhas, tão perfeitas que pareciam

desenhadas à mão, uma a uma. Queria carregá-las para sempre dentro

do meu coração. Assim como vou carregar eternamente a imagem dos

teu lábios a dizer Sim, aliviados de amor, o teu olhar, e a estalada

que me deste com as costas da mão. Se morresse naquele movimentomorreria feliz. Confesso que fiquei apreensivo quando vi o martelo chegar. Por momentos pensei que querias abrir-me a têmpora direita à martelada. Mas quando vi, logo a seguir, as cópias das nossas alianças em vidro dourado, percebi que mais uma vez tinhas pensado tudo na perfeição. Juntos elevámos o martelo e juntos destruímos a nossa união legal. Naquele instante, também eu me desfiz em mil pedaços de pura alegria. Com uma pancadinha de amor tudo acabou. As lágrimas,misturadas com as palmas e os gritos da audiência, abraçaram-nos o primeiro beijo.Seguimos para a festa, animada pelo filme que mandaste fazer com os piores momentos das nossas vidas. Alguns são tão maus que só dão vontade de rir. Como é que duas pessoas adultas podem torturar-se durante tanto tempo de livre e espontânea vontade? Se houvesse uma polícia matrimonial, há muito que teríamos sido encarcerados numa cela minúscula, escura e fedorenta, perdida para lá da civilização. A ideia de partirmos os copos, os pratos, as terrinas, as jarras e as jarrinhas que tínhamos em casa foi de mestre. Atirar objectos de porcelana contra as paredes tem de ser a melhor catarse doméstica. Devíamos partir a loiça mais vezes.

De madrugada, quando te deixei em casa, no meu carro pintado“Divorciados de Fresco”, nunca pensei subir, muito menos imaginei que o teu vestido decotado nas costas se abrisse nas minhas mãos. Amámo-nos nas escadas, no hall, na sala, na cozinha e no quarto, amámo-nos na varanda, e só não caímos do terraço porque não tínhamos a certeza de que pudéssemos continuar a amar-nos no céu.Desde essa santificada noite que sabemos que não vamos celebrar bodas de prata e que não vamos viver felizes para sempre, mas enquanto vivermos escusamos de ser miseráveis na nossa felicidade institucionalizada.Faz hoje um ano que nos divorciámos. E todos os meus poros te querem.O senhor Cardoso disse muito bem: O casamento não é coisa que se faça a quem se ama.Ricardo AdolfoTóquio, 14 de Dezembro de 2012

72 73

Page 37: 21 Cartas de Amor

75

CARTA DE AMORcarta | ricardo baptista leiteIlustracao | manuela bacelar

Page 38: 21 Cartas de Amor

76

Amor da minha vida,Começo por te dizer que sabes bem o quanto prezo aprivacidade daquele recanto só nosso… meu e teu. Um espaço onde o silêncio apenas é interrompido pelo som das velas que, ao iluminar o teu rosto, revelam o sorriso. Um sorriso que me tranquiliza e apaixona, acelerando o batimento deste coração rendido.

Mas por hoje, escrevo-te assim, à vista de todos. Não porque o amor deva ser divulgado. Não. Escrevo-te em público, por uma só vez, para que as pessoas possam voltar a acreditar que o verdadeiro amor existe. Depois deste ato, voltaremos a ser só nós, neste amor tão puro e tão raro.Ele existe porque nós existimos. Ou, como tu dirias, porque as nossas almas se reencontraram, despertando de novo umsentimento que não é de hoje. É um amor infinito, sem início e sem fim, que perdurará para todo o sempre.Amo-te sem nenhuma razão. Amo-te por todas as razões do mundo.

Amo-te porque sim. Sonhei voar e tu ajudaste-me a abrir as asas… Voamos lado-a-lado, conscientes de que somos companheiros de uma vida. És tu meu amor. És tu.Tu és a minha inspiração, a minha vontade e o meu querer. És o ar que me faz respirar.

77

A realidade que supera o sonho.

Eu amo-te perdidamente! Loucamente! Serenamente…

Amo-te... e assim… tu sabes.

Não imagino a vida sem ti. Perder-te seria perder-me. Nunca

deixes de me amar.

Perante as dificuldades, o nosso amor será a nossa fortaleza.

Porto de abrigo entre tempestades.

Eu sei que estás aí. Que me lês. Que me sentes. Ama-me como

eu te amo. Sem barreiras, sem medo e sem receio.

No final seremos felizes.

Eu acredito. Acredita tu também.

Um beijo,

Do teu eterno amor,

Ricardo

Ricardo Baptista Leite

MédicoAssistente Convidado da Faculdade de Ciências Médicas (UNL)

Deputado à Assembleia da República

Page 39: 21 Cartas de Amor

79

o lugar mais obviotraducao | jose lima

carta | richard zimlerIlustracao | julio dolbhet

Page 40: 21 Cartas de Amor

80

Mal chegámos à igreja de S. Gregory, a minha mãe disse-me que devia ir ver o meu irmão no caixão para que ficasse com a certeza de que ele estava morto. Sentou-me num banco da igreja e contou-me que durante anos depois do irmão dela ter morrido subitamente, aconteciam-lhe coisas que a deixavam baralhada. «Às vezes via o Alan na rua, na praia, no Central Park, no metro... Era horrível. Depois, quando corria para ele, percebia que era apenas alguém parecido com ele». E acrescentava, com aspereza: «Às vezes nem isso. Todo aquele sofrimento, todos aqueles fantasmas, só por nunca ter visto o meu irmão morto». – Mas eu não quero ver o Harold dentro do caixão – disse eu – As pessoas não são todas iguais. Tu sentias essa necessidade, eu não. – Mas tens de o ver! – disse ela em tom ameaçador – Já te disse que tens de o ver. – Não. Já me basta ter vindo ao funeral. – O funeral não é nada – escarneceu – É só o princípio! – Não o vou ver. E não se fala mais nisso! Mas a urna estava aberta e o nariz dele sobressaía como o bico de um pássaro. Disse para mim próprio que o que quer que ali estivesse não havia de se parecer com o Harold. Mas parecia. A não ser a textura; a cara parecia cera polvilhada com um pó fino. O funeral realizou-se a 17 de Maio de 1987. Desde essa data, nunca confundi ninguém na rua com o Harold. Nem tão-pouco me apareceram fantasmas.

Em vez de ficar contente, como a minha mãe pensava que estava, sempre me senti desapontado com isso.Mas numa coisa ela tinha razão: o funeral era só o princípio. Sempre que a ia visitar, ficava horas sentado no quarto que em miúdo tinha partilhado com o meu irmão. Às vezes, deitava-me de costas e ficava a olhar para o tecto e a pensar no que é que teria corrido mal.

81

Como é que alguém de trinta anos apenasapanha uma doença fatal e acaba numcemitério nos arredores de Nova Iorque? Nestas minhas idas a casa, passava tempoa visitar os sítios por onde o meu irmãocostumava andar. Olhava sempre à voltade mim, como que à espera de o ver.

– É melhor assim, podes crer – assegurou a minhamãe uma vez, uns dois anos depois do funeral– Por isso deixa de te andares a torturar à espera.– Às vezes não consigo lembrar-me de como ele era – repliquei.Ao reparar no olhar céptico dela, acrescentei: – Não consigo. A sério. A sua imagem desapareceu.– Tens fotografias – observou ela.Deixei o silêncio acumular-se entre nós, pois ambos sabíamos que eu estava a falar de uma imagem interior, que de certa forma se tinha dissipado.Pegou-me nas mãos. «É assustador ficar face a face com um morto» disse ela.– Está bem, mas um pequeno relance que fosse era bom.

Passaram mais seis anos. Há precisamente uma semana, acabei omeu segundo romance. Não é verdadeiramente sobre o Harold, mas dá para se ler nas entrelinhas...A noite passada, levantei-me para ir à casa de banho às três da madrugada. Acendi a luz. E ali estava ele a fitar-me do espelho por cima do lavatório. «Harold», disse eu, como se saudá-lo fosse a coisa mais natural do mundo.A seguir comecei a ficar assustado; lembrei-me de que ele tinha mor-rido. Mas ali o tinha: o rosto magro, os olhos escuros penetrantes, o cabelo encaracolado.Fitámo-nos mutuamente durante um longo momento; eu com todas as minhas buscas, e ele todo esse tempo ali escondido no lugar mais óbvio.

Page 41: 21 Cartas de Amor

83

minha vidacarta | rui zink

Ilustracao | antonio jorge GONCALVES

Page 42: 21 Cartas de Amor

84

O amor é uma casa onde me sinto bemEu sei, enganei-te muitas vezesMas tu também me enganaste algumasEu mais, eu sei, eu sei, eu seiO que posso dizer, sou apenas um homemTu tens mais responsabilidades, és a vida inteiraCerto, nem sempre te soube amarE sim, eu sei, ninguém me mandou ser homemO amor é uma casa em construçãoMas ao mesmo tempo também não o éMagoou-te, eu sei, quando leste aquele mailMas ninguém te mandou espreitar as minhas coisasE a mim também magoou o que disseste(Na noite mesma em que enterrei o meu pai)“Acho que estou apaixonada por outro”Sim, não te faças de parva, foi isto que dissesteAchas normal? Apenas to perdoo porque, destarteMe deste incauta um passe você está livre da prisãoAté ao resto dos meus dias, até ao resto dos nossos dias(Já sei, tu discordas, tens outra versão da história, tens sempre)Achas que não teve a importância que eu lhe dou

85

E além disso estavas bêbeda e eu estava a dormir,Quem me garante até que, na volta, o não sonhei?Opiniães, já se sabe, sempre mais que as mãesTudo é breve bruma, até tu és breve brumaO meu amor por ti, dizes, também é breve brumaDiscordo: intermitente sim, mas não breveJá te tentei muitas vezes eliminar do meu sistemaNão consegui (é verdade que também não tentei muito)Eu sei, tu és a primeira a culpar-meE a amar-meAr-me, ar-me, ar-meA dizer-me as verdades e as mentiras, a dar-me tudoE tu sempre me deste tudo, eu sei, eu seiE sei também que, desta nossa forma estranhaPosso contar contigoSimAté ao fim do nosso encontro fortuitoTu continuarás porque, embora não fiel, és persistenteA dar-me tudo Rui Zink

Page 43: 21 Cartas de Amor

87

carta de amorcarta | sao jose almeida

Ilustracao | Rita Roquette de Vasconcellos

Page 44: 21 Cartas de Amor

88

Fazes-me falta(aos que não estão aqui, alguns por causa da Sida)

Quero fazer travessas e travessas de arroz doce para ti. E pudim de laranja. Sempre pudim de laranja. E frascos e frascos de doce de abóbora com nozes e de compota de ananás.Quero que andemos junto ao mar e olhemos o mar em silêncio. E que contemos as ondas atentamente, para confirmarmos mais uma vez e mais outra que a sétima é sempre maior. Quero mergulhar nas ondas contigo e pensar que te vais transformar em sereia e desaparecer no mar.Quero dar-te a mão e ficar, assim. Sem mais nada. Sem palavras. Só a sentir-te na tua mão, quando já não são precisas palavras, embora elas estejam todas por dizer.Quero olhar os teus olhos. Vê-los sorrir - o riso dos olhos é essencial. Quero nos teus olhos descobrir as cores. Vê-las todas e cada uma. E através dos teus olhos ver-te a ti e ao mundo. Sabes como tudo fica e está dito num olhar? Como os olhos atraem, aconchegam e rejeitam, sabes, não sabes?Quero ouvir-te cantar, tipo passe-vite, todas as músicas de que gostas e de que eu gosto em ti e ouvir-te tocar todos os instrumentos que nunca consegui tocar mas que toco através de ti e que me preenchem em acordes e tons de que nunca vou saber o nome, mas que quero voltar a sentir.

89

E voltar a tentar aprender a acompanhar-te nos martelinhos. E ouvir-te dizer todos os poemas que vais fazer para mim e ainda não sabes que vais. E sentir em mim cada palavra tua.Quero ver o teu sorriso tranquilo e ouvir a tua gargalhada e rir-me contigo sem saber de quê. Apenas ter mais um monumental ataque de riso, de fazer chorar de tanto rir. Um daqueles que não param.Quero voltar a conversar contigo. E voltar a conversar de novo. E discutir contigo. E apanhar fúrias contigo. E ataques de irritação por tua causa. E discordar de ti. E sentir o prazer da tua inteligência e da tua argumentação quando discordo dela – ou sobretudo quando discordo dela. Quero-te aqui, de novo e pela primeira vez. Quero-te aqui onde nunca estiveste. Fazes-me falta. Damn you!Onde estás? Onde foste?Por que foste?Por que tomaste os comprimidos? (Disseram que te tinhas enganado na dose, dizem quase sempre isso).E tu, por que não te quiseste tratar?Por que tinhas que ter tão pouco medo e deixar-me aqui com o medo todo em mim? A tremer por dentro, como as flores.A tua memória em mim é o meu desejo de ti.Sempre.Estás aqui comigo e, ao mesmo tempo, fazes-me toda a falta.

São José Almeida, sócia n. 14 da Abraço

Page 45: 21 Cartas de Amor

07 | Afonso Cruz | Tiago Albuquerque

11 | Ana Bacalhau | Rita Sá

15 | Ana Zanatti | Mário Vitória

19 | António Mega Ferreira | Fernanda Fragateiro

23 | Ethel Feldman | Ceci e Flávia Lombardi

27 | Fernando Leal da Costa | Marlene Dias e Joana Rosa

31 | Filipa Leal | Ricardo Campos

35 | Isabel Zambujal | Danuta Wojciechowska

39 | Lídia Jorge | Luzia Lage

43 | Maria da Conceição Caleiro | Pascal Ferreira

47 | Maria Manuel Viana | Isa Duarte Ribeiro

51 | Miguel Vale de Almeida | Mariana, a Miserável

55 | Patrícia Portela | Patrícia Portela 59 | Patrícia Reis | Pedro Vieira

63 | Pedro Abrunhosa | Agostinho Santos

67 | Pilar del Rio | Ana Vidigal

71 | Ricardo Adolfo | Rodrigo Prazeres Saias

75 | Ricardo Baptista Leite | Manuela Barcelar

79 | Richard Zimler | Júlio Dolbhet

83 | Rui Zink | António Jorge Gonçalves

87 | São José Almeida | Rita Roquette de Vasconcellos

indiceCarta: Ilustração:Pág.