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A UTOPIA DA “CIDADE IDEAL”: MODERNIDADE, CONTROLE E TENSÃO NO COTIDIANO DE BRAGANÇA – PA NO INÍCIO DO SÉCULO XX. Aldair José Batista de Souza Pesquisador do Museu de Arte Sacra de Bragança-Pa – MASB “A condenação dos hábitos e costumes ligados pela memória à sociedade tradicional; a negação de todo e qualquer elemento da cultura popular que pudesse macular a imagem da sociedade dominante; uma política de expulsão dos grupos populares da área central da cidade, que será praticamente isolada para o desfrute exclusivo das camadas aburguesadas; e um cosmopolitismo agressivo, profundamente identificado com a vida parisiense.” 1 O processo de remodelamento 2 empreendido em Bragança disseminou novos padrões de sociabilidade e valores 1 SEVCENKO, Nicolau. A Revolta da Vacina: mentes insanas em corpos rebeldes. São Paulo: Brasiliense, 1984. 2 As mudanças urbanísticas ocorridas em Bragança tiveram início no governo do intendente Cel. Antonio Pedro da Silva Pereira (1899-1906) e intensificado na administração do Major Antonio da Costa Rodrigues (1909- 1912) e do Cel. Francisco Antonio Pinheiro Junior (1912-1918). Em tais administrações foram projetados na estrutura urbana da cidade além de redes de distribuição de água e esgotos, iluminação elétrica, calçamento/alargamento e sarjetamento de ruas, o Palacete Municipal (1905), o Mercado Municipal (1911) e o Matadouro Municipal; a chegada da locomotiva do Trem na Estação da Estrada de Ferro (1908) e a implantação do Coreto Metálico Antônio Lemos (1910), na parte central da Praça Marechal Deodoro da Fonseca. 1

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A UTOPIA DA “CIDADE IDEAL”: MODERNIDADE, CONTROLE E TENSÃO NO COTIDIANO DE BRAGANÇA – PA NO INÍCIO DO SÉCULO XX.

Aldair José Batista de Souza Pesquisador do Museu de Arte Sacra de Bragança-Pa – MASB

“A condenação dos hábitos e costumes ligados pela memória à sociedade tradicional; a negação de todo e qualquer elemento da cultura popular que pudesse macular a imagem da sociedade dominante; uma política de expulsão dos grupos populares da área central da cidade, que será praticamente isolada para o desfrute exclusivo das camadas aburguesadas; e um cosmopolitismo agressivo, profundamente identificado com a vida parisiense.” 1

O processo de remodelamento 2 empreendido em Bragança disseminou

novos padrões de sociabilidade e valores culturais diferenciados dos costumes

tradicionais por parte de seus próprios habitantes, especialmente sua classe

dominante. Além da remodelação e ampliação dos espaços públicos, as mudanças

urbanísticas na cidade objetivavam a consolidação de um outro tipo de convivência,

que estava identificada com o padrão que estabelecia os hábitos e costumes da vida

moderna dos grandes centros civilizados, mas que se rompiam pela presença de

segmentos populares que apresentavam comportamentos ditos incivilizados. Assim,

práticas populares que não estavam condizentes com os comportamentos e valores

culturais que deveriam prevalecer em uma sociedade moderna eram vistas pelas

autoridades bragantinas como ilícitas e condenáveis, provocando o movimento de

moralização, vigilância, controle e contenção sobre as camadas populares.

1 SEVCENKO, Nicolau. A Revolta da Vacina: mentes insanas em corpos rebeldes. São Paulo: Brasiliense, 1984. 2 As mudanças urbanísticas ocorridas em Bragança tiveram início no governo do intendente Cel. Antonio Pedro da Silva Pereira (1899-1906) e intensificado na administração do Major Antonio da Costa Rodrigues (1909-1912) e do Cel. Francisco Antonio Pinheiro Junior (1912-1918). Em tais administrações foram projetados na estrutura urbana da cidade além de redes de distribuição de água e esgotos, iluminação elétrica, calçamento/alargamento e sarjetamento de ruas, o Palacete Municipal (1905), o Mercado Municipal (1911) e o Matadouro Municipal; a chegada da locomotiva do Trem na Estação da Estrada de Ferro (1908) e a implantação do Coreto Metálico Antônio Lemos (1910), na parte central da Praça Marechal Deodoro da Fonseca.

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Foi com a nova aparência física da cidade (com ruas calçadas, praças

embelezadas, iluminação elétrica, faustuosos prédios públicos e a chegada da

máquina do trem), que a sociedade bragantina procurou consolidar novas redes de

sociabilidade, buscando estar em harmonia com o ideal da vida moderna que

marcavam as cidades como Belém e Manaus no período da economia da borracha.

Dessa forma, o perfil dos habitantes da cidade deveria estar condizente com a nova

paisagem urbana, com seus espaços remodelados permeados de símbolos da

modernidade e civilização.

Os novos espaços públicos da cidade, avaliado pelo poder municipal como

moderno, passam a ser utilizados intensamente pelas elites. Eram lugares de

convivência exclusivamente do homem civilizado, polido em atitudes e policiado em

comportamentos pelos códigos de conduta social. Como afirma o historiador

Geraldo Coelho:

“era fundamentalmente o espaço público ampliado onde eram encenadas as liturgias, os ritos civilizacionais, as formas reconhecidas e legitimadas de ação, comportamento e uso da imagem que distinguiam socialmente o homem civilizado, a criatura do tempo do progresso, do refinamento e das boas maneiras.” 3

Dentro desta perspectiva, as ruas de Bragança – calçadas, com

paralelepípedos – estimularam as famílias bragantinas a adotarem o hábito europeu

de passear 4 ao ar livre regulamente no final da tarde. No perímetro da Rua Visconde

de Souza Franco, precisamente no ponto de ligação do Porto do Litoral e o Mercado

Municipal, tornou-se um local bastante freqüentado pelas elites, que “tinham como

alternativa caminhar sobre a ponte litorânea ou passear no jardim florido, sombreado

com benjamins copudos distante de dez em dez metros do outro”. 5

Nessas áreas públicas, que abrangiam a rua, o mercado e o porto, notava-

se também a presença de segmentos sociais que dava dinâmica a esses ambientes.

Eram trabalhadores que exerciam suas profissões, como carregadores, marreteiros,

3 COELHO, Geraldo Mártires. No Coração do Povo: Monumento à República em Belém (1891-1897). Belém: Paka-Tatu, 2002. 4 O hábito de passear nos espaços públicos se consolidou como padrão cultural europeu, sendo exportado para a América. No Brasil se incorporou aos hábitos da população a partir de meados do século XIX.5 SILVA, Sonia Maria Bessa da. Bragança, a cidade e o seu cotidiano. Belém: UFPA (Especialização em História da Amazônia), 1995.

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ambulantes, barraqueiros do Mercado Municipal, pescadores e agricultores que

utilizavam o local como instrumento de trabalho. Populares que se relacionavam

com as elites no campo do trabalho, dos serviços e das variadas relações no

dinamismo da cidade. Estavam também presentes nesses locais os principais

estabelecimentos comerciais do município. A Casa Oriente, a Casa Popular, a Casa

Guimarães, a Casa Comercial, a Casa Belém e a Loja Tupy eram comércios que

faziam parte daquele espaço, oferecendo a população produtos de alimentação,

ferragens e luxuosos vestuários da moda:

Casa Comercial Guimarães dispõem artigos de mercearia, tecidos nacionais e extrangeiros o que de há de mais chic e moderno vindo das grandes casas importadoras de Belém... 6

Ao mesmo tempo em que o perímetro da rua tornava-se um território de

lazer, que alimentava o imaginário de uma convivência ordeira, a vida cotidiana

neste local era também cercada de fatos diários que se traduzia em um cenário que

ameaçava romper com a ordem pública, evidenciando as tensões entre seguimentos

populares e as autoridades:

... ontem aos treze dias do mês de março de mil novecentos e des, as cinco horas da tarde, na rua Visconde de Souza Franco, as proximidades do litoral da cidade, Mlilillão Soares e outros após terem ingerido cachaça, e devido o vicio da embreaguez estavam enfrentando a todos que por ali passavam, chegando a ferri levemente alguns cidadãos...7

Portanto, a mesma área de circulação e convivência dos setores dominante

fora também o de movimento de sujeitos sociais, que pela sua presença, muitas

vezes vista como intempestivo ou mesmo perigosa, desmistificavam a cidade ideal

apresentando a cidade real, ameaçando os parâmetros de uma sociedade civilizada.

Andar pelo espaço das ruas de Bragança naqueles tempos em que a

cidade crescia, representava um perigo. Ela não era mais o lugar do lazer em que o

cidadão caminhava tranquilamente. Por ela transitavam pessoas ou grupos de

pessoas que ficavam a margem da sociedade (pobres, prostitutas, vadios,

6 A Cidade, 12/03/1916, p.5.7 Relatório diário do Fiscal do Litoral, Henrique Glym, em 10/03/1913. Prefeitura Municipal de Bragança. Livro de Relatórios.

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desocupados, ladrões, etc.), ameaçando a ordem na cidade. O processo criminal a

seguir mostra-nos as encenações diárias no espaço da rua. O episódio ocorreu no

canto da Rua Dr. Roberto com a Travessa Antonio Pedro, quando o comerciante

João Baptista do Rosário, 38 anos, solteiro, natural do Pará, caminhava em direção

a Estação da Estrada de Ferro, como de costume. Por volta de 19h da noite Gercino

Amâncio, conhecido como “Taxinho”, 18 anos, solteiro, natural do Pará, em

companhia de um grupo de desordeiros e ébrios habituais entendendo que João

estava sozinho acabou agredindo-o com uma faca. João diz em depoimento que

Gercino e outros “tinha a intenção de roubá-lo.” Já em seu depoimento para se

defender das acusações, Gercino argumentou que João dirigia-lhe insultos. 8 Mas,

como o crime era tentativa de homicídio provocando desordem, Gercino e seus

companheiros foram condenados a dois meses de prisão.

Diante disso, a presença popular nesses ambientes civilizados da cidade

deveria estar passível de normatização, mormente em relação aos seus hábitos e

costumes considerados como práticas imorais que ofendia a família:

Notando-se no Mercado Municipal desta cidade muitos abusos que impedem não só a fiscalisação dos interesses da Empresa, como a própria fiscalisação municipal, muitas vezes. Peço a Vossa Senhoria, Prefeito de Polícia, uma patrulha para aquelle estabelecimento e o litoral, a fim de não só garantir a fiscalisação, mas também conter as desordens e os desregramentos de linguagem que não podem ser ouvidas por famílias que estão em harmonia no mercado...9

Na Bragança que desejava ser moderna, a exemplo das grandes cidades

amazônicas, certos comportamentos de pessoas que colocavam em risco a

integridade física e desrespeitavam as normas e princípios morais nos espaços

públicos, foram sujeitas a vigilância e punições. Assim, o Mercado Municipal

representava um espaço simbólico da modernidade, presente no centro da

arborizada Praça da República e na parte comercial da cidade. Por ser um local de

grande circulação de pessoas, exigia uma convivência cotidiana pacífica que muitas

vezes, só seria possível através do controle policial sobre a população e a vigilância,

sobre seus comportamentos, exercícios fundamentais para a busca da ordem como

parte de um conjunto de ideais.

8 Auto de crime, 17 de dezembro de 1913. Fórum da Comarca de Bragança.9 Requerimento de Alberto da Silva Maia, Concessionário da Empresa de Melhoramentos Públicos, enviado para o Cel. Miguel Francisco Tontelles, Prefeito de Segurança Pública, em 06/08/1919.

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Outro local onde se presenciava as encenações da vida diária era na

Estação da Estrada de Ferro. Inaugurada no momento da chegada do trem, no ano

de 1908, a Estação Ferroviária realimentava o ideário da modernidade em

Bragança. Ela representava a presença do progresso que chegava ao povo

Caeteuara no apito do trem, envolvendo os moradores da cidade, modificando seus

hábitos e costumes. A estação passou a ser a porta de entrada de tudo que

significava moderno, o desembarque do trem representava a chegada de novas

modas, notícias, hábitos e costumes, era a ponte de ligação da cidade de Bragança

com Belém e com os padrões culturais europeus. Ao desembarcar na estação, o

viajante trazia as grandes novidades do estrangeiro atraindo a visitação pública de

curiosos pelo exótico. Desse modo, a estação juntamente com o trem deram um

outro ritmo a cidade – veloz, intensa –, fazendo com que os bragantinos recebessem

as novidades mais rapidamente.

No entanto, a estação não possuía apenas a função de embarque e

desembarque das elites, mas também o de movimento de populares como

vendedores de alimentos, trabalhadores rurais e carroceiros, que prestavam o

indispensável serviço de carregar mercadorias e gêneros agrícolas, mas que uma

vez ou outra estabeleciam comportamentos impositivos:

(...) Ontem, no horario das quatro horas da tarde, do trem de Belém, quando eu estava em pleno exercício de minha funções na Estação da Estrada de Ferro, presenciei a desordem de Luiz de tal que dirigia palavras injuriosas aquem pasava pelo local,e porisso foi detido e conduzido a prisão (...). 10

Fica claro, portanto, que no cotidiano desse espaço público o que se

percebe são relações de sociabilidade envolvendo diferentes sujeitos sociais,

evidenciando um local de tensão cultural. Para tanto, busca-se compreender para

quem representava ofensiva o comportamento e as verbalizações de Luiz? Somente

para o fiscal da estação, que legitimamente apresentava-se como o instrumento

normatizador da Municipalidade, ou demais usuários daquele espaço?

Para alguns populares que por ali normalmente transitavam as palavras

injuriosas de Luiz poderiam ser pouco ofensivas, mas para outros como os

cavalheiros e senhoras, que esperavam ansiosos a chegada do trem, para o

10 Relatório diário do Fiscal da Estação Ferroviária, Francisco Assis e Silva, 16 de agosto de 1911. Prefeitura Municipal de Bragança, Livro nº 164.

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momento de viajarem com destino a Belém, poderiam ser compreendidas como

agressão a moral pública e aos bons costumes. Entende-se, portanto, que esse tipo

de manifestação que ameaçava a convivência ordeira imposta era condenado pelas

autoridades bragantinas.

As praças após serem reformadas, com novos jardins, eram outros

ambientes que celebravam a modernidade e colocavam a cidade em sintonia com

os valores e hábitos civilizados das metrópoles. Eram áreas destinadas

exclusivamente para meditação e ao lazer familiar. A Praça Marechal Deodoro da

Fonseca, logo que foi revitalizada, passou a ser considerada a mais moderna da

cidade, pois seguia o modelo de jardim europeu, florido, arborizado e com a

presença de um monumento metálico vindo da Europa, reforçando assim, os

princípios da convivência social européia.

“Pelas alamedas da vasta praça Marechal Deodoro da Fonseca no pavilhão de ferro ao centro e por todos os lados do belíssimo jardim notava-se uma concorrência animada de distinctas senhoras e cavalheiros que estavam alli presente para apresentação da banda Marcial do Município (...)”. 11

(...) após a apresentação na casa do nosso director, effetuou-se sabbado 18 do corrente, na praça Marechal Deodoro da Fonseca, com a presença de um grande público, o concerto musical promovido pelos musicistas patricicios srs. Manoel Paiva, Frederico de Barros e Hermínio Barboza, tendo participação da exma. d. Amelia Pacheco e sr. Antonio Dias Ribeiro, distinctos amadores da arte de Mozart (...). 12

Além disso, esse espaço revelava encenações de agentes sociais que

possuindo pressupostos culturais distintos, atingiam e modelavam o cotidiano

daquele local. Ou seja, se para uns a praça se constituía como um lugar reservado

para as distrações, após uma longa jornada de trabalho, para outros eram espaços

para o usufruto contrariamente aos padrões propostos, causando desconforto a

outros personagens sociais:

(...) Na praça Deodoro da Fonseca, onde eu Antonio Veríssimo da Costa guarda fiscal da Intendência Municipal me achava em pleno exercício das minhas funcções, ahy detive em prisão e impuz a multa de cincoenta mil reis (50:000) ao carroceiro

11 Jornal A Cidade, 06/06/1917.12 Jornal A Cidade, 26 /03/1916.

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Moyseis da Silva por inflação do art. 78 do Código de Policia Municipal, que estando embriagado permitiu que o animal de sua carroça danificasse as plantas do jardim municipal. E para os effeitos legaes passou-se o presente auto que vae devidamente assignado pelas testemunhas Ramiro da Cunha Guimarães, Juvenal João de Oliveira e outros que tudo viram e assistiram.13

Aparentemente, no primeiro momento a punição de “cincoenta mil reis”

exercida contra o infrator atribui-se por ter permitido “que o animal de sua carroça

danificasse as plantas do jardim”. Contudo, deve ser levado em conta que o motivo

que levou o carroceiro a transgredir o Código Policial fora, primeiramente, seu

estado de embriaguez, que para certas pessoas destoava dos padrões

estabelecidos. Fica claro, portanto, que para Antonio Veríssimo da Costa, guarda

municipal, o comportamento de Moyses da Silva transgredia os bons costumes que

um cidadão bragantino deveria desempenhar em um espaço que sinalizava ordem e

civilidade na cidade.

Havia uma legislação municipal de controle e vigilância desempenhado

pelos fiscais municipais e a Polícia Municipal àqueles que não preservassem a

ordem e os bons costumes em lugares públicos. Como afirma DIAS em seu estudo

sobre a cidade de Manaus da Borracha,

“Aos guardas rondantes da cidade, caberia levar à presença da autoridade, que deveria tomar conhecimento do fato, todos os elementos que fossem encontrados em estado de embriaguez ou de alienação mental, assim como os que estivessem dormindo nas ruas, praças, adros das igrejas e lugares semelhantes”. 14

Portanto, nas praças ainda eram proibidas práticas esportiva como o

futebol, esporte bastante apreciado pelos membros de grupos socialmente

encastelados, mas que, quando praticadas pelos pobres, por estarem fora do lugar,

tempo e da organização formalizada era ilegal,15 provocando repressão:

“Quem passar depois da 4 horas da tarde pela praça da Matriz encontrará uma turma de vagabundos a jogar bola,

13 Auto de Inflação Policial, 19 de dezembro de 1909.14 DIAS, Ednea Mascarenhas. A ilusão do fausto. Manaus: Valer, 1999.15 SILVA, Sonia Maria Bessa da. Op. cit. p. 65.

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dannificando por esses os vidros do templo (...) Cumpre a polícia o seu dever e contara connosco para auxilial-a na obra saneadora que precisamos encetar, custe o que custar, desagrade a quem desagradar”. 16

“Tendo recebido varias reclamações dos cidadaos bragantino peço a V. S. providencias imediatas para que faça cessar os jogos de bolas de vadios nas praças e ruas da cidade, pois os mesmos não procuram ocupação no trabalho e trazem não só prejuízo aos bens públicos e muitas vezes dificultando o transito público e até trazendo dezastre a qualquer pessoa, quando atingindo pela bola (...)”. 17

Diante disso, pode-se verificar que o “perigo social cresce e torna-se mais

ameaçador, à medida que o pobre deteriora sua condição pela ociosidade”,18

ameaçando a harmonização social e o modelo idealizado do homem trabalhador.

Tratava-se inicialmente de uma política que garantisse a ordem e tornasse a

população pobre útil a dispor seu tempo ao trabalho – na produção agrícola, na

pesca, e no comércio – na estratégia de torná-lo um trabalhador produtivo. Para

isso, seria necessário controlá-lo e enquadrá-lo no processo produtivo do município,

para que seu tempo possa ser utilizado e aproveitado ao máximo. Como destaca

THOMPSON, na sociedade capitalista madura, todo o tempo deve ser consumido,

negociado, utilizado; é uma ofensa que a força de trabalho meramente “passe o

tempo”. 19 Pois seria através do desenvolvimento da indústria agrícola que Bragança

se destacaria no cenário regional e acompanharia a marcha progressiva da capital,

para ser indiscutivelmente a segunda cidade do Estado do Pará.

Na verdade, tudo o que comprometesse a ordem social e a produtividade

do município era condenado. Jogos de azar, o alcoolismo e a vadiagem eram

atividades e práticas vistas como perniciosas, porque podiam afastar o homem do

trabalho e dos padrões de comportamento estabelecidos. O jogo é visto como um

vício que transgredia a moral pública, e tinha conseqüências ainda piores, pois

acreditava-se que ele estimulava outros desregramentos, fazendo com que o

jogador se esgueirasse pelo caminho sem volta do crime. Os jogos conhecidos

como jaburu, baralho, roleta, entre outros, eram praticados principalmente em

16 Jornal A cidade, 07/08/1918. 17 Requerimento enviado pelo intendente Benedito Cardoso de Athayde para o Prefeito de Polícia, Miguel Francisco Fontelles. Arquivo Público Municipal, livro nº 177, 1919. 18 CHALHOUB, Sidney. Obra citada. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 17. 19 THOMPSON, E. P. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 298.

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lugares como bares e botequins, isto é, locais exclusivamente freqüentados por

populares, exigindo maior vigilância do poder público sobre esses ambientes. De

acordo com o Código de Polícia Municipal de 1913, no artigo 91, era proibido

qualquer tipo de jogos de azar dentro e fora dos estabelecimentos de casas de

botequins. Os infratores seriam presos, e o dono do local ou responsável por tal

prática seria aplicado a multa de 50$000 réis.

O uso do álcool excessivo era um grande mal que desrespeitava as normas

e princípios morais, sendo o maior responsável pelos desregramentos e desordens

na cidade, suscitando medidas de punição e repressão por parte do poder público.

Em mensagem dirigida aos Vogais do Conselho Municipal em 23 de abril de 1913, o

Prefeito de Polícia de Bragança, Antonio Augusto Pereira de Souza, solicitava

providencias para o abuso do álcool nos comércios:

Hoje, que nos reunis para trabalhar escudados no sentimento da regeneração de costumes porque vem passando todo este rico Estado do Pará, permittes que eu venha perdir a vossa attenção para factos que se vêem desenrolando neste município de Bragança e dos quaes os governos transatos nunca cuidaram.Existem, aqui algumas casas comerciaes que tendo licença municipal para o comercio de botinguim permanecem abertas até altas horas da noite; porem, infelizmente, não passam de guintandas de reles espécie e cujo principal gênero de venda é a cachaça. Resultando, portanto o constante ajuntamento, nessas casas, de indivíduos de maus costumes e que dedicam-se ao vício da embriagues e dahi os muitos crimes que se dão nesta Comarca.Exposto o facto, atrevo-me a pedir a V. S. que se digne tomar medidas urgentes que autorizem fazer cessar esses abuzos nas casas que tenham como gênero de seu principal comercio a cachaça (...).

As medidas apresentadas pelo Prefeito de Polícia visavam dificultar a

instalação e abertura de estabelecimentos de comercialização de cachaça,

determinação de um horário para sua venda, multa e proibição total para o

proprietário do estabelecimento que não obedecesse ao horário de venda. O

Conselho Municipal atendendo a representação de Antonio Augusto Pereira Souza

aprovou a Lei nº 92 de 26 de abril de 1913, do Código de Polícia Municipal,

proibindo “os botequins que não sejam de hotéis ou pensões a serem obrigados a

fechar às nove (9:00) horas da noite, do mesmo modo aos domingos e feriados até

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ao meio dia, só podendo abrir no dia seguinte”. Incorria na multa de 50$000 réis ao

dono do botequim que estivesse vendendo cachaça e o indivíduo que fosse

encontrado bebendo, após a hora estabelecida.

A ociosidade é uma outra ameaça que desrespeitava a ordem no espaço

urbano e incomodava o poder público, sendo necessário criar mecanismo de

recuperação e transformação do praticante da vadiagem. Consistia numa política de

enquadramento no regime de trabalho e lições de princípios morais destinado a

“uma malta de menores vagabundos” que eram visto jogando bilhar nas tabernas,

perambulando pelas ruas, envolvendo-se em brigas ou proferindo piadas de mau

gosto aos transeuntes. Enquanto isso, a imprensa se manifestava reclamando

medidas para acabar com esse mal que ameaça o espaço público de Bragança:

“Bragança, possue uma malta de menores vagabundos e é preciso dar-lhes correctivo, e esse só pela educação pode ser bem proveitoso. Muito felicitaremos a nossa terra se dentro em breve tivermos o prazer de ver cada menor vagabundo sentado a noite nos bancos da Escola Nocturna e de dia das diversas officinas de alfaiate, marceneiros, sapateiros etc, que possuímos”.20

A inclusão de meninos vadios ou desocupados nas escolas e oficinas os

tornaria úteis à sociedade; acostumando-se ao trabalho, garantiriam o seu futuro e o

processo produtivo do município. Para dar conta dos moleques pobres que

transitavam pelas ruas e praças da cidade, a intendência resolveu criar uma turma

especial na Escola Municipal Noturna, onde os meninos seriam recolhidos para

instrução educacional e profissional, mas de preferência agrícola. Mas mesmo com

todos os esforços do poder público em livrar os espaços da cidade desses

“elementos que pouco a pouco se aperfeiçoam no mundo do crime”, 21 o que se

observa é sua permanência no centro urbano. Isto fica evidente na análise das listas

de freqüências 22 dos alunos. Do total de 90 alunos pobres matriculados, apenas 37

freqüentavam a escola ao longo do ano de 1916.

Como se nota, as medidas elaboradas pela administração municipal e

autoridades públicas, surgiram exclusivamente pela necessidade de preservação e

20 Jornal A Cidade, 26/09/1915, p.1.21 Jornal A Cidade, 07/08/1918 p.4. 22 Este tipo de documentação possibilita ao historiador ter acesso a informações sobre crianças negras e imigrantes ao ensino, bem como a permanência das crianças no ensino, ao longo dos anos. Ver: BARCELLAR, Carlos A.P. Uso e mau uso dos arquivos. In: Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2005.

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defesa da ordem urbana. Uma cidade que busca estar em sintonia com o progresso

que experimentava a capital do Pará, tudo que ameaçasse a idealização de uma

cidade civilizada, passa a ser motivo de preocupação por parte dos setores

dominantes, que não mediram esforços para promoverem ações de vigilância,

controle e punição sobre os costumes, hábitos e lazer dos segmentos populares.

A construção da Bragança moderna implicava representações imaginárias

sobre os seus cidadãos. Assim é que a imagem do cidadão trabalhador, educado,

bem vestido e produtivo deveria sobrepor-se à imagem do indivíduo vagabundo,

ocioso, embriagado e desordeiro. Diante disso, compreendia-se que as camadas

populares possuíam uma condição de vida "suja", com hábitos desregrados e

valores constantemente relacionados à festa, às bebidas, à promiscuidade,

devendo, portanto, ser disciplinadas.

Na corrida incessante em busca do ideal de progresso experimentado pelas

capitais da economia da borracha, Belém e Manaus, os grupos dominantes de

Bragança procuraram estabelecer padrões de sociabilidades que possibilitassem

alcançar tal ideal, mas que não foram incorporadas em sua totalidade por parcelas

da sociedade bragantina. Esta questão figura quando as mesmas relações sociais

praticadas entre as elites eram postas como parâmetros para os grupos populares,

provocando tensões culturais no cotidiano da cidade.

A modernidade trouxe maravilhas para Bragança: o cinema, a iluminação

elétrica, a ferrovia, a mudança na paisagem urbana, a fotografia, etc. Mas também o

desejo de alterar os maus costumes e os hábitos da população, consideradas pelas

elites e autoridade como incivilizadas. Tratava-se, antes de tudo, da consolidação de

regras e normas contra práticas populares culturais que não se enquadram no

desejado modo de vida moderna. A respeito de tal processo, VELLOSO assevera

que,

“o endeusamento do modelo parisiense é concomitante ao desprestígio de nossas tradições. Vive-se o apogeu da ideologia cientificista que transforma a modernidade em um verdadeiro mito, cultuado pelas nossas elites. Mais do que nunca a cultura popular é identificada com negativismo, na medida em que não compactua com os valores da modernidade.” 23

23 VELLOSO, Mônica Pimenta. As tradições populares na Belle-Epoque carioca. Rio de Janeiro: Fuñarte, 1988. p.8.

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Esta tônica torna-se perceptível quando a intendência em 1916 estabelece

normas regulamentares para o carnaval bragantino. Essa manifestação de origem

popular era praticada pelos pobres nas ruas da cidade, estes se divertiam

mascaradas em grandes grupos, usando como confetes, o anil e a cabacinha de

borracha, entoando gritos e gargalhadas. A ação do poder municipal procurava

tornar o carnaval ordeiro e civilizado, para isso, proibiu que as pessoas transitassem

de “mascaras sem previa licença da prefeitura nas ruas públicas após às 6:30 em

diante”,24 e ao mesmo tempo impôs o desaparecimento das gargalhadas e dos

barulhos. A imprensa questionava este tipo de carnaval considerando-o como

ultrapassado:

(...) Até bem pouco tempo, aqui nas diversões de entrudo, usava-se o anil e as cabacinhas de borrachas. Este costume deve desaparecer de Bragança. Precisamos mostrar que progredimos, um de nossos melhores estabelecimentos commerciais – a Casa Belém – tem a venda lança-perfumes e confetis, com a qual poderão substituir a água e o anil. Temos também uma bela praça ajardinada (...) e que maravilhosamente se presta para os folguedos carnavalescos. Ali aos domingos, as senhoritas e rapazes que representavam o escol (as pessoas mais cultas da sociedade bragantina), certamente se reunirão para os combates de confetis e lança-perfumes (...). 25

Percebe-se, portanto, na leitura da nota acima, que as intenções dos

setores dirigentes procuravam romper com as práticas populares, que ainda

persistiam em Bragança. Por outro lado, observa-se também uma apropriação e

reformulação desta folia por parte dos segmentos elitizados. O uso do espaço da

bela praça jardinada, para a prática dos folguedos carnavalescos da elite, era prova

de uma festa que deveria ser civilizada, evitando desta forma o carnaval de rua.

Neste confronto entre o arcaico e o moderno, os índios foram visto como

primitivos e rústicos, pois comprometiam a imagem da desejada cidade civilizada.

Eram considerados como rústicos, por possuírem um modo de vida e

comportamentos desconexos que se exigia no cotidiano de uma urbe moderna. Por

viverem com seus corpos despidos e habitarem em moradias predominantemente

24 Lei de nº 105 de 15 de agosto de 1916. Prefeitura Municipal de Bragança (Arquivo Público Municipal). 25 Jornal A Cidade, 30/01/1916.

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de palhas (ocas) eram considerados atrasados pelo ponto de vista da modernidade.

Entendia-se que eram incapazes de se adequarem à nova sociabilidade que a

sociedade bragantina experimentava. Sua presença ameaçava a ordem no espaço

urbano, pois “quase sempre em suas passagens comentem atrocidades e roubos”.26

O poder público, para dar conta desse problema, desenvolve uma política de

segregação do indígena das áreas urbanas, deslocando-os para locais cada vez

mais afastados da cidade. Esta medida preservaria o espaço de Bragança do “modo

de vida selvagem do índio”, tanto é que nos discursos dos homens públicos afirmam:

“Hoje, não mais existe índios no município”.27

A adoção dos setores hegemônicos de Bragança por um estilo de vida

urbano moderno, como está sendo retratado neste artigo, representava um

recomeço ou um começo de uma nova etapa na história da “Pérola do Salgado,”

coincidindo com o auge da fase ferroviária, que se inicia em 1908, com a instalação

da Estrada de Ferro de Bragança.

Portanto, para as elites bragantinas, pautadas no lema positivista da ordem

e do progresso, tornar Bragança moderna significava deixar para trás tudo aquilo

que não almejava o progresso da cidade. Desta forma, os signos representativos

dos hábitos e costumes antiquados, das moradias de palhas, do homem que

interage com a natureza e não que a domina – no caso das comunidades indígenas

– foram depreciados pela modernidade. Praticar hábitos e costumes considerados

rústicos significava romper com a ordem comportamental estabelecida, era voltar ao

passado colonial identificado como atrasado. Assim, os habitantes da cidade

deveriam identificar-se com um padrão social, expressando hábitos e

comportamentos convencionados como civilizados.

Mas, quais seriam então os padrões socialmente aceitos neste cenário de

mutação social desempenhado pelo poder público contra os comportamentos dos

segmentos sociais populares? O modelo do cidadão trabalhador, bem vestido, com

seu paletó, chapéu, gravata e suas senhoras acompanhantes, ilustradas com seus

longos vestidos elegantes e ornamentados, isto é, todos aqueles que demonstrasse

uma conduta social a lá européia e americano, dando uma aparente idéia de

civilização. Desse modo, as elites bragantinas buscavam na Europa, especialmente

de Paris, muitos de seus referencias indicadores da civilização, como por exemplo,

26 Jornal A Cidade, 24/09/1916.27 Jornal A Cidade, 2/11/1916.

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no aprendizado da língua francesa nas escolas, escolhido como símbolo da gente

chic da cidade.

Nas páginas do jornal “A Cidade” atesta o novo tipo de viver urbano que

estava se configurando em Bragança. Era um cenário urbano tomado por senhores

e senhoras que buscavam desfrutar os espaços das praças, das ruas, do cinema,

dos clubes, das agremiações, dos bailes e dos banquetes ao ar livre, se

assemelhando com os “rituais de civilização” presente nas sociedades de Belém e

Manaus.

O jornal ainda influenciou na aceitação e disseminação deste estilo de vida

moderno, sob parte da população leitora. As informações contidas no periódico eram

repletas de subjetividade do articulista, que atendia o interesse da Municipalidade.

“A Cidade” propagava os valores, o estilo de vida e as ações da elite bragantina,28 ou

seja, divulgava o padrão de comportamento para a manutenção da ordem social no

espaço urbano.

Procurando se inserir no modismo denominado de Belle-Époque, as elites

utilizaram o jornal como forma de incitar em vários de seus leitores os ideais do

homem civilizado, fazendo com que as ações populares fossem vistas como

violação da ordem estabelecida, exigindo assim estratégias de controle, vigilância e

contenção a segmentos populares em seu cotidiano.

Como nos revela a imprensa e os relatórios da municipalidade, os grupos

dominantes acreditavam que a materialização do ideal da modernidade, munido pela

doutrina republicana da ordem e do progresso, traria o futuro esperado para

Bragança. Isto fica evidente no discurso do jornal “A Cidade”, onde o poder

municipal expõe de uma forma bastante clara que só através “da ordem e o respeito

a lei, são os únicos meios de obter o progresso”.29

Deve-se entender que esses valores modernos, necessários à instauração

de uma sociedade civilizada, fora adotado inicialmente pelas elites, que depois

estenderam à sociedade bragantina por meios de Instituições ligadas ao poder

público, tais como a escola, a polícia, a imprensa,30 entre outras, objetivando o bem

comum da sociedade. Esta iniciativa fazia parte da política dos detentores da

República em transformar, por meio da instrução pública, das ações disciplinadoras,

28 SILVA, Sonia Maria Bessa da. Op. cit., p.70.29 Jornal A Cidade, 06/06/1915. 30 Apesar de fazer uma breve análise, não me aprofundarei sobre as funções das Instituições reveladas neste trabalho, quem sabe em outra oportunidade.

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dos códigos etc. personagens sociais, especialmente populares, em cidadãos

civilizados e bons patriotas, caso o Brasil quisesse integrar ao seleto clube das

nações desenvolvidas.

Assim, a remodelação de hábitos e costumes sociais por meios das

instituições, principalmente a escola, tornava-se tarefa fundamental para que

Bragança ostentasse o mundo civilizado. Consta nos relatórios, o desempenho da

administração municipal na construção de escolas públicas primárias na cidade e no

interior, visando educar o aluno para o exercício da vida em sociedade, segundo o

padrão da ordem burguesa. Em mensagem apresentada a Municipalidade de

Bragança, em 14 de julho de 1915, os membros da Liga Brasileira Contra o

Analfabetismo, com sede no Rio de Janeiro, salientam que através da

“obrigatoriedade da instrução primária, será extirpado o analfabetismo do território

nacional, em prol da honra, da ordem e do progresso da Pátria bem amada”. 31

Estava também dentro dos planos dos republicanos transformar os populares, em

signos de uma cultura nacional coesa e unívoca. Para a intelectualidade da época,

os membros da sociedade moderna deveriam estar desencorajados de

performances próprias, e sim conectados com a pedagogia comportamental e de

ordem que pretendia delinear a sociedade para um formato singular.

Desse modo, às elites bragantinas iluminadas pelo estilo europeu de viver e

ancoradas no projeto modernizador da República, instituíram mecanismo para a

reconfiguração de práticas e comportamentos aos citadinos, trazendo resistências e

tensões quando estes mantinham referenciais que não estavam em sintonia com os

novos padrões. Logo, pode-se verificar, em Bragança do início do século XX, as

tentativas das elites e autoridades de transformação social por via de imposição,

controle e repressão às categorias populares. Nas cidades modernas, esses

mecanismos foram fundamentais para a construção de sociedades ordeiras,

modernas, civilizadas e educadas para o progresso comum. A respeito disso, afirma

FOUCAULT, que “no tempo moderno, estava reservado à influência sempre

crescente do Estado, à sua intervenção cada dia mais profunda em todos os

detalhes e relações da vida social (...)”.32

31 Ofício da Liga Brasileira Contra o Analfabetismo, do Rio de Janeiro, enviado aos membros da Municipalidade de Bragança, em 14 de julho de 1915. Prefeitura Municipal de Bragança (Arquivo Público Municipal). 32 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 178.

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Nesse processo a vigilância e o controle eram fundamentais para a busca

da ordem como parte de um conjunto de ideais, que se manifestaram no cotidiano

da cidade por meio de interferências e induções sobre as relações sociais. No

Código de Posturas de Bragança, revisado em 1890 e sendo depois implementado

como Código de Polícia Municipal, em 1910, já eram fornecidas indicações

racionalizadas sob os moldes modernos. O Código, na tentativa de organizar a vida

urbana da cidade, impôs uma série de medidas civilizatórias: aos vagabundos,

embriagados e desordeiros, multas e cadeia; aos comerciantes, horários de

fechamento de seus estabelecimentos; aos animais que circulavam pelas vias

públicas, abatimento e multas aos seus donos; etc. Portanto, a vigilância e o controle

assegurado pelas leis e códigos municipais e também por intermédios de instituições

buscavam reconfigurar a ordem comportamental, práticas e valores na cidade.

Apesar do espaço público policiado pelos fiscais e guardas da Intendência,

as transgressões continuavam no dia-a-dia da cidade, revelando que os segmentos

populares resistiram ao processo de disciplinalização dos espaços. Em relatório

apresentado ao Conselho Municipal, em 15 de setembro de 1919, Joaquim Diniz

(Vogal do Conselho Municipal) se manifestava solicitando auxílio da Polícia

Municipal em conjunto com os funcionários da Intendência para conter os constantes

desregramentos praticados por desocupados, “que reunidos cometem desordem,

danificam as praças e com varas, vivem constantemente a quebrar as lâmpadas,

tendo como resultado a falta de luz nas ruas, prejudicando o embelezamento da

cidade”. 33

Todavia, as transgressões não devem ser entendidas como ações

produzidas exclusivamente por populares, mas também por membros privilegiados,

que da mesma forma eram passíveis de repressão:

“(...) quando eu estava em pleno exercício de minha funções na rua Senador Pinheiro, encontrei Raymundo Rodrigues da Silva, professor da Escola Nocturna, embriagado e segundo a diretora da Escola o mesmo não compareceu na noite pasada na dita escola deixando de exerce sua função, no que foi detido e encaminhado a prisão (...)”. 34

33 Relatório apresentado ao Conselho Municipal. Prefeitura Municipal de Bragança (setor Arquivo Público Municipal). Livro nº 177.34 Relatório diário do guarda fiscal, Manoel dos Reis Ferreira, em 26/05/1910.

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Nota-se, portanto, que as relações de sociabilidade ocorreram de forma

circular, ou seja, o mesmo sujeito social poderia ser considerado como malfeitor,

trabalhador, desordeiro, homem de bem, vagabundo. Pois, em uma cidade em

processo de mutação exigia estratégias de sobrevivência diferenciadas no cotidiano

conforme as novas configurações da cidade. O ser social no espaço urbano, diante

da nova ordem, eram passivos, ativos, resistentes, em outros momentos aceitando,

mas em outros agindo, manifestando cotidianamente nas relações sociais,

resistências e tensões, principalmente de populares.

Então, pode-se dizer que a vida moderna que os novos espaços urbanos

fizeram surgir tinha, por excelência, a marca do eu; o indivíduo era o centro das

atenções. Para este sujeito se voltaram todos os mecanismos de supressão do

poder público. Porém, o eu tornou-se manifesto, tornou-se agente de seus próprios

feitos, demonstrando força para reconfiguração de seu meio, agindo sobre as

posturas normatizadoras. Assim, pode-se dizer que a modernidade é tensão. Este

novo modo de ser explode quando o homem descobre que sua autonomia está

ameaçada, uma vez que territórios que passavam pelo processo de transformação

urbana tornaram-se espaços de disputas.

REFERÊNCIA

BARCELLAR, Carlos A.P. Uso e mau uso dos arquivos. In: Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2005.

COELHO, Geraldo Mártires. No Coração do Povo: Monumento à República em Belém (1891-1897). Belém: Paka-Tatu, 2002.

CHALHOUB, Sidney. Obra citada. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

DIAS, Ednea Mascarenhas. A ilusão do fausto. Manaus: Valer, 1999.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.

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SEVCENKO, Nicolau. A Revolta da Vacina: mentes insanas em corpos rebeldes. São Paulo: Brasiliense, 1984.

SILVA, Sonia Maria Bessa da. Bragança, a cidade e o seu cotidiano. Belém: UFPA (Especialização em História da Amazônia), 1995.

THOMPSON, E. P. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

VELLOSO, Mônica Pimenta. As tradições populares na Belle-Epoque carioca. Rio de Janeiro: Fuñarte, 1988.

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