2014-04-30 - o que você faria - parte ii - para publicar

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O que você faria? Parte II. (por Victor Neves) “É sempre bom lembrar que um copo vazio está cheio de ar”. Gilberto Gil – Copo Vazio. 02. Amnésia na esquerda e reescrita da história Retomando: o “emburrecimento da sociedade brasileira”, idealizado e concretizado pela ditadura empresarial-militar vigente entre 1964 e 1985, teve como seu principal mecanismo o apagamento seletivo de certa memória coletiva nacional. Avancemos: apagar, no que tange à História, é sempre reescrever. O apagamento seletivo que mencionei implicou numa reorientação imediata da memória que deu e vem dando ensejo a uma reescrita da história operação fundamental para consolidar a vitória dos vencedores e de seu projeto de país. O apagamento foi seletivo porque dizia respeito ao apagamento da experiência histórica de luta de uma classe – a saber, a classe trabalhadora brasileira. Mas implicou também numa reorientação do conjunto da esfera cultural cuja característica mais notável é o rompimento dos laços entre os produtores de cultura e os organismos políticos e culturais daquela classe – traço que se estende até hoje, infelizmente. Explico-me. A sociedade brasileira ingressava, pela via da modernização conservadora (iniciada nos anos 30 sob Vargas, mas que deu um salto de qualidade sob a ditadura empresarial-militar de 64), no clube das nações de capitalismo maduro ou tardio. Para concluir este trânsito foi necessário quebrar as possibilidades de resistência articuladas em torno da classe trabalhadora da cidade e do campo. E isto porque, como sempre, era ela que teria de pagar a conta do “progresso”. Vale lembrar: em 1964, estas

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Page 1: 2014-04-30 - O Que Você Faria - Parte II - Para Publicar

O que você faria? Parte II.

(por Victor Neves)

“É sempre bom lembrarque um copo vazio

está cheio de ar”.Gilberto Gil – Copo Vazio.

02. Amnésia na esquerda e reescrita da história

Retomando: o “emburrecimento da sociedade brasileira”, idealizado e concretizado

pela ditadura empresarial-militar vigente entre 1964 e 1985, teve como seu principal

mecanismo o apagamento seletivo de certa memória coletiva nacional.

Avancemos: apagar, no que tange à História, é sempre reescrever. O apagamento

seletivo que mencionei implicou numa reorientação imediata da memória que deu e vem

dando ensejo a uma reescrita da história – operação fundamental para consolidar a vitória dos

vencedores e de seu projeto de país. O apagamento foi seletivo porque dizia respeito ao

apagamento da experiência histórica de luta de uma classe – a saber, a classe trabalhadora

brasileira. Mas implicou também numa reorientação do conjunto da esfera cultural cuja

característica mais notável é o rompimento dos laços entre os produtores de cultura e os

organismos políticos e culturais daquela classe – traço que se estende até hoje, infelizmente.

Explico-me. A sociedade brasileira ingressava, pela via da modernização conservadora

(iniciada nos anos 30 sob Vargas, mas que deu um salto de qualidade sob a ditadura

empresarial-militar de 64), no clube das nações de capitalismo maduro ou tardio. Para

concluir este trânsito foi necessário quebrar as possibilidades de resistência articuladas em

torno da classe trabalhadora da cidade e do campo. E isto porque, como sempre, era ela que

teria de pagar a conta do “progresso”. Vale lembrar: em 1964, estas “possibilidades de

resistência” não eram apenas isso, mas tinham forte efetividade histórica e apontavam para a

disputa de projeto de país. Afinal, os mais confiáveis estudos sobre a época mostram que era a

“gente simples”, a “massa”, a “plebe” que estava massivamente mobilizada e exigindo

participar da vida política e cultural da “nação” – e não de qualquer maneira e com quaisquer

propostas, mas em torno de organizações e propostas definidas e em disputa.

Neste ponto, é necessário não cair na armadilha do economicismo: a reorientação no

campo da cultura brasileira, por mais que também e posteriormente responda a modificações

viabilizadas (e conduzidas, e operadas) pela ditadura na estrutura econômica do país, foi num

primeiro momento intencionalmente produzida, através de uma política cultural

especificamente voltada para aquele fim – qual seja, para assegurar que não restasse nada de

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pé, a não ser as “ruínas arqueológicas” da vida intelectual anterior ao golpe. Em termos mais

“clássicos” e em voga na época: para que as transformações na infraestrutura fossem possíveis

foi necessário passar a borracha na esfera da superestrutura. Não à toa, o grande romance

brasileiro do período é justamente o “Incidente em Antares” de Érico Veríssimo, cujo ponto

culminante é a decisão por parte das elites de Antares de realizar a “operação-borracha” de

modo a que todos se esquecessem de que um dia, ali, os (nossos) mortos se levantaram. É

como na canção: “começar de novo”...

Mas não do zero.

Desde a Antiguidade, procedimento muito comum na arquitetura é aproveitar as

ruínas de prédios de povos desaparecidos ou vencidos em novas construções, ao estilo e

respondendo às finalidades de seus ocupantes atuais. Podemos dizer que algo assim

aconteceu no Brasil, no campo da arquitetura das ideias. Aqui, não houve apenas a destruição

de um discurso de resistência que “contaminava” o conjunto da esfera cultural pré-64. Houve

sua substituição por outro(s) discurso(s) – e aqui sim, no plural, correspondendo bem à

“pluralidade” característica de uma sociedade capitalista madura. No mais, nesta substituição

foram aproveitados certos pontos-chave das ideias que compunham o quadro teórico-crítico

do campo anteriormente hegemônico, ressignificando-os através de sua inserção em outras

constelações de ideias – em outro conjunto de significantes (é o caso de pontos como

“alienação”, “democracia”, “desenvolvimento”, “dependência”, “imperialismo”, manipulação”,

entre outros...). E, como veremos adiante, esta substituição mostrou seu peso inclusive

quando a classe trabalhadora brasileira voltou a se mobilizar, nos anos 80.

Tal reorientação / substituição ocorreu no contexto do que se convencionou chamar,

sob a vigência do AI-5, de “vazio cultural”, apelido dado ao período em referência,

evidentemente, ao contraste entre a efervescência do período anterior e o (aparente) silêncio

resultante do endurecimento da ditadura.

Entretanto, como já sugeriram alguns analistas na própria época (como Carlos Nelson

Coutinho e Zuenir Ventura, ambos escrevendo para a revista Visão nos anos 1970), para

compreender adequadamente o que se passou seria melhor definir este “vazio” como um

“vazio cheio”. E isto é fundamental para que sejamos capazes de enxergar como se operou

aquela reorientação do campo ideológico – como se esvaziou o debate político-cultural de um

conteúdo e se o preencheu com outro. É o que veremos na próxima coluna.

(continua na próxima coluna...)