2013 - giuliana teixeira de almeida

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1 UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS ORIENTAIS PROGRAMA DE LITERATURA E CULTURA RUSSA GIULIANA TEIXEIRA DE ALMEIDA Pelo Prisma Biográfico: Joseph Frank e Dostoiévski São Paulo 2013

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Mestrado. Gênero biográfico. Dostoevsky.

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1 UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS ORIENTAIS PROGRAMA DE LITERATURA E CULTURA RUSSA GIULIANA TEIXEIRA DE ALMEIDA Pelo Prisma Biogrfico: Joseph Frank e Dostoivski So Paulo 2013 2 UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS ORIENTAIS PROGRAMA DE LITERATURA E CULTURA RUSSA Pelo Prisma Biogrfico: Joseph Frank e Dostoivski Giuliana Teixeira de Almeida DissertaoapresentadaaoProgramadePs-graduaoemLiteraturaeCulturaRussado DepartamentodeLetrasOrientaisdaFaculdadede Filosofia,LetraseCinciasHumanasdaUniversidade de So Paulo como requisito para obteno do ttulo de MestraemLiteraturaeCulturaRussa.Pesquisa desenvolvidacomapoiodaFundaodeAmparo Pesquisa do Estado de So Paulo (FAPESP). Orientador: Prof. Dr. Bruno Barretto Gomide So Paulo 2013 3 Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrnico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte. Catalogao na Publicao Servio de Biblioteca e Documentao Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo ______________________________________________________________________ Almeida, Giuliana Teixeira dePelo Prisma Biogrfico: Joseph Frank e Dostoivski / Giuliana Teixeira de Almeida; orientador Bruno Barretto Gomide. -- So Paulo, 2013.150 f. ;. Dissertao (Mestrado) Programa de Ps-Graduao em Literatura e Cultura Russa Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo. 1.Dostoivski, Fidor 1821-1881. 2. Joseph Frank. 3. Biografias. 4. Eslavstica. 5. Fico Russa I. Ttulo. II. Gomide, Bruno Barreto. 4 GIULIANA TEIXEIRA DE ALMEIDA Pelo Prisma Biogrfico: Joseph Frank e Dostoivski Dissertao de mestrado apresentada ao Programa de ps-graduao em Literatura e Cultura RussadoDepartamentodeLetrasOrientaisdaFaculdadedeFilosofia,LetraseCincias HumanasdaUniversidadedeSoPaulo,aprovadapelaBancaExaminadoraconstituda pelos seguintes professores:______________________________________________ Prof. Dr. Bruno Barretto GomideFaculdade de Filosofia, Letras e Cincias HumanasUniversidade de So PauloOrientador______________________________________________ Profa. Dra. Aurora BernardiniFaculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas Universidade de So Paulo______________________________________________ Prof. Dr Marcelo Timotheo da Costa Universidade Salgado de Oliveira, UNIVERSO So Paulo 2013 5 Para Ricardo e Aliette, meus pais 6 Agradecimentos: Agradeo Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo (FAPESP) as bolsasconcedidasnopasenoexterior,quepossibilitarama minhadedicaoexclusivaa esta pesquisa.Ao meu caro orientador, agradeo a pacincia e as dicas valiosssimas em todas as etapas do mestrado. Foi extremamente gratificante ter sido guiada nessa imerso nos temas russos por um professor ao mesmo tempo brilhante e atencioso. Agradeo Professora Irina Paperno a orientao atenta e o auxlio durante o meu estgiodepesquisanoexteriornaUniversidadedaCalifrnia,Berkeley(comelaaprendi que o rigor e a disciplina moda russa so timos antdotos para os momentos de inrcia e indeciso).AgradeotambmsprofessorasLubaGolburteVictoriaFrede,que concordaramcomaminhapresenacomoalunaouvintenassuasaulaseAnnaMuzae HarshaRam,tambmprofessoresdeBerkeley,agentileza.AgredeoDianeO. Thomposonasobservaesreferentesaomeutrabalhofeitasduranteumalmooinformal no BASSEES de 2012, que abriram os meus olhos para a relevncia da biografia de Frank nomeioacadmicoanglo-saxo,eTamaraDjermanovicaspalavrasincentivadorasna ocasio daquele Congresso. AgradeoaoprofessorMrcioSeligmann,responsvelpelasaulas interessantssimas que eu assisti no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) na Unicamp. NaUniversidadedeSoPaulo,agradeoFtimaBianchiosensinamentossobrea literaturadeDostoivski.Agradeoaosprofessoresquecompuseramaminhabancade qualificao, Aurora Bernardini e Marcelo Timotheo, as crticas e sugestes extremamente construtivas e determinantes para o desenrolar dessa pesquisa. No poderia me esquecer dos funcionriosdoDLO,JorgeeLus,quemesocorreramnosmomentosdeapurogerados pelaminhadesatenoacertosprocedimentosburocrticos.Querotambmexpressara minha gratido aos meus incrveis colegas da Ps-graduao em Literatura e Cultura Russa, que tornaram menos solitrios e mais alegres os anos de mestrado. No posso deixar de mencionar meus amigos queridos, sempre ao meu lado mesmo nos momentos de chatice aguda. Os amigos historiadores como eu, Carolina Kuk, Annelise Carvalho,VictorSobreira,CarlosOrtiz,eoutros.TambmmeusvelhosamigosJulia Passos,IsabelBernardes,BiaFalleiros,BrunoCucio,AndrGoldfeder,GustavoSimon, Pedro Nakano, Tayn Britto, Caio Marchi, Natlia Fazzione, Tiago Frgoli e muitos outros (que sinto por no citar os nomes para no me alongar demais), quero deix-los cientes dos meusmaissincerosagradecimentos.Tambmagradeoaosmeuscolegaseamigosde Berkeley, que contriburam para tornar inesquecveis meus meses no exterior.Agradeo aos meus pais, a quem dedico essa pesquisa e s minhas queridas avs e tias,dequemnoesquecereioesforoparaacompreensodosmotivosaparentemente insondveisqueteriammelevadoaoptarpormetrancarembibliotecaseaprenderuma lngua to difcil quanto o russo. Last, but not least, gostaria de agradecer Marguerite Frank e a Joseph Frank. Sou imensamentegrataaosdoisporteremmerecebidoemsuaresidnciaemStanford,Palo AltoCalifrnia,paraumaconversasobreaminhapesquisa.JosephFrank,que infelizmente j no est mais entre ns, alm de ter me concedido uma tarde inesquecvel, mepresenteoucomumexcelentematerialdereflexoqueaguouaminhacuriosidade intelectualeenriqueceumeurepertrioculturalduranteessesanoscomoestudantede mestrado.7 Ohomemumenigma.Esseenigmatemdeser decifrado, e se voc levar a vida inteira para faz-lo,nodigaquedesperdiouseutempo;eume ocupo desse enigma porque quero ser um homem Fidor Dostoivski 8 ALMEIDA, Giuliana Teixeira de. Pelo Prisma Biogrfico: Joseph Frank e Dostoivski. SoPaulo:2013,150f.Dissertao(MestradoemLiteraturaeCulturaRussa)- Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo. RESUMO MuitasbiografiasforamescritassobreFidorDostoivski,nomecentraldaliteratura russadosculoXIX.Dentreosttulosdedicadosvidadoescritorrussodestaca-se Dostoivski de Joseph Frank, um grande esforo de investigao elaborado ao longo de quase trs dcadas. A obra escrita pelo scholar norte-americano consiste em uma sntese da histria cultural da Rssia no sculo XIX, contexto no qual Dostoivski viveu, alm deumesforodeinterpretaodaficodoromancista.Essapesquisavisaanalisara biografiadeautoriadeJosephFrank,assimcomoefetuarumacomparaoentreessa obraeoutrasbiografiasimportantesescritassobreoescritorrusso.Paralelamente, pretende-seinvestigarasquestestericasemetodolgicasconcernentesaognero biogrfico.Tendoemvistaagranderepercussodaobranaspublicaesnorte-americanas,essapesquisatambmexaminardemodopanormicoarecepoda biografia de Frank nos Estados Unidos e os percursos da eslavstica norte-americana nas ltimas dcadas. Palavras-Chave: Dostoivski; Joseph Frank; Biografias; Eslavstica; Fico Russa. 9 ALMEIDA, Giuliana Teixeira de. Through the Biographical Prism: Joseph Frank and Dostoevsky.SoPaulo:2013,150f.Dissertao(MestradoemLiteraturaeCultura Russa)-FaculdadedeFilosofia,LetraseCinciasHumanas,UniversidadedeSo Paulo. ABSTRACT ManybiographieshavebeenwrittenaboutFyodorDostoevsky,aprominent19th centuryRussianliteraturenovelist.Amongallthesetitles,JosephFrank'sDostoevsky standsoutasagreatsynthesisoftheRussianwriter'slifeandera.Writtenalongthree decades,Frank'sworkrecreatestheRussianculturalhistoryinthesecondhalfofthe 19thcenturyandproposesaninterpretationforDostoevsky'sliteraryworks.Afterthis biography,FrankhasbecomeoneofthemostimportantNorthAmerican'sexpertsin RussianliteratureandDostoevsky.Thisresearchaimstoanalyzethismonumental biography,tocomparethisworkwithotherbiographieswrittenaboutthethrillinglife ofDostoevskyandtoinvestigatethetheoreticalandmethodologicalproblemsofthe biography genre. Finally, considering the repercussion of Dostoevsky for the intellectual communityofUnitedStatesofAmerica,wewillalsoanalyzethereceptionandthe critiquesofFrank'sbiographyandthesituationofthelastdecadesofSlavicstudiesin that country. Key Words: Dostoevsky; Joseph Frank; Biographies; Slavic Studies; Russian fiction. 10 SUMRIO Introduo. 11 1.O gnero biogrfico . 14 2.Fidor Dostoivski: uma vida hiperbiografvel............................................ 41 3.Dostoivski de Joseph Frank ........................................................................... 71 4.Frank, seus crticos e a eslavstica norte-americana .................................. 109 Concluso.................................................................................................................... 134 Bibliografia ................................................................................................................. 138 11 Introduo: FidorDostoivskiumdosescritoresrussosquemaisdespertaaatenodos estudiosos do mundo todo. um grande desafio identificar um tema de pesquisa pouco exploradoqueenvolvaogranderomancista.Assim,adificuldadeemencontrarum caminhonotopercorridodesviouanossacuriosidadeinvestigativaparaumfilo muito rico que envolvea figura de Dostoivski: as biografias. Muitas biografiasforam escritassobreavidadoescritorrussonosmaisdiferentescontextostemporaise espaciais. Em meio a essa infinidade de obras biogrficas, Dostoivski, de Joseph Frank, conquistou um destaque considervel.Umaspectodistintivodaobradopesquisadornorte-americanoomtodo empregado, que pressupe que os romances tornam-se inteligveis na medida em que o contextohistriconoqualDostoivskiviveueproduziudescortinado.ParaFrank, Dostoivskiumescritormagistralporrepresentarosgrandestemasquesempre preocuparamahumanidadecomo,porexemplo,aexistnciadaimortalidade,a importnciadaliberdadeetc.,nostermosdasmaisexplosivasurgnciasdasuapoca, comoocomportamentodageraoradicalde1860,ascondiesdevidadasclasses desafortunadasdosbairrospobresdeSoPetersburgo,entreoutros.Oempenhona pesquisa histrica emprestou biografia o alcance de uma obra de historiografia, e por isso Dostoivski tambm pode ser lida como uma histria cultural da Rssia do sculo XIX.AopoporestemtodofoioquemaisimpressionouoscolegasdeJoseph Frank,umavezqueentreosnorte-americanosatradiocrticaqueconsideraos elementos externos obra irrelevantes para o estudo e compreenso da mesma muito 12 arraigada. A aposta de Frank gerou um enorme interesse entre os estudiosos do assunto e foram produzidas sobre Dostoivski numerosas resenhascrticas eartigos cientficos. A recepo da biografia, muito favorvel, lana luz sobre seus mritos e tambm sobre ostatusearespeitabilidadedoautornoseumeioacadmico.Outrafontede informaessobreDostoivskiencontra-senahistriadaeslavsticanorte-americana, uma vez que a biografia no consiste somente em um empreendimento individual de um importanteintelectualsvoltascomoseuobjetodepesquisa,mastambmemuma radiografia,oumesmoemumtermmetrodessaeslavsticadaqualoseuautor parte. importante ressaltar que o intuito deanalisar adequadamente a obra deFrank esbarrounodesconhecimentodasquestesterico-metodolgicaspertinentess biografias. Como ser devidamente assinalado no primeiro captulo desta dissertao, o gnerobiogrfico,apesardasuanotvelpopularidade,poucodebatidoepensadona academia.Odescasopodeserparcialmenteexplicadopelasdificuldadesintrnsecas biografia,queaempurramparaumaregiofronteiriaentreascinciashumanasea literatura.Ocompromissocomaverossimilhanaeoaproveitamentodastcnicasda ficosocaractersticasdestegneroqueprovocamtantoadesconfianados historiadorespreocupadoscomasfontesdocumentais,quantodosescritoresmovidos pela criatividade. Confinada neste limbo intelectual, a biografia permanece um objeto poucodebatidoepensado.Noentanto,aescassezdeobrastericasdestoadaenorme quantidadedebiografiasexpostasnasestantesdelivrarias,tantonoBrasilquantoem outros pases, que exercem grande atrao sobre os leitores no mundo todo. Um indcio dessaatraopodeserapontadonoelevadonmerodebiografiasdisponveissobrea vida de Dostoivski, como j assinalado.13 Tendoemvistaessepanorama,parafazerfrenteaosilncioquepairasobrea biografia,optamosporcomporumasntesedaliteraturacrticadisponvelsobreo gnerobiogrfico,visandoademonstrarqueomesmopodeoferecerumpontode partidaprofcuoparafuturasinvestigaesemdiversasreasdoconhecimento. Optamostambmpordiscutiralgumasdasprincipaisbiografiasescritassobre Dostoivski,tantoparacompreenderadiversidadeintrnsecaaognero,quantopara tentar localizar o lugar ocupado por Dostoivski de Frank no interior desta tradio. Emsntese,aolongodosquatrocaptulosquecompemestadissertao, optamospordestrincharateoriaexistentesobreognerobiogrfico(captulo1,O gnerobiogrfico);asdiversasbiografiasdisponveissobreavidadeDostoivski (captulo 2, Dostoivski: uma figura hiperbiografvel); as particularidades da biografia daautoriadeJosephFrank(captulo3,DostoivskideJosephFrank);eaopiniodos colegas eslavistas de Frank sobre a obra, assim como a histria deste campo de estudos nos Estados Unidos (captulo 4, Frank, seus crticos e a eslavstica norte-americana).Aofinaldestadissertao,esperamosofereceraosleitoresumaanliseda biografia escrita por Joseph Frank que faa justia sua importncia e centralidade na eslavsticaanglo-sax.Almejamostambmfamiliarizarospesquisadoresbrasileirose os interessados em geral com este estudioso que ocupa a linha de frente entre os tericos dostoievskianos da atualidade. 14 1.O gnero biogrfico Desde o seu surgimento na cultura ocidental, no sculo V a.C, a biografia resiste dentre os mais longevos e frutferos gneros literrios. Nenhuma gerao se esquivou do desafiobiogrficoeestaseincorporouahistriadahumanidadecomoumimportante trunfonalutainglriatravadapeloshomenscontraainevitabilidadedamorteeas sombras do esquecimento.ApalavragregaBIO[vida]GRAFIA[escrita],emsuaacepoetimolgica, evocaopressupostodequeumdestinoindividual,enquantoumacontinuidade,uma unidade determinada por duas datas o dia do nascimento e o dia da morte possvel desernarrado.Abiografiadependeudaescritaparaconstituir-secomognero,pois somentecombaseemdocumentosescritososhomenscomearamanarrarvidasque, por serem consideradas significativas, mereceram ser recontadas e comemoradas. Logo apsoseusurgimento(nosculoVa.CcomoumgnerocomplementarHistria),a biografia no teve grande prestgio, porque no contexto democrtico da Grcia Antiga o indivduonadasignificavadescoladodacoletividade.Odesenvolvimentodognero biogrficodeslanchouapenasumsculomaistarde(IVaC.),quandooperodo helnicoexperimentouumsurtodeinformaesdeordembiogrficanosepigramas funerrios1. Odespertardabiografianapocahelensticaapontaparaumanovabatalha encampada pela humanidade: uma batalha contra o esquecimento, na qual se entrev o desejodeimortalidade.Assim,dasuaorigemnaAntiguidadeatapocaModernaa biografia dedicou-se narrao das vidas de homens virtuosos. Estas eram poupadas do olvido por oferecerem modelos de comportamento e de virtudes s geraes vindouras. 1 DOSSE, Franois. O Desafio Biogrfico Escrever uma Vida. So Paulo: Edusp, 2009, p. 124. 15 Osvalorescultivadoseramosheroicos,eoregimedehistoricidadeaoqualse relacionavaessegneroorientava-sepelopassado,comvistas,portanto,reproduo dosmodelosexistentesnofuturo.Dessamaneira,alinhadivisriaentreaverdadeea ficonoeratorigorosamentedemarcada,umavezqueohorizontedeexpectativas dosapreciadoresdebiografiasnocompreendiasenoanarraodeumavida exemplar, mesmo que o preo a ser pago por esse resultado fosse um breve flanar pelos bosques da fico. Durante o perodo medieval, o gnero sofre um leve desvio de rota, pois com a cristianizao,osvaloresheroicosexplicitadosnasbiografiassosubstitudospelos valoresreligiososeashagiografias(ouvidasdesantos)tomamparasiafunode narrar vidas exemplares. O Renascimento, com toda a sua sede pelas fontes dos antigos, retomaosvaloresheroicos,pormrevelaumatensointrnsecapocamoderna:ao mesmo tempo em que se caminha paraa valorizao do indivduo em oposio ao seu eclipsardapocamedieval,passa-seaesperardesseindivduoumarelaocomo universal.NaspalavrasdohistoriadorFranoisDosse,pelacapacidadedeabsorver os valores coletivos, de encarn-los em um percurso singular, que a vida dos indivduos encerra um sentido maior que a mera equao pessoal e conquista uma glria duradoura aos olhos de outrem, por meio do reconhecimento2. Mesmo com oabaloda noo de heri,omodelodebiografiasobedecidoduranteoRenascimentocontinuarsendoo dosAntigoseapocamodernacomoumtodonoousarparaalmdeumaescrita equilibrada entre a vida exemplar e a faccia singular. OsculoXVIIItrarconsigoacrisedefinitivadafiguradoheri.Seucarter semidivinopassaasercontestado,emnomedarazo,pelafilosofiadasLuzes.Os valoresguerreirosqueoheriencarnavoaospoucossendotidoscomocoisa 2 Idem, p. 154. 16 ultrapassadanumasociedadedesejosadepaz3.Dessamaneira,acrisedafigurado heri empurra o gnero biogrfico para a reconstituio da vida dos grandes homens. O grandehomem,diferentementedoheri,retratadopelosbigrafoscomoumhomem detentordevirtudesedefeitoscomotodososoutroshomens,pormcomuma particularidade fundamental que o distingue dos demais: um feito importante, uma obra prima,algomemorvelerelevanterealizadoduranteasuatrajetriadevida.Seno sculo XIX os grandes homens eram geralmente nomes destacados da poltica nacional, tendoemvistaqueanaoeraograndereferencialdeidentidadecoletiva, posteriormente a evoluo do grande homem nos tempos modernos, amplificada por sua capacidade de criar e entreter uma relao especial com a dimenso do belo, ensejou o deslocamento da empresa biogrfica para o mundo dos artistas sob todas as formas de expresso4.Assim,escritores,pintores,msicos,atoreseatrizes,entreoutros, assumiramcertoprotagonismonasbiografias,principalmentenodecorrerdosculo XX. Mesmoapsaresoluodoproblemadacrisedoheriedaeleiodenovos objetosparaaempreitadabiogrfica,abiografianoconhecerdiasmaisluminosos durante o sculo XIX, no por acaso o sculo da disciplinarizao da Histria. Esta nova disciplinacomeaavaler-sedeoutraslgicas,maiscoletivasesociais,einiciaum grande debate acerca darelevncia das aes individuais no curso da Histria. O novo regimedehistoricidadegestadopeloPositivismoepeloMarxismo,entreoutras filosofias da Histria, inverte aquele cultivado pelos antigos e o futuro passa a orientar o passado, deslegitimando assim a busca por modelos para o porvir em um tempo que j passou. 3 Idem, p. 166. 4 Idem, p. 183. 17 Porconseguinte,durantetodoosculoXIX,abiografiafoirelegadaauma funoacessriadaHistriaerebaixadaaosegundoescalodasprticascientficas. Transformadaemumgneromenor,abiografiaconverteu-seemummtierde jornalistas, ou em uma atividade de polgrafos menos gabaritados. O eclipse ao qual foi relegado o gnero perdurar at praticamente as ltimas dcadas do sculo XX. No se deveperderdevistaqueosculoXXosculodotriunfodaindividualizao, fenmenoqueseaprofundaaindamaisnosculoseguinte(XXI).Avalorizao extremadoindivduoeleva-oaopostodefontedeinspiraoeaobjetoprimordialde reflexo, favorecendo dessa maneira o redespertar do gnero biogrfico.Assim, o sol volta a brilhar no terreno da biografia, e com fora a partir dos anos 1980dosculoXX.nodecorrerdestadcadaqueossetoresmaisrefratriosao gneroaAcademia,aseditorasdemaiorprestgio,emsuma,osmeios intelectualizadoscomeamamudardeopinio.Seatametadedadcadade80a biografiafoiabsolutamentedesprezadapeloseruditoseacadmicos,quea consideravamirrelevanteparaoavanodotrabalhocientfico,nosltimosanosa situaoalterou-se,aindaquetimidamente.OhistoriadorFranoisDosseestabelece umadataparaomovimentoderedescobertadasvirtudesdeumgneroquearazo gostaria de ignorar5: o ano de 1985. Segundo o historiador, foi nesse ano que na Frana o Livres-Hebdo, o hebdomadrio profissional das publicaes, consagrou a nica seo especializada at ento existente s biografias, e a pesquisa publicada revelou a simpatia detodososeditores,inclusiveosmaissriospelognerobiogrfico.Sem1985, duzentasnovasbiografiasforampublicadasporcinquentaeditoras,cujootimismo pareceeufriconessecampo,enquantonosoutrosacentuadamentetmido6.Esse 5 Idem, p. 16. 6 Idem, p. 16. 18 otimismo se manteve pelos anos subsequentese aps esseempurro inicial dado pelos editores franceses a taxa de lanamento de biografias cresceu 66% em quatro anos.Na dcada de 1990 esse crescimento perdurou e na Frana o Crculo de livrarias contabilizou a publicao de 611 biografias no ano de 1996 e de 1043 no ano de 1999. Masessefenmenonoparticularaocasofrancs,poiscomoassinalaohistoriador brasileiroBenitoBissoSchmidt,oretornodabiografiaummovimento internacional7 e perceptvel em muitos pases. NaInglaterra, uma pesquisa de opinio realizada no ano de 1994 apontou que entre as pessoas que liam um livro por ms, 19% preferiamasbiografias.NosEstadosUnidos,obigrafoStephenOatscitouemseu livroumapesquisarealizadapelaLibraryofCongressqueinformouqueentreos entrevistados,amaioriahaviaoptadoporlerbiografiasnosseismesesanteriores realizao da pesquisa do que qualquer outro gnero literrio8.Jnonossopas,segundodadosapresentadosporSchmidt,oCatlogo brasileirodepublicaesapontounoanode1994umcrescimentode55%dognero emrelaoaoanode19879.NoBrasil,osucessodabiografiafoiimpulsionadopela publicao da narrao das vidas de grandes artistas e celebridades nacionais, como por exemplo,OFuracoElis(1985)eCazuza,sasmessofelizes(1997),ambosde Regina Echeverria, sem contar as obras dos dois principais bigrafos do pas - Fernando Moraes e Ruy Castro- autores que se debruaram sobre as vidas de Garrincha, Carmem Miranda, Paulo Coelho, entre outros. 7SCHMIDT,BenitoBisso.ConstruindoBiografias-HistoriadoreseJornalistas:Aproximaese AfastamentosRevistaEstudosHistricos,Vol.10,N19,1997,p.3-22disponvelem http://virtualbib.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/viewFile/2040/1179 8BACKSCHEIDER,PaulaR.ReflectionsonBiography.NewYork:OxfordUniversityPress,1999,p. XIII.9 SCHMIDT, Op. Cit. p. 3. 19 Portanto,aatraodopblicoleitorpelasbiografias,principalmentena conjuntura atual, algodigno de nota. E ainda que os meios intelectualizados tambm tenhamsevoltadoparaabiografia,ohistricodedesinteressesobreognero desembocou numa ausncia de reflexo crtica e discusso terica que est longe de ser superada.Aescassezdeliteraturacrticadisponvelsuscitaaquesto:umavezquese publicam e se consomem tantas biografias, como possvel que no existam parmetros para se discutir a qualidade ou ausncia de qualidade dessas obras? E como os bigrafos conseguemseaventuraremumgnerocujasfronteirasnoestoclaramente delimitadas?Umsimplespassardeolhossobreasresenhascrticaspublicadasna imprensasobrebiografiasrecm-lanadasoferecesubsdioparaaafirmaodequeo gnero to pouco estudado que nem os parmetros para avaliar se um empreendimento biogrfico foi ou no bem realizado esto consolidados. Como escreveu Carl Rollyson, to the professional reviewer it is merely a story to be retold as if the reviewer wrote the biography10.Segundooimportanteestudiosodobiografismo(eautordebiografias clssicas,comoadeHenryJames)LeonEdel,abiografiaachildofindividual talents,quesofrefromalackofdefinition,alaxityofmethodelegtimoafirmar que there exists [Im sorry to say], no criticism of biography worthy of the name11. TambmnoBrasil,oboomdabiografianocoincidiuemproporocomo interessedosmeiosintelectualizadospelognero.Apesardosucessoeditorialedo apreo do grande pblico, a biografia ainda pouco discutida e pensada no universo da academia. Apenas timidamente este gnero vem despertando a ateno dos acadmicos brasileiros,despontandocomoinspiraoousoluocomomtodoqualitativopara trabalhos cientficos nas reas da sociologia, educao, psicologia social, antropologia e 10ROLLYSON,Carl.AHigherFormofCannibalism?Adventuresintheartandpoliticsofbiography. Chicago: Ivan R. Dee, 2005, p. 59-60. 11 EDEL, Leon. Writing Lives. Principia Biographica. New York/ London: W. W. Norton and Company, 1984, p.24-31. 20 como objeto de estudo para historiadores, linguistas, crticos literrios e filsofos. Mas, mesmocomessanovatendncia,oespaodestinadobiografiaodomercadoeda indstriaculturale,porconseguinte,noporacasoqueasbiografiasdeartistase personalidadesfamosasdestacam-seentreoslanamentoseditoriaisbrasileiros.A lgica mercadolgica que enredou o gnero biogrfico um reflexo da superestrutura da sociedadedainformao,naqualavalorizaodoindivduoconvergeparaoculto celebridade.importanteressaltarqueonegciolucrativodasbiografiasdeartistas (msicos, escritores, como tambm pensadores, intelectuais, filsofos) adquire no nosso tempo outra funo para alm de uma saborosa fonte de anedotas sobreas intimidades dessespersonagens:essasbiografiassoconsideradasmuitasvezesocaminhomais adequado para a compreenso do sentido da obra destes artistas. possvel se intuir que osucessodasbiografiasdeartistasepensadoresatualmentesejaumsintomadesta concepo,queconsideraoconhecimentodavidadealgumumcaminho,oumais propriamenteumatalho,paraoentendimentodasobrasporeleproduzidas.E,muitas vezes, creditam-se a estas obras biogrficas a faculdade de anulao do percurso comum doestudosistemticodosignificadodaproduoartstica/intelectualdossujeitos biografados. A questo que vem tona velha conhecida do universo biogrfico: a vida de um indivduo pode elucidar a sua obra? No caso das biografias de escritores, a crena de que a vida explica a obra pode ser facilmente situada por meio da apreciao de um subgnero do gnero biogrfico: asbiografiasliterrias.Asbiografiasliterriasconvencionaisestiverampormuito temponocentrodahistrialiterriaclssicaque,segundoFranoisDosse,teria transmitido o patrimnio literrio essencialmente pelo ngulo do liame entre a vida e a obra do escritor. O mais das vezes, o sentido da obra deduzido das peripcias da vida, 21 e a biografia dos escritores est no prprio cerne da inteligibilidade literria12 . Assim, osentidodaobraestariaencerradonoseuautor.Algunslugares-comunsdessas biografias literrias clssicas so a inclinao dos bigrafos a retratarem a trajetria do escritor como se desde o nascimento este j estivesse predestinado para a sua funo, ou ainda aquilo que foi denominado como vidobra- a crena em que o autor est em seus livros e no em sua vida. Asoluobiogrficadavidobrasofreuinmerascrticasenopresenteos autores de biografias literrias dificilmente adotam como mtodo a narrao da vida de umescritoratravsdoestabelecimentodeumacorrespondncianecessriaentreos personagenseassituaesqueaparecemnasobrasficcionaiscomasexperinciasde fatovivenciadaspelomesmoduranteavida.AndrMaurois,autordeAspectsdeLa Biographie,umareferncianosestudostericosdabiografia,jadvertenestelivrodo inciodosculoXXoquantodespropositadoessemododeescreverbiografias literriaseapontaparaoperigoqueosbigrafoscorremdeelaboraremhipteses inverossmeisaotomarasobrasficcionaisdosescritorescomoricasfontesde informaes biogrficas. Ocontroversosubgnerodasbiografiasliterriasencontrouresistnciae desconfianatambmporpartedealgunsescritores.VladmirNabkov,porexemplo, defendeuqueavidadeescritoresnodeveriaenempoderiaserbiografada,pois,de acordo com seu ponto de vista, os bigrafos no passavam de psycho-plagiarists13 que utilizavamavidadoescritoremquestoparacompletarepreencherovaziodassuas prpriasvidas.OjulgamentodeNabkovrefletiaaopiniohegemnicadacrtica literrianorte-americanadosculoXXque,encabeadapelaescolatericadoNew 12 DOSSE,Op. Cit., p. 80. 13 EDEL,Op. Cit., p. 20-21. 22 Criticism, considerava a anlise da obra de um escritor pelo vis biogrfico irrelevante e equivocada.Segundoospreceitosdessaescola,queseriammaistardereforadospelo estruturalismo, it is the work not the life(...) that counts14.Arelaodognerobiogrficocomaliteratura,porm,vaimuitoalmdo polmicosubgnerodabiografialiterria.Abiografia,cujafunoconsistena narrao da vida de um indivduo, recorre conscientemente s tcnicas que pertencem literatura. Como afirmou com uma pitada de humor o filsofo francs Jean-Paul Sartre, Nothinghappenswhileyoulive.Thescenarychanges,peoplecomeinandgoout, thats all. There are no beginnings... But everything changes when you tell about life15. Otrabalhodobigrafoqueconsisteemorganizaroseventosdeumavidahumana pressupeacompetnciadanarraocomarteparaevitarqueoprodutofinalse transforme em uma reproduo disparatada e pouco fluida de todas as fontes primrias consultadas. Transmitir coerncia ao texto o que se espera do autor de uma biografia, pois como afirmou David Lowenthal the past we reconstruct is more coherent than the pastwaswhenithappened.(...)Narrativeexigenciesmagnifythesedifferences16.E, umavezqueanarrativaumimperativonarepresentaodeumavida,esta invariavelmente se ampara em tcnicas ficcionais - toda boa narrativa se inclina para a fico.muitofcilencontrarnaliteraturadisponvelsobreognerobiogrfico afirmaescomoadeLeonEdel,segundoaqualnaescritadeumabiografiathe biographerborrowsomeofthetechniquesoffictionwithoutlapsingintofiction17. Muitos estudiosos do assunto defendem a existncia dessa proximidade entre a biografia 14 Idem, p. 21. 15 NADEL, Ira Bruce. Biography. Fiction, Fact and Form. The MacMillan Press LTD, 1984, p X.16LOWENTHAL,David.ThePastisaForeignCountry.Cambridge:CambridgeUniversity,1990,p. 234. 17 EDEL, Op. Cit., p 202. 23 egnerosficcionais.Esseflertecomafico,noentanto,delicadonocontextodo gnero biogrfico porque o outro lado da moeda, ou seja, a outra funo do gnero (para alm de narrar uma vida) retratar somente o que se pode saber sobre ela por meio dos fatos, ou das fontes documentais disponveis, o que exclui a legitimidade de qualquer inveno.Assim,abiografiasesituaemumsinuosoespaoentreoscritriosde verossimilhanaestipuladospeladisciplinahistricaeainvenoficcional,eporessa razopodeserdefinidacomoumgneroqueabalaabarreiraquegeralmenteseergue entrealiteraturaeadimensocientficadascinciashumanas.SegundoFranois Dosse,(...)Ognerobiogrficoencerraointeressefundamentaldepromovera absolutizaodadiferenaentreumgneropropriamenteliterrioeumadimenso puramente cientfica pois, como nenhuma outra fonte de expresso, suscita a mescla, o carterhbrido,emanifestaassimastenseseasconivnciasexistentesentrea literatura e as cincias humanas18.Dopontodevistadascinciashumanas,maisespecificamentedadisciplinada Histria,nomomentodaelaboraodotextobiogrficoqueasdificuldadessurgem paraobigrafo/historiadorcomprometidocomamissodenarrarumahistria verossmil.Inmerassoaslacunasdocumentaiseincontveissoasperguntassem respostas.Nareconstituiodeumatrajetriahumana,ainexistnciadedocumentos concernentesamuitosdosaspectosdavidacomoospensamentoscotidianos,as conversas corriqueiras, as intenes por trs dos atos etc., exigem do bigrafo certa dose deousadiacriativaeumanovaposturadiantedastcnicasargumentativasconhecidas no campo da Histria. Essa nova postura pode significar um pequeno passo em direo aos domnios da literatura. 18 DOSSE,Op. Cit., p. 18. 24 Dessaforma,abiografiasintetizaalgumasdasmaisimportantesquestes metodolgicas da historiografia contempornea. Nas palavras de Giovanni Levi, (...) a biografia constitui na verdade o canal privilegiado atravs do qual os questionamentos e astcnicaspeculiaresdaliteraturasetransmitemhistoriografia.Muitojsedebateu essetema,queconcernesobretudostcnicasargumentativasutilizadaspelos historiadores.Livredosentravesdocumentais,aliteraturacomportaumainfinidadede modelos e esquemas biogrficos que influenciariam amplamente os historiadores19.J da perspectiva do campo da literatura, a existncia do limite documental para anarraodavidaemquestotambmrepresentaumempecilhoparaalivrecriao. VirginiaWoolf,queescreveutrsobrasbiogrficas,sendoduasdelasficcionais (Orlando e Flush), e uma no-ficcional (A vida de Roger Fly) indagou com uma pitada dehumorHowcanonecutloosefromfacts,whentheretheyare,contradictingmy theories?20. O desafio do ponto de vista literrio unir a no-fico com a criatividade, esferasquenormalmentenoseinterpenetram.Umavezque,nocasodognero biogrfico,anarraoliterriaeastcnicasficcionaissoasgrandesresponsveispor organizar os fatos, surge tanto a dificuldade de distinguir a biografia de qualquer outra obradefico,quantoadeinseri-laentreostrabalhosqueobedecemaoscritrios cientficos da pesquisa histrica. Parademarcaressapeculiaridadedognerobiogrficooobjetivode representarumahistriano-ficcional-osestudiososdobiografismotmsevalidoda ideiadequeumpacto,contratoouacordoinvariavelmentefirmadoentreo leitoreoautordeumabiografia.Atesedepactoremeteaoestudorealizadopor Philippe Lejeune sobre a autobiografia Le pacte autobiographique (1975), que se tornou 19LEVI,GiovanniUsosdabiografiaIN:FERREIRA,MarietadeMoraeseAMADO,Janaina(orgs). Usos e Abusos da Histria Oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000, 3. ed., p. 168.20 NADEL,Op. Cit., p. 5. 25 umaobraclssicasobreessegnerodeescrita.Emlinhasgerais,atesedefendidapor Lejeuneadequeacategoriadoautorimprescindvelparasepensarognero autobiogrfico,queconsisteemumrelatoretrospectivoescritoemprosaqueuma pessoa real faz de sua vida. Esse relato enfatiza o que ocorreu e reconstitui a histria da personalidade do autor do texto. O conceito de identidade desponta como fundamental e podesercomprovadoatravsdonomeprprioumaexistnciacivilpassveldeser constatadaempiricamente.Dessamaneira,personagem,narradoreautor necessariamente se identificam no relato autobiogrfico. O pacto que se estabelece entre oautoreoleitorumpactodecompromissocomaverossimilhana,queassumea formadeumcontratoqueoprimeiroofereceaosegundoatravsdacapadasua autobiografia assinada com o seu nome. Assim, o carimbo que confere autenticidade ao pactodebuscadanarrativaverossmilaassinatura(nomeprprio)doautorda autobiografia. Aideiadepactooriundadosestudossobreaautobiografiafoireelaboradapor autorespreocupadoscomoproblemadarelaoentreaverossimilhanaeaescrita biogrfica.ocasodoescritorbrasileiroCristovoTezza,queanalisaotemaem conferncia apresentada no XI Congresso Internacional da ABRALIC (2008) intitulada Literatura e Biografia. Para Tezza, assim como o que ocorre com a autobiografia, (...) no caso da biografia, a intencionalidade da mo que escreve instala-se em cada palavra davozquefalanotexto,deumaformacompletaeabsoluta.Esseumacordode princpio estabelecido pela onipresena do mundo dos fatos. E, de certa forma, com relaoaessafrreadisposiodoautordotextoquejulgamosaqualidadedeuma biografia,pois,aindanassuaspalavras,(...)oimpriodosfatosdevesersoberano. Ou,melhordizendo,aintenosinceraderepresent-lomesmosabendoqueessa 26 sempreumatarefadeSsifo21.Dessaforma,umpacto,ouacordotambmse estabeleceentreobigrafoeoleitordabiografianasmesmasbasesdopacto autobiogrfico:agarantiadequeoquesenarra,emqualquercaso,tentativade representao fiel da realidade22.Essa mesma ideia aparecer com outras denominaes na bibliografia disponvel sobreoassunto.PaulaBackscheider,nolivroReflectionsonBiography,empregao termo contrato (contract) e utiliza a metfora de um passeio turstico para exemplificar aposturadoleitorqueconfianobigrafocomquemocontratofoifirmado.Segundo Backscheider, o leitor sente-se como se estivesse sendo conduzido em um tour por um excelente motorista que conhece como a palma da mo a paisagem geogrfica, os fatos histricos e o significado atual do local turstico visitado. Ainda segundo a autora, o que justificariaumaquebradecontratoapercepoporpartedoleitordequeumdado apresentadocomolegtimoestnaverdadeincorreto,poisthebiographermustknow what he or she is talking about and tell it accurately, fairly, and with comprehension of related contexts. Rightly, a few mistakes in such things as dates, names and locations of squadronsonabattlefieldwillthrowtheaccuracyand,therefore,valueoftheentire work into question23. Para Backscheider, o ato de selar um contrato com o bigrafo tambm a nica maneirarazoveldefazerfrenteaumavarianteintrnsecabiografiaqueentraem conflito com o objetivo do gnero, que retratar uma histria verossmil aproximando-seomximopossveldosfatoshistricos.Estavariantecrucialdenominadapela autoradevoice-avozdobigrafo.Estavoz,noentanto,dificilmentepercebida, 21TEZZA,Cristovo.LiteraturaeBiografia.ConfernciaapresentadanoXICongressoInternacional da ABRALIC Tessituras, Interaes e Convergncias. So Paulo, USP, 16 jul. 2008, p. 7. 22 Idem, p. 8. 23 BACKSCHEIDER,Op. Cit., p. 10. 27 poisseporumladoobigrafoapartemaispoderosaentretodasasenvolvidasem umabiografia,poroutroladomaisdiscreta.Obigrafoqueminventaatravsda seleo e organizao dos materiais, quem estabeleceas relaes de causa e efeito, quem determina o que foi mais ou menos importante na vida do sujeito biografado (que muitas vezes foi algum que ele nem mesmo conheceu).E,comosenobastasse,oatodeescreverumabiografianoseesgotaemum processo puramente intelectual, pois fundamental que o bigrafo cultive o que alguns autoresdenominaramcomoaqualidadedaempatia24theabilitynotonlyto sympathizewithothershumanbeings,butalsotoputourselvesintheirplaces25. muitodifcilquearelaoentresujeitoeobjeto(sendonocasodabiografiauma relaoentresujeito-sujeito)seestabeleadeformaobjetivaedistanciada,poiso trabalhodobigrafo,comoafirmouLeonEdel,hastodealwithemotionsandto discover the emotional content of some of its materials26. Todo esse envolvimento que aescritadeumabiografiademandaabremargemparaqueoleitormuitasvezes identifiquenoresultadodotrabalhoosamoresoudiosdobigrafo,alguns julgamentos,omissespropositais,aditamentosduvidosos,enfim,asopiniese ideologias do autor imbricadas na narrativa. Como afirmou Andr Maurois, lhistorien nepeuttoujoursavoirlespritlibreetlebiographemoinsencore;Ilesthomme;ses hersluipeuventinspirerdesamoursetdesheinesquitroublentparfoisson jugement27.Porm,aomesmotempoemquecertograudeenvolvimentoemocionalcomo sujeitobiografadodeterminanteparaosucessodaempreitadabiogrfica,poroutro 24NadefiniodoNovoDicionrioBsicodaLnguaPortuguesaAurlio,SoPaulo:Nova Fronteira,1988:Tendnciaparasentiroquesentiriacasoseestivessenasituaoecircunstncia experimentada por outra pessoa. 25 ROLLYSON,Op. Cit.,p. 59. 26 EDEL,Op. Cit., p. 40. 27 MAUROIS, Andr, Aspects de la Biographie. Paris: Au Sans Pareil, 1928, p. 22. 28 lado este envolvimento no deve deslizar para a identificao do bigrafo com a pessoa sobre quem ele escreve. nessa linha tnue entre a empatia e a identificao que reside um dos grandes desafios oferecidos pelo gnero biogrfico. O processo de identificao dobigrafocomoseubiografado,seguidodarevelaodesinabiografiadedicada outrapessoaalgoqueisinrealityatthecoreofmodernbiography,anditexplains someofitsmostseriousfailures28.Estaafirmaovalidaporqueosbigrafosda atualidade normalmente se dedicam escrita de biografias conscientes do envolvimento comoobjetoemuitasvezesprocuramagregarvalorexperinciabiogrfica considerandoque:oSi(Ipse)seconstri,nopelarepetiodomesmo(Idem),mas pelarelaocomooutro,[edessaforma]aescritabiogrficaestbemprximado movimentoemdireoaooutroedaalteraodoeurumoconstruodeSi transformadoemoutro29.Assim,oconhecimentodooutronormalmenteabreportas paraoautoconhecimento,enessachaveaatividadebiogrficauminstrumentode transformao de si atravs do discurso sobre o outro um caminho enviesado de cura pela palavra, justamente porque a palavra no diz nada sobre si e tudo sobre o outro. Portanto,umadasprimeirasvariveisconsideradaspormuitosautoresde biografiasoenvolvimentocomobiografadoe,emcasosextremos,oprocessode identificao.Quandooenvolvimentodesembocanaidentificao,obigrafotendea falardiretamentedesipormeiodosujeitobiografadoehcasosemquealguns esboamassuasautobiografiasnasbiografiasdeoutrem.Nestassituaespossvel que a qualidade da biografia fique comprometida, principalmente quando o processo de identificaoobstruiomanejodosfatoscombasenocompromissocoma 28 EDEL,Op. Cit., p. 29. 29 DOSSE,Op. Cit., p. 12. 29 verossimilhana,impedindoobigrafo,porexemplo,deapontarnasuabiografiaos defeitos, as falhas de carter, as acusaes existentes contra o biografado etc. Ouseja,nemaidealizaonemadepreciaodosujeitobiografadodeveriam aparecernaobracomooresultadodaintromissodasemoesdobigrafona empreitadabiogrfica.Ompetodeheroicizar,noentanto,tendeaseromaiscomum, pois como afirmou Paul Murray Kendall, a biography may take a dozen years or more to write. Who would be willing, who would be able to spend that much time with a man forwhomhehadnofeelings30.JSigmundFreudapontaoefeitocontrrio,pois afirmaqueapesardobigrafojamaisdesejarretirarobiografado(quedenominado porFreuddeheri)dopedestal,eleporoutroladoalmejaaproxim-lodens,meros mortais. E, na opinio de Freud, it still tends in effect towards degradation31.Porfim,fatoqueoheriemquesto,segundoadenominaodeFreud, semprealgumcujatrajetriadavidadocomeoaofimconhecida,daa impossibilidadedepassaraolargodoproblemadavantagemretrospectivadaqualse favoreceobigrafo.Enormalmenteopressupostodoresultadodeumavidaque empurraumautorparaaescritadeumaobrabiogrfica.Nocasodebiografiasde escritores, porexemplo, aquele que decideescrever a biografia deDostoivski tem em menteretrataravidadeumdosnomesmaisimportantesdaliteraturauniversal.o Dostoivski escritor que captura a inteno do bigrafo, e a partir desse constructo, ele se debrua sobre o homem para entender o percurso que levou Dostoivski a se tornar o granderomancista.Mas,nessemovimento,muitotentadorparaobigrafo, conhecendoagrandezaartsticadeficcionistadoseubiografado,procurarindciosdo 30 KENDALL, Paul Murray. The Art of Biography. New York, W. W. Norton & Company, inc. 1965, p. 16.31FREUD,Sigmund,ArtandLiteratureIN:OCONNOR,Ulick.BiographersandtheArtof Biography. Dublin: Wolfhound Press, 1991, p. 45. 30 escritornojovemalunodoinstitutodeengenharia,porexemplo,queDostoivski tambm foi.poressarazoquequestescomoalevantadasnaobradeLowenthal-can we really be far to the men of the past? () Knowing what they could not know? Can we,indeed,understandthematallwithourmindsprepossessedbyaknowledgeof theresult?32-nopodemdeixardesercolocadasparaobigrafo.Vainamesma direo a advertncia de Paul Murray Kendal, que afirma que it is easy to see that what is the unknown future for the subject is the well-known past for the biographer; and it is easytosaythatthebiographermustusetheadvantageofthisdifferencebutnottake advantageofit33.Obigrafodeveteressavantagemretrospectivasempreemmente como um aditivo que traz consigo graves perigos para o resultado do texto biogrfico.Assim, quando todas essas variveis vm tona a voz do bigrafo, o processo deidentificao,oolharviciadoquepodeelevaroudepreciarosujeitobiografado,a vantagemretrospectivaetc.abiografiaassumeoscontornosdeumgneroinvivel, incapaz de retratar uma vida de maneira verossmil. Mas, se o bigrafo no existisse, ou pudesseserumsujeitoneutro,imparcial,objetivo,serqueasbiografiasnos ofereceriamretratosbemfocadosdevidashumanas?Umadasmaiorespromessasdo gnerobiogrficoadequeelepodeentregaraoleitortheessentialpersonandthat thereisacorepersonality,therealme,whichwewillfindifonlywedigdeepand longenough34.Advidaqueemergewhatisthisrealme?Couldweexplainit about ourselves? What, in fact, is personality?35 32 LOWENTHAL,Op. Cit., p. 217. 33 KENDALL,Op. Cit., p. 16. 34 NADEL,Op. Cit., p. 180. 35 BACKSCHEIDER,Op. Cit., p. 93. 31 Portanto,conhecerafundoumapessoaumaambioilusria,pois, parafraseandoMaurois,oshomenssoenigmasperigosos.Aindamaisnapoca contempornea, na qual impera a desconfiana do indivduo acerca da profundidade do conhecimentoqueeledetmsobreeleprprio,principalmenteapsoadventoda psicanlise,quelanouaadvertnciadequeatmesmooegonosenhoremsua prpriacasa.poressarazoque,segundoMaurois,lescrivainsdenotretemps aient, plus que les esprits qui les ont precedes, le sens de la complexit et de la mobilit destreshumainesetmoinsqueuxlesensdeleurunit36.Eessacompreensofoi pioneiramente esboada nas obras literrias na literatura que se aprofunda a ideia de queohomemnoumsercoerente,umaunidade,umatotalidade.Navisodesse autor, em virtude dessa transformao que se evidencia na literatura principalmente na literatura do sculo XIX, nas obras deFidor Dostoivski - e que se enraza no sculo XXcomosurgimentodapsicanlise,osentimentodacomplexidadedapersonalidade humana passa a dominar as concepes acerca do homem. Giovanni Levi assinala que o debate sobre a pertinncia de se escrever a vida de um indivduo data do sculo XVIII, poca na qual surge o primeiro romance moderno, que segundo esse autor Tristram Shandy, de Sterne, obra que pioneiramente apresenta umabiografiaindividualdemaneirafragmentada.Ascontradiesdaidentidadese fazemconhecerpeloleitoratravsdorecursoaodilogo,quenaobratravadoentre Tristram (a personagem), o autor e o leitor.As inovaes de Sterne tero continuidade na obra de Diderot, principalmente em Jacques o fatalista, no qual novamente o escritor recorre ao dilogo para transmitir ao leitor as dificuldades envolvidas na tentativa de se captaraessnciadeumindivduo.Dessavezodilogoestabelecidoentreojovem Jacques e seu velho mestre, que trocam tambm de papis no decorrer da obra. 36 MAUROIS,Op. Cit.,p. 32, 33. 32 OutroautordosculoXVIIIquelanarmododilogopararesolvera dificuldade de comunicar a verdade sobre si Rousseau, que escreve as Confisses e que, insatisfeito com a acolhida que a obra recebe, redige posteriormente, dessa vez na forma dialogal (ou dialgica), Jean-Jacques julga Rousseau. Nas palavras de Levi, Para Rousseau, assim como para Diderot ou Sterne (e anteriormente Shaftesbury, que foitalvezoinspiradordessasoluo),odilogonoeraapenasomeiodecriaruma comunicaomenosequvoca;eratambmumaformaderestituiraosujeitosua individualidadecomplexa,livrando-odasdistoresdabiografiatradicionalque pretendia, como numa pesquisa etimolgica, observ-lo e dissec-lo objetivamente37. EssanovasearaquecomeaaserexploradanaliteraturadosculoXVIII definitivamentedesbravadanosculoXIX,maisespecificamentepormeiodapenado grandeescritorrussoFidorDostoivski.Comojmencionado,AndrMaurois,no livroAspectsdeLaBiographiechamaaatenoparaesseponto.Nasuaviso,a complexidade do homem surge com toda a fora na literatura russa do sculo XIX, mais especificamentenasobrasdeFidorDostoivski,nasquaiscommencereparatre lide dune multiplicit vivante lintrieur dune mme ame38.ComoBrisSchnaidermanressaltouapartirdasideiasdoimportantecrtico soviticoMikhailBakhtin,autordeProblemasdaPoticadeDostoivski,quehoje figuraentreosestudosclssicosdedicadosproduoliterriadoautorrusso,as personagensdeDostoivskinovivemumavidabiogrfica,isto,nonascem, passam a infncia e a juventude, casam-se, geram filhos, envelhecem e morrem, pois o autorconcentraaaonospontosdecrises,fraturasecatstrofes39.Esseshomens 37LEVI,GiovanniUsosdabiografiaIN:FERREIRA,MarietadeMoraeseAMADO,Janaina(orgs) Op. Cit.,. p. 172.38 MAUROIS, Op. Cit., p. 37. 39 SCHNAIDERMAN, Boris, IN:. Dostoivski, Fidor. O Idiota; traduo de Paulo Bezerra; desenhos de Oswaldo Goeldi. So Paulo: Ed 34, 2010, 3 ed. 33 aqumdeumavidabiogrficatmassuaspersonalidadesindecifrveise imprevisveisreveladasatravsdorecursoaodilogo,mtodonarrativo recorrentemente empregado nos momentos crticos peculiares da obra dostoievskiana. MikhailBakhtincunhouoconceitoderomancepolifnicoparaexplicara inovaoartsticacriadaporDostoivski.NavisodoautordeProblemasdaPotica de Dostoivski, o escritor russo inventou um novo tipo de romance, diferente de tudo o queoprecedeucujapeculiaridadefundamentalamultiplicidadedevozese conscinciasindependenteseimiscveiseaautnticapolifoniadevozes plenivalentes40, ou seja, heris cujas vozes se estruturam como a do autor do romance comum,equedessamaneiranosoapenasobjetosdodiscursodoautor,masos prprios sujeitos desse discurso diretamente significante41. Assim, torna-se impossvel para o leitor encontrar no romance uma perspectiva unificadora, uma voz (que no caso normalmente a do autor ou do narrador) capaz de se sobrepor a todas as outras vozes que dialogam na obra. Porconseguinte,oromancepolifnicossetornapossvelquandohdaparte doautordaobraumanovaposioemrelaoaoherirepresentado.Amaneiraque Dostoivskicriouparaevitarasdefiniesredutorasfoioenfoquedialgicoda personagem, atravs do qual ela se revela na resposta s palavras dos outros sobre si, ou mesmo em um intenso dilogo consigo mesma. Assim, nas palavras de Bakhtin, a nova posioartsticadoautoremrelaoaoherinoromancepolifnicodeDostoivski umaposiodialgicaseriamenteaplicadaeconcretizadaatofim,queafirmaa autonomia,aliberdadeinterna,afaltadeacabamentoedefiniodoheri.(...)Eesse dilogo o grande dilogo do romance na sua totalidade realiza-se no no passado, 40 BAKHTIN, Mikhail, Problemas da Potica de Dostoivski, traduo direta do russo, notas e posfcio de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2010, 5. Ed, p. 5, 6. 41 Idem, p. 5, 6. 34 masnestemomento,ouseja,nopresentedoprocessoartstico.(...)EmDostoivski, essegrandedilogoartisticamenteorganizadocomootodonofechadodaprpria vida situada no limiar42. Bakhtin defende a tese segundo a qual as personagens das obras de Dostoivski nosoreveladasoucaracterizadasporelementosexternosaelas(caractersticas fsicas, posio social etc.), mas sim pela percepo que elas tm de todos esses fatores objetivose,emltimainstncia,pelaconscinciaqueelaspossuemdelasprprias.O que Dostoivski revela ao leitor o que a personagem tem a dizer sobre si prprio e no o que ela , exatamente porque no h espao para tipos sociais ou heris de imagem acabada. Por conseguinte, nas obras de Dostoivski se evidencia que o homem no pode sertransformadoemobjetomudodeumconhecimentorevelia.Nohomemsempre halgo,algoqueselemesmopodedescobrirnoatolivredaautoconscinciaedo discurso, algo que no est sujeito a uma definio revelia, exteriorizante 43.Bakhtinsustentaqueaoconcederaoheriaresponsabilidadepelasua autodefinio,queantescabiaaoautor,Dostoivskirealizouumaespciedepequena revoluo copernicana na criao artstica, sem trazer matria essencialmente nova. O que era funo do autor e do narrador passa para a personagem que define a si mesma e realidadecircundanteapartirdasuaautoconscincia.Ocorreumatransfernciada matria do romance do campo de viso do autor para o campo de viso da personagem.Aoabster-sededefiniroheri,deacab-lodeformaredutora,Dostoivski forjouumanovavisosobreohomem.Atravsdoromancepolifnicoohomem complexo,incoerente,imprevisvel,conquistouespaonombitodaliteratura.O escritor russo, dessa forma, antecipou um dos grandes desafios com o qual se deparar o 42 Idem, p. 71, 72. 43 Idem, p. 66. 35 bigrafodosculoXX:apercepodequeapersonalidadehumananoserevelade forma simples e imediata aos olhos de outrem (e menos ainda do bigrafo), e que, por conseguinte,asdefiniesexterioresqueumapessoafazdeoutrasosempre desprovidasdeprofundidade.Almdisso,oromancistarussoconseguiuelaborarem seusromancespersonagenstoalheiosaosseusdestinos,toperplexosdiantedos entroncamentos e das vicissitudes do porvir que se parecem muito mais com os homens reaisquenadasabemsobreodiadeamanhdoquecomtudooquefoicriado anteriormentenatradioliterriaocidental.essaexperinciaartsticacomootodo nofechadodaprpriavidasituadanolimiarqueosbigrafostentaroreportarem suasbiografiasdedicadasahomensque,enquantovivos,experimentaramexistncias to errantes e abertas quanto s de todos ns. Assim, em virtude dessa transformao que se evidencia na literatura do sculo XIX, principalmente a partir das obras de Dostoivski e que se aprofunda no sculo XX, ligadaaoadventodenovosparadigmasemtodososcamposcientficos:criseda concepomecanicistadafsica,surgimentodapsicanlise,novastendnciasda literatura(bastacitarosnomesdeProust,JoyceeMusil)44,osentimentode complexidade da personalidade humana passa a dominar as concepes correntes acerca do homem. As biografias comeam a se ater a essa grande complexidade e os leitores se voltamparaelasembuscadeserestofragmentadosepartidosquantoelesprprios, portanto seres reais. Nas palavras de Nicolson, citadas por Maurois, La biographie est une proccupation, une consolation, non de la certitude, mais du doute45.Umanovatarefa,reconhecidamentedelicada,assumidapeloautorde biografias: a responsabilidade de enumerar os incontveis aspectos de uma vida. Dessa 44LEVI,GiovanniUsosdabiografiain.FERREIRA,MarietadeMoraeseAMADO,Janaina(orgs) Op. Cit., p. 172, 173. 45 MAUROIS, Op. Cit., p. 39. 36 maneira, os bigrafos comeam uma busca (algumas vezes infrutfera), pelos inmeros traosquecompemapersonalidadedobiografado.Essabuscaagravaasensaode inconclusividadedotrabalhodobigrafo,quesedeparaatodoinstantecominfinitas fontesefacetasdoseubiografado,eocarterilusrioinescapveldotrabalhofinal, poisnaspalavrasdeFranoisDossesemdvida,ansiadedarsentido,derefletira heterogeneidadeeacontingnciadeumavidaparacriarumaunidadesignificativae coerente traz em si boa dose de engodo e iluso46. poressarazoqueosbigrafosatualizadoscomosdebatesediscusses referentes ao gnero biogrfico tm evitado essa nsia de dar sentido a uma trajetria humana. Trata-se de uma importante mudana de rota, pois o gnero biogrfico comea aseafastardeumadassuascaractersticasconstitutivas:acrenadequeasvidasdos indivduosencerramumsentido,umaverdadeintrnsecareveladapormeiodeuma cronologiaordenada,orientadapelaideiadeprogresso.Avidapodesercontadacomo uma histria?Pode ser narrada como uma totalidade, uma unidade provida de sentido? crire La vie dum homme, cest pretendre a une forme de totalit47, decretou Phillipe Lejune. E, dentre todos os autores que questionaram a ambio totalidade do gnerobiogrficoomaisclebrePierreBourdieu,quetambmidentificoua responsabilidade do bigrafo na atribuio de sentido vida que busca reconstituir. Na viso do autor, estabelece-se uma relao de cumplicidade entre bigrafo e biografado, visandoaumacriaoartificialdesentido.poressarazoqueabiografianopode serlidasenocomoumailusodeliberadamenteforjadapelobigrafoailuso biogrfica.ParaBourdieu,acrenaqueseocultasobessepostuladodosentidoda 46 DOSSE, Op. Cit., p 12. 47 LEJEUNE, Philippe Je Est un Autre: LAutobiographie de la Littrature aux Mdias. Paris: Seuil,1975, p.78. 37 existncia narrada a de que a vida de um sujeito um fluxo retilneo em direo a um fim determinado, que desde a primeira infncia faz-se perceptvel a partir da observao dascaractersticasdessesujeito.porissoqueasbiografiassorecheadasdefrases como,porexemplo,desdepequenoelegostavademsica,quandoabiografiaem questoadeummsicofamoso,ounosrecorrentesj,sempre,desdeento, entre outros, que se tornaram lugares-comuns do gnero biogrfico. O desenvolvimento datesesustentadaporBourdieusednodecorrerdotextoapartirdarecusada pertinnciadonomeprprio,quetrariaconsigoafalsaideiadequeosujeitoto coerente quanto a sucesso de acontecimentos da sua vida narrados na sua biografia.Ao rejeitar a coeso do sujeito e de uma existncia individual, Bourdieu responde de forma negativa questo: a vida uma histria? Diferentemente do que pensa o senso comum, queconcebeavidacomoumcaminhocomcomeo,meioefim(esteltimo tambm entendido como finalidade). Isso, na viso de Bourdieu, aceitar tacitamente a filosofia da Histria, teoria esta que pressupe que: (...)1-avidaconstituiumtodo,umconjuntocoerentee orientado,quepodeedeveserapreendidocomoexpresso unitria de uma inteno subjetiva e objetiva, de um projeto; 2- essavidaorganizadacomohistriatranscorre,segundouma ordemcronolgicaquetambmumaordemlgica,desdeum comeo,umaorigem,noduplosentidodepontodepartida,de incio,mastambmdeprincpio,derazodeser,decausa primeira,atseutrmino,quetambmumobjetivo;3-o relato (...) prope acontecimentos que, sem terem se desenrolado sempreemsuaestritasucessocronolgica(...)tendemou pretendemorganizar-seemsequnciasordenadassegundo 38 relaesinteligveis.Osujeitoeoobjetodabiografia(o investigadoreoinvestigado)tmdecertaformaomesmo interesse em aceitar o postulado do sentido da existncia narrada (e, implicitamente, de qualquer existncia)48 essa teoria da filosofia da Histria contrabandeada para a vida de um indivduo queBourdieuajudaadeitarporterracomesteartigoquehojeumclssicoda bibliografia referente ao gnero biogrfico. DiantedeumataquecontumazcomoodeBourdieu,notrioobservarqueas dvidasacercadapossibilidadedabiografiasoinmeraseathojenoforam satisfatoriamente solucionadas. No entanto, mesmo com todos os problemas formulados e debatidos ao longo da Histria acerca da sua pertinncia, surpreendente que o gnero biogrfico figure entre os mais praticados e queridos do pblico leitor. Depois de textos emaistextos,manifestosemaismanifestos(comoodoprprioBourdieu)contrao sentidodesecontinuaraescreverbiografias,estassemultiplicamnasestantesdas livrarias e conquistam cada vez mais espao no universo acadmico e de pesquisa. foroso indagar a que se deve a vitria da biografia. Uma resposta possvel o fatodemuitosbigrafosteremconvertidoasfragilidadesepistemolgicasnomoteda atual empreitada biogrfica. Como afirmou Giovanni Levi, a prpria complexidade da identidade,suaformaoprogressivaenolinearesuascontradiessetornaramos protagonistasdosproblemasbiogrficos49.Dessaforma,aindasegundooautor,nos ltimosanososhistoriadores/bigrafospassaramrecentementeaabordaroproblema biogrfico de maneiras bastante diversas50. Dentre essas maneiras diversas Levi chama 48BOURDIEU,PierreAilusobiogrficaIN:FERREIRA,MarietadeMoraeseAMADO,Janaina (orgs) Op. Cit., p. 184. 49LEVI,GiovanniUsosdabiografiaIN:FERREIRA,MarietadeMoraeseAMADO,Janaina(orgs) Op. Cit., p. 173. 50 Idem, p. 174. 39 aatenoparaalgumasdelascomo,porexemplo,aProsopografiaebiografiamodal, quesobiografiasquesedebruamsobreumatrajetriaindividual,massomentena medidaemqueestatrajetriasintetizaascaractersticasdoseugruposocial;oua Biografiaecontexto,quandoomeio,apoca,ouseja,ocontextohistricoesocial aparececomoumaformadetornarinteligveisastrajetriasindividuais;ouaindaa Biografiaehermenutica,perspectivanaqualomaterialbiogrficotorna-se essencialmente discursivo, entre outras.Dequalquermaneira,independentementedatipologianaqualseencaixamas biografias que emergem da reflexo que acompanha o desenvolvimento do gnero, estas oferecem com frequncia solues ousadas e interessantes para os desafios biogrficos. E as expectativas com relao aos resultados das biografias se pautam majoritariamente pelamaneiracomoobigrafoincorporaaotextoadimensoinescapveldanossa humanidade, que segundoLeon Edel a certezade quewe are self-contradicting and ambivalent, that life is neither as consistent nor as intellectual as biography would have itbe.Assim,aindasegundoobigrafodeHenryJames,whenwecomeascloseas possibletocharacterandpersonalityandtothenatureoftemperamentandgenius,we havewrittenthekindofbiographythatcomeclosestotruth51,sendoqueaverdade (truth) biogrfica is not and can never be absolute truth52, mas sim verossimilhana. guisadeconcluso,inevitvelterminaropercursopeloscaminhosedescaminhos dognerobiogrficocomumasensaodeinconformidadecomainjustiaque historicamenteseabateusobreosbigrafos,quepormuitotempoforamdesprezados comosimplespolgrafosdesocupados,dedicadosporcaprichoaumgneroliterrio simplesebanal.Diantedaconstataodacomplexidadedaempreitadabiogrfica,o 51 EDEL, Op. Cit.,, p. 108. 52 KENDALL, Op. Cit.,, p. 130. 40 bigrafoassumeopapeldodestemidoautordeumdosgnerosliterriosmais fascinantesedesafiadores.MyGod,howdoesonewriteabiography?53,indagou VirgniaWoolf,elamesmaresponsvelportrsmemorveisincursesaognero biogrfico.AsincontveisbiografiasescritassobreavidadeFidorDostoivskinos fornecemumaamostraobjetivadecomoabiografia,apesardetodasassuas contradies intrnsecas, permanece uma aventura intelectual atraente e recorrentemente (irresistivelmente?)revisitada.Principalmentequandoavidaemquesto,comoocorre comatrajetriadoromancistarusso,recheadadesaborosasanedotasedeepisdios dignos da mais criativa fico. A tradio biogrfica que surgiu a partir da narrao da vidadograndeescritorrusso,porsuavez,convivecomumafacetaimportantedo biografado, que a autoria de uma obra literria cujas inovaes artsticas (a polifonia e asoluodialgica)desestabilizaramaspilastrasquedurantemuitotempoerguerama razodeserdognerobiogrfico.forosoprocurardescobrircomoosbigrafosde Dostoivski se saram nesta notria ousadia biogrfica. 53 NADEL, Op. Cit., p. 31. 41 2. Fidor Dostoivski: uma vida hiperbiografvel Podeumavidahumanaproporcionar-nosoprazerdeumaobradearte?Ou, comopreferiuHenryTroyatnaadvertnciadasuabiografiaDostoevskyCombien dhommesilustresontdsviesquinesontpaslatailledeleursoeuvres!54. Dostoivski um desses homens raros, cuja histria de vida poderia confundir-se com o enredo de um dos seus grandes romances. No por acaso que o escritor se tornou uma figura hiperbiografvel. compreensvel que uma trajetria marcada por eventos trgicos como o brutal assassinatodopai,enfermidadescomoaepilepsia,episdiosmacabroscomoa condenaopenademortecomutadaparaaprestaodetrabalhosforadosna Sibria,dificuldadesafetivas,financeirasetc.forneavastomaterialparaqualquer bigrafo atento. irnico, entretanto, que o personagem de incontveis biografias seja o mesmo homem que com sua obra contribuiu para a crise definitiva do gnero biogrfico aoescancararascomplexidadesqueenvolvemapersonalidadehumanaeatarefave sempre inconclusiva de definir algum sua prpria revelia.De qualquer forma, a atrao que a vida atribulada de Dostoivski exerce sobre os seus admiradores no a nica razo para a propagao das biografias. A nsia por compreender os romances tambm explica a tentativa de reconstituio da trajetria de vidadoescritorrusso.OimportantebigrafoKonstantinMochulsky,porexemplo, acreditaqueaimersonabiografiadeDostoivskiumachavepoderosaparao entendimento do sentido da sua obra. Na viso de Mochulsky, no existe uma separao 54TROYAT, Henry, Dostoevsky. Rio de Janeiro: Americ=Edit, 1940, p. 9. 42 entreoofciodeDostoivskieamaneiracomoeleviveu,portantothecloserwe approach the man, the more intelligible the writer then becomes to us55. DostoevskyHisLifeandWork,publicadanadcadade1940,ocupaathoje lugar de destaque entre as mais importantes obras do gnero j escritas sobre a vida de Dostoivski.NoporacasoqueabiografialiterriadaautoriadeMochulskyuma dasprincipaisrefernciasbibliogrficasdeJosephFrank.Membrodonumerosogrupo dosintelectuaisrussosemigrados,MochulskydeixouaRssiaem1919elecionouna UniversidadedeSofiaenaUniversidadedeSorbonne,emParis,cidadenaqualse estabeleceueondepublicouaobrasobreavidadeDostoivski.Umdadointeressante dabiografiadeMochulskyquenofinaldosanos1920einciodosanos1930ele vivenciouumaagudacriseespiritualseguidaporfervorosaconversoreligiosa. Comeou a frequentar as reunies da Berdyayevs Religio-Philosophical Academy e a contemplaromonasticismo,chegandoasedesfazerdetodososseuslivrosebens materiais.AfasereligiosadavidadeMochulskyfoicoroadapeloencontrocom motherMariya,umafreirarussamuitopopularentreosrussosemigradosmsticos que viviam em Paris na poca. Essedadoumaferramentainteressanteparabuscarasmotivaesde MochulskydiantedatarefadeescreverumaobrasobreDostoivski.Navisodo bigrafo[Dostoevsky]livedinliterature,poisinallofhisworksheresolvesthe enigmaofhispersonality56,sendoqueesteenigmarelaciona-sereligiosidadede Dostoivskiemaneiracomooescritortransformouoconflitointeriorqueo atormentou durante toda a vida no mote da sua produo artstica literria. 55MOCHULSKY,Konstantin.Dostoevsky,HisLifeandWork.Translated,withanintroduction,by Michael A. Minihan. Princeton University Press, 1967, p. 535. 56 Idem, p. XIX. 43 A crise que acometeu o cristianismo no sculo XIX ecoou em Dostoivski como umatragdiaindividual,eadvidaentreacrenaeadescrenaocupouocentrodos grandesromancesdoescritorrusso.Mochulskyescreveu:thismanwhowas responsible for the most brilliant argumentation ever written in defense ofatheism, this manwhomthroughout[his]entirelifeGodtormentedcombinedwithinhisheartthe mostardentfaithwiththegreatestdisbelief.Allthereligiousdialecticofhisnovels stems from this tragic duality57. Nabiografia,porm,asaproximaesentrevidaeobranoserestringem representaoliterriaqueDostoivskirealizoudoseugraveconflitointerior.Na opinio de Mochulsky, em muitas das personagens dos romances encontram-se traos e caractersticasdoprprioDostoivski.ocaso,porexemplo,doromanceinacabado Nitotchka Nezvnova, que foi escrito no comeo da carreira do romancista russo, mais especificamente um pouco antes da priso e do exlio para a Sibria, quando a opinio dos crculos literrios de So Petersburgo era a de que ele no passava de um escritor de uma obra s (Pobre Gente), cuja produo que sucedeu a este grande sucesso consistia em uma coleo de exemplos de m literatura. Para Mochulsky, Dostoivski emprestou ao personagem Iefimov, o violinista fracassado e padastro de Nitotchka, a insegurana queelesentiaacercadovalordoseutalentoenquantoescritor.SegundoMochulsky Yefmovwasbornoutofthepainfulsufferingsoftheartistsimagination,fromthe plaguing idea that his talent of itself had been consumed58. Outrosexemplosdestaaproximaoentrevidaeobrasofacilmente identificveisnabiografia.ocasodoromanceOIdiota,quejfoiapontadopor muitos bigrafos, inclusive Joseph Frank, como o mais pessoal do escritor, no qual ele 57 Idem, p. 120. 58 Idem, p. 113. 44 expressou as suas mais ntimas convices. Na viso de Mochulsky, o prncipe Mchkin oautorretratoartsticodeDostoivskieahistriadapersonagemabiografia espiritualdoseucriador.Assim,Dostoevskysnovelsarethehistoryofhissoul;the interiorisprojectedintheexterior,inmythsandsymbols(thecharacters,plots, composition). His personal consciousness is revealed in its universality59. Portanto, legtimo afirmar que a aproximao entre vida e obra que configura o mtodo da biografia resultado da interpretao de Mochulsky que considera a obra de Dostoivskiumaunidade.Estepressupostoseevidncianamaneiracomoobigrafo analisaaproduoliterriadoescritor:atravsdacomposiodagnesedoromance, portantodeumainterpretaoquedefendequetodososromancesqueDostoivski escreveuconsistemessencialmenteemumnicogranderomance,cujatemticaa revelao da personalidade e do conflito interior do seu autor. Dessa forma, na viso de Mochulskyexisteumaideia-fora,umamensagemquenorteiaaproduoartsticado romancistarussocomoumtodo,sendoqueessaideia-forajseencontravapresente nas obras de juventude e foi se aprimorando at culminar em Irmos Karamzov, from which we see the organic unity of the writers whole creative work disclosed60 e que, porconseguinte,isnotonlyasynthesisofDostoevskyscreativework,butalsothe culmination of his life61. Assim,agnesedoromanceemprestaumsentidoderevelaoproduo artstica de Dostoivski; a filosofia religiosa que foi ganhando espao e centralidade na vida do escritor, apesar de sempre ter estado presente como uma primitiva intuio , na visodeMochulsky,oteordessaprofundarevelao.Porconseguinte,aconexo orgnicaentrevidaeobraamplificaoefeitosintticodabiografia,poisilustracomo 59 Idem, p. 369. 60 Idem, p. 596. 61 Idem, p. 597. 45 essasduasesferasseinterpenetraramdeterminantemente.Abiografiaescritapor Mochulskytambmreluzcomoumtodoorgnicoaosolhosdoleitor,poismaneira comoeleinterpretaaobradoescritornostermosdasuaintuioprimriaeanalisaa mesmaapartirdasuasntesenaturaldeformaecontedosoma-seadmiraoe idealizao-corroboradapelacondiodeemigradoemcrisereligiosa-queelenutre peloseubiografado.Oresultadoumaobraqueganhaembelezapotica,masperde emobjetividadeeimparcialidade,pormsemdeixardeserumagrandecontribuio para a produo crtica existente sobre Dostoivski. A aproximao entre vida e obra nem sempre fruto de um mtodo baseado em uma leitura especfica de uma obra literria, como o caso da biografia de Mochulsky, mas uma ideia muito arraigada no senso comum, que acredita que a personalidade do escritor pode ser decifrada por meio das suas obras. Esse movimento de buscar o autor nos seus livros funciona como um atalho para o bigrafo que se debrua sobre a vida do seuobjetosemrealizarotrabalhodepesquisanasfontesprimriasesecundrias.Isto ocorre,porexemplo,emumaobrasobreDostoivskidaautoriadeumescritor brasileiropublicadanopasnadcadade1980.IntituladaDostoivski,umcristo torturado, a biografia foi escrita por Virginio Santa Rosa, engenheiro civil de formao, poltico62 e escritor em diversas frentes63.A biografia da autoria de Santa Rosa se divide em trs partes: O Homem, O Romancista e O Visionrio. Na primeira parte, a mais extensa, Santa Rosa realiza o trabalho do bigrafo, apesar da narrao biogrfica no estar de todo ausente nas outras duas partes do livro, destinadas anlise da obra e do significado da produo literria 62Foideputadofederalpeloestadodo Parde1950-60esecretrio-geraldoPartidoSocialProgressista de 1954 a 1962. 63 Escreveu obras de Histria (O sentido do tenentismo), relatos de viagens (Paisagens do Brasil), ensaios deanlisesociolgica(Osculodaviolncia),romances(Aestradaeorio),almdaobrabiogrfica sobre a vida do clebre romancista russo. 46 de Dostoivski. Isso porque a biografia assinada por Santa Rosa concebida segundo as biografias literrias clssicas, e nela divisa-se o pressuposto terico j mencionado que o sentido da obra pode ser apreendido das passagens da vida do escritor. Nas primeiras pginas de Dostoievski, um cristo torturado, deparamo-nos com aideiadequeDostoivskijnasceuescritor(ouassimeraantesmesmodenascer), comopossvelseinferirnapassagemMariaFederovna(...)carregavatambmno ventre a criana que tornaria o seu nome para sempre lembrado64. A opo de Rosa por retratar a trajetria de Dostoivski como se desde o nascimento o talento do escritor j estivessepresentereforadapelaideiadepredestinao,ouaconcepodotalento como uma ddiva divina: (...) a Divina Providncia derramou no bero de Fdor essas ddivasmagnficas:afbulaearealidade.Nopodiaexistirmelhorpresenteparao futuroromancista65.Ou,comoconstaemoutrapassagem:Escrevereraoseu destino66. Na biografia em questo, h pouco espao para o imprevisvel, para o aleatrio, paraomisteriosodavida.Eaconvicodequeessavidasedesenrolademaneira necessriaeretilneaencontraeconoposicionamentodobigrafodiantedasua narraobiogrfica,queempoucaspassagensatinaparaapossibilidadedequeas coisaspoderiamtersepassadonavidadeDostoivskidemaneiradistintadaquela narrada. Apenas no incio da biografia Rosa evita afirmaes categricas, valendo-se de atenuantescomoTalvez,emsuasmeditaesdehipocondraco,oudecertoo demniodaavarezadevia...67.TambmquandolanahiptesesmuitoousadasRosa temocuidadoderelativizaroalcancedosseusvoosdetetivescos,comonapassagem 64ROSA,VirginioSanta,Dostoievski,umcristotorturado.RiodeJaneiro:EditoraCivilizao Brasileira, 1980, p. 13. 65 Idem, p. 14. 66 Idem, p. 45. 67 Idem, p. 12, 13. 47 em que afirma a partir da identificao de confisses autobiogrficas de Dostoivski na obra Nitotchka Niezvnova queDostoivski teria descobertoa infidelidade da meao encontrar uma carta esquecida em um livro, e isso explicaria o porqu do escritor russo nunca ter falado nela, no ter lamentado a sua morte nem ter exaltado figuras maternas em sua obra.Hipteses como estas, baseadas em uma correspondncia necessria entre a vida do escritor e as suas obras, so recorrentes na biografia. Por exemplo, Rosa sugere que noaugedasuapobrezaDostoivskideveterdesejadoamortedousurrioqueo emprestoudinheiroajuros(supondoqueeletenhafeitoalgumemprstimo);ouque duranteosseusmeseserrantesnaEuropa,ondeviveracomoummiservel,eleteria repetido(...)naprpriapele,aexperinciadoseuheri,ohomemdosubterrneo68, at o dia em que desmaiou em um banco de praa e despertou com a ideia de Crime e Castigo;ounaafirmaoquetodosospersonagensdeOIdiotaforaminspiradosem pessoas reais, que Dostoivski conheceu ao longo da sua vida. Ou, por fim, no trecho no qualserefereaoromanceOJogador:desprendendo-sedasdoresjvividas, Dostoievskicontemplaeretocaesseperododesuavidacomoespectadordistantee indiferente. Mesmo o inferno do jogo, motivo central do romance, perdepor vezes um pouco da sua fatalidade baixeza69. Dessa maneira, conclumos que algumas das principais fontes do bigrafo so as obras do biografado. Asdemais fontes nos so praticamente desconhecidas, pois Santa Rosanosepreocupaemmencion-lasatofinaldabiografia-somentenoXIX captulo,napgina300dolivro,queapareceumarefernciaexplcitasfontes utilizadas, sendo a principal delas o dirio de Ana, a segunda esposa de Dostoivski. 68 Idem, p. 198. 69 Idem, p. 219. 48 ApesardodesconhecimentodasfontesdobigrafopossvelsuporqueSanta RosaleualgumasbiografiasclssicassobreDostoivski,poismuitasdassuas afirmaes repetem o que durante muito tempo se difundiu em unssono sobre a vida do romancistarusso.Porexemplo,asupostainfnciatristesobagidedopaicarrasco descrita com tintas muito vivas na biografia. Na viso do bigrafo, o pai de Dostoivski eraterrveleavidaemfamliainsuportvel70e poressarazoainfnciadoescritor fora vivida em clima propcio para a manifestao de doena mental. Citando o clssico estudodeFreud,Dostoivskieoparricdio,SantaRosadefendequeoescritor inconscientementedesejavaamortedopaieapsoassassinatodesteltimopelos servosdapropriedaderuraldafamliaDostoivski,oromancistadesenvolveua epilepsiaqueoacompanhouatofinaldavida.Obigrafoafirmaaindaqueesse acontecimentoforadesumaimportnciaparaaobrafuturadeDostoivski,tendo inspirado diretamente o parricdio de Os Irmos Karamzov.importanteressaltar,entretanto,queapesardostraosconvencionaisdessa biografia,oqueatornaumtantoenfadonhaparaosleitoresdosnossosdias familiarizadoscomasnovassoluesqueognerobiogrficotemtentadoencontrar parafazerfrenteaosseuscrticos,aindaassimDostoievski,umcristotorturadotem aspectosdignosdeinteresse.Dentreessesaspectossedestacaaimparcialidadedo bigrafofrentefiguragrandiosadeDostoivski.Seporumladoobigrafoexaltao escritorenoeconomizaelogiossuaobra,poroutroladoelenosilenciadiantedo queconsideraumavaidademrbida[que]revela,antesdetudo,desequilbrio, tendncias neurticas71, ou seja, um temperamento difcil. 70 Idem, p. 18. 71 Idem, p. 57. 49 Dessa maneira, em diversos momentos do livro Santa Rosa chama ateno para ossinaisdedesequilbriopsquicomanifestadosporDostoivskienooisentada responsabilidadepelasdificuldadesenfrentadasporeleemvida.Noquedizrespeito suajuventude,RosaentendequeosretumbantesfracassosliterriosqueDostoivski colecionouapsosucessodeGentePobreeotormentonoqualsetransformouasua vida so de sua exclusiva responsabilidade, assim como no relativiza o vcio pelo jogo doescritor,oquetransformouseudiaadiacomAnanaEuropaemumverdadeiro pesadelo. Quanto obsesso do escritor pela roleta, o bigrafo no mede palavras: (...) Juntodaroleta,eleperdiaaserenidadee,nodominandoseusnervos,arriscavaata ltima ficha. O que ganha em uma parada, perde em outra. E persiste jogando como um alucinado, enquanto lhe resta dinheiro ou pode obt-lo de qualquer modo. Gasta tudo o quepossui,empenhaaroupadocorpo,cometeindignidadessemnomeparaarranjar com que adquirir mais uma ficha72.RosatambmdesaprovaamaniadeDostoivskideimportunarosamigose principalmente seu irmo mais velho com pedidos e splicas invariavelmente referentes asocorrosfinanceiros.Navisodobigrafo,DostoivskiLamenta-sesemcessar. Contudo,assimquearranjaqualquerquantia,gastasemfreioemedida.Equandono tem nada, vive na mais completa misria, recorre a todo mundo, endivida-se sem temor das consequncias... Depois, desfia o rosrio de queixas e imprecaes, culpando Deus e o Diabo. S no refreia o seu orgulho, sua vaidade sem limites73.ApesardesalientarodesequilbriopsquicodeDostoivski,Rosaserecusaa trat-lo como um louco como muitos dos contemporneos do escritor o consideraram. O tema da loucura discutido por meio do famoso Retrato de Dostoivski, de Perov, que 72 Idem, p. 260. 73 Idem, p. 67. 50 impressionoutodaaRssiaquandoexpostonaAcademiadeBelasArtes.Segundoo bigrafo,aforaeorealismodoretratoqueexpeumhomemematitudemeditativa, introspectivaeumtantoquantoenigmticaconvenceuoscontemporneosdequese tratavadoretratodeumlouco.ParaRosa,Nadadisso.Eraapenas,tosomente,o retrato de um epilptico74. Esse mesmo tema vem tona quando o bigrafo comenta o lanamento de Os demnios, quando as acusaes mais disparatadas foram dirigidas ao seuautor.NovamenteDostoivskifoichamadodereacionrio,dedbilmental,de louco75.Obigrafo,porsuavez,rejeitatodosessesrtuloseprefereenxergaro romancista como um homem incompreendido, uma inteligncia superiors voltas com as suas questes existenciais e as cises da sua personalidade.Outroaspectodesselivroquetornaasualeituraprazerosaanarrativa romanceada da qual se vale o seu autor. Sabemos que essa soluo sempre uma via de modupla:seporumladoelaconfereumamaiorfluidezaotextobiogrficoe dissimulalacunasincontornveisnadocumentao,poroutroladoelatransformao textoemumdiscursoinfinitamentemenoscrvelsobreaverossimilhanadavidade algum.NolivrodeRosaaopopelastcnicasoriundasdocampodaficotornaa leiturapalatvel,massuscitaadesconfianadoleitor,principalmentequandoestese depara com dilogos no corpo da narrativa biogrfica. Como por exemplo, no trecho no qualobigrafodescreveodesencontroamorosodeDostoivskicomApolinria Sslova na Europa: Na hora aprazada, ela o recebe, muito plida, de olhos secos. - Pensei que no viesse mais. No recebeste a minha carta? - Que carta? - Aquela onde te dizia que no viesses. - Por qu? - Porque tarde demais. 74 Idem, p. 303. 75 Idem, p. 307. 51 Ele baixou a cabea para esconder a emoo. Paulina que conta a cena no lhe v a face torturada. S enxerga os fios do seu cabelo cor de ao. - Escuta, Paulina disse-lhe com a voz enrouquecida. Preciso saber de tudo. Vamos aonde quiseres. Tu vais dizer-me tudo, seno morrerei76. Muitasoutraspassagenscomoestapodemserretiradasdaspginasdessa biografia.Autilizaodastcnicasdaliteraturatambmmuitoevidentequandoo bigrafonarraaparticipaodeDostoivskinocrculoPetrachvski,criandocerto climadesuspense,ouaindaquandooelesedebruasobreapaixodoescritorpor MariaDmitrievna,suaprimeiraesposa,ecompequaseumromancesentimentala partir dos dados biogrficos dos quais dispe. oportunoatentarparaofatoqueoresultadoobtidoporSantaRosaem Dostoievski,umcristotorturadodiametralmenteopostoaoresultadoobtidopelo historiadorbritnicoEdwardCarrnasuaobraDostoevsky,tambmumabiografia.O flerte com a literatura que identificamos na obra do autor brasileiro est de todo ausente nabiografiadohistoriadorbritnicoe,enquantoRosaelaboraumtextoatraente prximo da fico, Edward Carr, comprometido com a exatido dos fatos narrados, no se arrisca para alm do limite imbricado no alcance das fontes documentais. Assim, nos deparamoscomduasobrasbiogrficasque,apesardenarraremavidadomesmo homem,apresentammaisdiferenasdoquesemelhanas,sendoqueasdiferenasse devemantessposturasassumidaspelosbigrafosdoqueaeventuaisdiscrepncias entre os fatos narrados em uma e outra obra. Santa Rosa biografa a vida de um autor que admira,principalmenteemfunodamensagemcristqueeleidentificanaobrade Dostoivski, e que elege como um grande exemplo de homem77. J Carr descreve a si 76 Idem, p. 184. 77 Idem, p. 344. 52 prpriocomooobjectivebiographer78,queolhaparaavidadeDostoivskicomo olhar do historiador, distanciado e objetivo, que procura no se deixar levar por opinies pessoais e sentimentos e almeja narrar os fatos exatamente como eles se passaram. A biografia Dostoevsky foi publicada na dcada de 1930 e o trabalho de estreia de Edward Carr79. Ao contrrio de Santa Rosa, percebemos a preocupao de Carr com apertinnciadadocumentaoconsultada,poisjnaintroduodaobraoautor participaaoleitorquaisfontesforamutilizadasnaconstruodotextoequaisoutras obras biogrficas lhe serviram de parmetro. Ele tambm adverte que improvvel que existam documentos desconhecidos sobre a vida do escritor, e duvida que uma nova luz possaserlanadasobreessavidaapartirdeumahipotticadescobertadenovidades documentais. Aindanoquedizrespeitodocumentaohistrica,Carrevitaaomximo recorrer s obras ficcionais de Dostoivski em busca de pistas sobre a vida do escritor80. interessante notar que Carr examina com enorme desconfiana as fontes deixadas pelo prprio Dostoivski, em uma atitude familiar aos historiadores mais srios, que sempre suspeitamdassuasfontes.NomomentoemqueanalisaajustificativadeDostoivski paraorompimentocomBielnskieseucrculo,Carrnomedeaspalavrasaoafirmar queItisastrikinginstanceoftheunconsciousdishonestywhichmakeshighly imaginative people like Dostoevsky the most unreliable of witnesses to the facts of their own life81. 78 CARR, Edward Hallett. Dostoevsky 1821-1881. London: Unwin Books, 1962, p. 38. 79 Ohistoriador britnico Edward H. Carr se notabilizou com a obra O Que Histria,hoje clssicano campo da historiografia. 80apenasdiantedanovelaOJogadorqueohistoriadoringlsrepeteoquesetornouquaseum consenso da crtica e considera essa obra uma fico com lampejos autobiogrficos, na qual Dostoivski examina o seu vcio pelo jogo e descreve a sua paixo por Sslova. 81 CARR, Op. Cit., p. 25. 53 PercebemosnabiografiadeautoriadeCarr,assimcomonabiografiadeRosa, umaposturacrticaenadacomplacentecomasfacetaspoucolouvveisda personalidadedeDostoivski.dignodenota,porsuavez,queessaindependncia topronunciadaqueaimpressoqueacometeoleitordeDostoevskyadequepara almdaimparcialidade,eleestdiantedeumaveladadesaprovaodobigrafoao modo como o escritor russo conduziu a sua vida e atuou no seu tempo histrico.AseveridadedeCarrpodeserexplicadacombaseemumabreveanlisedo contexto da recepo de Dostoivski na Inglaterra. A partir desse referencial, a postura dobigrafodiantedoescritorrussorefleteoseuposicionamentonapolmicaque acompanhaosurgimentodaescolacrticadostoievskiananopas.SegundoRen Wellek, autor do artigo A Sketch of the History of Dostoevsky Criticism, Dostoivski foidescobertotardiamentenaInglaterraemcomparaocomoutrospasesdaEuropa como a Alemanha e a Frana. As primeiras tradues datam apenas das ltimas dcadas dosculoXIXedasprimeirasdcadasdosculoXX,sendoqueosdebatesmais acaloradossobreoescritorsurgiramsomenteapsaeclosodaPrimeiraGuerra Mundial. A obra mais importante desse momento histrico Fyodor Dostoevsky (1916), de Middleton Murry. Nas palavras de Wellek, o livro de Murryextravagantlyexalted Dostoevskyastheprophetofanewmysticaldispensation82.Oalcancedasideias defendidasporesseautorfoipotencializadopelatraduonaInglaterradetextosde crticosrussoscomoBerdieveIvnov,quetambmempreenderamumaleitura centrada nas implicaes filosficas e teolgicas da obra de Dostoivski, e que por sua vez,corroboraramaauradefilsoforeligiosoedeprofetaqueenvolveuafigurado escritor. 82WELLEK,Ren.Discriminations:FurtherConceptsofCriticism.NewHavenandLondon,Yale University Press, 1970, p. 320. 54 OperodoposteriorPrimeiraGuerramarcadoporumafortereaoaessa escolacrtica.Naspalavrasdoautor,EnglishcriticalliteratureonDostoevskyrather reflectsareactionofMurryandtheRussians(BerdyaevandIvanov)whowerethen translatedintoEnglish.EH.Carrsbiography(1931)maybecharacterizedas excessively sober and detached83. Assim, a biografia de Carr desponta como uma obra comprometidacomocombateleiturairracionalistaeespiritualistadolegadode Dostoivski.Alm disso, imperativo atentar para o fato que Carr um intelectual marxista, afinadocomaUnioSovitica.NoporacasoquealgumasposiesdeDostoivski como,porexemplo,oapoioaoCzarismo,assimcomoacrticaaosgrupos revolucionriosdasuapocatenhamcaladofundonointelectualmarxista.O alinhamento com a URSS, por sua vez, comprometeu a aproximao do bigrafo a uma figura incmoda e controversa para os meios soviticos.Assim,possvelquestionaraobjetividadequeCarrcreditaasiprprio.A postura de historiador srio e comprometido com as fontes histricas no incompatvel comresquciosdeopinies,posicionamentospolticosesentimentosnatessiturado texto biogrfico. No caso de Carr, os seus sentimentos so quase hostis, e o leitor chega a se perguntar por que razo teria o bigrafo se debruado sobre a vida de Dostoivski semnutrirquasenenhumasimpatiaporele.Essaimpressoassaltaoleitoremtrechos nosquaisafinaironiadobigrafopraticamenteridicularizaafiguradeDostoivski. Isso ocorre quando Carrse detmao indivduo, mas tambm quandoanalisa o homem pblico,queanunciaassuasopiniespolticasereligiosaspormeiodaatividade jornalstica nos interregnos das publicaes dos romances. 83 Idem, p. 322, 323. 55 NoquedizrespeitoaohomemDostoivski,porexemplo,logonoincioda biografia Carr defende que o isolamento na infncia incapacitou o escritor russo para o trato social,gerando uma necessidadeexcessivapor ateno - the passionate need for exclusive devotion which clung to Dostoevsky through out life84- e a total inabilidade emrelaesamenas,descompromissadasecasuais.Atodoomomentoobigrafo destaca o temperamento difcil e indisciplinado de Dostoivski, a impressionabilidade, a incapacidade de adotar um estilo de vida regrado e razovel.poressarazoqueobigrafosesurpreendediantedosindciosdequeo segundo casamento de Dostoivski foi um grande sucesso e que ele se adaptou melhor do que ningum a vida conjugal. de forma bem-humorada que Carr afirma the years of exile and isolation consummated the miracle for such it seemed to him and it may sometimes seem to his biographer of his married happiness85. Evidentemente que os mritos de tal proeza ele atribui muito mais a Ana do que ao prprio Dostoivski, como ele mesmo afirma na frase: but even when we have made the most generous allowance for Dostoevskys virtues, we must still attribute to Anna rather than to him the brilliant success of their marriage86.Outro exemplo da rigidez do julgamento de Carr pode ser retirado do trecho no qualeledescreveocomportamentodoescritorduranteasuaprimeiraexperinciade glrialiterria.sabidoqueGentePobrefoiimediatamenteacolhidaefestejadapelo crculodeBielnski,equeosucessorepentinodespertouumavaidadedesmedidaem Dostoivski.Aopiniodobigrafosobreaposturadoseubiografadonesteperodo bastante clara: In short, Dostoevsky made a fool of himself87. 84 Idem, p. 18. 85 Idem, p. 137. 86 Idem, p. 124. 87 Idem, p. 24. 56 Aspassagensdurascomoestassoinmerasetambmsoencontradasnos excertos onde o bigrafo se refere s opinies polticas de Dostoivski. Nesse aspecto, atlegitimoafirmarqueCarrpraticamentenoolevaasrio.Apassagemde Dostoivski do campo progressista para o campo conservador foi encarada quase como umdadonecessrioelgicodatrajetriadoescritor.Naanlisequeempreendedo momentoprogressistadajuventudedeDostoivski,naocasiodorompimentocom Bielnski, o bigrafo afirma que a verso que o escritor veiculou anos depois segundo a qual este teria ocorrido por divergncias polticas e religiosas falsa, pois o crculo ao qual ele se integrou posteriormente era to progressista quanto o do clebre crtico russo e,comoocorrecomqualquerjovem,asopiniesdeDostoivskiforammoldadaspelo seu entorno. Dessa forma, Carr sustenta que no h evidencias que comprovem que ele tenhafeitograndesreflexessobreasquestesdasuapoca,equenessemomentoda vidaelenopassavadeumjovemimaturoeimpressionvel.Portanto,foisemgrande sobressaltos que se deu o que Carr definiu como the evolution of the passionate young radicalintonaequallypassionate,thoughscarcelymoreclear-headed,Championof ortodoxy88.Carrtambmanalisademaneirapoucoamistosaaproduojornalsticade Dostoivski.NaspublicaesOTempo,ApocaeprincipalmentenoDiriodeum Escritor o romancista russo defendeu algumas das suas polmicas ideias, como a crena na misso histrica do povo russo de salvar a Europa da degradao e o apoio irrestrito aoCzarismoepolticaexternaimperialistadoseupas.Aaproximaoao conservadorismopolticofoiacompanhadadaadesoortodoxiareligiosa,enaviso do bigrafo o fervor religioso dos ltimos anos de Dostoivski pode ser explicado pelo 88 Idem, p. 70. 57 fatodareligionotertidoumpapelimportantenosprimeirosquarentaanosdasua vida.Dostoivskinomediaesforosparaconferirpublicidadessuasideiasporque se via como um profeta depositrio de uma misso moralizadora da maior importncia. Nosseusltimosanos,vestiucomconvicoomantodoprofeta.Obigrafono conseguedisfararorisoaoafirmarqueHisbeliefswerenotalwaysconsistentand seldomperfectlylucid,buthehadapassionateunwaveringfaithintheirimmense importance for himself and for humanity89. por essa razo que, ainda segundo Carr, ItwouldhaveshockedhimtobetoldthatTheJournalofanArtistwouldcountfor nothingwithposteritybesideTheIdiotandTheBrothersKaramazov90.Aconcluso das reflexes do bigrafo sobre a atividade de Dostoivski como jornalista , em poucas palavras: Dostoevsky was a mediocre publicist and a supreme novelist91.FinalmenteparecequeatingimosumadastesesdesenvolvidasemDostoevsky capazderespondersatisfatoriamentequesto:porqualrazoteriaEdwardCarrse dedicadoescritadabiografiadeDostoivski?Estaseencontrasintetizadana afirmaodequeDostoivskionicoromancistamodernodosculoXIX,umavez que os contemporneosTolsti e Turguniev pertencem ao mundo daaristocraciae da servido,portantoaopassado.Dessamaneira,legtimoconcluirqueoromancista Dostoivski que interessa ao historiador, e no o homem Dostoivski, como no caso da biografia de Virginio Santa Rosa. E o rigor do mtodo histrico utilizado conjuntamente posturadebigrafoobjetivoeimparciallibertouCarrparaqueelecompusesseum retratodeDostoivskidaformacomoeleacreditouseramaisfidedignapossvelaos fatos, sem a preocupao de forjar uma correspondncia necessria entre a grandeza de 89 Idem, p. 135. 90 Idem, p. 213, 214. 91 Idem, p. 235. 58 uma vida e a grandeza de uma obra. Portanto, Carr demonstrou que possvel admirar um artista e ao mesmo tempo compor um retrato independente desse artista no caso do bigrafo ingls, este demonstrou inclusive ser possvel no nutrir grandes simpatias pelo homem que esse mesmo artista foi enquanto viveu. EstamosinclinadosaacreditarqueCarrescreveuDostoevskyporapreciaros romances do escritor russo, mais especificamente os romances da fase urea inaugurada porCrimeeCastigoeconcludacomOsIrmosKaramzov.Assim,paraCarr,a corretaapreciaodolegadodeDostoivskipressupeacompreensodacentralidade dasuafacetadeescritor,quenecessariamentesesobrepessuastambmtalentosas facetas de psiclogo e filsofo. Foi como criador de personagens complexos, profundos, to imprevisveis e incoerentes como qualquer ser humano de carne e osso que o autor russoconquistouoseulugarentreosgrandesescritoresdaliteraturauniversal.Esses personagens,querevelamasinosmomentosdecriseexistencial,representaramuma importanteinovaoliterria,quenavisodeCarrsencontraparalelonaobrade Shakespeare, de quem Dostoivski figura como o herdeiro direto.Dessa forma, ao equiparar o escritor russo com o mestre ingls, o bigrafo torna inteligvelparaoleitoroporqudarealizaodabiografia.Compreendemosento, atravsdaspalavrasdeCarrquefiguramnoeplogodasuaobra,arazodeserde Dostoesvky: Andthatisway,inseekingforparallelstoDostoevsky,the Englishman at any rate constantly returns to Shakespeare; for no subsequentEnglishwriterhasconceivedhischaractersinthe same aspect, at once so profound and so incoherent, as the great Russian.Naked,inchoatehumannaturehasvanishedfrom Englishliterature,andperhapsfromEnglishlife,sincethe Elizabethanage.Wehaveclothedandorganizedandconfined ourselves in a multitude of traditions which have become part of our nature, and from which we can no longer escape even if we would;anditwasonlyinacountrysounorganizedasRussia, 59 andsountrammeledbyrationalizingconvention,thatthe nineteenthcenturycouldhopetorecapturesomethingofthe starknessandthemobilityofamoreprimitiveepochinthe evolution of civilization92 A anlise da biografia de Edwar Carr