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Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec, 1993. 229 páginas. O cotidiano profissional - 41 - 2 O cotidiano profissional a história em vidas de trabalho Doutora Emília, Doutor Fábio, Doutor Paulo, Doutor Maurício, Doutor Silvio, Doutor Nélson, Doutor Antônio, Doutor Luís e Doutor Carlos 1 contam a história de uma mudança, a passagem de uma a outra “profissão” e de uma a outra identidade profissional: eles fazem parte daquele coletivo quer testemunhou a criação da medicina tecnológica. Foram eles agentes da inovação, renovando a prática, incorporando a especialização no trabalho e as tecnologias materiais, ao mesmo tempo em que buscaram preservar aspectos e componentes que tinham caracterizado uma identidade passada e da qual partiram no início da profissão. Identidade forjada no interior de uma medicina homogeneamente exercida como prática liberal e com a qual eles não conviveram exatamente, mas da qual tomaram a concepção de autonomia que reconhecem como seu ideal de prática. E mesmo supondo que preservavam, por seus procedimentos e ajustes, o caráter “universal” da prática, mantendo, através da autonomia reconstruída, supostamente intacta a essência” daquela mesma identidade primeira, constituíram-se de fato em sujeitos também da reconstrução das concepções acerca do trabalho médico, a partir das quais outra e nova identidade passa a firmar-se. Partiram eles do princípio de que a prática seria adequada e tecnicamente bem qualificada quando se encontrassem condições nas quais a racionalidade do ato médico, tanto seria progressivamente conformada pelo plano científico-tecnológico, quanto se manteria assentada no julgamento e poder decisório individual do médico. De certo modo essa conciliação tem por suposto a possibilidade de se estabelecer, entre o plano científico-tecnológico (configurado sobretudo no equipamento material, nesse período do histórico de suas vivências profissionais) e o empenho ou a capacidade

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Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,

1993. 229 páginas.

O cotidiano profissional - 41 -

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O cotidiano profissional – a história em vidas de trabalho

Doutora Emília, Doutor Fábio, Doutor Paulo, Doutor Maurício, Doutor

Silvio, Doutor Nélson, Doutor Antônio, Doutor Luís e Doutor Carlos1 contam a

história de uma mudança, a passagem de uma a outra “profissão” e de uma a outra

identidade profissional: eles fazem parte daquele coletivo quer testemunhou a criação

da medicina tecnológica.

Foram eles agentes da inovação, renovando a prática, incorporando a

especialização no trabalho e as tecnologias materiais, ao mesmo tempo em que

buscaram preservar aspectos e componentes que tinham caracterizado uma identidade

passada e da qual partiram no início da profissão. Identidade forjada no interior de uma

medicina homogeneamente exercida como prática liberal e com a qual eles não

conviveram exatamente, mas da qual tomaram a concepção de autonomia que

reconhecem como seu ideal de prática. E mesmo supondo que preservavam, por seus

procedimentos e ajustes, o caráter “universal” da prática, mantendo, através da

autonomia reconstruída, supostamente intacta a essência” daquela mesma identidade

primeira, constituíram-se de fato em sujeitos também da reconstrução das concepções

acerca do trabalho médico, a partir das quais outra e nova identidade passa a firmar-se.

Partiram eles do princípio de que a prática seria adequada e tecnicamente

bem qualificada quando se encontrassem condições nas quais a racionalidade

do ato médico, tanto seria progressivamente conformada pelo plano

científico-tecnológico, quanto se manteria assentada no julgamento e poder decisório

individual do médico. De certo modo essa conciliação tem por suposto

a possibilidade de se estabelecer, entre o plano científico-tecnológico

(configurado sobretudo no equipamento material, nesse período do

histórico de suas vivências profissionais) e o empenho ou a capacidade

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de decisão pessoal de cada médico, as mesmas formas de articulação que

anteriormente se tinham estabelecido entre o médico liberal e o saber. Partiram nossos

médicos, portanto, do pressuposto da necessária preservação de um momento

essencial de autonomia no interior da prática, concebendo-o como fator que deveria

presidir o modelo operatório. Mas, ao buscarem objetivamente um modelo consistente

com esses princípios, transformaram o trabalho, nele recortando um conjunto

destacado de procedimentos, que individualizaram, isolando-os de outros

componentes do exercício profissional. Assim, tendo separado um pouco “o joio do

trigo”, prosseguiram aprofundando as cisões já dadas no trabalho liberal.

Seus movimentos significaram para eles a busca de uma independência de

ação e de julgamento. Busca que veio dar-se através da demarcação de um espaço de

trabalho que seria uma espécie de “território livre” e no qual reviveriam, de modo

análogo à medicina liberal, a plena autonomia de trabalho. Esse território onde o

desempenho poderia ser totalmente livre porque circunscrito ao âmbito pessoal do

médico, correspondeu ao consultório particular. Por isso, essa forma institucional de

organização da produção dos serviços viria assumir a qualidade de única forma capaz

de corporificar as condições necessárias e adequadas para o exercício autônomo.

Assim sendo, no mesmo sentido em que promoveram a reconstrução da autonomia,

iniciaram uma reorganização do consultório, como base institucional da produção dos

serviços. E uma vez reorientada sua prática, produziu-se um novo consultório privado

do médico, por conseqüência produzindo-se, a seu respeito, toda uma outra

conceituação.

A individualização do exercício profissional e a liberdade correlata,

concebidos como atributos necessários para a prática e para sua forma institucional

ideal de realização, constituíram, sem dúvida, as questões centrais com as quais

cotidianamente se defrontaram estes nossos entrevistados. É esta a razão pela qual a

interpretação que fizemos de suas vivências singulares, e que delas considerou alguns

pontos sem pretender constituir uma análise exaustiva, caminhou pelas narrativas

privilegiando essa mesma questão da individualização e da liberdade pessoal.

Buscamos, porém, cotejar a subjetividade e seu exercício

na prática profissional com os determinantes sociais que fazem, do

comportamento de cada um, um desempenho social. Também buscamos

contrastá-los com as condições históricas concretas que demarcaram os

espaços e as formas possíveis dessa atuação individual. E assim o fizemos porque foi

nossa pretensão resgatar o modus operandi construído por esse segmento

profissional, ao se articular ao modelo geral da medicina tecno-

lógica. Foi igualmente nosso propósito apontar para esta articulação. Aliás, deveríamos

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observar, mais precisamente, que conhecendo o modelo de prática por eles produzido,

estávamos identificando suas relações com o conjunto da prática médica, ao mesmo

tempo que a reconhecíamos como prática social. Objetivávamos, assim, evidenciá-los

como parte de um sujeito coletivo, o médico, tanto quanto evidenciar a este como

sujeito social.

Evidências, no entanto, que nem sempre são conscientes. Poderíamos até

dizer que em função das concepções de vida e trabalho de que partiram, e em função

do modo com que lidaram com essas questões em suas vidas profissionais, esses

médicos não se reconheceram como constituindo as relações de produção mais gerais

da prática médica. Não se viram, portanto, como inseridos, desde o princípio de suas

vidas de trabalho, em processos de mudança. Antes supuseram o processo específico

do qual eles próprios participaram, como expressando uma espécie de movimento de

resistência. Uma estratégia de preservação por parte de um grupo de médicos que

ainda conseguiria manter a antiga identidade profissional: seriam eles os profissionais

liberais, distantes e diferentes dos demais, resguardando, pelo esforço pessoal, a

qualidade de assistência médica que derivaria de uma autonomia preservada. Por isso,

para eles, tudo se passa como se os novos tempos demarcassem a permanência de seus

exercícios profissionais em um modelo independente, um “outro tempo” no tempo

presente.

Doutora Emíllia nasceu no Estado de São Paulo, em 1902. Primeiro fez

odontologia e depois fez medicina, no interior da qual escolheu a Obstetrícia e

Ginecologia: Meu cartãozinho aqui... “Partos, operações, moléstias de senhoras.”

Filha de um “forte negociante” que faleceu aos 32 anos, a complementação da renda

familiar logo se tornou algo importante, muito embora com o segundo casamento de

sua mãe a família se tenha mantido em condições de renda estáveis. Não obstante, ser

independente e ter renda própria, que significava então ter uma profissão, era o lema

da casa, de modo que aos dezoito anos formou-se em odontologia. Não conheceu

médicos na família, e dos cinco irmãos nenhum outro fez medicina: apenas uma irmã

cursou também a Faculdade de Odontologia e outra, Fármacia e Filosofia; seu irmão é

advogado e as outras duas irmãs, pianistas. Exerceu a profissão de dentista por seis

anos, tempo em que ingressou como funcionária pública nos Correios e Telégrafos,

onde por dez anos trabalhou como tesoureira, por outros trinta anos, como médica.

Logo após formar-se em medicina trabalhou no ambulatório e hospital da

Cruz Azul, instituição de assistência aos integrantes da Força Pública e

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seus familiares, onde ficou por mais de trinta anos. Teve consultório privado durante

cerca de quarenta e cinco anos, e trabalhou em atividades hospitalares, como médica

contratada de hospital beneficente por trinta anos. Agora está aposentada.

Doutor Fábio é natural de Minas gerais, onde nasceu em 1910. Fez medicina

e trabalhou durante seus primeiros anos de formado só em Cirurgia Geral, depois disso

agregou à Cirurgia atividades clínicas (Clínica Geral e Pediatria). Trabalhou também

em Fisioterapia, como médico contratado em hospital privado por cerca de quinze

anos. Ao mesmo tempo, no consultório particular foi aos poucos delimitando seu

atendimento, da Clínica e Cirurgia Geral para a área de Ginecologia, à qual

posteriormente agregou a área de Obstetrícia, atividades que exerce até hoje e nas

quais trabalha já há cerca de 35 anos. Filho de comerciante e fazendeiro, conheceu

antes dele um tio médico na família e dois farmacêuticos. Tem vários outros primos

formados em medicina,, em Belo Horizonte e no Rio de Janeiro, mas de seus onze

irmãos e irmãs nenhum outro é médico: (...) de profissão mesmo, apenas um irmão fez

direito (...). Na minha família não era importante fazer medicina! Não! Não havia

entusiasmo, não! O pessoal era mais fazendeiro (...) eram mais do comércio (...) isso

que era o forte lá no sul de Minas. Antes de formado não trabalhou. Já médico sempre

trabalhou em atividades hospitalares, como contratado de hospital privado, e hoje

ainda tem seu consultório situado dentro do hospital. Ficou alguns anos em Campinas

e depois fixou-se em São Paulo. Tem consultório privado há cerca de 48 anos, e nas

atividades hospitalares trabalha há mais tempo ainda.

Doutor Paulo nasceu em 1912, numa cidade do litoral de São Paulo,

mudando-se muito criança para a Capital. Da medicina logo escolheu e fixou-se na

Pediatria. Na família um tio foi médico, e seu pai, embora não o tivesse sido, queria

muito ter um filho trabalhando nessa profissão. Dos três irmãos, porém, só ele fez

medicina. Durante o curso trabalhou como propagandista de laboratório farmacêutico.

Em sua vida profissional localiza um corte, na viagem que fez para estudar Pediatria

fora do país: Quando voltei, aí tinha outras condições. Trabalha até hoje no seu

consultório, e mantém essa atividade de clínica privada há cerca de cinqüenta anos.

Também exerceu atividades hospitalares, como contratado por hospital beneficente, o

qual, após 35 anos de trabalho, afastou-se.

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Doutor Maurício é natural da Ucrânia, onde nasceu em 1916. Veio para o

Brasil com cinco anos de idade fixando residência primeiro no interior do Estado e

logo a seguir em São Paulo. Entre os familiares diretos um tio era médico, e entre os

mais distantes, dois outros parentes também, que o orientaram e auxiliaram a fazer

medicina. Ainda estudante ligou-se à área cirúrgica e ginecológica, através do que

também exercia por vezes atividades remuneradas, sobretudo nos três últimos anos de

estudante. Nos quase cinqüenta anos que tem de prática em consultório privado,

atividade em que se mantém até hoje, sempre se ateve mais à Ginecologia, clínica e

cirúrgica. Depois que se formou, trabalhou como voluntário em hospital beneficente e

foi médico contratado do Sindicato dos Condutores de Veículo e Anexos, onde fazia

ambulatório, e contratado do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Empregados

em Transportes e Cargas (IAPETEC), respectivamente por dez anos e por mais de

trinta anos. Na Previdência, embora no início tenha exercido apenas atividades

hospitalares como plantonista, há cerca de sete anos passou a trabalhar só em

ambulatório, mantendo, porém, também a prática cirúrgica em hospitais da

Previdência para alguns casos. Mesmo aposentado pelo Instituto, além de seu

consultório, trabalha ainda nessa atividade ambulatorial: Até hoje nós sentimos uma

obrigação de fazer alguma coisa para essa área social. Sempre me perguntam: “Por

que você continua operando doente do INAMPS?”; respondo: “Porque me sinto

bem”.

Doutor Sílvio é nascido no interior do Estado de São Paulo, em 1915, e

ainda criança fixou-se na capital, no Brás. O pai sempre trabalhou no comércio e dos

três irmãos, ninguém fez medicina. Ele próprio oscilou na escolha entre medicina e

engenharia, profissão pela qual seus parentes próximos optaram: (...) sempre gostei

mais de clientes, de acudir as pessoas. (...) Foi mais por causa disso. Porque eu tenho

muita cabeça para raciocínio (...) eu deveria ir bem em engenharia. Sempre trabalhou

em Clínica Geral, primeiro em consultório privado, depois como proprietário de

hospital, exercendo atividades de enfermaria e ambulatório, por cerca de trinta anos e

quinze anos respectivamente. Trabalhou como médico perito da Previdência Social

por 35 anos. Não exerce atualmente a profissão.

Doutor Nélson sempre morou em São Paulo, onde nasceu no ano de 1912.

É filho de comerciante, sem ter na família outro médico. Começou a Faculdade de

Direito mas acabou desistindo e cursando medicina. Du-

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rante o curso trabalhou como propagandista de laboratório farmacêutico (...) a vida

sempre foi apertada para nós ... eu gostada de propaganda! Sabia falar, conversar,

discutir... Se o médico quisesse discutir, eu dizia... provava. Depois trabalhou também

como técnico de laboratório no Serviço Sanitário do Estado, ainda no tempo de

acadêmico. Durante toda sua vida profissional sempre trabalhou como clínico geral e

também na área de Moléstias Venéreas, através de atividades que exerceu por trinta

anos no Serviço Sanitário do Estado. Há cerca de 45 anos mantém sua atividade de

consultório privado, e mantém também um trabalho de médico plantonista em Pronto-

Socorro de hospital público, cargo que ocupa há já cerca de vinte anos. Por um período

mais curto, cerca de oito anos, foi médico contratado do setor público no Serviço de

Assistência Médica Domiciliar de Urgência (SAMDU).

Doutor Antônio nasceu em 1917, em Portugal. Veio para o Brasil ainda

criança, fixando-se com sua família no Brás. Não é apenas o único médico da família

mas o único de seus seis irmãos que tem curso superior: (...) nós éramos e sempre

fomos absolutamente pobres. Este é um problema importante porque isto é que

norteou a minha vida: a pobreza! Seu pai foi gráfico. Desde menino já trabalhava no

comércio, iniciando-se na escolarização já na adolescência. Não tinha contato com

médicos exceto enquanto paciente. Fez curso trabalhando e continuou em atividades

não médicos por um certo período também após formado. Dentre as áreas da medicina

fixou-se logo na Pediatria, especialidade que exerce até hoje. Trabalhou como médico

contratado em hospital público e hospital privado por 35 anos e 25 anos

respectivamente. Mantém até hoje atividade em consultório privado, o que fez já cerca

de quarenta anos.

Doutor Luís é natural de São Paulo, onde nasceu em 1929. Filho de médico,

conviveu desde criança com a medicina, o hospital, os doentes e a vida de médico: (...)

eu me lembro muito de sair com papai, de lá para cá, atendendo chamado... Durante

o curso de medicina não trabalhou, e após formado fixou-se mais ou menos na mesma

área de atuação médica que seu pai: atividade hospitalar e clínica de consultório,

exercendo Cirurgia Geral e Ginecologia. Após formado trabalhou algum tempo como

voluntário em hospital público. Há mais de trinta anos exerce atividade de

consultório privado, e simultaneamente é empregado do setor público, traba-

lhando ainda também em ambulatório de fábrica como médico contra-

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tado do setor privado. Mantém também um vínculo de trabalho em atividade

hospitalar, com um hospital privado, onde também tem instalado seu consultório, e

com o qual também seu pai mantivera relações profissionais. Por cerca de 25 anos

trabalhou em ambulatório médico de uma sociedade mutualista, de um bairro da

região norte da cidade.

Doutor Carlos nasceu em 1927 e sempre morou em São Paulo. Seu pai foi

gerente de uma fábrica de cigarros e não existiam médicos em sua família. Mesmo

assim, porém, sempre conviveu muito com esses profissionais e outras pessoas de

prestígio. Desde o tempo de estudante de medicina já exercia atividades remuneradas

como estagiário em serviços da própria faculdade, tendo nessa ocasião trabalhado em

laboratório clínico durante quase quatro anos. Depois de formado exerceu sempre

Clínica, inicialmente em atividades de atendimento de emergência e de Clínica Geral,

quando trabalhou durante os primeiros anos de vida profissional no Pronto-Socorro

recém-criado de um hospital público e num Pronto-Socorro de que foi proprietário

junto com outros seis colegas, além do trabalho em consultório de outro médico mais

velho. Na primeira atividade ficou apenas dois anos, na atividade de consultório e

como proprietário do Pronto-Socorro por cerca de cinco anos. Este último teve que

fechar; Eu adorava! Adorava porque era minha característica. Como eu não paro,

então para mim era... (...) Mas o serviço não rendeu. Não rendeu porque era tudo

cientista, né? Só depois destas atividades profissionais é que iniciou seu consultório

privado, que mantém há cerca de trinta anos e onde foi delimitando seu exercício para

área de Cardiologia, na qual, hoje, se mantém predominantemente. Ao mesmo tempo,

trabalhou desde o início de sua vida profissional em duas outras atividades de emprego

público: como médico contratado em hospital público há quase trinta anos e em que

até hoje trabalha; como médico-perito do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos

Industriários (IAPI), em que trabalhou cerca de 25 anos.

Os depoimentos desses médicos revelam que eles próprios fazem do

início da vida profissional um marco, um corte que se separa e até certo ponto

opõe dois segmentos dessa vida: o começo e o restante. Em primeiro

lugar, procuramos respeitar essa divisão, buscando identificar as caracterís-

ticas dos dois momentos em si mesmos, para só depois considerarmos a

própria divisão como uma questão. O primeiro desses dois momentos

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corresponde ao período que se dá em torno de um começo da vida profissional, em

que esses médicos se profissionalizaram e estabelecem a primeira forma de

organização da prática, o que conforme veremos não se restringe necessariamente ao

período pós-formado. Ser médico, fazer-se médico e Os referenciais da liberdade são

as partes em que dividimos a análise relativa a esse primeiro momento. O segundo

momento corresponde às transformações que eles mesmos operam no modelo inicial,

estabelecendo as reconstruções necessárias à preservação de núcleos centrais de seu

modelo primeiro, à proporção que cada vez mais as condições objetivas do exercício

profissional se distanciam dos padrões identificados ao verdadeiro exercício

autônomo. A liberdade refeita é o título que demos à análise desse momento. Por

último quisemos conhecer as razões pelas quais esses médicos delimitam tais

momentos, o que fizemos analisando o modo pelo qual eles próprios vivenciam o fato

de serem sujeitos históricos, inseridos em processos de mudança, no movimento do

real de que são partícipes. Observamos, então, como eles refletem sobre a mudança e

reconhecem o Sinal dos tempos.

Antes, porém, de examinarmos as narrativas é preciso salientar dois aspectos

relativos às condições históricas de que são elas produto. O primeiro é dado pelo fato

de que a mudança que relatam corresponde a uma reconstrução da autonomia que

fornecerá a seus agentes uma espécie de progressivo “constrangimento” de um

exercício autônomo-independente. Constrangimento que se dá em razão da

redelimitação das bases mais pessoais e subjetivas, na conformação do ato técnico.

Trata-se do redirecionamento da autonomia para outros espaços, isto é, para

os domínios do especializado e do tecnológico. Isto parecerá “natural” a seus agentes,

razão pela qual não será tomado exatamente como alteração, mas apenas decorrência

necessária do desenvolvimento científico. Assim, o problemático constitui a perda que

ocorreria na antiga base de apoio mais subjetiva, a qual realmente se contrai, ao ganhar

o exercício da subjetividade novos padrões. E isso evidencia, de outro lado, o fato de

que concebem a mudança sobretudo reduzida àqueles sentidos da realidade aos quais

atribuem valor negativo.

Em segundo lugar está o fato de que todos estes médicos iniciam suas

práticas com a base do plano pessoal já “contraída” por referência à do ideal da

profissão, posto que começam suas vidas profissionais sob as determinações de uma

medicina que já não se dá como prática tipicamente liberal. Mas se este é o seu traço

comum, mesmo no interior desse agrupamento, as condições objetivas da prática

médica transformam-se o suficiente para produzir identidades profissionais

diferenciadas entre si.

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É deste modo que, de um lado, eles participam do mercado de trabalho na

forma de uma inserção em que coexistem as situações de trabalho assalariado, de

emprego público ou privado, com a situação de trabalho “liberal” do consultório

particular, à qual identificam um padrão de prática “difuso e maleável”, próprio do

exercício de caráter “essencialmente” pessoal e que por isso assumem como a

principal atividade na profissão. De outro lado, ainda que para todos seja o consultório

o que de fato simboliza o trabalho profissional, o sentido que assume a convivência

com as atividades sob vínculos empregatícios não é exatamente o mesmo para o

conjunto dos entrevistados, parecendo mais lógico aos mais jovens dentre eles. Para

este parecerá bastante plausível a necessidade de um emprego como a forma primeira

e mais imediata da inserção no mercado de trabalho: Logo depois que eu me formei,

então, fui arrumar um emprego, dirá o doutor Luís.

Também de mesma forma a especialização, o equipamento material ou a

base hospitalar, são componentes da prática profissional muito mais naturais e

próximos do doutor Carlos do que da doutora Emília ou do doutor Fábio, enquanto

componentes básicos para se iniciar a prática. Assim, o contraste aparece quando a

doutora Emília, mesmo na situação de trabalho com vínculo empregatício, repousa sua

prática no parto domiciliar ou na absoluta simplicidade tecnológica do consultório,

enquanto que para o doutor Carlos, não será estranha a incorporação do

eletrocardiógrafo e do aparelho de radioscopia como parte dos instrumentais do

consultório, ou então a idéia de criar um serviço um pouco mais especializado, tal

como o seu Pronto-Socorro. Elas fazem parte já de seu cotidiano, situação incorporada

que ele reconhece como familiar.

Não obstante esta diferenciação interna, será o conjunto dessas vidas

profissionais que observaremos para as considerações que seguem, uma vez que as

condições mais atuais da medicina tecnológica, e nas quais têm todos elas amplo

período de vivência, estreita muito as distâncias que a descrita diferenciação

profissional, pela especialização da prática ou incorporação de equipamentos da época,

consegue estabelecer para aquelas vidas entre si.

SER MÉDICO, FAZER-SE MÉDICO

a) o espelho da profissão

A profissão representa para os indivíduos entrevistados a viabilização do

projeto de ascensão social que da um traz como expectativa de par-

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ticipação na sociedade, de modo a se reconhecerem, e serem reconhecidos, como

sujeitos sociais de prestígio e valor. Para alguns pode representar a simples

continuidade de uma posição social já conquistada pela família. Doutor Luís, por

exemplo, seguiu os passos de seu pai e esperou que o filho seguisse os seus. Para ele

tratava-se de um caminho natural:

A idéia de fazer medicina sempre existiu. Não sei se teria me passado pela

cabeça fazer outra coisa! (...) Então, você gostava de falar, de letras, de latim, ia fazer

direito; ou você era muito bom em física, matemática, gostava das coisas – vamos

dizer – de cálculo, ia ser engenheiro; ou você ia ser médico. Não tinha muitas... muitas

variações. Tenho impressão que mamãe talvez, tenha gostado de eu estudar medicina.

Papai, não sei! Evidentemente deve ter gostado. Trabalhei com ele a vida inteira,

depois, né? Mas... eu... não senti de ter sido forçado, nem induzido. De fato você

vivendo... mas isso não quer dizer nada! Você vivendo num ambiente que você pode

escolher outras coisas, né? Talvez eu tenha escolhido fazer o mesmo tipo de clínica,

isso sim. Tive a facilidade de ir lá, um consultório junto, igual, fazendo a mesma coisa.

Mas, meu filho, por exemplo, escolheu um negócio totalmente diferente. Ele andou

freqüentando cirurgia e acabou optando por ... por Psiquiatria, que não tem nada a

ver, né?

Para outros o caminho não e de continuidade, mas uma ruptura com a

dependência, na afirmação da capacidade individual de construir sua vida com base

nas condições que criará em seu trabalho. Doutor Fábio quase não foi médico porque

na família o importante era ser fazendeiro; doutora Emília buscava a independência

como mulher, na visão de futuro que a mãe sabiamente já elaborava:

“Para viverem, muitas filhas terão a fé, educação, instrução e mais auto-

suficiência na vida.” Sempre lembrava que tínhamos direito à vida, mas que tínhamos

também o dever nesta vida. Assim nos educou! Outrora a mulher cuidava da casa e

educava os filhos. O marido provia a casa (...) Todas as minhas irmãs também

estudaram curso superior. Eu tenho uma irmã pianista; outra também pianista e que

fez também a Escola “Alvares Penteado”; a outra irmã fez farmácia e filosofia; a

outra irmã fez odontologia; e meu irmão é advogado. E eu sou médica, consultora

hospitalar (...) porque mamãe queria que a gente tivesse assim uma profissão, né? e

ser auto-suficiente.

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Para o doutor Maurício, como imigrante, ser médico significou a

possibilidade de um trabalho estabelecido que pudesse afirmá-lo como autoridade e

cidadão de valor na terra estranha e torná-lo por isso parte dela:

Meus dois irmãos, mais velhos, que já estavam no Brasil quando vim, e que

eram como pais para mim, tinham uma casa de móveis, em Santos. Mas, no espírito

de nosso povo, a melhor fortuna que se pode ter na família é cultura, fazer uma

carreira que dignifique, uma carreira humana, digna; isso concorreu para que eu

fizesse medicina. Outro aspecto é o sentido da vocação. Sempre tivemos vontade de

ser útil em alguma coisa, inclusive em outros trabalhos paralelos à medicina.

Para o doutor Antônio representa uma ruptura com os padrões de pobreza e

uma vida melhor:

E por aí na minha adolescência, eu resolvi estudar. Eu fui, voluntariamente,

me matricular no ginásio, trabalhava, pagava as minhas mensalidades e estudei! (...)

Inclusive eu me lembro de um médico que tinha um consultório na Rua Bresser – eu

morava ali perto – e quando eu ia consultá-lo, eu achava um encanto aquele negócio:

a casa do médico, com a plaquinha dele: “Doutor Fulano de Tal”. Então, ele tinha

consultório em casa. Uma realidade: eu também tive consultório em casa. Aqui! Eu

morava aqui em cima! Depois é que eu mudei. Bom!, então eu achava um encanto

aquele negócio: aquela casinha do médico, com a plaquinha, entrava\ lá, aquele

consultório e ele – não sei porque não me dava muita bola; porque eu era moleque à

toa – examinava, auscultava... Por sinal eu nunca gostei muito de médico. Lógico!,

porque eu não... não gostava de tomar injeção, nem não gostava de que ele

examinasse a minha garganta... Não gostava! Mas eu tinha uma atração por aquela

situação de médico! Mas ser médico é uma coisa notável! Então, isso já existia. Isto é

que.. constitui a minha motivação de ser médico! Me lembro perfeitamente quando eu

era muito adolescente ainda, eu fui consultar um médico na Rua Bresser. Ele se

chamava Souza Ramos. Então, ele morava naquela casa onde ele tinha também o

consultório, na sala da frente. A casa tinha um portãozinho com a plaquinha dele. E

eu entrei; achei encantadora. Mas eu já... desde menino, gostava muito dos médicos

em geral. Onde havia um consultório médico, eu sentia uma certa atração

pelo consultório médico. Era uma coisa invisível! Inclusive porque eu era um

menino pobre. Nunca imaginei ... rapazinho pobre que nunca imaginei

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que fosse ser médico. Mas eu... eu tinha essa apreciação, essa.. Quer dizer, não era

um médico em particular. Eu citei esse em particular porque era um médico que eu fui

consultar... e que ele me examinou, etc. etc. etc. E me lembro que ele receitou... Era

um... um processo de vias aéreas superiores e ele me receitou umas inalações assim

desses ... dessas substâncias de anti-sépticos respiratórios que dissolvem na água

fervente, aspira aquele vapor... Que não adianta nada! É uma porcaria! Não serve

pra nada! Então por isso eu o citei, mas não é... Quer dizer, não foi ele em particular

que me influenciou. Quer dizer, no meu entender daquele adolescente pobre, o médico

era um indivíduo distinto na sociedade. Era um médico que tinha até um... um

indivíduo que tinha posição muito distinta na sociedade. E eu... hã... Os poucos

médicos que eu via ou que eu conhecia ... de vista, não de conhecimento pessoal, e

achava que eles tinham alguma coisa de especial. Então, eram indivíduos elegantes,

bem-falantes, conhecedores, humanos... Quer dizer, essas coisas todas! Então, esse

era um problema que eu sentia.

Para outros, como o doutor Silvio – Naquele tempo ele era doutor, o senhor

doutor – ser médico representa a autoridade. Além disso, representa a popularidade e o

reconhecimento, como figura magnânima e dedicada, que faz do médico pessoa

conhecida e querida, como aquela imagem do seu médico de infância, que o doutor

Carlos retém na memória:

(...) um médico que faleceu em 1941, doutor Nacarato. Eu tenho a

impressão que esse homem nunca cobrou uma consulta de ninguém! Ele era amigo

de todo mundo! Então, quem necessitasse, ia procurar o doutor Nacarato. E ele

estava sempre às ordens (...) É verdade que os médicos, nessa época eram pessoas,

assim, ilustres. Muito considerados! (...) Indiscutivelmente! Isso, todos os que eu

conheci! Todos! Alguns até me recordo que se a gente comparar com o conhecimento

que a gente tem hoje, eles eram ingênuos. Mas eram umas pessoas que tinham uma

influência importantíssima! Alguns eram conselheiros de família ... que a pessoa ia lá

no consultório dele pedir opiniões pra decisões e tudo. Até acerca... opinar sobre

casamento de filhos! Eram coisas desse tipo. Então o médico tinha uma influência

muito grande, mais do que as outras profissões, inegavelmente. Inegavelmente!

Para todos, porém ser médico significa a possibilidade de uma afirmação de

identidade social que em boa medida decorrerá de seus esforços e

Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,

1993. 229 páginas.

O cotidiano profissional - 53 -

desempenhos pessoais, onde alcançar o sucesso, nesta profissão socialmente bem-

sucedida, ainda se encontra neste período de seus primeiros passos profissionais (1930-

1955), relativamente mais dependente desse plano pessoal. A relação entre instrução e

autosuficiência, como aponta doutora Emília, enquanto possibilidade concreta de se

instalar um padrão de prática de exercício autônomo-independente, evidencia o sentido

da escolarização e da qualificação universitária como recurso necessária e por si

mesmo suficiente para a profissão. Ressaltemos que para tanto é central o fato de que,

até esse momento, o saber ainda representa o principal meio de trabalho, e sua posse, o

recurso suficiente para que o médico se estabeleça na vida profissional. Ser médico

podia ser assim simples como fazer-se médico por seu próprio esforço. As barreiras

sociais representadas pela escolarização e a seguir pela instalação do consultório e a

captação da clientela, ainda são nessa época passíveis de uma margem grande de

transposição pelo esforço relativamente mais individual.

Não obstante, devemos relativizar um pouco essa última afirmativa, pois

este esforço é apenas parte dos requisitos para ser médico: a própria camada social de

origem dos entrevistados (na maioria filhos de comerciantes, fazendeiros, gerentes de

indústrias grandes, funcionários públicos graduados) e a pequena presença de

indivíduos originários de famílias de baixos recursos nas escolas médicas, tal como

eles mesmos relatam, mostra como era socialmente difícil chegar à qualificação

profissional. O curso era longo, exigia grande empenho e a escola ocupava o dia

inteiro. Essa era a preocupação do doutor Carlos, cuja situação familiar piora muito

quando o pai é demitido do emprego já aos cinqüenta anos:

Medicina era um curso muito difícil, que o sujeito precisava estudar o dia

inteiro, não podia sair de casa, tinha que... E aquela era uma preocupação muito

grande porque eu me preocupava com a possibilidade de ganhar alguma coisa pra

fazer o curso. Precisava melhorar de vida porque nessa ocasião, também, aconteceu

uma problemática muito grave com meu pai e quase que... implicou na interrupção do

estudo... Enfim... mas enfim deu pra ir continuando com muita limitação e muita

economia...

Doutor Fábio também enfatiza esse aspecto ao relatar, em situação pessoal

oposta, a vantagem que obteve ao ter podido estudar e até mesmo exercer a prática, em

seus primeiros anos de formado, recebendo dinheiro da família. Nesse ponto o velho

foi bacana, é o modo de reconhecer o mesmo fato para o doutor Silvio:

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O cotidiano profissional - 54 -

A faculdade pra mim foi uma delícia! Gostei dela. Eu tinha vários colegas

de turma mais modestos do que eu. Mas tinha vários bem dispostos, parentes do

presidente Pena. E tinha até um colega negro. Ele era pobre também. Ele lutou muito.

A faculdade era uma coisa muito gostosa, a gente estudava... Mas eu nunca precisei

trabalhar. Nesse ponto aí o velho sempre se matou, né? Dava duro o velho! Aliás, o

meu filho me traga agora de velho, como eu trato meu pai. O velho sempre me tratou

bem. Eu não tinha dinheiro demais, mas também não faltava. Eu tinha as coisas que

precisava fazer.

Contudo, a época ainda inscrevia a possibilidade de se fazer os estudos

médicos trabalhando, para os estudantes mais pobres:

O tempo de faculdade – de estudo na faculdade – para mim foi muito difícil.

Pela seguinte razão: eu era um indivíduo pobre, casado, com um filho. Eu tinha só

uma vantagem: eu não pagava aluguel! Porque morava numa casa... numa casinha

velha que era da minha sogra. Então, não pagava aluguel. Esta era a única vantagem

que eu tinha. Mas as aulas da faculdade ocupavam o dia todo – de manhã e de tarde.

Eu tinha aula desde as oito da manhã até meio dia, depois das duas às seis, e eu

morava no Brás. Agora, acontece que já durante o primeiro ano, no começo, foi uma

dificuldade. Uma dificuldade porque não dava para trabalhar. Mas acontece que o

Colégio Anglo-Latino, que na ocasião era o melhor colégio de São Paulo, ele resolveu

dar, a título de prêmio, aos três alunos que mais se distinguiram no Colégio, dar um

emprego de professor. E entre esses estava eu! Então fui eu, foi um... e foram mais

dois colegas meus. Nós três que éramos os primeiros do curso. Então fomos

nomeados professores de Ciências Físicas e Naturais. Isso tinha uma certa

compatibilidade porque eu escolhia os horários. De fim de manhã, de fim de tarde e

de noite. Então dava para eu assistir as aulas na faculdade, sair correndo, ir para o

ginásio, dar uma ou duas aulas no ginásio. À tarde a mesma coisa: saía da faculdade

correndo, dava pra dar umas duas aulas no ginásio e, à noite, era livre. Eu dava mais

aulas à noite.

(Doutor Antônio)

Todo o esforço, porém, valia, pois a medicina era encanto, esperança,

conquista. Uma dificuldade que se realizava e compensa a quem nela se arrisca, como

conclui doutor Maurício:

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O cotidiano profissional - 55 -

Hoje mudou muito a visão filosófica da vocação médica! Bastante! Hoje,

infelizmente, o médico para poder atender um doente, pra ir à Santa Casa... pra ele já

onera, até o aprendizado fica um pouco mais difícil, porque a carreira médica é muito

onerosa para a classe social que não tem condições. São oito anos de... de vida. São

seis anos de curso; às vezes um, dois anos de pré-médico, são oito, e mais uns dois ou

três anos quando você quer sair da faculdade seguro do que você faz. Com esse

excesso de escolas médicas, esses rapazes têm que se jogar na vida de maneira muito

precoce, muito problemática. Não sei se é por vocação, por inclinação, por influência

dos pais, dos parentes, etc... É uma carreira sacrificada mas que realiza a gente.

A cada época evidenciam-se trabalhos correspondentes a essa representação:

a de serem formas de se colocar socialmente, de modo a obter prestígio, alta

remuneração e ascender no interior da estratificação social, situações que parecem

realizar-se na dependência do esforço de cada um, por meio da vontade, de

persistência em vencer dificuldades e da capacidade pessoal para fazê-lo. Nas

sociedades capitalistas e no interior dos trabalhos socialmente qualificados como

trabalhos “mais intelectuais”, essa imagem do empenho pessoal identifica-se à

escolarização, onde o sucesso parecerá derivar exclusivamente da persistência

laboriosa no estudo por parte do estudante.

A escolarização como promessa de “vencer na vida” e como produto de

disposições pessoais não é porém, apenas uma promessa falsa, uma imagem

totalmente enganosa da realidade. Ao contrário, a representação funda-se sobre a

realidade objetiva em que de certa forma e até certo ponto realiza-se a promessa, isto

é, confere-se crédito a uma imagem que dentro de determinadas proporções se efetiva.

Há portanto limites, há contenção dos espaços em que o concreto realiza a imagem.

Mas estes limites não estão reconhecidos na representação. Ao menos não na

representação construída pelo pensamento que é dominante, como veremos. E tal

como agora vemos, os limites tampouco perpassam a imagem que nossos

entrevistados trazem. No interior de seus discursos toda dificuldade parece esvanecer

ante a vontade individual, ainda que esta tenha que ser muito forte e verdadeira: uma

vocação.

Certamente poderemos encontrar nos dias de hoje, na sociedade dos anos

80, algum trabalho que se revista dessa qualificação de “profissão”. E com

certeza, dado o valor social do tecnológico atualmente, é provável que este

trabalho nem mesmo necessite deter o grau de “intelectualidade” que se

conferiu em outras épocas aos “trabalhos-profissões”. De qualquer

Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,

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O cotidiano profissional - 56 -

forma é possível identificá-lo: há trabalhos que ainda são representados, na ideologia

dominante, com esse caráter de trabalhos bem-sucedidos socialmente em razão de

qualidades pessoais de seus agentes. Vale dizer que, mesmo no mundo tecnológico ,

há trabalhos cujo êxito social parece vincular-se menos às tecnologias e mais aos

talentos, por serem êxitos em grande parte, embora não exclusivamente,

comprometidos com os esforços e desempenhos individuais. No período histórico que

examinamos, e que se passa em torno dos anos 40, são as “profissões liberais” e muito

acentuadamente a medicina que assim se apresenta na sociedade. Doutora Emília

evidencia esse aspecto já na decisão de fazer medicina e de optar pela especialidade,

parecendo que estudar, formar-se, definir um campo de trabalho é apenas questão de

decidir e fazer, ou então saber perceber seu próprio “dom” e realizá-lo, transpondo por

seu próprio empenho até as dificuldades dadas por sua condição de ser mulher.

Quando eu fiz odontologia, eu já queria ser médica. Mas eu fui fazer

primeiro aquilo que precisava, pra fazer frente às coisas da casa também, né? O

curso de odontologia era só dois anos. E eu clinicava no gabinete dentário das oito às

dez e das dezessete às vinte e uma horas. A profissão de dentista, naquela época, era

um trabalho de rotina e eu queria uma profissão que me desse algo mais. O de ser

médica a medicina. Seria médica de senhora: faltava mulher para atender a mulher.

Por pudor, as mulheres só procuravam o médico tardiamente, quando mais

acentuadamente estavam seus males. Comuniquei para mamãe a minha decisão e ela

disse: “É uma profissão para homens, minha filha! Precisa muito estudo e muita

coragem. E você é tão fraquinha.” “Bem – respondi – vou fazer meus preparatórios e

quando eu estiver pronta nós conversamos.” E como minha mãe era persistente, eu

também era! Puxei pela mãe (...) Eu fui escolhendo essa área mais por uma coisa.

Primeiro, por questão do meu temperamento. Eu tinha saúde, tenho raciocínio pronto,

tenho uma determinação imediata e a especialidade exige raciocínio, exige saúde.

Porque fazer Obstetrícia naquele tempo... Porque hoje já é um pouco diferente.

Naquele tempo precisava ter saúde, né? Levantar de noite, fazer um parto, por

exemplo, que a gente fica... De maneira que era questão de saúde e a minha

disposição dinâmica fez com que eu fizesse essa especialidade. Ao correr do curso eu

vi que... por exemplo, eu não seria uma mulher pra fazer – vamos dizer – pesquisa,

fazer... outros trabalhos que demandassem mais paciência, mais tempo, em virtude do

meu temperamento. Eu quis fazer medicina por pendor, por vocação! Não tinha

Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,

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O cotidiano profissional - 57 -

nenhum médico na minha família! A profissão médica... não é uma profissão! É uma

vocação! Naquele tempo era uma vocação!

Não obstante, é no interior desse mesmo depoimento que a relativização

desse “poder pessoal” em ultrapassar os obstáculos da vida social transparece:

delimitação já dada, de modo introjetado, consciente ou não, das próprias escolhas que

se concebem como exclusivamente definidas pelo esforço pessoal, o qual, porém, já

conhece de antemão os limites dos espaços em que poderá realmente vir a se

desenvolver:

Pra começar, médica – mesmo clínica geral – não examinava homem, né?

Aliás, acho que nem precisa. Hoje... tem quem trate de homem, né? Eu acho! Homem

é sempre homem e mulher é sempre mulher e sempre... Não dá certo! Em geral, as

médicas da minha época elas faziam Pediatria ou Clínica Geral, né? Mas aí, mais

ligado a parte de senhoras mesmo. Não me lembro de ninguém fazer... clínica de

homens, assim. Só atendiam mesmo senhoras, né? , vias urinárias só senhoras

mesmo. Mas hoje, a gente vê aquela doutora famosa aí que faz muito bem moléstias

ano-retais, né? Ela faz muito bem e faz Procto mesmo... Então, desde o quarto ano

que a gente se inclinava pra dentro das especialidades. Continuava com as suas

matperias básicas... mas já se inclinava, mais ou menos, naquilo que queria seguir. E

eu achei por exemplo, que a Clínica Geral era uma ... uma bela especialidade, mas

não se adaptava muito ao meu temperamento de imediatista, prática e objetiva. Então

eu achei que era difícil ser um bom clínico. E o bom clínico é o grande médico de

hoje, né? E o bom... o bom clínico é o grande médico de amanhã e sempre. Era difícil

ser um bom clínico. Porque... depende de muito estudo. Precisava estudar muito e

naquele tempo os recursos eram muito pequenos e os resultados não eram palpáveis,

por assim dizer. A área cirúrgica era mais... era mais objetiva, né? Era uma área mais

prática, mais objetiva, resultados imediatos! O cidadão... ficava bom ou ia... mas já

tinha resultado imediato só da... era mais útil a uma primeira vista, né? E eu fazia

toda essa parte como voluntária. Quer dizer, já ia me dirigindo mais pr’aquilo que

queria, mas ia fazendo voluntariamente. Tudo voluntário.

(doutora Emília)

Eduardo Etzel2 mostra como, simultaneamente ao fato de que era possível

fazer-se médico com grande dose de empenho pessoal, também de

Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,

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outro lado o desempenho encontra limites nas condições concretas da vida social,

mesmo no interior da profissão: O médico após a formatura, para alcançar as

culminâncias do saber, tem que fazer um grande esforço com dedicação plena e

continuada por vários anos. São tempos difíceis em que vencerá quem for mais

persistente... (...)... na profissão somos o que somos não porque idealmente assim o

quisemos, mas apenas porque aquilo que as circunstâncias permitiam.

A busca de uma área definida de atuação no interior do campo profissional

permite, portanto, apreender bem essa articulação entre o plano das interferências

pessoais possíveis no social e o determinismo relativo desse social nas escolhas

pessoais. Observemos,nesse sentido, que mesmo no interior da escola médica, o

estudante parece dispor de um grande espaço para a opção pessoal, já permitindo

representar tudo o que diga respeito à profissão por meio da noção da liberdade – da

livre escolha, do livre arbítrio. Essa noção não mais deixará de acompanhá-lo como

referencial de pressuposto adequado e qualificador de seu trabalho.

Lá pelo meio do currículo escolar, o estudante já constrói no interior do

currículo formal o “currículo pessoal”, aquele que lhe permitirá alcançar qualificações

específicas, maior adestramento e experiência clínica, e que o diferenciará na profissão,

por algum domínio da arte clínica ou da técnica cirúrgica. Como diz doutor Nélson:

Dos colegas de faculdade, nem todos faziam Clínica. Variava muito! A

turma, do quarto ano em diante, já começa a desviar. Já fazia Ortopedia, já fazia

olhos, já fazia Dermatologia, já fazia Cardiologia, já faziam outras coisas...

Psiquiatria, tinha os neurologistas... Do quarto ano em diante eles já se dividiam. E

eu, já do quarto ano em diante, já fiquei na Clínica lá; fiquei lá na Clínica. Mudei de

enfermaria, para aquela do Celestino Bourroul. Eu gostava muito! Sexta, Medicina de

Homens.

Doutor Carlos lembrava, por exemplo, dessa autonomia de ação (naquela

época a gente tinha liberdade de expansão) derivada da combinação entre seu trabalho

no laboratório clínico e o currículo formal do estudo nas enfermarias do hospital:

E eu consegui arrumar uma vaga, por intermédio daquele colega

de turma, no laboratório central do Hospital São Paulo, que dava atendimento

a tudo, tanto aos indigentes – quer dizer, às enfermarias – como aos

pensionistas. Então eu comecei a aprender a colher sangue...

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A gente, naquela época, fazia contagem de glóbulos picando a ponta do dedo, colhia

com pipeta, preparava as diluições, punha no microscópio... uma habilidade, um

aprendizado que só vinha com o tempo! Fazia-se uma série de asneiras e tal, até

aprender! Então a gente aprendeu; trabalhava. No fim de alguns meses eu... eu e esse

rapaz\ ficamos...hã... mais diferenciados e eu... como tinha muito interesse em

Bioquímica... aos poucos, eu fui ficando especializado em execução de provas de

função renal, função hepática, padronizava, fazia novas técnicas. Então, eu me

recordo, por exemplo, que eu fui um dos primeiros, no Brasil, a ter feito... a fazer

volume de sangue circulante, com corante chamado Azul de Evans, T-1822. Eu

trabalhava em contato com o laboratório de hemodinâmica da Clínica Propedêutica

e aproveitava os cateterismos intracardíacos que estavam sendo iniciados na época –

que eu ajudava, também – e eu aproveitava, puncionava a artéria funeral do paciente

com uma agulha especial, injetava o contraste, depois colhia amostra arterial e media

no fotocolorímetro. Na época, o mais sofisticado era o “Coleman Júnior”, que hoje é

coisa de museu. E eu consegui fazer umas duzentas determinações! (...) O que

acontecia naquela época, é que os estudantes, alguns... Por exemplo, lá na escola,

cirurgia era muito limitada. Então, quem queria cirurgia já sabia que ou ele tinha que

se submeter a uma série de coisinhas e ficar muito restrito lá, ou então ele ia embora.

Então, frequentemente, havia muito colega meu que trabalhava tanto na clínica como

na cirurgia da Santa Casa. A Santa Casa, naquela época, tinha sido com a fundação...

com a inauguração do Hospital das Clínicas, a parte clínica e cirúrgica da Faculdade

de Medicina da USP, saiu da Santa Casa e foi pro Hospital das Clínicas. E a Santa

Casa ficou... um hospital de caridade simples. Mas com uma ampla possibilidade de

aprendizado. Então, muita gente se dirigia pra lá pra aprender. Então, Ortopedia,

Cirurgia e mesmo setores de Clínica. Então, o pessoal que não ficava naqueles

grupos, eles migravam para esse serviço. Ou hospitais particulares. Então muita

gente aprendeu assim. O aluno fazia o seu programinha, assistia as aulas e ia embora

trabalhar num outro lugar! O indivíduo tinha obrigação de responder a chamada, de

assistir as aulas obrigatórias, freqüentar os seus grupinhos, e tal, mas aquilo tudo era

muito limitado. Ou era muito... muito restrito, vamos dizer assim.

Doutor Antônio sente-se “exagerado” nas possibilidades de uso dessa

liberdade de escolha e de ação:

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O cotidiano profissional - 60 -

(...) já no primeiro ano eu optei para uma especialidade. O que é, no meu

entender, um absurdo, mas no meu ponto de vista eu estava decidido e a decisão era

visível. Por que eu estava optando já no primeiro ano para... por fazer Pediatria!

Porque eu já tinha um filho que tinha nascido naquele momento. Então essa criança

pequenina, recém-nascida, já despertou em mim apreciação, um amor assim

característico pela Pediatria. Tanto que, antes de eu conhecer pessoalmente... No

primeiro, segundo ano, quando eu andava pelos corredores da faculdade, eu parava

diante de um quadro de formatura, o único... o primeiro indivíduo que eu procurava

no quadro de professores era o velho Pedro de Alcântara Marcondes Machado, que

era o professor de Pediatria. E eu adorava aquele indivíduo! Então, eu optei pela

Pediatria já no primeiro ano. Quer dizer, a partir do primeiro ano eu já sabia que eu

deveria ser Pediatra. E, realmente, já no quinto ano médico eu já entrei no berçário

da Clínica Obstétrica, trabalhando com permissão do professor Raul Briquet... O

Briquet é um homem maravilhoso, um homem... maravilhoso no sentido de... estrutura

humana que esse homem... Ele era um grande obstetra! (...) Bom, e nós fizemos todos

os nossos anos – do primeiro ao sexto – exatamente com esse objetivo, de tal maneira

que no quinto ano eu já tinha entrado para a Obstetrícia, trabalhando no berçário por

indicação do professor Raul Briquet. Fiquei todo o quinto ano, todo o sexto ano lá

dentro do berçário. Mas, para estar lá, eu não tinha dispensa de nenhuma cadeira,

tinha de atender todas as aulas. E na minha turma, até aquela época, no sexto ano nós

tínhamos aula! Aulas teóricas e práticas. Inclusive na minha turma as aulas da

Psiquiatria... Ainda não estava funcionando o Instituto de Psiquiatria. Então, as aulas

de Psiquiatria eram dadas na Brigadeiro Luis Antônio, onde é hoje a “Cruzada Pró-

Infância”. É ... é naquele local! Era obrigado assistir aulas teóricas todos os dias;

aulas práticas todos os dias. Agora, nas horas de folga, eu estava lá dentro do

berçário, de dia ou de noite.

Essa introdução de um currículo informal e simultâneo é, para os futuros

clínicos, a forma de se iniciarem na complicada arte clínica, adquirindo um pouco da

experiência clínica pessoal tão necessária para o exercício da profissão.

Os futuros cirurgiões, de outro lado, buscavam maior habilidade

técnica, fixando-se logo nas enfermarias de doentes cirúrgicos e partici-

pando em cirurgias como assistentes ou instrumentadores do professor. Alguns

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O cotidiano profissional - 61 -

o fariam na própria escola, enquanto que outros, como o doutor Luís, podiam dispor de

uma forma de aprendizado totalmente independente:

Você se encaixa num campo; enquanto estudante mesmo já se escolhia uma

enfermaria... Bom, tinha o currículo escolar normal, né?, você passava por tudo. Além

disso, você se encaixava naquilo que você queria fazer, aí passava o dia na faculdade,

né? Chegava sete e meia, sete horas, sete e meia, oito horas, ficava até às seis, sete

horas da noite, né? Mas eu freqüentava o hospital. Durante a faculdade deu pra

freqüentar muito pouco porque não tinha hora vaga, né? Então... freqüentava nas

férias. Em geral, nas férias, eu ia de manhã com papai. Eu ia com ele e ficava lá no

hospital. Então freqüentava cirurgia – assistia, ajudava – e depois passava... ficava lá,

às vezes, espiando a Radiologia. Tinha um colega na Radiologia que era muito...

Sempre tem um colega que polariza os outros, né? Um colega que tomava conta da

Radiologia lá... É falecido há tempo também. Tem um filho que é... agora é... criador

de cavalo árabe, está rico! Mas ele... o cafezinho era tomado na sala dele. Eles

ficavam lá! Conversa de médico; já viu, né? Era só discutir: “Olha, eu vi esse caso,

não sei o que, não sei o que...” Se aprende muito em... em hospital, fuçando o hospital,

né? Às vezes aparecia um lá: “Eu preciso fazer... Você está livre? Pode ajudar a fazer

isso?” “Pois não doutor!” Ajudava a fazer gesso, ajudar ...Aprender um pouco de

cada coisa, né?

A importância dessa liberdade para a formação individual, como estímulo à

iniciativa pessoal, é o que relata também doutor Maurício, o que no seu caso significou

até a escolha de outra cidade, deixando o local em que morava, para cursar a faculdade

de medicina:

Comecei a trabalhar como voluntário, para aprendizagem , no segundo ano

da faculdade, em Urologia. A partir do quarto ano comecei a trabalhar de forma

remunerada. (...) Naquela ocasião não era como hoje, a medicina em São Paulo.

Hoje temos a USP, depois a Paulista. O Rio também oferecia maior

oportunidade hospitalar, mais oportunidade de ter local para trabalho.

Naquela época se falava muito que São Paulo era um ambiente um pouco fechado.

Um calouro, que está começando a pensar em medicina e ouvido esses

diálogos, chega à conclusão que já que o material humano e o ambiente

hospitalar são maiores ... por que não? Então fui ao Rio e assim começamos. Em São

Paulo era difícil que o estudante pudesse praticar a medicina, praticar

Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,

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O cotidiano profissional - 62 -

no hospital, nos grandes serviços. Para poder trabalhar naquela ocasião tinha que

obter uma amizade, alguém que me encaminhasse, e como eu não tinha

propriamente, então achei por bem... No Rio, realmente, o estudante tinha melhores

condições de trabalho que o paulista; isso confirmamos durante o nosso curso de

medicina. Desde o primeiro ano de medicina comecei a trabalhar numa enfermaria

aprendendo como se põe a mesa, como se cobre a mesa, como se dispõe o material

cirúrgico, o nome das pinças, que você lê nos livros de Anatomia, mas na prática você

não se sabe. Comecei a aprender a fazer injeções intravenosas. Trabalhei na Liga

Brasileira Contra Tuberculose, onde comecei a fazer infecções de cálcio na veia,

aprendi a olhar os pneumotóraxes. Então eu comecei lá na Tuberculose, depois um

emprego na cooperativa de manhã, naturalmente, na Santa Casa, e à noite no serviço

de Urologia. A escola só começava a parte prática do quinto ano em diante, então o

estudante tinha que procurar os serviços por autodeterminação. Ele ia fuçar os

serviços para ver se se identificava com o serviço. Eu fui procurar especialmente os

serviços cirúrgicos ginecológicos. Eu gostava de fazer cirurgia, gostava de viver

dentro de hospital”. Tinha a frequencia digamos religiosa, às vezes até ao sábados.

Acabamos percebendo que nós não sabíamos fazer outra coisa.

Ao mesmo tempo esses médicos convivem, nessa época da formação

escolar, com regras bem-definidas e bastante inflexíveis de comportamento: a

severidade enquanto base para a aculturação em um desempenho pessoal no qual, para

poder ser livre, deve-se ter comprometimento responsável e dedicação plena. A vida

marca-se nesse período pelo respeito que deriva do reconhecimento das autoridades,

fundadas num saber que não é só técnico ou científico, mas o da experiência pessoal

pregressa: o professor e o pai; a mãe; os mais velhos e experientes, todos são severos.

O médico mais antigo, a quem o recém-formado pode se “associar”, também priva

dessa qualidade em que severidade e sabedoria estão mescladas. Todos contam em

suas histórias de infância esse traço característico de uma dada moral de conduta de

estreitos limites para opções individuais. E sem querermos introduzir uma discussão

sobre o sentido da cultura e da moral na sociedade dos anos 40, não resta dúvida, por

todos os relatos, quão presente está no interior da escola médica essa identificação

entre a sabedoria e a severidade, na figura da conduta austera e rigorosa daquele que

sabe: ter autoridade e saber significará ter desenvolvido uma moral de férrea disciplina

pessoal. Seus referenciais podem ser verificados nas práticas de ensino através da

célebre aula inaugural do curso médico que trata

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do respeito ao cadáver, como nos conta doutor Luís, ou do rigor do ensino com suas

provas públicas e “duríssimas”, como nos conta o doutor Antonio:

A entrada na faculdade foi muito dura por várias razões. Primeiro porque

só existiam duas faculdades. Então era muito duro! Poucas vagas e o número de

candidatos era em torno de oitocentos. Quer dizer, era dez pra um, mais ou menos,

como é talvez, ainda hoje; não sei. Porque hoje o vestibular é muito diferente... Bom, e

o vestibular era muito duro! Muito duro por quê? Porque o vestibular era feito na

própria faculdade. As matérias eram três; eram Biologia, Física e Química. Só! Eram

três matérias para o vestibular. E o exame era escrito e prático-oral. Quer dizer, cada

matéria tinha exame escrito e prático-oral. Eu me lembro até das questões que caíram

no exame... Então, a gente fazia prova escrita – todas as provas escritas – e, depois,

fazia as provas prático-orais. Então, a... a banca era constituída por três ou mais

professores, mas quem examinava era... na Biologia era o Joaquim Lacaz Neto. E o

aluno, na frente do indivíduo, então ele fazia todas as perguntas que ele queria e,

depois, ia para a prática. Pega o microscópio: “O que está vendo aí? E isto aqui, o

que é?” O negócio... era muito duro! Então o exame vestibular era um exame duro,

minha filha, duro! E eu passei – veja bem! – a minha média foi 7,3 e minha

classificação foi 63 lugar! Com esta média – 7,3 – 63 lugar! Era realmente muito

difícil, extremamente difícil.

(doutor Antônio)

Da faculdade, eu me lembro da primeira aula de Anatomia! Não sei se

continua assim! Foi uma aula que o Lochi deu. Naquele tempo era assim e ele... fazia

esta aula de propósito. Não sei se o pessoal mantém ainda esta tradição, mas era uma

tradição válida. Tenho a impressão que a minha filha teve ainda no... na Escola

Paulista uma aula assim. Ele só falava de Anatomia, do cadáver, do respeito ao

cadáver, papa-papá, depois ele tinha um cadáver assim, que estava na mesa. Depois

então, ele descobria o cadáver e dava aula. Um negócio, vamos dizer assim, bem...

Quer dizer, essa aula marcou muito.

(doutor Luís)

Há ainda o caso extremado que relata doutor Carlos:

Bom, a enfermaria era rigorosíssima! Porque o professor ia diariamente à

enfermaria e os assistentes tinham um pavor dele tremendo! E a

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gente, consequentemente, por tabela, também! E o doente, internava, fosse a que hora

fosse, a gente tinha vinte e quatro horas de prazo pra fazer o exame completo, uma

anamnese completíssima com exame físico. Que era corrigido pelo assistente. Então,

nos mínimos detalhes. E... e eu me recordo, por exemplo, que num domingo... –

portanto, eu estava no quinto ano, eu já era interno da enfermaria – um domingo de

manhã, um sol bonito, um dia espetacular, tinha entrado, na sexta-feira de noite, no

sábado de manhã, um paciente novo e eu estava fazendo a evolução... nós estávamos

fazendo a evolução dos internos quando o professor entrou – ele era uma figura

imponente, alta, muito elegantemente vestido – ele entrou e pegou aquela papelada e

viu que não estava pronta. E ele perguntou quem era o assistente. E esse assistente

tinha ido para Santos, passar o fim de semana lá. Pegou o ônibus Cometa nessa

época, não tinha nem carro, e foi pra Santos. O professor mandou localizá-lo, ficou

esperando ele voltar de Santos, para confeccionar a anamnese do paciente que não

tinha sido feita. Então ele era desse rigor terrível! Brigava com todo mundo... Então, a

enfermaria dele funcionava de uma maneira rigorosa! E a gente aprendia

violentamente! Aprendia muito...

Essas são situações que dão conta de evidenciar o traço típico de uma época

em que à exaltação da iniciativa individual combina-se rígida moral de

comportamento. Assim sendo, mesmo no âmbito desse plano do desempenho

individual como referência para ação social, a liberdade de ação terá que se articular a

regras de contenção dadas pelas disciplinas de atuação pessoal: a liberdade encontrará

na severidade, e em sua correlata responsabilidade para com a ação proposta, os

limites que conformarão o comportamento do livre-arbítrio. Essa mesma moral de

conduta aparecerá também na forma de um comportamento de plena dedicação, posto

que, de um lado, a liberdade expressa o padrão de base mais pessoal, de outro lado esse

mesmo padrão implica contínua vigilância, de caráter pessoal e pessoalmente exercida,

no sentido de controlar o resultado, os efeitos da escolha e da ação realizada.

Responsabilidade e dedicação, portanto, são as contrapartidas que parece exigir essa

liberdade maior de comportamento expressa no “poder pessoal”.

b) a matéria da profissão

Uma outra situação na qual se observa essa livre iniciativa, e que por isso

parecerá produto exclusivo do desempenho pessoal, é aquela em que

Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,

1993. 229 páginas.

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se dá a instalação do consultório e a captação da clientela. Como já dissemos, ser

médico parecerá por referência a essas situações coisa tão simples como fazer-se

médico, desde que se queira e se esforce individualmente nesse sentido. São decisões

livres, cuja realização significa empreendimentos que implicam, porém, dedicação e

responsabilidade. E do mesmo modo que Etzel3, nossos entrevistados referem que a

paciência nesse campo viria a ser a porta do êxito futuro.

Em Água Rasa, a minha clientela começou, o início do movimento...

Naquela ocasião, lá onde eu estava, próximo, alguns quarteirões antes, estava o

doutor Arnon, na Quarta Parada. Ele era médico de uma grande indústria de tecidos

ali da região. E ele havia clinicado neste local em que eu fui consultar, fui trabalhar,

montei consultório, no início. Então montei o consultório lá. Eu cheguei lá e montei a

minha tenda. Hoje não teve cliente, outro dia não teve, foi vindo um, outro, foi

aumentando, e eu fiquei com uma clínica muito boa... E constância, a persistência, a

constância, o modo de atendimento...

(doutor Paulo)

A ausência da persistência pode ser, ao contrário, fatal, como lastima doutor

Nélson:

Quer dizer, eu acho que a clínica daria mais. Se fosse... se eu tivesse mais

tempo pra ficar no consultório ou ficar à disposição... Talvez isso! Eu ficava no

consultório à tarde e trabalhava de manhã no centro de saúde! Em Santana! E,

depois, no centro de saúde de Santa Cecília. Então... Mas é aquele negócio! Quando

você queria trabalhar de manhã, de repente te jogavam pra tarde. Então, era da uma

às quatro. Você já perdia a parte da tarde – umas horinhas – e de manhã já ficava

livre. Então, era aquela confusão! Entendeu? Eu achei que devia me dedicar mais.

Hoje em dia eu penso que eu devia – talvez, talvez – ter arriscado ser um franco-

atirador. Penso eu! Porque, naquele tempo, ainda se podia fazer alguma coisa. Você

ser livre! Ficar só no consultório! Sem interrupção! Trabalhar por conta do

consultório. Santana, Bom Retiro, Lapa, Belenzinho... Ficar lá! O dia inteiro! Consul-

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tório! Ou então, freqüentar... uma enfermaria, que eu gostava de Clínica. Ir lá

apalpar, percutir, ver casos novos, discutir... Aquela coisa que você sabe, que você

conhece! E de fazer a tarde toda livre lá, atendendo o pessoal! Entendeu? Mas...

Outra coisa! Eu não gostava de pedir favor. Pro farmacêutico encaminhar doente...

Eu nunca gostei. Eu queria fazer medicina pura! Como faziam esses medalhões, não

é? E isso aí – você sabe! – hoje precisa ter uma engrenagem.

O consultório aparece, portanto, como a principal e primeira atividade a ser

iniciada logo após formado. Um dos entrevistados conta que ao perguntar para seu

professor de Clínica quando deveria montar seu consultório, o professor devolveu-lhe

a pergunta: Quando o senhor se formou? Há quinze dias, professor – responde-lhe o

entrevistado. Então o senhor já perdeu quinze dias! Esse pequeno depoimento e o que

se depreende das narrativas de todos aponta para a possibilidade de uma inserção no

mercado de trabalho que ao menos parcialmente, já que esta é na maioria das vezes

apenas uma das situações de trabalho do médico, encontra-se comprometida em

grande parte com o empenho pessoal. Isto é relevante no caso da medicina, sobretudo

porque o consultório particular é que será a situação de trabalho que irá conferir maior

renda e prestígio, reiterando para o trabalho médico a concepção da promoção social

como produto do esforço de cada um.

Um outro exemplo está na própria instalação do consultório que parecerá

derivar tão-somente de se escolher um local, fixar-se e aguardar a clientela. A vontade

individual é que comandaria a efetivação do serviço médico, até porque os recursos

necessários para estabelecer o consultório são poucos, em especial do ponto de vista

dos equipamentos materiais. Assim, a qualificação escolar e certas virtudes pessoais,

com a disposição, a paciência e a atenção, em conjunto com o acertado desempenho

terapêutico, é que surgem enquanto os recursos suficientes para captar e garantir uma

clientela.

... quando eu montei o consultório, naquele tempo tudo era simples. Só tinha

que ter o sofá, uma mesa cirúrgica pras coisas simples, pras pequenas cirurgias,

equipamento de esterilização e tinha minha escrivaninha. Era simples, simples!

Não tinha nada demais. Era mais pra Clínica mesmo. Não tinha nada demais.

Eu não chegava a fazer eletro, por exemplo. Naquele tempo começou a

ser feito eletro, né? O Zé Ramos começava a fazer, tudo. Mas eram só três

derivações, muito raro. De modo que era muito precário, ainda. Quer dizer, era muito

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mais ausculta mesmo no estetoscópio. Nesse tempo aí eu fui chamado pra atender um

cliente de vinte e poucos anos. Ele estava com dor precordial. Ele brigou com a

patroa e dormiu na rua! Aí, de manhã ele saiu e foi jogar bola. E teve infarto. Então

me chamaram. Quer dizer, tem muita coisa em jogo aí, né? Parte psíquica, briga, isso,

aquilo... Muita coisa em jogo! Mas pode ser, pode não ser, mas em todo caso vamos

esperar. Deixei ele em repouso. No dia seguinte chego lá, a pressão – pfss! – estava lá

embaixo. Aí saí correndo! Era infarto! O diagnóstico se fazia, assim, pela história, e

também porque caiu a pressão... Era assim naquele tempo. Mas isso não era difícil. É

como a história da pleuris que eu contei. “Mas o senhor não precisa fazer exame?”

Nesse caso desse rapaz, eu encaminhei ele pras Clínicas. Não ficou em casa, não.

Mas quando eu montei o consultório, o equipamento não era muito caro. Não era

barato também, mas não era caro demais. Dava pr’um médico recém-formado

montar porque não tinha nada de especial. Tinha a sua cabeça e o resto era coisinha

simples.

(doutor Sílvio)

Os depoimentos também mostram que alguma aparelhagem já se

incorporava à prática, contudo eram equipamentos de manejo mais simples, podendo

inserir-se como componentes próprios do consultório. Essa aparelhagem, além disso,

aparece também como recurso de fácil aquisição e instalação.

Eu tinha também uns aparelhos. Lá no Sanatório Esperança eu tinha uns

aparelhos que eram do hospital, mas tinha alguns que eram meus. Por exemplo,

ultravioleta, infravermelho, onda curta, eram meus. Eu tinha, né? Eu trouxe pro

consultório. Eu fazia também as aplicações no consultório. (...) O uso desses

aparelhos lá era mais a parte ginecológica e a parte de otite pra criança, para

adulto... Sinusite, caso de sinusite. Agente mandava fazer raio X. E dando diagnóstico

de sinusite, a gente fazia aplicações de ondas curtas. Fiz tratamentos de vacinas e

antibiótico também. Naquele tempo já tinha sulfa. Ou, então, pra reumatismo, não é?,

dores articulares, nos joelhos, assim, outras articulações... A gente fazia sessões. Aí,

dez, quinze, vinte aplicações, uma por dia, e vinte, trinta minutos de aplicação. Fora

esses equipamentos, no consultório tinha material para pequenas cirurgias. Tinha

todos, né? Assim pra abscesso ou pra fimose. É só isso que eu tinha. Eu mesmo fui

comprando esses aparelhos. Todo consultório tinha. Todo consultório

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tinha esses aparelhos. Esse número de bisturis, pinças, tinha muita gaze, tinha

algodão... Todo consultório tinha. Você podia resolver os problemas no consultório,

de imediato. Isso sempre lá tinha. Tínhamos umas estufazinhas, mandava esterilizar o

material – enfermeira fazia isso pra mim – gaze, bisturi... Era fácil de comprar!

Acessível! A gente comprava nas farmácias maiores ou tinha mesmo depósitos no

centro da cidade – que não me recordo como é que era. A gente telefonava e eles

mandavam: gaze, algodão... Pacotes, né? Sempre tinha um estoquezinho. Muito

anestésico pra anestesia local. Quem abria o consultório, já abria com este tipo de

equipamento. Já abria. E não era caro. Mais caros eram os aparelhos, mas os

aparelhos eu já havia adquirido há muito tempo. Então, eram baratos, relativamente.

(doutor Fábio).

Eu montei meu consultório com meu próprio recurso e tal. Agora, essa

coisa, esse negócio de caro... Todo tempo foi um tempo! A coisa varia de acordo com

a época. Mas deu pra montar um consultório modesto. Não era luxuoso. Ele era como

esse aqui. Como aqui, ele tinha uma mesa ginecológica... eu tinha um aparelho

ultravioleta... Então eu fazia algumas aplicações. Ainda tem aí. E tinha uma mesa, e

tinha as cadeiras na sala... A sala era grande. Eu dividi e fiz uma saleta de espera.

Tinha... aquele esterilizador... Aparelhagem era aquilo! Era... do clínico mesmo!

Estetoscópio e aparelho de pressão. Não tinha mais nada! Material descartável tinha,

naturalmente, pra alguma peça, pra cirurgia, bisturi, uma pinça... Tinha alguma coisa

nesse sentido, material de pequena cirurgia. Eu fazia as pequenas cirurgias. Nem

parto no consultório nunca foi feito!

(doutor Nélson)

Esses depoimentos apontam para a característica de uma fase transitória

entre a prática calcado no uso do saber como único meio de trabalho e a

medicina tecnológica, evidenciando essas vivências profissionais como

vivências de um específico momento histórico: o momento da passagem, da transição,

no qual já há certa fragmentação do trabalho, já determinados

instrumentos e equipamentos materiais, diagnósticos ou terapêuticos. Mas ao mesmo

tempo, cada médico individualmente, para a situação de trabalho no

consultório privado, ainda é capaz de amplamente concentrar a apropriação e o

uso do saber e dos equipamentos, manter-se proprietário exclusivo dos

meios de trabalho e captar de modo difuso a clientela. Assim

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O cotidiano profissional - 69 -

sendo, embora possamos verificar a presença inicial de instrumentos materiais já

incorporados, e certo grau de especialização no trabalho, o médico ainda busca

produzir o serviço de modo mais autônomo e independente, subordinando-o à

dimensão mais pessoal que envolve a prática: os recursos diagnósticos ainda são de

muito menos uso e valor que a anamnese ou o exame físico:

Também a clínica no meu tempo era muito diferente. Não precisava de

tanta coisa, nem se pedia tantos exames, como eu nem peço até hoje. O professor

Jairo Ramos... Só quem o conheceu... É muito difícil a gente traduzir em palavras o

que ele era! (...) ele exigia, o exame do paciente previamente a qualquer exame. A

pessoa que fosse pedir exame deveria justificar porquê. “Por que você está pedindo

exame tipo I?” Eu me recordo que ele ficava possesso, ele tinha crises, quando

alguém dizia que era... pedia um exame de urina simplesmente por rotina.

(doutor Carlos)

Da mesma forma os recursos terapêuticos ainda se dispõem sob o estatuto da

regra pessoal e individualmente estabelecida. Nos primeiros anos do período que

estamos examinando, encontramos a terapêutica por formulação enquanto a

modalidade terapêutica ainda privilegiada. O formulário clínico convive com os

primeiros fármacos industrializados (a sulfa e a penicilina), e até o final do período

estará superado. Assim, para o doutor Nélson, a formulação é uma ferramenta

terapêutica importante, enquanto que para nosso entrevistado mais jovem, o doutor

Carlos já nos anos 50 o mesmo recurso é uma medida do passado:

Dos meus casos, aqueles que eu resolvia, o que mais aparecia eram adultos,

homens e mulheres. Velho também, coisa de Geriatria.... Naquele tempo era “pessoa

de idade”. Pelo menos até... esse fricote de Geriatria, não é? Neurologia! Casos de

Neurologia, também. Muitos casos! Paralisia facial, periférica, muita... muito caso de

paralisia nervosa... É essa coisa toda! A gente fazia tudo! Era... é bonito clinicar por

causa disso! Por isso que eu sempre gostei! Por causa... por causa do raciocínio!

Então raciocinava e bastava! Procurava dar o que havia de melhor! E formulava se

fosse preciso! A fórmula! (...) Na faculdade se usava muito fórmula e se ensinava a

formular. E já se ensinava também o uso de medicamentos (...) A coisa foi assim! Que

a gente foi obrigado... foi obrigado praticamente a largar a formulação. Porque o

sujeito... Olha! Como passa essa parte! Nessa passagem da formula-

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O cotidiano profissional - 70 -

ção pros medicamentos o doente sentia... sente diferença, sim! O doente é um

termômetro que... Se você faz a fórmula direitinho pro doente, mas certo mesmo, um

negócio que você... bota aquela dosagem que você acha que é bom pra idade dele, pro

tipo constitucional, tudo, ele sente. Sente mesmo! Porque, às vezes, você escreve o

remédio pronto – da Bayer mesmo ou de outro bom laboratório. Tanto que é muito

melhor formular! Porque, com a formulação você dá o que quer!

(doutor Nélson)

Aliás, havia um conflito muito sério porque a Terapêutica Clínica era

Clínica, também (...) E... havia um conflito muito sério porque nós já tínhamos

aprendido uma porção de coisas – inclusive na prática- no terceiro e no quarto ano, e

a Terapêutica Clínica era no quinto ano. Então nós já entrávamos, no quinto ano não

só com a formação de Propedêutica, já de Clínica Médica, inclusive de terapêutica.

Já tinha receitado, já tinha feito uma porção de coisa. O que ele fazia. Então ele dava

Arte de Formular. E, pra nós, aquilo não entrava na cabeça, fazer uma fórmula.

Porque já tinha recitado lá o diurético, o digitálico, o remédio pra úlcera... e ele vinha

lá com a receitinha, não sei o que, tantos por cento, não sei o quê, mande dez... Quer

dizer, era tudo... era a Arte de Formular. (...) Houve uma época na medicina aqui que

todos formulavam. Todos formulavam. Eu me recordo de farmácias pequenas, perto

da minha casa, no tempo de... de moleque, lá na Bela Vista... em que havia inclusive

uma farmácia chamada “Ribeiro”, que ficava entre o Viaduto Major Quedinho e hoje

o Viaduto Maria Paula, em frente a esse flat-service que está sendo construído ali! (...)

Tudo era formulado! Aos poucos, muito lentamente, foi-se infiltrando a medicação

preparada. Quando me formei nós tínhamos, praticamente, tudo já pronto! Claro que

nem comparação com o que se faz hoje porque... Por exemplo, diurético – só pra

lembrar a importância do diurético – eu sou da época do diurético mercurial!

(doutor Carlos)

A articulação de cada médico individual com outros serviços

complementares dá-se pela regra da relação interpessoal, onde a vinculação

deriva do conhecimento e da confiança pessoalmente estabelecidos, mantendo

cada médico, portanto, o controle total sobre cada caso particular: será o

seu paciente que encaminha a laboratório ou clínica radiológica de seu

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conhecimento. Estes últimos serviços, por sua vez, também só se reportam

diretamente ao médico que os indica, que dessa forma representa o “proprietário” do

caso, pois é o único agente de prática e seu único responsável. Uma igual relação se

estabelece na articulação entre os diversos serviços médicos: será o médico do caso (de

quem é o caso) o solicitante e supervisor da presença do especialista, na famosa “junta”

ou “conferência médica”, sempre que se fizer necessária a presença de uma outra

assistência médica complementar. O resultado dessa forma de articulação entre

serviços parcelares será a manutenção do controle da prática, e do controle sobre os

efeitos desta, sob o monopólio de cada médico individual, configurando um trabalho

profissional próximo da representação do exercício autônomo-independente que

corresponde à figura tradicional do médico. É a esta figura, então, que Doutora Emília,

ginecologista e obstetra – e portanto já uma “especialista” – se refere quando relata seu

relacionamento com outras atuações complementares, até confundindo, hoje, os

termos médico-clínico ou médico-geral, com o termo médico simplesmente:

No caso de precisar outro especialista, na época já... havia especialistas...

Porque antigamente, havia, por exemplo, conferências médicas – que hoje não há

mais, né? Então o caso era mais obscuro, chamava o professor pra dar parecer e

resolver alguns casos mais obscuros, outros casos que... mais delicados, né? Que,

hoje, quase não se vê mais, senão... senão excepcionalmente, né? Nesse caso de

conferência, o professor que era um cidadão que da dava orientação e ... e deixava o

caso para a gente ou a gente passava o caso para ele, dependendo das circunstâncias.

E tinha conferência médica com outros especialistas também. Por exemplo, um

cardiologista, né? Hoje se faz até com o endocrinologista nos casos de...

hipotireoidismo, hipertireoidismo... Se faz de rotina isso, né? Mas, geralmente, eu não

chamava muito, não! A gente fazia essa medicação médica! Nós éramos médicos! E

especialistas! Mas éramos, primeiro médicos, né! Hoje a gente deve ser mais médicos

ainda do que são os especialistas, né? E os casos ligeiros a gente mesmo tratava.

Poucos casos de medicina, propriamente, eu tinha no consultório, poucos casos. Mas

tinha essas doenças de rotina, né? (...) Porque,sempre, a gente chamava uma figura...

Um especialista, mesmo! E sempre de conhecimento, assim, pessoal.

Geralmente eram os professores da escola mesmo que eu chamava. E a

gente se comunicava diretamente. Não havia... tinha que ter entrosamento entre o

especialista que era chamado por qualquer coisa e o médico obstetra

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O cotidiano profissional - 72 -

que estava tratando da paciente, né? Quer dizer que as medicações... não tivessem...

fossem bem vistas, né? essas coisas.

(doutora Emília)

Mas a relação era mais pessoal também com os laboratórios, por exemplo.

Era muito comum o laboratório telefonar pra você quando aparecia – vamos dizer –

uma glicemia de 400. A pessoa que foi lá só pra colher sangue, certamente o cara

telefonaria pedindo pra você reencaminhar o doente, você confirmar o exame, pra

você... Esses cuidados que hoje você não tem! Pelo contrário! Hoje você pode receber

uma glicemia de 4.000 e aí telefonar pro doutor: “Olha, doutor! Quatro mil aqui!

Não deve ser, né?” “Ah, então vem aqui. Deve ter sido engano, a vírgula que ficou

fora do lugar, é 40, ou é 45, é...” Sei lá! Enfim... isso acontece hoje com freqüência,

não aconteceria. Porque a coisa automatizou muito, o sujeito entra numa bateria de

computador. É a tal história: ele não ta fazendo a glicemia do seu Fulano, cliente do

doutor Fulano. Ele está com a bateria de tubos na frente que estão... num sistema

automático, então ... (...) Antes o médico que fazia o laboratório, ele mesmo olhava os

casos e, às vezes sugeria um ou outro exame. Quer dizer... Era menos gente; era

menos população... Ele deveria fazer cinqüenta exames numa manhã ele fazia dez ou

vinte. Então ele tinha tempo de ver o pedido, ver quem era, tinha o seu pedido na

mão... Se achasse qualquer coisa esquisita, ele ia ter o cuidado de telefonar. E a outra

coisa que está mudando muito é dos relatórios de radiologia que eram muito

detalhados. Vinham com verdadeiras aulas de diagnóstico! Era uma maneira dele...

do colega... do radiologista mostrar erudição... e te orientava, né? Não a descrição da

imagem. Hoje o pessoal – você vê – a grande maioria deles se restringe à descrição

da imagem. Só! Às vezes até nem isso vem descrito. Isso... até o cliente sente isso.

(doutor Luís)

Não serão, pois, apenas os aspectos relacionais entre médico e paciente, mas

a face mais técnica na produção do cuidado, o que ainda será identificado a uma

sabedoria individualizada do médico, reforçando a tradicional noção da

experiência clínica pessoal como base do saber, e assim reiterando a

construção de representações em que o trabalho profissional dar-se-ia,

principalmente, com base nesse comportamento pessoal. A raiz, portanto,

de ambos os aspectos da prática – o do esforço pessoal em

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O cotidiano profissional - 73 -

fazer-se médico e o do desempenho profissional em que se torna reconhecido como

médico – repousa sobre a base objetiva da estruturação desse trabalho em que é ainda

o uso pessoal do saber seu meio principal. Assim sendo, uma vez de posse desse,

através da escolarização, nada há o que aguardar para estabelecer-se profissionalmente:

eis porque para iniciar a prática clínica é suficiente diplomar-se; tudo o mais parece

tão-só depender de uma vontade pessoal.

Essa forma de pensar a prática permanecerá válida mesmo considerando a

área cirúrgica de atuação, posto que a terapêutica cirúrgica é ainda de indicação

cautelosa, pelo menos até próximo aos anos 50. Veja-se que, desse ponto de vista, o

ato operatório e o pós-operatório são situações de extremo risco: a ampliação do tempo

e o conforto no ato cirúrgico, bem como as possibilidades de serem evitadas ou

combatidas as infecções e ainda as possibilidades de ser mantido o equilíbrio

hidroeletrolítico do paciente no pós-operatório, são conquistas incorporadas à prática

médica posteriores aos anos 40, no Brasil4. Até essa época não existia o emprego

intravenoso das soluções de soro glicofisiológico, e a anestesia residia no uso do

clorofórmio ou do éter, nas famosas máscaras abertas, através das quais, como conta

doutor Silvio, logo se identificava quem era, dentre os médicos, um cirurgião:

Antigamente, quem fazia anestesia ficava mais doente d que o paciente. Era

aquela máscara de éter. Então, tinha que enfiar aquilo na cara do cliente, brigar com

o sujeito, porque ele não queria. O anestesista respirava mais éter do que o doente.

Então você via lá: “Você não está com hepatite?” “Não! Eu sou cirurgião!” Ele

estava todo amarelo!

O recém-criado uso de anestésico local é que presidia certas cirurgias mais

comuns, como as que se realizavam no tratamento da tuberculose e das úlceras, sob

condições rigorosamente problemáticas: Era uma luta amarga e clínica entre o

cirurgião que dizia para ter paciência, que era apenas sensação de tato e não de dor,

e o pobre infeliz que gemia com toda a razão do mundo. Caricaturando, seria como

dizer ao paciente “você pensa que dói, nas não dói”. Mas a operação tinha que ser

feita, pois a anestesia geral pelo éter, em caso de doença pulmonar, estava fora de

cogitação. Era operar e tentar a cura ou deixar morrer pela progressão da doença5.

A garantia contra a infecção residia apenas na assepsia e na esterilização,

nem sempre muito eficazes. Uma vez instalado o processo infeccioso, as

medidas terapêuticas subseqüentes eram de fato de resultados bastante

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duvidosos, pois os primeiros quimioterápicos, como a sulfa, e o primeiro antibiótico, a

penicilina, apareceram no pós-guerra (1945), dispondo-se no mercado de forma nem

sempre suficiente para consumo ampliado:

Foi em 44, que a penicilina entrou a todo vapor. Porque foi mais ou menos

em 39 que fizeram as primeiras observações. E até tinha pouca penicilina. A gente

começava o tratamento e não tinha penicilina pra continuar.

(doutora Emília)

Naquele tempo, a Cruz Azul foi a primeira organização que teve assistência

ao parto domiciliar pago pela instituição. Os partos eram feitos a domicílio por

comadronas – gente mais ou menos ajustada,né? Não tinha muita gente formada

porque foi a Maternidade São Paulo quem fez a escola de parteiras, lá por volta de

1913. De maneira que eram umas pessoas adaptadas – por assim dizer – ao serviço, e

controladas até um certo ponto por médicos. Mas não eram pessoas formadas. Mas aí

a Cruz Azul teve o parto domiciliar, que foi a primeira organização que teve parto a

domicílio por parteiras. Então, a parteira chamava a gente por alguma coisa e a

gente se atrevia, naquele tempo, a fazer algumas intervenções em casa! Já viu isto? E

não tínhamos infecções! Por exemplo, a parteira chamava numa hora. Depois o parto

se modificava. E quando chegava a hora, as condições eram diferentes. Então a gente

resolvia a coisa com algumas pequenas intervenções que eram feitas a domicílio. E se

tivesse uma intervenção maior, então as pacientes seriam removidas pro hospital.

Porque as próprias pacientes não queriam ir pro hospital. Porque as próprias

pacientes não queriam ir pro hospital. No parto, não! Ninguém queria hospital de

medo das infecções!

Mesmo na área de atuação clínica, o eletrocardiógrafo, por exemplo,

hoje instrumento tão simples, se já faz parte da noção de equipamento necessário

para o doutor Carlos nos anos 50, não representa algo tão comum, quase um

recurso geral para qualquer prática, como nos dias atuais. O fato é que poucos

sabiam usá-lo de modo preciso e muito menos interpretar o traçado

gráfico. A eletrocardiografia, cujo uso clínico em São Paulo dá-se no

início dos anos 30, só após 1940 começou a ser uma

Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,

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O cotidiano profissional - 75 -

técnica um pouco mais disseminada, através da Sociedade Brasileira de Cardiologia

(1943)6.

Nas décadas de 30 e 40, portanto, o desempenho profissional podia ainda

caracterizar-se como ato de discernimento e intervenção simultaneamente apoiado no

conhecimento, na intuição e na criatividade. Tudo isso para que o médico pudesse

decidir entre a cautela ou a ousadia, que o obrigava a pautar-se em uma observação

clínica atenta e paciente. A medicina seria, então, ainda um desempenho dependente

da arte, com base na qual se poderiam orientar diagnósticos e definir medicas

terapêuticas, como por exemplo a observação expectante da “crise do sétimo dia” da

pneumonia; ou as engenhosas tentativas de combate à infecção; ou a assistência

persistente e paciente que acompanhava o parto normal; ou ainda, as medidas heróicas

e súbitas do “desespero salvador”7:

Quando ainda não tínhamos os antibióticos e mesmo as sulfas, os quadros

abdominais, posteriores a todo tipo de intervenções, eram paralisias intestinais, era

um quadro mórbido, pós-operatório. Então veio a sulfa, o anasseptil peritoneal, e veio

o anasseptil em líquido. Naquele tempo a alta não era assim, dois dias depois da

operação vai embora, e tal. Não! Esperava-se seis, sete dias. E eu me lembro, eu era

interna no hospital e quando fui dar alta passei e vi uma mulher que tinha o sono da

doença meningeana: “Puxa! Essa mulher está com alta?!?” Entrei, pus o

termômetro, estava com 40 de temperatura. Naturalmente, naquele tempo, não tinha

os agentes que nós temos hoje e eu sentei lá na cama, peguei uma agulha e puncionei

a raque, deu um líquido opalescente, eu já injetei duas ampolas de anasseptil – que eu

nunca tinha usado – dentro da veia. Os dedos dela ficaram escuros – sabe? -, ela teve

uma reação muito grande! Mas eu já tinha tirado o líquido pra mandar fazer exame e

deu meningite pneumocócica. Porque ela tinha tido pneumonia. E essa mulher ficou

boa.

(doutora Emília)

Naquele começo do meu consultório, o impacto desses remédios, da

penicilina e da sulfa, foi uma coisa boa pra mim! Tratar uma

pneumonia, antigamente, era difícil. Era difícil! Eram sete dias! No sétimo

dia se rezava pra tudo quanto é santo pra ir tudo bem porque o

sétimo dia era perigoso. Então, depois veio a sulfa, em dois, três tias,

tirava tudo. Quer dizer, continuava o processo de dentro, interior. Mas o

sujeito saía sem febre, saía sem nada (...) Naquele tempo se demorava sete

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dias pra tratar pneumonia e eu ia acompanhar o doente todos os dias, os sete dias eu

ia visitar. Dava mais trabalho. Era difícil! Não era fácil! No sétimo dia acontecia a

“resolução”! Porque, às vezes, nessa resolução – eu não sei porquê – o organismo ou

reagia demais, ou reagia de menos. Às vezes o paciente não agüentava a reação e ele

morria. (...) Eu tinha bom sucesso no diagnóstico e na terapêutica. Eu perdi pouca

gente. É difícil eu perder gente. No caso da pneumonia, eu sabia se o paciente tinha

curado pelos sinais clínicos. Primeiro tinha que bater o pulmão, ver se desapareceu a

macicez. Tinha os sopros, aquele sopro cavernoso, desaparecia também. A parte de

roncar, desaparecia também o frêmito. Então você fazia o diagnóstico. E depois tem a

expectoração, sumia a expectoração. Quer dizer, eram sinais de exame clínico. Eu

não chegava a pedir raio X pra ver se tinha passado o processo. Era difícil. Porque,

geralmente, eles não eram gente de muito dinheiro. Então fazia diagnóstico mais pela

ausculta, pelo estado geral, tudo. Acompanhava tudo! (...) Eu tive sempre na vida um

bom diagnóstico, sempre fiz bons diagnósticos, tudo. Porque sempre, sempre

procurei! Quer dizer, sempre fui procurar pra achar. Porque tem pessoas que

atendem, só pelo aspecto assim já fazer... O Zé Ramos nos orientava pra fazer tudo!

(doutor Sílvio)

Eu fazia clínica no INPS e o pessoal gostava muito de mim. A maioria me

procurava, queria consultar comigo. Clínica Médica. Então, cheguei a atender um

número enorme de pessoas por dia! Porque eles gostavam de mim. “Eu quero ir com

aquele lá! Aquele!” Indicavam lá pra atendente. E eu era obrigado a correr um

pouco. E eu não gostava. Eu gostava mais de ficar com o sujeito, ele contando a

história dele... Aquela história que você sabe! Como ele começou, como acabou, e tal,

ia indo até chegar o finzinho, o fio da meada. Então eu raciocinava, pedia um exame

subsidiário feito em laboratório de confiança – uma radiografia, uma coisa qualquer

– pra chegar à conclusão da doença do cara. E fazia bons diagnósticos!

Encaminhava ao cirurgião... Às vezes, diagnósticos excelentes! Que eles até me

davam os parabéns. “Como é que você chegou a essa conclusão?” “Vocês vão abrir

pra ver na laparotonomia”, eu disse. Bom aí eu cheguei por causa de raciocinar. (...)

Fazer diagnóstico não era tão difícil, não! Não era! Eu gostava mais! Intuição talvez!

É o que eu digo pra você: intuição!

(doutor Nélson)

Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,

1993. 229 páginas.

O cotidiano profissional - 77 -

Todos entrevistados têm para relatar um caso “heróico” ou um diagnóstico

“fantástico” – um feito pessoal. Nesse período inicial de suas vidas, encontram na

presença da arte médica uma dimensão ainda muito relevante para o ato técnico. A

forte presença dessa arte evidencia-se no uso desse olhar científico que procura até

então pouco armado pelo equipamento, e que primeiro indaga, pra “ver” através do

sintoma, da queixa, da fala e da superfície do corpo. Por isso também esse período

pareceu representar da perspectiva da posição social do médico individualmente , um

“tempo melhor”, seja pelo domínio mais amplo que pessoalmente exerceu sobre seu

doente, seja porque consequentemente a essa dedicação, a esse bom discernimento e

por vezes ousadia, foi também para cada médico individualmente que se dirigiu o

valor e o prestígio da profissão. A confiança e o crédito não se destinavam apenas à

medicina, ao saber científico-tecnológico, mas à pessoa do médico, na figura daquele

individuo particular:

Naquele tempo, tudo era melhor porque... veja bem: em primeiro lugar,

você não tinha muitos recursos em termos de hospitais. Por exemplo, os recursos

hospitalares eram poucos! Havia alguns hospitais antigos como o Santa Catarina, o

Hospital Matarazzo... Eram hospitais aonde a gente podia internar nossos doentes.

Mas havia pouquíssimos hospitais! E pouco equipamento. Então, o que acontece? O

médico tinha um poder de discernimento, tinha conhecimentos tais que ele fazia

diagnósticos, independentemente de exames complementares. Os exames

complementares eram raros! Não se pedia com a freqüência que se pede hoje, como

raio X. O médico fazia um diagnóstico de pneumonia ou de broncopneumonia pela

percussão, pela ausculta, assim por diante. Não precisava de raio X. Quer dizer, não

como hoje em que um médico ouve a queixa o paciente e, imediatamente, pede

exames complementares antes de examinar o paciente. Isso é o que se verifica hoje.

Então, a medicina era melhor! O médico, ele tinha... estava muito mais ligado ao seu

paciente! Ele entendia o paciente, ele convivia com o paciente, sentia todos os

problemas o paciente... Às vezes, ia à casa do paciente sem ser chamado, por livre e

espontânea vontade dele, para verificar a situação do seu paciente. Então, era uma

medicina melhor! In-dis-cu-ti-vel-men-te!

(doutor Antônio)

A medicina que eu praticava no começo, na relação com os

pacientes, isso mudou. Eu freqüentava muito a casa das pessoas,

conhecia todo mundo... A gente não vai mais à casa do cliente, muito poucos ...

Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,

1993. 229 páginas.

O cotidiano profissional - 78 -

daqueles clientes antigos que me dou, assim, mais, ou que eu freqüento a casa (...)

Hoje é diferente! Bem diferente! Hoje em dia os clientes são mais de consultório. Você

atende o cliente no consultório, o atendimento que eu dou sempre, mas parece que há

um hiatozinho aí entre o cliente e o médico, né? Então, eles vê procurar você no

consultório para atender a queixa, só aquilo que está necessitando. Mas não tem mais

aquela intimidade, não. Não dá mais pra fazer. (...) Sinto falta disso. Sinto! Um

agradecimento do doente é muito gostoso. Então você se adapta a ele e naturalmente

o relacionamento que você tem é grande, afetividade... Então, um agradecimento de

um doente te emociona. É muito gostoso! Me recordo muito disso. E hoje já é mais

distante. Bem mais distante.

(doutor Fábio)

Todavia, é preciso considerar que as mesmas condições objetivas que

possibilitaram a presença de uma ampla liberdade de decisões e desempenhos

concretos,circunscreveriam simultaneamente – para além dos valores de

responsabilidade e dedicação conformando a liberdade – os momentos, os espaços e

os modos socialmente viáveis de realização desse desempenho pessoal. Vale dizer que

é a organização social da produção de serviços médicos historicamente dada, que

determina quando, onde e como se poderá efetivar o “poder pessoal”. Tome-se por

exemplo, nesse sentido, o fato de que todos os entrevistados localizam o momento do

início de suas vidas profissionais como uma lembrança do tempo em que era possível

ser autônomo-independente, ser “livre”; era possível fazer uma “medicina pura”, sem

engrenagens comerciais na captação e fixação da clientela. A todos eles, pareceu que

poderiam ter feito apenas a clínica de consultório, embora de fato não tenham se

restringido a ela; como também pareceu que simplesmente “montaram suas tendas” e

aguardaram a demanda espontânea dos pacientes, o que tampouco foi exatamente o

que fizeram. Efetivamente essas possibilidades mais livres seriam mais próximas da

realidade concreta de uns e não de outros, diferenciados os médicos entre si, tanto da

perspectiva diacrônica quanto considerando os formados à mesma época.

Mesmo no interior do padrão relativamente mais homogêneo de

prática desse período, em contraste com o padrão tecnológico atual, são

criadas modalidades diferentes, técnica e socialmente, de exercício profissional. Por

outro lado, se a base material da prática possibilitava então esta apreensão

ideológica da clínica de consultório como uma estrutura bem sucedida

por meio da vontade e do empenho pessoal, as opções pessoais

Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,

1993. 229 páginas.

O cotidiano profissional - 79 -

significaram, de fato, atos socialmente definidos: comportamentos individuais em que

a forma social de organização do trabalho determina certo proceder, para que a prática

se realize como ação de base pessoal em seu caráter de prática “liberal”. Só uma

engrenagem social, mas que se realiza sobre ampla base de ação pessoal e que pode

passar a ser entendida, na aparência primeira, enquanto opção essencialmente pessoal,

é capaz de tornar bem-sucedida a forma historicamente possível, nesse momento, de

médico pequeno produtor privado e isolado de serviços.

OS REFERENCIAIS DA LIBERDADE

Pode-se dizer que há dois tipos de fatores limitantes para essa autonomia

individual. Eles, porém, não se apresentam de modo igual, porque apenas um deles

mostra ser mais evidentemente um obstáculo para a liberdade de ação. O primeiro tipo

é constituído por elementos estruturadores do desempenho pessoal, que

homogeneízam os procedimentos e aproximam os médicos de uma mesma identidade

profissional. Por isso mesmo, uma vez estruturando socialmente os comportamentos

pessoais, não parecem impedi-los, e ao uniformizá-los, não parecerão sequer seus

conformadores. A segunda ordem de fatores limitantes já diferencia e distribui os

médicos técnica e socialmente em situações de prática profissional bem diversas entre

si. Evidenciam-se de imediato, por isso, enquanto condições sociais limitadoras do

“poder pessoal”. Examinemos cada um deles.

a) a uniformidade

Podemos chamar o primeiro conjunto de fatores mencionado de

“estruturador do informal”, pois estes fatores, derivados da socialidade do

comportamento individual, dizem respeito a uma ordenação da prática clínica em

consultório privado, mediante a qual suas qualidades informais, na captação da

clientela ou no desempenho profissional do médico, ganham forma e sentido na

sociedade. Graças a essa ordenação é que o médico conseguirá implantar sua prática

com independência relativamente ampla dos aspectos mais diretamente econômicos,

políticos e sociais que se articulam à profissão, isto é, estabelecerá engrenagem de

razoável autonomia na produção de seu serviço, por referência às condições da vida

social em geral. Por isso parecerá muito mais ampla a liberdade no desempenho

pessoal, e o êxito da prática parecerá ancorado num esforço pessoal. Por

isso mesmo também será a prática de consultório identificada à própria

Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,

1993. 229 páginas.

O cotidiano profissional - 80 -

profissão: ser médico será fazer o consultório, isto é seguir estabelecer uma clientela

sua (do médico), e trabalhar “livre” , “solto”.

Como diz Doutor Carlos, ao relatar sua decisão de desistir de trabalhar em

sociedade com outros colegas como proprietário de um pronto-socorro: Então, eu vou

trabalhar sozinho pra mim! Foi o que eu decidi. Eu comecei a minha vida em 1960.

Comecei a trabalhar sozinho. Em março... maio de 60 montei o meu consultório. (...)

Então eu comecei o consultório, fiquei disperso...

Trata-se contudo de uma “dispersão” que se organiza em determinados

mecanismos sistemáticos de existência. Veja-se por exemplo o fato de que o local, a

forma, o anúncio e o horário da prática de consultório foram sendo consagrados por

uma dinâmica de captação da clientela que, de modo reiterado, “obrigará” a

disposições e procedimentos sempre assemelhados. São regras e normas apropriadas

de organização do trabalho sob determinadas maneiras de demarcar o espaço, o tempo,

a identificação do médico na constituição da prática profissional, e que se articulam à

própria medicina de consultório privado.

E depois fiquei só mesmo na Obstetrícia e na Ginecologia. E na parte

cirúrgica, por causa da especialidade. Esta escolha foi porque eu sempre gostei muito

de doenças de senhoras. Naquele tempo era “doenças de senhoras”. Até na placa

tina: “doenças de senhoras”. Nem era Ginecologista, nem Obstetrícia; era “doenças

de senhoras”. Ou colocava parteiro, de uma vez, ou então era “médico de senhoras”.

E eu gostava mais mesmo de lidar com o sexo feminino, certo? Não sei... A simpatia, a

própria especialidade me chamou mais atenção. A parte de Obstetrícia, então, achava

muito interessante, não é? E foi indo e fiquei só com as duas especialidades. No

começo, a placa que eu coloquei lá não fazia referência dessas especialidades. Foi

bem depois. No início era clínico geral de adulto e crianças. Hoje em dia não se faz

mais isso, né? colocar placa. Era uma placa maior e tinha uma placa menor na

entrada da porta, com o nome, a especialidade... “clínico geral”, “doenças de

senhoras”, às vezes colocava “parto”, ou então “doenças de crianças”, e

ficava nisto aí. Ah, e era iluminado! Esse detalhe era importante! Era

iluminado. À noite ficava acesa. E tinha uma de metal, pequenininha, na

porta. Essa maior era iluminada. Chegava seis horas, sete horas, acendia a

luzinha lá e aí iluminava. O meu consultório era em frente a um largo grande,

então o pessoal via de longe o anúncio, né? Esse era o jeito como as pessoas sabiam

que ali tinha um consultório. Era um local muito bom porque era uma

Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,

1993. 229 páginas.

O cotidiano profissional - 81 -

praça e, em cima de uma padaria. Em geral os consultórios ou eram em cima da

padaria, ou em cima de farmácia. Antigamente os médicos gostavam muito mais em

cima de farmácia e os farmacêuticos davam uma mãozinha. Quando alguém chevava

e comprava qualquer espécie de produto lá, o farmacêutico dizia: “Não. }Tem doutor

aqui em cima, vai atender melhor, tudo, orientar melhor a compra do produto..” Ou,

então, em cima de padarias. Antigamente as padarias eram assim em prédio grande, e

eu tinha lá diversas salas. Então, ajudava bastante por causa do ponto. Sempre

escolhia-se um ponto também. E eu achava interessante que sempre eu via se colocar

um consultório ao lado, perto de outros médicos. Nunca ficar isolado. Eu tinha a

impressão que, isolado, ninguém dava muita atenção. Eu não sei porquê, qual o

motivo. Mas, outros médicos estando próximos, então as pessoas vinham justamente

onde tinha dois, três, quatro médicos.

(doutor Fábio)

A placa – a pequena, de metal, na porta; a maior, que se acendia à noite ou

ficava em destaque -; a proximidade da padaria ou da farmácia; uma praça ou os

prédios e locais “de médicos”; o discreto anúncio ocasional em jornal (médico), o

horário “nobre” que estabelece para o atendimento da clientela do consultório, são

formas de organizar a prática e de orientar a clientela. A placa, sobretudo, parece ser a

publicidade que médicos e pacientes aceitam e reconhecem:

O consultório, a vida clínica privada, vamos dizer, eu comecei

imediatamente após o término do curso, que foi mais ou menos em janeiro... Eu

terminei em dezembro e em janeiro eu comecei a minha atividade médica privada em

consultório. Então eu montei um consultório inicialmente no bairro onde eu morava,

que era o Brás. E fiquei lá durante quase um ano. O meu consultório era um

consultório de frente assim na Avenida Celso Garcia, com duas salas... E os primeiros

clientes – como tinha placa fora – os primeiros clientes foram aparecendo, de

passagem, foram aparecendo... devagarinho conseguindo a clínica privada.

(doutor Antônio)

Os pacientes vinham do próprio bairro. Eu tinha uma placa “Dr. Maurício.

Ginecologia e Obstetrícia”. “Doenças de Senhoras” eu punha, né? Então os

pacientes iam pingando.

(doutor Maurício)

Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,

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O cotidiano profissional - 82 -

Os primeiros clientes foram os amigos, foram eles que começaram a vir.

Aqueles que me conheciam começaram a vir lá, apareciam. Depois deles é que

começou. Aí, depois, foi aumentando. Um avisava o outro, então ia... Nunca fiz

anúncio. Só tinha uma placa! Placa tinha, né? Placa lá no consultório tinha. Mas

anúncio eu nunca fiz, nunca fiz nada. A placa era só minha. Era minha, só! A placa

tinha o meu nome, o andar, a sala e o telefone. Eu não punha que era clínico geral.

Era só “médico”. E aí lá aparecia de tudo. Criança, adulto, homem, mulher...

(doutor Sílvio)

A clínica foi devagar, mas pouco devagar. Pouco! Menos devagar do que

seria se eu tivesse começado, talvez, como o rapaz que começa, né? Ainda com o

Salles Gomes, a clientela foi chegando porque eu tinha um anúncio no jornal.

Antigamente tinha a “Gazeta”. Eu anunciei na “Gazeta”. E eu continuei anunciando

na “Gazeta” muito tempo, na especialidade mesmo. E foi aparecendo devagar, sem

grandes dificuldades, sabe?

(doutora Emília)

Nesse tempo da “concorrência discreta” pela clientela, qualquer atitude que

assuma o caráter explícito de propaganda de massa será condenada:

Nós estávamos em outro mundo! Tudo era diferente! Tudo, tudo, tudo!

Impressionante! Não há possibilidade de agente imaginar o que era a vida naquela

época. Era simples, tranqüila, a cidade era pequena, tudo muito limitado... Eu tenho a

impressão que, inclusive, as complicações eram muito menores. Havia um único...

dois prontos-socorros em São Paulo: o Pronto-Socorro Municipal, que era

assistência pública, e um pronto-socorro particular que era famoso 7-7777. O telefone

era prefixo 7 seguido de quatro setes. Pertencia a um médico que fora amigo de meu

pai também, remador de um clube esportivo que existiu até há pouco tempo lá na

beirada do Tietê, que chamava Associação Atlética São Paulo. Ele era

remador. Chamava-se doutor Mário Tobrini Costa. Ele faleceu há pouco

tempo. Ele era um grande cirurgião e sempre foi muito mal contado no

meio mais elevado, mais acadêmico. E esse doutor Mário Tobrini Costa

teve o lampejo de criar o primeiro pronto-socorro particular de São Paulo.

Pronto-Socorro “Santa Inês”, se chamava. Mas como ele era um sujeito muito arro-

Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,

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jado, fazia coisas... que transpiravam facilmente, e aquilo... naquele ambiente

provinciano, repercutia malíssimo, né?, porque as pessoas eram muito empertigadas,

muito importantes. A moral era muito diferente do que é hoje. Muito diferente! Porque

ele anunciava até no rádio. O que era um escândalo! Então, tocava uma sirene e aí

vinha o anúncio: “7-7777! Pronto-Socorro ‘Santa Inês’...” Olha!... ele fazia uma

propaganda bombástica!

(doutor Carlos)

Conforme dissemos antes, quando tratamos no capítulo inicial do trabalho

com a memória, as recordações se articulam ao que o pensamento apreende hoje da

realidade, e é com base nessas questões do presente que se faz o trabalho de reflexão, a

recuperação do passado. A lembrança dessa “sirene no rádio” que marcou doutor

Carlos, contrasta de fato com aquela situação; não contrasta com o monumento atual,

em que a cada instante, entre os anúncios comerciais de televisão, aparecem os

anúncios de propaganda de tal ou qual serviço-médico ou seguro-saúde. É isso, porém,

que chama a atenção para o “escândalo” do procedimento que aparece no relato acima.

Veja-se o depoimento do doutor Nélson, por exemplo:

Sempre insisti! Sempre fui perseverante, paciente! Mas sem propaganda,

sem nada! E eu confiava nos clientes, que um indicasse o outro. Coisa que hoje já não

existe mais! Hoje é... precisa... a luta é na propaganda do serviço! Precisa fazer

propaganda! Como faz vários medalhões aí no jornal! A gente está a par disso.

Muitos medalhões, colegas, que fazem propaganda no jornal. Prometendo... fazendo

até... propaganda de curas difíceis mesmo, problemáticas... Mas fazem, né? Então, aí

é que está! Eu nunca fiz propaganda, praticamente nunca fiz. Esperando sempre da...

do cliente. E o cliente, infelizmente, nem todos são... são sinceros e bondosos. E muitos

são até... prejudicam a gente, passam o calote. Em todo caso, é água passada.

Por essa razão é importante situar o procedimento do anúncio “discreto”

como fator constituinte das condições objetivas da totalidade de que faz parte. Tal qual

relata doutor Antônio, aquilo que não se mostrava necessário, como o anúncio do

rádio, é taxado de “ato de exagero” e marginalizado pelos padrões dominantes. Estes

últimos pautam-se na base objetiva que subjaz à “discrição comercial”, porque esta é

necessária já pela própria quantidade limitada de oferta de serviços.

Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,

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A medicina era, como fonte de manutenção financeira, muito boa. Por uma

razão muito simples: porque não havia assistência médica especial, nem do INPS e

nem das sociedades de medicina em grupo. Então, o que acontece? O médico saía da

faculdade no dia seguinte montava o seu consultório – na sua casa ou em qualquer

outro lugar – um consultório mais rico ou menos rico ou mais pobre e já começava...

os clientes começavam a aparecer. E o indivíduo podia viver perfeitamente sem

nenhum emprego, só com a renda do consultório. Tanto que, na ocasião, até esta

época... de maneira geral, quase todos os médicos mais.... vamos dizer assim..., mais

atualizados... trabalhavam na Santa Casa pela manhã e no Hospital das Clínicas,

depois que foram estabelecidas as Clínicas. O Hospital das Clínicas foi inaugurado

em 1944. Antes disso, quem abrigava... todas as clínicas universitárias era a Santa

Casa. Então, os médicos – quase todos, pelo menos os melhores – eles prestavam

serviços, pela manhã, na Santa Casa, graciosamente. Ninguém tinha salário. E, à

tarde, das duas em diante, trabalhava no seu consultório, atendendo um número

razoável de clientes, e visitas domiciliares, etc. De modo que, até aquela ocasião, a

medicina poderia ser desenvolvida como profissão garantindo para o médico um

nível econômico e social muito bom.

(doutor Antônio)

Doutor Antônio relata aqui uma outra importante regra da profissão: a

repartição do tempo de trabalho. O “tempo da manhã” é reservado ao aprimoramento

da experiência clínica individual do médico, razão e viabilidade da filantropia, das

Santas Casas, dos serviços gratuitos. Esse “tempo da manhã” viria a ser

paulatinamente substituído pelo “tempo do emprego” q̧uando a própria instituição

filantrópica ou setor público passou a assalariar os médicos.

Logo que eu me formei eu fui trabalhar naquela Igreja da Avenida Rangel

Pestana, quinto andar. E eu ia atender de manhã lá na Igreja da Freguesia do Ó duas

vezes por semana e, à tarde, eu ia pro meu consultório. E ficava a tarde toda no

consultório.

(doutor Silvio)

De manhã, fui trabalhar em Ginecologia na Santa Casa, com uma

carta de recomendação trazida do Rio. Eu trabalhei durante quinze

anos, a manhã toda na Santa Casa. Era uma medicina social,

Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,

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O cotidiano profissional - 85 -

que a gente fazia, não tinha INPS. Logo que me formei consegui um lugar no

Sindicato dos Condutores de Veículos e Anexos, na Praça João Mendes. Fiquei lá um

tempo também, à noite. De manhã eu fazia a Santa Casa, no almoço eu fazia

consultório em casa, à tarde fazia na Marques de Itu e à noite ia ao Sindicato... uma

sequência de atendimentos. Mas logo após saí do Sindicato e fui pro Instituto de

Aposentadoria e Pensões dos Transportes de Cargas, Rua Nove de Julho. Depois

houve a unificação da Previdência, em sessenta e pouco, e nessa unificação nós

passamos a pertencer ao INPS, atual INAMPS. Aí nós fizemos plantão de Obstetrícia

na Maternidade Matarazzo, depois no próprio hospital IAPETEC, no Ipiranga, e

também no Hospital Brigadeiro, na chefia da Obstetrícia, uma vez por semana. E

naquela sequência de vida normal de consultório, de manhã a Santa Casa, de tarde o

consultório, à noite os plantões, ficamos durante alguns anos.

(doutor Maurício)

O “tempo da tarde” é o tempo nobre da atividade de consultório,

provavelmente por sua possibilidade de prolongar a jornada do médico, o que se dá

com base em critério pessoal de ampliação ou restrição, conforme o necessário, do

horário de trabalho. E isso reflete a disponibilidade ampla que deve ter o médico para

dedicar-se a seus clientes, posto que a jornada “ilimitada” faz parte das regras da

liberdade. Assim também se apresenta a fácil localização do médico, e à qualquer

hora, o que tem a ver com a fixação do consultório como parte da casa, ou então morar

muito próximo dele:

Quando eu me casei, fui morar na Rua Oriente. Duas esquinas para lá era a

Rua Marcolina. Eu morava na Rua Oriente, então ia a pé pra lá. Era pertinho.

(doutor Silvio)

Mas eu sou desse tempo. Eu me formei, eu terminei o meu curso, montei

um consultório no bairro onde eu morava e abri meu consultório logo – um

consultório pobre, naturalmente, porque eu não tinha possibilidade – e

comecei a trabalhar. E fiquei neste bairro durante... creio que um ano mais ou

menos, um ano, um ano e pouco e, depois, mudei pra cá, onde estou. E até hoje eu

estou aqui. Eu me mudei com a família porque esse local era muito favorável

para mim. Todo esse pavimento superior aqui desse sobrado era minha

residência. Então, tinha aqui em cima o quarto dos meus filhos, mais para adiante era

o meu quarto, mais para adiante tinha uma sala e aqui – isto aqui – era

Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,

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uma cozinha. E o meu consultório era este aqui, mais este corredor e mais a sala, da

frente. Então, eu já vim pra cá e trabalhava aqui. Das duas em diante estava aberto o

meu consultório. Nada mais.

(doutor Antônio)

Há ainda um outro tempo que compõe o tempo de trabalho, não tão bem

localizado nas partes do dia ou da noite, ainda que tenha seu predomínio no período

noturno ou nos horários vagos da semana, como aos sábados ou aos domingos. É o

“tempo do chamado”, do atendimento na casa do doente, em uma medicina que se

apóia ainda em grande parte no domicílio. Esse tempo pode ser o da urgência, do

atendimento agudo e rápido na situação de emergência, e que por isso pode transpassar

os outros. Assim posto é o paradigma da disponibilidade plena do médico por

referência ao seu cliente, sobretudo nesse modelo em que não há quase formas

alternativas de outros tipos institucionais de assistência, tal qual ocorrerá quando da

constituição de forma ampliada dos serviços de pronto-socorro. Por essa razão a

prática de consultório é ainda a medicina dos “chamados”:

Nunca levantei, por exemplo, de noite, quando me chamavam de

madrugada: “Ai! Estou cansada! Ai!Ai! Que preguiça!” Tocava o telefone e eu já,

automaticamente, estava com os olhos acordados, o rosto acordado, já pulava da

cama, e já ia saindo. De maneira que eu estava ajustada dentro do meu trabalho. Isso

é uma grande coisa: a gente ter uma profissão que a gente sabe o que faz. E eu

gostava de fazer o meu trabalho! E, por exemplo, não era assalariada! Isso é uma

grande coisa! Nunca fiz a profissão pelo... salário. Porque o cidadão vai atender um

doente: “Ai, que coisa, né? estou cansado hoje. Ai, que coisa! Que chateação! Agora

vou sair” Isso eu nunca tive na minha vida. Eu sempre trabalhei contente. Tem um

chamado e é isto que eu quero! Um chamado! Então, eu vou contente! De maneira

que eu sempre estive ajustada no meu serviço.

(doutora Emília)

No início da minha prática a gente atendia chamados. Eu tinha consultório

na Água Rasa e morava na Água Rasa. À noite eu levantava, às vezes duas, três vezes.

Casos diferentes! Então pr’um... abdômen agudo, ou por um caso de parto, ou por um

caso de uma infecção, temperatura alta em algum doente... chamavam mesmo! E eu

saía. Naquela ocasião não havia problema algum, a gente saía de casa...

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O cotidiano profissional - 87 -

Eu tinha telefone mas, em geral, os clientes não tinham na casa deles, então eles

vinham me chamar. Mas eles me chamavam, iam embora, voltavam, e eu, então, ia a

pé. Andava a pé lá uns poucos quilômetros, uns quarteirões. E eu ia a pé, sem

problema algum, à noite; duas, três, quatro, cinco horas da manhã, sem nunca ter tido

problema nenhum conforme a hora, não tinha farmácia aberta, eles ficavam

esperando em casa ou, às vezes, trazia os doentes para o consultório, dava uma

olhadinha lá nas amostras, ou dava um produto particular indicado, até aguardar a

manhã seguinte, né:, no caso que comportava. Eu ajudava bastante. Isto mudou ao

longo do tempo. Não tem mais chamado! Longe que me procuram pra um chamado!

Hoje em dia procuram mais os prontos-socorros. A própria clientela já vai direto.

Depois que passa pelo pronto-socorro, então, no dia seguinte, às vezes, vem me

procurar.

(doutor Fábio)

A medicina do domicílio correspondeu a uma alternativa para a internação

não necessariamente quanto à urgência, mas também quanto à gravidade do caso. O

uso da hospitalização como meio terapêutico não foi inicialmente um fator que

uniformizasse a prática, sendo, ao contrário, diferenciador dos atos clínicos,

característica que se transforma quando ambas as formas de intervenção, a clínica e a

cirúrgica, encontraram no uso do hospital que se verifica na medicina tecnológica um

dos padrões de prática que as aproximará. No início da vida profissional dos nossos

entrevistados, porém, é uma forte presença do atendimento no domicílio que

caracteriza a medicina.

Até mesmo quando o doutor Carlos montou seu pronto-socorro, a

assistência prestada correspondia ao pronto-atendimento no domicílio:

Já existiam aqui em São Paulo, alguns prontos-socorros gerais. Existia já o

“Santa Inês”, famosíssimo, que era o 7-7777. Foi o primeiro pronto-socorro

particular de São Paulo, que era do doutor Mário Tobrini Costa e, depois,

criou-se o Pronto-Socorro “Santa Lúcia”. Esses dois continuaram em plena

vigência. E já existia, na época, também, o que hoje é o Hospital “Santa Paula”,

que começou como sendo um pronto-socorro: Pronto-Socorro “Santa Paula”. Então

achamos que... E já havia um pronto-socorro de Pediatria, na Angélica.

Era o Pronto-Socorro Infantil Angélica. Então nós achamos que o interessante,

talvez, fosse fazer um pronto-socorro especializado, de ser só Cardiologia.

Eu tenho a impressão que o que predominou foi porque a maio-

Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,

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ria de nós fazia mais medicina interna em Cardiologia, Pneumologia... Então ficou

assim. A gente atendia, muito frequentemente, Cardiolgia. Mas se atendia de tudo! (...)

A gente atendia, ia com uma mala enorme, que tinha tudo dentro. Nós levávamos

oxigênio, levávamos o eletrocardiógrafo e fazíamos o atendimento em domicílio e já,

ali, resolvia o problema. Agora, era muito cansativo! Nós tínhamos muito serviço! Era

uma responsabilidade muito grande! E era sozinho! Tinha que resolver! Era o

motorista, o plantonista... Tinha, também, um outro plantonista. Nós éramos em dois

em determinadas circunstâncias mas, à noite, ficava um só. E não tinha jeito!

Esse “tempo de chamado”, atualmente desaparecido – o chamado

domiciliar famoso, que hoje todo mundo tem ojeriza – era uma característica

importante do trabalho médico, e que viabilizava a identificação desse trabalho à

imagem do sacerdócio, de um servir desinteressado e de dedicação total. A esta

imagem, uma outra viria acoplar-se, a de transcendência relativamente à técnica,

fundada nos feitos heróicos mencionados. É tão relevante a medicina do domicílio,

que é eleita para simbolizar a “alma essencial” dessa profissão: Doutor, aqui está o seu

chapéu é o título-tema do discurso de formatura, como confidencia um dos

entrevistados. Evidencia-se, através dessa referência ao “chamado” e que assim o

homenageia no ritual de iniciação à vida profissional – as cerimônias de conclusão de

curso -, a exortação ao valor, máximo, concebido para esse trabalho. Nesta fala, que é a

da despedida do chamado, o personagem a quem o doente, agradecendo, prestativo e

gentil restitui o chapéu, não pode ser representado somente como mais uma dentre as

várias espécies de trabalhadores na sociedade. Por isso mesmo o “chamado”, tão

estreitamente vinculado à pessoa do médico, não apenas personaliza a medicina, senão

que também ao mesmo tempo a faz transcender o humano:

A consulta era feita da seguinte maneira. Raras pessoas tinha carro, mesmo

entre os médicos. Então, ao ser chamado um médico, ele ia atender a domicílio – o

chamado domiciliar famoso, que hoje todo mundo tem ojeriza – ela ia de táxi, o táxi

esperava, e por mais incrível que pareça, a família, além de... de depois servir um

porção de coisas pro médico, ele recebia a sua consulta, na hora, e, além do mais, o

chefe da família ou alguém ia até o motorista de táxi e pagava a viagem de ida e volta.

Então ele... o médico era uma pessoa aureolada, muito diferenciada.

(doutor Carlos)

Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,

1993. 229 páginas.

O cotidiano profissional - 89 -

Na medicina tecnológica a prática perderá progressivamente essas

dimensões de personalização e de sacralização, à proporção que a medicina se

estrutura progressivamente sobre as bases impessoais e objetivas da tecnologia

material Por conseqüência, terá uma forma de organização social cuja demarcação dos

lugares e dos períodos já é mais típica do trabalho cooperativo da produção capitalista,

e com as separações que lhe são peculiares: tempo e espaço da vida pessoal, em

contraste com o do trabalho. O ponto de clivagem dá-se agora entre o individual-

privado e o trabalho coletivizado, fazendo divergir essas duas dimensões da vida

social. O espaço que cada um verá como o seu, tanto quanto o tempo que cada um

conceberá como dedicado a si mesmo – e são estes que, atualmente, as pessoas

concebem como valor positivo para se estar vivendo -, não é o do trabalho, mas o

outro.

A separação e oposição entre os momentos de trabalho e os outros (de não-

trabalho), bem como apenas a identificação deste último aos momentos de viver, tem

por raiz a própria alienação do trabalhador no trabalho, em que o produtor direto se vê

marginalizado da concepção de seu trabalho e não reconhece aquela atividade como

compondo também sua vida pessoal. Ao contrário, é a parte da vida que sente

apropriada por outros (o patrão, o empregador) e alienada de si próprio. Essas divisões

no viver e as representações correlatas têm por base as condições objetivas do trabalho,

quer através do horário fixo, quer através do local de trabalho separado dos lugares que

o trabalhador reconhece como seus, e sem qualquer identidade possível com os mais

pessoais, como seria o caso do domicílio, por exemplo. Essa forma de espacializar a

vida, ordenando seu tempo, não existe no modo artesanal de trabalho e são originadas

na forma capitalista de conceber e realizar a produção8.

A medicina de consultório que se encontra nas narrativas dos entrevistados,

ao compor com suas respectivas situações de trabalho assalariado, realiza-se em um

tempo de transição histórica, como vimos. E no emprego público ou privado, o médico

encontrará demarcações fixas de seus tempos e já independentes da atividade de

consultório. Assim sendo, dessa perspectiva a prática do consultório tem seus limites

impostos “de fora”, por aquelas outras situações de trabalho. Não obstante, ainda será

possível reconhecer nesta prática da “transição”, uma medicina “pessoal” e de grande

dedicação, seja pelos “chamados” que nos momentos iniciais dessa prática são ainda

freqüentes, seja pela forma concreta de configurar os espaços da prática e um “tempo

de liberdade”:

Quando eu abri consultório pela primeira vez em Água Rasa, eu ficava lá

no período da tarde e de manhã no hospital. Pela manhã, sete e

Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,

1993. 229 páginas.

O cotidiano profissional - 90 -

meia, oito horas, eu ia pro hospital, ficava lá até meio-dia, almoçava no hospital, e

depois ia para o bairro novamente, onde eu tinha o consultório e onde eu morava. E

lá dava consulta e ia até oito, nove, dez horas da noite. Enfim, a hora que parar! E

dormia lá; morava lá.

(doutor Fábio)

Por isso pode-se dizer que, na transição para a medicina tecnológica,

também o “tempo de trabalho” neste caso se reparte, quando a atividade do consultório

( o tempo de consultório) é o que sobretudo significa o tempo da profissão. Eis porque

a prática de consultório deve ser iniciada precocemente, e porque é seu início a marca

do próprio início da vida profissional, tal qual reflete doutor Carlos, para quem

começar “tardiamente” o consultório, após alguns anos de formado, significou ter

atrasado o começo da vida.

A escolha do local e as formas mais ou menos isoladas de se instalar o

consultório também obedecem ao critério que permite combinar, de um lado, o fácil

acesso e sua rápida identificação, o que ocorre por meio do estabelecimento do

consultório em espaços já comercialmente bem caracterizados, como a praça do

comércio, a padaria ou a farmácia, inserindo o consumo do serviço médico entre

outras situações de consumo e até certo ponto aproximando o trabalho do médico de

“algo comercializável”. De outro lado, porém, também é mister diferenciar-se e

separar-se de um comércio “comum”, de um consumo qualquer, buscando formar

conglomerados próprios ou “espaços privativos”, na identificação de um local

exclusivamente apropriado para tais serviços, sempre contudo mantendo o caráter de

individualidade dos consultórios: estabelecem-se os “territórios médicos”, mas não

“sociedades médicas” – são consultórios próximos, ou na mesma instalação predial,

porém o importante aqui, ainda, é “trabalhar sozinho”.

Acontecia com outros e acontecia comigo também, não é? De forma que

isso era muito comum: os médicos não se importavam de estar perto assim de outros

médicos. Não! Não tinha essa vaidade, não! Eu gostava. Sempre ficava mais... De

fato, tinha mis dois colegas, próximos, bem perto. Nunca fiquei isolado, não! Mas o

consultório era só meu. Só meu.

(doutor Fábio)

Além da Cruz Azul, assim que me formei, eu logo abri o meu consultório,

também. Eu me formei e fui procurar um consultório pra dar

Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,

1993. 229 páginas.

O cotidiano profissional - 91 -

consulta. E, naturalmente, não podia gastar muito. E o Sales Gomes disse: “Olha, eu

tenho um consultório aí. Se quiser vir, você aluga a sala.” Então eu fiquei no

consultório como Sales Gomes. Mas, aí, mais ou menos uns dois anos depois, eu

transferi pro meu consultório, na Senador Feijó. Mas lá no consultório dele eu tinha

uma sala onde u dava as minhas consultas. Quer dizer, ele dividia só o espaço, ele me

alugava essa sala. Mas eu não tinha nada a ver com o serviço dele. Quer dizer que os

dois primeiros consultórios eu alugava. O terceiro consultório eu alugava também,

mas depois foi vendido pra quem estivesse lá, né? pros inquilinos próprios

comprarem. E u comprei o consultório. E eu fiquei sempre sozinha! Sempre sozinha!

Algumas vezes tinha algum colega novo, que queria começar a clínica, então queria

alugar, por uns tempos, um consultório ao lado que não era o meu, e ele ficava.

(doutora Emília)

Essas formas comuns com que os médicos organizavam o trabalho no

consultório apontam para o homogêneo, para a existência de uma só identificação,

quer no modo de anunciar-se para o público, quer na escolha do local, ou ainda na

demarcação do horário de trabalho. Contudo, tais uniformidades estão subordinadas a

elementos diferenciadores da prática desses médicos e desses trabalhadores entre si,

compondo aquele segundo conjunto de fatores mencionado que irá distribuí-los em

distintas posições na organização técnica e social da produção dos serviços.

b) a diferenciação

A possibilidade maior ou menor que cada médico pessoalmente poderia

encontrar para delimitar um campo mais restrito de atuação, uma prática mais

especializada, ou para demarcar um horário mais fixo e limitado no consultório, ou

então para usar dispositivos mais ou menos comerciais situando seus serviços no

mercado, são gamas de variações possíveis dentro de um mesmo modelo. Elas

distinguem os médicos entre si pela produção de serviços mais identificados ao

popular, ou mais às elites.

Um dos elementos nesse sentido nos conduz à localização do cônsul-

tório, no interior de uma territorialização do urbano em que o centro da

cidade corresponde ao espaço das elites e das camadas mais ricas da população,

e a periferia da cidade, ao espaço de moradia, circulação e consumo dos

mais pobres: os operários, os chacareiros, os pequenos comerciantes.

Morar no centro ou na periferia especifica socialmente o cidadão;

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1993. 229 páginas.

O cotidiano profissional - 92 -

ser médico do centrou ou médico de bairro separa e distingue a medicina dos mais

ricos, da medicina dos mais pobres; e o médico elitizado e prestigiado, daquele “mais

comum”.

Dois aspectos chamam muito a atenção por referência a esse modo de

diferenciar a prática profissional. O primeiro deles diz respeito ao fato de se constituir

essa geografia social em elemento nuclear da diferenciação. Tendo em vista as formas

mais atuais de diferenciação dos serviços, em estreita articulação com as modalidades

de organização institucional do trabalho, não deixa de ser contrastante a referência a

médico de bairro, médico de centro, que os entrevistados fazem, com esta pela qual é

substituída na medicina tecnológica mais adiantada: médico de convênio, médico de

hospital particular, médico do INSPS, e assim por diante. Essa transformação que viria

ocorrer no modo de designar a situação profissional, podemos sentir já na nomeação

de “médico de instituto” que começa a surgir nas falas dos próprios entrevistados,

convivendo com as formas anteriores.

A disposição geográfica como discriminador da posição social do médico

significa que o lugar em que este instalou seu consultório tornou-se o correspondente

simbólico de um conjunto maior de atributos da prática, como, por exemplo, a

qualificação técnica do trabalho, as características sociais da clientela e mesmo a forma

global de organizar a produção, individual dos serviços. Assim, os entrevistados, ao se

identificarem como médicos “de centro” ou “de bairro”, já supunham ter expressado

tudo a seu próprio respeito, ao a respeito dos outros:

Aí, então, trabalhei na perícia médica desde fevereiro, que eu fiz o estágio. A

partir de março eu fiquei credenciado, eu recebia por uma verba que ninguém

entendia! Pelo Ministério do Trabalho. Eu fiquei até... 1963. Mas o que aconteceu de

interessante foi que, quando eu cheguei lá, encontrei um monte de colegas – colega de

turma, de época, daqui... Bom, falei¨”Poxa! Mas é... é o ... Era o ambiente melhor

possível!” E o chefe do negócio simpatizou muito comigo, e eu com ele, morava na

Aclimação... E ficamos muito amigos! Inclusive ele gostava muito de

eletrocardiografia. Ele vivia lá ensaiando aprender eletrocardiografia e eu comecei a

mostrar pra ele, levava os gráficos, tudo isso, e tal... Ele simpatizou muito comigo e ele

me ajudou muito! E ele é uma pessoa muito boa, formado em... 39, por aí. Ele é um

clínico-cirurgião-de-bairro, um sujeito muito bom, humano!

(doutor Carlos)

Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,

1993. 229 páginas.

O cotidiano profissional - 93 -

Era só Clínica pura, e pequenos abscessos, e curativos... Essa coisa aí!

Alguma massagem... massagem na próstata de alguém, devido a uma gonococcia.

Pois é! Eram essas coisas mesmo! Coisinha de bairro. E como eu fazia Clínica Geral,

de queixa aparecia tudo! Clínica Geral, era tudo! Era clínica... Até Pediatria! Era

obrigado a fazer tudo! Tanto que muita gente gostava também que tratasse das

crianças – e havia pediatra já em Pinheiros – mas eles vinham comigo. Então, muitas

vezes eu dizia: “Vai no pediatra pra ele encaminhar melhor, fazer regime e tudo.” E

também Ginecologia. Aparecia bastante.

(doutor Nélson)

O segundo aspecto que chama a atenção está no fato de que esse símbolo de

identificação do trabalho profissional assume tal relevância que é através dele que, em

primeiro lugar e espontaneamente, os entrevistados discorrem sobre suas vidas de

trabalho: por meio do relato da sucessão de ruas, bairros u locais da cidade onde

fixaram seus consultórios é que esses médicos encontram o modo adequado – e

suficientemente explícito, segundo o específico entendimento que têm acerca do viver

– para qualificarem suas próprias vidas profissionais.

Começamos nossa clínica particular. Meu consultório foi na Conselheiro

Crispiniano, perto do consultório do Schor. Naquele tempo ainda havia condições de

fazer medicina privativa como não se tem mais hoje. Foi lá que começamos.

Depois, em 1947, achei por bem arranjar uma namorada. Nos conhecemos no

casamento de um amigo, de um ex-colega lá no Rio, que trabalhava conosco na

Santa Casa, faleceu há pouco tempo. E, então, resolvemos alugar uma casa e, aí,

começamos nova clínica. Fazia a clínica na Conselheiro e em casa, na Rua

Anhaia, esquina com Sólon. E lá nós começamos os primeiros anos de casamento.

Depois acabei mudando para um apartamento que eu comprei e passei com a família

para a Rua Sólon, e fiz consultório lá em casa também. Eu já tinha mudado o

consultório da cidade para a Rua Marquês de Itu. Depois com o tempo, nós fomos nos

limitando e passamos a ficar fixados ao consultório do bairro. Aí mudamos para a

Rua Três Rios, fiquei médico de bairro. Foi então que tive a ocasião de conviver com

vários colegas, tinha um... que fumava muito... faleceu de tanto fumar... fomos medi-

Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,

1993. 229 páginas.

O cotidiano profissional - 94 -

cos de bairro, no Bom Retiro. Nós nos tornamos um centro médico, um agrupamento

médico... sentimos que o ambiente médico estava lá mais ou menos no mesmo nível

que o do centro. Trabalhei trinta anos como médico de bairro, no Bom Retiro, que se

tornou, digamos, um centro médico diferenciado. Naquela ocasião alguns colegas que

estavam lá no Bom Retiro, estavam preocupados com a chegada de maior número de

médicos. Eu dizia o contrário: quanto mais médico chegasse melhor, mais

diferenciada a medicina se tornaria. E realmente foi o que aconteceu. O Bom Retiro

se tornou um centro médico de diferenciação mais ou menos no nível do centro.

(doutor Maurício)

Entre a “clínica de bairro” e a “clínica do centro”, pelo menos duas

medicinas se realizavam. A de bairro, pela própria escassez de médicos, tinha que ser

uma prática não especializada, com parcimônia no uso dos recursos materiais e

serviços complementares de diagnóstico ou terapêutica então existentes. Por isso

mesmo, também correspondia às possibilidades de um início mais rápido de obtenção

de renda pessoal na profissão, para os médicos que dispunham de poucos recursos.

Destinava-se sobretudo, então, aos que encontravam dificuldades, seja para

combinarem atividades remuneradas com aquela voluntária nas Santas Casas ou

instituições similares, para um maior aprimoramento técnico ou para especialização,

seja para selecionarem clientela na observância a uma atuação mais especializada. A

“clínica de centro”, ao contrário, permitia maior independência de uma “propaganda”

pessoal, já por estar situada na “área dos especialistas, dos professores e da clientela

diferenciada”:

Naquela época a gente costumava dizer que ficava caçando mosquinha;

ficava estudando e, enquanto isso, iam chegando os pacientes. Então, assim, fomos

criando a nossa clínica... recomendados por um colega ou outros... e assim fomos...

No centro era diferente. Os pacientes vinham de outros bairros procurar os

consultórios médicos pela lista telefônica ou por indicação, recomendação. A maioria

dos consultórios ficava no centro. Os consultórios considerados diferenciados eram

sempre na Rua Marconi, na Conselheiro Crispiniano, Xavier de Toledo, aquelas

bandas lá do centro; as pessoas mais ricas eram atendidas aí.

(doutor Maurício)

Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,

1993. 229 páginas.

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O consultório só teve alguma clientela para sobrevivência depois que eu

vim da América. Antes, não. Eu não cheguei a fazer propaganda do consultório nesse

começo, antes de ira pra América. Isso eu nunca fiz, nem faço hoje, e nem pretendo

fazer, viu? Montar consultório naquela época não era tão difícil, mas ter clientela era.

Ninguém procura um médico recém-formado. Procura por indicação um médico que

tenha experiência, que já tenha alguma fama, mais conhecido, não é? Médico recém-

formado tem algo contra ele, que é a suposta falta de experiência. Mas, aí, quando eu

vim da América aí as coisas mudaram. Aí as coisas mudaram porque aí eu era o tal,

né? As pessoas ficaram sabendo porque eu... Um falava pro outro e indicavam. Os

próprios colegas indicavam. Eu tive consultório em bairro por pouco tempo. Inclusive

tive um colega que tinha consultório lá no Bom Retiro e ele me cedeu umas horas lá

de manhã e eu fui lá uns tempos. E também no Brás eu tive, mas também não fiz muito

progresso lá. Eu só fiz clientela particular lá mesmo, como eu disse, depois que eu

voltei da América, depois da bolsa de estudo, viu? Clínica aqui no centro, clínica de

gente mais qualificada. Aí é uma clínica diferente, naturalmente. Porque é uma

clientela mais exigente, clientela mais esclarecida, que aos primeiros sintomas ou

sinais de qualquer coisa já procura o médico. E não como os outros que deixam a

doença evoluir, vão tentando com os antitérmicos ou remédios caseiros, e só depois

que a doença evolui bem, aí que procuram o médico. A diferença é essa, né?

(doutor Paulo)

A clínica de centro, porém, ao contrário da do bairro, para o recém-formado,

como profissional ainda de pouca autoridade técnica em razão da pouca experiência

clínica pessoal, quase significava a necessidade de iniciar-se na profissão de forma

associada a um colega mais velho, mais experiente, mais renomado, e não de forma

independente:

A clientela... nesse começo, não era minha... eu pegava o que chegava, né?,

porque... primeiro a gente... não era muito moda, naquele tempo, porque não era

muito ético, você fazer grandes propagandas, né? Depois praticamente todo mundo

começava assim. Quer dizer, você ou ia pr’um hospital, ou ia pr’um bairro, alugava

uma sala, punha uma placa na porta e ficava esperando alguém entrar. Você não

tinha assim um... Evidentemente, tinha encaminhamento de algum colega, ou

você se juntava a um colega mais idoso, ou um parente, ou uma instituição, um

hospital, qualquer coisa, e... e ia cobrindo as horas do outro que

Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,

1993. 229 páginas.

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estava, vamos dizer, tentando fazer horário mais lógico. Então eu passei a atender

mais chamados, visita mais fora de hora papai me mandava, ele não ia... Quer dizer,

você ia fazendo uma... você ia funcionando mais ou menos. Você começava quase

sempre... mais ou menos como assistente de alguém. A não ser que tivesse – vamos

dizer – ir pr’um lugar mais longe onde não tivesse um outro médico. Praticamente

não existiam convênios, nem credenciados. Você já tinha INPS, mas você não tinha...

que eu lembre, nenhum seguro saúde. Nem mesmo, que lembre, nenhuma medicina de

grupo funcionando. Então, a pessoa ou era do INPS, ou era... hã... clínica privada.

(doutor Luís)

Além desse há outros elementos que diferenciam os serviços médicos entre

si. De um lado, a experiência pessoal, de outro, as especificidades da qualificação

técnica, que no início do período considerado ainda se resume à formação escolar em

geral, como conta doutor Paulo à propósito de sua viagem aos Estados Unidos ou

como aponta Eduardo Etzel: Foi a época em que os médicos tinham em seu

receituário e nos anúncios a sugestiva e convidativa frase “dos hospitais de Paris,

Londres e Berlim”, sem especificação alguma por possível falta de títulos, mas que

impressionava e atraía clientes.9

Será mais ao final do período considerado (ao final dos anos 50), que ser

especialista e incorporar mais tecnologia material ao cuidado médico surgirá como

importante elemento para distinguir a prática profissional. Esse fato aponta para as

transformações da medicina em que progressivamente tanto os equipamentos quanto a

organização institucional correlata da produção de serviços, virão substituir, como

valor maior na qualificação da prática, a experiência clínica pessoal ou o local de

fixação do consultório. Com isso se deslocam para os especialistas, para os médicos

novos e atualizados, para os técnicos antes mais hábeis que observadores pacientes,

para o hospital e todos os seus equipamentos, e para a empresa médica e todas as suas

“facilidades”, os fatores que comporão o critério principal na diferenciação dos

serviços. As pessoas cedem lugar ao instrumental é às engrenagens, pois como diz

doutora Emília, heróicos, agora, serão a penicilina e a sulfa.

Todos os médicos entrevistados reformularam suas práticas nesse

sentido da medicina tecnológica, desenvolvendo-a por estratégias às

vezes mais próximas entre si, às vezes mais particulares, em função das

peculiaridades de cada situação de trabalho já constituída. Diante desta, nem

todos os aspectos que de fato se transformam serão exatamente percebidos

Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,

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como alterações ou como se a prática tivesse substantivamente mudado, ao passo que

outros logo serão compreendidos como visivelmente diversos. Na totalidade do

exercício profissional, porém, todos sabem que refizeram os espaços, os momentos e

as formas de realização da liberdade de ação pessoal, liberdade que lhes caracteriza as

b ases de sua autonomia enquanto profissionais.

A LIBERDADE REFEITA

a) a atualização necessária

Esse problema é – se a gente quiser – um problema de evolução. Problemas

de evolução são todos iguais, né? Quer dizer, num determinado momento um

aparelho é aperfeiçoado para tal coisa e nós, que temos esse aparelho, vemos o

aperfeiçoamento e adquirimos aquele outro. Uma determinada técnica... Então, tudo

isso são coisas que vão surgindo e a gente vai incluindo na nossa evolução. Quer

dizer, nós sempre fomos... permeáveis a toas idéias justas, modernas, boas... Sempre

fomos! Há, evidentemente, conquistas que são gerais, que todo mundo... Porque você

sabe, naquela época não havia nenhum antimicrobiano. O primeiro que apareceu foi

as sulfas, os derivados da sulfona. Então, todo mundo usava sulfa em qualquer

doença infecciosa. Depois que surgiu a penicilina, foi absorvida por todo mundo. A

estreptomicina aí vem... Depois veio a tetraciclina; idem. E, evidentemente, essas

novas drogas foram... produzindo mudanças no panorama clínico. Claro!

Antigamente, naquela época, a gente há sessenta, setenta anos atrás, como é que a

gente tratava pneumonia lobar? Era com cataplasma de linhaça! Hoje não se

conhece; nem se chega a ver. Então estas coisas produziram modificações grandes.

Isso aí era... era normal! Na medida que nós dispúnhamos de uma conquista, ela era

usada, a gente verificava que havia melhora, as coisas corriam melhor... Isso... não

tem nada, não há nada que possa espantar a gente, não há nada de espantar. Parece

que tudo é uma rotina que vem caminhando, né? caminhando normalmente. Então,

quando surgiram aqueles monitores, a gente colocava o monitor e achava muito

interessante que você podia ver a pressão arterial do indivíduo sem medir,

sem nada. Tudo isso eram conquistas que a gente gostava de ter porque

isso dava imediatamente uma série de informações para a gente, né? Mas isso...

Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,

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O cotidiano profissional - 98 -

isso produziu as modificações que eram possíveis; que eram possíveis na... na época,

né?

(doutor Antônio)

À proporção que os novos recursos tecnológicos foram aparecendo, como

também à proporção que correlatamente se foram estabelecendo as especialidades

médicas, ambos foram incorporados à prática profissional. Ocorre uma polarização

positiva por referência a essas características em função do próprio conceito de

“inovação”. Inovar é entendido como sinônimo de estar mais atualizado relativamente

ao desenvolvimento científico-tecnológico, absorvendo os avanços diagnósticos e

terapêuticos. A atualização é tão importante para qualificar o desempenho do médico

que parecerá igualar, pela inserção na medicina tecnológica, práticas antes

diferenciadas:

Eu trabalho hoje num bairro; o hospital fica num bairro. Eu não diria que

faço medicina de bairro. Talvez, não. Porque nós temos todo conforto, nós temos toda

a atualização médica no hospital... Então, não vejo. Acho que é a mesma medicinal

Tanto faz o hospital do Brás, como o “Santa Catarina”, como outro hospital assim

deste tipo. Podia-se tirar uns dois ou três hospitais de São Paulo, esses que estão mais

bem aparelhados. Aí, sim! Mas, em geral, não. São a mesma coisa.

(doutor Fábio)

A incorporação de tecnologia pode significar uma circunscrição da atuação

clínica a áreas mais específicas da medicina e aprofundar os conhecimentos científicos

correspondentes. Atualizar-se seria, dessa perspectiva, para os que ainda não eram

especialistas como clínicos ou cirurgiões de bairro, efetivamente se aproximarem da

especialização. Isso representará uma forma de melhorar seu desempenho e, por

conseqüência, captar e manter a clientela, sendo a ausência de movimento na direção

da especialização conotada de forte sentido negativo:

No comecinho do consultório eu fazia também pequenas cirurgias. Um

pouquinho de abscesso, fimose, sempre fazia no consultório. Mas todas as cirurgias

um pouquinho maiores eu mandava para o hospital do Brás, onde o Arion me dava

uma mãozinha lá. E depois é que eu fui me habituando e estudando um pouco mais e

entrei na Ginecologia e Obstetrícia. Aí comecei a fazer as duas especialidades e fui

deixando a Clínica – Clínica Médica, propriamente dita – e me dedicando mais

Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,

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na parte ginecológica e obstetra. Eu atendia criança, também, Pediatria, naquele

começo. Porque a gente lá atendia tudo! Consultório de bairro, né?, a gente atendia

tudo: Pediatria, Clínica, Ginecologia, Obstetrícia... Naquele tempo, apesar de não

fazer as especialidades, a gente sempre aceitava os casos e tentava resolver, não é?

Resolvendo da melhor maneira possível, me interessando mais pela parte

ginecológica/obstétrica e fui deixando a Pediatria que, de fato, abandonei logo, já que

não era pediatra mesmo – apesar de gostar muito de criança. Talvez se eu fizessse

Pediatria eu faria bem, mas, passou, deixei. E fui deixando os adultos e até hoje –

apesar de já ter deixado há muito tempo – tenho clientes do início do meu trabalho

que procuram ainda na parte clínica.

(doutor Fábio)

Assim, a especialização que aparece no início de suas práticas com uma

relativa importância para qualificar o desempenho pessoal, a partir da plena

configuração da medicina tecnológica, principalmente como decorrência da presença

do equipamento, mostra-se como única via que o médico tem para firmar-se

profissionalmente, deslocando definitivamente o não-especialista do mercado. E como

bem descreve doutor Nélson, esse deslocamento é também, simultaneamente, uma

revisão do valor do consultório, perante o hospital:

Eu, por exemplo, tinha muito chamado domiciliar. Coisa que hoje é muito

raro! Muito raro por causa desses prontos-socorros. Porque eles telefonam, vem a

ambulância, e o sujeito já é visto lá... A equipe é boa. Hoje as equipes médicas estão

bem formadas! Porque, no meu tempo, se o sujeito me chamava, eu ia na casa dele

com o esteto e com o aparelho de pressão. Só com isso eu vou, se me chamar agora!

Com o abaixador de língua e uma lâmpada para ver a garganta. E o resto é na

percussão que você aprendeu, e tudo na ausculta, e tudo direitinho...

Agora, naturalmente, hoje a turma chama o pronto-socorro. É melhor!

Eles já chegam na tua casa com a ambulância, chega um colega junto... E é

interessante! Quando precisar, chama! Como eu já chamei! E chega o sujeito

com toda a ... eles vêm com um laboratório inteiro lá dentro. Vem com uma coisa...

Parafernália! Tiram a pressão, tiram... fazem eletro, fazem ecocardiografia...

Fazem tudo! Inclusive a medicação! Já vem com uma bateria de remédios,

injeção de todo jeito... Quer dizer, é muito mais interessante do que você chegar lá, um

médico simples, chega a pé porque é perto do consultório... Você vai

Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,

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ver lá: “Como é que é? O que é?” “Pois não! Vamos entrar.” E a família... fica lá

arrumando depressa a cama, tal, e coisa... No meu tempo a gente freqüentava a casa

do paciente, ficava o médico da família... E geralmente a pessoa dizia: “Não! O

senhor venha conversar. Pode voltar quando quiser.” E isso era interessante porque a

gente tinha uma idéia do doente, da evolução dele... A passagem, assim, pro pronto-

socorro já mudou essa relação. Eu acho que mudou. Eles preferem o pronto-socorro

porque porque o pronto-socorro chega, já dá o remédio, já faz o que precisa, remove

pro hospital... Se a pessoa perguntar: “O senhor indica algum hospital?” “ Eu

indico.” “Qual é que é o melhor nesse caso pra levar meu pai?” “Pra mim, eu acho

que o Hospital X!” “Por que o senhor acha?” “Ah, porque é um hospital que tem

cinco mil médicos e (uma hipótese) um aparelhamento ultra-moderno.” Pronto!

Basta falar isso que a pessoa fia impressionada! Aparelhagem ultramoderna! Os

hospitais chamam mais a atenção por serem mais aparelhados. Agora não tem mais

aquilo do camarada chamar a gente em casa, ficar mais a domicílio... Acabou! Hoje

só tem conveniados! Eles já tem os seus hospitais e os seus prontos-socorros! Acabou

a clientela! Porque hoje em dia o pessoal já está mais esclarecido. A não ser na...

acredito que na periferia. O pessoal está esclarecido hoje. Porque eles raciocinam

assim: “O que que adianta eu chamar esse médico? Eu vou chamar o doutor Nélson

pra vir aqui, ele não é cardiologista, ele é clínico geral. O caso de papai me parece

coração porque ele já teve um infarto... Ah! Vamos chamar já o pronto-socorro

cardiológico!” O sujeito já parte desse princípio. “Se tiver que pagar o doutor Nélson,

eu prefiro pagar o pronto-socorro cardiológico, que já vem com a bateria de

remédios aí. E já remove pro hospital também!” Entendeu como é? Pra nós, clínicos

velhos, piorou muito! E pr’um médico que saiu agora da faculdade vai ser a mesma

coisa. Agora é tudo na base da especialidade. Você não pode ser clínico sozinho. Hoje

você tem que fazer especialidade se você pretende viver da medicina. E nessa

especialidade se puder, pegar um hospital. Fica num hospital lá, de plantonista! Por

exemplo, você é parteiro. Fica no hospital lá, no teu plantão. Caso de parto que

aparecer você pega no teu plantão!

Eu acho que a medicina hoje está assim! Quando eu me formei

não era assim, não se fazia tanta especialidade! Aqui no bairro eram

poucos os especialistas, tinha o parteiro, tinha o ginecologista... E as pessoas

vinham primeiro pro meu consultório. Quer dizer, a gente era o “ai,

Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,

1993. 229 páginas.

O cotidiano profissional - 101 -

Jesus”! Tinha placa assim, era o meu nome, Clínica Geral, né?, só! Mais nada! E

vinha moléstia de senhora, vinha de tudo... “Então eu vi a placa aí, gostei, estava

passando de bonde...” Eu passei aí e vi o senhor... O senhor entende de criança?”

“Entendo. Vamos ver.” “Chegava outro aí: “O senhor entende de pele?” Eu não era

dermatologista, mas eu era obrigado a entender. “Então deixa eu ver isso aí! Isso

eczema, uma micose... passa isso aqui!” Era assim! Estava muito melhor! Naquele

tempo havia médico! Naquele tempo era mais difícil ser especialista porque clínico

resolvia muita coisa. Isso começou a fiar assim agora, todo mundo especialista.

Embora reconhecendo a importância da especialização para caminhar para

se manter atualizado, esta nem sempre será alternativa compatível com o exercício

profissional já estabelecido. Assim sendo, a forma de atualizar a prática

preferencialmente adotada dar-se-á através da introdução do uso mais sistemático dos

equipamentos diagnósticos – representado pelo uso direto dos aparelhos ou pelo uso

dos recursos de serviços de terceiros (laboratórios clínicos, os serviços radiológicos), e

também através da introdução do uso de instrumentos terapêuticos novos, sejam eles

equipamentos, fármacos industrializados ou mesmo o hospital. Este último deslocará o

consultório e o domicílio definitivamente, como forma mais apropriada de espaço

terapêutico.

Hoje você não faz uma consulta de Gineco que o cliente saia satisfeito se

você não pedir, pelo menos, um ultra-som, uma colpocospia e um papanicolau. Quer

dizer, isso... você tem que pedir... não que você... a não ser que você acha

absolutamente que não precisa e se o cliente concordar com a sua idéia de que ele

não precisa. Se não você vai ter que pedir isso.

(doutor Luís)

Na área de medicamentos, ou na área de exames diagnósticos, recurso

diagnóstico, quando aparece uma inovação eu gosto de incorporar, desde que ofereça

vantagem. Sem dúvida nenhuma! Estou pronto a incorporá-la, viu? Desde que haja

necessidade, que haja vantagem, seja do meio diagnóstico e ajude o

diagnóstico correto e uma terapêutica mais adequada, né? Naturalmente,

nessa parte, por exemplo, de tomografia – tomografias computadorizadas –

isso contribui muito para melhorar o diagnóstico. Não só melhorar o diagnóstico

como também diminuir a exposição do paciente a raio X. Eu senti isso

Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,

1993. 229 páginas.

O cotidiano profissional - 102 -

na minha clínica pediátrica. Eu uso bastante. Em termos de medicamento, quando

surgiram os antibióticos, mudou radicalmente a terapêutica. Nós, antigamente,

quando me formei, a gente tratava broncopneumonia com injeção de óleo canforado.

Ou então, ainda se usava o abscesso de fixação, coisa desse tipo. Então estávamos

praticamente desarmados. Depois surgiram as sulfas. Foi um progresso grande! E

depois vieram os antibióticos.

(doutor Paulo)

Naquele tempo os clientes não aceitavam muito os exames de laboratório.

Precisava insistir muito, sabe? Não sei se pesava um pouquinho assim na parte

financeira, mas a gente tinha um olho clínico maior do que o atual. Eu sempre ia bem!

E fazia os diagnósticos com a Clínica. Só com a Clínica, viu? Não tínhamos assim

muitos recursos como a penicilina, sulfa, mas mesmo assim a gente conseguia

resultados bons. Quando era necessário, a gente pedia exames laboratoriais, raios X...

Não os mais sofisticados, mas os mais comuns, mais de rotina, que a gente fazia

quando pedia os exames de laboratório. E existiam laboratórios no Brás. Por lá na

Água Rasa, Avenida Celso Garcia. Laboratórios que para exames de rotina, simples,

resolvia. Eu tive resultados bons. Era mais freqüente eu pedir exames de fezes,

principalmente; urina... E raio X – estômago, parte renal, vesícula - ... Eu ficava por

aí! Já era raio X contrastado. Não tínhamos ultra-som, não tínhamos endoscopia –

não existia ainda, não é? Hoje em dia nós estamos aí com toda essa maravilha.

(doutor Fábio)

Inovar, simultaneamente, resultou em dar novas diretrizes ao trabalho do

consultório, que ultrapassam os limites “internos” a esse trabalho e sobretudo alteram

as regras das relações com seu “exterior”. Assim, a inovação será também outro modo

de articular-se com os outros serviços e com a clientela. Este aspecto, contudo, já não

receberá a mesma valorização positiva, isto é, será tomado como o lado mais

“negativo” das transformações na prática. A qualidade negativa, no caso, significa a

necessária reordenação do que é “interno” e sob seu controle pessoal, em razão do que

é o novo “externo”, dizendo respeito, pois, diretamente à posição de autonomia

profissional: às bases mais pessoais de organização da prática e à auto-suficiência já

construída do exercício profissional.

Essa necessária alteração das relações entre o trabalho do consultório

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1993. 229 páginas.

O cotidiano profissional - 103 -

privado e outros serviços, ou entre o trabalho do consultório privado e a clientela, dá-se

por razões de ordens diversas, alguns das quais serão concebidas como produtos mais

próximos da incorporação da tecnologia material; outras, pelo contrário, parecerão

injunções exteriores à medicina. Ambas, porém, apresentam-se como impondo uma

redefinição da capacidade resolutiva do ato isolado de cada médico individual, que

escapará ao controle pessoal daquele médico. Valer-se mais dos especialistas ou pedir

mais exames é depender mais de serviços de terceiros e onerar mais a clientela,

embora vá ao encontro das novas exigências técnicas, qualificando melhor o

desempenho do médico e sobretudo vá também ao encontro das próprias expectativas

do paciente, que agora se manifesta ativa diretamente sobre a conduta médica:

E esse exame, comecei a fazer, assim, de rotina, desde que... acho que desde

formado! Já era moda! Já se usava papanicolau. Só que agora ele ficou bem rotina!

Então você pode... frequentemente... Isso é outra coisa! É a tal história: do progresso

da atenção à saúde e das campanhas que se faz, às vezes. Frequentemente passa

cliente de convênio. Às vezes: “Ah, faz um ano que eu fiz papanicolau. Então eu vim

pro senhor examinar e pedir o exame.” Isso já entrou na cabeça da maioria das

pessoas que em cada ano, ano e meio, o pessoal vai pedir o exame. “Ah! Esqueci de

pedir! Não fiz o ano passado, mas precisa fazer!” Precisa mesmo, né? Então isso

entrou direito... Então eu mano colher. Porque eu mando pro laboratório! Eu nem

olho! Prefiro mandar pro laboratório fazer tudo. Quer dizer, não tenho aparelhos

instalados no consultório. Não tenho nada! Não tenho! Só faço o pedido e encaminho.

Bom, tem colegas que preferem eles colherem. Isso varia. Às vezes você manda pra

um laboratório... sério, um laboratório de confiança, já fica tudo por conta do

laboratório. Aquela história de vai, o laboratório acha que você colheu mal, ou então

fica na dúvida, se acontece qualquer coisa você que deu... culpado... Então, acho que

se dá responsabilidade toda pro laboratório. Eu acho mais prático. Têm colegas que

preferem eles colherem. Isso eu acho que ou você pode e faz, ou você deixa outros

colherem porque se não é a mesma coisa que você vai inventar de ficar colhendo

sangue pra saber que colheu na hora certa ou do jeito que ele queria, né? (...)

Na minha opinião a novidade é a ultra-sonografia também, e a endoscopia.

As endoscopias, de maneira geral. Eu acho que foi um progresso muito

grande, indiscutivelmente! A endoscopia ficou para mim como uma espécie de

substituição do raio X contrastado. Mais frequentemente. Hoje eu peço

Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,

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O cotidiano profissional - 104 -

muito raramente raio X contrastado. Só se doente for muito medroso de... endoscopia.

Mas a grande maioria das pessoas aceita. É outra coisa que está mais ou menos

popularizada. Você nem precisa explicar muito. Acho que já todo mundo já tem

alguém que já fez e que já não se queixou muito. Então... hã... o pessoal aceita... Vem...

quando já não vem com o pedido: “Não é bom fazer uma endoscopia?”.

(doutor Luis)

Para o doutor Fábio a atualização significou incorporar diretamente os

equipamentos e para tanto também transformou sua prática, relativamente isolada e

independente, em trabalho coletivizado, dividindo suas atribuições pessoais com

outros dois colegas mais jovens e inserindo seu próprio consultório no interior do

hospital:

Em termos de aparelhagem, teve diferença ter mudado para dentro do

hospital. De fato teve porque no hospital tinha raio X, tinha laboratório, tinha todos os

especialistas que, naturalmente, se houvesse necessidade, encaminhava. Então,

facilitou muito para chegar ao diagnóstico, claro. E com esses aparelhos de outros

colegas, também. Porque em meu consultório sempre foram mais ou menos os

mesmos, lá. Depois que nós viemos para o hospital – mudamos – ficamos com a parte

de G.O., com esses dois colegas. Aí mudou porque nós conseguimos diversos

aparelhos da especialidade, né? Mas até então, não! Tinha consultório, mas um

consultório simples. Não tinha muito aparelho, não. Quando tiveram esses dois

colegas, eu incorporei o colposcópio, ultra-som, sonares... São mais ou menos esses aí

que o nosso consultório incorporou. O trabalho com dois colegas e a incorporação

desses novos aparelhos aconteceram juntos. Então nós adquirimos, fizemos a junção,

fizemos um conveniozinho aí, uma clínica. Eles queriam usar os aparelhos todos e

ficamos com o consultório montado para atender a especialidade. A minha decisão de

compartilhar com eles minha clientela pesou na incorporação da aparelhagem. Se eu

continuasse sozinho, provavelmente eu teria melhorado também. Porque eu

freqüentei um pouquinho a Maternal lá no Brás e a Maternal tinha mais recurso. E a

gente então ia se entrosando, e eu iria adquirir alguma coisa. Mas a presença

deles facilitou porque eles eram formados mais recentemente e eu estava

mais afeto ao consultório. Eu não freqüentava hospital nenhum. Estudava,

claro! Mas eu tinha assim um meio melhor para atualização e

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O cotidiano profissional - 105 -

eles já vieram atualizados, de freqüência em hospitais, de plantonistas lá da

Maternal. Então, já vieram com uma formação mais... Não digo mais adiantada, mas

mais aprimorada, a respeito do uso da aparelhagem. Então, nós conversamos e

resolvemos comprar esses aparelhos que nós temos.

(doutor Fábio)

Contudo, mesmo sendo mais problemáticas que apenas o especializar-se, as

associações entre colegas ou a necessidade de usar mais intensivamente serviços

complementares, enquanto medidas de maior dependência do “exterior” por parte de

cada médico isolado, foram recebidas como problemas ainda menores e muito menos

graves que o redimensionamento daquilo que consideravam como o âmbito “interno”

à prática de consultório. Trata-se, este último, do aparecimento das novas situações de

trabalho, novas modalidades de captação da clientela e novos padrões de organizar a

produção dos serviços, que constituem formas, sob vários aspectos, socialmente mais

viáveis e alternativas reais ao consultório mais tradicional. E se as primeiras alterações

foram tomadas como mudanças que derivaram da incorporação tecnológica, a

diversificação institucional que se estabelece já não é tomada tão consensualmente

como produto direto da tecnologia, mas, de modo mais freqüente, como uma forma

“exterior” de tratá-la. Assim, se a inovação tecnológica é tida como parte da medicina

e a atualização de suas práticas como necessidade técnica de mesma espécie, o mesmo

não ocorre com a nova organização social da produção dos serviços.

Mas não foi o equipamento! A distorção foi na evolução da política,

econômica e científica do país. O equipamento é uma conquista moderna que a

gente... que todos têm que aceitar. Porque, você sabe muito bem, que existem...

lugares, serviços médicos, que têm um equipamento. Não usam o equipamento e o

equipamento se estraga e se perde. Mas realmente, não é o equipamento. Não são os

exames que vieram contribuir... Não! O que contribui para isso foi a evolução!

(doutor Antônio)

Esta nova organização produz a diversidade de formas institucionais

da produção dos serviços, no que diz respeito tanto à qualidade técnica dos

padrões de serviços produzidos, quanto à inserção dos médicos no merca-

Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,

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O cotidiano profissional - 106 -

do de trabalho e de organização formal da clientela. A diversidade significará uma

necessária mudança nas regras das relações entre o médico e seu paciente e também

entre os serviços, pois a produção destes agora se dá organizada sobre bases mais

formais e menos pessoais:

(...) eu atendi um camarada, mas eu mano chamar o pronto-socorro pra

remover lá pro hospital. Então não indicando ninguém, vai pro hospital que eles

escolhem. Mas eu dizia: “Vai pro Hospital Samaritano, vai pro Hospital Sírio-

Libanês, vai...” “Esse é caro!” “Vai pro Albert Einstein´”. “Também é caro!” “Mas

lá tem gente boa.” “O senhor indica alguém lá?” “Não! Não precisa indicar. Lá tem

gente muito boa. Tanto clínico, como pediatra, tanto como otorrino... Tudo

direitinho!” Quer dizer, eu não... eu não sei direitinho quem são os especialistas

desses hospitais, mas eu não vou ter tempo de ligar pro “Albert Einstein” e perguntar:

“Faz favor! Quem é o otorrino que vocês chamam no caso de otite pergurada?”. (...)

No começo da minha clínica era mais fácil pedir exames. Muito mais fácil!

Porque os colegas... eles eram... eles se abriam com a gente. “Não! Se o sujeito não

puder pagar o exame de fezes que eu cobro, eu faço o preço que você mandar fazer.

Eu faço! Se você pedir pra eu fazer por 59, eu faço!” Quer dizer , havia esta

facilidade! Hoje já não tem isso aí! Hoje já... Eu já paguei médico pra minha senhora,

já paguei ecocardiografia e eletrocardiograma. Paguei! E é um dinheirão. E sem

abatimento nenhum! Quer dizer, antes tinha mais assim relacionamento com os

colegas, antigamente tinha muito. Mais camaradagem! Agora, eu, por exemplo,

telefonava pr’um colega e dizia: “Olha, eu vou te mandar um caso cirúrgico, um

apêndice, mas você, faz favor, é gente de família pobre. Vê se você interna num

hospital mais ou menos de preço acessível e, faz obséquio, não sei quanto você cobra,

mas faz um preço bom na sua cirurgia. E fala pro anestesista também.” Quer dizer,

essa coisa havia muito mais... entrelaçamento! Hoje é difícil encontrar um

“gentleman”, verdadeiros “gentlemen”. Era gente que te tratava com... uma gentileza

fantástica! A gente ficava até encabulado com tanta delicadeza.

(doutor Nelson)

Tem uma série de coisas que hoje a gente não faz mais, né? Não

faz mais uma versão, não faz... Essas coisas não faz mais, né? De maneira

que o desenvolvimento que deu a segurança no nosso trabalho, foi

Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,

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dando uma... uma ligeireza do doutor nas coisas, mas não no seu doente, né? Não sei

se eu me expresso bem. Quer dizer, assim: ao mesmo tempo contribui, mas, ao mesmo

tempo, tem uma série de outras desvantagens. Desvantagens pequenas que o médico

quase não se apercebe. Mas, sem querer, ele vai ficando mecanizado no seu trabalho

porque tem quem está trabalhando no outro pedaço. Então ele está fazendo o seu. De

maneira que dá uma segurança pra ele e ele trabalha mais tecnicamente mesmo, né?

Pro paciente isso representou a perda do contato médico e doente, que é tão

contagiosa! E a gente vê, às vezes, dizer isso, que os médicos confundem os pacientes,

não prestam atenção direito ao caso e até trocam o tratamento. Às vezes, pode-se

fazer o exagero de umas... chacotas nessas coisas... que, às vezes, acontecem mesmo e,

infelizmente, a gente tem tido essas coisas aí nos jornais, né? Porque já não tem... o

médico já não tem aquele aprimoramento de crer no pessoal. “Eu sou eu, eu vou fazer

eu, e vou ver eu, eu vejo o sangue, eu ponho a chapa lá, eu estou vendo ela, vou ver o

que faço...” Não! “Qual é? É esta aqui, sim senhor! É isso, né? Pronto! Então está

bom!” Então é mais... ficou um pouco mais prático, um pouco mais mecanizado, um

pouco mais habilidoso na sua técnica, mas deixou um pouco do médico, né?

(doutora Emília)

A própria doutora Emília, por exemplo, aponta o mesmo aspecto no

aparecimento progressivo do pronto-socorro como forma alternativa ao chamado

médico, até mais adequada aos tempos modernos e mais confortável mesmo para o

médico, porém mais despersonificador da prática profissional:

Então essas coisas foram mudando também. O médico já não foi atendendo

os chamados longe, né? Fica mesmo pras ambulâncias e os prontos-socorros e – que

são múltiplos e que não justificam mais o médico sair de noite. A gente chama o

pronto-socorro e o pronto-socorro vai... levando o paciente. E, depois, o médico vai

onde o paciente foi, né? Já não existe aquele... Isso despersonificou o médico! Ele vai

no hospital e aceita o médico que está de plantão! O que ele não aceitava no meu

tempo! No meu tempo, se a gente perdesse o parto - a gente ficava escravo, mesmo! –

porque se a gente perdesse a hora do parto, a paciente que não fosse atendida... Ah!

Aquilo era uma coisa séria! O paciente fazia a sua propaganda!

(doutora Emília)

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O cotidiano profissional - 108 -

Entendendo esse processo de reestruturação global da organização da

assistência médica como derivado sobretudo da forma pela qual o Estado resolveu o

problema do custo relativo ao consumo dos serviços na medicina tecnológica, esses

médicos viram na participação do Estado, por via da Previdência Social, o fator

“externo” interferente nas regras que definem o acesso da clientela aos diversos

serviços e mesmo ao consultório privado, ou nas regras da articulação entre os vários

serviços médicos.10

A criação do Instituto Nacional de Previdência Social (1966), simboliza o

auge de uma reorientação, desvirtuando o processo “natural e correto” dos jovens

recém-formados de participação na vida profissional, qual seja, o de se estabelecer no

mercado por via do esforço e desempenho pessoais do médico na “prática liberal” do

consultório privado. Ao oferecer a facilidade de remuneração fixa e garantida, mesmo

que menor do que a obtida na situação de trabalho no consultório particular, a condição

de emprego aparece como alternativa complementar à difícil situação de clínica

privada, para depois assumir proporções e aceitações muito maiores:

Era uma medicina, vamos dizer assim, profissionalizante, particularizada;

quer dizer, não a medicina empregatícia. O médico mão tem chefe, não tem patrão,

ele é o seu próprio patrão! Não havia empregos para médicos! Os empregos

surgiram depois, com a hipertrofia terrível do INAMPS! Fantástica! E, depois, a

formação da medicina de grupo.

(doutor Antônio)

Quando eu me formei não tinha muito... muito emprego médico, não. Mas

havia já uma certa... uma certa inclinação pro cidadão arranjar emprego. Pelo menos

um emprego para garantir o... o mínimo indispensável pra ele viver. Então ele já

procurava um encosto. É muito razoável isso. Não tem problema! Então você sai da

escola agora, por exemplo, e aparece uma oportunidade de ser assistente do professor

lá, tal. Então, você... “É agora!” Você ganha lá um ordenado que dá pra você se

defender, solteiro... Você pega o emprego! Mas não fica... fica só pensando naquilo! É

assim o médico! Eu aceitava aquilo, aquelas duas, três horas, ver aquela meia dúzia

de sujeitos que você lá... outra coisa qualquer. E depois o sujeito ia pro consultório

dele receber os seus clientes. Agora, ser franco-atirador é o que seria o ideal pro

médico! Mas era difícil! Agora, piorou, né? Naquele tempo já era difícil!

(doutor Nélson)

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O cotidiano profissional - 109 -

De outro lado, a criação do INPS teria desvirtuado as regras do exercício

autônomo-independente e, portanto, também sua qualidade, ao abir formas alternativas

de acesso a serviços médicos de baixo custo para a clientela, com as quais o trabalho

do consultório privado é obrigado a compor:

Eu peguei, talvez, o finzinho da clínica particular... em que você ainda

conseguia formar uma clínica particular. Eu não cheguei a... vamos dizer, a minha

clínica aumentou durante um certo período e, agora, ela tem diminuído. Tem

diminuído pra todo mundo. A clínica privada pura, né?, que a gente vai lá, paga a

consulta, e se precisar uma cirurgia, vai, paga a cirurgia, paga o hospital. Ou seja...

um ou outro de clínica particular. Em geral, os serviços mais caros a pessoa não tem

condição de fazer. Então acaba indo pro INPS, e acaba voltando. Então o que você

faz é diagnóstico, indicação terapêutica, ele vai fazer a terapêutica- se é cirúrgica –

fora, e depois volta pra você fazer, vamos dizer, pós-operatório e continuar

orientando. Isso é relativamente comum hoje, pelo menos comigo. Então, alguém que

chega... vamos dizer, com uma úlcera de estômago, você trata, não melhora, precisa

operar. “Tudo bem! Quanto vai ficar?” “É tanto. Vai gastar mais ou menos isso.” “É

muito. O que eu faço?” “Procura um... o INPS.” Leva... faz uma cartinha qualquer

encaminhando, leva os exames, ele vai, opera, depois volta, e você acaba controlando

depois, dieta... É alguma coisa que está acontecendo com bastante freqüência agora.

Tenho impressão que no nosso esquema a clínica privada praticamente vai

desaparecer porque a medicina está ficando um pouco cara. Então o cliente vai ter

condições de pagar a consulta, vai ter muito pouco condições de pagar exames mais

sofisticados e condições nenhuma de enfrentar cirurgia, ou UTIs, ou coisa desse tipo.

Antigamente não, o cliente fazia tudo com a gente... mas a gente também fazia mais...

(doutor Luís)

Além disso, sendo também por meio da Previdência Social que inicialmente

passam a se estabelecer as medicinas de grupo e as empresas médicas, as

transformações na organização social da produção de serviços significaram uma perda

efetiva da clientela tradicional, isto é, captada pelos antigos mecanismos difusos, o que

obrigou esses médicos à adoção de medidas que romperam com seus isolamentos:

alguns, como já vimos, inseriram ou consolidaram o consultório dentro do hospital,

onde a captação da clientela garante-se pelos mecanismos e atrativos do próprio hos-

Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,

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O cotidiano profissional - 110 -

pital, e outros vincularam-se aos mecanismos formais dos convênios e

credenciamentos. Mas para todos a nova forma de organização social da produção dos

serviços significou a perda da clientela própria e exclusiva:

No meu tempo era mais fácil ser médico de consultório. Eu comecei a

trabalhar numa época em que começou a socialização da medicina. Então começou a

aparecer esses negócios que o Getúlio Vargas inventou. Quer dizer, socializar às

custas do médico. Ele começou a fazer todo o benefício pro povo, mas às custas do

médico. Antigamente o médico atendia de graça na Santa Casa, mas depois tinha o

consultório dele que contava como renda, né? Depois quando chegou o INPS, então

aí é de graça quase o dia inteiro. Porque, daí, as pessoas já pagavam o INPS e não

pagavam nenhumm outro médico. Então começou a degringolar tudo. Foi a

socialização da medicina às custas do médico! E no meu consultório isso deu um

impacto forte, também. Diminuiu bem o número de clientes. Quando eu fechei o

consultório em 65 já estava com uma clientela diminuída. Porque aí só que pode, né?

Ou então, quem queria saber o diagnóstico mais certo. Porque tem isso: esse negócio

do doente chagar lá no INAMPS, o médico só olha e, às vezes, faz o diagnóstico de

olhar. Não dá, né? Então, às vezes, o doente quer saber um diagnóstico melhor, quer

saber mais um pouco, ser bem atendido, então ele vai no consultório particular, vai

pagar, né? Muitos colegas fizeram convênio no próprio consultório. Eu nunca tive! Aí

precisava ter mais um ou dois colegas junto, né? Nesse caso é mais difícil trabalhar

sozinho. Então, dois ou três, faz o convênio, abre uma empresa... Aí precisa atender o

dia inteiro. É difícil sozinho.

(doutor Silvio)

Então, o INPS tinha um determinado número de hospitais que não dava pra

atender todo o pessoal. Então, o pessoal de medicina de grupo começou a montar

hospitais nos bairros e fazer convênio com o INPS, vivendo à custa do INPS. E hoje

todos os hospitais de São Paulo, com duas ou três exceções, vivem à custa do INPS.

Bom, então o que acontece é o seguinte: que em função do crescimento do INPS e do

crescimento das empresas de medicina de grupo, das sociedades de pré-pagamento,

como é o caso do Hospital São Luís, não sei o quê, que o indivíduo compra o título e

ele... então recebe assistência grátis, tudo isso, é claro que a clínica privada começou

a sofrer, começou a diminuir. E vem diminuindo gradativamente até hoje, em que a

clínica privada hoje está praticamente abandonada. É essa a situação que nós

Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,

1993. 229 páginas.

O cotidiano profissional - 111 -

vivemos hoje! Em termos de medicina capitalista ou de medicinal... vamos dizer, de

autônomo, é isto! Quer dizer, os médicos de mais idade já, aposentados, etc., não têm

mais clínica suficiente para mantê-lo. Absolutamente não! E os novos, também não

têm! Porque não sobra cliente do INPS, das sociedades de grupo; não sobra clientes

para manter o... o consultório de um indivíduo... de um indivíduo autônomo. E isto

está acontecendo com outras áreas paramédicas: isto vai acontecer com os dentistas,

com... com todos... todos eles, né?

(doutor Antônio)

Uma outra repercussão das alterações efetuadas significou discriminar

dimensões “exteriores” ao exercício profissional também por referência a aspectos

ligados à pessoa do paciente. Portanto, igualmente aparece como efeito desse processo

de atualização da prática profissional a retirada para o exterior do ato técnico dos

aspectos sociais da vida pessoal do doente, mesmo os que se relacionam mais

diretamente ao cuidado médico. Estes eram anteriormente objeto do controle técnico

do médico, uma vez que ele tomava a si a responsabilidade sobre todos os aspectos da

assistência. Essa total responsabilidade significava assumir o controle das formas

concretas de viabilizar a conduta técnica, ou seja, o médico tomava a si, sob seu

cuidado pessoal, também a resolução das dificuldades sociais na consecução das

medidas terapêuticas preconizadas. A perda do controle pessoal sobre essa dimensão

do paciente virá se agregar aos demais fatores de transformação já referidos da relação

médico-paciente.

Como você não tinha muita previdência funcionando, no fim todo mundo

fazia previdência. Então se... vamos ver: chegava lá, chegava lá, sábado à tarde, uma

apendicite aguda, tem que operar. Você faz o quê? “Ah! Não tenho! Porque eu faço...

eu trabalho na feira, mas não sou o dono da barraca, sou empregado. “O dono foi

que... que levou junto... Então você fazia aquela história: o hospital fazia um desconto,

a gente cobrava pouco... Você chegava a meio termo razoável. A gente vamos dizer, a

própria estrutura de atendimento da medicina privada dava uma cobertura. Às vezes

chegava alguém... entrava um pobre qualquer com criança com dor de barriga, você

acabava dando o remédio mesmo. Ia lá pra ver e... ia buscar a irmã da farmácia,

abria a farmácia, vê se lá tinha amostra, pegava um remédio e dava. Então você fazia

desde a assistência gratuita até a assistência bem remunerada, dependendo da pessoa

que você atendesse. Era o que você tinha que fazer! Não tinha outro esquema, né? Se

Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,

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O cotidiano profissional - 112 -

você não atendesse, não tinha ninguém mais pra atender! Se o hospital não facilitasse

um remédio qualquer pra você dar, a pessoa não ia ter o remédio e não ia ter o

dinheiro pra comprar, também. Então você fazia uma assistência que, hoje, o Estado

teoricamente faz, né? Com isso também você tinha uma clientela diversificada...

(doutor Luís)

Então, naquela época, o médico não tinha emprego. Então, ele trabalhava

durante... a manhã nos serviços universitários para manter o seu aperfeiçoamento. E

à tarde, depois do almoço, no seu consultório, das duas ou da uma até às oito, nove ou

dez horas da noite, atendendo os seus pacientes e, depois, ainda visitava os pacientes

em casa, tudo isso. Então, era uma aproximação muito unida. Um paciente não tinha

– como hoje – o convênio donde ele trabalha, a sociedade de medicina da qual ele

comprou o título de pré-pagamento... Não havia nada disso! Então, ele tinha que se

servir do médico particular. E o médico particular era um indivíduo liberalíssimo!

Quantos médicos atendiam os seus pacientes de graça no consultório! Iam até visitá-

los em casa, de graça, e não cobravam um vintém do indivíduo. Ih! Era um número

muito grande! Porque o médico, vivendo esse relacionamento razoavelmente estreito

com o paciente, ele podia se dar a esta característica de favorecer o paciente... Então,

quantos pacientes eram atendidos graciosamente? Muitos! E esta forma de relacionar

era importante!

(doutor Antônio)

Até onde e como o serviço centrado no consultório seria capaz de cobrir

satisfatoriamente a demanda do paciente eram atribuições pessoais do médico e que

passam agora a se definir pela tecnologia e pelas formas de acesso do doente aos vários

serviços. Assim sendo, muda o caráter da dependência do paciente relativamente ao

médico, pois o paciente agora pode, por si só, sugerir ou encontrar as soluções

concretas do encaminhamento da conduta formulada pelo médico. A forma de

utilização dos serviços de pronto-socorro, por exemplo, quando contrastada à medicina

“dos chamados” mostra bem a autonomia que o paciente adquire, de um lado, e, de

outro, a necessária adaptação do médico a essa interrupção de seu controle.

Ou então, como relata doutor Luís, sobre o consumo de medicamentos:

Agora, alguns remédios... foram ótimos, importantes. Chegavam

a mudar completamente a terapêutica, né? Algumas doenças deixaram de

Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,

1993. 229 páginas.

O cotidiano profissional - 113 -

ser problema sério. Igual a gonorréia, né? Acabou... praticamente acabou a Urologia

até começar aqueles doentes de cirurgia de rim de novo, né?, porque... noventa por

cento das uretites gonocócicas iam pra estenose e, então o sujeito ficava tratando

daquela uretite o resto da vida com dilatação de uretra, com não sei o quê, lavagem...

Apareceu a penicilina, acabou, né? Ou seja, nem vai no médico. Ele já vai direto na

farmácia e compra... nem pergunta pro farmacêutico!

A medicina do servir, do assistir, do aconselhar ou orientar o paciente parece,

pois, ter cedido definitivamente seu lugar a uma medicina em que tratar, medicar, curar

ou recuperar, sob qualquer base de intervenção, isto é, seja ela associada ou não a uma

assistência “global” destinada ao doente, são os novos referenciais de valor. E com tais

paradigmas parece não haver mais espaço na prática para que o cuidado relativo aos

sentimentos pessoais – da alegria ao sofrimento – siga pertencendo à totalidade do

assistir.

A prática que se está construindo parece implicar a presença de outro tipo de

interesses e envolvimentos pessoais, de ambos os lados.

b) conservando o essencial

A maior utilização dos recursos diagnósticos, a utilização dos medicamentos

industrializados, a hospitalização, a utilização dos especialistas ou outros serviços

médicos e os demais procedimentos adotados para atualização da prática profissional

relativamente à medicina tecnológica, são todos eles, então, uma readaptação do ato

técnico, obrigando a uma redefinição dos referenciais do plano mais pessoal. Mas uma

redefinição que a incorporação de tecnologia será sempre perpassada pelas decisões e

procedimentos que buscam preservar aqueles espaços nos quais a base mais pessoal

pode ser ainda mantida.

Se, por exemplo, a presença de novos equipamentos diagnósticos é ampliada

por referência à prática anterior, tanto essa presença deve manter-se dentro dos limites,

evitando os “exageros”, quando deve manter a característica de apresentar-se como

sento ainda disciplinada pela anamnese e pelo exame físico. Importará, por

conseqüência, a preservação do espaço da anamneses, pois esta aparece como o

símbolo da personalização da prática. O sinal que basicamente a identifica – o tempo

de conversa na consulta ou o próprio tempo de consulta – logo aparece, portanto,

como o “ponto de honra” da busca em se preservar uma autonomia de prática no

exercício profissional.

Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,

1993. 229 páginas.

O cotidiano profissional - 114 -

E tem outra, hoje ninguém mais tem tempo. Por exemplo, a consulta desde o

meu início de prática, sempre foi uma consulta, assim, muito demorada. No doente

novo, nunca menos de uma hora. A primeira vez que... que eu entro em contato com

ele, nunca menos de uma hora. O paciente que eu já... mais antigo, aí a coisa é mais

simples porque eu já tenho uma visão boa do indivíduo e, além disso, eu me considero

privilegiado porque eu tenho uma memória muito boa – ainda tenho! – então eu

conheço todos os doentes.

(doutor Carlos)

A duração da consulta é muito importante. É muito importante porque,

desde o início, eu nunca fiz questão de tempo. Como eu já disse, eu fui sempre muito

afetivo, muito... Eu nunca me preocupei com o tempo. E minhas consultas, desde as

primeiras, sempre foram consultas completas. Se um cliente queixava da parte

ginecológica, eu fazia em “check-up” geral. Não uma coisa profunda, mais fazia um

“check-up” geral, me aprofundando mais na queixa. Eu tenho notícias de que o

doente se queixa, hoje em dia, de um sintoma e o colega só verifica essa parte, pronto,

vai embora. Eu não! Eu fazia “check-up”: tirava a pressão, olhava a garganta,

ouvido, tudo! Eu fazia um “check-up” geral, me aprofundando mais na queixa do

doente. E não tinha isto do tempo” Isto era dez, quinze, meia hora, quarenta minutos.

O tempo, pra mim, não era importante. Eu tenho a impressão que com isso eu mesmo

criava mais, ficava mais a par da queixa do doente, do passado, me orientava melhor.

Mantendo essa estrutura até hoje!

(doutor Fábio)

Eu ainda acho que, se examinar com calma, se tirar uma história um pouco

sossegado... Não precisa ser consulta de uma hora! Você dirigindo bem dez, quinze

minutos, depois que dá pra fazer bem o exame e tendo certeza que o cliente volta...

(doutor Luís)

É importante observar que o tempo de consulta é mais do que mero aspecto

da consulta, pois ele e a conversa simbolizam não apenas a essência de uma liberdade

de ação da prática liberal, mas a própria essência de sua possibilidade técnica, em que

se articulam a atenção, a observação paciente do caso e o instrumento maior que é a

anamnese, no período em que o saber foi o principal meio de trabalho. A ausência de

recursos materiais que prolongassem os sentidos humanos e pudessem poupar a

Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,

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O cotidiano profissional - 115 -

história e o exame clínico, diminuindo a conversa e o tempo de consulta, obrigou a

uma ampliada anamnese. Na ausência do raio X, uma pneumonia é a tosse com o

catarro cor de ferrugem quando se tem febre, e que dói a dor que “tem” posição, o que

pode diferenciar da dor enjoada e “sem” posição da cólica renal. Por isso cada sintoma

relatado ou sinal observado é preciso circunstanciar, qualificar e explorar. A medicina

tecnológica ao mesmo tempo que prolonga o “tempo tecnológico”, como por exemplo

o do ato cirúrgico, encurta o tempo desarmado: tempo mais simples tecnologicamente,

mais barato e mais pessoal; tempo da conversa e da consulta, que restrito, permite

maior produtividade do médico.

Por outro lado, para o paciente a conversa simboliza a possibilidade de uma

participação que, se na prática liberal restringe-se ao relato, na medicina tecnológica

poderá abranger um envolvimento com a própria formulação da conduta, já que o

doente por meio da tecnologia também pode objetivamente ter acesso aos dados dos

exames. Esse envolvimento seria agora possível, não fosse o fato de que exatamente

pela presença da tecnologia material objetivadora, a conversa termina por se encurtar.

O tempo dedicado ao doente na consulta e sobretudo o tempo da conversa são,

portanto, as características que esses médicos buscam preservar, representando, por seu

intermédio, a permanência da “essência” do caráter liberal de suas práticas.

De mesma forma salientam os médicos o fato de que a tecnologia deve,

mesmo que presente rotineiramente, encontrar no raciocínio proveniente da anamnese

e do exame físico, bem como encontrar no saber clínico operante que pessoalmente

desenvolve o médico, suas justificativas. Assim, o limite ao “exagero”, ao possível

abuso que vêem na medicina tecnológica, parece reger-se pelos mesmos princípios

que marcaram suas atuações iniciais: o mesmo raciocínio e ainda, até certo ponto, a

mesma experiência clínica pessoal, é o que deve nortear o momento, a forma e a

intensidade do uso da tecnologia:

É verdade que a medicina hoje é sofisticada! As ultra-sonografias, as

tomografias, as ressonâncias magnéticas, a ecografia... Mas tudo isso tem que ser

complemento, não primeiro passo. Eu mantendo a minha forma de clínica

como sempre fiz. Quando eu vejo um paciente, faço acompanhamento pré-natal,

muitas vezes ela diz: “Como é? O senhor não vai fazer ultra-sonografia?” Eu digo:

“Não. No momento, não. Só vou fazer quando o caso é necessário.” E tem

muitos colegas que pedem cinco ou dez ultra-sonografias durante a gestação.

Eu acho importante quando você, clinicamente, sente que a gravidez não está

Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,

1993. 229 páginas.

O cotidiano profissional - 116 -

evoluindo normalmente, que o útero não está crescendo de acordo com a evolução

normal, ou está havendo algum outro problema. Os exames que eu mais peço são os

pré-operatórios: hemograma, coagulograma, urina, fezes... Quando é o caso, peço

também dosagens hormonais. Mas não sou de pedir muito exame, não. É verdade que

exame de laboratório, pedindo amplamente, impressiona bem o paciente. Mas às

vezes se gasta mais dinheiro com exames do que seria necessário. Ainda me preocupo

com a parte econômica do paciente... Com a evolução da medicina, nós usamos

alguns recursos sofisticados. Temos a ultra-sonografia, por exemplo. Quando é

necessário não há dúvidas que pedimos, mas procuramos evitar o excesso, e também

encaminhar para serviços que não onerem muito o paciente. Na Previdência, às

vezes, recebe pacientes encaminhadas de colegas da especialidade, jovens

naturalmente, com pedidos de exames que eu, muitas vezes, só com o exame clínico

resolvo. Muitas vezes eu não peço exames se eles não tem razão de ser, mesmo para a

Previdência, oneram inutilmente a Previdência. Às vezes um fibroma... então pediram

uma tomografia... quer dizer, é tão oneroso que eu acho que não tem razão de ser. Às

vezes dosagens hormonais de alta sofisticação sem maior indicação. Acho que é uma

questão de foro íntimo. O instrumento mais valioso para o diagnóstico é a anamnese,

aquela conversa em que você gasta mais uns dois, três minutos com o paciente, que às

vezes penetra um pouquinho mais na intimidade... e, naturalmente, certos exames

complementares, quando bem indicados, um exame mais aprofundado.

(doutor Maurício)

Nessa mesma direção, como aponta doutor Maurício, o tecnológico de sua

prática não substitui a característica permanente do aconselhamento:

Uma marca da minha clínica de consultório, ao longo desses anos é o

aconselhamento, três, cinco minutos de conversa já são muito importantes. Eu tenho

tido diversos casos que mostram isso. A paciente diz: “Olha, doutor, eu já fiz vários

exames, mas às vezes nem me examinavam e já me davam a receita. O senhor foi o

único que conversou comigo e me ensinou uma porção de coisas”.

Da mesma forma com o que ocorre na incorporação dos recursos

diagnósticos, o uso de instrumentos terapêuticos mais atualizados também

deve reger-se pela cautela e pela parcimônia. Deve-se considerar, dentro

de novos limites, as possibilidades efetivas da realização pelo paciente da

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O cotidiano profissional - 117 -

terapêutica proposta, por referência aos custos envolvidos ou a dificuldades de outras

ordens. Manter-se dentro desses princípios de uso do instrumento terapêutico aparece

também como procedimento da preservação das dimensões mais pessoais de atuação

da prática profissional.

Eu costumo dizer pro cliente que não se afobe com remédio porque remédio

só fez bem pro dono do laboratório. Pra eles sempre fez bem! Pro paciente, às vezes

ajuda. Por isso é importante sentir o paciente. Isto sempre foi feito!

(doutor Carlos)

Eu procurava não fazer uma farmácia, dar uma receita muito grande, não

é? Ficava mais ligado ao exame com o doente para ver se conseguia dar menos

remédio possível, menos produtos possível. Eu não gostava de dar muito, quatro,

cinco, seis produtos numa receita só. Quer dizer, fazer um cerco, vamos dizer assim,

como existe e acontece, né?

(doutor Fábio)

A formulação de uma terapêutica ainda, em parte, personaliza, aparece

também como a mesma tentativa de preservar as bases mais pessoais da ação. Assim,

doutor Carlos, por exemplo, faz questão de frisar seu uso de fórmulas sempre

individualizadas de certas medidas terapêuticas como as de dietética, em combinação

com os fármacos industrializados.

O doutor Nélson, por sua vez, ainda guarda consigo as orientações do

formulário clínico e quando julga necessário não hesita em fazer uso prioritário desse

procedimento:

Eu, frequentemente, eu reviso. Então, um hiperglicêmico, um diabético e, às

vezes, um obeso – que é muito freqüente também eu atender – e que está

correlacionado com algum fator cardiovascular, eu... insisto pra que ele... que ele

faça... um determinado regime. E eu vou... vou fazer o regime personificado pra ele.

Eu digo: “Olha, não é um... um impresso simplesmente, não; que a gente podia tirar

um xerox e te entregar. Eu estou montando um regime de acordo com as

suas características. O senhor vai perder peso... vai voltar aqui daqui quinze

dias pra pesar. Isso aí não é consulta nova. O senhor vem aqui simplesmente,

entra num determinado horário, pesa, a gente verifica, conversa...” E

assim por diante. Eu sempre gostei muito de nutrição. E... e tenho... tudo o

que sai publicado, tudo o que eu encontro, eu guardo. E teve...

Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,

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O cotidiano profissional - 118 -

até em... em revista feminina. Tudo isso eu anoto, vejo, curiosidades... Tenho vários

tratados, alguns já não tão recentes, mas coisas muito interessantes. Então eu monto o

esquema pra pessoa.

(doutor Carlos)

Mas eu estava falando que gostava mais de formular, que era mais

interessante. Era mais interessante porque formulando – quando a farmácia era

direita – eu tinha certeza que aquela dose.... o sujeito ia tomar aquela dose. Ao passo

que o remédio pronto, às vezes o laboratório não... não coloca a quantia certa. A não

ser grandes laboratórios honestos, certo? Mas também existe m.. Eu vou contar outra

história. Eu recitava muito produto de um laboratório suíço. Era umas gotinhas pra...

Codeínado, pra tosse, tudo. Numa ocasião fui ver um velhinho, e vi tudo aquilo lá, tal,

o velhinho tinha medo de injeção, eu receitei tudo por boca, inclusive este produto

deste laboratório suíço. E o velhinho... foi embora. Eu recebi e ele foi embora.

Passaram uns três dias e o filho dele me chamou outra vez. “A tosse de papai não

passa, uns acessos muito fortes”. Bom, voltei lá, olhei outra vez, percuti, auscultei.

“Tem que continuar isso aqui. Não posso modificar esse remédio codeinado.

Continua dando isso e mais aqueles outros que estão lá.” Mas continuava se

queixando de acessos fortes. Então precisava dar um negócio pro acesso. Foi embora

outra vez. Me chamou, depois, a terceira vez. Ah!, então eu perdi a paciência!

Formulei! Diolina – lembro como se fosse hoje – água de louro – cereja. “Manda

fazer no Veado d´Ouro, na cidade, lá na São Bento.” Foi fazer essa poção, esse

remedinho, gotinha, começou a tomar diolina, passou os acessos.

(doutor Nélson)

A preservação do interesse e da dedicação por referência ao passado, ou a

extensão de um mesmo comportamento pessoal a quaisquer tipos de clientela são

alternativas também apontadas em direção da manutenção dos procedimentos

“nobres” da profissão:

Quer dizer, lá no meu consultório, eu trabalho com os clientes com o mesmo

interesse, a mesma dedicação. Seja ele um modesto funcionário do Banco do Brasil

ou da Sul da América – que de vez em quando me aparece um ali – ou um ... da

CETESB, por exemplo, que... que de vez... ou da COMGÁS, por exemplo, o chefe

médico era o meu companheiro, me inscreveu lá. Então, de vez em quando, vem assim

Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,

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uma meia dúzia de casos por ano. A mesma coisa, o mesmo interesse que eu tenho

por eles, o mesmo horário... Não tem discriminação nenhuma. Ele é atendido, eu

marco horário, ele é atendido no mesmo horário, se tiver uma consulta particular vai

ser atendido no horário seguinte... Não tem problema nenhum! Ele não é abandonado

simplesmente porque passou uma particular e... então ele é substituído pelo... Não! De

jeito nenhum! Ele é atendido dentro da cronologia das possibilidades. Se tiver que

ficar duas horas com ele, fico duas horas.

(doutor Carlos)

Quando a perda da forma tradicional de captar a clientela é inevitável,

também na opção pelo credenciamento ou convênios adotados para o consultório

busca-se privilegiar mecanismos mais próximos ao tradicional para a vinculação da

clientela. Como diz doutor Carlos, mesmo que o contrato entre o médico e o paciente

não se paute mais pela relação interpessoal por referência à remuneração do médico ou

ao conjunto de procedimentos possíveis, os convênios que permitem a “livre-escolha”

são os únicos que podem interessá-lo:

Alguns pacientes meus são de credenciamento. Hoje ninguém pode

sobreviver se não tiver. A não ser raros indivíduos na clínica particular. Eu tinha uns

clientes, que moravam perto da minha casa, e que eram funcionários do Banco do

Brasil, que eu os atendia. Então, um dia, um deles chegou pra mim e me disse: “Olha,

o Banco do Brasil vai abrir o credenciamento e se não houver nenhum... nenhuma

contra-indicação eu vou colocar o seu nome lá como credenciamento.” Falei: “Ah,

pra mim, tanto faz!” Então ele me colocou. E eles mesmos começaram a divulgar o

meu nome lá dentro: “Vai, tal, é um clínico, tal... E eu comecei a formar uma clínica.

Então, isto começou em 1970 ou 71. Foi o primeiro credenciamento. Depois, um ou

outro, e tal... E o da Sul América, que eu me... que não era Sul América na época, era

uma... uma outra entidade, não me recordo exatamente o nome. Eu entrei porque eu

queria ver como é que funcionava um serviço de livre escolha, assim de caráter... de

caráter... de credenciamento, né? mas com livre escolha.

A incorporação da tecnologia, portanto, residiu em um comportamento

no qual se combinaram a ousadia e a cautela. De um lado, a cautela diante

do novo, mostrando a decisão de se tentar manter a prática profissional

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dentro de parâmetros de ação e de efeitos já conhecidos, além do quê, sob controle do

médico. De outro lado, a ousadia do desconhecido e o entusiasmo pelo novo

mostrando a decisão de se buscar inovar a prática profissional, colocando-a nos marcos

da atualização diagnóstica e terapêutica. Alguns depoimentos mostram o duplo

referencial na incorporação tecnológica com muita clareza:

Agora, eu devo confessar que.. que sou... muito tradicionalista em termos de

medicação. Por exemplo, eu nunca uso o último antibiótico que entra no mercado.

Nunca! Só depois de algum tempo da existência dele ou, então, quando há uma

indicação precisa, muito específica... Mas, de maneira geral, eu, por exemplo, sou, até

certo ponto, um tradicionalista, um indivíduo cauteloso. O meu comportamento

terapêutico é muito limitado. Eu não uso muito medicamento assim livremente.

(doutor Antônio)

Quando aparecia assim uma novidade, sempre não fosse raio X, eu não me

incomodava de ver. Uma vez que o custo, também, para o doente não

sobrecarregasse. Naturalmente ela ia ter restrições de uma medicação porque tem

que fazer um exame que podia ser dispensado. Fazer os exames sempre que

necessário, né? E, sem dúvida nenhuma esses exames são progresso e tiram muita

morbidade e mortalidade do feto e materno mesmo. Porque não tem mais... tem umas

deformações, essas coisas, que são previstas, vistas com antecedência, não? A

penicilina é um antibiótico que sempre se usou sem medo. E a restrição dele foi em

virtude dos choques. Porque a penicilina foi a grande medicação, né?, que não tinha

conseqüências para o feto, e tal. Mas, depois, os outros antibióticos são.. dão

coloração nos dentes, dão depósito de cálcio nos ossos, essas coisas. De maneira que

a gente era parcimonioso. E ainda a hidroestreptomicina que se usou no início,

quando entrou esse antibiótico, que também foi deixada de lado porque era mais

alergizante do que a própria penicilina. Quer dizer, eu também tive muito cuidado no

uso desses outros antibióticos. Porque quando entraram os antibióticos,

sistematicamente – por assim dizer – dá à luz, toma antibiótico! Era a garantia! Era o

pavor! Porque só quem viu, como nós vimos mulheres jovens no primeiro filho

morrerem de infecção puerperal, é que ficava apavorado num negócio desse. E a

gente sabia das novidades, das mudanças, porque a gente vai em

congressos está sempre atualizado, vai sempre em congresso lá no estran-

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O cotidiano profissional - 121 -

geiro ou aqui mesmo, pela leitura... De maneira que a gente está sempre na ordem do

ia, né?

(doutora Emília)

Permeadas pela simultaneidade desses procedimentos polares na atualização

do exercício profissional, as práticas são reconstruídas. Assim, a conversa, a dedicação,

a disponibilidade, a anamnese ou o exame clínico, articulados agora com novos

elementos de consulta, e fora dela, já não se podem dispor do mesmo modo que se

colocavam na ausência relativa da tecnologia material: a atenção, a conversa, ou

qualquer outro elemento de caráter mais pessoal e subjetivo, refazem seu espaço e seu

momento e consideram outras formas de obter dados ou informações dos quais não se

podem abstrair enquanto constituintes de sua própria dimensão particular. Além disso,

a prática profissional trata agora de novas realidades clínicas, realidades que a própria

tecnologia material faz aparecer, alterando radicalmente o tempo, a forma e o espaço

das manifestações do sofrimento do doente.

Contudo, essa prática profissional reconstruída, ao mesmo tempo em que se

insere na medicina tecnológica, permite a seu agente, exatamente pela coexistência dos

procedimentos polares relativamente à incorporação do novo, concebê-la como tendo

preservado “em essência” a mesma qualidade do exercício autônomo anterior. A

prática médica muda, mas a clínica e o seu objeto de prática parecem permanecer:

Algumas coisas ficaram muito mais fáceis de fazer diagnóstico, né? Tipo

prenhez ectópica, por exemplo, diagnóstico ginecológico perdeu a graça hoje... Você

tinha que usar mão e cabeça. Hoje se usa uma maquininha que você passa na barriga

do doente pra gente fazer o diagnóstico, né? Algumas coisas mudaram muito!

Esse é um exemplo dentro da minha área. Recursos terapêuticos, tenho a impressão

que na área que eu estou o que mudou muito foi a anestesia. Você passa a ter

uma anestesia... você faz uma cirurgia mais sossegado! Eu cheguei a pegar um

pouco de cirurgia ainda feita ou com anestesia local – que você não tinha

confiança nas outras anestesias – ou com máscara aberta, né? Você nem sabe o que

é, hoje. Você tem uma... ocultando o nariz... é tipo... anestesia de seqüestro, né? um

algodão praticamente no nariz do camarada com... e ficar gotejando éter ou

cloreto de etila ou as misturas dos dois, ou umas misturas já prefabri-

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O cotidiano profissional - 122 -

cadas... Então você sabe como é que era. Anestesia era melhor você fazer com

anestesia local, né? Isso mudou também! Brutalmente! O grande progresso da

cirurgia acho que se deve muito mais à anestesia em si do que à técnica cirúrgica

mesmo. Tirando a cirurgia cardíaca – que também se faz porque você tem recursos

para deixar o sujeito vivo enquanto você corta e costura o coração. O “corta e

costura” não mudou muito. Mudou o resto. Também a patologia, eu acho que não

mudou muito. Tenho a impressão que não. A cirurgia ginecológica, as mesmas coisas

de agora, né? Fibromas, cistos de ovário... Você tem umas coisas que ficam moda e,

depois, saem de moda.

(doutor Luís)

Eu tenho uma rotina que sigo há muitos anos. Por exemplo meus

procedimentos clínicos são os mesmos de há... há... 40 anos atrás. Talvez um ou outro

sinal... Porque não há... não houve mudança nenhuma. Em termos de laboratório,

sim; porque os laboratórios foram criando novas... Por exemplo, até há uns trinta ou

quarenta anos atrás nós não fazíamos determinação de “T-3”, “T-4”, “TSH”, tudo

isso, para insuficiência tiroideana ou de... de pituitária, né? Não fazíamos. Agora a

gente faz quando há suspeita de hipotireoidismo ou hipertireoidismo. Mas, em termos

de laboratório, existem exames... hã... mais modernos que foram sendo introduzidos. É

o caso, por exemplo, da tomografia computadorizada que nós não usávamos antes; é

o caso da ecografia, que também nós antes não usávamos, e assim por diante. Quer

dizer, em termos de laboratório, existem algumas coisas, algumas conquistas que

foram incorporadas, né? Mas em termos clínicos, não! A medicina do consultório é

mais clínica. Depende muito mais do exame e da anamnese. Veja bem, por exemplo, o

exame clínico,em tudo ele é importante, desde a postura do paciente, a medida da

pressão arterial, até o exame do olho, até o exame de tudo. A inspecção do paciente é

importante. Então, o exame todo – todos eles são iguais. Agora, a anamnese está

muito relacionada com uma doença, né? Por exemplo, vamos supor, chega uma

criança aqui com... por exemplo, com um pouquinho de febre, um pouquinho pálida, a

mãe diz que está urinando escuro... Então isso começa a levar a gente para um

caminho de uma possível hepatite. Então aí você vai fazer as perguntas que podem

levar a esse resultado. Perguntar se as fezes delas são coradas, se ela teve contato

Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,

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O cotidiano profissional - 123 -

com alguma criança com hepatite – isso noventa dias – e assim por diante. Quer

dizer, está muito relacionado ao tipo de patologia, né? Mas também na anamnese não

existem procedimentos especiais! São todos iguais! A anamnese você vai perguntar

para a mãe, você vai fazer todas as perguntas. Então... tudo é importante. Se você não

souber a idade, a procedência, tudo isso é importante, né? E isso é assim há... um

século, não mudou nada.

(doutor Antônio)

Mudar sem mudar essencialmente, constituir um movimento de

transformação mas buscando fixar padrões de atuação e fixar identidades: assim é

pretendida a atualização dessa prática profissional por seus agentes. Seu princípio

transformador parece reger-se pela busca de re-produzir o mais próximo possível a

identidade inicial de suas vidas profissionais. Esses médicos, no entanto, por meio do

conjunto de procedimentos acima examinados de fato refazem suas “liberdades”,

reorientando seu exercício. Todavia, o que percebem da mudança, o que entendem

eles do movimento particular que promovem e da história da medicina que, por meio

desse movimento, são eles também criadores, é a reconstrução de suas “liberdades”

pessoais de atuação como um movimento de continuidade, em razão do caráter

“liberal” de seus trabalhos de consultório privado que segundo suas avaliações teriam

conseguido manter.

Não obstante, seguem também percebendo de modo bastante claro que no

conjunto da prática médica eles constituem apenas um segmento, e de peso muito

relativo. Por isso é que, considerando a própria identidade profissional que buscam

preservar, esta forma de participar do conjunto da prática, e então constituir com todos

os demais a totalidade da medicina, lhes parecerá não uma inserção mas um

deslocamento, uma situação até “estranha” à medicina contemporânea. Será dessa

percepção e deste modo particular com que tomam o histórico que trataremos a seguir.

SINAL DOS TEMPOS

“Curiosa é a expressão meu tempo usada pelos que recordam. Qual é o meu

tempo, se ainda estou vivo e não tomei emprestada minha época a ninguém, pois ela

me pertence tanto quanto a outros meus coetâneos?”11

. De mesmo modo, poderíamos

também em nosso estudo indagar sobre o sentido dessa expressão “meu tempo”,

“minha época” que aparece nas narrativas.

Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,

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O cotidiano profissional - 124 -

Aprender o tempo e identificar-se com esse tempo requer, antes de tudo, que

se marque seus limites. Para o doutor Nélson: todo tempo oi um tempo! E para todos

os entrevistados há o “naquele tempo”, em que nada ou quase nada é como hoje, “esse

tempo”. Os limites que circunscrevem cada um dos tempos não são, para cada pessoa,

necessariamente precisos ou exatamente iguais, mas há ao longo de suas experiências

pessoais de vida os marcos que a ordem social, através de seu tempo, articula aos

vividos singulares. Assim, se individualizam certos momentos vividos como um

tempo: o tempo do chapéu ou o tempo do automóvel; o tempo da “medicina do

chamado” e o tempo do pronto-socorro; o tempo antes e depois da penicilina.

No movimento do social, que continuamente fornece e fornecerá o novo,

forma-se, de um lado, a percepção clara de movimento, processo irreversível. Ao

mesmo tempo há, de outro lado, uma percepção que corta e estanca o movimento,

uma percepção estática, da estrutura, que fixa momentos de vida. Trata-se de uma

percepção que identifica determinados conteúdos por meio do repetitivo, do

acontecimento cíclico que reitera a experiência, cristalizando e individualizando

identidades de vividos12

. O tempo é, portanto, algo concreto e social cujo conteúdo se

dá através da vida socialmente experimentada. O que marca o centro desse conteúdo

ou como se dá a percepção das passagens de um a outro conteúdo ao longo do tempo

que flui, ou ainda como se singularizam “tempos” no vivido, são criações sociais

correlatas ao modo de se estruturar a vida em sociedade. Uma estruturação que

permitirá e definirá afinal, uma e não outra concepção do objeto de trabalho e

consequentemente da modalidade de intervenção médica; ou então, uma e não outra

identidade da profissão e do que significa ser médico:

No meu tempo não se tinha essa visão tão material, assim, do corpo, da

intervenção, quer dizer, de abrir, de mexer... Hoje por exemplo, o cidadão abre uma

barriga. Um tumor “tomado”. Eu já vi, né? Abria e, no final, a gente fechava. E

deixava o cidadão viver sem saber. Hoje não! O cidadão vai, tira tudo, leva um tumor

bonito pra casa. De maneira que se pensava muito nisso, sabe? Se pensava muito

nisso. De maneira que essas coisas todas modificaram muito as condutas médicas e o

coração do médico mesmo, o indivíduo médico.

(doutora Emília)

Era uma medicina, vamos dizer assim, profissionalizante,

particularizada; quer dizer, não a medicina empregatícia. O médico não tem

Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,

1993. 229 páginas.

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chefe, não tem patrão, ele é o seu próprio patrão! Não havia empregos para médicos!

Os empregos surgiram depois, com a hipertrofia terrível do INAMPS! (...) Então, eu

não vejo nenhuma possibilidade de voltar ao passado mas, se houvesse essa

possibilidade, eu acho que o paciente ganharia muito. Eu sou desse tempo!

(doutor Antônio)

Porque recém-formado, a gente tinha receio... o curso médico, hoje, está

muito diferente do que foi na minha época (...) Hoje, o aluno de segundo ano, a gente

encontra dando plantão por aí. Então o Fulano, já dá palpite... Quer dizer, nós

nunca... tivemos coragem de fazer uma coisa dessas! Nunca! Nunca! Também a

clínica no meu tempo era muito diferente. Não precisava de tanta coisa, nem se pedia

tantos exames, como eu nem peço até hoje.

(doutor Carlos)

Na sociedade capitalista moderna o trabalho é reconhecido como referência

para a notação do tempo, e por isso mesmo, como já examinamos, é capaz de separar e

individualizar no cotidiano vários tempos: a vida passa a ser concebida como

composta do tempo de trabalho e de tempos que são o seu outro.

Também por isso o trabalho individualiza na vida de cada pessoa o que está

antes ou depois, dentro ou fora da vida de trabalho, passando cada um dos conteúdos

singularizados a ser reconhecido como distintas identidades de vividos, “tempos”

diversos. A passagem, por exemplo, da identidade social de “dependente” para

cidadão “produtivo eficaz” tem um forte sentido na sociedade contemporânea, e

sinaliza para todas as pessoas uma ruptura, no tempo da vida, que marca

profundamente. No presente caso essa passagem corresponde ao início da vida

profissional do médico, corresponde aos momentos em que essas pessoas concebem e

executam seu projeto particular: o de serem médicos.

No planto formal, o momento da formatura escolar na faculdade materializa

esse trânsito para a nova identidade. Contudo, não será somente a partir daí que se

constrói o significado desta outra situação social, a de ser médico. E porque em sua

identificação reside a notação de um tempo, para conhecê-lo e apreender seu sentido,

não poderíamos marcá-lo de modo assim tão pontual. Por isso dissemos que, dentro

dos referenciais do tempo histórico, o tempo cronológico que corresponde a esse

período da vida não tem limites precisos ou iguais para todas as pessoas, mas

tem para todas elas a mesma identidade: o tempo em que são médicos. Tam-

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bém por isso incluímos como fazendo parte do “ser médico” as experiências

correspondentes à própria escolha da profissão e à formação escolar, já que estas são

constituintes da passagem para a identidade de trabalhador. Movimentos, portanto, do

mesmo empreendimento.

É preciso considerar, ainda, que exercer a medicina é desenvolver uma

prática que se transforma continuamente. É claro que cada indivíduo exercerá a

profissão por tempo variável, ao longo do qual poderá assumir – como o faz, de fato –

várias identidades de profissão.

Trata-se, como vimos, de uma variabilidade decorrente da criação e re-

constituição das características dessa prática no transcurso da sua própria história.

Assim sendo, mesmo que possamos individualizar momentos na dinâmica de

transformação dada, aquele indivíduo continua sendo, em todos os momentos, médico,

exercendo a profissão.

No entanto, na passagem para a constituição do que se apresenta como algo

radicalmente novo e desconhecido, isto é, o ser da profissão, é o empreendimento

primeiro e sua correlata identidade que parecem cristalizar as concepções e as noções

que a partir dali, deste momento inicial, servirão de referência como algo então

conhecido, mesmo que esse empreendimento inicial vá se realizar, de fato, apenas

dentro de certos limites e tão-somente de certo modo. Vale dizer que, fazendo-se

médico, as transformações que se sucedem passam a ser contrastadas e comparadas a

uma particular identidade: a identidade que se forma nos momentos iniciais em que o

indivíduo constitui a situação do “ser médico”.

De um lado, é a noção contemporânea de que a “vida passa”, ou seja, que o

tempo flui de modo progressivo – “que não se repete, algo como um rio”13

– o que faz

das primeiras experiências uma figura mítica, um símbolo que cristaliza o ideal. De

outro lado, a própria concepção do caráter universal da medicina, tal como é a noção

dominante acerca dessa prática, faz com que o ideal estatuído assuma a qualidade de

ideal ontológico atemporal. Será por isso também que a concepção referida à

universalidade, de movimento do real como transformação em continuidade e

evolução, engendra a imagem de que apenas os momentos iniciais sejam algo

“original”, sem passado, sem raízes históricas e primeiro. Algo a que tudo o mais

sucederia, aprimorando-o em certo sentido, mas também fazendo-o perder qualidade,

ao desestruturar e substituir aquilo que em sua criação mostrou-se, do ponto de vista

daquele indivíduo e de seu específico coletivo-social, vantajoso e adequado

socialmente. A ambivalência demonstrada, por exemplo, diante das inovações e das

mudanças é significativa neste sentido.

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A expressão naquele tempo corresponde, pois àquele algo e seu momento, o

“primeiro”, o do “início”. Também é o momento no qual cada um se dedica

plenamente ao empreendimento, apropriando-se desse tempo, que assa a ser “seu”. É

meu tempo porque é também o tempo da plena esperança, da coragem total no

empreendimento. Força que cada indivíduo retira do entendimento dessa situação,

porque o início é a situação em que ele se reconhece sujeito pleno. Ali é senhor da

história, até porque este é exatamente o momento no qual se dá a constituição do

domínio de um saber-fazer que permitirá ao médico o exercício pleno da

subjetividade.

É o momento em que, com toda força, se apresenta sua utopia, seu ideal: o

projeto que concebe e acredita poder realizar totalmente14

, mas que o transcurso da

história terminará por re-situar, no plano da materialidade da prática e no plano do

próprio ideal. Por isso, o tempo restante por referência ao do início da profissão, tempo

que progressivamente evidenciará e fará com que ele, até certo ponto, reconheça o

determinismo social relativo que conforma seu desempenho pessoal, passa a significar

uma espécie de oposição ao tempo que é “seu”. Constitui um tempo no qual ele não

mais se reconhece, não lhe pertencendo porque não mais pertence a ele. Não é mais o

“meu tempo”, porque agora as concepções e os empreendimentos está já re-feitos,

tensionando a utopia e fragilizando a esperança.

Eu não sei, exatamente porque eu digo assim, no meu tempo... Acho que

quando eu falo, eu me reporto ao tempo em que eu entrei na faculdade. Aquilo foi

para mim, uma grande mudança porque – sei lá! – a gente era muito ingênuo, muito

ingênuo! E quando eu entrei na faculdade mudou muito... Abriu a cortina e eu pude

ver as coisas de um outro jeito, ter outros horizontes... sei lá... é como se tivessem

descoberto, levantado o pano... sobre o mundo. Quando termina eu não sei, eu ainda

estou aqui, né? Não sei... mas acho que quando falo é dos médicos daquela época...

eram diferentes... Tudo era diferente.... Diferentes no trajar... na postura... os

professores... Esses eram inatingíveis, você vê como eram os anfiteatros?

Eles perderam aquela aura, eram cultos, musicistas, filósofos, sabiam muito...

Hoje, não! Se rebaixaram, o que é que eles estudam hoje? Isso aí, que

todo mundo sabe... Mas acho que é tudo assim, está tudo diferente... Não

há dúvidas! Hoje sabe-se muito mais... Ah, não sei... não sei... Sabe,

quando a gente é moço, acha que a medicina vai fazer

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tudo, que a gente vai salvar, vai ajudar, vai... A gente é muito ingênuo... Você vê, até

ontem eu assisti um programa na televisão em que o sujeito se disse materialista! Que

nada! Espera só ter uma dor de barriga... Eu não sei... Eu acredito em Deus, eu não

sou essas coisas... materialista... Mas eu não consigo me conformar com a morte, com

o sofrimento do paciente até a morte. Você vê, eu tive um caso de um paciente que

ficou anos e anos na cama só mexendo os olhinhos... Isso aí não pode, eu não aceito.

Você vê, a medicina aí não faz nada, não consegue nada com o canceroso, com a

arteriosclerose... Agora tem a AIDS... A medicina ainda é muito frágil nisso, não tem

nada pra fazer aí, está muito no início, mal conseguiu controlar as doenças

infecciosas... Está muito no começo. Ainda vai se desenvolver muito... Eu acho que ela

ainda vai conseguir atuar... Deverá ocorrer isso, as doenças degenerativas, quando a

medicina descobrir... quando sua etiologia for descoberta, a medicina deverá

melhorar muito as coisas... é... mas também não vai adiantar muito, não vai resolver

nada... Porque de alguma coisa se morre, né?...

(doutor Carlos)

Liberdade plena mas transitória; sujeitos temporariamente plenos e então

agentes temporariamente sujeitos: esta é a imagem dominante que detêm esses

profissionais de sua relação com a história. Alienados da relativização do técnico

diante do social posto sua absoluta socialidade enquanto ser, assim é que nós os

encontramos.

É preciso considerar, todavia, que não é de modo homogêneo que todas as

pessoas se apropriam dessas concepções sobre o tempo. E muito embora estas sejam

as concepções dominantes, nem todas as pessoas a elas aderem. A própria situação

concreta de vida congrega-se de dimensionar o grau de proximidade ou

distanciamento entre o momento original e os outros, ou entre os ideais que são

reconstruídos.

Além disso, há sempre aquelas pessoas para as quais os vários tempos são

também continuamente “seus”, já que se reconhecem como permanentemente

sujeitos: ao invés de tomarem certas transformações como um a história da qual

independeriam, vêem a mudança como história que se faz exatamente por suas

presenças, reconhecendo a si mesmos na contínua reconstituição do social. E através

desta noção de que são “permanentes”, reconhecem o tempo como sempre lhes

pertencendo. Porque, afinal, sendo História, são também e sempre movimento.

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1 Conforme os critérios de editoração e publicação das narrativas os nomes dos entrevistados

são fictícios, assim como evitamos identificar precisamente situações em que pudessem vir a

ser reconhecidos. Veja-se Lilia B. Schraiber – Medicina liberal e incorporação de

tecnologia..., op.cit., pp.1 a 4 do volume II. 2 Eudardo Etzel, op.cit., p. 111 e pp. 129-130 3 Eduardo Etzel, op.cit., p. 118 4 E. Etzel, op.cit., cap. III – Vida de medico: cirurgia na década de 30, pp. 113-120. 5 Idem, idem, p.127 6 Cf. Cid de A. Leme – A história da eletrocardiografia no Brasil, in Revista Paulista de

Medicina, 99 – Suplemento Cultural no. 11, São Paulo, jan.-fev. 1982; e Stans Murad Netto – Evolução e avanços em cardiologia, in J.Bras. Med. (JBM), vol.46, no. 3, 1984, pp.70-89 7 Cf. também Eduardo Etzel, op.cit., pp. 126-127 8 P. Thompson – Time, Work-Discipline and Industrial Capitalism, in Past and Present, no. 38, dez. 1967, pp. 56-97; Teresa P. do R. Caldeira – A política dos outros, op.cit., pp. 114-119, que

analisa a noção de tempo de o cotidiano entre moradores de um bairro da periferia de São

Paulo, no estudo que faz sobre o cotidiano e as representações acerca da política. 9 Eduardo Etzel, op.cit., p. 172. 10 A importância que assume a presença do Estado na assistência médica como fator

interferente evidencia-se também na temática que aparece trabalhada nos “textos de época”

(textos sobre a profissão), conforme apurado no levantamento que realizamos, no já referido

Capítulo 1. A pesquisa bibliográfica acerca das publicações de 1930 e 1955 mostra 27 das 66

publicações coletadas tratando especificamente da socialização da medicina, na forma de opiniões favoráveis ou desfavoráveis. A questão da interferência do Estado estabelece-se,

portanto, como tema de debate importante para o período, ainda mais se considerarmos que será após 1955 que o impacto dessa interferência se fará sentir mais intensamente. 11 Ecléa Bosi, op.cit., p. 342 (grifos no original). 12 Determinadas práticas na sociedade colaboram significativamente nesse sentido. São vivências socialmente dirigidas para marcar a passagem de um a outro “estágio” social e

conhecidas como os “ritos de passagem”. O modo de se marcar o tempo e as representações

sobre o tempo, com base nessas práticas sociais conceituadas como “ritos de passagem”, são

objeto de consideração em E.R. Leach – Two Essays Concerning the Symbolic Representation

of Time, in Rethinking Antropology, Londres, University of London, The Athlone Press, 1963,

pp.124-137. Veja-se também sobre as formas de notação do tempo socialmente adotadas e determinadas, Paul Thompson, Time, Work-Discipline and Industrial Capitalism..., op.cit. 13 Thereza P. do R. Caldeira – A política dos outros, op.cit., p. 117. 14 “Guardar intacta no plano da ação essa esperança, que um exame crítico mostra ser quase

sem fundamento, aí está, para Simone Weil, a própria essência da coragem.” Ecléa Bosi, op. Cit., p. 344.