2061 - uma odisseia no espaco - - arthur c. ckarke

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Livro que deu origem aos filmes.

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  • DADOS DE COPYRIGHT

    Sobre a obra:

    A presente obra disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com o objetivo de oferecer contedo parauso parcial em pesquisas e estudos acadmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo decompra futura.

    expressamente proibida e totalmente repudavel a venda, aluguel, ou quaisquer uso comercial do presente contedo

    Sobre ns:

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    Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutando por dinheiro e poder, ento nossasociedade poder enfim evoluir a um novo nvel.

  • Ao lado de Stanley Kubrick, Arthur C. Clarke o responsvel pela obra de fico cientficamais popular desde Jlio Verne: o filme 2001: UMA ODISSIA NO ESPAO, baseado numconto escrito por Clarke no incio da dcada de 60 e posteriormente transformado em umromance. Pressionado pelas incontveis cartas dos fs e os insistentes pedidos de seuseditores, escreveu 2010: UMA ODISSIA NO ESPAO II, que vem responder quelasperguntas formuladas em 2001, as quais inquietaram e marcaram toda uma gerao.

    Em 2061: UMA ODISSIA NO ESPAO esto de volta os misteriosos monolitos e ocosmonauta Heywood Floyd, novamente enfrentando seus adversrios de sempre: DaveBowman (ou o que quer que Bowman tenha se transformado) e HAL (o computador quecomandou a astronave Discovery em sua misso rumo a Iapetus uma das luas de Saturno e assassinou quase todos os seus tripulantes). Desta vez, porm, seu principal adversrio opoder de uma raa aliengena que decidiu que a Humanidade ter, forosamente, dedesempenhar um papel na evoluo da Galxia.

  • NOTADOAUTOR

    Assim como 2010 - uma odissia no espao II no foi uma continuao direta de 2001; umaodissia no espao, este livro tambm no uma seqncia linear de 2070. Todos essesvolumes devem ser considerados como variaes sobre o mesmo tema, envolvendo muitosdos mesmos personagens e situaes, mas no tendo como cenrio necessariamente o mesmouniverso.

    Os acontecimentos transcorridos desde 1964, quando Stanley Kubrick sugeriu (cinco anosantes do desembarque do homem na Lua) que devamos tentar "o proverbial bom filme defico cientfica", tornam impossvel a coerncia total, j que as histrias posteriores incluemdescobertas e acontecimentos que no tinham sequer ocorrido quando os livros anterioresforam escritos. 2010 tornou-se possvel com o brilhante sucesso das viagens do Voyager aJpiter em 1979, e eu no pretendia voltar quele territrio at que chegassem os resultadosda Misso Galileu, ainda mais ambiciosa.

    Galileu deveria ter lanado uma sonda na atmosfera de Jpiter e passar quase dois anosvisitando todos os seus satlites principais. Deveria ter sido lanado em maio de 1986 e teralcanado seu objetivo em dezembro de 1988. Assim, eu esperava poder aproveitar a onda denovas informaes de Jpiter e suas luas em torno de 1990...

    Infelizmente, a tragdia da Challenger eliminou essa possibilidade; Galileuque hoje repousaem sua sala anti-sptica no Laboratrio de Propulso a Jatoter de encontrar outro veculode lanamento. Ser uma sorte se chegar a Jpiter com apenas sete anos de atraso.

    Resolvi no esperar.

    Arthur C. Clarice.

    Colombo, Sri Lanka,

    Abril de 1987.

  • I-AMONTANHAMGICA

    1. OS ANOS CONGELADOS Para um homem de 70 anos, voc est em excelente forma observou o Dr. Lazunov, levantando os olhos dos resultadosfinais impressos pelo Medcom. Eu no lhe teria dado mais de 65.

    Fico muito satisfeito com isso, Oleg. Especialmente porque tenho 103 anos, como vocsabe perfeitamente bem.

    L vamos ns outra vez! Parece at que voc nunca leu o livro da professora Rudenko.

    A querida e velha Katerina! Tnhamos planejado uma reunio para o seu centsimoaniversrio. Fiquei to triste quando ela no conseguiu complet-lo o que d passartempo demais na Terra.

    Uma ironia, pois foi ela quem criou a famosa frase "A gravidade a responsvel pelavelhice".

    O Dr. Heywood Floyd olhou pensativamente para o panorama sempre mutvel do beloplaneta, a apenas seis mil quilmetros de distncia, no qual jamais poderia voltar a caminhar.Era ainda mais irnico que, graas ao mais estpido acidente de sua vida, ainda estivesse comexcelente sade quando praticamente todos os velhos amigos j estavam mortos.

    Havia apenas uma semana que estava de volta Terra quando, apesar de todas as advertnciase de sua prpria deciso de que nada daquilo jamais aconteceria com ele, tinha cado daquelavaranda do segundo andar. (Sim, estava comemorando, mas com razo: era um heri no novomundo do qual a Leonov tinha voltado.) As fraturas mltiplas resultaram em complicaes quepoderiam ser mais bem tratadas no Hospital Espacial Pasteur.

    Isso tinha acontecido em 2015. E agora no podia acreditar realmente, mas o calendrio naparede assim dizia estavam no ano de 2061.

    Para Heywood Floyd, o relgio biolgico no s tinha sido atrasado pela gravidade dohospital, que era de um sexto da gravidade terrestre, como tambm tinha sido realmenteinvertido duas vezes em sua vida. Acreditava-se agora, em geral embora certas autoridadesduvidassem que a hibernao ia alm de deter o processo de envelhecimento: elaestimulava o rejuvenescimento. Floyd se tornara na realidade mais jovem em sua viagem deida e volta a Jpiter.

    Ento voc realmente acha que posso ir com segurana?

  • Nada neste universo tem segurana, Heywood. S posso dizer que no h objeesfisiolgicas. Afinal de contas, seu meio ambiente ser, a bordo da Universe, praticamente omesmo daqui. A nave pode no ter exatamente o padro de... ah... especializao mdica queoferecemos aqui no Pasteur, mas o Dr. Mahindran bom. Se houver algum problema que eleno saiba enfrentar, poder colocar voc em hibernao outra vez e mand-lo de volta parans, pagamento contra entrega.

    Era o resultado pelo qual Floyd tinha esperado, mas de certa forma sua satisfao misturou-secom tristeza. Estaria longe, durante semanas, de seu lar de h quase meio sculo e de seusnovos amigos dos ltimos anos. Embora a Universe fosse uma nave de luxo, em comparaocom a primitiva Leonov (que agora pairava l no alto acima de Farside como uma das peasprincipais do Museu Lagrange), ainda havia um elemento de risco em qualquer viagemespacial prolongada. Especialmente uma viagem pioneira como a que ele se preparava agorapara iniciar...

    Mas talvez fosse exatamente isso o que buscava mesmo com 103 anos (ou, segundo acomplexa contagem geritrica da falecida professora Katerina Rudenko, uns saudveis 65anos). Na ltima dcada tinha tomado conscincia de uma crescente inquietao e um vagodescontentamento com uma vida que era confortvel e bem organizada demais.

    Apesar de todos os entusiasmantes projetos em execuo no Sistema Solar A Renovaode Marte, o estabelecimento da Base em Mercrio, o Projeto Verde de Ganimedes nohavia um objetivo no qual pudesse realmente focalizar seu interesse e suas energias aindaconsiderveis. H dois sculos, um dos primeiros poetas da Era Cientfica tinha resumido comperfeio os seus sentimentos ao falar pelos lbios de Odisseu/Ulysses:

    Vidas que se acumulam, somos muito pequenos,

    e de mim pouco ainda resta;

    mas cada hora que fica salva-se do silncio eterno,

    como portadora de coisas sempre novas.

    E foi mau por trs sis alienar-me

    se do desejo o esprito vibrava de seguir a idia,

    gnea estrela, at o limite final do pensamento.

    Trs sis, realmente! Tinham sido mais de quarenta: Ulysses se teria envergonhado dele. Masa estrofe seguinte, que conhecia to bem, era ainda mais adequada:

  • Podem tragar-nos os abismos,

    poderemos talvez chegar s Ilhas

    Felizes e ver o grande Aquiles.

    Muito nos foi tomado, mas resta algo

    embora sem da fora o antigo ardor

    capaz de mover cus, somos o que somos:

    da mesma tempera de heris,

    j gasta pelo tempo e destino,

    mas que forte na nsia de chegar, buscar,

    achar sem nunca desistir.

    Buscar, achar... Bem, agora ele sabia o que ia buscar e achar porque sabia exatamente ondeestaria. Exceto por algum acidente catastrfico, era impossvel que lhe escapasse.

    No era uma meta que alguma vez tivesse imaginado conscientemente, e mesmo naquelemomento no tinha muita certeza da razo pela qual ela se tornara to subitamente dominante.Julgava-se imune febre que, mais uma vez, contaminava a humanidade pela segunda vezem sua vida! mas talvez estivesse enganado. Ou possvel que o inesperado convite paraparticipar da reduzida lista de convidados ilustres para a Universe tivesse incendiado suaimaginao, despertando um entusiasmo que nunca soubera possuir.

    Havia outra possibilidade. Depois de todos aqueles anos, ainda podia lembrar-se doanticlmax que fora o encontro 1985-86 para o pblico em geral. Agora havia umapossibilidade a ltima para ele, e a primeira para a humanidade de compensar, desobra, qualquer decepo anterior.

    No sculo XX, apenas aproximaes tinham sido possveis. Desta vez, porm, haveria umdesembarque real, to pioneiro quanto tinham sido os primeiros passos de Armstrong e Aldrinna Lua.

    O Dr. Heywood Floyd, veterano da misso a Jpiter de 2010-15, deixou sua imaginao voarpara o fantasmagrico visitante que mais uma vez voltava das profundezas do espao,ganhando velocidade segundo a segundo, preparando-se para dar a volta ao Sol. E entre asrbitas da Terra e Vnus o mais famoso de todos os cometas encontraria a ainda incompletanave espacial Universe em sua viagem inaugural.

    O ponto exato do encontro ainda no tinha sido determinado, mas sua deciso j estavatomada.

  • Halley, l vou eu... murmurou Heywood Floyd.

    2. PRIMEIRA VISO

    No verdade que se tenha de deixar a terra para apreciar todo o esplendor dos cus. Nemmesmo no espao o cu estrelado mais glorioso do que visto de uma alta montanha, numanoite perfeitamente clara, longe de qualquer iluminao artificial. Embora as estrelas pareammais brilhantes alm da atmosfera, o olho no pode apreciar realmente a diferena: e oespetculo esmagador de metade da esfera celeste apreciada em conjunto algo que nenhumajanela de observao pode oferecer.

    Mas Heywood Floyd estava mais do que satisfeito com sua viso particular do universo, emespecial durante os momentos em que a zona residencial estava no lado escuro do hospitalespacial, que girava lentamente. Nessa ocasio, em seu campo de viso retangular viam-seapenas estrelas, planetas, nebulosas e, ocasionalmente, obscurecendo tudo o mais, o brilhoininterrupto de Lcifer, novo rival do Sol.

    Cerca de dez minutos antes do incio de sua noite artificial, ele desligaria todas as luzes dacabine at mesmo a luz vermelha de emergncia para adaptar-se perfeitamente aoescuro. Com um certo atraso de vida, para um engenheiro espacial, tinha aprendido osprazeres da astronomia a olho nu, e agora podia identificar praticamente qualquer constelao,mesmo que dela s visse pequena parte.

    Em quase todas as noites'', daquele ms de maio, quando o cometa estava entrando na rbitade Marte, tinha verificado sua localizao nas cartas estelares. Embora fosse fcil encontr-locom uns bons binculos, Floyd resistiu teimosamente ajuda destes; estava fazendo umpequeno jogo, vendo at que ponto seus olhos idosos correspondiam ao desafio. Embora doisastrnomos em Mauna Kea j tivessem afirmado ter observado o cometa visualmente, ningumacreditou neles, e afirmaes semelhantes de outros residentes do Hospital Pasteur tinhamsido recebidas com ceticismo ainda maior.

    Naquela noite, porm, previa-se pelo menos uma magnitude de seis, e ele poderia ter sorte.Traou a linha de gama a psilon e concentrou a ateno no pice de um imaginrio eqilterocolocado sobre ela quase como se pudesse focalizar sua viso atravs do Sistema Solarpela simples fora de vontade.

    E l estava ele! Exatamente como o vira da primeira vez, 76 anos antes, impreciso masinconfundvel. Se no soubesse exatamente para onde olhar, nem sequer o teria notado, outeria achado que se tratava de alguma nebulosa distante.

    Para seu olho nu era apenas uma bolha de nvoa pequena, perfeitamente circular. Por mais que

  • se esforasse, no pde perceber nenhum trao da cauda. Mas a pequena flotilha de sondasque vinham acompanhando o cometa h meses j tinham registrado as primeiras exploses depoeira e gs que dentro em pouco criariam uma crescente plumagem em meio s estrelas,apontando diretamente no sentido oposto ao de seu criador, o Sol.

    Como todos, Heywood Floyd tinha observado a transformao do ncleo frio, escuro no,quase negro que entrava no Sistema Solar. Depois de 70 anos de profundo congelamento, acomplexa mistura de gua, amnia e outros gelos estava comeando a dissolver-se e a ferver.Uma montanha voadora mais ou menos da forma e do tamanho da ilha de Manhattanestava dando uma cusparada csmica a cada 53 horas: medida que o calor do Sol penetravaa crosta isolante, gases vaporizadores faziam o cometa de Halley comportar-se como umacaldeira que vazasse. Jatos de vapor d'gua, misturados com ps e uma combinao infernalde compostos qumicos orgnicos, projetavam-se de meia dzia de pequenas crateras; a maiordelas, aproximadamente do tamanho de um campo de futebol, soltava sua cusparadaregularmente cerca de duas horas depois da madrugada local. Parecia-se exatamente com umgiser, e fora batizado logo de "Old Faithful" ("Velho Fiel''), em homenagem ao famoso giserdo Parque Nacional de Yellowstone, nos Estados Unidos.

    Ele j se imaginava na borda daquela cratera, esperando que o sol se erguesse acima daescura e contorcida paisagem que j conhecia to bem pelas imagens enviadas do espao. certo que o contrato nada dizia sobre a sada de passageiros ao contrrio da tripulao e dopessoal cientfico fora da nave, quando esta descesse no Halley.

    Por outro lado tambm nada havia, nas clusulas em letras menores, que o proibisseexpressamente.

    Vo ter trabalho para me segurar, pensou Heywood Floyd. Tenho certeza de que ainda sei usarum traje espacial. E se estiver errado...

    Lembrou-se de ter lido que um visitante do Taj Manai dissera, certa vez: "Eu morreriaamanh, para ter um monumento como este.

    Ele preferiria com satisfao o cometa de Halley.

    3. REGRESSO TERRA

    Mesmo sem aquele constrangedor acidente, a volta Terra no tinha sido fcil.

    O primeiro choque ocorreu pouco depois da reanimao, quando a Dra. Rudenko o tinhaacordado de seu prolongado sono. Walter Cumow estava junto dela, e mesmo no seu estado desemiconscincia, Floyd percebeu que alguma coisa estava errada: o prazer que demonstraram

  • ao v-lo acordar era um pouco exagerado demais, e no conseguia disfarar uma certa tenso.S depois que se recuperou plenamente disseram-lhe que o Dr. Chandra j no estava entreeles.

    Em algum ponto alm de Marte, de maneira to imperceptvel que os monitores no podiamregistrar a hora, ele tinha simplesmente deixado de viver. Seu corpo, matroca no espao,continuara livremente a acompanhar a rbita da Leonov e tinha sido h muito consumido pelofogo do Sol.

    A causa da morte era totalmente desconhecida, mas Max Brailovsky manifestou uma opinioque, embora muito pouco cientfica, nem o Comandante-Mdico Katerina Rudenko procurourefutar:

    Ele no podia viver sem o Hal.

    Walter Curnow, logo ele, acrescentou outra reflexo:

    No sei como Hal reagir a isso. Alguma coisa l fora deve estar monitorando todas asnossas emisses. Mais cedo ou mais tarde, ele saber.

    Agora Curnov tambm se fora e todos os outros, exceto a pequena Zenia. No a via h vinteanos, mas seu carto chegava pontualmente a cada Natal. O ltimo ainda estava espetado nopainel acima de sua mesa: mostrava uma trica cheia de presentes, correndo nas neves de uminverno russo, vigiada por lobos que pareciam muito famintos.

    Quarenta e cinco anos! Por vezes parecia ter sido apenas ontem que a Leonov voltara rbitada Terra, aplaudida por toda a humanidade. No obstante, tinha sido um aplauso curiosamentecomedido, respeitoso, mas sem entusiasmo autntico. A misso a Jpiter fora um sucessodemasiado grande. Abrira a Caixa de Pandora, cujo contedo ainda no havia sido revelado.

    Quando o monolito negro conhecido como Anomalia Magntica Tycho Um (AMT-1) foiescavado na Lua, apenas um punhado de homens sabia de sua existncia. S depois da fatdicaviagem da Discovery a Jpiter, o mundo ficou sabendo que, quatro milhes de anos antes,outra inteligncia tinha passado pelo Sistema Solar e deixado o seu carto de visitas. Anotcia foi uma revelao, mas no uma surpresa: h dcadas esperava-se alguma coisa nessesentido.

    E tudo isso aconteceu muito antes da existncia da raa humana. Embora um misteriosoacidente tivesse ocorrido com a Discovery l fora em volta de Jpiter, no havia nenhumaprova real de que fosse alguma coisa mais do que um defeito a bordo. Embora asconseqncias filosficas da AMT-1 fossem profundas, para todas as finalidades prticas aHumanidade continuava sozinha no Universo.

    Isso j no era mais verdade. A apenas alguns minutos-luz de distncia o que no Cosmosera muito perto estava uma inteligncia que podia criar uma estrela e, com objetivosinescrutveis, destruir um planeta mil vezes maior do que a Terra. E muito mais pressago erao fato de que essa inteligncia mostrara conhecer a Humanidade, numa ltima mensagem que a

  • Discovery mandara das luas de Jpiter, pouco antes que o brilho intenso de Lcifer odestrusse:

    TODOS ESSES MUNDOS SO SEUS EXCETO EUROPA. NO TENTEMDESEMBARCAR ALI.

    A nova e brilhante estrela, que tinha acabado com a noite, exceto nos poucos meses em que, acada ano, passava atrs do Sol, trouxera ao mesmo tempo esperana e medo para aHumanidade. Medo porque o desconhecido, em especial quando parecia ligado onipotncia, no podia deixar de provocar essas emoes primevas. Esperana devido transformao que provocou na poltica global.

    Dizia-se com freqncia que a nica coisa capaz de unir a Humanidade era uma ameaa doespao. Se Lcifer era uma ameaa, ningum sabia; mas era certamente um desafio. E issobastava, como se viu.

    Heywood Floyd tinha acompanhado as transformaes geopolticas da perspectiva doHospital Pasteur, quase como se fosse um observador estranho. A princpio, no tinha ainteno de ficar no espao depois de completar sua recuperao. Para o intrigadoaborrecimento de seus mdicos, essa recuperao levou um tempo inesperado.

    Analisando esse fato retrospectivamente, na tranqilidade de seus ltimos anos, Floyd sabiaexatamente por que seus ossos se recusavam a soldar-se: simplesmente no queria voltar paraa Terra no havia nada para ele l embaixo naquele globo ofuscante, azul e branco, queenchia o seu cu. Havia momentos em que podia compreender que Chandra tivesse perdido avontade de viver.

    Foi por mero acaso que no estava com a sua primeira mulher naquele vo Europa. AgoraMarion estava morta, sua memria parecia parte de uma outra vida que poderia ter pertencidoa outra pessoa, e as duas filhas que tiveram eram como desconhecidas amveis, e tinham suasprprias famlias.

    Tinham, porm, perdido Caroline por sua prpria culpa, embora no houvesse escolha, nocaso. Ela nunca compreendeu (teria ele realmente feito isso?) por que Floyd deixou a belacasa que tinham feito juntos para exilar-se, durante anos, nos frios desertos distantes do Sol.

    Embora soubesse, antes mesmo que a misso chegasse ao meio, que Caroline no esperaria,alimentara esperanas desesperadas de que Chris o perdoasse. Mas at mesmo esse consololhe fora negado: o filho passara demasiado tempo sem um pai. Quando Floyd voltou, Christinha encontrado outro, no homem que o substitura na vida de Caroline. O distanciamento foitotal. Floyd achou que jamais se recuperaria, mas claro que se recuperou de certo modo.

    Seu corpo tinha espertamente conspirado com os seus desejos inconscientes. Quando por fimvoltou Terra, depois de uma demorada convalescncia no Pasteur, evidenciou logo sintomasto alarmantes inclusive algo suspeitamente parecido como necrose ssea que foimandado s pressas de volta para a rbita. E ali tinha ficado, com exceo de umas poucasviagens Lua, completamente adaptado vida na gravidade de zero a um sexto do hospital

  • espacial que girava lentamente.

    No era um recluso longe disso. Embora convalescente, ditava relatrios, faziadepoimentos ante interminveis comisses, era entrevistado por representantes dos meios decomunicao. Era um homem famoso e gostava disso enquanto durou. Ajudava a compensaras feridas interiores.

    A primeira dcada completa 2020 a 2030 parecia ter passado to depressa que ele tinhaagora dificuldades em focaliz-la. Houve as crises, escndalos, crimes e catstrofes habituais notadamente o Grande Terremoto da Califrnia, cujas conseqncias tinha observado, comum horror fascinado, pelas telas dos monitores da estao. Na ampliao mxima, emcondies favorveis, podiam mostrar seres humanos individualmente. Com sua viso deDeus, porm, foi impossvel sentir-se identificado com aqueles pontinhos que fugiam correndodas cidades em chamas. S as cmeras locais mostraram o verdadeiro horror.

    Durante aquela dcada, embora os resultados s se tornassem evidentes mais tarde, as placastectnicas polticas moveram-se to inexoravelmente quanto as geolgicas mas no sentidooposto, como se o tempo estivesse correndo para trs. Pois no incio a Terra possua o nicosupercontinente de Pangea, que com os ees se dividiu. O mesmo aconteceu com a espciehumana, dividida em numerosas tribos e naes; agora fundia-se, quando as velhas separaeslingsticas e culturas comeavam a tornar-se imprecisas.

    Embora Lcifer tivesse acelerado o processo, este comeara dcadas antes, quando o adventoda era do jato provocou uma exploso de turismo global. Quase ao mesmo tempo no era,certamente, coincidncia os satlites e as fibras ticas revolucionaram as comunicaes.Com a histrica abolio das taxas para chamadas a longa distncia, a 31 de dezembro do ano2000, todo telefonema tornou-se local, e a raa humana saudou o novo milnio transformando-se numa nica e enorme famlia conversadeira.

    Como a maioria das famlias, nem sempre era pacfica, mas suas brigas j no eram umaameaa a todo o planeta. A segunda e ltima guerra nuclear viu o uso em combate domesmo nmero de bombas que a primeira precisamente duas. E embora a quilotonagemfosse maior, as baixas foram muito menores, pois ambas foram usadas contra instalaespetrolferas em reas pouco povoadas. quela altura, os Trs Grandes China, EstadosUnidos e Unio Sovitica agiram com elogivel rapidez, isolando a zona de batalha at queos combatentes que sobreviveram voltassem a ter bom senso.

    Na dcada de 2020-30 uma guerra entre as Grandes Potncias era to inimaginvel quantouma guerra entre o Canad e os Estados Unidos no sculo anterior. Isso no era conseqnciade nenhuma grande melhoria na natureza humana, nem mesmo de nenhum fato isolado, exceto apreferncia normal pela vida, e no pela morte. Grande parte do mecanismo da paz no foranem mesmo planejado de maneira consciente: antes que os polticos percebessem o que tinhaacontecido, descobriram que estava montado, e funcionava bem...

    Nenhum estadista, nenhum idealista de qualquer ideologia inventou o movimento dos "Refnsda Paz": esse nome s foi criado bem depois que algum percebeu que havia sempre cem mil

  • turistas russos nos Estados Unidos e meio milho de americanos na Unio Sovitica, amaioria dedicando-se ao passatempo tradicional de queixar-se das instalaes hidrulicas. Etalvez mais pertinente, ambos os grupos tinham um nmero desproporcionalmente grande depessoas importantes os filhos e filhas da riqueza, do privilgio e do poder poltico.

    E mesmo que se desejasse, j no era possvel planejar uma guerra em grande escala. A Idadeda Transparncia alvoreceu na dcada de 1990, quando os meios de comunicao maisarrojados em massa comearam a lanar satlites fotogrficos com resolues comparveis sque os militares tiveram por trs dcadas. O Pentgono e o Kremlin ficaram furiosos, mas nopodiam competir com a Reuters, a Associated Press e com as cmeras vigilantes 24 horas pordia do Orbital News Service.

    Em 2060, embora o mundo no estivesse totalmente desarmado, estava efetivamentepacificado, e as 50 armas nucleares que restavam estavam todas sob controle internacional.Houve uma resistncia surpreendentemente pequena quando o popular monarca Edward VIIIfoi eleito primeiro Presidente Planetrio, com a discordncia de apenas doze estados, cujotamanho e importncia iam da Sua que ainda teimava em ser neutra (mas cujosrestaurantes e hotis saudaram a nova burocracia com braos abertos) at as Malvinas,estas ainda mais fanaticamente independentes, que resistiram a todas as tentativas dosexasperados ingleses e argentinos de impingi-las uns aos outros.

    O desmantelamento da enorme indstria de armamentos, totalmente parasitria, deu umimpulso por vezes at mesmo pouco saudvel economia mundial. Matrias-primasvitais e brilhantes talentos de engenharia deixaram de ser engolidos por um virtual buraconegro ou, pior ainda, dirigidos para a destruio. Puderam ser usados, em lugar disso, nareparao da devastao e negligncia de sculos, reconstruindo o mundo.

    E construindo outros, novos. Agora, realmente, a Humanidade tinha encontrado, o equivalentemoral da guerra'', e um desafio que podia absorver as energias excedentes da raa portantos milnios futuros quanto se ousasse sonhar.

    4. MAGNATA

    Quando nasceu, William Tsung foi chamado de "o beb mais caro do mundo'', ttulo quemanteve por dois anos apenas, at que fosse reivindicado por sua irm. Ela ainda oconservava, e agora que as Leis de Famlia tinham sido revogadas, no seria questionadonunca.

    Seu pai, o lendrio Sir Lawrence, nasceu quando a China restabeleceu a rigorosa regra de"Um Filho, Uma Famlia"; sua gerao proporcionou a psiclogos e cientistas sociaisinterminvel material de estudo. No tendo irmos ou irms e em muitos casos, nem tios ou

  • tias , ela foi singular na histria humana. Se o crdito disso cabia flexibilidade da espcieou ao mrito do sistema chins de famlia ampliada, provavelmente nunca se saber. Averdade que as crianas daquele estranho perodo foram notavelmente livres de problemas;mas certamente no deixaram de ser afetadas, e Sir Lawrence tinha feito o mximo, e demaneira espetacular, para compensar o isolamento de sua infncia.

    Quando seu segundo filho nasceu em 2022, o sistema de licenciamento se havia transformadoem lei. Era possvel ter quantos filhos se quisesse, desde que fosse paga a taxa adequada. (Oscomunistas sobreviventes da Velha Guarda no foram os nicos a considerar o planoaterrador, mas foram vencidos pelos seus colegas mais pragmticos do novo Congresso daRepblica Democrtica Popular.)

    Os nmeros 1 e 2 estavam livres de taxas. O nmero 3 custava um milho de sois. O nmero4, dois milhes. O nmero 5, quatro milhes, e assim por diante. O fato de que, teoricamente,no havia capitalistas na Repblica Popular, foi alegremente ignorado.

    O jovem Sr. Tsung (isso aconteceu anos antes, claro, que o rei Edward o fizesse CavaleiroComandante da Ordem do Imprio Britnico) nunca revelou se tinha algum objetivo em mente;era ainda um milionrio razoavelmente pobre quando seu quinto filho nasceu. Mas tinhaapenas 40 anos, e quando a compra de Hong Kong no consumiu uma parcela to grande deseu capital quanto tinha receado, descobriu que dispunha ainda de uns considerveis trocados.

    E o que diz a lenda mas, como tantas outras histrias sobre Sir Lawrence, era difcildistinguir entre fato e mitologia. No havia certamente verdade no persistente rumor de queele tinha ganho a sua primeira fortuna com a famosa edio pirata do tamanho de uma caixa desapatos da Biblioteca do Congresso. Toda a quadrilha do Mdulo da Memria Molecular erauma operao fora da Terra, possibilitada pelo fato de os Estados Unidos no terem assinadoo Tratado Lunar.

    Embora Sir Lawrence no fosse um multimilionrio, o complexo de empresas por eleconstrudo transformou-se na maior potncia financeira da Terra um feito nada desprezvelpara o filho de um humilde vendedor de vdeo-cassete no que era ainda conhecido como osNovos Territrios. Ele provavelmente nunca notou os oito milhes para o filho Nmero Seis,ou mesmo os 32 para o Nmero Oito. Os 64 milhes que teve de pagar pelo Nmero Noveatraram publicidade mundial, e depois do Nmero Dez as apostas sobre seus futuros planosbem podem ter excedido os 256 milhes que o prximo filho lhe teria custado. Mas quelaaltura, Lady Jasmine, que combinava as melhores propriedades do ao e da seda emrequintada proporo, decidiu que a dinastia Tsung estava adequadamente estabelecida.

    Foi por acaso (se existe acaso) que Sir Lawrence envolveu-se pessoalmente nos negcios doespao. Ele tinha, decerto, grandes interesses martimos e aeronuticos, mas estes eramdirigidos pelos seus cinco filhos e seus scios. O verdadeiro amor de Sir Lawrence eram ascomunicaes jornais (os poucos que restavam), livros, revistas (de papel e eletrnicas) e,acima de tudo, as redes globais de televiso.

    Foi ento que ele comprou o velho e majestoso Hotel Peninsular, que para um menino chins

  • pobre tinha parecido outrora o smbolo da riqueza e do poder, e transformou-o em suaresidncia e principal escritrio. Cercou-o de um belo parque, com o expediente simples decolocar os enormes centros comerciais debaixo da terra (sua recm-formada Companhia Laserde Escavaes ganhou nesse processo uma fortuna e abriu o precedente para muitas outrascidades).

    Um dia, quando admirava a silhueta sem par da cidade, do outro lado da baa, achou que umnovo melhoramento era necessrio. A vista dos andares mais baixos do Peninsular estavabloqueada h dcadas por um grande edifcio que parecia uma bola de golfe amassada. SirLawrence resolveu que ele teria de desaparecer.

    O diretor do Planetrio de Hong Kong considerado em geral como um dos cinco melhoresdo mundo tinha outra opinio, e dentro em pouco Sir Lawrence teve o prazer de descobriralgum que no podia comprar por dinheiro nenhum. Os dois tornaram-se amigos; mas quandoo Dr. Hessenstein promoveu uma sesso especial para o 60 aniversrio de Sir Lawrence, nosabia que estava ajudando a mudar a histria do Sistema Solar.

    5. FORA DO GELO

    Mais de cem anos depois que Zeiss construiu o primeiro prottipo em Jena, em 1924, aindahavia uns poucos projetores de planetrio ticos em uso, pairando dramaticamente sobre o seupblico. Mas Hong Kong tinha aposentado seu instrumento de terceira gerao h algumasdcadas, em favor do sistema eletrnico, muito mais verstil. Toda a grande cpula era,essencialmente, uma gigantesca tela de televiso, feita de milhares de painis separados, nosquais qualquer imagem concebvel podia ser mostrada.

    O programa tinha comeado inevitavelmente com um tributo ao inventor desconhecidodo foguete, em algum ponto da China durante o sculo XIII. Os primeiros cinco minutos foramuma rpida recapitulao histrica, dando talvez um crdito menor do que o devido aospioneiros russos, alemes e americanos, para concentrar-se na carreira do Dr. Hsue-ShenTsien. Seus compatriotas podiam ser desculpados, naquele momento e lugar, se o fizeramparecer to importante na histria do aperfeioamento dos foguetes quanto Goddard, vonBraun ou Korolyev. E eles certamente tinham razes para indignar-se pela sua deteno, sobacusaes forjadas nos Estados Unidos quando, depois de ajudar a criar o famoso Laboratriode Propulso a Jato e ser nomeado o primeiro professor da ctedra Goddard no Instituto deTecnologia da Califrnia, resolveu voltar para seu pas.

    O lanamento do primeiro satlite chins pelo foguete Long March 1, em 1970, mal foimencionado, talvez porque naquela poca os americanos j estavam caminhando na Lua. Naverdade, o resto do sculo XX foi liquidado em poucos minutos, para levar a histria at 2007e a construo secreta da nave espacial Tsien vista de lodo

  • O narrador no glosou indevidamente a consternao das outras potncias exploradoras doespao quando uma estao espacial, presumivelmente chinesa, deixou subitamente a rbita edirigiu-se n Jpiter, alcanando a misso russo-americana a bordo do Cosmonauta MexeiLeonov. A histria era suficientemente dramticae trgica para no precisar deembelezamentos.

    Infelizmente, havia muito pouco material visual autntico para ilustr-la: o programa teve derecorrer em grande parte a efeitos especiais e reconstituio inteligente, a partir delevantamentos fotogrficos posteriores, de longo alcance. Durante sua breve permanncia nagelada superfcie de Europa, a tripulao da Tsien esteve ocupada demais para fazerdocumentrios de televiso, ou mesmo instalar uma cmera automtica.

    No obstante, as palavras ditas na ocasio transmitiam muito do drama daquela primeiradescida nas luas de Jpiter. O comentrio transmitido por Heywood Floyd, da Leonov que seaproximava, serviu admiravelmente para estabelecer o clima, e havia muitas tomadas deEuropa colhidas em bibliotecas, para ilustr-lo:

    '' Neste exato momento estou a observ-la pelo mais poderoso dos telescpios da nave: comesse aumento, dez vezes maior do que a Lua tal como vista da Terra a olho nu. E realmente uma viso estranha.

    "A superfcie de um rseo uniforme, com umas poucas faixas marrons. Est coberta com umacomplicada rede de linhas estreitas que se curvam e recurvam em todas as direes. Naverdade, ela se parece muito com uma foto de um manual de medicina, mostrando o desenhodas veias e artrias.

    "Algumas dessas linhas tm centenas milhares, mesmode quilmetros de extenso, eparecem-se muito com os canais ilusrios que Percival Lowell e outros astrnomos do inciodo sculo XX imaginavam ter visto em Marte.

    Mas os canais de Europa no so uma iluso, embora decerto no sejam artificiais. E o que mais surpreendente, realmente contm gua ou pelo menos, gelo. Pois o satlite quasetotalmente coberto pelo oceano, com a mdia de 50 quilmetros de profundidade.

    "Por estar to distante do Sol, a temperatura da superfcie de Europa extremamente baixa cerca de 150 graus negativos. Portanto, poderamos esperar que seu nico oceano seja umslido bloco de gelo.

    "Surpreendentemente, porm, isso no ocorre porque h muito calor gerado no interior deEuropa pelas foras da maras mesmas foras que impulsionam os grandes vulces dosatlite vizinho, Io.

    "Portanto, o gelo est continuamente em fuso, rompendo-se, e congelando-se, formandograndes frestas e aberturas como nos lenis de gelo flutuantes em nossas regies polares. esse intricado traado de rachaduras que estou vendo agora; a maioria delas escura e muitoantiga talvez com milhes de anos. Outras, porm, so de um branco quase puro: so as

  • mais recentes que tm uma crosta de apenas alguns centmetros de espessura.

    "A Tsien desceu bem ao lado de uma dessas rachaduras brancas a de 1.500 quilmetros eque foi batizada de Grande Canal. Provavelmente os chineses pretendem bombear sua guapara seus tanques propulsores, para que possam explorar o sistema de satlites de Jpiter, eem seguida voltar Terra. Isso pode no ser fcil, mas eles certamente estudaram o local dedescida com grande cuidado, e devem saber o que esto fazendo.

    " evidente, agora, por que correram tal risco e por que reivindicam Europa. Como pontode reabastecimento. Ela poderia ser a chave de todo o Sistema Solar.

    Mas as coisas no se tinham passado assim, pensou Sir Lawrence, reclinando-se em sualuxuosa poltrona sob o disco riscado e sarapintado que enchia seu cu artificial. Os oceanosde Europa ainda eram inacessveis Humanidade, por motivos que ainda constituam ummistrio. E no s inacessveis, mas invisveis; desde que Jpiter se tornara um sol, seus doissatlites interiores tinham desaparecido sob nuvens de vapor provenientes de seu interior emebulio. Estava olhando para Europa como havia sido em 2010, e no como era hoje.

    Naquela poca ele era pouco mais do que um menino, mas ainda se lembrava do orgulho quesentiu ao saber que seus compatriotas por mais que discordasse de sua polticaestavamna iminncia de realizar o primeiro desembarque num mundo virgem.

    No havia uma cmera l, claro, para registrar aquela descida, mas a reconstituio eramuito bem-feita. Ele podia realmente acreditar que aquela era a fatdica nave espacialdescendo silenciosamente do cu escuro em direo paisagem glida de Europa erepousando ao lado da faixa desbotada de gua recm-congelada que tinha sido batizada deGrande Canal.

    Todos sabiam o que acontecera em seguida; e talvez, prudentemente, no tivesse havidonenhuma tentativa de reproduzir visualmente esse fato. Em lugar disso, a imagem de Europadesapareceu, sendo substituda por um retrato to conhecido dos chineses quanto o de YuriGagarin para todos os russos.

    A primeira fotografia mostrava Rupert Chang quando de sua formatura em 1989 o jovemestudioso e interessado, igual a um milho de outros, totalmente inconsciente de seu encontromarcado com a Histria, duas dcadas no futuro.

    Rapidamente, sobre um fundo musical em surdina, o comentarista resumiu os pontos maisimportantes da carreira do Dr. Chang, at sua nomeao como Oficial Cientista a bordo daTsien. Superpostas no tempo, as fotos se foram tornando mais velhas, at a ltima tiradaimediatamente antes da misso.

    Sir Lawrence estava satisfeito com a escurido do planetrio, pois tanto seus amigos comoinimigos se surpreenderiam vendo a umidade de seus olhos ao ouvir a mensagem que o Dr.Chang tinha dirigido para a Leonov que se aproximava, sem saber se seria recebida:

    "... sei que esto a bordo da Leonov... talvez no tenha muito tempo... dirigindo minha antena

  • para onde acho...

    O sinal desaparecia por alguns agoniantes segundos, depois voltava mais claro, embora nomuito mais alto.

    "... transmitam essa informao para a Terra. A Tsien foi destruda h trs horas. Sou o nicosobrevivente. Uso o rdio de minha roupa espacial no sei se tem alcance bastante, mas anica possibilidade. Por favor, ouam cuidadosamente. H VIDA EM EUROPA. Repito: HVIDA EM EUROPA...

    O sinal desaparecia de novo...

    "... logo depois da meia-noite local. Estvamos bombeando continuamente e os tanquesestavam quase pela metade. O Dr. Lee e eu samos para verificar o isolamento dos canos. ATsien estestava a trinta metros da beirada do Grande Canal. Os canos saem diretamenteda nave e atravessam o gelo. Muito finono seguro caminhar sobre ele. O afloramento dasguas profundas quentes...

    De novo um longo silncio.

    "... nenhum problema cinco quilowatts de luzes estendidas num fio na nave. Como umarvore de Natal bonito, brilhando no gelo. Cores gloriosas. Lee o viu primeiro: umaenorme massa escura erguendo-se das profundezas. A princpio, pensamos que fosse umcardume de peixes grande demais para um nico organismo , depois ela comeou aromper o gelo...

    "... como enormes pedaos de algas marinhas molhadas, arrastando-se pelo cho. Lee correupara a nave para apanhar a cmera eu fiquei observando e informando pelo rdio. A coisamovia-se to lentamente que eu poderia t-la ultrapassado facilmente. Estava muito maisagitado do que alarmado. Achei que sabia que tipo de criatura era vi fotos das florestas dealgas da Califrnia , mas estava enganado.

    "... percebi que a coisa estava em dificuldades. No poderia sobreviver a uma temperatura de150 graus abaixo de seu ambiente normal. Congelava-se medida que avanava pedaosrompiam-se como gelomas mesmo assim avanava em direo nave, uma onda negra,cada vez mais lenta.

    "Eu continuava to surpreso que no pude pensar direito e no pude imaginar o que ela estavatentando fazer...

    "... subindo em direo nave, construindo uma espcie de tnel de gelo enquanto avanava.Talvez isso a isolasse do frio da mesma forma que os cupins se protegem da luz solar comseus pequenos corredores de barro.

    "... toneladas de gelo sobre a nave. As antenas de rdio romperam-se primeiro. Depois pudever as pernas de sustentao da nave oscilarem tudo em cmara lenta, como num sonho.

    "S quando a nave comeou a tombar compreendi o que a coisa estava tentando fazer, e j era

  • tarde demais. Poderamos ter-nos salvo se apenas tivssemos desligado aquelas luzes.

    "Talvez fosse um fottropo, com o ciclo biolgico ativado pela luz solar que se filtra atravsdo gelo. Ou poderia ter sido atrada como a mariposa pela vela. Nossas luzes devem ter sidomais brilhantes do que qualquer coisa jamais vista em Europa...

    "E ento a nave desabou. Vi o casco romper-se, uma nuvem de flocos de gelos formar-secomo umidade condensada. Todas as luzes se apagaram, exceto uma, que ficou oscilando deum fio alguns metros acima do cho.

    "No sei o que aconteceu imediatamente depois disso. Quando dei por mim, estava de p soba luz, ao lado dos restos da nave, com a poeira fina da neve fresca minha volta. Podia verclaramente minhas pegadas nela. Devo ter corrido para l; talvez apenas um ou dois minutostivessem transcorrido.

    A planta continuo a pensar nela como uma planta estava imvel. Indaguei-me se teriasido atingida pelo impacto; pedaos grandesda grossura do brao de um homemse tinhampartido dela, como lascas quebradas.

    "E ento o tronco principal comeou a mover-se outra vez. Afastou-se do casco e comeou aarrastar-se na minha direo. Foi ento que tive certeza de que a coisa era sensvel luz: euestava de p exatamente sob a lmpada de mil watts, que j ento parar de oscilar.

    "Imaginem um carvalho melhor ainda, uma figueira da Bengala com seus mltiplos troncose razes achatada pela gravidade e tentando arrastar-se pelo cho. Chegou a cinco metrosda luz, depois comeou u espalhar-se at formar um crculo perfeito minha volta.Presumivelmente era esse o limite de sua tolerncia o ponto em que a fotoatrao setransformava em repulso. Depois disso, nada aconteceu por, vrios minutos. Indaguei-me seestaria morta totalmente congelada, por fim.

    "Foi ento que vi que grandes brotos se estavam formando em muitos dos ramos. Era como verum filme em que as flores se abrem. Na verdade, eram flores cada uma do tamanho dacabea de um homem.

    "Membranas delicadas, de belas cores, comearam a abrir-se. Mesmo ento, ocorreu-me queningum nada poderia jamais ter visto aquelas cores antes; elas no existiam at quetrouxemos nossas luzes nossas fatais luzes para este mundo.

    "Tendes, estames, agitando-se debilmente... Dirigi-me parede viva que me cercava, paraver exatamente o que estava acontecendo. Nem ento, nem em qualquer outro momento, tivequalquer medo da criatura. Tinha certeza de que no era maligna se que chegava a teralguma conscincia.

    "Havia dezenas dessas flores grandes, em vrias fases de abertura. Lembravam-me agora asborboletas emergindo das crislidas asas amassadas, ainda frgeis , eu estava meaproximando cada vez mais da verdade.

    "Mas elas se estavam congelando, morrendo to logo se formavam. E ento, uma aps a outra,

  • caam dos ramos de onde vinham. Por um momento saltavam volta como peixes perdidos naterra seca e finalmente percebi com exatido o que eram. Aquelas membranas no eramptalas eram nadadeiras, ou seu equivalente. Era a fase larval da criatura que nadavalivremente. Provavelmente ela passava grande parte de sua vida presa ao leito do mar; depois,mandava esses rebentos mveis em busca de novo territrio. Exatamente como os corais dosoceanos da Terra.

    "Ajoelhei-me para ver mais de perto uma das pequenas criaturas. As belas cores estavamagora apagando-se, transformando-se num marrom opaco. Algumas das nadadeiras-ptalas setinham quebrado, transformando-se em pequenos cacos ao se congelarem. Mas ela ainda semovia de leve, e quando me aproximei procurou evitar-me. No sei como percebeu minhapresena.

    "Notei ento que os estames, como os chamei, tinham todos manchas de um azul brilhante emsuas pontas. Pareciam pequenas safiras estreladas ou os olhos azuis do manto de umvestido conscientes da luz, mais incapazes de formar imagens verdadeiras. Enquanto euobservava, o azul vivo apagou-se, as safiras tornaram-se opacas, como pedras ordinrias...

    "Dr. Floyd, ou quem estiver ouvindo, eu no tenho muito tempo mais. Jpiter bloquear meusinal dentro em pouco. Mas estou acabando.

    "Eu sabia ento o que tinha de fazer. O fio daquela lmpada de mil watts estava quase nocho. Dei-lhe uns puxes, e a luz desapareceu num chuveiro de fagulhas.

    "Fiquei pensando se teria sido tarde demais. Durante uns poucos minutos, nada aconteceu. Porisso, caminhei at a parede de ramos entrelaados minha volta e dei-lhe um pontap.

    "Lentamente a criatura comeou a desemaranhar-se e a retirar-se de volta para o canal. Haviabastante luz eu podia ver tudo perfeitamente. Ganimedes e Calisto estavam no cu Jpiter era um enorme e fino crescente e havia uma grande aurora no lado noturno, noextremo jupiteriano do tubo de fluxo de Io. No havia necessidade de usar a luz de meucapacete.

    "Acompanhei a criatura at a gua, estimulando-a com novos pontaps quando andava maisdevagar, sentindo os fragmentos de gelo esmagados sob minhas botas... Ao aproximar-se docanal, a coisa pareceu ganhar fora e energia, como se soubesse que se aproximava de seu larnatural. No sei se poderia sobreviver, florescer novamente.

    '' Desapareceu sob a superfcie, deixando algumas larvas mortas na terra estranha. A gualivre, exposta, borbulhou por alguns minutos at que uma camada de gelo protetor selou-a dovcuo acima. Depois, fui at a nave para ver se havia alguma coisa a salvar no quero falarsobre isso.

    "Tenho apenas dois pedidos a fazer, doutor. Quando os taxonomistas classificarem essacriatura, espero que lhe dem o meu nome.

    "E quando a prxima nave regressar, peam-lhes que levem nossos ossos de volta para a

  • China.

    "Jpiter se interpor dentro de poucos minutos. Gostaria de saber se algum est merecebendo. De qualquer modo, repetirei esta mensagem quando estivermos novamente emlinha reta, se o sistema de manuteno de vida de minha roupa espacial durar at l.

    "Fala o professor Chang, em Europa, informando a destruio da nave espacial Tsien.Descemos ao lado do Grande Canal e instalamos nossas bombas na orla do gelo...

    O sinal desapareceu abruptamente, voltou por um momento, depois desapareceu totalmentesob o rudo. No haveria outra mensagem do professor Chang, mas ela j tinha desviado asambies de Lawrence Tsung para o espao.

    6. O PROJETO VERDE DE GANIMEDES

    Rolf Van der Berg era o homem certo no lugar certo no momento certo: nenhuma outracombinao teria funcionado. Grande parte da Histria se faz assim, claro.

    * Era o homem certo porque era um refugiado africnder de segunda gerao e um gelogoformado, dois fatores de igual importncia. Estava no lugar certo porque esse lugar tinha deser a maior das luas de Jpitera terceira de dentro para fora, na seqncia Io, Europa,Ganimedes, Calisto.

    O momento no era to crtico, pois a informao vinha sendo guardada, como uma bomba deao retardada, nos Trancos de dados pelo menos h uma dcada. Van der Berg s a encontrouem 2057; mesmo assim foi necessrio mais um ano para convencer-se de que no estava louco e foi em 2059 que seqestrou discretamente os registros originais para que ningumpudesse fazer a mesma descoberta. S ento pde dedicar, com segurana, toda a sua atenoao principal problema: o que fazer em seguida.

    Tudo comeou, como acontece tantas vezes, com uma observao aparentemente trivial numcampo que nem mesmo era do interesse direto de Van der Berg. Seu trabalho, como membroda Fora-Tarefa de Engenharia Planetria, era levantar e catalogar os recursos naturais deGanimedes. No se devia ocupar do satlite proibido que lhe ficava vizinho.

    Mas Europa era um enigma que ningum e muito menos os seus vizinhos imediatos podia desconhecer por muito tempo. A cada sete dias ela passava entre Ganimedes e obrilhante minissol que tinha sido Jpiter, produzindo eclipses que podiam durar at 12minutos. No seu ponto mais prximo, parecia um pouco menor do que a Lua vista da Terra,mas reduzia-se a apenas um quarto desse tamanho quando estava no outro lado de sua rbita.

    Os eclipses eram, com freqncia, espetaculares. Pouco antes de deslizar entre Ganimedes e

  • Lcifer, Europa transformava-se num pressago disco negro delineado por um anel de fogo,vermelho como a luz do novo sol refratada pela atmosfera que tinha ajudado a criar.

    Em menos da metade do tempo de uma vida humana, Europa se tinha transformado. A crostade gelo no hemisfrio sempre voltado para Lcifer se dissolvera para formar o segundooceano do Sistema Solar. Durante uma dcada, ele tinha espumado e borbulhado no vcuoacima, at que se estabelecesse um equilbrio. Agora, Europa tinha uma tnue atmosfera que podia ser usada, mas no por seres humanos de vapor d'gua, sulfeto de hidrognio,carbono e dixidos de enxofre, nitrognio e uma mistura de gases rarefeitos. Embora o lado dosatlite erroneamente batizado de Noite ainda estivesse permanentemente congelado, uma reagrande como a frica dispunha agora de um clima temperado, gua lquida e umas poucasilhas esparsas.

    Tudo isso, e no muito mais, tinha sido observado pelos telescpios na rbita da Terra. Napoca em que a primeira expedio em grande escala foi mandada s luas de Galileu, em2028, Europa j tinha sido envolvida por um manto permanente de nuvens. Cautelosassondagens de radar pouco revelaram alm de um oceano liso, num lado, e gelo quase queigualmente liso, no outro; Europa ainda mantinha sua reputao como a coisa menosacidentada do Sistema Solar.

    Dez anos depois, isso j no era verdade; alguma coisa drstica tinha acontecido com Europa.Tinha agora uma montanha solitria, quase to grande quanto o Everest, rompendo o gelo dazona obscura. Presumidamente, alguma atividade vulcnica como a que aconteceincessantemente na vizinha Io tinha empurrado essa massa de material na direo do cu. Oenorme aumento do fluxo de calor de Lcifer poderia ter provocado isso.

    Havia, porm, problemas com essa explicao bvia. O monte Zeus era uma pirmideirregular, e no o cone vulcnico habitual, e sondagens com o radar no revelaram nenhumadas correntes de lava caractersticas. Algumas fotografias de m qualidade, conseguidas Comtelescpios em Ganimedes, durante uma abertura temporria nas nuvens, sugeria ser amontanha feita de gelo, como a paisagem congelada sua volta. Qualquer que fosse aresposta, a criao do monte Zeus tinha sido uma experincia traumtica para o mundo que eledo- minava, pois toda a configurao maluca de massas de gelo fraturadas do lado Noite tinhamudado totalmente.

    Um cientista meio doido sugeriu a teoria de que o monte Zeus era um "iceberg csmico" umfragmento de cometa cado do espao sobre Europa; a bombardeada Calisto apresenta provasamplas de que tais bombardeiros tinham acontecido no passado remoto. Essa teoria era muitomal acolhida em Ganimedes, onde os supostos colonos j tinham problemas suficientes.Ficaram muito aliviados quando Van der Berg refutou essa teoria de maneira convincente:qualquer massa de gelo daquele tamanho se teria partido com o impacto e mesmo que notivesse, a gravidade de Europa, por mais modesta que fosse, teria provocado rapidamente oseu colapso. Medidas feitas com radar mostravam que embora o monte Zeus estivesse naverdade afundando continuamente, sua forma geral continuava inalterada. O gelo no era aresposta.

  • O problema poderia ter sido resolvido, claro, mandando-se uma nica sonda atravs dasnuvens de Europa. Infelizmente, o que estava atrs daquela nvoa no estimulava acuriosidade.

    TODOS ESSES MUNDOS SO SEUS EXCETO EUROPA. NO TENTEMDESEMBARCAR ALI.

    A ltima mensagem transmitida da nave Discovery, pouco antes de sua destruio, no foraesquecida, mas houve discusses interminveis sobre a sua interpretao. A palavra"desembarcar" referia-se tambm a sondas robticas, ou apenas a veculos tripulados pelohomem? E quanto s aproximaes, tripuladas ou no? Ou ao envio de bales atmosferasuperior?

    Os cientistas estavam ansiosos para descobrir, mas o pblico em geral evidenciava claronervosismo. Uma potncia capaz de detonar o mais vigoroso planeta do Sistema Solar nopodia ser desafiada. E seriam necessrios sculos para explorar e colonizar Io, Ganimedes,Calisto e as dezenas de satlites menores; Europa podia esperar.

    Mais uma vez, portanto, disseram a Van der Berg para no desperdiar seu valioso tempo compesquisas sem importncia prtica, quando havia tanta coisa a fazer em Ganimedes. ("Ondepodemos encontrar carbono fsforo nitratos para as fazendas hidropnicas? Qual aestabilidade da escarpa Barnard? Haver perigo de mais deslizamentos de lama em Frgia?" Eassim por diante...) Ele, porm, herdara de seus ancestrais bores a bem merecida fama deteimosia; mesmo ao trabalhar em seus numerosos projetos, continuava a olhar para Europa,por cima do ombro.

    E um dia, apenas por algumas horas, uma ventania limpou o cu volta do monte Zeus.

    7. TRNSITO

    "Tambm eu me despeo de tudo o que tive.

    De que profundezas da memria tinha aquele verso aflorado? Heywood Floyd fechou os olhose tentou focalizar sua ateno no passado. Era sem dvida de um poema e poucos versosteria lido desde que deixara o colgio. E mesmo no colgio foram poucos, exceto durante umbreve Seminrio de Apreciao de Ingls.

    Sem outras indicaes, talvez fosse necessrio ao computador da estao algum tempo atmesmo uns dez minutos para localizar o verso em toda a literatura inglesa. Mas isso seriauma fraude (para no falar no nus), e Floyd preferia aceitar o desafio intelectual.

    Um poema de guerra, claro mas qual? Havia tantos, no sculo XX...

  • Ainda estava buscando entre a nvoa mental quando seus convidados chegaram, movendo-secom a graa fcil, em cmara lenta, dos que vivem h muito com uma gravidade de um sexto.A sociedade do Hospital Pasteur era fortemente influenciada pelo que tinha sido batizado de"estratificao centrfuga": algumas pessoas nunca deixavam o setor de gravidade zero,enquanto outras, que esperavam voltar algum dia para a Terra, preferiam o regime de pesoquase normal, l fora, na borda do enorme disco que girava lentamente.

    George e Jerry eram agora os mais antigos e ntimos amigos de Floyd o que erasurpreendente, pois tinham poucas coisas em comum. Olhando retrospectivamente para suacarreira emocional um tanto variegada dois casamentos, trs contratos formais, doisinformais, trs filhos , ele por vezes invejava a estabilidade da relao daqueles dois,aparentemente pouco afetados pelos "sobrinhos" da Terra ou da Lua que os visitavam detempos em tempos.

    Vocs nunca pensaram em se divorciar? perguntou provocadoramente, certa vez.

    Como sempre, George cuja tcnica como maestro, um tanto acrobtica mas profundamentesria, tinha sido em grande parte responsvel pelo retorno da orquestra clssica no perdeuo humor.

    Divorciar, nunca foi sua resposta rpida. Matar, sim, freqentemente.

    E claro, ele nunca conseguiria fugir replicou Jerry. Sebastian entornaria o caldo.

    Sebastian era o belo e falador papagaio que o casal importara depois de uma longa batalhacom as autoridades do hospital. No s sabia falar como reproduzia os compassos iniciais doconcerto para violino de Sibelius, com o qual Jerry muito ajudado por Antnio Stradivari granjeara fama, h meio sculo.

    Tinha chegado o momento de despedir-se de George, Jerry e Sebastian talvez apenas poralgumas semanas, talvez para sempre. Floyd j tinha feito todas as outras despedidas, numasrie de festas que provocaram srias baixas na adega de vinhos da estao, e tinha a certezade ter feito tudo o que devia.

    Archie, sua secretria eletrnica antiga mas ainda em perfeito uso, tinha sido programada paraatender todas as chamadas, dando as respostas adequadas ou encaminhando as coisas urgentese pessoais para ele, a bordo da Universe. Seria estranho, depois de todos aqueles anos, nopoder falar com algum que desejasse embora, em compensao, pudesse tambm evitar ostelefonemas indesejados. Depois de alguns dias de viagem, a nave estaria bastante longe daTerra para tornar impossvel a conversao em tempo real, e todas as comunicaes teriam deser por voz gravada ou teletexto.

    Pensvamos que voc fosse nosso amigo queixou-se George. Foi um golpe sujo fazerde ns seus testamenteiros, especialmente porque no vai deixar nada para ns.

    Vocs podem ter algumas surpresas sorriu Floyd. De qualquer modo, Archie seencarregar de todos os detalhes. Gostaria apenas que vocs dessem uma olhada na minha

  • correspondncia, caso surja alguma coisa que ela no compreenda.

    Se ela no compreender, nenhum de ns compreender. O que sabemos ns de todas assuas sociedades cientficas e outras tolices iguais?

    Elas podem tomar conta de si mesmas. Por favor, faam com o que o pessoal da limpezano desorganize as coisas demais enquanto eu estiver fora. E se eu no voltar, aqui estoalgumas coisas pessoais que eu gostaria que fossem entregues, principalmente famlia.

    Famlia! Havia sofrimentos, bem como prazeres, em viver tanto quanto tinha vivido.

    Tinham transcorrido 63 anos 63! desde a morte de Marion naquele acidente areo.Agora ele sentia uma ponta de culpa por no poder sequer lembrar-se da dor que devia tersentido. Ou se podia, era uma reconstituio sinttica, no uma lembrana autntica.

    O que teriam significado um para o outro, se ela ainda estivesse viva? Teria agora cem anosde idade...

    E agora as duas garotinhas que ele outrora tanto tinha amado eram estranhas gentis, grisalhas,com quase 70 anos, com filhos e netos! Da ltima vez que contou, tinha nove, naquele ramoda famlia. Sem a ajuda de Archie, jamais poderia se lembrar de seus nomes. Mas pelo menostodos se lembravam dele no Natal, por dever, quando no por afeio.

    Seu segundo casamento tinha, decerto, apagado as recordaes do primeiro, como a escritamais recente sobre um palimpsesto medieval. Este tambm terminou, 50 anos antes, em algumponto entre a Terra e Jpiter. Embora tivesse esperado uma reconciliao com a mulher e ofilho, tinha havido tempo apenas para um breve encontro, entre todas as cerimnias de boas-vindas, antes que seu acidente o exilasse para Pasteur.

    O encontro no foi bem-sucedido, nem o segundo, organizado com muitas despesas edificuldades a bordo do prprio hospital espacial na verdade, naquele mesmo quarto. Christinha ento 20 anos, e acabava de casar-se; e se alguma coisa unia Floyd e Caroline era adesaprovao de sua escolha.

    No obstante, Helena se sara notavelmente bem: tinha sido boa me para Chris II, nascidopouco mais de um ms depois do casamento. E quando, como tantas outras esposas jovens,enviuvou no Desastre de Coprnico, no perdeu a cabea.

    Havia uma ironia curiosa no fato de que tanto Chris I como Chris II tivessem perdido seus paispara o Espao, embora de maneiras muito diferentes. Floyd tinha voltado rapidamente para ofilho de oito anos como um estranho total; Chris II pelo menos conhecera um pai durante aprimeira dcada de sua vida, antes de perd-lo para sempre.

    E onde estava Chris atualmente? Nem Caroline, nem Helena que eram agora excelentesamigas pareciam saber se estava na Terra ou no espao. Mas isso era tpico: apenascartes-postais com uma data carimbada em BASE CLAVIUS tinham informado sua famlia desua primeira visita Lua.

  • ' O carto enviado a Floyd estava ainda pregado, com destaque, no painel acima de sua mesa.Chris II tinha um bom senso de humor, e de Histria. Mandara para o av aquela famosafotografia do monolito dominando as figuras de roupas espaciais reunidas sua volta, naescavao em Tycho, h mais de um sculo. Todos os outros do grupo estavam agora mortos,e o prprio monolito j no se encontrava na Lua. Em 2006, depois de muita controvrsia,tinha sido levado para a Terra e colocado um eco estranho do edifcio principal napraa fronteira s Naes Unidas. Pretendia constituir-se num lembrete raa humana de quej no estava mais sozinha: cinco anos depois, com Lcifer brilhando no cu, esse lembreteno era necessrio.

    Os dedos de Floyd no estavam muito firmes por vezes sua mo direita parecia ter vontadeprpria quando ele soltou o carto-postal e o guardou no bolso. Seria quase que a nicacoisa pessoal que levaria para a Universe.

    Vinte e cinco dias... Voc estar de volta antes de darmos pela sua falta disse Jerry. E por falar nisso, verdade que voc ter Dimitri a bordo?

    Aquele cossaquinho! rosnou George. Regi a sua Segunda Sinfonia em 2022.

    No foi quando o primeiro violino vomitou durante o Largo?

    No, aquilo foi com Mahler, no Mihailovich. E foi o trombone, de modo que ningumnotou, exceto o infeliz tocador de tuba, que teve de vender seu instrumento no dia seguinte.

    Voc est inventando isso!

    E claro. Mas d lembranas ao velho canalha, e pergunte-lhe se ele se lembra da noite quepassamos em Viena. Quem mais estar a bordo?

    Ouvi boatos horrveis sobre a escolha dos passageiros disse Jerry, preocupado.

    Muito exagerados, posso assegurar-lhe. Fomos todos escolhidos pessoalmente por SirLawrence por nossa inteligncia, bom senso, beleza, carisma ou outra virtude redentoraqualquer.

    E pela coragem, no?

    Bem, j que voc falou nisso, tivemos todos que assinar um deprimente documento jurdicoisentando as Linhas Espaciais Tsung de qualquer responsabilidade concebvel. Alis, minhacpia est naquela pasta.

    H alguma possibilidade de que possamos receber um seguro, com ela? perguntouGeorge, esperanoso.

    No, meus advogados disseram que ela perfeita. Tsung concorda em me levar ao Halley eme trazer de volta, em dar-me comida, gua, ar e um quarto com vista.

    E em troca?

  • Quando eu voltar, farei todo o possvel para promover as futuras viagens, aparecerei emvdeos, escreverei alguns artigos tudo muito razovel, por essa grande oportunidade. Ah,sim, tambm procurarei distrair meus colegas passageiros, e vice-versa.

    Como? Cantando e danando?

    Bem, espero poder infligir partes de minhas memrias a um pblico cativo. Mas no creioque poderei competir com os profissionais. Vocs sabiam que Yva Merlin estar a bordo?

    O qu? Como conseguiram arranc-la daquela cela da Park Avenue?

    Ela deve ter cento e poucos... epa, desculpe, Hey.

    Ela tem 70 anos, pouco mais ou menos.

    Esquea o menos. Eu era criana quando Napoleo foi feito.

    Houve uma longa pausa, durante a qual cada um dos trs focalizou suas recordaes daquelefilme. Embora alguns crticos considerassem o papel de Scarlett 0'Hara como seu melhordesempenho, para o pblico em geral Yva Merlin (nascida Evelyn Miles, em Cardiff, Galesdo Sul) ainda se identificava com Josephine. H quase meio sculo, o controverso pico deDavid Griffin tinha deliciado os franceses e enfurecido os ingleses embora ambos agoraconcordassem que ele tinha permitido, ocasionalmente, que seus impulsos artsticosbrincassem com a verdade histrica, notadamente na cena final e espetacular da coroao doimperador na Abadia de Westminster.

    Isso foi um feito de Sir Lawrence disse George, pensativo.

    Creio que contribu para ele. O pai dela era astrnomo e trabalhou para mim certa vez.Yva sempre se interessou pela cincia. Por isso, fiz algumas chamadas de vdeo.

    Heywood Floyd no achou necessrio acrescentar que, como uma substancial frao da raahumana, tinha se enamorado de Yva desde o aparecimento do GWTW Mark II.

    claro continuou ele , Sir Lawrence ficou muito satisfeito, mas foi preciso convenc-lo de que Yva tinha pela astronomia um interesse mais do que casual. Sem isso, a viagempoderia ser um desastre social.

    O que me faz lembrar disse George, mostrando um embrulho que vinha escondendo, semmuito xito, s costas. Temos um presentinho para voc.

    Posso abrir agora?

    Voc acha que ele deve? perguntou Jerry, ansioso.

    Nesse caso, vou abrir disse Floyd, desamarrando a brilhante fita verde e retirando opapel.

    L dentro estava um quadro bem emoldurado. Embora Floyd pouco conhecesse de arte, j o

  • tinha visto antes; na verdade, quem poderia esquec-lo.

    A improvisada jangada sacudida pelas ondas estava cheia de nufragos seminus, alguns jmoribundos, outros acenando desesperadamente para um navio no horizonte. Embaixo, alegenda: A BALSA DA MEDUSA (Thodore Gricault, 1791-1824)

    E embaixo dela, a mensagem assinada por George e Jerry. "Chegar l metade do prazer.

    Vocs so um par de canalhas, e gosto muito de vocs disse Floyd, abraando-os. A luzde ATENO no teclado de Archie estava piscando vivamente. Estava na hora de ir.

    Seus amigos partiram num silncio mais eloqente do que as palavras. Pela ltima vez,Heywood Floyd olhou para o pequeno quarto que tinha sido seu universo durante quasemetade de sua vida.

    E de repente lembrou-se como o poeta terminava:

    "Fui feliz aqui; feliz agora parto.

    8. A FROTA ESTELAR

    Sir Lawrence Tsung no era um homem sentimental e era demasiado cosmopolita para levar opatriotismo a srio embora quando estudante tivesse usado, durante breve perodo, osrabos-de-cavalo artificiais em moda durante a Terceira Revoluo Cultural. Mesmo assim, areconstituio, no planetrio, do desastre da Tsien comoveu-o profundamente e o levou aconcentrar grande parte de sua enorme influncia e energia no espao.

    Pouco depois, ele fazia viagens de fim de semana Lua, e tinha nomeado um de seus filhosmais jovens, Charles (ode 32 milhes de sois), como vice-presidente da Tsung Astrofreight. Anova empresa tinha apenas dois foguetes simples alimentados a hidrognio, de uma massavazia de menos de mil toneladas; estariam obsoletos dentro em breve, mas podiamproporcionar a Charles a experincia que, como Sir Lawrence acreditava, seria necessria nasprximas dcadas. Pois finalmente a Era Espacial estava realmente comeando.

    Pouco mais de meio sculo tinha separado os irmos Wright do advento do transporte areobarato, em massa; foi necessrio o dobro do tempo para enfrentar o desafio muito maior doSistema Solar.

    No obstante, quando Luis Alvarez e sua equipe descobriram a fuso catalisada a mon, nadcada de 1950, ela parecia apenas uma curiosidade de laboratrio, de interesse apenasterico. Assim como Lord Rutherford no dera importncia s perspectivas da energiaatmica, tambm o prprio Alvarez tivera dvidas de que a "fuso nuclear fria" pudesse

  • algum dia ter importncia prtica. Na verdade, s em 2040 a manufatura inesperada eacidental de "compostos" estveis de mirn e hidrognio tinha inaugurado um novo captulo nahistria humana exatamente como a descoberta do nutron tinha iniciado a Era Atmica.

    Agora, pequenas usinas nucleares portteis podiam ser construdas com um mnimo deproteo. J tinham sido feitos investimentos to grandes na fuso convencional que osaparelhos eltricos do mundo no foram a princpio afetados, mas o impacto sobre asviagens espaciais foi imediato, e s pode ser comparado com a revoluo do jato notransporte areo, cem anos antes.

    Sem ter mais limitaes de energia, as naves espaciais podiam conseguir velocidades muitomaiores. Os tempos de vo no Sistema Solar podiam agora ser medidos em semanas, e no emmeses ou mesmo anos. Mas a propulso a mon ainda era um mecanismo de reao umfoguete sofisticado, em princpio no diferente de seus ancestrais alimentados quimicamente;era preciso um fluido para dar-lhe impulso. E o mais barato, limpo e cmodo de todos osfluidos era a gua pura.

    O Porto Espacial do Pacfico no corria o risco de ficar sem essa substncia til. O problemaera diferente no porto de escala seguinte a Lua. Nenhum vestgio de gua foi descobertopelas misses Surveyor, Apoio e Luna. Se a Lua alguma vez teve gua nativa, ees debombardeio meterico a tinham feito ferver e projetado no espao.

    Ou assim pensavam os senlogos: no obstante, indcios em contrrio eram visveis desde queGalileu focalizou o seu primeiro telescpio na Lua. Certas montanhas lunares, algumas horasaps o amanhecer, brilham como se estivessem com os picos cobertos de neve. O exemplomais famoso a borda da magnfica cratera Aristarco, que William Herschel, pai daastronomia moderna, tinha observado brilhar de tal modo na noite lunar que lhe pareceu serum vulco ativo. Estava errado: o que viu foi a luz da Terra refletida de uma fina e transitriacamada de geada, condensada durante 300 horas de escurido gelada.

    A descoberta dos grandes depsitos de gelo sob o vale Schroter, o sinuoso cnion quecomeava em Aristarco, foi o ltimo fator na equao que transformaria a economia dasviagens espaciais. A Lua podia oferecer uma estao abastecedora exatamente onde ela eranecessria, no alto das mais extremas encostas do campo gravitacional da Terra, no incio dalonga viagem para os planetas.

    Cosmos, a primeira nave da frota de Tsung, tinha sido construda para levar carga epassageiros no trajeto Terra-Lua-Marte, e como um veculo de provas, graas a complexosacordos com dezenas de organizaes e governos, da propulso a mon, ainda experimental.

    Construda nos estaleiros de Imbrium, tinha um empuxo suficiente apenas para levantar vo daLua com uma carga zero; operando de rbita a rbita, nunca mais voltaria a tocar a superfciede mundo algum. Com seu gosto habitual pela publicidade, Sir Lawrence fez com que suaviagem inaugural comeasse no centsimo aniversrio do Dia do Sputnik, 4 de outubro de2057.

    Dois anos depois, juntou-se Cosmos uma nave irm, Galaxy, destinada ao percurso Terra-

  • Jpiter, com empuxo suficiente para operar diretamente para qualquer das luas de Jpiter,embora com considervel sacrifcio da carga til. Se necessrio, podia at mesmo voltar aoseu ancoradouro lunar para reabastecimento. Era, de longe, o veculo mais rpido jconstrudo pelo homem: se queimasse toda a sua massa propulsora num orgasmo deacelerao, podia alcanar uma velocidade de mil quilmetros por segundo o que a levariada Terra a Jpiter numa semana, e estrela mais prxima em pouco mais de dez mil anos.

    A terceira nave da frota orgulho e alegria de Sir Lawrence materializava tudo o que setinha aprendido na construo de suas duas irms. Mas a Universe no se destinavaprincipalmente carga. Foi planejada, desde o incio, para ser a primeira nave de passageirosa cruzar as estradas espaciais at Saturno, a jia do Sistema Solar.

    Sir Lawrence tinha planejado alguma coisa ainda mais espetacular para a sua viageminaugural, mas os atrasos na construo, provocados por uma disputa com o Captulo Lunar doSindicato Reformado dos Condutores, perturbaram seu organograma. Havia apenas o temponecessrio s provas iniciais de vo e o certificado do Loyds, nos ltimos meses de 2060,antes que a Universe deixasse a rbita da Terra para o seu encontro. O tempo era escasso: ocometa de Halley no esperava, nem mesmo por Sir Lawrence Tsung.

    9. MONTE ZEUS

    O satlite de reconhecimento Europa VI estava em rbita h quase 15 anos e tinhaultrapassado de muito a sua vida prevista; sua provvel substituio era motivo deconsidervel debate na pequena comunidade cientfica de Ganimedes.

    Ele levava a coleo habitual de instrumentos coletores de dados, bem como um sistema detransmisso de imagens agora praticamente intil. Embora ainda em perfeito funcionamento,tudo o que mostrava normalmente de Europa era uma paisagem ininterrupta de nuvens. Aequipe de cientistas de Ganimedes, sobrecarregada de trabalho, examinava os registrosmandados pelo satlite uma vez por semana, e remetia os dados, em bruto, para a Terra. Noconjunto, esses cientistas se sentiriam bastante aliviados quando o Europa VI expirasse, e suatorrente de gigabytes desinteressantes finalmente acabasse.

    Agora, pela primeira vez em anos, ele tinha produzido alguma coisa emocionante.

    rbita 71934 disse o astrnomo subchefe, que chamara Van der Berg logo que osltimos dados recebidos tinham sido avaliados. Vindo do lado noturno, dirigindo-sediretamente para o monte Zeus. Mas no se ver nada ainda por mais dez segundos.

    A tela estava totalmente s escuras, mas ainda assim Van der Berg podia imaginar a paisagemcongelada passando sob sua coberta de nuvens, mil quilmetros abaixo. Dentro de poucas

  • horas o Sol distante estaria brilhando ali, pois Europa girava em seu eixo uma vez em cadasete dias da Terra. O "lado noturno" deveria ser realmente chamado de "Crepsculo", poismetade do tempo tinha muita luz mas nenhum calor. No obstante, o nome inadequado tinhapegado, pela sua validade emocional: A Europa conhecia o levantar do Sol, mas nunca olevantar de Lcifer.

    E o Sol ia aparecer agora, apressado mil vezes pela sonda que corria. Uma faixa levementeluminosa dividiu a tela quando o horizonte saiu da escurido.

    A exploso de luz foi to sbita que Van der Berg quase podia imaginar que estava olhando, aluminosidade de uma bomba atmica. Numa frao de segundo, ela percorreu todas as coresdo arco-ris, depois tornou-se de um branco puro, quando o Sol apareceu acima da montanha depois desapareceu, quando os filtros automticos cortaram o circuito.

    Isso tudo; pena que houvesse um operador de planto na ocasio. Ele poderia ter movidoa cmera para baixo, e teramos uma boa viso da montanha ao passarmos sobre ela. Mas eusabia que voc gostaria de ver isso, embora desminta a sua teoria.

    Como? perguntou Van der Berg, mais intrigado do que aborrecido.

    Quando voc passar isso em cmara lenta, entender o que quero dizer. Esses belos efeitosde arco-ris no so atmosfricos; so causados pela prpria montanha. S o gelo poderiafazer isso. Ou o vidro, o que no parece muito provvel.

    Mas no impossvel. Os vulces podem produzir gs natural, mas habitualmente preto... Eobvio!

    O qu?

    Ahn... No quero dizer, enquanto no tiver examinado os dados. Mas acho que deve sercristal de rocha quartzo transparente. Pode-se fazer belos prismas e lentes com ele. Algumapossibilidade de mais observaes?

    Receio que no. Isso foi pura sorte. Sol, montanha, cmera, tudo em posio certa nomomento exato. No acontecer novamente em mil anos.

    Obrigado, de qualquer modo. Pode mandar-me uma cpia? No h pressa, estou partindopara uma viagem de campo a Perrine e s poderei examin-la quando voltar.

    Van der Berg deu um sorriso rpido, apologtico.

    Voc sabe, se aquilo for realmente cristal de rocha, valeria uma fortuna. Talvez atajudasse a resolver nosso problema da balana de pagarnentos...

    Mas isso era, certamente, pura fantasia. Quaisquer que fossem as maravilhas ou tesouros encerradas em Europa, a raa humana tinha o acesso a eles proibido por aquela ltimamensagem da Discovery. Cinqenta anos depois, no havia indcios de que a proibio seriaalgum dia revogada.

  • 10. A NAU DOS INSENSATOS

    Nas primeiras 48 horas da viagem, Heywood Floyd no conseguia acreditar no conforto,amplido no esbanjamento das instalaes da Universe. No obstante, a maioria de seuscompanheiros de viagem no se impressionava. Os que nunca tinham deixado a Terra achavamque todas as naves espaciais deviam ser assim.

    Ele teve de reexaminar a histria da aeronutica para colocar as coisas na devida perspectiva.Durante a sua vida, tinha testemunhado na verdade, tinha experimentado a revoluoocorrida nos cus do planeta que cada vez se tornava menor, atrs deles. Entre a desajeitada evelha Leonov e a sofisticada Universe havia exatamente 50 anos. (Emocionalmente, noconseguia acreditar nisso mas era intil discutir com a aritmtica.)

    E apenas 50 anos tinham separado os irmos Wright dos primeiros avies de passageiros ajato. No incio desse meio sculo, aviadores intrpidos de culos tinham saltado de campopara campo, varridos pelo vento em carlingas abertas; no fim, avs dormiam tranqilamenteentre continentes, a mil quilmetros por hora.

    Assim, ele talvez no devesse surpreender-se com o luxo e a elegncia de sua cabina, e nemmesmo com o fato de que tinha uma arrumadeira para mant-la em ordem. A janela, depropores generosas, era o aspecto mais espantoso de sua cabina, e a princpio sentiu-sebastante desconfortvel, pensando nas toneladas de presso do ar que ela estava contendocontra o implacvel vcuo do espao, que no cessava por um momento sequer.

    A maior surpresa, para a qual os folhetos sobre a nave o deviam ter preparado, era a presenada gravidade. A Universe era a primeira nave a ser construda para viajar sob aceleraocontnua, exceto durante umas poucas horas de giro em meio do curso. Quando seus enormestanques de propelente estavam totalmente cheios, com suas cinco mil toneladas de gua, elaconseguia um dcimo de gravidade no muito, mas o bastante para impedir que objetossoltos ficassem flutuando no ar. Isso era particularmente cmodo na hora das refeies,embora fossem necessrios alguns dias para que os passageiros aprendessem a no mexer asopa com muita fora.

    Quarenta e oito horas depois de deixar a Terra, a populao da Universe j se tinhaestratificado em quatro classes distintas.

    A aristocracia era formada pelo Comandante Smith e seus oficiais. Vinham em seguida ospassageiros; depois a tripulao em vrios nveis, e, por fim, a terceira...

    Era essa ltima classificao que os cinco jovens cientistas tinham adotado, primeiro comopiada, depois com um certo ressentimento. Quando Floyd comparou suas cabinas acanhadas e

  • de instalaes improvisadas com as luxuosas instalaes de que dispunha, pde entender oponto de vista deles, e tornou-se sem demora o intermedirio de suas queixas ao comandante.

    Mas levando todas as coisas em conta, eles no tinham muita razo de queixa: na pressa deaprontar a nave, no havia muita certeza se haveria acomodaes para eles e seu equipamento.Agora, poderiam colocar seus instrumentos volta do cometa e nele prprio durante osdias crticos antes que contornasse o Sol e partisse mais uma vez para as regies distantes doSistema Solar. Os membros do grupo de cientistas firmariam suas reputaes com essaviagem, e sabiam disso. S nos momentos de exausto, de fria com as falhas dosinstrumentos, eles comeavam a queixar-se sobre o barulhento sistema de ventilao, ascabinas claustrofbicas e ocasionais cheiros estranhos de origem desconhecida.

    Mas nunca da comida, que, como todos concordavam, era excelente.

    Muito melhor assegurava o Comandante Smith do que a de Darwin a bordo doBeagle.

    Ao que Victor Willis tinha respondido prontamente:

    Como ele pode saber? A propsito, o comandante do Beagle cortou a garganta quandovoltou para a Inglaterra.

    Isso era tpico de Victor, talvez o mais conhecido divulgador cientfico do planeta (para osseus fs) ou cientista pop (para seus detratores, igualmente numerosos. Seria injusto cham-losde inimigos, pois a admirao pelos talentos de Victor era universal, embora ocasionalmenterelutante). Seu sotaque macio e seus gestos expansivos frente s cmeras eram parodiados pormuitos, e cabia-lhe o crdito (ou a culpa) da volta das barbas grandes. Um homem quedeixa crescer tanto cabelo gostavam de dizer os seus crticos , deve ter muita coisa paraesconder.

    Ele era certamente a mais reconhecvel das seis pessoas muito importantes VIPS ,embora Floyd, que j no se considerava mais uma celebridade, sempre se referisse a elasironicamente como "Os Cinco Famosos". Yva Merlin podia, com freqncia, andar sem serreconhecida pela Park Avenue, nas raras ocasies em que deixava seu apartamento. DimitriMihailovich, para grande pesar seu, tinha uns bons dez centmetros a menos do que a alturamdia, o que poderia explicar seu gosto pelas orquestras de mil instrumentos reais ousintticos mas no melhorava a sua imagem pblica.

    Clifford Greenberg e Margaret M'Bala tambm se enquadravam na categoria dos"desconhecidos famosos" embora isso fosse certamente mudar quando voltassem Terra. Oprimeiro homem a desembarcar em Mercrio tinha um desses rostos agradveis, comuns,difceis de serem lembrados. Alm disso, os dias em que tinha dominado os noticirios eramparte de um passado de 30 anos. E como a maioria dos autores que no gostam de fazerconferncias nem de noites de autgrafos, a Srta. M'Bala no seria reconhecida pela grandemaioria de seus milhes de leitores.

    Sua fama literria tinha sido uma das sensaes da dcada de 2040. Um estudo erudito do

  • panteo grego no era geralmente candidato s listas de livros mais vendidos, mas a Srta.M'Bala tinha colocado seus mitos eternamente inexaurveis dentro da era espacialcontempornea. Nomes que h um sculo teriam sido conhecidos apenas de astrnomos eestudiosos das letras clssicas eram agora parte do quadro que toda pessoa culta fazia domundo. Quase todos os dias havia notcias de Ganimedes, Calisto, Io, Tit, Iapeto ou atmesmo de mundos mais obscuros, como Carme, Pasfae, Hiprion, Febo...

    No entanto, seu livro teria obtido um sucesso apenas modesto no tivesse ela focalizado acomplicada vida familiar de Jpiter-Zeus, pai de todos os Deuses (bem como de muitas outrascoisas). E por um golpe da sorte, um editor genial tinha mudado o ttulo original, A viso doOlimpo, para As paixes dos deuses. Acadmicos invejosos geralmente a ele se referiamcomo "Luxrias olmpicas'', mas invariavelmente gostariam de t-lo escrito.

    No de surpreender que tenha sido Maggie M como logo a batizaram os companheiros deviagem quem primeiro usou a expresso "nau dos insensatos". Victor Willis a adotou debom grado, e logo descobriu a sua intrigante ressonncia histrica. Quase um sculo antes,Katherine Anne Porter tinha partido com um grupo de cientistas e escritores num navio paraobservar o lanamento da Apoio 17, to fim da primeira fase de explorao lunar.

    Vou pensar nisso tinha observado pressagamente a Srta. M'Bala, quando isso lhe foicontado. Talvez seja o momento de uma terceira verso. Mas eu s saberei, claro, quandovoltarmos para a Terra...

    11. A MENTIRA

    Passaram-se muitos meses antes que Rolf Van der Berg pudesse voltar novamente seupensamento para o monte Zeus. A conquista de Ganimedes ocupava todo o tempo e eleausentava-se por vezes de seu escritrio principal na Base Dardano durante semanas a fio,examinando a rota do monotrilho a ser construdo entre Gilgamesh e Osris.

    A geografia da terceira e maior das luas galileanas se tinha modificado drasticamente desde adetonao de Jpiter e continuava a modificar-se. O novo sol que derretera o gelo deEuropa no era muito forte ali, a 400 mil quilmetros mais distante, embora fosse bastantequente para produzir um clima temperado no centro da face que estava sempre voltada paraele. Havia mares pequenos e rasos alguns to grandes quanto o Mediterrneo, da Terra at latitudes de 40 Norte e Sul. No restavam muitas das caractersticas assinaladas nos mapasproduzidos pelas misses da Voyager, no sculo XX. Permafrost em fuso e movimentostectnicos ocasionais provocados pelas mesmas foras da mar que operavam nas duas luasinteriores fizeram do novo Ganimedes o pesadelo dos cartgrafos.

    Esses mesmos fatores, porm, o transformaram no paraso dos engenheiros planetrios. Era o

  • nico mundo em que, com exceo do rido e muito menos hospitaleiro Marte, os homenspoderiam algum dia andar sem qualquer proteo a cu aberto. Ganimedes tinha, bastantegua, todos os elementos qumicos da vida e pelo menos enquanto Lcifer brilhava umclima mais quente do que grande parte da Terra.

    E melhor ainda, as roupas espaciais de corpo inteiro j no eram necessrias: a atmosfera,embora ainda irrespirvel, tinha densidade suficiente para permitir o uso de simples mscarasde rosto e cilindros de oxignio. Dentro de poucas dcadas era o que prometiam osmicrobilogos, embora fossem vagos quanto a datas especficas at mesmo essas mscaraspoderiam ser abandonadas. Variedades de bactrias geradoras de oxignio j tinham sidoespalhadas pela face de Ganimedes; a maioria morreu, mas algumas floresceram, e a curva,lentamente ascendente, do grfico da anlise atmosfrica era a primeira coisa que se exibiaorgulhosamente a todos os visitantes em Dardano.

    Por muito tempo Van der Berg ficou observando os dados que vinham do Europa VI,esperando que um dia as nuvens voltassem a se abrir quando ele estivesse sobre o monte Zeus.Sabia que as probabilidades eram contra isso, mas enquanto houvesse a menor possibilidade,no procurava explorar nenhum outro caminho de pesquisa. No havia pressa, tinha umtrabalho muito mais importante nas mos e de qualquer modo, a explicao poderia seralguma coisa trivial e desinteressante.

    E ento o Europa VI expirou de sbito, quase que certamente em conseqncia de um impactometerico imprevisto. L na Terra, Victor Willis tinha feito um papel de tolo na opinio demuitos entrevistando os "Euroloucos", que agora preenchiam, mais do que adequadamente,a lacuna deixada pelos entusiastas dos OVNIs do sculo anterior. Alguns argumentavam que odesaparecimento da sonda devia-se a uma ao hostil do mundo que estava l embaixo: o fatode que o satlite funcionara sem interferncia durante 15 anos quase duas vezes a sua vidaprevista no lhes parecia importante. Para a honra de Victor, esse ponto foi por eleressaltado, demolindo assim a maioria dos outros argumentos dos "Euroloucos". Mas todosachavam que ele no lhes devia ter dado publicidade, para comeo de conversa.

    Para Van der Berg, que gostava de ser o "holands teimoso" que os colegas o consideravam efazia o melhor para corresponder a essa denominao, o fim do Europa VI foi um desafioirresistvel. No havia a menor esperana de ser colocado um substituto, pois odesaparecimento do prolixo satlite, cuja vida se prolongara demais, foi recebido comconsidervel sensao de alvio.

    Qual a alternativa, ento? Van der Berg ps-se a examinar suas opes. Como era gelogo, eno astrofsico, vrios dias transcorreram antes que compreendesse de sbito que a respostaestava sua frente, desde que havia desembarcado em Ganimedes.

    O africner um dos melhores idiomas do mundo para se praguejar. Mesmo quando faladocortesmente, ele pode arranhar os ouvidos inocentes. Van der Berg praguejou durante algunsminutos, depois fez uma ligao com o observatrio de Tiamat localizado precisamente noequador, com o pequeno e ofuscante disco de Lcifer sempre verticalmente acima dele.

  • Os astrofsicos, ocupados com os objetos mais espetaculares do Universo, tendem a adotar umar superior com os simples gelogos, que dedicam suas vidas a coisas pequenas e feias comoos planetas. Mas ali, na fronteira do avano do ser humano no espao, todos procuravamajudar-se mutuamente, e o Dr. Wilkins no s se mostrou interessado como tambm foisimptico.

    O observatrio de Tiamat foi construdo com um nico objetivo, que era tambm uma dasprincipais razes para a criao de uma base em Ganimedes. O estudo de Lcifer era deenorme importncia no s para a cincia pura como tambm para engenheiros nucleares,meteorologistas, oceangrafos e, o que no era menos importante, para estadistas efilsofos. O fato de haver entidades capazes de transformar um planeta num sol era espantoso,e tinha feito muita gente perder o sono noite. A Humanidade devia procurar saber tudo o quefosse possvel sobre o processo algum dia poderia ser necessrio imit-lo ou impedi-lo...

    Por isso, h mais de uma dcada Tiamat vinha observando Lcifer com todos os tipos deinstrumentos possveis, registrando continuamente seu espectro por toda a faixaeletromagntica e tambm sonhando-o de maneira ativa com o radar, com um modesto discode cem metros, colocado numa pequena cratera de impacto.

    Sim disse o Dr. Wilkins , temos observado com freqncia Europa e Io. Mas nossofoco est fixado em Lcifer, de modo que s os podemos ver por alguns minutos, enquantoesto de passagem. E o seu monte Zeus fica do lado diurno portanto, est sempre ocultonesse momento.

    Eu sei disso respondeu Van der Berg, com alguma impacincia. Mas no seriapossvel desviar o foco um pouquinho, de modo a dar uma olhada em Europa antes que eladesaparea? Dez ou vinte graus seriam suficientes para penetrar bem no lado diurno.

    Um grau seria o bastante para perdermos Lcifer e termos Europa de frente, no outro ladode sua rbita. Mas ento ela estaria a uma distncia trs vezes maior, portanto s teramos umcentsimo do poder de reflexo. Mas poderia dar certo, vamos fazer uma tentativa. Diga-me asespecificaes de freqncias, envelopes de onda, polarizao e qualquer coisa que vocsachem que possa ajudar. No ser preciso muito tempo para desviar o foco alguns graus. Maisdo que isso, no sei um problema que nunca examinamos, embora talvez devssemos t-lo feito. De qualquer modo, o que espera encontrar em Europa, exceto gelo e gua?

    Se eu soubesse respondeu Van der Berg, alegremente, no estaria pedindo ajuda, no?

    E eu no pediria crditos quando voc publicasse as suas descobertas. E pena que meunome esteja no fim do alfabeto; voc estar minha frente por uma letra apenas.

    Isso tinha sido h um ano. As sondagens de radar de longo alcance no tinham sido boas, e odesvio do foco para examinar o lado diurno de Europa momentos antes da conjuno mostrou-se mais difcil do que se previa. Mas, por fim, os resultados chegaram; os computadores ostinham digerido, e Van der Berg foi o primeiro ser humano a examinar um mapa mineralgico

  • de Europa depois de Lcifer.

    Era, como disse o Dr. Wilkins, principalmente gelo e gua, com afloramentos de basaltointermeados de jazidas de enxofre. Havia, porm, duas anomalias.

    Uma delas parecia resultado do processo das imagens; havia uma faixa absolutamente reta,