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90 2 Uma ética de sobrevivência Introdução Após nossa exposição sobre as características da sociedade pós-moderna, acreditamos ser necessário apresentar alguma proposta ética capaz de oferecer esperança ao homem hodierno. Nossa preocupação com a problemática ética encontra uma importante contribuição na proposta ética de Hans Küng. Suas reflexões partem dessa realidade social e buscam apontar caminhos possíveis diante da preocupante situação em que se encontra o indivíduo pós-moderno. Em uma sociedade marcantemente pluralista envolta em paradoxos e incertezas, revela-se de grande urgência uma nova orientação ética, logicamente desvencilhada das rígidas tradições morais e ao mesmo tempo fundamentada no princípio incondicional da vida, em todas as suas manifestações. Para que isso seja possível, é de suma importância que a sociedade dê ouvidos ao que dizem seus especialistas e a direção para onde apontam suas pesquisas. E nesse sentido, Hans Küng destaca-se como um dos grandes expoentes de nosso tempo, capaz de refletir e orientar responsavelmente aos homens e mulheres contemporâneos. Sem postar-se como profeta da desesperança, ele é capaz de estender seu olhar crítico sobre a sociedade humana, e apontar caminhos que, segundo ele, precisam ser assumidos. Do seio de nossas sociedades contemporâneas brota um grito pela sobrevivência. O ser humano, como protagonista principal das grandes transformações dos últimos tempos, se depara com um urgente desafio: assumir sua responsabilidade diante do mundo que o cerca, cultivando novos comportamentos e trilhando novos caminhos. Urge pautar o agir humano com uma nova ética, uma ética para a sobrevivência humana e o futuro do planeta. Ela se torna mais urgente quando se comprova que os irresponsáveis avanços técnico-científicos caracterizam-se como desenvolvimentos catastróficos e ameaças constantes à vida. Um novo caminho precisa ser assumido por toda humanidade, um caminho que conduz ao horizonte da

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2

Uma ética de sobrevivência

Introdução

Após nossa exposição sobre as características da sociedade pós-moderna,

acreditamos ser necessário apresentar alguma proposta ética capaz de oferecer

esperança ao homem hodierno. Nossa preocupação com a problemática ética encontra

uma importante contribuição na proposta ética de Hans Küng. Suas reflexões partem

dessa realidade social e buscam apontar caminhos possíveis diante da preocupante

situação em que se encontra o indivíduo pós-moderno.

Em uma sociedade marcantemente pluralista envolta em paradoxos e

incertezas, revela-se de grande urgência uma nova orientação ética, logicamente

desvencilhada das rígidas tradições morais e ao mesmo tempo fundamentada no

princípio incondicional da vida, em todas as suas manifestações. Para que isso seja

possível, é de suma importância que a sociedade dê ouvidos ao que dizem seus

especialistas e a direção para onde apontam suas pesquisas. E nesse sentido, Hans

Küng destaca-se como um dos grandes expoentes de nosso tempo, capaz de refletir e

orientar responsavelmente aos homens e mulheres contemporâneos. Sem postar-se

como profeta da desesperança, ele é capaz de estender seu olhar crítico sobre a

sociedade humana, e apontar caminhos que, segundo ele, precisam ser assumidos. Do

seio de nossas sociedades contemporâneas brota um grito pela sobrevivência.

O ser humano, como protagonista principal das grandes transformações

dos últimos tempos, se depara com um urgente desafio: assumir sua responsabilidade

diante do mundo que o cerca, cultivando novos comportamentos e trilhando novos

caminhos. Urge pautar o agir humano com uma nova ética, uma ética para a

sobrevivência humana e o futuro do planeta. Ela se torna mais urgente quando se

comprova que os irresponsáveis avanços técnico-científicos caracterizam-se como

desenvolvimentos catastróficos e ameaças constantes à vida. Um novo caminho

precisa ser assumido por toda humanidade, um caminho que conduz ao horizonte da

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paz mundial. Para assumir uma mesma direção, a humanidade precisa de um

consenso mínimo de valores, normas e comportamentos. Quer dizer, o sonho da paz

mundial passa, necessariamente, pelo projeto de uma ética mundial. E essa é a

proposta de Hans Küng.

No entanto, para a humanidade trilhar novos caminhos, é necessário quem

os indique. E aí entra o papel imprescindível das religiões, como fomentadoras de um

novo agir, comprometido com a vida. Uma vez que as grandes forças sociais, de forte

influência no passado, deixaram de representar uma esperança à humanidade,

suscitando cada vez mais desconfiança, as religiões reaparecem como esperança e,

com sua força e seu caráter metafísico, podem fundamentar incondicionalmente

princípios e valores éticos orientadores para o homem pós-moderno. Aparece como

desafio para as religiões, e critério fundamental de sua missão, o compromisso de

assumir a humanização do ser humano e promover seu desenvolvimento integral.

Uma amadurecida experiência de Deus dará preciosa contribuição ao processo de

humanização. Nesse sentido há um longo caminho a ser trilhado pelas religiões,

superando de vez todo e qualquer resquício de desumanidade e assumindo sua

insubstituível responsabilidade diante do humano.

Na concepção de Hans Küng, esse caminho ético deve ser um caminho

ecumênico233 marcado pelo diálogo e respeito mútuo entre as diferentes

manifestações religiosas. Partindo do princípio de que não haverá paz no mundo sem

paz entre as religiões, o autor reconhece a necessidade de as religiões viverem um

autêntico ecumenismo, sustentado por um consenso mínimo de valores e princípios

humanizantes. Fomentado pelas religiões, esse espírito de abertura e diálogo deve

estender-se também aos não-crentes e a todas as organizações sociais e políticas. Em

sintonia com as configurações próprias destes tempos hipermodernos e suas

complexidades, como vimos no primeiro capítulo, as religiões podem ser

protagonistas de um projeto ético capaz de manter viva a esperança e garantir o

cuidado pela vida. Essa preocupação ético-religiosa, proposta por Hans Küng, é o

caminho por onde haveremos de trilhar, em vista da sobrevivência humana.

233 Hans Küng utiliza o termo “ecumênico” em sentido abrangente, inter-religioso.

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2.1. Interpelações de uma nova ética

2.1.1. Os desenvolvimentos catastróficos e a ameaça à sobrevivência

humana

As profundas e constantes transformações sociais dos últimos tempos

evidenciaram um risco à sobrevivência humana e ao futuro do planeta. Essa é a

constatação de Hans Küng234, que sugere uma nova ética para a humanidade. Com

grande esclarecimento crítico, o autor observa diversos aspectos sociais que revelam

uma situação preocupante, diante da qual é urgente uma mudança radical de

posicionamento por parte do sujeito humano. Evitando um pessimismo estéril, Küng

direciona suas reflexões em vista de um projeto de ética mundial, no sentido de

garantir a sobrevivência humana das próximas gerações.

A partir de dados concretos, fruto de suas constantes viagens e estudos, o

autor inicia sua reflexão revelando o preocupante drama das injustiças e sofrimentos

que assolam grande parte da humanidade, principalmente as regiões e nações menos

desenvolvidas. Embora as mutações humano-sociais mudem constantemente, a

análise de Hans Küng é plenamente válida em nossos dias, visto que os dados por ele

apresentados têm se alterado muito pouco.

* A cada minuto, os países do mundo gastam 1,8 milhão de dólares com armamento militar. * A cada hora morrem 1.500 crianças por causa da fome ou por causa de doenças provocadas pela fome. * A cada dia deixa de existir uma espécie de animal ou vegetal. * Com exceção do tempo da Segunda Guerra Mundial, na década de 1980, a cada semana foram presas, torturadas e assassinadas ou tiveram de fugir ou foram oprimidas de alguma outra maneira por governos repressivos mais pessoas do que em qualquer outra época da história.

234 Hans Küng nasceu na Suíça em 19 de março de 1928. Estudou Filosofia e Teologia na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma e foi ordenado sacerdote em 1954. Doutorou-se em Teologia em 1957 e, em 1962 o papa João XXIII nomeou-o perito oficial do Concílio Vaticano II. Como um dos mais importantes teólogos dos últimos tempos, é autor de inúmeras publicações de grande relevância para a Teologia. Dentre elas, a polêmica “Infallible? An Inquiry” (Infalibilidade? Um inquérito”), de 1970, que lhe rendeu, em 1979, a proibição de ensinar Teologia em nome da Igreja Católica. Atualmente aposentado, é professor emérito de Teologia Ecumênica e presidente da Fundação Ethos Mundial em Tübingen, na Alemanha.

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* A cada mês são acrescentados pelo sistema econômico mundial mais 7,5 bilhões de dólares de dívida ao 1,5 trilhão de dólares de dívidas já existentes, uma carga insuportável para o Terceiro Mundo. * A cada ano é devastada para sempre uma parte da floresta tropical correspondente a 3 ou 4 vezes a área territorial da Coréia.235

Os dados apresentados pelo autor são retirados do documento preparatório

para a reunião mundial das Igrejas cristãs em Seul, em 1990.236 Tentaremos, na

medida do possível, fazer uma abordagem mais atualizada, o que nos permitirá

compreender melhor a preocupação do autor, que hoje certamente não deixou de

existir. Em muitos dos aspectos a realidade não tem mudado significativamente.

Aliás, tem se tornado mais crítica. Se, por um lado, morrem menos pessoas vítimas da

fome no mundo, por outro lado aumentam as espécies animais e vegetais em

extinção, aumentam os gastos com armamentos militares, aumenta a destruição de

florestas, aumentam as dívidas das nações pobres.

Segundo as fontes do autor, os gastos com armamento militar, que em

1990 alcançavam 1,8 milhões de dólares por minuto, em 2006 ultrapassam 2,2

milhões por minuto, totalizando 1,2 trilhão ao ano.237 Observação à parte, metade

desse valor corresponde aos gastos de uma nação apenas, os Estados Unidos da

América, onde a média de “investimento” militar per capita é dez vezes maior que a

média mundial.238

A mortalidade infantil como conseqüência da fome, por sua vez, tem

diminuído. Segundo os dados do autor, no início da década de 90 o número de

crianças mortas pela fome era de 1.500 por hora, totalizando 36 mil por dia. Em 2002,

a Cúpula Mundial da Alimentação que se reunia em Roma, lembrava a todos que o

mundo tinha 800 milhões de famintos, e que, a cada dia morriam de fome 24 mil

pessoas, totalizando mais de 8,5 milhões por ano, em sua maioria crianças.239 Em

235 KÜNG, H., Projeto de Ética Mundial, p. 16. 236 Fonte usada pelo autor: Gerechtigkeit, Frieden und Bewahrung der Schöpfung. Erster Entwurf für

ein Dokument der JPIC-Weltversammlung in Seoul 1990, editado por Evangelischen Pressedienst, Frankfurt, 1989. 237 Folha Online. Acesso: 29/09/2008. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u303492.shtml 238 Jornal Brasil de Fato. Acesso: 20/09/2008. Disponível em: http://www.brasildefato.com.br/v01/agencia/internacional/news_item.2006-06-14.2086958440 239 Correio Brasiliense Online. Acesso: 29/09/2008. Disponível em: http://www2.correioweb.com.br/cw/EDICAO_20020613/vid_mat_130602_17.htm

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2004, segundo relatório da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e

Alimentação (FAO), morriam 12 crianças por minuto, totalizando pouco mais de 17

mil por dia. Uma queda aproximada de 50% em 15 anos.240 Em 2005, morriam de

fome em torno de seis milhões de crianças, dentre os mais de 850 milhões de

famintos no mundo.241 Embora sofram uma pequena queda, esses números não

mudam muito em 2006, quando morrem 16 mil crianças por dia.242

Diferentemente dos índices de mortalidade causada pela fome, o número

de espécies animais e vegetais em extinção têm aumentado consideravelmente. Em

relatório de 2007, a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN)

revelou que são extintas, por dia, de 1 a 2 espécies vegetais e de 2 a 3 espécies

animais, principalmente por causa da atividade humana.243 Enquanto no passado todo

tipo de extinção era fruto de processos naturais, nos últimos séculos o ser humano

passou a ser o fator fundamental da extinção de milhares de espécies em todo o

mundo.

A destruição de florestas, também abordada pelo autor, é um fator cada

vez mais preocupante, como revelam vários outros estudos. No Brasil, a mata

atlântica foi, de acordo com todas as evidências científicas disponíveis, a maior

floresta tropical destruida pela atividade humana nos tempos históricos e talvez pré-

históricos.244 O historiador norte-americano Warren Dean245 vê na destruição de

florestas tropicais uma realidade irreversível dentro de qualquer escala de tempo

humano. Segundo ele, a impossibilidade de se recuperar os males oriundos do

desmatamento irrefreado em prazos culturalmente viáveis provoca uma “angústia

240 Revista “Mundo e Missão”. Acesso: 20/09/2008. Disponível em: http://www.pime.org.br/mundoemissao/fomecriancas.htm 241 U2Only LIFE. Disponível em: http://u2onlylife.blogs.sapo.pt/arquivo/857961.html; e UOL Notícias. Disp. em: http://noticias.uol.com.br/ultnot/efe/2005/11/22/ult1766u13332.jhtm. Acessos: 29/09/2008. 242 Canção Nova Notícias. Acesso: 29/09/2008. Disponível em: http://www.cancaonovanews.com/noticia.php?id=242941 243 Morganasonzzone. Acesso: 29/09/2008. Disponível em: http://morganasonzzone.wordpress.com/category/extincao-de-animais-e-vegetais; Dados: setembro de 2007; UOL Notícias. Acesso: 29/09/2008. Em: http://ciencia.hsw.uol.com.br/extincao-animais.htm 244 DRUMMOND, José Augusto. Mata Atlântica: a história de uma destruição. In: Revista Estudos Históricos – Rio de Janeiro, n. 17, 1996. Disponível em: http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/193.pdf - Acesso: 30/09/2008. 245 DEAN, W., A Ferro e Fogo: a História e a Devastação da Mata Atlântica Brasileira. São Paulo, Companhia das Letras, 1994.

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ambientalista”. Dentre as principais conseqüências e prejuízos ambientais destacam-

se a perda da biodiversidade, a degradação dos mananciais, o aterramento de rios e

lagos, a redução do regime de chuvas, a redução da umidade relativa do ar, o aumento

do efeito-estufa, o comprometimento da qualidade da água e a desertificação.246

Embora os apelos à preservação sejam constantes, nada detém a voraz destruição da

natureza por parte de setores empresariais preocupados unicamente com seus lucros.

É evidente também a fragilidade do setor público em fiscalizar e coibir atividades

extrativistas irresponsáveis. Em nosso contexto, são freqüentes os casos que revelam

a desoladora realidade, fruto do acelerado ritmo de desmatamento.247

Outro fator apontado pelo autor, a dívida dos países de Terceiro Mundo

também aumentou significativamente. Segundo o economista e cientista político Eric

Toussaint, 248 em 2004 os países pobres transferiram US$ 300 bilhões para o mundo

desenvolvido apenas no pagamento de juros e serviços, uma cifra de US$ 25 bilhões

ao mês, muito acima dos US$ 7,5 bilhões dos anos 90.249 Essa configuração sócio-

econômica-política mundial denota uma flagrante injustiça entre as nações, bem

como uma preocupante irresponsabilidade com as próximas gerações, com o futuro

da humanidade. O ser humano não realiza, assim, a sublime vocação de administrar

responsavelmente os bens naturais e de relacionar-se fraternalmente com os

demais.250 Seu agir opressor, injusto, maldoso, irresponsável, desumano, revela que

está descuidando de sua casa, seu habitat. Nos perguntamos, estupefatos diante da

realidade que nos impressiona: “O que está acontecendo com o ser humano?”, “Para 246 Cf. http://www.cultivando.com.br/saude_meio_ambiente_desmatamento_impactos.html Acesso: 30/09/2008. 247 Diário do Pará: “Ritmo de desmatamento da Amazônia dobra em agosto - Dados divulgados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) nesta segunda-feira (29) revelam que o ritmo de desmatamento da Amazônia subiu 133% em agosto. O cálculo, feito por meio de imagens de satélites, indica que nesse mês foram destruídos 756,7 km² de floresta, área equivalente à metade do município de São Paulo. Em julho, o instituto registrou 323,9 km² de florestas derrubadas. A medição foi realizada pelo sistema Deter (Detecção de Desmatamento em Tempo Real), que identifica apenas as áreas desmatadas ou degradadas que tenham área maior que 2.500 m². Devido à cobertura de nuvens, nem todos os desmatamentos são detectados.” Acesso: 30/09/2008. Disponível em: http://www.diariodopara.com.br/noticiafull.php?idnot=4660 e O Globo. Acesso em: 30/09/2008. Disponível em: http://oglobo.globo.com. 248 Presidente do Comitê pela Anulação da Dívida do Terceiro Mundo (CADTM), com sede em Bruxelas, na Bélgica; membro do Conselho Internacional do Fórum Social Mundial 2005; autor da obra “A bolsa ou a vida”, Editora Fundação Perseu Abramo: São Paulo, 2002. 249 Agência Ibase. Disponível em: http://www.ibase.br/modules.php?name=Conteudo&pid=520. Acesso: 30/09/2008. 250 BOFF, L., O Destino do Homem e do Mundo, p. 42 et. seq.

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onde vamos?”. Tais questionamentos são ponto de partida para a proposta ética de

Hans Küng. É urgente a necessidade de repensar nosso modo de “cuidar” do mundo

onde vivemos, fomentando novas relações e comportamentos entre os povos e

nações, em vista da sobrevivência humana. Diante dos números, não precisamos de

mais justificativas para entender que um projeto de ética seja hoje mais do que

urgente.

Essa situação de crise não se configurou repentinamente, mas é fruto de

grandes transformações nos mais diversos aspectos humano-sociais, que vêem

ocorrendo desde o início do século XX.

“A crise mundial atual não é o resultado de um desenvolvimento recente, mas está relacionada com as crises de desenvolvimento que vêm de longo tempo. Quem hoje levanta a bandeira de uma ética global deve estar consciente de que a situação atual é expressão da irrupção de uma nova época, que teve início com a Primeira Guerra Mundial”.251

As constantes e aceleradas transformações e evoluções de hoje são

conseqüência de transformações anteriores, mais lentas, no entanto não menos

acentuadas. Não cabe simplesmente culpar o homem pós-moderno pelas ações

irresponsáveis e desumanas do homem moderno. A culpa pode ser de outros, mas a

responsabilidade é nossa. Cabe-nos, então, fazer o melhor possível com aquilo que

temos em mãos.

2.1.2. As irrupções inovadoras e a pós-modernidade

Uma nova ordem mundial passa a surgir após a Primeira Guerra Mundial

(1914-1918). É a passagem da modernidade para a pós-modernidade que, segundo

Hans Küng, não inicia somente em 1970 e 1980, como alguns afirmam. Ela já está

em cena com o desmoronamento da sociedade burguesa e do mundo eurocentrista no

início do século 20.252 O termo “pós-modernidade” já foi usado a partir de diferentes

251 KÜNG, p. 17. 252 Segundo o autor, a Primeira Guerra Mundial provocou na Europa Central e no Leste Europeu o desmantelamento do milenar império alemão, do reino dos czares, bem como o fim dos 400 anos de cristandade protestante e da moderna teologia liberal. Trouxe, também, a ruína do reino turco e do império chinês. KÜNG, H., op. cit. p. 18.

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aspectos. No entanto, não é a palavra que é decisiva, mas o que ela significa. E isso,

para Küng, está claro: a pós-modernidade representa uma virada de época global,

cujas implicações ainda suscitam análises e estudos. Por isso ele emprega o termo

“pós-modernidade” no sentido da história mundial, reconhecendo na Primeira Guerra

Mundial um divisor de águas na história humana.253 É o momento de recomeçar o

mundo desmoronado da modernidade.

O mundo da modernidade, que havia iniciado em meados do século 17,

com uma filosofia (Descartes), uma ciência (Galileu) e uma compreensão secular do

direito, do Estado e da política moderna, 254 tinha a chance de recomeçar. Surgiam as

evidências de uma nova ordem mundial pós-moderna.

“O domínio mundial das potências européias estava profundamente abalado, e o eurocentrismo seria substituído por um policentrismo; muitos tinham claro que a ciência e a técnica modernas poderiam proporcionar às guerras uma qualidade de destruição basicamente diferente, o que poderia arruinar a Europa; havia um movimento pacifista que defendia o desarmamento total e até o pacifismo; já havia uma massiva crítica à civilização, e uma percepção de que a industrialização não somente traria o progresso técnico, mas, com o tempo, viria a destruir também o meio ambiente; o movimento feminista irrompia de forma definitiva em muitos países, impondo a igualdade de direitos; começava, também, o movimento ecumênico que desembocaria na criação do Conselho Mundial de Igrejas”.255

Esses e outros movimentos não eram simplesmente “anti-modernistas”,

mas sinais de mudança, de novos caminhos, que assumiam o controle da história e

apontavam para a sociedade pós-moderna. O desenvolvimento traria irrupções

inovadoras, mas as décadas de 20 e 30 foram marcadas por desenvolvimentos

catastróficos, que culminariam em uma nova guerra. Hans Küng faz coro a outros

críticos que vêem em três aspectos as principais razões do não surgimento de uma

nova ordem mundial pacífica: o fascismo na Itália, na Espanha e em Portugal e o

nacional-socialismo na Alemanha; o militarismo do Japão, que surgiu na mesma

época; e o comunismo revolucionário que só em parte conseguiu entender Karl Marx

e seu programa.256

253 Ibid., p. 19. 254 Ibid., p. 20. 255 Ibid. 256 KÜNG, H., op. cit. p. 21 et. seq.

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“Em verdade, todos esses movimentos, que a seu modo procuraram superar a crise global após a Primeira Guerra Mundial, mostraram-se como tendo pouco futuro. Eles frearam o desenvolvimento para um mundo relativamente melhor. Após a Segunda Guerra Mundial levaram a um antagonismo político, econômico e militar de duas superpotências (Estados Unidos e União Soviética). Esse antagonismo bipolar perdurou por meio século e hoje perdeu seus tons fortes. Seus discursos não eram apropriados para dar ao mundo padrões éticos para vencer as tarefas do futuro”.257

O ideal de um mundo mais pacífico ruiu com o fortalecimento de

diferentes potências que buscaram impor um modo próprio de poder, nem um pouco

pacífico. Tanto o socialismo estatal quanto o neocapitalismo revelaram-se como

discursos sem futuro, desastrosos. Os altos ideais de justiça social, solidariedade,

liberdade, defendidos por Marx e próprios do socialismo, esvaíram-se nos regimes

marxistas que se revelaram incompetentes e corruptos. Ainda hoje, em regimes

socialistas, há que se levantar urgentemente a pergunta pelos direitos humanos e pela

ética, pela liberdade intelectual e pelo pluralismo político.258 Por sua vez, o espírito

da democracia e os ideais da liberdade e da tolerância mostraram-se mais fortes do

que todas as ditaduras marrons, vermelhas ou pretas, o que fez dos Estados Unidos a

potência econômico-político-militar hegemônica no mundo ocidental.259 Mas nem por

isso pode-se dizer que os discursos neocapitalistas foram capazes de apontar

caminhos promissores. Após um crescimento desenfreado, acompanhado de um

armamento excessivo, os discursos da superpotência americana também se

evidenciaram nefastos.260

As experiências Americana e Soviética seguem a mesma lógica de tantas

outras experiências: após a ascensão e o apogeu seguem-se distensão, esgotamento e

declínio. Mesmo o Japão, que após terrível derrota na guerra, conseguiu se recompor,

mostrando ao mundo sua eficiência econômica e tornando-se a terceira potência

mundial, revela aspectos problemáticos. Segundo Küng, certos postulados

fundamentais dessa eficiência deveriam ser revisados, tais como: eficiência sem

consideração, flexibilidade sem valores fundamentais, liderança autoritária sem

257 Ibid., p. 23. 258 Ibid., p. 24 et. seq. 259 Ibid., p. 25. 260 Ibid., p. 27.

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responsabilidade, política e economia sem visão moral, comércio sem reciprocidade,

culpa de guerra sem consciência de culpa.261 Com essas abordagens acerca das

principais potências mundiais e seus desenvolvimentos catastróficos, o autor levanta

um questionamento acerca do futuro da sociedade humana.

“A futura comunidade mundial será simplesmente uma comunidade de interesses, somente um gigantesco mercado? E será que justamente o mercado não carece do direito e da ética como complemento e corretivo? Será que no Japão, assim como na Europa, não se refletirá criticamente sobre aquilo que o progresso moderno trouxe e sobre aquilo que deixou de trazer?”.262

A inquietação de Hans Küng reflete a necessidade latente de um

parâmetro ético para o agir humano. Essa necessidade precisa suscitar uma profunda

reflexão principalmente por parte das nações mais poderosas, que fomentaram as

grandes ideologias do século passado, das quais todos colhem os amargos frutos.

Segundo o autor, as conquistas do mundo Ocidental trouxeram ciência, mas não

sabedoria; tecnologia, mas não energia espiritual; indústria, mas nenhuma ecologia;

democracia, mas nenhuma moral.263 Todo desenvolvimento sem limites provoca

“efeitos colaterais”.

“Na realidade, o progresso eterno e todo-poderoso, válido para tudo e todos, este grande deus das modernas ideologias com seus rígidos mandamentos – ‘você tem de ser sempre maior, sempre melhor, sempre mais rápido’ – revelou suas duas caras fatais e a fé no progresso já perdeu a sua credibilidade. Entrementes, tomou-se consciência de que o progresso econômico como objetivo em si mesmo produziu em toda parte do mundo conseqüências desumanas. Estas conseqüências, muitas vezes, são minimizadas por parte de cientistas que dizem tratar-se de ‘efeitos colaterais’ do progresso científico. Também economistas dizem ser ‘efeitos extremos’ do crescimento econômico”.264

As conseqüências do progresso desenfreado e irresponsável se manifestam

na destruição do meio ambiente natural das pessoas e também numa desestabilização

social em grande escala. Tornaram-se comuns certas ameaças: escassez de reservas

naturais, problemas de trânsito, poluição do meio ambiente, destruição das florestas

261 Ibid., p. 30. 262 Ibid., p. 32. 263 Ibid., p. 33. 264 Ibid., p. 33.

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nativas, chuva ácida, efeito estufa, buraco na camada de ozônio, mudanças climáticas,

miséria no lixo, explosão demográfica, desemprego generalizado, dívida externa,

problemas do Terceiro Mundo, superarmamentismo, morte pela ciência atômica. Não

precisa ser um melancólico profeta de catástrofes para constatar que a atual sociedade

do desenvolvimento está ameaçada por uma autodestruição.265 Caminham lado a lado

os maiores triunfos e as maiores catástrofes da técnica, e a razão, deusa da

modernidade e do progresso, agora sofre profundos questionamentos.

“A razão (ligada com a liberdade da subjetividade), que busca colocar-se como algo absoluto, que a tudo legitima, que não se enquadra em nenhum cosmo e para a qual nada é santo, decompõe-se a si mesma. Hoje a razão analítica é questionada por um princípio integral e solicitada a legitimar-se a si própria. A juíza suprema de ontem transformou-se na acusada de hoje”.266

Apesar de tudo isso, ninguém pode ser seriamente contra o progresso. Mas

é questionável o fato de o progresso técnico-industrial se transformar em valor

absoluto, um ídolo que se cria incondicionalmente. Surgem questionamentos

profundos: é o homem que deve estar a serviço da ciência, ou vice-versa? A

tecnologia e a indústria serão ainda capazes de se adaptar ao ser humano, ou é ele que

terá que se adaptar a elas? Que sentido têm nosso progresso, nossa ciência e nossa

tecnologia, nossa economia e nossa sociedade? Para que serve todo o progresso

tecnológico e científico, senão à realização humana? 267 Para Küng, comunismo e

capitalismo são sistemas já superados.

“Entre pessoas capazes de olhar em perspectiva, o termo ‘socialismo’ (ele sempre carregou em si traços coletivos) há muito já foi substituído por ‘social-democracia’ livre. O termo ‘capitalismo’ (desde o início orientado em sentido individualista e explorador) foi substituído por ‘economia social de mercado’”.268

Percebe-se, assim, como nenhum desses dois grandes sistemas sociais

antagônicos respondeu plenamente aos anseios do homem moderno. Naturalmente,

ambos apresentaram aspectos positivos, úteis à sociedade humana. Suas fragilidades e

erros, porém, revelaram a necessidade de superá-los. Uma economia capitalista de 265 Ibid., p. 34. 266 Ibid. 267 Ibid., p. 36. 268 Ibid.

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mercado, onde os interesses do capital têm prioridade sobre as necessidades do

trabalho e da natureza, revela-se incapaz de germinar uma sociedade de justiça e paz.

Deve-se buscar uma economia de mercado regulada, social e ecológica, onde haja

constantemente a busca por equilíbrio entre os interesses do capital (eficiência e

lucro) e os interesses sociais e ecológicos, isto é, uma economia de mercado

ecossocial.269 É tempo de avaliar os efeitos do desenfreado progresso técnico-

científico, e buscar um consenso em termos econômicos e sociais.

Küng entende que a social-democracia e uma economia social de mercado

não mais se excluem, mas integram-se mutuamente, apontando para uma constelação

pós-capitalista e pós-socialista, onde as antigas ideologias não oferecem receitas.270

As irrupções inovadoras e experiências limítrofes do homem pós-moderno também

trazem inconstâncias e ameaças cada vez menos previsíveis: a energia atômica que

pode provocar a autodestruição da humanidade; as tecnologias de comunicação que

saturam o indivíduo de informações a ponto de deixá-lo desorientado; o

desenvolvimento de um mercado mundial de ações, de um mercado financeiro

mundial e uma bolsa de valores global fora de controle; a ganância científica e o

desenvolvimento da genética manipuladora; a pauperização e endividamento dos

países pobres.271 Tudo isso exige da ética uma atuação mais preventiva do que

curativa, buscando avaliar constantemente os efeitos ambíguos da pesquisa técnico-

científica.

Segundo Hans Küng, a revolução industrial do século 19 deu-se em duas

etapas: a primeira, que substituiu o trabalho dos músculos humanos por máquinas e

mecanização; e a segunda (após a Segunda Guerra Mundial), que fortaleceu o

trabalho intelectual com o auxílio de máquinas. No lugar das economias agrárias

estáticas, surgiam modernas sociedades industriais.272 A pós-modernidade anuncia

uma sociedade pós-industrial, com a mudança de toda a estrutura social. No entanto,

as expectativas de um tempo mais digno e humano novamente não se realizavam: “o

instinto assassino de agressão e de destruição permanece nas pessoas e ao

269 Ibid., p. 37. 270 Ibid. 271 KÜNG, H., op. cit. p. 39. 272 Ibid., p. 40.

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desmoronamento de velhos antagonismos pode surgir o estabelecimento de novos”.273

Não se pode ignorar, porém, que há irrupções inovadoras que podem facilitar a

sobrevivência da humanidade. Ciente das desastrosas conseqüências de um agir

irresponsável e descomprometido, a sociedade pós-moderna busca desenvolver

aspectos mais humanizantes, e muitas inovações assumem um caráter mais positivo.

A sociedade pós-industrial, com suas evoluções tecnológicas, suscitou

mudanças em toda estrutura social, fazendo surgir “uma nova orientação geral, um

novo macroparadigma, uma nova constelação geral pós-moderna”.274 Alguns traços

são evidentes e próprios deste tempo chamado “pós-modernidade”.

“Geopoliticamente trata-se de uma constelação pós-eurocentrista, agora policentrista; em termos de política externa, podemos contar com uma sociedade mundial pós-colonialista e pós-imperialista; em termos econômicos, desenvolve-se uma economia pós-capitalista e pós-socialista, que podemos chamar de economia ecossocial de mercado; em termos políticos e sociais, forma-se uma sociedade pós-industrial, de prestação de serviços e de comunicações; nas relações sociais evidencia-se um sistema pós-patriarcal e um relacionamento de companheirismo entre homem e mulher; em termos de política cultural, estamos indo em direção a uma cultura pós-ideológica, pluralista e integral; em termos de política religiosa, apesar das grandes resistências, parece estar surgindo um mundo pós-confessional e inter-religioso”.275

Essa transformação sócio-estrutural é acompanhada por uma profunda

mudança de valores ético-morais. Como vimos no primeiro capítulo, com a

relativização das forças sociais, o indivíduo assume um lugar de maior importância.

Embora a pós-modernidade propague certos valores desumanos, há nela reflexos de

um horizonte humanista. A superação das diferentes ideologias não pode nos levar a

pretender uma ideologia unitária ou uma nova utopia social, mas um caminho que nos

tire das dificuldades da modernidade e nos leve para o futuro, isto é, um caminho pós-

moderno.276 Hans Küng propõe, assim, a superação da modernidade e não uma

ultramodernidade ou uma contra-modernidade. Para isso, ele aborda a pós-

modernidade não como um pluralismo radical ou um relativismo, o que seria a

modernidade tardia desintegrada, mas num sentido positivo, integrador. Pós-

273 Ibid., p. 41. 274 Ibid., p. 44. 275 Ibid., p. 46. 276 Ibid., p. 48.

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modernidade não vista como anarquia de linhas de pensamento, arbitrariedade ou

concepção moral de que “tudo é permitido”.

“Pós-modernidade não pode estar direcionada para uma interpretação uniforme do mundo em que vivemos. Também dentro do novo paradigma haverá uma multiplicidade e esboços heterogêneos da vida, dos modelos de comportamento, dos jogos lingüísticos, das formas de vida, das concepções científicas, dos sistemas econômicos, dos modelos sociais e das comunidades de fé. Pós-modernidade, no sentido aqui apresentado, não significa somente operações cosméticas na arquitetura e na sociedade. Também não significa uma teoria única da organização social, econômica, política, cultural e religiosa. Positivamente, a pós-modernidade, no sentido aqui apresentado busca, em uma nova constelação mundial, um novo consenso fundamental sobre as convicções humanas integradoras. Se uma sociedade democrática e pluralista quiser sobreviver, ela deverá estar baseada sobre este consenso fundamental”.277

Segundo o autor, a pós-modernidade não haverá de superar o pluralismo,

mas deverá integrar a sociedade em vista de um consenso que lhe garanta a conviver

harmoniosamente. Nesse sentido, a pós-modernidade denota uma mudança de época,

e não uma potencialização ou continuação da modernidade, pois “as deficiências

básicas da ciência e os grandes estragos da técnica não podem ser superados com

mais ciência e técnica”.278 Hans Küng reconhece, no entanto, que a modernidade deve

ser afirmada na sua forma humana e negada em seus limites desumanos, buscando

uma nova síntese, diferenciada, pluralista e holística.279 Esse discernimento, entre os

aspectos positivos e negativos da modernidade, se fundamentará em uma ética capaz

de orientar o homem pós-moderno a uma autêntica realização.

2.1.3. Um Caminho Novo e a Urgência ética

Mais do que uma crise econômica ou política, social ou religiosa, a crise

que assola o mundo pós-moderno, principalmente a cultura ocidental, é uma crise que

atinge diretamente a pessoa humana. Uma crise de valores, que reflete no

comportamento humano. Se, por um lado, o ser humano é vítima, por outro lado ele é

também responsável pelas desastrosas conseqüências de suas ações. Não se pode

277 Ibid., p. 50. 278 Ibid., p. 52. 279 Ibid., p. 53.

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culpar a técnica e a ciência, se essas são manipuladas pelo homem. Diante de uma

sociedade em crise, Hans Küng aponta para a urgência de se fomentar novos valores,

suscitando um comportamento humano mais responsável e mais ético. Segundo o

autor, as catastróficas evoluções econômicas, sociais, políticas e ecológicas do século

20 evidenciaram, por negação, a necessidade de uma ética mundial. Para ele, sem

uma fundamentação ética, os caminhos da humanidade apontam para o caos.

“Sem moral, sem normas éticas comumente aceitas, sem ‘padrões globais’, as nações correm o perigo de, através do acúmulo de problemas durante decênios, caminhar para uma crise que pode levar ao colapso nacional, isto é, à ruína econômica, à desmontagem social e à catástrofe política”.280

Toda crise é oportunidade de crescimento. Quando a humanidade se

encontra em tempos difíceis, é momento de rever os fundamentos da caminhada,

buscando refletir sobre os princípios que iluminam seu caminho. Enquanto reflexão

sobre o comportamento humano, a ética se faz necessária, não como uma técnica

corretiva, mas como orientação propositiva que aponte para um novo jeito de

caminhar. Hans Küng justifica a necessidade de uma ética orientadora e reguladora

do agir humano a partir de uma pergunta simples, mas difícil de responder: “por que a

pessoa humana não deve fazer o mal?” A mesma pergunta deve ser feita no sentido

positivo: “por que fazer o bem?” A resposta é um desafio a cada indivíduo humano281

e também à coletividade, às nações e suas decisões.

“Por que a pessoa humana – entendida como indivíduo, grupo, nação, religião – deve se comportar humanamente, de forma verdadeiramente humana? E por que deve fazer isso incondicionalmente? E por que todas as pessoas devem fazer isso? Por que uma camada, um grupo não pode ser uma exceção? Isso, pois, é a pergunta básica em qualquer ética”.282

280 Ibid., p. 54.

281 Para responder à pergunta Hans Küng apresenta vários questionamentos: “Por que as pessoas não devem ser ruins para as outras, enganá-las, roubá-las, matá-las se isto for de alguma vantagem e se, em alguns casos, não se precisa temer ser descoberto ou sofrer algum castigo?”; “por que o político deve resistir à corrupção se ele pode estar certo de que os que querem suborná-lo jamais falarão sobre isso?”; “por que um empresário deve limitar seus lucros se a ganância e o discurso do ‘enriquecei’ é proferido publicamente sem quaisquer temores morais?”; “por que, com base em determinação pré-natal, não se pode eliminar os descendentes indesejados?” KÜNG, H. op. cit. p. 55 et. seq. 282 Ibid. p. 57.

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Para o autor, a viabilidade de uma ética mundial passa pelo critério

incondicional do agir humano. Parâmetros éticos devem ser assumidos por todos, sem

exceção. Uma ética vulnerável acaba por gerar também uma sociedade vulnerável. E,

naturalmente, no tempo atual é inviável também uma ética imposta, como obrigação

ou dever, como vimos no primeiro capítulo. O consenso básico, do qual fala Hans

Küng, há de fundamentar uma ética assim como fundamenta, ao menos teoricamente,

a democracia ocidental. No entanto, ele não acredita que o Estado democrático-liberal

terá condições de fundamentar uma ética global.

“De acordo com a sua constituição, o Estado democrático deve prover liberdade de consciência e de religião. Também deve considerar a liberdade de imprensa e de reunião e tudo o mais que faz parte dos direitos humanos modernos. E, mesmo assim, esse Estado não pode estabelecer por decreto algum sentido ou estilo de vida. Se não quiser comprometer a sua neutralidade no que tange à cosmovisão, ele não pode prescrever legalmente valores superiores ou normas últimas”.283

Hans Küng entende que o Estado democrático-liberal, por sua própria

autocompreensão, deva ser neutro, permitindo a diversidade de religiões e confissões,

filosofias e ideologias. A manifestação social pluralista precisa encontrar respaldo e

respeito na democracia. No entanto, democracia alguma pode funcionar sem um

consenso mínimo, que implica respeito a valores, normas e posturas distintas. Uma

convivência humana digna e harmoniosa supõe, antes de tudo, abertura ao diálogo e a

concordância de que é possível resolver conflitos sociais de uma forma não-

violenta.284 É um desafio imenso buscar um consenso, e uma fundamentação

incondicional, para o agir humano. A crise moral que atinge a cultura ocidental

desautoriza a tradição e gera um vazio de sentido. As pessoas estão perdidas.

“Muitas pessoas não sabem mais com base em que normas fundamentais devem tomar as pequenas e grandes decisões do dia-a-dia. Não sabem mais que preferências seguir, que prioridades colocar e que imagens orientadoras escolher. Pois as instâncias e tradições orientadoras não têm mais o mesmo valor. Em todo lugar se percebe uma crise de orientação generalizada. Com ela estão relacionadas a frustração, o medo, as drogas, o alcoolismo, a aids”.285

283 Ibid., p. 58. 284 Ibid., p. 59. 285 Ibid., p. 29.

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A sociedade ocidental está diante de um vazio de sentido, de valores e de

normas. O indivíduo pós-moderno está doente e a sociedade onde está inserido não

lhe oferece medicação adequada. É urgente uma nova maneira de pensar e agir, e

nesse sentido o projeto de ética mundial, proposto por Hans Küng, representa um

importante passo. Esse caminho ético precisa ser “aplainado” para que o ser humano

encontre sentido em seu caminhar, inspirado e fortalecido pelo horizonte de sua

realização plena.

2.2. Proposta de Ética Mundial

Diante da realidade que vislumbramos em nosso tempo, uma ética

mundial, sustentada por um consenso mínimo, se torna uma urgência vital. Hans

Küng reconhece isso e apresenta seu projeto de ética mundial como resultado de

longos anos de estudo, alicerçados em inúmeras experiências a partir do contato com

as mais diversas culturas e realidades do mundo todo.286 Aqui procuraremos

apresentar as bases e fundamentos principais que levam o autor a afirmar que a única

maneira de garantir a sobrevivência da humanidade e das futuras gerações é

assumindo um caminho ético. Neste caminho, o desafio é iluminar os passos da

humanidade com um conjunto mínimo de valores, normas e comportamentos

comuns, aceitos e cultivados por todos.

A responsabilidade recai sobre cada pessoa humana, que precisa assumir

como sua a tarefa de construir, por meio de relações verdadeiramente humanas, uma

sociedade de paz, onde a vida seja não apenas respeitada, mas também cuidada e

defendida. Não apenas a sobrevivência humana, mas a própria natureza e toda forma

de vida, está condicionada à prática humana, que interfere na harmonia natural. Em

sua proposta ética, Hans Küng reconhece a grande responsabilidade que o ser humano

tem e, justamente por isso, atribui a ele o desafio de assumir novos comportamentos,

deixando de lado um caminho que, ao longo de séculos, se tornou desumanizante e

destrutivo, para assumir um novo comportamento, sustentado por novos princípios

ético-morais.

286 KÜNG, H., op. cit. p. 9.

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2.2.1. Um mínimo de valores, normas e comportamentos comuns

As inúmeras leis, normas, orientações e costumes das sociedades

contemporâneas, em vez de orientar, deixam as pessoas cada vez mais perdidas e

confusas. As mutações sociais que atingiram a humanidade nos últimos tempos

geraram um certo vazio de sentido no sujeito pós-moderno. Em vista da massa de

informações e da avalanche diária de novidades, o indivíduo parece tornar-se cada

vez mais “ignorante” 287 e carece de um conhecimento orientador abrangente. A

sociedade humana como um todo necessita de uma orientação esclarecedora para

ordenar e discernir seus passos em direção à realização pessoal e social. Diante da

complexidade da situação atual, Hans Küng reconhece que a sobrevivência da

sociedade, sua garantia de futuro, passa por uma busca consensual de valores ético-

morais que dêem um direcionamento novo aos homens e mulheres contemporâneos.

“Nos últimos anos ficou-me cada vez mais claro que este mundo em que vivemos somente terá uma chance de sobreviver se nele não mais existirem espaços para éticas diferentes, contraditórias ou até conflitantes. Este mundo uno necessita de uma ética básica. Certamente a sociedade mundial não necessita de uma religião unitária, nem de uma ideologia única. Necessita, porém, de normas, valores, ideais e objetivos que interliguem todas as pessoas e que todos sejam válidos”.288

Visto que uma “ética comum” não significa uniformização das culturas e

povos, a diversidade ética não é um empecilho para sua constituição. O que o autor

reconhece é que a humanidade necessita de normas, valores e ideais que sintonizem

as pessoas em vista daquilo que é de interesse universal: a vida. Ele condiciona a

possibilidade de sobrevivência humana ao surgimento de uma ética nova, aberta e

acolhedora das diferenças, que aponte caminhos novos para toda humanidade, sem

necessidade de conflitos entre nações, povos, raças, etnias, culturas. Entende-se,

assim, que os conflitos e guerras não se originam pelo fato de existirem diferentes

povos e raças, com o que lhes é próprio, mas como conseqüências diretas da

existência de éticas diferentes e até contraditórias. Se, por um lado, o autor reconheçe

que uma ética mundial necessita de uma base religiosa, por outro lado ele entende que

287 Ibid., p. 8. 288 Ibid., p. 9.

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é inviável uma religião universal, ou uma ideologia universal. O que ele vislumbra é a

possibilidade de uma ética mundial como expressão de valores, ideais, critérios de

ação comuns, germinados e alimentados pelas mais diferentes instâncias sociais,

políticas, religiosas e culturais. A ética, segundo Küng, deve ser assumida como um

propósito público, para além do âmbito privado.

“Na época moderna a ética foi vista cada vez mais como coisa privada. Na pós-modernidade, pelo bem das pessoas e por causa da sobrevivência da humanidade, a ética deve vir a ser novamente um propósito público de primeira grandeza. (...) Em virtude da enorme complexidade dos problemas e da especialização da ciência e da técnica, a ética necessita ela mesma de uma institucionalização”.289

Nas relações sociais, nas decisões públicas, no horizonte social, em toda

ação humana, a ética jamais pode ser esquecida. Nem pode, também, servir de

adorno, mas deve ser o fio condutor do pensamento e do agir humano-social. Se a

ética é uma evidência gritante em nossa sociedade, esta deve ser pensada eticamente,

numa visão global. Nossa sobrevivência e a sobrevivência das gerações futuras está

condicionada ao surgimento e cultivo de parâmetros éticos de ação válidos

universalmente. Hans Küng é enfático em afirmar que, sem normas éticas comumente

aceitas, isto é, sem “padrões globais”, as nações correm o perigo de caminhar para

uma crise que pode levar ao colapso nacional, à ruína econômica, à desmontagem

social e à catástrofe política.290 Uma constatação assim, mais realista do que

pessimista, nos leva a refletir sobre o comportamento das pessoas. Segundo o autor,

não é possível assumir uma maneira de agir autenticamente humana sem estar ligado

a um sentido, a valores e normas. Sem isso “a pessoa humana não vai, nem nas coisas

pequenas nem nas grandes, portar-se de forma verdadeiramente humana”.291

É urgente refletir sobre os frutos amargos do entusiasmado progresso,

reconhecendo que muitas das expectativas tecnológicas, dinamizadas pela ética de

mercado, evidenciaram-se traiçoeiras, e com resultados desastrosos. Movida por uma

lógica consumista, a ética de mercado se propagou com sua força sedutora, mas

evidenciou-se sem perspectiva de futuro e nefasta à humanidade. Segundo o autor, “a

289 Ibid., p. 66. 290 Ibid., p. 54. 291 Ibid., p. 61.

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análise do mercado não pode substituir a ética, pois as forças da oferta e da procura

não conduzem automaticamente ao equilíbrio”.292 Um sentido mais abrangente para a

vida, bem como os padrões éticos imprescindíveis para que não apenas a vida

humana floresça, mas toda manifestação da vida, só é possível quando assumirmos

uma nova atitude, refletida até nas menores práticas.

Ao longo dos últimos séculos, com o desenfreado progresso e as

encantadoras inovações tecnológicas, o ser humano abriu mão da reflexão ética sobre

suas ações. Agora é tempo de assumir uma nova postura, e a ética precisa estar

presente no discernimento humano que precede o agir.

“Até agora também a ética, na medida em que esta é uma reflexão sobre o comportamento das pessoas, chegou atrasada. Por demais vezes perguntamos o que podemos fazer somente depois que o sabemos fazer. Para o futuro, porém, seria decisivo o seguinte: nós deveríamos saber o que podemos fazer antes de saber fazê-lo. Apesar de a ética ser sempre uma reflexão condicionada pelo tempo e pela sociedade, ela não deveria ser somente uma reflexão sobre a crise. Quem constantemente olha para o retrovisor para ver o caminho andado, facilmente erra o caminho que ainda falta ser percorrido. Através de prognósticos sobre a crise, que sempre contam com a pior possibilidade, a ética deveria ser a ‘profilaxia da crise’”.293

A ética não deveria ser um aspecto avaliativo das ações humanas, mas

assumir uma atitude preventiva que qualifique responsavelmente toda decisão e toda

ação humana. Uma atitude assim procura cuidar para que a pessoa humana nunca se

torne um meio, mas seja o critério ético fundamental.

“A pessoa humana sempre deve permanecer como objetivo último, deve ser sempre o objetivo e o critério. Dinheiro e capital sempre são um meio, assim como o trabalho também é meio. Também ciência, técnica e indústria são meios que devem ser avaliados e utilizados na medida que servem à pessoa humana e seu desenvolvimento”.294

Hans Küng acredita que a dignidade da pessoa humana funda as bases de

um consenso ético fundamental para o agir humano. Embora não podemos ignorar a

meta pessoal da auto-realização, esta não pode estar desvinculada da responsabilidade

292 Ibid., p. 27. 293 Ibid., p. 38. 294 Ibid., p. 65.

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para com as outras pessoas, a sociedade e a natureza. Superando os costumes

tradicionais, “a pessoa humana deve usar o seu potencial para uma sociedade a mais

humana possível e para um meio ambiente o mais íntegro possível”.295 Nenhuma

pessoa é uma ilha e a sua realização não se dá isoladamente, mas nos enriquecedores

relacionamentos que estabelece, para os quais tem necessidade de boas orientações.

“As pessoas têm, em geral, o desejo insuperável de orientar-se por algo, de poder apoiar-se em algo. Em um mundo tecnológico tão complexo, e nos acertos e desacertos de sua vida privada, querem ter um ponto firme, seguir alguma linha mestra, ter padrões, ter um objetivo. Em resumo, as pessoas sentem a necessidade de ter orientações éticas fundamentais”.296

Dessa forma, cabe à sociedade fomentar um mínimo de valores, normas e

comportamentos comuns a todas as pessoas, que servem de luz para iluminar os

passos na direção certa. Sem esse consenso fundamental não é possível a existência

de uma comunhão maior nem uma convivência humana digna.297 Nesse sentido,

diante da diversidade humana, abertura e diálogo são imprescindíveis para se

concretizar esse consenso. Não são mais leis, deveres e proibições que tornarão as

pessoas mais humanas.

“Uma coisa é certa: não se pode melhorar a pessoa humana com um número cada vez maior de leis e preceitos. Também a psicologia e a sociologia não conseguem realizar isso. Tanto nas coisas grandes quanto nas pequenas estamos sempre confrontados com a mesma situação: saber de conhecimento não é a mesma coisa que saber de sentido, regulamentações não são orientações e leis ainda não são costumes. Também o direito necessita de um fundamento moral! A aceitação ética das leis é o pressuposto de qualquer cultura política”.298

É perceptível que, quanto mais os Estados criam leis, menos as pessoas se

aplicam em cumpri-las e mais se esforçam para driblá-las. A saturação de leis em

nossas sociedades revela que as pessoas não sabem se orientar por si mesmas e

necessitam de delimitações, proibições e deveres. No entanto, parece que assumimos

uma cultura da desobediência e do desrespeito à lei. Faz sentido o antigo ditado

295 Ibid., p. 64. 296 Ibid., p. 60. 297 Ibid., p. 59. 298 Ibid., p. 68.

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romano, citado por Hans Küng: “Quid leges sine moribus” - “Para que leis sem

costumes?”.299 Segundo o autor, as leis não solucionam os conflitos de nosso tempo.

“A exigência por maior controle, por mais policiais, por mais presídios e leis mais severas não pode ser a solução acertada para os problemas difíceis de nossos tempos. (...) Todos os Estados do mundo têm, com certeza, uma ordem econômica e jurídica. Mas em nenhum Estado do mundo ela funcionará sem um consenso ético, sem uma ética dos cidadãos, do qual vive o Estado de direito democrático”.300

Claro está que não se edifica uma sociedade mais humana e responsável

com intermináveis pacotes de leis, mas com uma cultura do respeito e da valorização

humana. Uma nova ordem, nesse sentido, não vem pela lei, mas por uma ética

mundial que interliga a todos, tornando-os responsáveis. E se a ética deve funcionar

para o bem de todos, ela deve ser indivisível. Segundo Küng, “o mundo não dividido

necessita mais e mais de uma ética não-dividida”.301 De que adiantam proibições

eticamente fundamentadas em um determinado país se em outro país elas podem ser

burladas? A humanidade pós-moderna necessita de valores, objetivos, ideais e visões

comuns. Enquanto cultivarmos éticas e interesses diferentes, um consenso ético

mundial será um sonho inalcançável.

Este sonho se torna mais palpável na medida em que se busca refletir a

partir de questionamentos que brotam da preocupante realidade na qual estamos

inseridos: “Sob quais pressupostos a civilização humana pode sobreviver no Terceiro

Milênio?” ou “que princípios fundamentais as forças dirigentes da política, da

economia, da ciência e das religiões devem seguir?”302 A resposta está nas mãos

humanas. Hans Küng lembra que é o ser humano o artífice da sociedade que aí está:

“não é o computador, mas é a pessoa humana que salvará as outras pessoas”.303 É a

pessoa humana que necessita estar imbuída de novas convicções e posturas, de nobres

princípios e valores, assumindo sua responsabilidade planetária. Esse deve ser o

fundamento de uma ética mundial.

299 KÜNG, H., p. 69. 300 Ibid., p. 69. 301 Ibid. 302 Ibid., p. 64. 303 Ibid., p. 66.

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2.2.2. Ética de responsabilidade

Nas circunstâncias atuais, ao se pensar numa ética mundial, é necessário

pensá-la em termos de responsabilidade. A proposta de Hans Küng tem um caráter de

urgência, tendo em vista o compromisso humano diante das constantes ameaças que

lhe sobrevêm, conseqüência de seu próprio agir. Sua preocupação alcança as mais

distintas formas de manifestações vitais, desde a fome humana à preservação de

espécies animais e vegetais em extinção. Tudo passa pelo viés da responsabilidade

humana. Os dados apontados no início deste capítulo deixam evidente que temos

agido de maneira irresponsável. Novos valores, novas normas éticas e novo

comportamento humano, com um mínimo de consenso entre pessoas, povos, culturas,

religiões e raças, só serão possíveis na medida em que o ser humano assumir a

responsabilidade que, fundamentalmente, lhe cabe, como sujeito e agente principal

das inovações e transformações a que está submetida toda vida, em suas incontáveis

manifestações.

“Exigir uma responsabilidade global significa primeiramente pedir o contrário daquilo que constitui uma mera ética de sucessos. É o contrário de uma ação, para a qual todos os métodos são válidos e para a qual é bom aquilo que funciona, que dá lucro, poder e prazer. Mas justamente isso pode conduzir a um puro libertinismo e a um maquiavelismo. Tal ética não terá futuro”.304

Uma ética de sucessos, onde os fins justificam os meios, se revelou

completamente incapaz de vislumbrar caminhos de realização ao ser humano. O

desgaste das grandes ideologias modernas do progresso sem limites produziu frutos

amargos e conseqüências desumanas por toda parte. A exagerada fé na razão, bem

como a consciência de liberdade, imbuídas dessa simplista ética de sucessos são

geradoras dessa desestabilização social que hoje ameaça seriamente a harmonia e a

sobrevivência planetária. É um caminho de autodestruição. Por sua vez, uma ética de

responsabilização assume um caminho diferente e aponta para o horizonte da vida e

da realização humana integral. Segundo Hans Küng, muitas vezes também se buscou

304 Ibid., p. 61.

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uma ética de mentalidade.305 Uma ética assim, no entanto, também não serve para

nosso tempo. Por ignorar a complexidade da situação histórica e das estruturas

sociais, bem como o jogo de forças existentes aí, uma tal ética é a-histórica e a-

política, podendo até, por motivos de mentalidade, justificar o terrorismo.306 Para o

autor, uma ética de mentalidade em si não é negativa, mas precisa estar em sintonia

com uma ética de responsabilidade, pois se complementam.

“Sem uma ética de mentalidade, a ética de responsabilidade se transformaria numa ética de sucesso livre de qualquer mentalidade, para a qual, em vista dos objetivos, todos os meios seriam lícitos. Sem uma ética de responsabilidade, a ética de mentalidade ficaria reduzida à manutenção de um sentido interior de autojustiça”.307

Integradas, a ética de mentalidade e a ética de responsabilidade podem

edificar um indivíduo autenticamente humano, que age mediante o discernimento,

levando em conta princípios nobres, e precavendo-se de conseqüências desastrosas.

Nesse sentido, a preocupação ética se justifica na busca da realização plena da pessoa

humana, na constituição do “homem novo”, nas quatro relações básicas: com Deus,

com o cosmos, com o outro e consigo mesmo.308 Assim, o humano integrado assume

ética e responsavelmente suas relações em vista de sua humanização, sem se

descuidar do mundo à sua volta.

Movido por uma ética de responsabilidade, o ser humano se pergunta

sempre pelas conseqüências previsíveis de seu agir e assume a responsabilidade por

isso. Em relação ao meio ambiente, é urgente uma maior responsabilização humana.

Para isso, é fundamental abrir mão de uma lógica dominadora, agressiva e

irresponsável, em vista de um cuidado maior com a “casa comum” na qual todos

habitamos. A seguir, faremos uma abordagem do “princípio responsabilidade”,

proposto por Hans Jonas309, com quem Hans Küng sintoniza seu pensamento quando

305 Segundo Hans Küng, seria uma ética orientada por valores genéricos como a justiça, o amor, a verdade. Uma ética assim busca somente a pura motivação interna da pessoa, sem se perguntar pelas conseqüências de uma decisão ou ação, sem se preocupar com a situação concreta, suas exigências e implicações. KÜNG, H., p. 61. 306 Ibid., p. 62. 307 Ibid. 308 GARCIA RUBIO, A., Elementos de Antropologia Teológica, p. 107 et. seq. 309 O filósofo alemão Hans Jonas (1903-1993) foi aluno de Heidegger na Universidade de Freiburg na década de 1920. De origem judaica, deixou a Alemanha em 1934, pouco depois da ascensão do

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nos aponta a urgência de uma ética responsável para a garantia da sobrevivência

humana e a preservação da vida.

No trabalho de Jonas encontramos uma preciosa contribuição para a

viabilidade do projeto de ética mundial, sustentado por Küng. Diante da crise

energética, do esgotamento da natureza, da expansão demográfica, e de tantas outras

ameaças, o auto-restringimento310 aparece como expressão de uma nova ética, que

respeita a natureza e se compromete com a sobrevivência das pessoas no futuro.

O clamor da natureza exige uma “ética do cuidado” 311 que suscite no

homem uma atitude protetora e amorosa. Essa nova atitude, no entanto, supõe uma

nova aliança das pessoas com a natureza. E não apenas das pessoas, mas também das

mais diversas instituições e organizações que, naturalmente, não podem estar livres

de responsabilidade ética. Nem o pensamento e o agir econômicos estão livres da

observância de valores e princípios éticos. É ultrapassada a idéia de que uma empresa

tem como tarefa exclusiva maximizar lucros, e que aí estaria sua única contribuição

para o bem da sociedade. Todo empreendimento econômico deve ter, também, uma

responsabilidade social, para além do lucro. A harmonia entre ética e economia,

segundo Hans Küng, traz muito mais benefícios do que prejuízos.

“Quem age eticamente nem por isso age de forma não econômica, mas reage profilaticamente em relação à crise. Muitas empresas tiveram de sofrer grandes perdas antes de descobrir que a empresa com maior sucesso não é aquela que não se preocupa com as implicações ecológicas, políticas e éticas de seus produtos. Maior sucesso tem aquela que, mesmo temporariamente tendo que arcar com custos mais elevados, preocupa-se com essas implicações e procura, de saída, evitar multas ou sanções legais”.312

Embora não seja negativo o fato de que grande parte das empresas busca

agregar certos valores e princípios ético-morais em seus produtos e serviços

estritamente porque essa seja uma atitude que compensa financeiramente, é

importante reconhecer na ética da responsabilidade uma motivação que ultrapassa o

nazismo ao poder. Viveu na Inglaterra e nos Estados Unidos e escreveu sua obra mais importante em 1979: Das Prinzip Verantwortung. Versuch einer Ethic für die Technologische Zivilisation, Frankfurt am Main, Insel Verlag, 1979. 310 KÜNG, H. op. cit. p. 63. 311 BOFF, L. Saber cuidar. 312 KÜNG, H., op. cit. p. 67.

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interesse particular. Submetido a legislações e imperativos categóricos, o agir ético

responsável perderia seu verdadeiro sentido e, como vimos no início deste trabalho,

estaríamos voltando à era primitiva da moral. Superados os dois sistemas sociais

antagônicos (comunismo e capitalismo), como já vimos, deve-se pensar para além de

uma economia planificada e uma economia capitalista de mercado, buscando uma

economia de mercado regulada, social e ecológica, 313 onde haja equilíbrio entre os

interesses do capital e os interesses sociais e ecológicos.

Com o princípio responsabilidade, Hans Jonas trata de um tema central

para a sobrevivência física e espiritual da humanidade: a busca de uma ética adequada

à civilização tecnológica, e que traz a marca da responsabilidade humana diante do

mundo que aí está. O grande equívoco da ética tradicional, segundo Jonas, está em

isolar o homem do resto da natureza, imaginando-o desvinculado das outras formas

de vida.314 Para ele, uma ética que não seja capaz de olhar para além dos limites

humanos perde sua validade. Além disso, a técnica moderna introduziu ações de

magnitudes tão diferentes, com objetivos e conseqüências tão imprevisíveis, que os

marcos da ética tradicional já não mais podem contê-los. Jonas trabalha a partir de um

novo imperativo ético: “age de tal maneira que os efeitos de tua ação sejam

compatíveis com a permanência de uma vida humana autêntica”.315 Aponta como

arquétipo primordial dessa ética a relação entre pais e filhos, sendo que aqueles têm

uma responsabilidade vital sobre estes. Mais do que nunca, é tempo de o ser humano

assumir uma atitude de respeito e cuidado em relação a toda espécie de vida existente.

“A responsabilidade é princípio primordial e norteador deste momento da história de utopias caídas e novos paradigmas levantados, no qual o ser humano busca desesperadamente categorias que o ajudem a continuar vivendo uma vida digna e que continue merecendo o nome de humana”.316

Se, por um lado, a vida humana deve estar no centro de toda preocupação

ética, por outro lado não se pode esquecer sua estreita relação com a natureza, com

todo o cosmos. Na ótica de Hans Jonas, nossa civilização e a violação da natureza

313 Ibid., p. 36. 314 JONAS, H., O Princípio Responsabilidade, p. 17. 315 Ibid., p. 18. 316 Ibid., p. 19.

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caminham de mãos dadas, e isso é fruto da falsa idéia de invulnerabilidade do todo,

imutabilidade da natureza como ordem cósmica.317 Não se pode mais pensar e agir

como se a natureza e seus recursos fossem imutáveis, eternos e ilimitados. O

opressivo poder humano levou a uma irrupção violenta e violentadora na ordem

cósmica, com a invasão atrevida dos diferentes domínios da natureza.318 Essa

concepção tradicional fundamentava-se em parâmetros éticos vigentes preocupados

unicamente com o aqui e agora, sem estender seu olhar ao futuro e, naturalmente, sem

preocupar-se com as possíveis conseqüências de um agir humano sem limites.

“Toda ética tradicional é antropocêntrica, isto é, diz respeito ao relacionamento direto de homem com homem, inclusive o de cada homem consigo mesmo. Todo o trato com o mundo extra-humano é eticamente neutro. O comportamento correto possuía seus critérios imediatos e sua consecução quase imediata. O longo trajeto das conseqüências ficava ao critério do acaso, do destino ou da providência”.319

A técnica moderna, no entanto, introduziu ações novas de tal grandeza que

a moldura da ética antiga não mais consegue enquadrá-las. À primeira vista, segundo

Jonas, vislumbra-se a crítica vulnerabilidade da natureza provocada pela intervenção

técnica do homem.320 Já são sentidas as ameaças naturais, conseqüências do próprio

agir humano irresponsável. A atual preocupação humana com a natureza se origina,

então, menos de um homem conscientizado e mais de um homem que se sente

ameaçado. No fundo é uma preocupação consigo mesmo, o que é insuficiente para

fundamentar uma nova teoria ética. Enquanto o destino do homem for a principal

razão que torna o interesse na manutenção da natureza um interesse moral, se mantém

a orientação antropocêntrica de toda ética clássica.321 Segundo Jonas, historicamente

nenhuma ética levou em consideração a condição global da vida humana e o futuro

distante. E se hoje esses aspectos estão em jogo, exige-se uma nova concepção de

direitos e deveres. E para isso “nenhuma ética e metafísica antiga pode sequer

oferecer os princípios”.322 Claro está para esse autor que uma ética da

317 Ibid., p. 33. 318 Ibid., p. 29. 319 Ibid., p. 35. 320 Ibid., p. 39. 321 Ibid., p. 40. 322 Ibid., p. 41.

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responsabilidade precisa levar em conta mais do que o interesse humano. A

compreensão de que a natureza tenha direitos em si mesma sugere alterações

substanciais nos fundamentos éticos.

Segundo Hans Jonas, na busca por uma ética da responsabilidade tem

grande eficiência a “heurística do medo”.323 Segundo esse método de aprendizado,

enxergamos o valor quando o contrário nos afeta. O que nós não queremos, sabemos

muito antes do que aquilo que queremos. Nesse sentido, para uma ética da

responsabilidade, seria mais importante consultar o nosso medo antes do nosso

desejo, 324 principalmente em um tempo em que as descobertas humanas facilmente

ganham “vida própria”, com autonomia e autopropulsão. Segundo Jonas, “temos

liberdade para dar o primeiro passo, mas nos tornamos escravos do segundo e de

todos os passos subseqüentes”.325 Por isso, é de fundamental importância agir

responsavelmente, precavendo-se de indesejáveis conseqüências desse agir.

“No tempo de que ainda dispomos, as correções tornam-se cada vez mais difíceis, e a liberdade para realizá-las é cada vez menor. Essas circunstâncias reforçam a obrigação de vigiar os primeiros passos, concedendo primazia às possibilidades de desastre seriamente fundamentadas em relação às esperanças”.326

Os primeiros passos significam os experimentos, as “apostas” da

humanidade, que podem ter sucesso ou não. Hans Jonas entende que o princípio ético

fundamental é o de que a existência do homem nunca pode ser transformada em

apostas do agir. Assumindo a prudência como valor fundamental, em qualquer

processo decisório, a ética de responsabilidade dará preferência aos prognósticos de

desastre em face dos prognósticos de felicidade.327 Jonas acredita, também, que o

lado emocional do indivíduo deva entrar no jogo, na busca por uma nova ética. É o

323 Segundo a “heurística do medo”, não saberíamos sobre a sacralidade da vida caso não houvesse assassinatos; não saberíamos o valor da verdade se não houvesse a mentira, nem o da liberdade sem a sua ausência. Precisamos da ameaça à imagem humana para, com o pavor gerado, afirmarmos uma imagem humana autêntica. Enquanto o perigo for desconhecido, não se saberá o que há para se proteger e por que devemos fazê-lo. Por isso, contrariando toda lógica e método, o saber se origina daquilo contra o que devemos nos proteger. Ibid., p. 70. 324 Ibid., p. 71. 325 Ibid., p. 78. 326 Ibid., p. 79. 327 Ibid., p. 86.

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que ele chama de “sentimento de responsabilidade”. Segundo ele, a ética tem um

aspecto objetivo (razão) e outro subjetivo (emoção), que se completam mutuamente.

Sem levar em conta o apelo emotivo, mesmo a demonstração mais rigorosa e

racionalmente impecável seria impotente para produzir uma força motivadora no

indivíduo.328 A histórica fragilidade ética se deve ao fato de se ter absolutizado seu

aspecto objetivo. A proposta de uma ética da responsabilidade só é viável se for

atingida também a dimensão afetiva da pessoa, como nos explica Hans Jonas.

“Em primeiro lugar está o dever ser do objeto; em segundo, o dever agir do sujeito chamado a cuidar do objeto. A reivindicação do objeto, de um lado, na insegurança da sua existência, e a consciência do poder, de outro, culpada da sua causalidade, unem-se no sentimento de responsabilidade afirmativa do eu ativo, que se encontra sempre intervindo no Ser das coisas. (...) É a esse tipo de responsabilidade e de sentimento de responsabilidade – e não àquela responsabilidade formal e vazia de cada ator por seu ato – que temos em vista quando falamos na necessidade de ter hoje uma ética da responsabilidade futura”.329

Mais do que uma simples obrigação, a responsabilidade carrega uma

identificação emocional, um sentimento de solidariedade. Para Jonas, o fenômeno do

sentimento torna o coração receptível ao dever, não lhe questionando a razão e

animando a responsabilidade assumida. “O coração tem suas razões que a razão

desconhece” (Pascal).330 Movido pelo coração, a responsabilidade aparece ao

indivíduo como um dever. Segundo o autor, o conceito de responsabilidade implica

primeiramente um “dever ser” de algo e, como resposta, um “dever fazer” de alguém.

A objetividade precisa brotar do direito intrínseco do objeto.331 Confirma-se a idéia

de que uma ética da responsabilidade não pode ser fomentada única e exclusivamente

a partir da preocupação antropológica. Dessa forma, o futuro da humanidade não

deve ser uma preocupação humana por causa do homem de hoje, mas por causa do

homem de amanhã que, embora não exista, “deve” existir e reivindica esse direito.

“O futuro da humanidade é o primeiro dever do comportamento coletivo humano na idade da civilização técnica, que se tornou ‘todo poderosa’ no que tange ao

328 Ibid., p. 156-157. 329 Ibid., p. 167 et. seq. 330 Ibid., p. 183. 331 Ibid., p. 219.

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seu potencial de destruição. Esse futuro da humanidade inclui, obviamente, o futuro da natureza. Mas, mesmo independentemente desse fato, este último constitui uma responsabilidade metafísica, na medida em que o homem se tornou perigoso não só para si, mas para toda a biosfera”.332

Todo reducionismo antropocêntrico é ofensivo à dignidade da natureza e

se configura como uma desumanização do próprio homem. Não deve haver “disputa”

entre natureza humana e natureza animal ou vegetal, entre a vida humana e as demais

espécies de vida. Hans Jonas reconhece o precioso valor da natureza e de todo o

sistema vital, mas admite que a natureza humana goza de uma dignidade superior.

“Quando a luta pela existência freqüentemente impõe a escolha entre o homem e a

natureza, o homem, de fato, vem em primeiro lugar”.333 No entanto, a prioridade

humana não exclui o dever em relação à natureza, pois esta tem direta relação com a

qualidade da vida humana. Conduzido por suas ambiciosas “utopias”, o homem

extrapolou seus limites e ignorou seus deveres para com a natureza.

“Tais limites só se tornam perceptíveis quando os efeitos nocivos das nossas intervenções começam a afetar os ganhos e ameaçam superá-los. Os limites são ultrapassados, talvez sem volta atrás, quando esses esforços unilaterais arrastam o sistema inteiro, dotado de um equilíbrio múltiplo e delicado, para uma catástrofe do ponto de vista das finalidades humanas. Tal catástrofe é resultado direto das agressões humanas à natureza. Isso impõe um amortecedor até então desconhecido à crença no progresso”.334

Dentre os principais problemas que já causam preocupação à sociedade

humana, Jonas cita a questão da alimentação, das matérias-primas e das fontes

energéticas. São questões que, segundo o autor, estão longe de encontrarem uma

solução tranqüilizadora, pois certamente ninguém estaria disposto a reduzir seu nível

de vida em vista dos demais. E, na lógica atual, elevar o nível de vida de toda a

população humana implicaria uma agressão mais violenta ainda da natureza. Diante

disso, uma ética da responsabilidade supõe uma radical mudança de comportamento

por parte da pessoa humana. É fundamentalmente importante que o sujeito humano

assuma essa responsabilidade, pois dessa atitude depende a sobrevivência das futuras

gerações, bem como de toda espécie de vida na pluralidade de suas manifestações. 332 Ibid., p. 229. 333 Ibid. 334 Ibid., p. 301.

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2.2.3. Ética para a paz e a sobrevivência humana

A partir da proposição de Hans Jonas, acerca de uma ética de

responsabilidade, nos fica clara a possibilidade de se caminhar na direção de um

mundo melhor. Para isso, no entanto, é fundamentalmente necessária uma ética que

ajude o ser humano a assumir seu compromisso diante do mundo que aí está,

preocupando-se com a sobrevivência sua e das futuras gerações. Nessa preocupação é

preciso incluir o flagrante clamor da própria natureza e das mais diversas

manifestações da vida. Sob os cuidados do ser humano está a preciosidade da vida.

Cheio de convicção, Hans Küng afirma que “não haverá sobrevivência sem uma ética

mundial”.335 A preservação da vida, humana ou não-humana, está condicionada ao

agir humano. A proposta ética de Küng pretende orientar o agir humano em nível

mundial, para além de povos, raças ou nações. Só um mundo de paz pode viabilizar

uma sobrevivência humana digna. A paz, no entanto, se constrói a partir do diálogo e

da junção de forças por parte de todos, e aí aparece a força das religiões.

A paz é uma das maiores exigências da humanidade nestes tempos pós-

modernos. Um mundo de paz depende, antes de tudo, da superação das injustiças,

respeitando-se os direitos de cada pessoa humana.

“Para isso, devem ser dados alguns passos: superar as diferenças que dividem pobres e ricos, poderosos e pessoas sem poder; deixar para trás as estruturas que provocam fome, privações e morte; superar o desemprego de milhões de pessoas; modificar um mundo onde os direitos humanos são violados e as pessoas são torturadas e isoladas; superar uma forma de vida em que os valores morais e éticos são burlados e até desprezados”.336

A paz será apenas um sonho se as injustiças e desigualdades

permanecerem. A superação destas, no entanto, implica uma nova ordem social, uma

mudança radical no pensar e agir principalmente por parte de quem estipula as regras

que dão mobilidade à vida humano-social. Küng entende que a questão da justiça

ultrapassa os tribunais ou escritórios de advocacia e perpassa a sociedade de cima

para baixo e de um lado para outro, o que exige uma profunda mudança estrutural,

335 KÜNG, H., op. cit. p.07. 336 Ibid., p. 116.

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envolvendo todos os níveis da vida humana e cósmica, e fazendo desabrochar o

compromisso pelo bem comum e pela dignidade de todos os seres vivos.337

Desigualdade, miséria, desemprego, corrupção, e tantas outras mazelas que assolam o

homem pós-moderno, refletem a grandeza do desafio que se impõe nos tempos atuais.

A dignidade da vida humana, sem distinção ou exclusão, deve ser reconhecida e

valorizada, respeitando-se a diversidade e a pluralidade humana.

“Neste Terceiro Milênio devemos achar um caminho que contemple a diversidade de culturas, tradições e povos, a fim de que vivam de forma reconciliada. Para tanto, são necessários alguns procedimentos: devem ser superadas as divisões excludentes, que são promovidas por discriminações racistas, étnicas e culturais; deixar de lado a marginalização de dois terços do mundo; deixar para trás a herança do anti-semitismo e suas trágicas conseqüências em nossas sociedades e em nossas Igrejas”.338

Pluralidade e diversidade não impedem a paz, mas enriquecem a cultura

humana, ao passo que a uniformidade é empobrecedora e, deveras, inviável. Aqui o

desafio está em buscar a reconciliação entre os povos e culturas. Certamente aquilo

que deve unir as nações é mais importante do que aquilo que historicamente as

separou. Ainda no âmbito da diversidade humana, outra exigência que Hans Küng

apresenta é a questão de gênero. É grande o desafio diante da necessidade de

estabelecer relações mais fraternas entre homens e mulheres.

“Superar as divisões entre homens e mulheres na Igreja e na sociedade; deixar de lado a desvalorização e a falta de compreensão para com a contribuição irrenunciável das mulheres; superar os papéis e os estereótipos ideologicamente fixados para homens e mulheres; superar a negação de reconhecer as dádivas dadas às mulheres em prol da vida e para o processo de decisão na Igreja”.339

Foi-se o tempo em que a mulher não era reconhecida em seus dons,

valores e experiências. No respeito mútuo e no empenho conjunto, mulheres e

homens devem ser protagonistas de um mundo de paz. Embora muitos passos já

tenham sido dados na busca de uma harmonia entre homem e mulher, há muito para

337 SELLA, A., Ética da Justiça, p. 6. 338 KÜNG, H., op. cit. p. 117. 339 Ibid., p. 117.

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se caminhar ainda, principalmente no seio de algumas Igrejas e religiões, onde a

função e a atuação feminina é bastante restrita.

A guerra, por sua vez, é a mais evidente ausência de paz. Como desafio às

sociedades pós-modernas, Hans Küng aponta a necessidade de superar pacificamente

seus conflitos. Persistir nos conflitos ou buscar superá-los com mais violência

distancia mais ainda o sonho da paz e da harmonia entre os povos, culturas e raças.340

É grande o desafio, pois a lógica da guerra alimenta monstruosos interesses

financeiros. Outro problema oriundo da volúpia mercantil do homem é a exploração

da natureza. Historicamente visto como fonte inesgotável de recursos, o meio

ambiente já demonstra sinais claros de esgotamento e, como já vimos, traz graves

conseqüências ao sujeito humano. Esse também se constitui num desafio ao homem

pós-moderno, que deve buscar meios que possibilitem a comunhão com todas as

criaturas. Uma comunhão que observe os direitos e a integridade das mesmas.

“Para tanto, devem ser dados estes passos: superar a compreensão de divisão entre as pessoas e o resto da criação; deixar de lado um estilo de vida e um modo de produção que prejudique profundamente a natureza; superar o individualismo que danifica a integridade da criação em prol de interesses privados”.341

Assim se constrói uma ordem “amiga da natureza”, onde o ser humano se

reconhece como parte do todo. Essa atitude se torna salvadora na medida em que

buscar cuidar daquilo que nos garante a própria vida.

Por fim, Hans Küng apresenta como uma exigência pós-moderna a busca

de um ecumenismo mais autêntico por parte das religiões e Igrejas. Não basta a

tolerância, é necessário construir pontes para uma comunhão, mediante o perdão e o

respeito mútuo. Mas isso só é possível deixando de lado as lembranças paralisantes

do passado e superando as divisões que ainda persistem nas Igrejas.342 As religiões,

que historicamente são portadoras e dinamizadoras de princípios e valores ético-

morais, têm importância fundamental na busca de uma ética mundial. Consciente da

responsabilidade para com seu próprio futuro, o homem pós-moderno sente o desafio

340 Ibid., p. 118. 341 Ibid. 342 Ibid., p. 119.

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de empreender um caminho novo que seja a garantia de que a vida não deixará de

existir.

2.3. Um caminho ecumênico

Ao longo da história da humanidade as religiões sempre tiveram um papel

de significativa importância em questões referentes à moral comportamental das

pessoas. Como vimos anteriormente, por muitos séculos a ética estruturou-se sobre a

base religiosa e, embora a sociedade moderna tenha levantado a bandeira da

“libertação” ética em relação à religião, não há como negar que ainda hoje perduram

sinais remanescentes de uma época em que ética e religião eram inseparáveis. Tal

situação é perfeitamente justificável, visto que, ao longo dos milênios, as religiões

legitimaram, motivaram, sancionaram sistemas orientadores, fundamentando, assim,

princípios e valores morais determinantes.343 Mesmo que em alguns casos os sistemas

morais religiosos sejam frágeis, é evidente a força das religiões na sua propagação.

A partir da proposta de Hans Küng, esse “caminho novo” emoldurado por

novos parâmetros ético-morais deve ser um caminho marcantemente ecumênico. As

grandes religiões são detentoras de um grande poder de orientação moral para seus

milhões de seguidores. Certamente seria de grande valia se esse poder fosse usado a

serviço do respeito mútuo e do diálogo inter-religioso. Como grande parte dos

conflitos existentes na sociedade humana têm caráter religioso, a paz religiosa é

condição para a paz mundial. “Não haverá paz no mundo sem paz entre as

religiões”.344

Mais do que o diálogo entre si, as religiões são desafiadas a dialogar com

todas as forças sociais, construindo uma “coalizão de crentes e não-crentes”.345 O

ponto de partida para uma pacífica convivência passa pela capacidade de abertura ao

diferente. E embora a sociedade comporte diferentes credos ou até mesmo a ausência

deles, o critério fundamental para todo agir humano deve ser o próprio ser humano e

343 Ibid., p. 70. 344 Ibid., p. 07. 345 Ibid., p. 70.

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a dignidade da vida. A viabilidade de um caminho verdadeiramente ecumênico se

confirma quando se leva mais em conta o que nos une do que aquilo que nos separa.

2.3.1. A força das religiões

Como fator de propagação, e garantia de incondicionalidade de sua

proposta ética mundial, Hans Küng se apóia na força das religiões. Em questão de

valores éticos e princípios orientadores para a vida das pessoas, as religiões podem

prestar um belo serviço à humanidade. Apesar de toda ambigüidade das religiões, seu

propósito original é sempre o de motivar pessoas para normas, valores, ideais e

objetivos.346 Constituída de pessoas humanas, as religiões naturalmente estão sujeitas

às transgressões e condicionamentos próprios da realidade humana. Não há como

negar, no entanto, que, originalmente, as grandes religiões têm um instrumental de

validade inquestionável, que procura alimentar nos seus adeptos orientações e valores

positivos, em vista de um bem comum. Sem defender um conceito idealista de

religião, Hans Küng reconhece que o tempo já está maduro para que as religiões

assumam o desafio de fundamentar em suas ações as bases para uma ética mundial

capaz de edificar um mundo de paz.

“No presente tempo mundial cabe às religiões mundiais uma responsabilidade especial: a paz no mundo. No futuro, a credibilidade de todas as religiões, também das pequenas, vai depender da sua capacidade de acentuar mais aquilo que as une e menos aquilo que as divide. A humanidade pode cada vez menos se dar ao luxo de ver as religiões incentivando guerras em vez de promover a paz, praticando fanatismo em vez de fomentar a reconciliação, comportando-se com superioridade em vez de incentivar o diálogo”.347

Não há dúvidas de que as religiões possuem um grande poder de

orientação junto a seus adeptos e seguidores. No entanto, essa grande influência nem

sempre é aproveitada positivamente. Diante da necessidade, este é um tempo propício

para que as religiões assumam sua insubstituível responsabilidade diante do mundo

no qual estão inseridas e sejam elas as primeiras propagadoras da paz. Antes de levar

a cabo essa nobre missão universal, as religiões deverão buscar a superação dos

346 Ibid., p. 09. 347 Ibid., p. 10.

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desafios particulares, internamente e proximamente. A paz mundial é missão conjunta

e só poderá se concretizar quando houver empenho coletivo. O meio religioso deverá

fomentar, assim, a sociedade como um todo, envolvendo o maior número possível de

instituições e organizações humanas, principalmente representantes da política e do

mundo econômico e financeiro.348

Por mais bem intencionada que seja, sem uma coalizão social essa

finalidade poderá cair no vazio. Hans Küng reconhece que, embora as religiões

tenham uma missão tão nobre, elas não deixam de ser instituições humanas, com suas

qualidades e fragilidades.

“Assim como todo fenômeno humano é ambivalente, ninguém pode negar que as religiões realizaram a sua função moral de forma ambivalente. Somente quem está imbuído de preconceitos deixará de reconhecer que as grandes religiões contribuíram grandemente para o desenvolvimento espiritual e normativo dos povos. Mas também não se poderá negar que justamente essas religiões muitas vezes frearam e até impediram tal desenvolvimento”.349

Embora tenham uma fundamentação metafísica, as religiões são

fenômenos humanos, sujeitas aos condicionamentos e fragilidades próprias do sujeito

humano. Se por um lado possuem aspectos positivos, por outro têm erros e

escândalos, geralmente mais reprimidos pelos seus adeptos e seguidores. As grandes

religiões protagonizaram, e não só no passado, situações de caráter profundamente

antiético e desumanizante.350 Seus erros, no entanto, por mais escandalosos que

sejam, não são capazes de destruir a preciosa riqueza que as religiões têm para

colocar à disposição da humanidade. Ela pode, melhor do que a ciência, a filosofia, a

democracia, a economia, oferecer as bases fundamentais para uma proposta ética

mundial. Nela podemos encontrar os padrões que nos orientarão e, se necessário,

apontarão nossos limites.351

Diante de tantas outras organizações humano-sociais, a religião desponta

como a mais capacitada para dar embasamento a uma ética que tenha validade

348 Ibid. 349 Ibid., p. 70. 350 Vide os grandes exemplos ao longo da história, com “guerras santas”, dogmatismos e condenações. Não são incomuns os exemplos, como a mulher morta a pedradas na Somália, em 27 de outubro de 2008. Fonte: O Globo Online: http://g1.globo.com/Noticias/Mundo/0,,MUL839627-5602,00.html 351 KÜNG, H., op. cit. p. 76.

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universal e seja reconhecida por todos. Mesmo reconhecendo a importante

contribuição da ciência, para Hans Küng “os males produzidos pela ciência e pela

tecnologia não podem ser superados com mais ciência e mais tecnologia”.352 O

pensamento científico e tecnológico moderno evidenciou-se, desde o início, como

incapaz de fundamentar padrões éticos e valores universais. Os desbravadores passos

dados pela ciência, no auge da modernidade, não foram acompanhados por uma

preocupação ética, o que resultou em graves problemas para a humanidade, como

vimos anteriormente. Seria improvável, após toda crítica suscitada em relação à

ciência, buscar nela fundamentação para uma nova ética mundial.

A filosofia, por sua vez, embora nas últimas décadas tenha se preocupado

mais com a prática e com a fundamentação racional de uma ética válida para todos,

também teria dificuldades para fundamentar uma ética universal.353 Muitos filósofos

preferem deixar de lado normas universais em vista de um horizonte mais estreito, se

restringindo às realidades dos diferentes mundos e formas de vida. Estes, segundo

Hans Küng, “fora um pretenso ‘compromisso’ transcendental, não conseguem

demonstrar um comprometimento plausível e incondicional”.354 Para ele, os modelos

filosóficos falham no que diz respeito à experiência concreta da vida, em casos em

que se exige das pessoas uma ação que não serve ao seu próprio interesse. Ali onde se

exige um “sacrifício” a filosofia chega ao seu fim, 355 o que, segundo Küng, não

acontece com a religião.

Na modernidade, por ser considerada em oposição às ciências naturais, à

tecnologia e à democracia, a religião foi sendo mais e mais ignorada e passou a ser

vista como “uma grandeza em extinção”.356 Hans Küng rechaça a idéia de que, diante

das crises por que passaram e ainda passam as religiões institucionalizadas, estamos

acompanhando o surgimento de uma “época pós-religiosa”.

“É um pensamento fruto de uma época em que se falava de religião como sendo projeção ou alienação (Feuerbach), em que a religião era identificada como

352 Ibid., p. 77. 353 Ibid., p. 78. 354 Ibid., p. 80. 355 Ibid., p. 81. 356 Ibid., p. 82.

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repressão ou ópio do povo (Marx), ou vista como regressão e imaturidade psíquica (Freud)”.357

Segundo o autor, as projeções modernas, que apontavam para o fim da

religião, revelaram-se enganosas e não se pode, por negligência, ignorância ou

ressentimento, excluir da análise esse fenômeno geral da humanidade. Hoje, uma

análise de conjuntura que exclua a dimensão religiosa é deficiente.358 Nem o

humanismo ateísta de Feuerbach, nem o socialismo ateísta de Marx, nem tampouco a

ciência ateísta de Freud e Russel conseguiram substituir a religião. E embora vivamos

numa sociedade secular, estamos longe de uma era pós-religiosa: “uma sociedade

secular de modo algum é a mesma coisa que uma sociedade sem religião”.359 A busca

pessoal pela religiosidade não desapareceu, mas revela-se como uma característica

própria da pós-modernidade.

As profundas críticas sofridas pela religião nos últimos séculos não são

sem fundamentação, visto que muitas práticas desumanas tinham motivação religiosa.

No entanto, quando bem orientada, a religião certamente serve para a libertação das

pessoas, uma libertação não simplesmente psíquico-terapêutica, o que também pode

acontecer, mas principalmente na dimensão político-social. Segundo Hans Küng, em

todos os lugares evidenciou-se que a religião pode social e psicologicamente

contribuir para promover a liberdade, a observância dos direitos humanos e também

contribuir para o ressurgimento da democracia.360

Convivendo com a ambigüidade, ao longo da história as grandes religiões

protagonizaram “cenas indecentes”, isto é, contrárias à essência religiosa. No entanto,

ao longo dessa mesma história, as religiões foram protagonistas de admiráveis

iniciativas libertadoras junto à humanidade, nos mais diversos recantos do mundo.

Não se pode negar, segundo o autor, que as religiões correm o risco de serem

autoritárias, tirânicas e reacionárias (como muitas já foram), produzindo medo,

cegueira espiritual, intolerância, injustiça, frustração. Podem inclusive legitimar

imoralidades, injustiças sociais e guerras. No entanto, as religiões também podem

357 Ibid. 358 Ibid., p. 83. 359 Ibid., p. 85. 360 Ibid., p. 86.

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promover uma renovação espiritual nas pessoas, com atitudes libertadoras, fraternas e

solidárias. Podem dinamizar a tolerância, a caridade, o engajamento social, a

promoção da justiça e até a paz mundial.361 Enfim, a força das religiões pode

contribuir significativamente para uma transformação nos valores e princípios

comportamentais da humanidade, isto é, podem fundamentar uma ética mundial.

Mas as religiões não podem caminhar sozinhas. Por isso, se propõe um

caminho de coalizão, deixando de lado as diferenças e dinamizando a força

revolucionária de uma ética da não-violência.362 É princípio fundamental desse

projeto ecumênico rejeitar todo e qualquer tipo de violência, por mais necessário que

possa parecer ser. Outro desafio é reconhecer que, nestes tempos pós-modernos, não

se pode apelar a uma autoridade, por mais alta que ela seja, para tirar das pessoas a

autonomia, a liberdade ou o direito de escolha. Além disso, como expressão de uma

realidade tão diversificada, mutável e complexa, as religiões não poderão abrir mão

de métodos científicos para analisar o mais objetivamente possível a sociedade na

qual estão inseridas.

“Uma ética moderna necessita hoje do contato com as ciências naturais e humanas. Ela precisa do contato com a psicologia e a psicoterapia, com a sociologia e a crítica social, com a pesquisa do comportamento, a biologia, a história cultural e a antropologia filosófica. Nesse particular, as religiões, seus líderes e mestres, não deveriam ter receio do contato. Justamente as ciências humanas oferecem uma quantidade cada vez maior de conhecimentos relativamente seguros e também informações que podem orientar a ação. E estas podem ser utilizadas como auxílios de decisão verificáveis, mesmo que não possam substituir a fundamentação última e a normatização da ética humana”.363

Quando propõe uma ética mundial fundamentada na força das religiões,

Hans Küng não sugere que uma pessoa sem religião esteja impossibilitada de levar

uma vida verdadeiramente humana e, neste sentido, verdadeiramente moral. O autor

reconhece, no entanto, que uma coisa a pessoa sem religião não pode realizar se ela

assume para si determinadas normas éticas: “ela não pode fundamentar a

incondicionalidade e a universalidade de obrigações éticas”.364 Segundo ele,

361 Ibid. 362 Ibid., p. 87. 363 Ibid., p. 91. 364 Ibid., p. 94.

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permaneceria incerto o porquê a pessoa deveria, em todo caso e em todo lugar, seguir

determinadas normas, mesmo que fossem contrárias aos seus próprios interesses. Ele

nos esclarece:

“Das condicionalidades finitas da existência humana, das urgências e necessidades humanas não se pode derivar uma validade incondicional e um assim-deve-ser ‘categórico’. Também uma ‘natureza humana’ ou uma ‘idéia humana’ autônoma e abstrata dificilmente pode comprometer pessoas para algo incondicional como instância de fundamentação. Mesmo a ‘obrigação de sobrevivência da humanidade’ dificilmente pode ser demonstrada racionalmente de forma elucidativa”.365

Para Hans Küng está claro que somente algo incondicional pode

comprometer incondicionalmente. Não podemos, hoje, contar mais com um

“imperativo categórico”, congênito a todas as pessoas, de tomar o bem de todas as

pessoas como critério do próprio agir. O categórico da exigência ética, da

incondicionalidade daquilo que se deve fazer não pode ser fundamentado a partir da

pessoa humana, da pessoa multiplamente condicionada. Ele só pode ser

fundamentado a partir de um “incondicional”, a partir de um absoluto, que consegue

transmitir um sentido mais geral e que abarca e permeia a pessoa humana e toda a

natureza humana.366 Independentemente de como é denominada pelas diferentes

religiões, só uma realidade transcendente incondicional pode fundamentar o agir

humano incondicionalmente. Nas religiões proféticas (judaísmo, islamismo e

cristianismo) o único incondicional é Deus.367

Está claro para o autor que as religiões podem fundamentar suas

exigências éticas com uma autoridade bem diferente da simples instância humana,

pois elas falam com uma autoridade absoluta, não expressa somente através de

palavras e conceitos, doutrinas e dogmas, mas também por meio de símbolos e

orações, ritos e festas, de forma racional e emocional.368 Essa autoridade religiosa se

revela em muitos aspectos próprios das religiões. Vejamos:

365 Ibid. 366 Ibid., p. 96. 367 Ibid. 368 Ibid., p. 98.

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* A religião consegue transmitir uma dimensão mais profunda, um horizonte interpretativo mais abrangente diante da dor, da injustiça, da culpa e da falta de sentido. Ela consegue transmitir um sentido de vida último ante a morte: o

sentido de onde vem e para onde vai a existência humana; * A religião consegue garantir os valores mais elevados, as normas mais incondicionais, as motivações mais profundas e os ideais mais elevados: o

sentido (por que) e o objetivo (para que) de nossa responsabilidade; * Através de símbolos, rituais, experiências, objetivos comuns, a religião consegue criar uma pátria de confiança, de fé, de certeza, de fortalecimento do eu, de abrigo e de esperança: uma comunidade e uma pátria espiritual; * A religião pode fundamentar protesto e resistência contra situações de injustiça: isso já é o desejo insaciável e atuante pelo “Totalmente Outro”.

369

Hans Küng distingue, no entanto, uma religião verdadeira (que se refere

àquele uno absoluto) de qualquer semi-religião ou pseudo-religião. Uma falsa

religião, segundo ele, absolutiza ou diviniza algo relativo, seja a ateísta “deusa razão”

ou o “deus progresso” com todos os seus “subdeuses”: o mercado, o capital, a ciência,

a tecnologia.370 Muitos desses falsos “deuses” que assumiram, na modernidade, status

de absolutos, a pós-modernidade já tratou de desmitologizá-los e desendeusá-los. Não

foram capazes, como já vimos, de responder plenamente aos anseios e buscas do

homem pós-moderno. Nesta nova constelação mundial, esses falsos “deuses” não

podem ser substituídos por outros, igualmente relativos, mas sim por uma fé renovada

no Deus verdadeiro.371 E certamente cabe à religião o papel mais importante nessa

desafiadora jornada.

2.3.2. Diálogo e respeito ao diferente: pressupostos para a paz

Hans Küng reconhece na força das religiões uma real possibilidade de

assumir a dianteira na busca por uma ética mundial que venha garantir a

sobrevivência humana. Esse “poder” religioso, no entanto, pode facilmente se tornar

estéril se, antes de se preocuparem com a sociedade humana, as religiões não

buscarem viver em harmonia entre si. Não se pode anunciar aquilo que não se vive.

Para construir um mundo de paz é imprescindível que se viva na paz. Ninguém é

verdadeiramente capaz de assumir e promover a paz se não traz essa paz em si

369 Ibid. 370 Ibid., p. 99. 371 Ibid., p. 99.

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mesmo. O diálogo e o respeito, tão importantes em um mundo cada vez mais

pluralista e multifacetado, são atitudes imprescindíveis para as religiões. O diálogo é,

pois, princípio para o agir comum das religiões e sua ausência pode levar a situações

desastrosas, como foi o caso do Líbano, na década de 80, 372 e como é o caso de

muitas nações ainda hoje.373

Na ausência de diálogo muitas discussões, conflitos, “guerras santas”,

massacres sangrentos e impiedosos foram religiosamente fundamentados. E a lógica é

sempre a mesma: “Se Deus está conosco, com nossa religião, confissão, nação,

partido, então parece lícito fazer qualquer coisa contra o partido adversário”.374 É

perceptível que as religiões têm uma evidente dificuldade em aceitar o diferente, o

que se torna uma barreira para o diálogo e a paz. Mas o desafio extrapola os átrios

religiosos, e o diálogo se torna imprescindível também entre crentes e não-crentes. As

pessoas religiosas devem reconhecer que pessoas não-religiosas, a seu modo, também

se engajam pela dignidade humana e pelos direitos humanos, e também elas podem

defender uma ética mais humana.375

Reconhecemos, e reafirmamos, que as pessoas religiosas têm uma certa

“vantagem”, embora às vezes apenas teórica, na fundamentação incondicional de uma

ética. No entanto, é dever respeitar e reconhecer que os não-crentes também são

responsáveis, e podem colaborar significativamente na promoção dessa ética. Não é a

ausência de uma crença que os isenta da responsabilidade ético-social. A inviolável

autonomia humana376, abrange também a dimensão ética, revelando a necessidade de

372 Hans Küng relata o exemplo do Líbano, onde em abril de 1967 realizaram-se palestras com professores cristãos e muçulmanos, por ocasião do jubileu dos 100 anos da “American University”, o instituto científico mais importante do Oriente Médio, em Beirute. Num ambiente de divisão tão explícita entre o cristianismo e o islamismo, essa parecia uma ótima oportunidade para uma aproximação. Mas, em vez de ser um trabalho em conjunto, o que aconteceu foi um trabalho dividido. Questionando o presidente do referido congresso, sobre a razão de não terem sido realizadas sessões de trabalho conjuntas, a resposta foi: “Cher Professeur, c’est trop tôt!” – “É cedo demais!”. A catástrofe que assolou o Líbano, anos depois, e que teve motivação também religiosa, poderia ter sido evitada, se o diálogo e a paz entre as religiões tivesse acontecido. Ibid., p. 122 et. seq. 373 Também o Estado de Israel e a cidade de Jerusalém poderão achar a paz e a firmeza através de um diálogo religioso e político entre judeus, muçulmanos, israelenses e palestinenses. A paz não será achada através de uma sétima ou oitava guerra. H.K. p. 123. 374 Ibid., p. 124. 375 Ibid., p. 73. 376 “Cada pessoa tem o direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião”, cf. a Declaração Universal dos Direitos Humanos, Artigo 18. KÜNG, H., p. 73.

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respeito mútuo entre crentes e não-crentes. Ambos têm responsabilidades comuns em

relação à sociedade e ao futuro da humanidade.

Mesmo que a iniciativa seja das religiões, uma proposta ética que dê

fundamentação a um mundo de paz deve também ser assumida por não-crentes. Não

nos parece que estes rejeitariam uma proposta ética que estivesse, de fato, orientada

por valores universalmente válidos e comprometida com a superação das mazelas que

afligem a todos.

“O que aconteceria para o mundo de amanhã se os líderes religiosos de todas as grandes e também das pequenas religiões hoje se pronunciassem decididamente em favor da responsabilidade pela paz, pelo amor ao próximo, pela não-violência, pela reconciliação e pelo perdão? Se em vez de ajudar a provocar conflitos, elas se engajassem na sua solução? E isso de Washington a Moscou, de Jerusalém a Meca, de Belfast a Teerã, de Amitsar a Kuala Lumpur! Todas as religiões do mundo devem hoje reconhecer a sua co-responsabilidade pela paz mundial”.377

A superação dos conflitos e inimizades, em busca da harmonia entre as

religiões, passa necessariamente pela complicada pergunta pela verdade. Aí o perigo

é cair em dois extremos: o fanatismo pela verdade ou o esquecimento da verdade.

Segundo Hans Küng, nada na história das Igrejas e das religiões já causou tantos

conflitos como a pergunta pela verdade. O fanatismo pela verdade já causou mortes e

ferimentos em todas as Igrejas e religiões de todas as épocas. Ao contrário, o

esquecimento da verdade provoca falta de orientação e falta de normas, levando

muitos a abandonarem qualquer tipo de crença. 378 Haveria um caminho

teologicamente lícito que permita aos cristãos e adeptos de outros credos aceitarem a

verdade das outras respectivas religiões sem perder a identidade, isto é, sem renunciar

à verdade da própria religião? Muitas estratégias se propõem a solucionar a questão

da paz. Mas, para o autor, nenhuma delas traz relevante contribuição.

Primeiramente, apresenta-se a estratégia da fortaleza379

ou de auto-

justificação, onde se reconhece somente a própria religião como verdadeira. Esse

aspecto de exclusividade e superioridade, aliado ao medo do relacionamento, bem

377 Ibid., p. 126. 378 Ibid., p. 129. 379 Ibid.

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como ao espírito de intolerância e de absolutismo da verdade, podem ser encontrados

ainda em muitas Igrejas e religiões. “A esse imperialismo e triunfalismo religioso,

muitas vezes está vinculada uma apologia, que sempre busca ter razão e é incapaz de

aprender”. 380 Essa estratégia traz mais problemas do que soluções.

Outra estratégia é a da harmonização, 381

que reconhece cada religião

como verdadeira a seu modo, e o problema da “verdade” não existe realmente. A paz,

neste sentido, se realiza na medida em que se ignoram as diferenças e as contradições.

Acaba-se por nivelar não somente as diferenças fundamentais entre religiões místicas,

proféticas e sapienciais, mas também as inevitáveis contradições entre as religiões. O

lema do “tudo é possível” não pode silenciar as perguntas fundamentais da vida

humana pela verdade, pelo sentido, pelos valores e critérios, pelo compromisso e pela

confiabilidade últimos.382 Essa estratégia harmonizante e sem originalidade de

pensamento se torna um “sopão religioso” e não traz solução ao problema da verdade.

Se, por um lado, deve-se evitar o absolutismo exclusivista, por outro lado, deve-se

evitar o relativismo que nivela todas as verdades, valores e critérios.

Uma terceira estratégia que aparece é a do abraço, 383 que reconhece uma

única religião verdadeira e todas as que se desenvolveram historicamente têm parte

nessa religião. Segundo essa concepção, defendida por muitos cristãos e não-cristãos,

a paz religiosa se alcança através da integração das outras religiões. Para Hans Küng,

“aquilo que parece ser tolerância, mostra-se na prática como uma espécie de

conquista através do abraço”.384 Esse inclusivismo generoso e tolerante tampouco se

constitui numa solução real para o problema da pergunta pela verdade e não pode dar

uma real contribuição para a paz entre as religiões e nações.

Rechaçando todas essas estratégias, Hans Küng apresenta a sua estratégia

ecumênica: a autocrítica. Segundo ele, nem tudo nas religiões é igualmente bom e

verdadeiro e uma estratégia verdadeiramente ecumênica desafia a olhar para a própria

história de falhas e culpas: “uma crítica à outra posição somente é legítima com base

380 Ibid., p. 130. 381 Ibidem. 382 Ibid., p. 131. 383 Ibid., p. 132. 384 Ibid., p. 133.

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numa decidida autocrítica”.385 A pergunta pelo verdadeiro e pelo falso é verificável

em todas as religiões, pois não há uma religião que seja isenta de culpa. A autocrítica

deve se realizar em cada religião, buscando seus fundamentos em sua própria origem.

As origens, com seus escritos e figuras normativas ajudam a discernir a verdade nas

religiões. Essa “essência” original e própria de cada religião constitui o “critério

interno válido para discernir a verdade e garante ao mesmo tempo a respectiva

identidade da própria”.386

Na busca pelo diálogo, os critérios próprios de uma religião podem ser

aplicados, com menor intensidade naturalmente, à outra religião. Diálogo não

significa autonegação, e a crítica aos outros continua sendo necessária. Segundo o

autor, “se num diálogo, uma religião devesse insistir somente nos seus próprios

critérios de verdade, um verdadeiro diálogo já estaria desde o início fadado ao

fracasso”.387 É possível, diz o autor, ir além dos critérios próprios de cada religião

sem relativizar aqueles que são critérios absolutos para a própria religião. Ele propõe,

então, uma nova estratégia ecumênica, os critérios éticos comuns a todas as religiões.

E nesses critérios, a dignidade do ser humano aparece como prioridade.

2.3.3. O humano como critério ecumênico fundamental

A dimensão religiosa é própria do ser humano que, movido por sua

crença, dinamiza e configura as religiões. Na busca pelo diálogo e pela paz entre as

religiões, é imprescindível que o ser humano seja o critério ecumênico fundamental.

As religiões já caminharam significativamente em direção a uma valorização maior

do humano, mas ainda perduram sinais remanescentes de atitudes que agridem a

dignidade humana. Em parceria com outras organizações sociais, as religiões estão

buscando, cada vez mais, dinamizar novos propósitos no sentido de uma maior

observação dos direitos humanos e da responsabilidade pela paz.388 Nesse sentido,

385 Ibid., p. 134. 386 Ibid., p. 139. 387 Ibid. 388 O autor relata a experiência do primeiro colóquio religioso na UNESCO, realizado em Paris, de 08 a 10 de fevereiro de 1989, onde se enfatizou o significado das religiões mundiais para o programa “Educação para os direitos humanos” da UNESCO. Em seu discurso de abertura, o diretor geral,

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Hans Küng reconhece a força dos fundamentos que justificam sua esperança em um

projeto de ética mundial ecumênica. Na busca por critérios éticos fundamentais, Hans

Küng levanta uma pergunta básica: o que é bom para a pessoa? Ao que responde: é

bom pra pessoa aquilo que a ajuda a ser verdadeiramente humana. Vejamos como ele

esclarece isso:

“O critério ético fundamental deveria ser: a pessoa não deve ser desumana, não somente instintiva, ‘bestial’, mas humanamente sensata, verdadeiramente humana, enfim, viver humanamente! Eticamente bom seria, pois, aquilo que duradouramente promove a vida humana em suas dimensões individual e social. Aquilo que permite um desenvolvimento da pessoa em todos os seus níveis e em todas as suas dimensões”.389

Eticamente correto, então, é aquilo que faz bem à pessoa humana, que a

realiza. Nesse sentido, as religiões podem dar uma preciosa contribuição ao indivíduo

pós-moderno, fragilizado e carente de orientações. Na ótica de Hans Küng, é

importante que o homem seja religioso, pois está claro que as grandes religiões

desempenham uma função importante para a consciência do indivíduo, dando-lhe

sustentação, apoio emocional, aconchego, consolo e coragem para a resistência.390

Segundo ele, a religião consegue fazer isso melhor do que a psicologia, a pedagogia,

a jurisprudência e a política.

“Na luta pelo humano, a religião consegue fundamentar, sem subterfúgios, aquilo que a política não consegue realizar. Consegue evidenciar porque a moral e a ética são mais do que uma questão de gosto pessoal, de oportunidade política, de julgamento individual, de convenção social ou de comunicação. Em outras palavras: a religião consegue fundamentar claramente por que a moral, os valores éticos e as normas devem valer incondicionalmente (e não somente ali onde me parece ser conveniente) e de forma geral (para todas as camadas, classes e raças)”.391

Se apenas o incondicional pode comprometer de forma incondicional, e

somente o absoluto pode amarrar de forma absoluta, o humano é salvo justamente à

Frederico Mayor, afirmou que a percepção das diferenças entre as religiões de modo algum precisa excluir a procura por valores comuns. KÜNG, H., p. 145. 389 Ibid., p. 146. 390 Ibid., p. 142. 391 Idem. P. 142.

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medida que for fundamentado pelo divino.392 Dessa forma, a religião tem condições

de ajudar o indivíduo a humanizar-se, a pautar sua vida pelo bem, afastando-se do

mal. Se pudermos definir o que é eticamente bom para o indivíduo, é possível

distinguir também nas religiões o que é fundamentalmente bom ou mau, o que é

verdadeiro e ou falso.

“Positivamente: a religião é boa e verdadeira à medida que ela serve à humanidade, à medida que, em suas doutrinas de fé, de ética, em seus ritos e instituições, ela promove a identidade humana, o sentido e sentimento de valor das pessoas. Negativamente: a religião é falsa e ruim à medida que ela difunde a

desumanidade, à medida que, em suas doutrinas de fé e de ética, nos seus ritos e instituições, ela freia as pessoas em sua identidade humana, na sua busca de sentido, no senso de valores, dificultando, assim, uma existência frutífera e com sentido”.393

Quanto mais humana for uma religião, mais verdadeira ela é. E quanto

menos humana, isto é, quanto menos aponta caminhos de realização ao ser humano,

mais falsa e negativa ela é. A “humanidade” e autenticidade estão condicionadas às

suas práticas e orientações fundamentais, isto é, ao direcionamento que lhe é dado por

suas lideranças. Nesse sentido, igrejas ou religiões visivelmente preocupadas com a

questão financeira, por exemplo, devem ter sua autenticidade questionada.

Naturalmente, não podemos esquecer que toda religião deve ter uma finalidade social

clara. Condicionando a veracidade das religiões à promoção humana, Hans Küng nos

ensina que só o verdadeiramente humano pode ser fundamentado no “divino”.

Aquilo, porém, que é desumano, não pode remontar àquilo que é “divino”. 394 Ele

estabelece uma relação dialética entre religião e humanidade, e a descreve da seguinte

forma:

“A verdadeira humanidade é o pressuposto para a verdadeira religião! Isso significa que o humano (o respeito à dignidade humana e aos valores fundamentais) é uma exigência mínima a cada religião. Onde se procura realizar verdadeira religiosidade deve haver pelo menos humanidade. A verdadeira religião é a realização da verdadeira humanidade! Isso significa que a religião (como expressão de um sentido mais abrangente, de valores mais elevados, de compromissos incondicionais) é o melhor pressuposto para a realização do

392 Ibid., p. 143. 393 Ibid., p. 147. 394 Ibid.

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humano. Deve haver religião (critério máximo) ali onde se busca realizar a humanidade como um compromisso verdadeiro, incondicional e universal”.395

Para direcionar sua reflexão a um possível consenso entre as religiões,

Hans Küng relata a significativa experiência da conferência de Paris, com

representantes de diversas religiões, 396 e reafirma o humanismo como base para uma

ética das religiões mundiais. O diálogo entre as religiões, condição para a

possibilidade da paz entre as mesmas e também para a paz no mundo, não prejudica a

identidade das religiões individuais. Não há, segundo o autor, contradição entre a

disposição ao diálogo e a firmeza de posição. A verdade não é relativizada na

pluralidade. A disposição ao diálogo não significa, necessariamente, falta de posição

própria. É possível, então, aceitar a verdade, a real e essencial verdade, das outras

religiões sem renunciar à verdade da própria religião e com isso a própria identidade.

No entanto, para bem relacionar abertura e verdade, pluralidade e identidade, firmeza

de posição e disposição ao diálogo, precisamos desenvolver uma posição ecumênica

nos seguintes moldes:

* Não um indiferentismo, para o qual tudo é apático, mas mais indiferença em relação a qualquer pretensa ortodoxia que se coloca como medida para a salvação ou a perdição das pessoas e busca impor a sua verdade. * Não um relativismo, para o qual não existe um absoluto, mas sim, mais sensibilidade para a relatividade em relação a todos os absolutismos humanos, os quais bloqueiam uma coexistência produtiva das diferentes religiões. * Não um sincretismo, no qual tudo é misturado e fundido, mas mais vontade para a síntese, para a paulatina junção em face de todas as contradições e antagonismos confessionais e religiosos.397

O puro indiferentismo, relativismo ou sincretismo não colabora para um

caminhar ecumênico. Nenhuma religião tem o monopólio da verdade, mas também

não pode renunciar ao testemunho da verdade. A posição básica de um verdadeiro

ecumenismo não conhece nem a agressividade em relação àquelas pessoas que

395 Ibid., p. 148. 396 Conferência realizada em 1989. Segundo o autor, todos os representantes das religiões concordaram que, para sua religião, o “humano” deve estar enraizado no absoluto; todos aceitaram a autocrítica

como pressuposto para o diálogo inter-religioso; todos concordaram que nas religiões existe um déficit no que tange à educação das pessoas para o humanismo e para o pacifismo; ninguém contestou a palavra programática de todo o simpósio: “não haverá paz no mundo sem paz entre as religiões”. KÜNG, H., p. 149. 397 Ibid., p. 155.

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pensam diferente nem a fuga de decisões, mas busca o diálogo dentro da firmeza de

posição.398 Só uma autêntica disposição para o diálogo revela uma clara disposição

para a paz, da mesma forma que só uma religião que constrói relações ecumênicas

dialógicas e pacíficas está qualificada para atender e orientar o ser humano. Então o

ser humano pode ser o critério ecumênico fundamental, e a dignidade da pessoa

humana o fundamento de toda vida ética.

Conclusão

Na reflexão desenvolvida no primeiro capítulo deste trabalho buscamos

apresentar a configuração ética da atual sociedade humana a partir do olhar de Gilles

Lipovetsky. As constantes transformações que suplantaram a modernidade e fizeram

germinar a pós-modernidade evidenciaram, também, sinais de uma renovação ética

centrada no “eu”. Esse dinamismo ético suscitou novas relações e preocupações.

Neste segundo capítulo partimos da preocupação ética de Hans Küng, que vê nos

irresponsáveis desenvolvimentos técnico-científicos uma constante ameaça à

sobrevivência humana. Paralelo a isso surge uma forte interpelação ética que exige do

sujeito hodierno um comportamento mais humano e responsável. Em sua proposta de

ética mundial, Hans Küng sugere um mínimo de valores, normas e comportamentos

comuns, capazes de garantir a preservação da vida, não apenas humana, mas em suas

mais diversas manifestações.

Com o precioso auxílio de Hans Jonas, nosso autor entende que uma ética

de sobrevivência passa necessariamente pelo fortalecimento da responsabilidade

humana. Uma responsabilidade que necessita ser fomentada teoricamente e assumida

concretamente. Como vimos, Hans Küng tem clareza de que as constantes crises e

ameaças que envolvem a humanidade, gerando um vazio existencial que deixa o ser

humano perdido, é fruto das próprias ações humanas. Cabe, então, às instituições e

organizações humanas, incluídas naturalmente as igrejas e religiões, assumirem o

papel de gerenciar uma nova ética, onde a dignidade humana esteja em primeiro

lugar. Na proposta de ética mundial, apresentada neste capítulo, vimos que a

398 Ibid., p. 163 et. seq.

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superação dos conflitos entre nações, povos, raças e religiões, passa necessariamente

pela dimensão ética. A paz só é possível quando houver disposição para o diálogo e

respeito ao outro, na busca de um caminho conjunto.

Ficou evidente, a partir da proposta de Hans Küng, que esse novo caminho

ético precisa ser, necessariamente, um caminho ecumênico, com o empenho de todas

as religiões. Ciente de que grande parte dos conflitos e guerras entre povos têm

fundamentação religiosa, o autor entende que a paz mundial pressupõe a paz entre as

religiões. Para isso, no entanto, é imprescindível que cada religião busque dinamizar e

propagar princípios e valores essencialmente voltados para o bem, rejeitando todo

tipo de violência. O diálogo e o respeito ao diferente aparecem como uma

necessidade vital na busca pela convivência pacífica e pelo caminho conjunto. Isso

exige, por parte de cada religião, a capacidade de reconhecer nas demais a existência

de bons valores e princípios, sem com isso abrir mão do que lhe é próprio.

Não apenas as religiões, mas também a política, a educação, a mídia, e as

mais diversas instituições humanas devem assumir o compromisso com uma ética de

sobrevivência. Se por um lado os admiráveis processos de desenvolvimento e

inovação, empreendidos pelo homem moderno e acentuados pelo homem pós-

moderno, trouxeram alegrias e realizações, por outro lado trouxeram, com incertezas

e inseguranças, um vazio existencial. Não bastasse, o homem deste tempo convive

com as ameaças constantes por parte do meio ambiente. Uma ética de sobrevivência,

como proposta neste capítulo, implica uma preocupação por parte das religiões, e de

toda pessoa, com a vida humana, mas também com o meio ambiente, com a natureza

da qual depende a qualidade de vida. Confirmamos, assim, a preocupante e realista

afirmação de Hans Küng, de que o futuro da humanidade está sujeito ao compromisso

humano com uma ética mais solidária e responsável, uma ética de sobrevivência.

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