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29 2 Primeiros passos Desde o início do século XX, os artistas vinham experimentando uma profusão de meios expressivos. Nada (ou tudo) parecia se adequar em definitivo ao ritmo acelerado do fim do milênio. As matérias-primas foram catadas em todas as esquinas. A maneira de utilizá-las, conseqüentemente, também sofreu intensas reaveriguações. E mesmo os meios até então “triviais” da arte – pintura, escultura – constrangidos a se apresentarem de outros modos que não os já longamente reconhecidos. As céleres mudanças do mundo real foram perseguidas, acompanhadas pari passu pelas produções plásticas daqueles tempos: futuristas, cubistas, dadaístas, surrealistas, dentre outras empresas, et pour cause, todas exibiram uma versão diferenciada para os mais diversos acontecimentos do planeta. De maneira geral, é possível anotar para quase todas as artes do século a deflagração de uma vontade de envolvimento com as coisas cotidianas – reclamando-as, exaltando-as ou incorporando-as. Assim sendo, não é de estranhar a incidência de várias mídias em uma mesma realização, a requisição da simultaneidade de todos os sentidos humanos na apreciação da obra de arte e, por fim, a meta até então insuspeita: a inclusão física do artista em ocorrências públicas. Mais que espécies de “liberdade de expressão”, as ousadias fauvistas ou abstracionistas evidenciaram uma renovada atração pela realidade fenomênica. Os primeiros expressionistas conferiram “formas públicas às angústias pessoais”, seguiram exalando as mais intensas apreensões existenciais e, por fim, revelaram preocupações políticas – “expressionismo social”. As collages cubistas anexaram elementos do cotidiano e interessaram-se pela simultaneidade da percepção moderna. O futurismo exibiu uma relação passional pelos muitos avanços tecnoindustriais do momento. Fascinados ou perturbados pelas conquistas científicas, os futuristas glorificaram a aceleração do mundo, celebraram a agitação da vida mundana. Os quinze anos de atividades dadaístas ecoaram as muitas

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Page 1: 2 Primeiros passos - DBD PUC RIO ponta do lápis, o maior movimento cultural da Europa no entreguerras verificou-se no oceano Atlântico. Após um primeiro assentamento na Alemanha,

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2 Primeiros passos

Desde o início do século XX, os artistas vinham experimentando

uma profusão de meios expressivos. Nada (ou tudo) parecia se adequar

em definitivo ao ritmo acelerado do fim do milênio. As matérias-primas

foram catadas em todas as esquinas. A maneira de utilizá-las,

conseqüentemente, também sofreu intensas reaveriguações. E mesmo os

meios até então “triviais” da arte – pintura, escultura – constrangidos a se

apresentarem de outros modos que não os já longamente reconhecidos.

As céleres mudanças do mundo real foram perseguidas, acompanhadas

pari passu pelas produções plásticas daqueles tempos: futuristas,

cubistas, dadaístas, surrealistas, dentre outras empresas, et pour cause,

todas exibiram uma versão diferenciada para os mais diversos

acontecimentos do planeta.

De maneira geral, é possível anotar para quase todas as artes do

século a deflagração de uma vontade de envolvimento com as coisas

cotidianas – reclamando-as, exaltando-as ou incorporando-as. Assim

sendo, não é de estranhar a incidência de várias mídias em uma mesma

realização, a requisição da simultaneidade de todos os sentidos humanos

na apreciação da obra de arte e, por fim, a meta até então insuspeita: a

inclusão física do artista em ocorrências públicas. Mais que espécies de “liberdade de expressão”, as ousadias

fauvistas ou abstracionistas evidenciaram uma renovada atração pela

realidade fenomênica. Os primeiros expressionistas conferiram “formas

públicas às angústias pessoais”, seguiram exalando as mais intensas

apreensões existenciais e, por fim, revelaram preocupações políticas –

“expressionismo social”. As collages cubistas anexaram elementos do

cotidiano e interessaram-se pela simultaneidade da percepção moderna.

O futurismo exibiu uma relação passional pelos muitos avanços

tecnoindustriais do momento. Fascinados ou perturbados pelas

conquistas científicas, os futuristas glorificaram a aceleração do mundo,

celebraram a agitação da vida mundana.

Os quinze anos de atividades dadaístas ecoaram as muitas

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apreciações niilistas sobre a cultura ocidental, que guarneciam as rodas

da intelligentsia, especialmente aquelas sobre o militarismo da guerra. O

surrealismo ofereceu uma espécie de continuidade lógica, mais

organizada, ao projeto dadaísta, privilegiando as transgressões do

inconsciente. E a pedagogia social da Bauhaus foi mais longe,

prescrevendo a associação das necessidades e influências da sociedade

às exigências estéticas e funcionais, assimilando as mais recentes ofertas

tecnoindustriais na produção dos objetos utilitários.

Já um breve inventário dos hoje denominados happenings,

performances, body art, ou environments resgataria necessariamente as Noites futuristas (1910-13), as sessões do Cabaret Voltaire, de Hugo Ball

(1915-16), as incursões teatrais de Oskar Schlemmer na Bauhaus. As

eventuais coligações dos franceses Apollinaire, Cocteau e Satie; dos

russos Mayakovsky, Nijinsky e Diaghilev, dentre muitos outros criadores

ligados à música, ao ballet, às artes cênicas e à poesia em equações

pluripoéticas.1

Marcel Duchamp é, não à toa, constantemente chamado a participar

das boas arqueologias artísticas do século XX. Figura intensa e

reservada, indispensável à compreensão do pós-modernismo, não

obstante o reduzido conjunto de obras tão originais quanto controversas,

desiguais e pervarsivas deixadas à posteridade. Os inúmeros dispositivos

acionados por seus ready- mades foram cruciais para os questionamentos

estatutários do ofício. Em 1923, apresentou o primeiro objeto conceitual

por excelência – Grand verre –, resultado (inacabado) dos estudos

iniciados 10 anos antes. O artista levou para Nova York os ânimos

dadaístas e surrealistas, preparando as aventuras poéticas de Pollock, da

Minimal, da Pop, da Conceptual, dentre outros desenvolvimentos norte-

americanos. Nos primórdios das performances, Duchamp comparece

através de seus alter egos Rrose Sélavy e R. Mutt, ou mesmo através de

um longo e significativo silêncio.

Através dos mais variados meios, sistemas ou teorias, manifestos ou

programas, técnicas ou estratégias, das mais diversas justificativas

1 Ver GOLDBERG, RoseLee. Performance art.

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conceituais, de tudo um pouco, os artistas da vanguarda histórica

mostraram-se diligentes no que diz respeito às incursões relacionais ou às

investigações autocríticas da arte. Estas abordagens permearam o enredo

modernista, cifraram os primeiros exercícios reconciliatórios cujos

diagnósticos ainda se encontram em andamento. Trata-se de sondagens

pioneiras das vias de acesso à realidade política, à fisicalidade mundana.

Se não cumpriram de fato tais intuições, levam, ao menos, os méritos da

expectativa de uma mobilização mais abrangente, uma atenção temporal

distinta.2

Considerando que a perigosa energia circulante na Europa quando

tais manobras tiveram início foi, ao menos em parte, responsável por

esses comportamentos devolutivos, não seria sensato admitir que a

diversificação das atividades experimentais assistidas no segundo pós-

guerra atendeu a uma atualização dos sentimentos daquele momento

anterior? Quantas mil vezes lemos que o Dadaísmo agendou uma

enérgica revolta contra a insanidade da guerra, da matança generalizada

e da lógica instrumental que regia toda uma sinfonia de gravíssimos

equívocos? Ora, qualquer semelhança entre esses fatos e os averiguados

cerca de meio século após seria mera coincidência?

Na ponta do lápis, o maior movimento cultural da Europa no

entreguerras verificou-se no oceano Atlântico. Após um primeiro

assentamento na Alemanha, a vanguarda estacionou em Paris antes de a

Segunda Guerra dispersar por completo a concentração. A debandada

intelectual em direção aos EUA deixou para trás um continente que exibia

apenas medo e desolação. Albers, Gropius, Mondrian e Ernst aportaram

em Nova York para retomar seus trabalhos. Alguns, como Dali,

procuraram apenas um asilo temporário. Na Europa, outros grandes

artistas prosseguiram isolados em suas atividades.

Alberto Giacometti, abrigado na sua Suíça natal durante o período

bélico, produziu e dizimou um sem-número de figuras tridimensionais

absurdamente encolhidas. As sobreviventes continuaram a pervagar

2 Ver, para maiores informações, as publicações: DE MICHELLI, Mario. As vanguardas artísticas; ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna; e STANGOS, Nikos (org.), Conceitos da arte moderna.

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constantemente obliteradas pela grandiosidade espacial do mundo,

penetradas por uma melancólica desorientação. A arte de Giacometti,

especialmente significativa para o momento, comenta o mood dominante:

coibidas, suas figuras exibem uma perda contínua de massa física

equivalente a um insuportável ganho de densidade psíquica. São apenas

matérias que não chegam a dizer algo completo sobre uma vida, mas

somente sobre um existir desprovido da idéia de homem: não sabemos se

estão mortos ou vivos. Para onde vão? Que mundo habitam tais seres

filiformes? Num vaivém imóvel, com pés tão pesados que não lhes

deixam muita liberdade de ação, esses seres/quase não-seres passeiam

lentamente condenados a uma solidão vagamunda de um presente

ininterrupto, fora da História.

Curiosamente, os anos 40 foram inundados por uma vaga de

abstracionismo lírico cujo quartel-general europeu continuava a radicar-se

em Paris. Deixando de lado as apreciações teóricas que a subdivide em

figurativa, objetiva, formalista e seus contrários semânticos, guardemos

apenas a noção de que a “tendência informalista” foi o tipo de arte que

sobreviveu durante a guerra. Considerando-se o quanto de indescritível e

nebuloso apresentava-se o futuro da existência sobre o planeta, as coisas

só poderiam ser, se muito, dedutíveis.

Este amplo direito de deduzir abriu o campo crítico para que a

questão da liberdade fosse acionada como o principal Leitmotiv do

momento, ainda que alguns artistas da École de Paris tivessem seus

trabalhos abstratos relacionados a funestos festejos da era das explosões

atômicas, celebrações das últimas conquistas tecnológicas com sabores

neofuturistas, ou ligados a estranhas comemorações patológicas.

Soulages, Wols e Brien são os personagens mais entusiasmados do

Tachisme. Além, é claro, do carismático Georges Mathieu que pretendeu

apostar uma corrida com a máquina, ser tão veloz e espetacular quanto

os produtos tecnológicos, o primeiro pintor a fazer de sua obra um

espetáculo público, como anota Argan.3

Por conta de um conforto metodológico, as iniciativas subjetivantes

3 ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna.

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da Paris ocupada são freqüentemente cotejadas às ocorrências artísticas

norte-americanas então emergentes. O confronto equivocado, covarde

até, não recolhe bons resultados críticos, ao contrário, só constrange o

Tachisme à condição de um mero contraponto tímido e gauche do

Abstract Expressionism. Seja como for, já que o assunto não é da alçada

desta tese, fato é que as obras francesas, independentemente do motivo

alegado – combalidas pela energia do conflito, ou mitigadas pela tradição

da belle facture, surgem anêmicas dessas comparações, ofuscadas pela

exuberância pictórica de Jackson Pollock, mais agressivo e autêntico. O

trabalho do norte-americano ocupava um outro nível de qualidades

artísticas, muito acima do que poderia supor o grupo francês. Somente as

implicações franqueadas pelo all-over e pelo dripping bastariam para

encerrar a contenda.

“Expressionismo abstrato” é a designação, um tanto holística,

genericamente aplicável a um amplo espectro de pintores ativos durante a

década de 1940 e instalados em Nova York. De Willem de Kooning a

Barnett Newman, a noção sustenta duas tendências centrais: action

painting e colour-field painting. Basicamente, o movimento explica-se pela

admissão dos aspectos subjetivantes através do ato da pintura – daí a

variedade de estilos atendida pelo título, mais caracterizado pela

concepção que sublinha os foros íntimos do que por uma homogeneidade

técnica ou por um programa político.

Como o termo implica, o “expressionismo abstrato” não define um

estilo figurativo e nem mesmo adere aos limites da representação

convencional, de acordo com as óbvias referências a Kandinski e às

deformações arbitrárias dos expressionistas alemães. Também conhecido

por New York School, o grupo teve a sua quintessência em Jackson

Pollock, que, animado pelas chancelas do surrealismo, afrouxou o

comando da prática artística em favor dos desígnios subconscientes.

Reativando as paixões de Walt Whitman, traduzindo as dimensões

continentais novomundistas em telas gigantescas e consagrando o all-

over como o paradigma do olhar contemporâneo, o pintor marca o

deslocamento do centro artístico ocidental.

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Sancionadas pelos célebres argumentos de Harold Rosenberg4 e

espalhadas por Hans Namuth, as imagens de Pollock “em ação” – action

painting – influenciaram o mundo e, vertidas anos após anos, a

espontaneidade de sua pintura gestual forneceu as feições plásticas de

um “transe” expressivo, e/ou vice-versa. Daí por diante, incontáveis

adventos artísticos seriam creditados à “fase pública” do maior pintor

americano.5 Na ordem do dia sentava o encanto cromático, o enigma de

uma ocupação paradimensional, a inacreditável capacidade de absorção

espacial e de magnetismo psicofísico, propalados pelos trabalhos

monumentais de Jackson Pollock. Desde então, suas obras recrutavam a

revisão de um novo estatuto para a percepção, para a arte, para o artista.

As balizas conceituais entre obras de arte e as ações do dia-a-dia

começam a mostrar uma fragilidade, uma iminente diluição de suas

fronteiras virtuais. Danto comenta: In fact, if works of art can generally be supposed to embody what

they are about, as I have sough to argue in The Transfiguration of the Commonplace, there is a deep continuity between works of art and the symbolic expressions of everyday life. This would be the germ of truth in anything called an Expressionist Theory of Art (which need have little to do with feelings); and it would be the natural connection, so irresistible to Freud, between psychoanalysis and the explanation of art.6

O grande trunfo da pintura sobre as outras manifestações de arte é,

de fato, a sua capacidade de conceder visibilidades. Mas não é só isso,

pois ela vai mais longe e de maneira sedutora – a pintura quer ser tão

convincente como as coisas e não pensa poder atingir-nos a não ser

como elas: impondo-nos um espetáculo irrecusável,7 assegura Merleau-

Ponty. Porque, continua o filósofo,

...para que a obra de arte – que justamente se dirige em geral a apenas um dos nossos sentidos e nunca nos ataca por todos os lados, como o vivido – satisfaça-nos o espírito como faz, é mister que seja diferente da existência arrefecida, que seja, como diz Gaston Bachelard, “superexistência”. Mas ela não pertence ao arbitrário, ou, como se diz, à ficção. A pintura moderna, como o pensamento moderno em geral, obriga-

4 ROSENBERG, Harold. “Os actions painters norte-americanos”. In A tradição do novo. 5 ARGAN, Giulio Carlo. Op. cit. 6 DANTO, Arthur C. Beyond the brillo box. p. 63. 7 MERLEAU-PONTY, Maurice. “A Linguagem Indireta e as Vozes do Silêncio.” In Signos. p. 49.

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nos a admitir uma verdade que não se assemelha às coisas, que não tenha modelo exterior, nem instrumentos de expressão predestinados, e que seja, contudo Verdade.8

* * *

O desenvolvimento “oficial” da performance na Europa nos anos 50

do século XX seguiu paralelo ao que nos EUA somente mais tarde

adquiriu a definição do que foi aceito pelos artistas como um meio poético

viável – os happenings. Apenas dez anos após o fim da Segunda Grande

Guerra, alguns criadores sentiram a impossibilidade de admitir o conteúdo

aparentemente apolítico e espetacular do expressionismo de Jackson

Pollock. Os europeus consideravam um tanto irresponsável a atividade

reclusa dos americanos em seus studios, quando as muitas necessidades

políticas alcançavam um drástico limite.9 Tal humor socialmente alerta

encorajou uma quantidade substancial de manifestações e gestos

dadaístas para atacar os valores estabelecidos da arte e mesmo da

cultura em geral.

Porém, por mais que surgissem inconseqüentes, as pinturas de

Pollock trouxeram seriíssimas questões para a superfície político-cultural.

Allan Kaprow afiançou um discurso póstumo que, ao lado do catálogo

crítico de Greenberg,10 iluminou o generoso caminho pavimentado entre a

pintura de Pollock e o mundo ocidental. Em 1958, Kaprow comentava:

(...) temos então uma arte que tende a perder seus limites, que tende a preencher nosso mundo com sua própria existência, uma arte cujo significado, a aparência, o impulso, parecem romper radicalmente com as tradições dos pintores desde, ao menos, os gregos. A quase destruição dessa tradição por Pollock pode bem significar o retorno a um ponto em que a arte estava mais envolvida com o rito, a ocidental tende a depender cada vez mais de desvios para realizar-se, dando a mesma ênfase às “coisas” e às “relações” entre elas. (...). Assim, esse seria um passo

8 Idem. p. 59. 9 Fora as considerações generalizantes sobre a inegável importância de Pollock, ou as observações restritas à prática, hoje dispomos de uma farta produção editorial sobre as nuances políticas da arte do século XX. Para acompanhar uma discussão mais afeita as tais aspectos, ver WOOD, Paul (et alii). Modernismo em disputa: a arte desde os anos quarenta. HARRISON, Charles (et alii). Primitivismo, cubismo, abstração: começo do século XX. Além dos já citados ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. DE MICHELLI Mario. As vanguardas artísticas. 10 GREENBERG, Clement. The collected essays and criticism, I-IV.

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extremamente importante, e o que melhor responderia às queixas daqueles que querem que ponhamos na arte um pouco de vida. (...). Mas agora, em todo caso, pode-se considerar que, salvo raras exceções, a arte, vejo, deixou-nos no momento em que devíamos começar a refletir sobre o espaço e os objetos de nossa vida cotidiana, e mesmo a espantar-nos com eles: desde nossos corpos, roupas, casas, até a extensão da rua 42. 11

Os vinte anos subseqüentes ao segundo pós-guerra foram

emblemáticos para as filosofias inclusivas, mas a década de 1960 é

especialmente representativa da proeminência dos empreendimentos

performáticos, quando os artistas tomaram as ruas de Düsseldorf, Paris e

Nova York procurando catalisar a energia criativa da sociedade. As

ocorrências européias que melhor exemplificam tais atitudes concentram-

se nas figuras hiperbólicas do francês Yves Klein, do italiano Piero

Manzoni e do alemão Joseph Beuys. Além, óbvio, das audições do grupo

Fluxus que, de maneira geral, sintetizam o espírito dominante. Os EUA

registram os espetáculos de Kaprow, Morris e Warhol, para citar apenas

os mais notórios. A recorrência dos gestos públicos teve caráter

epidêmico de um lado e do outro do mapa ocidental. Os grandes artistas

da época puseram o corpo à obra com as inevitáveis divergências

ideológicas, sim, mas algo os uniam: o reexame dos objetivos da arte, de

todas as artes. O resultado, é sabido, foi o colapso das antigas

convenções estéticas.

Há muito a noção vinha assediando os grandes pensadores; há

muito a subversão instigava os artistas: a pintura é ilusória e a escultura é

uma dura realidade. Na segunda metade do século XX, o ofício estreava

uma fase de exercícios, ampliava o espectro semântico da linguagem

poética visual. Tony Smith, Donald Judd e Frank Stella apresentaram-na

como presença real, uma espécie de “pensamento físico”. O Fluxus

tratou-a como permanente experiência moral; Warhol complicou o

entendimento da relação entre arte e mundo, embaralhou as duas

noções; e Joseph Beuys reencaminhou o Leitmotiv de Duchamp – arte é

pensamento: mais que fato plástico, é reflexão sobre a vida:

11 KAPROW, Allan. “O legado de Jackson Pollock”. In Art News, outubro de 1958, tradução de Cecília Cotrim de Mello.

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Before Duchamp, it had seemed obvious that the distinction between artworks and other things was perceptual, that paintings looked as distinct from other things as roses, say, look distincts from tomcats. With Duchamp, and those who followed him, it became philosophically evident that the differences are not of a kind that meets or even can meet the eye.12

Ao longo do século passado, o conceito de escultura foi pensado e

repensado. O mesmo pode ser dito da pintura e ainda de toda a espécie

de atividade artística: o cerne da questão, obstinado numa verificação

auto-examinadora, deflagrou uma duradoura crise identitária. A base do

escrutínio conceitual nos EUA veio estofada pelos artigos abstratizantes e

surrealistas importados da Europa, devidamente aclimatados por

Duchamp. O farto emprego de elementos reconhecíveis pela massa,

baratos ou industriais, estranhos à tradição, ou oriundos do

subconsciente, as manifestações multimídias aglutinadas às grandes

máximas do momento, decidem reorientações abrangentes e libertadoras.

As leituras “ajuizantes” então em decurso revelaram-se ineficazes – a arte

torna-se um setor da filosofia, assevera Arthur Danto:

(…) Greenberg’s narrative is very profound, but it comes to an end with pop, about which he was never able to write other than disparagingly. It cames to an end when art came an end, when art, as it were, recognized that there was no special way a work of art had to be. Slogans began to appear like “Everything is an artwork” or Beuys’s “Everyone is an artist”, which would never have occurred to anyone under either of the great narratives I have identified.13

A pintura traçou um caminho tortuoso para chegar a um ponto

bizarro dentre as várias iniciativas libertadoras que caracterizaram o “seu

modernismo”. Começando por buscar uma autonomia já no século XIX,

atravessa um estágio de intensas experimentações, alcança um espaço

próprio dentre as artes e, por fim, apega-se literalmente à

tridimensionalidade e/ou aos seus efeitos. A escultura, depois de passar

por uma dura fase de investigações acerca da reunião entre volume e

espaço, interessou-se pela estrutura e alcançou a experiência topológica,

como nos cubos negros de Tony Smith ou nas intimações biogeomânticas

de Beuys. Houve, até mesmo, inúmeros decretos de morte das duas

12 DANTO, Arthur C. Beyond the Brillo Box. p. 95. 13 Idem. p. 125

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modalidades. Um dos últimos consagrou o nascimento simultâneo dos

“objetos específicos”, como definiu Donald Judd, em 1965, a natureza de

algumas produções então recorrentes.14

O espírito era, é ainda, de indagação: sobre a real natureza das

aparentes contradições, sobre a relação entre arte e antiarte, entre pintura

e escultura, entre “arte” e o ready-made, entre o objeto de arte e o espaço

institucional que ele deve, (se deve), ocupar. Tudo estava aberto a

exames e experimentos. A tensão do momento demandava atitudes

drásticas, e as efetivações plásticas responderam com um conjunto de

concepções regidas pelo acirramento das intervenções físicas e das

contravenções estéticas.

* * *

O Nouveau Réalisme, movimento concebido, em meados da década

de 1940, principalmente pelo crítico Pierre Restany e por Yves Klein,

dentre outros, adiantou a ambiance melancólica das recorrências

artísticas européias do segundo pós-guerra. Klein passou uma boa parte

de sua curta vida determinado a encontrar o receptáculo ideal para um

espaço pictórico espiritual (ou uma pintura espaço-espiritual).

Apresentando um expressionismo físico permeado por uma aura de

misticismo, suas ações públicas trouxeram de volta uma atmosfera

romântica ao cenário devastado da Europa. Durante os anos 1940-50,

dedicou-se às pesquisas teóricas, estéticas e teológicas, contrariando as

“revelações de identidades pessoais” praticadas pelos pintores

americanos. Assimilando simultaneamente os comandos espaciais

expansivos de Rothko e Pollock, Klein evocava a intuição de uma ordem

cosmológica. Em meados da década de 1950, proclamara a sua entrada

na Era do Espaço – quando o espírito sobreviveria livre do corpo –, em

contraposição à Era da Matéria até então vigente.

Klein demonstrou um especial desempenho conceitual em Escultura

aerostática (1957), que consistia em “anulações ou absorções

14 JUDD, Donald. “Specific objects”. In Arts Yearbook 8, 1965. pp. 74-82.

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conceituais” configuradas nos 1.001 balões de ar azuis despachados

simultaneamente no céu de Paris, que jamais retornariam. Segue-se a

esta fase, as experiências conhecidas como O vazio15 (1958-62) e, destas

para o Salto no vazio (1960) foi um pulo. Para Klein, “arte” era um modo

de vida, jamais uma imagem preestabelecida de um pintor com o pincel

na mão num studio. A imagem congelada do artista & modelo no ateliê,

limitava suas ações e atuações sociais. Assim, o “modelo” veio a ser a

atmosfera do presente pontual.

As Antropometrias (1958-62) deveriam estar arroladas como

integrantes da body art, do happening, ou de algum termo equivalente,

assim como todo um conjunto de eventos por ele promovido. Compatíveis

com as actions de Pollock ou inspiradoras das action-musics do Fluxus, o

trabalho de Klein merece, decerto, uma especial atenção. Mas, para

anotar uma singularidade em meio ao turbilhão de iniciativas que

conformam o período, deixemos em suspenso o diagnóstico genérico

sobre a arte de Klein como parte da sua adoção de uma “sensibilidade

imaterial” com “qualidades espirituais”: talvez o único material possível

para o momento europeu.

Já o italiano Piero Manzoni lidou menos ainda, ou quase nada, com

os problemas do “espírito universal” para dedicar-se com afinco à

afirmação do corpo humano, ele mesmo, como material de arte válido,

legítimo. Ambos – Klein e Manzoni – acreditavam essencial revelar o

processo de arte, desmistificar a sensibilidade pictórica e prevenir suas

realizações de restarem para sempre estáticas, como relíquias de

museus. Enquanto as demonstrações do francês eram freqüentemente

baseadas num fervor místico, as do italiano centravam-se na realidade

cotidiana dos corpos, de suas funções e formas, como expressões de

personalidade. Manzoni assinou corpos, enlatou o próprio excremento,

inflou balões com seu próprio ar: o que sobrou do mundo.

Klein e Manzoni são registros autorais de obras que evaporaram –

os dois criadores interditaram as manobras mercadológicas, esvaziaram

os muitos usos comerciais ou políticos, desviaram das mais diversas

15 O nome real da exibição é “La spécialisazon de la sensibilité à l’état matière première en sensibilité picturale stabilisée”. Catálogo Yves Klein, pp. 273.

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perversões culturais, vetaram os vícios sociais. O romantismo do poeta

excêntrico, a arrogância do intelectual avant-garde, a aflição existencial

do artista aviltado pelo sistema, isto é, as personas e/ou as dores privadas

que caracterizaram seus antecessores via produção artística foram

substituídas por atitudes veramente intangíveis. Desencantados com tudo

e todos, desenganados por definição, os criadores do segundo pós-guerra

europeu não mais recorreram às fábulas ingênuas e ineficazes, aos

romances de cobertor ou às utopias delirantes, às monstruosas

construções para resolver suas misérias originais, seus tricôs terminais,

seus debates envergonhados sobre a eminente auto-exterminação da

espécie. Danto relaciona tal escoamento quimérico, esta decepção

egóica, mais uma vez, ao nivelamento arte-mundo:

The sixties was a paroxysm of styles, in the course of whose

contention, it seems to me – and this was the basis of my speaking of the ‘end of art’ in the first place – it gradually became clear, first through the nouveaux realistes and pop, that there was no special way works of art had to look in contrast to what I have designated ‘mere real things’. To use my favorite example, nothing need mark the difference, outwardly, between Andy Warhol’s Brillo Box and the Brillo boxes in the supermarket.16 Durante a década de 1950, as obras de Robert Rauschenberg e

Jasper Johns ostentaram tanto as dúvidas representacionais quanto as

indisposições contemporâneas, os dois afinavam suas linguagens com a

atmosfera de desconforto moral que embalava o período pós-Pollock.

Com trabalhos e estilo de vida incomuns, ambos refletiram uma profunda

insatisfação com a sociedade contemporânea e o desejo de escapar dos

valores sufocantes convencionais da classe média. Foram idiossincráticos

e abrangentes, singelos e triviais, excêntricos e vulgares: não explicitaram

protestos sociais em suas obras, mas contrapartidas culturais

consistentes. Para Leo Steinberg, a obra de Johns decide um corte

dramático para a (na) arte moderna.17

Em 1954, Johns começa a pintar de uma maneira radicalmente

diversa dos expressionistas abstratos – suas telas distinguiam objetos

familiares: alvos ou bandeiras norte-americanas, números ou letras.

16 DANTO, Arthur C. After the end of the art. p. 13. 17 STEINBERG, Leo. Other criteria.

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Símbolos, signos, representações de representações, estranham a

objetividade e a imprecisão da execução pictórica. Procedimento artístico

que faz com que pinturas & signos/obras de arte & símbolos oscilem

múltiplas naturezas, driblando as aferições convencionais que arbitravam

a distância entre as categorias representacionais do mundo. Johns

freqüentemente integrou elementos tridimensionais em suas pinturas –

réguas e termômetros, por exemplo, arranjados com liberdade. Suas

obras antecipam os humores da Pop Art. A noção que reunia e confundia

os múltiplos nexos representacionais entre arte & objeto de arte, orientou

uma ampla reformulação conceitual do ofício.

Sob a égide de Wittgenstein, Johns pode afirmar que o sentido de

uma obra suporta tanto a inexistência de significados – seja para artistas,

latinhas ou mesmo para a existência –, quanto a vigência de outros tantos

não tão nobres, porém, igualmente importantes: o significado (ou a

ausência de) de uma coisa vem junto ao modo de usá-la. Justificando,

assim, tanto a existência do artista como a da arte, que devolvem, como

num espelho, o sucesso ou a ruína de uma cultura. As mídias já haviam

criado um novo ambiente para experiências – o meio é a mensagem,

sentenciara McLuhan acerca das novas relações comunicacionais que

vinham catalisando uma nova (des)ordem de pensamento e um novo

modo de vivenciar os acontecimentos. Johns trabalhou, então, com um

amálgama de meio e mensagem. A pergunta frente a suas provocações,

será antes “como isto quer dizer?”; e, somente após este primeiro

confronto, admitimos que a pergunta necessária é “o que isto quer dizer?”

Duvidando da identidade corrente da coisa representada e

assuntando o modo de seu vir-a-ser no mundo, o artista joga com o

complexo semiótico da obra e das imagens corriqueiras. Letras e números

são conceitos que não podem ser representados, porque são eles

mesmos representações sem identidade material. Porém, a acuidade

delegada ao trato estético contradiz a idéia: na pintura e na imagem de

letras e números, as substâncias coincidem. Realçando o aspecto

tautológico da imagem e da operação artística, Johns destaca o absurdo

da enunciação de conceitos integrais, evidenciando o diálogo niilista com

Duchamp.

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Johns assenta uma série de dilemas filosóficos referentes à

linguagem da arte, à percepção e à realidade, conflitos há muito

localizados entre linguagem e pensamento. Através do filósofo austríaco,

ele nos reenvia à pintura de Magritte: sua linguagem não é uma

linguagem literária traduzida para a pictórica, mas já nasce pictórica,

como na obra do belga. Se, com Magritte pensamos, como ensinara

Foucault,18 “o que sei não é o que vejo, mas isto é uma pintura”, com

Johns a reflexão obrigatoriamente transforma-se em “o que eu vejo é o

que eu vejo, mas por que isto é arte?” O artista americano joga com

intencionalidades, mas, perversamente: examina signos, sinais, para

enfim, investigar a insipidez do momento.

O artista estabelece, assim, uma arte apenas aparentemente

amistosa com o público – de fato, sua obra exige um intenso embate

estético, um denso processamento intelectual. A começar pela pergunta

se o fato plástico disposto à sua frente é, realmente, arte. Entrelaçando

modos de pensar diferentes em uma mesma obra, Johns anula as

obrigações metafísicas da abstração a fim de transportar as implicações

do quadro para além da superfície. Uma armadilha belíssima, à la

Wittgenstein. Durante séculos o método científico de enquadrar

logicamente o mundo baniu a opinião, e assegurou o conforto existencial

através da certeza de uma realidade tangível. Por outro lado, ao que tudo

indica, cancelou a subjetividade do observador quando não revelou suas

disposições para com os objetos. Afinal, estes não se alterariam em

função de um olhar vindo de qualquer outra cultura, sexo, idade ou

experiências vitais. Desde Kant, no entanto, denuncia-se esta e outras

falácias da ciência e sabe-se (?) o que é representação.

* * *

As obras de Frank Stella, Tony Smith e Donald Judd19 estruturaram

18 FOUCAULT, Michel. Isto não é um cachimbo. 19 É indispensável esclarecer que Tony Smith teve sua formação em arquitetura e pertenceu a uma geração anterior à de Smith e Judd. Jamais pretendeu alinhar-se com os artistas da Minimal Art, no entanto seus cubes – Die e Black box – foram recrutados

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os meridianos conceituais do que mais tarde tomou a denominação de

Minimal Art.20 Stella tributa sua iniciação às Flags e aos Targets de Jasper

Johns: suas obras propõem charadas visuais. Smith jamais alegou o

emprego de grandes elaborações teóricas para conceber os dois cubos

negros, hoje essenciais para a compreensão do minimalismo. Os cubes

raptam o observador para uma convivência enigmática com peças

industriais tão brutas que descartam qualquer possibilidade de admissão

nos reinos convencionais da arte ou da funcionalidade. E Judd foi um

intelectual preparadíssimo para responder por suas equações

tridimensionais, por suas belíssimas formulações matemáticas.

Plasmadas em materiais up-to-date, extremamente afeitas ao gosto norte-

americano, suas peças insinuam a convergência do designer e do artista.

A aparente disparidade visual entre as demandas culturais

reclamadas na Europa e nos EUA do segundo pós-guerra deve muito às

configurações político-sociais do momento. De um lado, destruição e

derrota – vergonha e decepção; do outro, progresso e vitória – orgulho e

estímulo. No entanto, Europa e EUA definem, antes de tudo, modos-de-

ser – modus cogitandi:

(...) uma maneira de organizar a realidade para a tornar compreensível ao pensamento, maneira esta que pode manifestar-se em filosofia, em poesia, no mito, no rito, no direito, na vida quotidiana, na guerra e na política. Como tal, um modus cogitandi é um modelo abstrato: nunca se realiza plenamente e exclusivamente. É um ideal, um terminus ad quem que uma cultura determina e procura atingir. Não é certo que o atinja sempre sem se misturar com outras maneiras de pensar. Para quem observa uma cultura de longe, apresenta-se em perspectiva. (...) Este modelo é cultural, não ético.21

Em todas as situações visitadas, o algoritmo estético é o aliciamento

do individuo para o campo hermenêutico da obra, através da inclusão

física, da percepção diferenciada, ou da abrangência sociocultural

cobiçada desde a origem. Manobrando as lógicas mais elementares,

compartilhando os assuntos mais ordinários, tais modalidades poéticas

pretenderam cativar o espectador por outras vias que não a facilitada pela como obras especialmente significantes para o “movimento”. Ver, para este assunto, STORR, Robert. Tony Smith. 20 O termo foi cunhado por Richard Wollheim em 1965. 21 DUBY, Georges (org.). Umberto Eco, A civilização latina. p. 25.

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contemplação passiva. Bolindo com os juízos apriorísticos, estas peças

cutucam os mais arraigados conceitos sobre arte e, por extensão, sobre

tudo o mais. Visando decifrar toda uma classe de distúrbios similares, tais

disposições calculam a seqüência das operações mais convenientes à

empreitada: são mecanismos que utilizam meios análogos para atingir um

fim noutras áreas do raciocínio e da lógica, consistem de uma gramática

generativa da reconstrução dos valores humanos.

Ora, em resumo, qual é a raiz desses trabalhos? Diversos

levantamentos teóricos encaminham uma única resposta: o corpo

humano, o veículo sensível que (sempre) interfere em todos

discernimentos intelectuais. Se antes, a arte dizia o que gostaríamos de

ser, o que deveríamos ser, o que não poderíamos jamais ser, fornecendo

exemplos do que não somos; agora a obra deixa em aberto essas

mesmas questões: o que gostaríamos de ser, o que deveríamos ser, o

que podemos ser, o que somos? Visando a uma recondução aos seus

próprios interesses, recomendando a mobilização integral do ser humano,

desestabilizando suas certezas, essas efetivações artísticas convocam

todos os sentidos físicos intentando comover suas bases lógicas.

Rosalind Krauss adiantou, em parte, a questão:

A tese que venho defendendo até aqui é a de que a escultura de

nosso tempo dá continuidade a esse projeto de descentralização mediante um vocabulário radicalmente abstrato da forma. O caráter abstrato do minimalismo dificulta o reconhecimento do corpo humano nesses trabalhos e, portanto, dificulta nossa projeção no espaço dessa escultura, deixando intactos todos os nossos prejulgamentos já sedimentados. Entretanto, nosso corpo e nossa experiência de nosso corpo continuam a ser o tema dessa escultura – mesmo quando uma obra é formada por várias centenas de toneladas de terra.22

E mais, esta primeira “aversão”, por assim dizer, concorre para

confirmar o teor de realismo viabilizado pela obra. O espectador não é

enviado a outras esferas mentais, é mantido no “aqui & agora”. As peças

tratadas pela tese comungam uma especial preocupação com a realidade

física manejada por uma inusitada efetivação. Tamanha generosidade,

jamais anotada, não encontrou um entendimento imediato. O antigo

22 KRAUSS, Rosalind. Caminhos da escultura moderna. p. 333

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padrão assentava um procedimento inverso: muita apreciação do homem

e pouca solicitação fenomenológica.

Como os trabalhos de Stella, Beuys, Smith, Judd, Fluxus ou Warhol

podem ser mais “humanos” que as pinturas e/ou as esculturas anteriores?

Como cubos negros ou poliedros coloridos podem ser mais cordiais do

que paisagens bucólicas ou mais cativantes que as cenas históricas?

Como os episódios efêmeros do Fluxus ou as instalações de Beuys

conseguem angariar tanta atenção quanto as peças de Matisse ou

Picasso? Como a aridez das Black Paintings de Stella ou a vulgaridade

de Warhol conquistam a vigília do espectador?

Michael Fried acendeu um vigoroso debate ao levantar suspeitas

sobre ocorrências de associações ilícitas entre práticas artísticas, a seu

ver, “distintas” – a escultura e o teatro. O crítico acusou os cubes de Smith

de recorrerem aos expedientes da arte do teatro para mobilizar o

espectador. Stella dizia que nada havia na superfície de suas pinturas

além do que lá está – tinta preta sobre tecido esticado em um chassis de

madeira que define seqüências, losangos, retângulos e quadrados

decididos por um pincel governado por uma lógica extremamente simples.

Ora, se parassem por aí, não passariam de ilustrações inteligentes de

planaridades e objetividade. Coisas que já vinham sendo perseguidas

pela vanguarda parisiense. E talvez, há muito mais tempo, como suspeita

Michael Fried:

a história da pintura desde Manet pode ser entendida como

consistindo na progressiva revelação de sua essencial objetividade. (...) Mas Minimals estão indo muito longe, fazendo objetos tão literais que eles direcionam o observador para relações externas, teatrais, em detrimento de sua pureza estética..23

O cubo de Smith reaparece domesticado nas instalações de Judd:

são as arrojadas caixas solitárias com faces em plexiglas coloridos e

transparentes. Elas afastam as dúvidas de que nada guardam, nem

mistério ou enigmas. São presenças pura e simplesmente. As cores

utilizadas pelo artista são extremamente mais dóceis que o negro do Die

23 FRIED, Michael. Art and objecthood. p. 160.

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ou do Black box. Não mais ameaçarão os exegetas da arte moderna,

como Fried. Embora continuem plenos de ausências.

Michael Fried publica um complexo texto em 1967 tratando de várias

questões suscitadas pelas obras minimalistas em geral e pelas

declarações de Stella, Judd e Morris24. O ensaio, já famoso, intitula-se

“Art and objecthood” e sua tese central é definida da seguinte maneira:

(...) quero fazer uma afirmação que não posso esperar provar ou concretizar, mas que, não obstante, acredito ser verdadeira: o teatro e a teatralidade se encontram hoje em dia em pé de guerra, não apenas com a pintura modernista (ou a pintura e a escultura modernistas), mas com a arte em si e, até o ponto em que as diferentes artes podem ser descritas como modernistas, com sensibilidade modernista em si. Esta reivindicação pode ser dividida em três postulados:

1) O sucesso, até mesmo a sobrevivência das artes, passou a depender cada vez mais de sua capacidade de vencer o teatro. (...)

2) A arte degenera na medida que se aproxima da condição de teatro. (...)

3) Os conceitos de qualidade e valor – e, na proporção em que estes são centrais para a arte, o conceito da própria arte – são significativos, ou inteiramente significativos, somente no âmbito das artes individuais. O que reside entre as artes é teatro. 25 Comecemos por identificar uma preocupação de Fried com as

“misturas” entre as artes que, venhamos e convenhamos, nunca fez parte

do programa das vanguardas e menos ainda da arte do segundo pós-

guerra. A briga era pela pureza da pintura, contra as formas plásticas que

aportaram em sua superfície com o intuito de construir um real “dentro” da

tela, ignorando a existência do próprio plano que a sustentava.

Resumindo, a luta da pintura não era exatamente contra a escultura, mas

com os elementos estranhos à sua atualidade de pintura. Era um

problema de foro íntimo da pintura a ser resolvido internamente, ou seja,

uma autocrítica.

No mais, conhecemos algumas iniciativas vanguardistas que foram

justamente na direção contrária à tal não-contaminação exigida por Fried.

Surrealistas e dadaístas que o digam. Já a arte da segunda metade pós-

guerra, acabou por assentar algumas novas categorias artísticas que não 24 BATTCOCK, Gregory (org.). “Questions to Stella and Judd”. In Minimal art: A critical anthology; “Specific objects” (Donald Judd. Écrits) e “Notes on sculpture” (Gregory Battcock, idem), respectivamente. 25 FRIED, Michael. Art and objecthood. p. 163.

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constavam do programa da tradição – as peças de Stella, por exemplo,

são objetos específicos que fazem uma baldeação entre a pintura e a

escultura. E não foi por descuido do artista – esta era a busca.

Dentre os muitos “princípios estéticos” do minimalismo, nada fora

definido acerca de um possível abrigo dos preceitos teatrais. Portanto,

nada impedia as experiências noutras searas artísticas. Aliás, Fried

enquadrou no delito apenas Tony Smith e Robert Morris. Deste último,

nada temos a dizer já que artista & obra apresentaram-se

sistematicamente no teatro. Rosalind Krauss, que responde ao crítico no

texto Balés mecânicos: luz, movimento e teatro, encerra assim a

discussão: Fried afirmara que a teatralidade deve atuar em detrimento da

escultura – turvando o sentido da natureza singular da escultura, privando-a, desta forma, de um significado que era escultural e privando-a, ao mesmo tempo de seriedade. Porém a escultura que acabo de abordar [Morris dentre outros] baseia-se numa impressão da insuficiência do que era escultura, porque fundamentada em um mito idealista. E, ao tentar descobrir o que a escultura é, ou o que pode ser ela, utilizou-se do teatro e de sua relação com o contexto do observador como uma ferramenta para destruir, investigar e reconstruir.26

E quanto a Tony Smith? Ameaçado pela obstinação silenciosa e

opaca do cubo negro, Fried viu-se obrigado a permanecer perambulando

em torno da peça, imaginando uma situação inversa à relação entre

público e atores num teatro de arena. Vejamos como o crítico chega à

teatralidade: para ele, o efeito de presença é obtido na marra por conta da

escala “humana” do objeto; segundo, a perfeição geométrica captável de

um só relance assemelha-se às relações superficiais do dia-a-dia entre os

humanos; e, finalmente, o grande vazio aparente indicaria a existência de

uma vida interior, secreta. Daí que Fried conclui que o cubo é

antropomorfo. É como se o observador estivesse procurando conhecer

outra pessoa e a situação que o reúne ao cubo consiste, então, em pura

teatralidade.

O que confundiu o crítico foi o fato de que o verdadeiro alvo destas

peças é o corpo do observador e a experiência da reunião com elas – daí

26 KRAUSS, Rosalind. Caminhos da escultura moderna. p. 289

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o “antropomorfo”. As sensações experimentadas por Fried foram

transferidas para o cubo, já que, dos primeiros momentos com

paralelepípedos, não existe segurança acerca de identidades – quem é o

sujeito e quem é o objeto? São coisas que só a partir desta convivência

poderão ser pensadas – e tal é a obra continuando no tempo. O que

assusta e o faz passar adiante rapidamente a sensação é perceber que

um “eu” desconhecido – “eu sou assim?” – está sendo construído pela

experiência.

Uma vez que a Minimal Art não admite a contemplação de

narrativas, Fried supõe que exista um ritual de acasalamento público-

obra. Por serem extremamente eloqüentes, as obras da modernidade

histórica satisfaziam-se – e nos satisfaziam – com uma plácida

contemplação através da qual tudo que tinha de ser dito estaria, segundo

Fried, “presente e seria apreendido instantaneamente”. Do lado de cá do

Atlântico, a proposta de “fruição” nestes anos do segundo pós-guerra

apostam na experiência matérica das coisas mesmas. Destinam-se, de

fato, a um tipo de experiência estética diferenciada.

Daí a busca de uma radical planaridade, a urgência da

tridimensionalidade, enfim, a clareza das propostas artísticas se torna

mais pertinente ao momento. Isto é o que vai obrigar o espectador a

vivenciar atitudes estéticas mais exigentes e densas – incluso aqui o

movimento do corpo em torno da obra. Mas a experiência obra-

espectador-espaço não configura necessariamente um teatro.

A orientação que se busca vem a ser uma repotencialização da vida

através de efetivações poéticas. Tal coexistência estética oferta uma

vivência inaugural e, portanto, manifesta a abertura de um campo

hermenêutico no qual vibram possibilidades para o questionamento do

ser-no-mundo. O termo mais correto seria literalidade – essas obras são

tão diretas, literais mesmo, cristalinas em seus “dizeres”: Stella oferta

puzzles gigantescos que só requerem as mais básicas operações lógicas

do observador, Beuys é um ator de “feira livre” encarnando a

desorientação espiritual do momento, e os cubes de Smith acionam uma

regressão antropológica; Judd exibe a elegância da tecnologia

contemporânea, o Fluxus demanda o emprego da criatividade no

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cotidiano, e Warhol sanciona ironicamente o gosto popular, contra os

privilégios elitistas do mundo da arte.

Sabemos que o sentido está mais entranhado do que manifestado

pela obra. E, entranhada, a agonia está lá, é real. E não está sozinha, já

que também lá estão estampados não só os agentes invisíveis,

catalisadores de um sentimento, mas também os meios visíveis que os

representam de algum modo, pulsando a sensação de realidade emanada

pela obra. Krauss atribui o desconforto do observador contemporâneo à

descentralização mediada pelo caráter abstrato do minimalismo. Porém,

não se trata apenas de um recurso de estilo e, assim, o artista não

“repassa” tão somente um valor vital ou sensual, (...) mas o emblema de

uma maneira de habitar o mundo, de tratá-lo, de interpretá-lo (...).27 A

abstração ameaça poderosos constructos, seus recursos celebram,

simultaneamente, os ajustes estranhos e familiares, angariam todas as

instâncias lógicas. Desconstroem os pactos que fomentaram a

devastação do segundo pós-guerra através de instigantes jeux d’esprit. O

que há de ambíguo e irredutível em todas as grandes obras de arte,

explica Merleau-Ponty,

... não é uma fraqueza provisória de que se poderia esperar libertá-las, é o preço a ser pago para ter uma (...) linguagem conquistadora, que nos introduza em perspectivas alheias, em vez de nos confirmar nas nossas.28

As obras que expressam a desolação nos enviam sinais de coisas

que, à primeira vista, desejávamos confirmar; depois deste primeiro

encontro, não desejamos mais ter encontrado tal ressonância, ter tomado

conhecimento mas, aí, queremos saber muito mais e para sempre. Somos

perversos por natureza e, de uns tempos para cá, isto que sempre fora

disfarçado pela civilização tornou-se rotina.

De fato, estes assuntos não são novos, foram tratados à exaustão

pela vanguarda histórica, como vimos. O tema já foi até diretamente

atacado por Nietzsche, que despachou inúmeros avisos acerca da

27 MERLEAU-PONTY, Maurice. “A linguagem indireta e as vozes do silêncio”. In Signos. p. 55. 28 MERLEAU-PONTY, Maurice. “A linguagem indireta e as vozes do silêncio”. In Signos. p. 81.

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perspectiva trágica do homem: é preciso aceitar a vida e a realidade com

total conhecimento dos seus aspectos ruins. Aceitar a realidade como ela

é, sem auto-enganos: a única natureza do homem é não ter natureza.

Não é possível encontrar definição para o que o homem é, porque ele

simplesmente é. Ou, como em Clement Rosset: qualquer definição

duplicaria uma realidade do que é singular. A filosofia tem que servir para

viver a realidade e não para duplicá-la.29

* * * A preocupação com um possível resgate espiritual do homem

remete ao “quase manifesto” filosófico de Edmund Husserl intitulado “A

crise da humanidade européia e a filosofia” (1935), no qual o pensador já

advertia para o perigo que residia na falência da humanidade européia,

desta humanidade que havia perdido a significação de depositária

espiritual herdada da Antiguidade grega e que ela mesma teria alterado.30

Beuys apresentou uma semelhante disposição para “manifestos” de

caráter político-filosóficos nos quais a tônica era a crítica ao

“irracionalismo” advindo da perda do sentido vital do racionalismo grego –

logos –, o saber substancial perdido pela civilização moderna. Para o

filósofo, a humanidade européia compreendia o complexo de todas as

culturas oriundas da civilização grega – mais precisamente do VII e do VI

séculos a.C. – e, assim, tudo o que repete tal sentido vital grego seria

europeu per si.

O artista dirige-se justamente ao homem ocidental cuja história

fragmentada torna a sua contemporaneidade tão contraditória: propõe um

retorno à sabedoria elementar. A perda da totalidade que a filosofia

representava como ciência única que era, a mais alta criação espiritual

dos gregos, na medida em que abraçava tudo o que é – uma ciência

universal –, resultava no desmembramento típico do cartesianismo, na

diversificação em ciências particulares que pretendiam dar conta 29 ROSSET, Clement. A antinatureza. Ver também as considerações do autor sobre a mesma questão em O real e o seu duplo. 30 STRASSER, Stephan, Introdução de La crise de l’humanité européenne et la philosophie, de Edmund Husserl, p. 227.

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separadamente das diversas abrangências do ser, setorizando o

conhecimento em dois “monstros” que são a ciência e a filosofia moderna.

Beuys, como Husserl nos idos da década de 1930, viu a urgência de se

compreender o espírito, já que a origem da crise estaria no naturalismo

com que a modernidade histórica pretendeu dar conta dos

desapontamentos existenciais. Ou ainda mais especificamente, no

objetivismo (na sua concepção psicofísica) que confere ao espírito uma

realidade natural como se fosse um anexo real dos corpos..31 O tão

nefasto naturalismo, segundo o pensador, constitui a banalização e o

embrutecimento da força do espírito. Isto é, o espírito deixa de ser espírito

para se tornar algo apreensível como matéria: Os gigantescos sucessos do conhecimento da natureza devem ser

agora estendidos ao conhecimento do espírito. A razão provou sua força na ordem da natureza. Do mesmo modo que o sol é o mesmo sol que ilumina e aquece, assim também a razão é razão única (Descartes). É necessário que o método das ciências da natureza revelem também os mistérios do espírito.32

Beuys reivindica a universalização de seu material autobiográfico,

expondo a si mesmo como um autêntico fenômeno europeu, criticando a

Aufklärung que teria mergulhado o homem num niilismo frio e distante. O

artista ritualiza cada um de seus atos, usa a terminologia cristã ou ainda

os símbolos trazidos dos mitos para obter, assim, uma renovação

espiritual através do retorno a sabedorias pré-científicas ou mesmo pré-

letradas. Tanto quanto Husserl, Beuys parece alertar constantemente

sobre a confusão que afeta as relações de método e de conteúdo entre as

ciências da natureza e as do espírito que se tornam insuportáveis.33 O

fracasso das tentativas de nos aproximarmos do espírito acirra o duro

embate com o real que temos diante dos olhos, desgovernado e

totalmente desprovido de sentido: um “irracionalismo” como culto da

liberdade do espírito. A perda da espiritualidade, isto é, da

autocompreensão do espírito, significa a perda da totalidade e uma

conseqüente ameaça de barbárie objetivista. É preciso que o espírito seja

tratado como espírito de maneira sistemática, o que implica para Husserl 31 HUSSERL, Edmund. La crise de l’humanité européenne et la philosophie, p. 252. 32 Idem. p. 25. 33 Idem. p. 254.

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um novo racionalismo: A crise da existência da Europa tem apenas duas saídas: ou a

Europa desaparecerá se tornando sempre mais estranha à sua própria significação racional, que é seu sentido vital, e soçobrará ao ódio do espírito e à barbárie; ou bem a Europa renascerá do espírito da filosofia, graças a um heroísmo da razão que se sobreporá definitivamente ao naturalismo.34

Assim como Husserl, Beuys alimentou esperanças de reconquistar

os valores históricos e pareceu mesmo adotar esta “missão”, pedindo um

novo homem renascido do sofrimento e da paixão para que se preserve a

imaginação humana e a expressão criativa como tarefa infinita. O filósofo

espera a renovação do racionalismo com a mesma finalidade: A ratio que está agora em questão é a operação do espírito que se

compreende a ele mesmo de maneira realmente universal e realmente radical; esta compreensão toma a forma de uma ciência universal, capaz de responder por ela mesma e que inaugura um mundo absolutamente novo de atividades científicas, onde todas as questões imagináveis encontram seu lugar: as questões do ser, as questões de norma, as questões ditas da existência.35

Se, por um lado, Beuys e Husserl adotam questões originárias

semelhantes, por outro, é preciso, obviamente, diferenciá-los no que

concerne aos impulsos intelectivos: o primeiro é o que pode-se nomear de

“romântico especulativo”, o outro, como atesta a totalidade de sua obra

filosófica, um “meticuloso racionalista”. O diagnóstico é o mesmo, mas o

remédio, muito diferente.

Porém, foi somente na esteira das perplexidades do segundo pós-

guerra que tais considerações encontraram um terreno fértil para o pleno

desenvolvimento de suas “profecias”. Benjamin, Adorno, Heidegger e

Wittgenstein são alguns dos pensadores que cedo esquadrinharam as

questões recentemente atualizadas por Harbemas, Gadamer e Vattimo,

dentre outros.

* * * 34 Idem. p. 258. 35 Idem. p. 256.

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Torna-se clara a necessidade de uma nova dimensão crítica.

Algumas leituras, meramente casuais, encorajaram a liberdade crítica

procurada nesta tese. O Rembrandt de Georg Simmel foi um desses

estímulos. Um trecho, em especial, resume o empenho de se estabelecer

uma concepção de arte mais heurística do que dogmática: Il me semble à présent que l’une des tâches essentielles qui

incombent à la théorie de l’art, c’est justement de nier de plus em plus ce caractère immédiat du rapport entre la réalité et l'ouvre d’art. Il faut absolument reconaître que l’art est tout simplement une création formelle autonome, et qu’en tant que mise en forme des contenus universels il ne se nourrit pas d’emprunts à cette autre mise em forme que nous appelons la réalité. La fait que tous le grands artistes ont étudiés inlassablement la réalité naturelle ne constitue pas le moins du monde une preuve du contraire. Car si, comme je le suppose, l’ouvre d’art procède d’un germe psychique, qui ne contient pas du tout son extensivité qui deviendra visible à la fin, mais dont celle-ci représente une conséquence tout à fait allotropique de celui-là – cela ne préjuge en rien des conditions et des incitations dont l’âme de l’artiste a besoin pour que ce germe naisse en elle. 36 Decerto que o parágrafo guarda uma essência modernista, mas a

noção ampliada de “alotropia”, é instigante e atualíssima. Definindo a

capacidade de um mesmo elemento apresentar-se sob diferentes formas

físicas ou simbólicas, o autor estende o alcance do termo para explicar a

faculdade do “germe anímico” que rege as manifestações plásticas.

Contaminado pelas contingências, o “elemento” desenvolve uma

seqüência alotrópica: a criação artística não resulta de uma adequação

formal, de um ajuste modal entre realidade e representações humanas, e

sim de um acordo psíquico.

A superfície material do mundo, que apenas a percepção estética

pode referir-se, amargou um longo processo purgatório. A ratio moderna,

incomodada pela inevitável auto-reflexão advinda da presença física,

deflagrou um encadeamento tão amplo quanto complexo de seqüências e

conseqüências, que demandou a reconvocação de uma atividade

intelectual alternativa para dar conta dos muitos imprevistos existenciais.

Dos tempos em que apenas dois eixos estruturais básicos definiam as

ações humanas – sujeito/objeto & superfície/profundidade, cuja

36 Georg Simmel. Rembrandt. p. 52

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intersecção já constituía um campo hermenêutico –, aos anos das

incontáveis experiências interdependentes, da crise da

representabilidade, da crescente relativização da vida em geral, a

aventura moderna comandou uma intensa atividade hermenêutica e,

talvez, exigiu sua exclusividade. O campo hermenêutico produz o pressuposto de que os significantes

da superfície material do mundo nunca são suficientes para expressar toda a verdade presente na sua profundidade espiritual, e, portanto, estabelece uma constante demanda de interpretação como um ato que compensa as deficiências de comunicação. 37

A arte de adivinhar, entender e/ou julgar as muitas formas de

interação humana, retomada pelas recentes inflexões filosóficas sobre os

alcances analíticos da prática hermenêutica, ou seja, quando os métodos

investigativos tradicionais revelaram-se inócuos aos procedimentos

poéticos, não consiste, exatamente, numa novidade. A retomada deseja a

resolução de um dilema, como insinua Hans U. Gumbrecht: Uma vez, contudo, que a percepção como ato físico e o mundo

material como seu objeto se tornaram novamente tópicos, surgem as questões de saber como eles se relacionam com um tipo de experiência que é baseada exclusivamente em conceitos – e se a percepção física e a experiência conceitual podem em todo caso ser mediadas ou reconciliadas.38

A própria linguagem já é sempre interpretação, enquanto procura

expressar o que se passa na alma de quem articula uma enunciação.

Interpretar é uma forma de “traduzir”, ou tornar compreensível um sentido

estranho ou ambíguo, caso em que uma nova formulação se sobrepõe a

uma outra. A realidade social, e sobretudo nela o fenômeno da

comunicação, possui dimensões tão variadas e mesmo misteriosas que é

mister atentar não só para o que se diz, mas igualmente para o que não

se diz. A hermenêutica trata da arte de perscrutar o sentido oculto das

produções humanas, na certeza de que no “contexto” há por vezes mais

do que no “texto”.39

37 GUMBRECHT, Hans Ulrich. Modernização dos sentidos. pp. 12-13. 38 Idem. p. 14 39 GRONDIN. Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. Apresentação de Benno Dischinger. p. 10.

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Ora, depois de Freud, pouco restou intacto dos constructos do

humanismo clássico, não sobraram muitas dúvidas sobre os mandos e os

desmandos do inconsciente. Então, como os relatos convencionais, ainda

que atrelados aos aspectos puramente formais, poderiam dar conta de um

cubo de Tony Smith, senão através de métodos heterodoxos? E o que

dizer das ocorrências proselitistas do Fluxus? Ou dos vários modos de

siderar o espectador promovidos por Beuys? Como enquadrar as

desorientações estéticas de Warhol? Como balizar as obras de Stella e

Judd? Os procedimentos de natureza hermenêutica, aplicadas às

múltiplas modalidades de expressão do discurso humano, participam de

uma indispensável tarefa crítica, num momento em que não mais é

admissível estacionar o pensamento lógico em teorias ou metodologias de

compreensão e interpretação já caducas, estéreis ou inoperantes.

Sem dúvida, a hermenêutica resgata os trâmites da inteligência

emocional, uma espécie de sensibilidade ingênua própria à Idade Média,

há muito condenada. Hans Georg Gadamer explica, via Jean Grondin, no

que consiste, afinal, mais exatamente, o aspecto universal da

hermenêutica:

(...) no verbum interius (...) [A Universalidade] está na linguagem interior, no fato de que não se pode dizer tudo. Não é possível expressar tudo o que está na alma, o lógos endiáthetos. Isso me provém de Agostinho, do “De Trinitate”. Esta experiência é universal: o actus signatus nunca coincide com o actus exercitus.40 A obra de Beuys promove um reenvio ao pensamento dos

românticos alemães, solicita uma ampla reavaliação dos serviços

civilizatórios modernos. O artista convoca uma drástica regressão

espiritual: seus chamados repotencializam os ensinamentos estéticos do

romantismo, e os somam às práticas tribais. Beuys retoma, assim, as

polêmicas suscitadas pelas reformas culturais do Iluminismo. Há muito o

terreno teórico vinha sendo preparado para o implemento de novas

condutas críticas. Aliás, os muitos avisos filosóficos, as considerações

poéticas concorreram pari passu para as ocorrências trágicas, para o

acirramento da ratio moderna, e adiantaram uma saída honrosa para o 40 Idem. pp. 19-20.

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beco existencial promovido pela modernidade. Tais raciocínios

mostraram-se atuais, lúcidos e úteis para os múltiplos pensamentos pós-

modernos.

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