192890192 rouanet sergio paulo edipo e o anjo

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  / SÉRGIO P ULO ROU NET , DIPO O NJO TINER RIOS FREUDI NOS E M W LTER BENJ MIN EDIÇOES TEMPO BRASILEIRO LTDA. Rlo de Janeiro 1981 N C: ; \ f B JBLIOl E CA C E NT R AL I I li :

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ROUANET Sergio Paulo Edipo e o Anjo

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    SRGIO PAULO ROU ANET

    ' .

    , DIPO B O ANJO ITINERARIOS FREUDIANOS

    EM

    WALTER BENJAMIN

    EDIOES TEMPO BRASILEIRO LTDA. Rlo de Janeiro

    1981

    U NI C: ;..'\ fVJ P

    BJBLIOl ECA CENTRAL

    I I

    11 li

    :

  • CIP-Brasil. Catalogao-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros1 RJ.

    Rouanet, Srgio Paulo. R764e l:dipo e o anjo: itinerrios freudianos em Walter Ben-

    81-0288

    jamin I Srgio Paulo Rouanet. - Rio de Janeiro: Edies T empo BrasUciro, 1981.

    (Biblioteca Tempo universitrio; 63) Bibliografia

    1. Benjamin, Walter , 1892-1940 - Filosofia 2. Freud, Sigmund, 1856-1939 - Influncia - Benjamin, Walter I. TI-tulo II. T tulo: Itinerrios freudianos em Walter Benjamin III . Srie

    CDD CDU

    193.019 1WB :159.9.01Freud

  • 3. DO TRAUMA A ATROFIA DA EXPERISNCIA

    I

    CHOQUE E MODERNIDADE

    No ensaio Sob1e Alguns Temas Baudelairianos, Benja-min desenvolve a teoria freudiana sobre a correlao entre memria e conscincia, na perspectiva de uma crtica da cul-

    . tura. O sistema percepo-conscinc1a , recorda Benjamin, tem como funo receber as excitaes externas, no guar-dando traos dessas energias, e se limita a filtr-las e trans-miti-las aos demais sistemas psquicos, capazes de armazenar os traos mnmicos correspondentes s percepes vindas do mundo exterior. A memria e a conscincia pertencem a sis-temas incompatveis, e uma excitao no pode, no mesmo sistema, tornar-se conscient-e e deixar traos mnmicos, o que significa que quando uma excita.o externa captada, de forma consciente, pelo sistema percepo-conscincia, ela por assim dizer .se evapora no ato mesmo da tomada de cons-cincia, sem .ser incorporada memria. 1: o que Freud, ainda segundo Benjamin, resume na frmula de que "a consctncia nasce onde acaba o trao mnmico", e na idia correlata de que os restos mnmicos se conservam de forma mais intensa precisamente quando o process que os produziu no aflorou jamais conscincia ..

    Incapaz de conservar vestgios das excitaes recebidas, o sistema percepo-conscincia exerce, no entanto, uma fun-o bsica para o aparelho psquico, que proteg-lo contra o excesso de excitaes provenientes do . mundo exterior. Esse sistema, com efeit-o , dotado de um Reizschutz, de um dis-

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  • positivo de defesa contra as excitaes, que filtra as formi-oveis energias a que est exposto o organismo, s admitindo uma frao das excitaes que bombardeiam continuamente o sistema percepo-conscincia. Ao serem interceptadas pelo Reizschutz, as excitaes demasiadamente intensas produzem um choque traumtico.

    A conscincia est pois continuamente mobilizada contra a ameaa do choque, donde Benjamin conclui que quanto maiores os riscos objetivos. de que esse choque venha a pro-duzir-se, mais alerta fica a conscincia, o que significa, aceita a tese da relao inversa entre conscincia e memria, que esta se empobrece correspondentemente, passando a arma-zenar cada vez menos traos mnmicos. 1

    Essa leitura da teoria freudiana do choque constitui a chave da crtica cultural, de Benjamin. Para ele, com efeito, o mundo moderno se caracteriza pela intensicao, levada ao paroxismo, das situaes de choque, em todos os domnios.

    Na esfera econmica, o capitalismo institucionalizou a produo em srie e o tipo de trabalho que lhe corresponde, que a cadeia de montagem. Ora, essa forma de trabalho implica a adaptao do rtmo do operrio ao rtmo da m-quina, e esse rtmo consta de momentos autrquicos, que na perspectiva do operrio individual no tm entre si qualquer relao teleolgica, com vistas elaborao1 fase por fase, do produto final, mas constituem agregados mecnicos de mo-mentos sempre iguais, sem nenhum vnculo orgnico com os momentos anteriores e posteriores, e muito menos com o conjunto do processo produtivo. O operrio tem que reagir, como um autmato, aos estmulos da mquina, que lhe im-pe uma resposta reflexa, e lhe transmite uma espcie de choque eltrico, que a cada. minuto se repete, para desen-cadear um novo movimento muscular, em tudo idntico ao anterior.

    Na esfera poltica, a forma de atuao tpica a do golpe de estado, cujo modelo o 18 Brumrio de Luiz Bana-parte e cuja contrapart ida de esquerda o putschismo, de Blanqui. O putsch uma tentativa mecnica de interven~o no processo histrico, em contraste com a revoluo, que im-. plica no amadurecimento das condies objetivas .e na mo-1 W. Benjamin. Uebet einiae Motive bei Baudelai r e. (Sobre alguns

    temas Baudelairianos), GS, vol. I-2, pg. 612 a 615. 45

  • bilizao . de tendiJ,cias tnscrtas na . prpria histria. Nesse sentido, o putsc.h pole ser assimilado ao choqtle: . uma in-vestida .ext.erna,. brusca, aparent~mente imotivada, sem rela-o orgnia com processos societrios reais, com o obj.etivo de induzir o estado de coisas desejado pelo putschista. O putsch a estratgia do choque.

    Na esfera da vida quot idiana, o choque se imps como a realidade onipresente. O indivduo est diariamente exposto aos choques da multido, na qual tem que abrir seu caminho, com gestos convulsivos, como um esgrimista, distribuindo es-tocadas, como choques, sem os quais a cidade no seria tran-sitvel. A sobrevivncia, na cidade, exige uma ateno su peraguada, a fim de afastar as ameaas mltiplas a que est sujeito o passante. A experincia do choque acaba pro-duzindo um novo tipo de percepo, voltada para o idntico, uma nova sensibilidade, um novo aparelho sensorial, por as-sim dizer, concentrado na int.erceptao do choque, em sua neutralizao, em sua elaborao, em contraste com a sen-sibilidade tradicional, que podia defender-se, pela conscincia .. contra os choques presentes, mas podia tambm, pela mem-ria, evocar as experincias sedimentadas em seu prprio pas-sado e na tradio coletiva.

    Enfim a arte e a literatura refletem, em seu campo pr-prio, essa impregnao da economia, da poltica e da vida diria pela experincia do choque. A poesia de Baudelaire, por exemplo, inteiramente estruturada por essa experincia. Formalmente, ela tem o alto grau de conscincia e de refl& xibilidade necessrio para assimilar o choque, ese caracteriza pelo carter brusco, inesperado, e no sentido forte, chocante, de suas imagens. Sua temtica a. do homem moderno no perodo de consolidao do ca.pitalismo: o indivduo em sua relao coin a mas.sa. Pois "o que so os perigos da floresta e da savana comparados com os choques dirios do mundo civilizado"? :z Recebendo choques e os devolvendo, o homem moderno caminha na multido, como um autmato, e ao mesmo tempo agudamente consciente dos perigos circun dantes.

    Mas no cinema que a esttica do choque chega ma~ turidade. Ele oferece nov sensibilidade, saturada da expe z W. Benjamin, Da$ Paris des Seeond Empire bei Baudelaire (Paris

    do Segundo Imprio, em Baudelaire), GS, vol. I-2, pg. 541.

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  • rnca do choque, uma nova .forma de arte, cuja essncia a sucesso brusca .. e .rpida de . imagens,. que se impem. ao. espectador como uma seqncia de choques. "A percepo_

    b~~da no ~hQqlJ~ __ (c~~f1J1~~~)~~-_tr~f.9~. no_nrin-cjpio_J.Qrmal_gQ __ cin!lm~~PI..ocess~. -qu~_ . g,u.e-d~'.~ll[i]; a .. ~cepo do filme". a Enquanto na obra de arte clssica o observador podia divagar livremente, perdendo-se em suas fantasias, no cinema as imagens so imperiosas, impondo uma visibilidade autoritria, que probe ao espectador associaes de idias alheias ao que est sendo visto. Ele tem que estar totalmente presente, pis de outra forma os choques. da ima-gem no poderiam ser absorvidos, mas sua presena , apesar de tudo, incompleta: ela se limita de uma parte do apa-relho psquico, vinculada percepo imediata, com excluso de qualquer outra atividade mental, redundante e mesmo disfuncional, quando o psiquismo tem que se concentrar numa nica tarefa, que a interceptao e assimilao do choque.

    O dadasmo procurava chocar, transformando a arte em vida, mas envolvia esse choque num envlucro moral ou po-ltico; com o cinema, o choque puro finalmente liberado.

    Nisso consiste o efeito de choque do filme, que como todo efeito de choque tem que ser interceptado por uma con-centrao mais intensa da conscincia (gesteigerte Geis-tesgegenwart). Graas sua estrutura tcnica, o cinema conseguiu liberar o efeito fsico de choque da embalagem moral em que o dadasmo ainda o envolvia. . . O cinema

    - a forma de arte correspondente ao perigo de vida, cada vez mais ameaador, que o homem de hoje tem que en-frentar. A necessidade de se expor a efeitos de choque constitui uma adaptao do homem aos perigos que o ameaam. o cinema corresponde a modificaes profun-das do aparelho perceptivo, modificaes sentidas por cada habitante de grande cidade, na perspectiva da vida privada, e por cada cidado, na perspectiva da histria ..

    A DEGRADAO DA EXPERINCIA

    A nova sensibilidade introduzida pela onipresena das situaes de choque implica que a instncia psquica encar-s W. Benjamin, Ueber etnige .. . , op. ctt., pg. 631. 4 w. Benjamin, Das Kunstwerk im Zeitalter seiner technische11-

    Reproduzierbar.keit (A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibi-lidade Tcnica), GS, vol. I-2, pg. 503.

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  • regada de captar e absorver o choque passa a predominar sobre. as .instncias encarregadas de armazenar as impresses na memria.

    Benjamin exprime essa idia, baseada na dicotomia freu-diana que ope a conscincia memria, atravs de uma nova dicotomia, que ope a experincia (E'rfahrung) vi-vncia (Erlebnis).

    r.~r.tenc~m_ esfera,....Q.---.~P-e.!"!~cia a~ ),_:mp_ress.~ __ ql_!~ __ o ~jgt~mq 'e:qm:t.IJ8.t . _memr.~a, .. i~_to , as . ~~citaOO.s q:u.e jamais se tornaram conscientes, e que transmitidas ao in:-consciente deixam nele traos mnmicos duryeis, Pertencem esfera da vivncia aq-yelas impresses cujo efeito de choque ~nt~r__~P-t~Q,Q_p~lo_ sist~!Tia. -~rcepo-conscincia:.~ qu.,e __ se tor-n'mconscientes,_ e _ q~e por isso mesmo desaparecem de forma instantnea sem se incornnrarem memria. .. . .. - ---

    .... .... .. - -. ...... ....... L .. - ........... ------.. .t::~ ....... .. . ... . . .. ..... -- .. _ .. .

    O choque assim aparado, assim interceptado pela cons-cincia, daria ao acontecimento que o desencadeou o ca-rter de vivncia, no sentido eminente. . . Quanto maior a participao do elemento de choque nas impresses individuais, quanto mais incansvel a atividade da cons-cincia na defesa contra as excitaes

  • M~. atentat~va P.J;O"l:l-stiana de r~_cuperar o ~!llpo pe_:_cij_do atra._vs . da. m~mria . involuntria. ~ pode. ocorrt:r . numa .si-t.a@Q_ . ~trica defi:qJd.a.: ... ~.. c'ra~e:r~l, __ pgJ~ . atrq{ia . da,._ e~r_il)cia. -~~l:).sj;_it\lda,_Qm_Q JQrma de sensibilidaq~ __ol~t~ya,_ pela yJ vn_Gia. Q _captta.lisnw->-Jl9..ID .. .e.f.e.ito ... Jnaugura_um._tipo ~edai_e marcado pel;:t extino pr.gt~_tY- .. !J.B.. g~~rincia. Na poca de Baudelaire, esse processo de atrofia j se ~snli:Ya. o Prtico de Les p zeurs du Mal - hfjpciite lecteur, nwn semblable, mon j rere - supe uma cumplici-dade entre o poeta e seu pblico, e essa cumplicidade con-siste no fenmeno comum a ambos, que o desaparecimentO. gradual da experincia. Exposto a perigos multiformes, e obri-gado a concentrar todas as suas energias na tarefa de pro-teger-se contra o choque, o homem moderno vai perdendo a memria, individual e coletiva. O homem privado de expe-rincia o homem privado de histria, e da capacidade de integrar-se numa t radio. De fato, a experincia " matria de tradio, na vida coletiva e particular. Ela se constitui menos a partir de dados individuais fixados na recordao, que de dados acumulados, muitas vezes inconscientes, que afluem para. a memria". 7

    Em sociedades tradicionais, a memria individual e a coletiva se fundem.

    Elas se fundem, em primeira instncia, atravs da festa, do cerimonial do culto, em que episdios significativos do passado coletivo so rememorados, permitindo a cada indi-vduo incorporar essas memrias sua prpria experincia, e recordar-se delas, ao mesmo tempo que recorda seu prprio passado. Os dias festivos se destinam a provocar consciente-mente essas rememoraes, e nesse sentido pertencem ao do-mnio da memria involuntria. "Onde prevalece a experin-cia no sentido estrito, certos contedos do passado individual se conjugam com outros do passado coletivo . . . A memria involun tria e a voluntria deixam de ser mutuamente ex-cludentes". s

    A mesma fuso entre o passado individual e o coletivo ocorre no tipo de comunicao baseado na narrativa. O nar-rador comunica a seus ouvintes histrias baseadas na tra-

    7 W. Benjamin, ib., pg. 608. e W. Benjamin, lb., pg. 611.

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    r 1:

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    dio oral, que se repetem de gerao em gerao e consti-tuem uma ponte .entre o passado. e o presente, e entre indi-vduo .. e tradig . .A.Jnatria da..JM.!f.J.:&Q .. e. .. .'; _qps;li_Q q~

    possil.;liJiQ.d.,~- -~--~~J!~JJ~ng! O narrador conta a partir de sua prpria experincia, e da experincia dos que lhe comu-nicaram a narrativa, e dirige-se experincia dos seus ou-vintes. Em contraste, o romance a forma de comunica.o tpica do mundo moderno, porque

    seu carter prprio ... de no depender em nada da tradio oral, e de nada acrescentar a ela. . . O narrador

    deriva a J:P,atria .de sua narrao seja de sua prpria experincia, seja da experincia de quem a transmitiu, e o que narra se transforma em experincia para quem ouve; O romancista se mantm distncia. O lugar de nascimento do romance o . indivduo solitrio, que no pode mais traduzir sob forma exemplar aquilo que nele

    essenciaL 9 . . .

    A narrao se ope igualmente tnforril.ao. A imprensa est interessada na informao pura; qtie no deriva de n.e.:; nhuma experincia, nem se enderea experincia do leitor. O carter efmero das notcias as irripede de serem incorpo-radas tradio, e as prpriM caractersticas tcnicas da informao - novidade, conciso, inteligibilidade, falta de qualquer inter-relao entre as dif~retltes noticias - contri-buem para que ela .se mantenha alheia esfera da experincia .

    .. . Na substituio das antigas . formas de comunicao pela informao, e desta pela sensao, reflete~se a degra.::

    dao da experincia ... Na narrao, o acontecimento incor:porado vida do narrador, que a transmite, como experincia, ao ouvinte. por isso que o narrador deixa nele os seus traos, como o oleiro deixa a marca qe sua

    . mo no vaso de . argila. 10

    . A_Jro~tnc~_~g __ ol.l.r.-q~-~:tl.~ . y~m .. c:l~ .. :t~P.t-Jiy~ . c:l.~ r~t~:t!r.::tr _ - .f!mmt ... c:l9. JJ~I;r:J:aqr, .:rmma poca Ga:ra~ter~d.Q. pel_a ~~thJ:~Q . Q'-.. -~~_peri~:pi,a. Ele tenta realizar com 1lleios p:iivadoo que a soc~da-de, ' corii meios eomuri,itiios, oferecia antes. ada indJvlduo :. a poSsibilidade de extra1r, do ftini:IO de :sua- eipedncia, os momentos significativos do passad

    9 W. Benjamin, Der Erzaehl.er, (0 Narrador), GS. vol. II-2, pg, 443: 10 W. Benjamin, Ueber einige .. . , op. cit., pg. -611.

  • individual e coletivo. Proust reproduz, de certa forma, a ca-tegoria da festa, pela qual a experincia do indivduo se cru-zava com a tradio. Os dias que a memria involuntria retira do inconsciente .so dias .extraordinrios, dotados de uma significao semelhante dos dias evocados pelas come-moraes do culto. "No se caracterizam por nenhuma vi-vncia. No se relacionam de forma alguma com os demais dias, e por assim dizer se destacam do tempo". 11 O mesmo ocorre com os dias em que a memria involuntria consegue extrair da memria esses momentos significativos. Tanto os

    d~a.S reinerrioiads cmo, num certo sentido, os .. dias reme-moradores, so dias de festa: a festa do reencontro com a prpria experincia. cada uma das situaes em que o cro-nista tocado pelo sopro do tempo perdido se transforma numa situao extraordinria, subtrada seqncia dos di'llS". 12 . .

    .se Proust reagiu atrofi da. experincia atravs da me-mria involuntria, re.criando individualmente um process deTememorao que se tornara socialmente impossvel, B.: delaire reagiu mesma atrofia - j visvel no perodo de consolidao capitalista - atrav~ da categoria do . spleen .. O sp~~_1-~que~a_!Q~I!!~~.~!!~~~--~~-!.~!di~~-Y.!!!::_

  • _ ~- __ idia expressa_ num . dos. poeinas fundamentais .. . de.:. Baudelaire.: ..

    Des cloches . tout __ coup sautent avec furte, Et lancent vers le . Ciel un affreux hurlement, Ainsi . que des esprits errants et sans patrie, Qui se mettent geindre opinitrement.

    "Os sinos", diz Benjamin, que antes assinalavam os dias festivos, so expulsos, como os homens, do calendrio. Assemelham-se s pobres almas, que se agitam muito, mas no tm histria. . . O spleen se confronta com a vivncia em toda sua nudez. Apa.-vorado, o melanclico v a terra regredir a um simples estado de natureza. 14

    Como todos os contemporneos, o poeta est exposto realidade do choque. Mas atravs do spleen, consegue refletir sobre ela, percebendo o empobrecimento da experincia, o esvaziamento da memria e a reificao da vida quotidiana. O homem comum, entretanto - o passante- todo inteiro concentrado na interceptao do choque, no tem energias livres para a reflexo. .e.m memriaL.~m experinci~. sem

    pa~-dQ,_le_,s~- .d~i~--rrt~,:~._ -~~- ~s, __ tQt1;1Ime.n..t~---~,n to aos ~rJgp_s.Jwed.tatos,_t.o.talmente inconsciente c1as amea~s .P.rOfJJJ1dM..:::::_g_~-~-~~-de{~,nger~.~---!Q,llWY:e.Lffit ____ ~9 ... .l?I~O

    C!~---~-~-~.9Al...PQrt!lJllen to _ ref~~!Q.L.JlW~ .. :P!tYJ.l.~gi_a . ~- . Y~Y.n_J .. e ~!rQ!i.!!. . .-.J~.x.p~r~~gcia.

    AS. DUA& FACES DA BARBRIE. . .

    Mas a a~itude de B.el1jamin diant~ de.ssa noy?- sensibili-da,de . ambgua. Se ela -significa, para Adorno, o fim da in-diVidualidade e da autonomia, e o triunfo da reificao Ilu-minista, ela significa, para Benjamin, tambm uma perspec-tiva de liberdade. . ~ O homem novo tem que emergir das runas do antigo. A cultura tem sido, historicamente, a cultura dos vencedores. O esvaziamento da tradio no necessariamente_ ,um mal,

    H W. Benjamin, ib., pg. 643. 52

    ..

    , .

    . I .

  • pois enquanto arquivo da injustia, . ela. contribui, . de certo mdo, para perpetu-la. Anjo da destruio, o Angelus.Novus no somente um redentor, mas tambm . um .icono.clasta, que . para recompor os escombros que se acumulam sua frente tem que reduzir a escombros os monumentos dos ven-cedores. Ele tem afinidades com o ."carter destrutivo", que segundo Benjamin "transforma o existente em runas, no por causa das runas, mas por causa dos caminhos que nelas se formam". 15

    _Q_iim d~!~ !1__np:m~~;-~~~s.:a~~

    m~nte negativa. Os no_vo~ brlaros, _ d.~providos de pa~_aqp, vazios de experincia> tm.sobre os .civillzados .a vantagem de s~ ___ contentarem com pouco, de_ poc:Ierem comea:r sempre 9-e novo, ~pesa.r de toda sua pobreza interna e externa. : . . . ~ . .... . .. . ... ~

    Essa pobreza da experincia afeta a experincia privada, mas tambm a do gnero humano. . . Surge dessa forma um novo tipo de barbtie. . . No se deve concluir, da idia da pobreza da experincia, que o homem esteja vido por uma nova forma de experincia. No, ele est vido, ao contrrio, por libertar-se . das experincias, por encontrar um novo melo ambiente em que sua pobreza, externa e t.a.mbm Interna, possa afirmar-se de forma to pura e to clara, que algo de valioso possa derivar dela ... Estamos mais pobres: Abandonamos, fragmento por fragmento, o patrimnio hereditrio da humanidade, empenhando-o, s vezes a um centsimo do seu valor, para obter e:in troca a pequena moeda da atualidade ... Em seus edicios, imagens a narrativas, a humanidade se prepara, se necessrio, para sobreviver cultura. 16

    Ao mesmo tempo, Benjamin est consciente das ameaas dessa revoluo cultural "avant la lettre'.'. A ascenso do fas-cismo uma prova evidente de que a barbrie introduzida pela destruio da cultura tem pouco em comum com a barbrie purificadora imaginada por Benjamin. No momento e.m que as nuvens de uma barbrie real obscurecem o hori-

    ~onte, pregar um contra-barbrie mtica quase uma forma de conivncia com o poder. fascista. por isso que Benjamin, u W. Benjamin, Der Destruktive Charakter, (0 Carter Destrutivo),

    GS, vol. IV-1, pg. 398. 16

    W. Benjamin, Ertahrun.g und Armut (-Experincia e Pobreza), OS, vol. ll-1, pg. 215-218-219.

  • com a mesma .veemncia com que denuncia a cultura de classe, denuncia os ~iscos de uma disSoluo ~- cultura. In-versamente, .ao mesmo tempo que estigmatiza o empobreci-mento da experincia, que condena os homens perda de sua memria histrica, percebe o potencial politico dessa nova sensibilidade, pois ela se caracteriza pela intensificao da conscincia: uma gesteigerte Geistesgegenwart, que ope .s situa.es de choque um novo aparelho sensorial, capaz de trabalhar, lucidamente, essas situaes, numa perspectiva

    t,~ansforn1adora. . Em suas teses ~obre a filosqfia da histria, Benjamin

    deixa claro o car~r ambivalente da tradi_o, e a necessidade de uma dialtica capaz de con1preender o .rosto de J.~nus da cultura:

    ,.': I ''

    O perigo ameaa tanto a existncia da tradio, como os que a recebem. Para ambos, . o perigo () mesmo -transformar-se em in-strumento das classes dominantes ... Em cada poca preciso, sempre de novo, arrancar a tradio ao conformismo que quer apoderar-se dela ... Aqueles que at agora venceram marcham nesse cortejo triunfal. Os bens ~aqueados participam, como de regra, do cort-ejo. So os denorilinados bens cu~turais. o mate-

    .. rialismo hiStricO deve contempl-los de forma distan-ciada. Porque eles provem, todos e cada um, de uma origem que no se pode contemplar sem horror. Devem stia existncia no somente ao esforo dos grandes gnios,

    . :que: os produziram, eomo trilbm corvia annima dos . contemporneos. No existe nenhum documento da cul-

    tura que no seja ' ao ~mesmo tempo uni documento da barbrfe. E da mesma forma que esses bens no esto isentosda barbrie, ho o est, tampouco, o processo da tradio, pelo q\lal eles so _transmitidos de uns a outros. 11

    & AMBIGIDADES DA AURA

    . Essa dialtica que consegue ver na degradao d; expe-rincia, da tradio e da cultura tanto uma dimenso de-sumanizante com uma dimenso libertadora encontra sua. expresso. mais clara na teoria da aura.

    Segundo Benjamin, a obra de arte clssica, derivada hts.~ toricamente da tradio. religiosa, ~rtilh,ava com. o ~bjeto 11 .. w : Benjamin; Ueber den Begr'iff der Geschichte

  • ! \ '

    de culto a caracterstica de ser nica, irreprodutvel; autn-tica e intocvel. A aracterstica temporal da aura sua uni-cidade _(Einmaligkeit) e . sua caracterstica espaCial a dis-tncia. a aura ".o aparecimento nico de um objeto distante, por mais prximo que esteja". 18 seu substrato a auten-ticidade da obra.

    Com a multiplicao dos meios de reproduo tcnica, principalmente a fotografia, essa estrutura espcio-temporal da obra de arte se modifica. Reprodutvel ao infinito,. ela deixa de ser nica, e pode, ao mesmo tempo, ser tocada pelo observador, deixando de ser longnqua. A arte perde sua aura. Aos poucos, essa reprodutibilidade deixa de ser externa bra, e passa :a determm-la em sua estrutura. Eia pro .. (lzida para ser reproduzida. Com o advento do cinema, essa tendncia atinge seu clmax: a reprodutibilidacle tcnica da obra cinematogrfica se funda imediatamente na tcnica de stia prodQ. . A arte aurtica estava encrustada na tradio. Suas ori-gens se perdiam: no ritual religioso. Com o fim a aura, esse valor de cultO desaparece, substitudo pelo valor de exposio, e a:. arte rompe seus vnculos com o rito .. A doutrina da arte pela arte, expresso secu3:arizada desses fundamentos reli-gipsQs. foi o vitimo avatar da viso auntica da arte.

    Nas condies atuais, desa.parece a derradeira iluso da art-e autrioina. o fim da aura no arbitrrio, mas con-dcionado. socialmente. No mundo ma.ssificado .d capitalismo atual, . o .homem tem ~m tipo. de _percepo voltado . para o id~ntico (Gleichartiges) e pata o contacto di~eto com as coi-sas, o que .ex

  • Como seria de esperar a partir de sua concepo da bar-brie, Benjamin percebe, tambm, duas faces nesse processo de dissoluo d&. aura: ele est a servio de uma :politica de transformao do real, e fator de massificao e hnobillsmo.

    FIM DA AURA E REvOLUO

    A arte ps-aurtica, produto de uma constelao social marcada pela hegemonia da massa, reage sobre ela, condi-cionando um tipo de recepo coletiva que o nico adequado estrutura dessa arte. A arte clssica, voltada para a con-templao individual, era necessariamente elitista. A nova arte pode ser recebida coletivamente. Essa recepo coletiva muda qualitativamente a relao entre a obra e seu pblico. Incapaz de julgar um quadro ou um poema de vanguarda, o homem-massa capaz de julgar a qualidade de um filme. Reacionrio em seu julgamento sobre Picasso, progressista em seu julgamento sobre Chaplin. O espectador assume di-ante de um filme a mesma atitude que a cmara diante do ator: a atitude do teste. A opinio do espectador sobre um filme de Eisenstein to valiosa quanto a de um especialista.

    A capacidade de fruio, caracterstica da mera vivncia, se associa capacidade crtica, antes reservada experincia. Na arte ps-aurtica, a vivncia passa a assumir funes que a experincia, vinculada ura, no pode mais exercer. S ela pode refletir a estrutura "choquiforme" da realidade, res-ponder s exigncias da nova sensibilidade, baseada na ge-neralizao do choque, e agir sobre seu pblico, transmitindo-lhe a viso das tarefas adequadas nova realidade.

    A crtica conservadora considera o cinema desprezvel porque se destina essencialmente a distrair. Mas nisso, justa-mente, est a suoerioridad da nova arte .sobre a arte aur-tica, nas condies contemporneas. Nesta, o esoectador se recolhe; naquela, ele se distrai, vale dizer, se dispersa.

    As duas atitudes polares do recolhimento (Sammlung) e da disperso (Zerstreuung) se relacionam entre si como a \ arte aurtica se relaciona com a ps-aurtica. A atitude de recolhimento leva quem contempla uma obra de arte a mer-R"U.lhar nela, como o pintor chins que desaparece em sua tela; a atitude de disperso leva a massa distrada a incor-porar em sua prpria substncia a obra de arte. Num caso,

    56

  • o individuo isolado se perde na obra, no outro, a obra se perde na massa.

    A arquitetura oferece o exemplo cannico da recepo da arte baseada na disperso. O edifcio objeto de uso e ao mesmo tempo de percepo. O que significa que sua re cepo simultaneamente tica e ttil. A caracterstica desta ltima que ela se baseia no hbit-o, e no na ateno per manente. O homem mora sem se dar conta, a t-odo momento, de que est morando. Mas mesmo a percepo tica, na ar quitetura, assume caractersticas de hbito. Sem dvida o tipo de ateno vsual dispensado aos grandes monumentos da arquitetura semelhante ao que se consagra a uma tela, mas justamente esses monumentos no so destinados mo-radia. Numa casa, a ateno superficial: a atitude essencial a disperso.

    Como a arquitetura, a arte ps-aurtica se destina a consumidores distrados. por isso que o cinema se trans-forma num poderoso instrumento didtico, numa poca que exige a realizao de tarefas que no poderiam realizar-se em condies de recolhimento, mas que so realizveis em condies de disperso.

    As tarefas que em momentos de crise histrica se colocam ao aparelho perceptivo humano so insolveis por meios meramente ticos, baseados na contemplao. Elas podem ser gradualmente solucionadas por meio da recepo t-t il, do hbito. Tambm o distrado pode habituar-se ... Como de resto os indivduos esto expostos tentao de se esquivarem a essas tarefas, a arte pode dar sua contribuio mais decisiva na medida em que puder mo bllizar as massas. l!: o que j ocorre no cinema. A recepo baseada na disperso, que se nota com nfase crescente em vrias esferas da arte e constitui o sintoma de pro-fundas modificaes perceptivas, tem no cinema seu ver-dadeiro instrumento. Graas a seus efeitos de choque, o cinema vem ao encontro dessa forma de recepo. 20

    por isso que o desaparecimento da aura no em si um fato esttico, mas um fato poltico. Graas a ele, "a funo social da arte se modifica completamente. Em vez de se fundar no ritual, ela se funda numa outra prxis: a poltica". 21

    20 W. Benjamin, ib., pg. 505. 21 W. Benjamin, ib., pg. 482.

    57

  • .Benjamin est consciente de que o fascismo tenta reali~ zar justamente essa mobilizao das massas. Mas .atravs do -cerimonial e da dramaturgia dqs comcios fascist~, o que se busca enquadrar a massa, a fim de manter inalterveis as relaes de prod1,1o, O tipo de mobilizao que se torna possvel por meio da arte sem aura visa, ao contrrio, revo-lucionar tais relaes. "Nisso consiste a estetizao . da pol-tica, promovida pelo fascismo. O comunismo . responde com a politizao da arte". 22

    Essas idias esto entre as mais problemticas do pen-samento de Benjamin. Elas parecem implicar na condenao cega, sem quaisquer mediaes, da arte pelf,t arte, na aceitao de uma tecnologia cujo efeito tornar impossvel o pensa-mento conceitual, e na apologia de uma arte manipuladora, destinada a induzir as massas a praticarem tarefas que no realizariam se no estivessem em estado de "disperso". Nuina poc em que o fascismo estava pondo em prtica

    ~odos os .pontos desse programa - a distino estabelecida por Benjamin entre a . es.tetizao da poltica e a politiza.o

    d'~ arte tem mais valor. retrico que terico -- e especial~ mente no momento em que ele estava .aperfeioando. at o virtuosismo a tcnica de condicionar as massas atravs da dispers.o, essas .consideraes parecem pelo menos inopor-tunas. Como observou Adorno, em mais de uma ocasio temos a, suspeita de . que Benjamin sucumbe ao mecanismo que Anna. Freud cham,a "identficao com. o agressor". Ao ne-gar a crtica em nome _de uma prxis coletiva, Be.njamin "est _em excessiva sintonia com o Esprito do Tempo, e ope a ela. o estado de coisas que ele prprio mais temia". 2s - ~ . . . Em carta a Benjamtn; Adorno precisa .suas objees. A tte autnma sem dyida nenhm;na uina fico, na me-dida em que suas conexes genticas , com a sociedade so esquecidas, mas tambm rel, ria medida em que incorpora um momento de liberdade com relao a essas conexes. Pro-d'!JtO do real repressivo, ela se eleva, -num certo sentido, sobre esse r~al, preservando a memria da injustia e apontando para urna harmonia. futura. Assim ela no pode, simples-mente, ser de-sublimad~, incorporando-se vida, pois com 22 W. Benjamin, ib., pg. 508. 2a Theodor W. Adorno, Benjamins Einbahnstrasse (Rua de Mo

    nica, de Benjamin) em Ueber wazter. Benjamin (Sobre Walter Benjamin) , Frankfurt: Suhrkamp,. 197Q, p g. 58. . .. _. ..

  • " I

    sua subordinao direta prxis poltica sua negatividade desapreceria, e ela deixaria de ser fermento subversivo e promessa utpica. Por outro lado, Benjamin .atribui impor-tncia excessiva arte de massas, superestimando seu poten-cial poltico. Achar que o espectador massificado pode ver criticamente un filme sucumbir a uma defonnao "obrei-tista", que idealiza o proletariado, esquecendo-se da tese de Lenin de qtie a conscincia operria em si incompetente para pensar sua prpria realidade, e portanto para fazer uma leitura crtica das produes de cultura. Benjann, em outras palavras, teria dialetizado a arte de massas, vendo nela seu potencial progressista, mas no a alta cultura, deixando de ver ne~a seu contedo subversivo.

    Les extrmes me touchent. . . mas somente quando a dialtica do infelior (Unten) fr equivalente do su-perior (Oben>, e no quando este, simplesmente, se -de-

    sagreg~. Ambos trazem as ctcattiz.es do capitalismo, am-bos contm ele.mentos de transformao. . . ambos cons-

    .. tituem as metades mutiladas da liberdade fiteira, que no pode, contudo, ser obtida pela agregao das duas.

    Sacrificar uma outra seria romantismo: o romantismo burgus da conservao da personalidade e da magia. da obra, ou romantismo anarquista, cegamente confiante na

    capacidade de ao autnoma do proletariado. Seu tra-balbo.cede, num certo sentido, ao se.gundo romantismo. : ,

    . Eu postularia, portanto, mais dialtica. Por um lado, uma dialetizao em profundidade (Durchdialetisterung) da arte autnoma. . . e por outro, uma: dialet~zao mais forte da ~rte da grande consu~o, em sua negativldade. 2~

    _ l\1as na Dialtica do Iluminismo, escrita. vrios : anos qepoS.da morte de Benjarp.in, que Adorno critica o mais gr!i-ve dos mal-ente:p.dido~ benjaminianos - Sl.la pouca sensi:-bilidade _aos ri$COs de uma manipulao da indstria cultural, visando suprimir a capacidade de reflexo autnoma do con-sumidor. Depo.is de descrever o carter autoritrio do cinema, que impede o espectador de abandonar-se s suas prprias associae~ de idias, Benjamin no hesita, como vimos, em

    ~tribuir valor poltico positivo a uma arte ps-aurtica ba... sea4a ne$Se paradigma, e destinada, .precisamente, a impos-sibilitar processos de auto-reflexo. Adorno e Horkheimer re-tomam essa descrio, tirando dela concluses opostas.

    u Theodor. W. Adorno, carta a Benjamin, de 18 de maro .de 1936, em Ueber Walter Benjamin, op. cit., pg. 129-131.

    '59

  • Os produtos mesmos, a partit do maiS tpico, o filme faladb, parallzam aquelas faculdades por sua prpria constituio bjetiva. So feitos de tal mOdo que sua compreenso adectuada exige rapidez de reflexos, dotes de observao, competncia especifica, mas tambm a absoluta suspenso da atividade mental do observador, se este no quer perder os fatos que se desenrolam diante dos seus olhos ... O espectador no deve traba-lhar com sua prpria cabea; o produto prescreve todas as reaes: no por seu contedo objetivo- este se esvai no momento em que submetido ao pensamento - mas atravs de sinais. Toda conexo lgica, que exij a esforo intelectuar, escrupulosamente evitada. 2s

    a anlise de Benjamin :. o cinema inibe associaes au-tnomas, e exige uma intensa concentrao, para que o filme seja compreendido - uma gesteigerte Geistesgegenwart, in-dispensvel ao passante, ao artista e ao simples espectador, em face da generalidade das situaes de choque. Mas ao contrrio de Benjamin, os autores recusam a esse tipo de re-cepo qualquer ef~t.o transformador, pois nela que se funda o poder Iluminista para suspender a negatividade do pensamento crtico, mantendo inalterveis as estruturas exis-tentes.

    A verdade, contudo, que Adorno no cumpre seu pr-prio programa. Em vez de dialetizar o superior e o inferior, como recomenda a Benjamin, limita-se a dialetizar o superior,

    preocup~ndo-se muito mais em impedir a de-sublimao da alta cultura que em encontrar na cultura de massas instru-mentos de emancipao.

    Enquanto Benjamin, depois de constatar a dupla face da cultura- "no h nenhum documento da cultura que no seja tambm um documento da barbrie." - opta por uma prxis que faa justia a essas duas dimenses, Adorno se recusa a transcender tal constatao, resolvendo o dilema, prtica ou teoricamente. A contradio deve ser mantida a qualquer preo. nessa ausncia de sntese que reside o pathos e a virulncia da dialtica negativa. Se escrever poesia, depois de Auschwitz, um ato de barbrie, aboUr a poesia seria um ato igualmente brbaro. O homem no pode nem estar dentro da: cultura, nem fora dela.

    Z5 Theodor W. Adorno e Max Horkheimer , Dialektik der Aufklaerung (Dialtica do Iluminismo), Frankfurt: Fischer Verlag, 1973, pgs. 113-114; 123, . .

    60

  • .t-fenhum teoria, nem msrrt uma teoria verdadeira, est livre de degrdr-se em mera alucina, no --mo-

    .. ment o em que rompe sua relao espontnea com o oh-. -jeto i a dialtica deve evitar essa ruptura, e ao mesmo .

    tempo. ev.itar a fascinao pelo objeto. O .crtico dialtico da cultura deve participar dela, e no participar. Somente assim poder fazer justia a si mesmo e a seu objeto. 26

    por isso que Adorno pode dialetizar o Oben, mas no o Unten. Pois a dialtica do Oben mostra exatamente esses dois lados da alta cultura, que no podem ser objeto, nas condies atuais, de nenhuma sntese. Fruto do existente e ao mesmo tempo promessa de transcendncia, a cultura tem que ser rejeitada, porque incorpora relaes de violncia, e no pode ser rejeitada, porque incorpora a perspectiva de um futuro pacificado. Mas Adorno no pode dialetizar o Unten, porque teria que descobrir, mesmo no ki t sch, mesmo na radionovela, mesmo no cinema comercial, ao lado do ele-mento repressivo, alguns grnulos de esperana utpica. Foi o caminb.o de Ernst Bloch, que segundo. o prprio Adorno recusa qualquer cumplicidade com o Oben, esfera da domi-nao, e se concentra no Unten, "buscando no kitsch aquel transcendncia que a imanncia da cultura lhe nega". 27 Mas esse caminho no pode ser o de Adorno, pois ele o levaria concluso de que a indstria cultural acaba. produzindo, pa-radoxalmente, objetos que podem.servir recusa do existente, o que reduziria a dialtica negativa, de pensamento trgico baseado na impossibilidad~ da sntese, numa teoria social consoladora, que admite a t-ese, banal desde Marx, de que o sistema acaba produzindo as contra-tendncias que o con-testam. Essa recusa em dialetizar o Unten leva Adorno a erros de julgamento, que se manifestam, por exemplo, em sua atitude em face do cinema. Se admite, em teoria, a dis-tino entre filmes legtimos e filmes comerciais, na 'prtica engloba ambos na mesma condenao, como quando contesta o valor artstico dos filmes de Cha plin, ou quando diz que apesar da montagem o princpjo construtivo .bsico do cinema continua sendo o "realismo ingnuo". 26

    Theodor W. Adorno, Kulturkriti k un . Gesellschatt {Critica da Cultura e Sociedade), em Prismen (Prismas), Frankfurt: Subr-

    . kamp, 1976, pg. 29. . . . : 27 Theodor W. Adorno. Blochs Spuren,

  • . Nesse sentido, Benjamin levou mais longe o trabalho da dialtica. Seu instinto, que o leva a investigar o potencial de

    nega~o imanente nova arte, mais segt_9 que o de Adorno, cuja . atitude de rej.eio do cinema o aproxirila da crtica cultural conservadora, tpica da . tradio alem, que no s-culo XIX criticou a fotografia em defesa da pintura, e no sculo XX, o cinema em defesa do teatro .

    . evidente, contudo, que as simplificaes de Benjam~, ~ativadas por um ativismo que Adorno atribui influncia. de Brecht, permanecem inaceitveis, da mesma forma que a ligeireza com que aprova as tendncias autoritrias atribu-das nova arte. A verdade que Benjamin tem razo contra Adorno em valorizar o cinema, e este tem razo contra Ben-jamin em criticar o carter sugestinador da arte de massas.

    O valor poltico do 'cinema, com efeito, no est onde Benjamin o v. Enquanto indstria cultural, certo que o cinema constitui mera vivncia, e se funda na excluso de . todos os processos reflexivos por parte do espectador. O gran-de cinema, ao contrrio, por mais que esteja encrustado no circuito do capital, mobiliza as camadas mais profundas da experincia, e supe, precisamente, que o espectador man-tenha intacta sua capacidade de pensar, de associar e de rememorar. Pode-se perguntar, inclusive, se o valor poltico dos filmes de Eisenstein (mencionados por Benjamin em apoio de sua tese) no resi

  • pode, efetivamente, ser considerado ps-aurtico? No cinema, ao contrrio do que pensa Benjamin, a re{>rod.utibilidade tc-nica no implica o desaparecimento dz. aura. Para que ela exista, a obra tem que ser autntica. Ora, no cinema, cada cpia pode ser considerada autntica, ao. contrrio da pin-tura, em que s o original dotada de aura, porque todas as. reprodues so, por definio, inautnticas. O filme de arte tem, como toda obra de arte, a caracterstica da unicidade e da distncia : "o aparecimento nico de um objeto distante, por mais prximo que esteja". O espectador, recolhido, mer-gulha nele, com toda a espessura de sua experincia. Ao mes-mo tempo, continuam sendo necessrias as faculdades pos-tuladas por Benjamin, e que Adorno caracteriza como "ra-pidez de reflexos, dotes de observao e competncia especi-fica", sem as quais a seqncia "choquiforme" das imagens no .seria . inteligvel. Em outras palavras, o espectador deve ter a capacidade de interceptar choques - funo da cons-cincia - e de mobilizar o material psquico sedimentado em sua experincia, sem o que o trabalho associativo seria im-J}ssvel - funo da memria. Se a primeira faculdade necessria para todos os tips de filme, a segunda especi-ficamente . exigida pelo grande cinema. na unidade dessas duas formas de percepo que reside a especificidade do ci-nema com relao a outras obras de arte, que em sua estru-tura aurtica se dirigem predominantemente experincia do observador. S o cinema apela ao mesmo tempo para uma conscincia agudamente alerta, e para uma experincia su-ficientemente rica para que dela sejam extradas as memrias involuhtrias suscitadas pela aura cin~m.a.togrfica.

    FIM DA AURA E MAsSIFICAO

    Extinta a aura, a humanidade se torna mais pobre. se essa pobreza , por um lado, a dos novos brbaros, capazes de construir o novo a partir do nada, , por outro lado, a pobreza do homem totalmente alienado de si mesmo, que per-d)u., sua prpria. histria. Pois Benjamin sab~ que o declnio da aura, nas condies concretas do capitalismo, no foi acompanhada de maior liberdade, e sim de maior servido. S.e a aura da grande arte desaparece, no para ceder lugar - ao libertadora das massas, e sim para abrir um espao onde se instala uma nova aura: a da mercadoria, cujo feti-

    63

  • chismo~ susc:l-ta .no consumidor uma atitude . incomparavel- mente : mais .. alienante qtie a . arte . baseada no .. rituaL

    ,_::. Os grandes. artistas. como. Baudelaire, reccmheceram .. o carter .aurtico que a mercadoria procurava se atribuir: "foi a tarefa de Baudelaire revelar a ura especfica da merca-doria". 2s Mas enquanto a verdadeira aura supe a contem-plao e o recolhimento, a pseudo-ura se funda na disperso .. A mercadoria recompensa seus adoradores, distraindo-os. O objetivo das Passagens, das Exposies Universais e do grand magasin fornecer o santurio no qual a mercadoria pode ser venerada, antes de ser consumida. Enquanto objeto-fet-iche, a mercadoria tem uma aura que como a da arte se caracte-riza pela distncia e pela unicidade; quanto objeto de con-sumo, ela o produto, infinitamente mltiplo (superao da unicidade), da indstria de massa, e se torna totalmente pr-xima (superao da distncia) no momento em que dev-rada pelo consumidor.

    ,.As Exposies Universais so os lugares de peregrinao do fetiche mercadoria . . . ~ classe operria aparece em primeiro plano, como clientela ... Elas transfiguram o valor de troca da mercadoria. . . Abrem uma fantasma-goria na qual o homem penetra, para se deixar distrair. A indstria do prazer torna essa tarefa mais fcil, na medida em que o eleva ao nivel da mercadoria. Ele se abandona s suas manipulaes, e desfruta sua alienao de si mesmo e dos outros. . . A moda prescreve o ritual segundo o qual a mercadoria quer ser adorada. 2-9

    O fim da aura, ou sua generalizao espria na forma-mercadoria, coincide com o fim da experincia, que justa-mente permitiria ao individuo defender-se contra o despo-tismo da mercadoria. Se verdade que pela aura o homem se relaciona com a tradio, ele se separa dela quando a aura se extingue.

    A obra de Proust, tentando reproduzir a experincia em condies objetivas que a excluam, foi ao mesmo tempo a tentativa de reconstituir a aura, em condies objetivas em .que ela j estava condenada. O 'objeto evocado pela memria 2s W. Benjamin, Zentralpark, GS, vol. I-2, pg. 671. 20 w. Benjamin, Paris; die Haupstadt des XIX Jahr.hunderts, (Paris,

    capital do sculo XIX), em Illuminationen, (Iluminaes), Frank-furt: Suhrkamp, 1977, pg. 175-176.

    64

  • involuntria um objeto aurtico, assim como o objeto em torno do qual se cristalizam as imagens dela oriundas.

    A aura de um objeto oferecido intuio o conjunto de idias que, habitando a memria involuntria, tendem a agrupar-se em torno dele. . . O elemento distintivo das imagens que se original da memria involuntria con-siste em que elas so providas de uma aura. ao

    Aurtico o passado evocado pela memria involuntria, 1 assim como o presente percebido graas a esse passado. Mas

    o esforo de Proust no podia ter conseqncias sociais. Con~ frontado com um mundo sem aura, o homem-massa no con-segue reproduzi-la intra-psiquicamente, porque no dada a todos a capacidade de "retrouver le temps". Seu destino social, num mundo que perdeu a aura e com ela a tradio, mover-se na .multido, tomo desmemoriado abrindo seu caminho no meio de outros tomos.

    No incio do capitalismo, esse destino no era inevitvel. Ainda era possvel ficar na periferia da massificao, sem se deixar absorver por ela. Esse ponto intermedirio o lugar social do flneur. Ele despreza a massa, e cmplice dela. Refugiado nas Passagens, observa a multido que desfila nos boulevards. Seu homlogo o passante, o homem da mu.ltido, que arrastado inexoravelmente, como um autmato, para um destino desconhecido. O flneur tenta defender sua inte-griqade como indivduo se distanciando do passante, desin-

    '. dividualizado pela massa. Ao mesmo tempo, ele depende da . massa para existir socialmente. Atravs dela, v o mundo; I por culpa dela, deixa de v-lo. Ela se interpe entre ele e a cidade, tornando-a opaca; mas nessa interposio, a cidade se torna visvel. "A massa o vu atravs do qual a cidade costumeira acena para o flneur" .31

    Para o flneur, o mundo da experincia no se extinguiu de todo. Perambulando pela cidade, ele recorre s memrias nela depositadas, e recorda-se do seu prprio passado. O fl neur. ainda tem a capacidade de narrar, e o que narra o que ouviu da cidade. Por um instante efmero, a memria individual e a colet-iva voltam a convergir. Produto da mesma

    ao W. Benjamin, Eintge Motive.,. , op. cit., pg. 644-646. 3l W. Benjamin, Paris, die Haupstadt . . . , op. clt., pg. 179.

    65

  • configutao social que.. gero a massa~ o flneur tem a iluso de sobrepor;,.se a .. ela, P.orque preservou o dom da rememo-rao. Cidado de um mundo sem histria, ele passeia, de madrugada, pelas ruas desertas, nas quais julga descobrir o passado da cidade, e o seu prprio.

    No descreve, narra. Mais: torna a. narrar o que es-cutou. . . (Essa narra tiva) um eco do que a cidade contou antigamente criana... em que a recordao no a fonte, ma::; a musa. Ela toma a dianteira, per-correndo as ruas, cada uma das quais um declive. Vai descendo, seno at o ventre materno, pelo menos em direo a um passado que ainda mais apaixon ante por no ser um passado individual No asfalto em que ca-minha ecoam ressonncias surpreendentes. A luz do gs, que se reflete na pavimentao, lana uma luz ambgua sobre esse duplo solo. Enquanto ajuda mnemotcnica do andarilho solitrio, a cidade evoca mais que a infncia e a juventude desse andarilho, mais que sua prpria his-tria. 32

    M.as os dias do flneur esto contados. O desenvolvi-mento do capitalismo sbota essa figura derradeira da au-tonomia.A'No fim, o flneur absorvido, transformando-se em funcionrio do capital. Com o advento do gmnd magasn, a prpria flnerie posta a servio do volume de vendas. Ho magasin o ltimo passeio do flneur. Atravs dele, a inteli-gncia .se dirige ao mercado. Para olh-lo, segundo imagina; na verdade, para encontrar um comprador". 33 A partir desse momento, a massificao se consuma. O indivduo se perde na multido, sem deixar rastros.

    O interior burgus do incio do sculo passado tentava ainda compensar esse apagamento dos rastros multiplicando estojos e envlucros, que envolvendo os objetos preservavam os traos deixados por seus proprietrios. Uma sala de visitas, com seus mvei$ e quadros, era uma grande superfcie indi-vidualizadora, perpetuando os traos dos seus ocupantes. "Morar deixar rastros". 3" A arquitetura moderna, ao con--trrio, multiplica materiais, como o vidro, em que todos os rastros se apagam. "O vidrQ um material duro e liso, em

    :~2 w: :Benjamin, Die Wiederkehr des Flneurs,

  • qu~ .nada se fixa . . As .coisas de .vidro no tm nenhuma .ura. O.Yidro.. .em.g.eral o.jnimigo .. do segredo ... . .S.cheenbart com seu vidro e o Bauhaus com seu ao criaram. espao.!? em . .q~ difcil deixar rastros". 35

    Concomitantemente, aperfei-oam-se as tcnicas de con-trole, que esquadrinham a vida privada, e permitem reen-contrar os rastros perdidos. "Uma extensa rede de controle prende em malhas cada vez mais apertadas a vida burguesa, desde a Revoluo francesa". :li; Com a numerao das casas, com a multiplicao dos registros, com os mtodos de iden-tificao de Bertillon e outras tcnicas da criminalistica cien-tfica, os indivduos so cuidadosamente classificados e loca-lizadoslAs i~presses. que se apagam quando o indivduo penetra na massa, so refeita$ pela polcia, sob a forma de impresses digitais. O indivduo, que se extingue ao entra1 na multido, re-indivldualizado pela antropometria, e com isso perde, pela segunda vez, a identidade, transformando-se numa ficha, e no pode, sequer, refugiar-se no anonimato. Expropriado de si mesmo, pela perda da experincia, ele expropriado, pela perda dos seus rastros, da capacidade de fixar sua presena no mundo das coisas. O mundo no deixa traos em sua memria, e ele no deixa traos no mundo.

    ~o contrrio do personagem de Chamisso, que perdeu sua sombra, ele se transforma numa sombra, que perdeu seu ~orpo, e est ameaado de perder o prprio cho em que se projeta essa sombra ..

    Perdido nesse mundo hostil, acotovelado pela multido, sou como um homem cansado cujo olhar s consegue ver, atrs de si, nos anos profundos, desiluso e amargura, e sua frente, uma tempestade que no contm nada de novo, nem ensinamento nem dor.

    Esse passante desesperado, descrito por Baudelaire, 11 7 quase uma pardia do Angelus Novs. Como ele, o passante arrastado por urna tempestade em direo a um futuro vazio, encara um passado em que se acumulam, como runas, "de-siluses e amarguras". Mas anjo decado, para sempre expulso do Eden, que aos poucos perdeu at mesmo a capacidade de

    M W. Benjamin, Erjahrung und Armut, op. cit., pg. 217. 86 W. Benjamin, Das Paris des Second Empire . .. , op. cit., pg. 549. a; W. Benjamin, Ueber eini ge M otive, op. cit., pg. 652.

    6'1

  • perceber as runas que se amontoam, cuja aurola se extingue, como se extingue a aura do mundo, e cujas asas, inteis, so pisadas pela multido:

    Exil suf le sol au milieu des hues, Ses ailes de gant l'empchent de marcher.

    . Mas o verdadeiro Angelus Novus, o anjo dialtico da histria, igualmente impotente num mundo caracterizado pelo declnio da experincia. Atrofiada a memria coletiva, o homem no pode mais indentificar os agoras aprisionados no passado. A tenacidade individual de autores como Proust, tentando recuperar, pela memria involuntria, esses agoras saturados de presente, no basta para abrir caminhos social-mente viveis. em vo que o passado se dirige ao presente, esperando que este o liberte. O homem sem memria no se sente mais visado pelo apelo dos mortos. insensvel s vozes que emudeceram, e no mais tocado pela brisa que sopra do fundo dos' tempos. Bombardeado pelos choques da vida quotidiana, no comparece ao encontro marcado com todos os vencidos da histria, e com isso sela a vitria dos domi-nadores.

    O fim da aura coincide, assim, com o fim da individuali-zao. Com isso, qualquer transcendncia, e no somente a religiosa, se . torna problemtica. o que percebe o flneur, no momento em que o progresso da massificao o priva do direito flnerie. Outrora observador neutro da massa, ele percebe, muito tarde, que foi arrastado por ela, transfor-mando-se em passante. E investe contra ela

    com a clera impotente de quem marcha contra a chuva e o vento. Assim se estrutura a vivncia qual Baude-laire quis dar o peso da experincia. E com isso indica o preo pelo qual tem que ser paga a sensao da mo-dernidade: a desagregao da aura na vivncia do choque. a.s

    AMBIVALNCIA TERICA E CONTRADIES REAIS

    O balano deste itinerrio, at agora, desconcertante, Ao Benjamin que exalta o declnio da experincia contrape-ss W. Benjamin, ib., pg. 652-653. 68

  • se, com a mesma fora, um Benjamin que percebe os riscos desse declnio. Ao Benjamin que prega uma nova barbri.e, ope-se o Benjamin que se inquieta com a barbrie absoluta da amnsia, que torna definitivas as derrotas dos dominados. Ao Benjamin que parece insensvel aos perigos d~ manipu-lao das massas, ope-se o Benjamin que afirma:

    Paradoxo estranho. k5 pessoas no tm em mente, quando agem, seno o interesse privado mais limitado, e no entanto, mais que nunca, so determinadas pelos ins-tintos de massa. E mais que nunca esses instintos se tornam dementes e hostis vida. 39

    Enfim, o Benjamin que parece confiar, com a inocncia de um personagem de Flaubert, nos mritos imanentes do desenvolvimento tecnolgico, que torna possvel a fotografia e o cinema, o mesmo que critica o determinismo tecnol-gico dos social-democratas e v na crena de que o progresso tcnico o pressuposto da ao revolucionria a raiz do refor-mismo da classe operria.

    Essas posies antitticas coexistem em Benjamin, sem mediaes. Nada mais alheio a seu pensamento que a ten-tativa de anul-las, absorvendo-as num sistema. Sua atitude, como a do colecionador, se baseia ao contrrio na dissoluo de todos os sistemas, porque toda ordem sempre a ordem dos dominadores. Mas isso no nos exime da tarefa de apro-fundar essas contradies, numa tentativa, no de aboli-las, mas de encontrar seu fundamento numa realidade em si contraditria. Como foi na teoria da aura que elas se tor-naram mais aparentes, possvel que essa mesma teoria, re-pensada, possa nos fornecer um fio condutor.

    Relendo os textos de Benjamin, verificamos que sua con-cepo da aura mais ampla que a que resulta do seu ensaio sobre a obra de arte. Jt uma categoria que se aplica, de forma muito genrica, ao mundo da natureza e ao mundo da cultura.

    Quanto ao primeiro, evidente que para Benjamin tam-" ' bm a natureza inanimada pode ser dotada de uma ura.

    "Acompanhar, repousando numa tarde de vero, o perfil de uma montanha no horizonte, ou um ramo que lana sua

    39 W. Benjamin, Einbahnstrasse (Jtua de Mo nica), OS, vol. IV-1, pg. 95. .

  • sombra sobre quem repousa, significa respirar a aura dessa montanha e desse ramo". 40 Na verdade, contudo, o progresso tcnico torna cada vez mais rara essa experincia da aura natural. Na Antigidade, o homem conseguia ainda estabe-lecer uma comunho com a natureza, atravs dos mistrios rficos. Em estado de embriaguez divina, ele percebia a na-tureza como aurtica, e podia se comunicar com essa aura, numa aproximao mxima, que no diminua a distncia essencial aura: "a embriaguez a experincia pela qual nos asseguramos do mais prximo e do mais longnquo, e nunca de um sem o outro". 41 Com a violentao da natureza pelo progresso tcnico, ela perdeu sua aura. Com isso, o ho-mem. e a natureza se tornaram estranhos um ao outro. Pois "a experincia da aura se baseia na transferncia de uma forma de reao, comum na sociedade humana, relao entre o inanimado, .ou a natureza, e o homem. Quem olhado, e se acredita olhado, ergue o.s olhos. E.xperimentar a aura de um fenmeno, significa investi-lo do poder de erguer os olhos". 42 A dominao cega da natureza pelo homem prlvou-o da capacidade de animar o inanimado, dando-lhe um olhar. Mas a aura da natureza no era apenas comunho religiosa com o cosmos, mas tambm limite e excluso. Ela impedia a utilizao produtiva da natureza, em benefcio dos homens. Dotava a existncia de sentido e fora interior, mas privava o homem da capacidade de enriquecer e diversificar a base material de sua vida.

    Em conseqncia dessa ambivalncia da aura natural, sua dissoluo produz efeitos igualmente ambivalentes. Exi-lado da natureza, a experincia do homem se atrofia; -ao mes ... mo tempo, atravs do progresso tcnico, seu horizonte de opes se expande.

    por isso que a. atitude de Benjamin com relao ao desenvolvimento tecnolgico ambgua. Ele , por um lado, violncia contra a natureza, a servio das classes dominantes: a dominao sobre os homens mediatizada pela dominao sobre a natureza. "Com a sede de lucros da .. classe dominan-te . . . a tcnica traiu a humanidade e transformou o rito nupcial (com o cosmQs) num banho de sangue". 4:l Por outro 40 w. Benjamin, Das Kunstwerk ... , op. cit._, pg. 479. 41 W. Benjamin, Einbahnst1asse, op. cit., pg. 146. 4Z w. Benjamirt, Ueber einige .. . , op. cit., pg. 646. 4 3 W. Benjamin, Einbahnstrasse, op. cit., pg. 147. '(O

  • lado, ele permite extrair da natureza "as criaes que dormem, como poosiveis, em seu seio. H

    Somente o socialismo permite resolver esse dilema. Ele inaugura um tipo de trabalho qualitativamente novo, que se relaciona com a natureza de forma no-predatria. A natureza de novo tocada pela graa aurtica de olhar o homem, fe-chadas as antigas feridas, e ao mesmo tempo se abre sua atividade produtiva. O trabalho continua sendo, como para Marx, metabolismo entre homem e natureza, mas nesse me-tabolismo os dois polos se comunicam de forma igualitria.

    N~sso, a n ova tcnica se distingue fundamentalmente daan-tiga: ela no "dominao da natureza, e sim a regulamen-ta.o da relao entre homem e natureza". Ir.

    Assim, o velho tema da reconciliao com a natureza, que lateja no pensamento_ ocidental desde a mstica judaica at a tradio hegeliano-marxista, encontra nova expresso na teoria da aura. Benjamin j havia aflorado esse tema em sua teoria da viso alegrica. A natureza se salva _atravs da palavra pela qual o homem a nomeia, e da leitura pela qual o alegrico lhe atribui' significa~s. No entanto,. a aura no pertence esttica da alegoria, e sim esttica do smbolo. F;la: se confunde, num certo sent-ido, com o Schoene Schein, com a bela apa1~ia da arte clssica. Mas a relao do ho- mem com a natureza participa. tanto da es.s.ncia do smbolo como da alegoria. A aura est na origem e no fim: como me-mria, remete ao esta,do anterior corrupo da natureza pelo homem, e como utopia, aponta para a redeno, atravs do novo trabalho e da nova tcnica. Por outro lado, depois da queda, o homem se relaciona com a natureza como o aiegrico com seu objeto: violentando~o, transformando-o em objeto morto, mas preparando, com isso, sua ressurreio no rein de Deus. . .

    A aura da cultura to ambivalente quanto a da natu--reza. Enraizada no mito e na religio, ela impe uma dis~ tncia_ que impede o desvendamento de sua essncia, que a de transfigurar relaes de dominao. Mas . a cultura, exa-

    tam~nte por seu distanciamento aurtico, no se confundia com a realidade, e nesse sentido continha um paradigma frtico e a promessa de uma ordem alm da dominao. Pela

    !! W. Benjamin, Uebe.r den B.egriJ f . .. , op. cit., pg. 699. W. Benjamin, Einbahnstrasse,. op. cit., pg. 147.

    71

  • aura, o homem se relacionava com a tradio e com a his-tria. Essa ambigidade da cultura - por um lado, trans-figuradora de relaes de violncia, e por outro, veculo da tradio e anunciadora da utopia - vai gerar duas conse-qncias divergentes, uma vez dissolvida a aura.

    Ela est a servio do mito, e nesse sentido seu declnio favorvel a um tipo de ao poltica que implica uma ruptura total com o universo mtico. Mas ela est, igualmente, a servio da histria - tanto a retrospectiva, que se chama tradio, como a antecipatria, cujo nome redeno - e nesse sentido seu desaparecimento significa a atrofia da ex-perincia, com todas as suas seqelas, que so a perda da memria, individual e coletiva, e a incapacidade de sonhar o futuro.

    Num texto indito, diz Benjamin: a distncia, que nos olhos do amado, atrai a si o amante, o sonho de uma natureza melhor. O declnio da aura, e o esvaziamento, condicionado pela posio defensiva na luta de classes, da fantasia de uma natureza melhor, so uma s e mesma coisa. 46

    Ao dessacralizar a cultura, o capitalismo sabota essa fan-tasia, extinguindo a aura. O socialismo se instala nesse vazio, encarregando-se de construir um mundo que corresponda s promessas da cultura. De novo, a aura funciona como fer-mento utpico - a utopia de um mundo to prximo que possa se transformar em coisa do homem, to inabordvel que possa preservar seu mistrio.

    Tambm aqui a relao com a cultura a do alegrico com seu objeto. "Sua beleza simblica se evapora .. . O falso brilho da totalidade se extingue. . . O eidos se apaga. . . O cosmos que o habita se esgota". Mas no espao dessa cultura morta que a classe revolucionria constri seu futuro, sem o peso inibidor da tradio. E com isso uma nova cultura

    .pode surgir, dotada de uma ura que, sem perder sua dis-tncia, deixa de ser hostil ao homem.

    Mas se essa interpreta.o mostra que as contradies de Benjamin so uma tentativa de dar conta de um real con-46 Citado por Ro!f Tiedemann, Studien zur Philosophie Walter

    Benja.mins, (Estudos sobre a Filosofia de Walter Benjamin). Frankfurt: Suhrkamp, 1973, pg. 118.

    72

  • traditrio, ela no elimina as dificuldades desse projeto. Nenhum esforo de sutileza dialtica conseguir tornar plau-svel a tese de que um horpem sem passado consiga agtr historicamente, e de que o homem privado, pela perda da experincia, da capacidade de imaginar o futuro, possa cons-truir um futuro pacificado. Ao contrrio, condenado, pela generalidade das situaes de choque, ao aqui e agora da percepo imediata, ele em nada se distingue do homem ad-ministrado, de Adorno e Marcuse, incapaz de pensar a origem, porque perdeu a memria, e incapaz de pensar o novo, por-que sua imaginao se tornou estril

    II

    CHOQUE E MEMRIA

    Segundo nosso mtodo, necessrio agora, depois de par-tir do tema freudiano do choque para explorar certos aspectos do pensamento de Benjamin, repensar esse tema na perspec-tiva mais especfica das relaes entre Benjamin e Freud. Nessa investigao, uma coisa salta de imediato aos olhos: a leitura que Be~jamin faz de Freud no exata.

    Mesmo que nos limitssemos ao texto citado por Ben-jamin- Alm do Princpio do Prazer- poderamos verificar alguns malentendidos.

    Benjamin descreve corretamente a concepo de Freud de que o sistema percepo-conscincia encaminha as exci-taes externas, depois de filtradas pelo Reizschutz, ao in-consciente, onde elas deixam traos mnmicos, ao passo que tais excitaes no deixam vestgios de sua passagem pelo sistema percepo-conscincia. Freud conclui que a memria e o fato de tornar-se consciente so incompatveis, pois ~ excitaes depositadas na memria no so conscientes, e as que se tornam conscientes se evaporam.

    Mas as excitaes aparadas pelo Reizschutz} ao contrrio do que parece supor Benjamin, no produzem nenhum cho-que. Essa interceptao uma forma normal de funciona-mento do Ego, em sua funo de assegurar a preservao do organismo, e assim como ele administra o mundo pulsional, permitindo que certos impulsos cheguem conscincia e motilidade, e adiando ou probindo a gratificao de outros

    73

  • I

    impulsos, o Ego ger.e as relaes com o mundo exterior, atra-vs

  • Alm disso, a frase citada se torna absurda, aceita .essa verso da teoria do choque, pois a excitao, repelida pelo Reizschutz, no pode, por definio, tornar-se consciente, e o acontecimento que o deflagrou no pode receber o "carter de vivncia, no sentido eminente", pela excelente razo de que esse acontecimento foi excludo do campo da conscincia.

    por isso que experimentamos uma certa simpatia por Adorno, que se queixa que "a utilizao da teoria freudiana da memria como Reizschutz no inteiramente lcida". 47 verdade que os comentrios de Adorno so menos lcidos ainda. Mesmo deixando-se de lado que no existe nenhuma teoria freudiana "da memria como Reizschutz", no pode-mos aceitar o comentrio de Adorno de que o esquecimento constitui o verdadeiro elo dialtico entre experincia e vi-vncia. Tecnicamente, essa tese insustentvel, porque se a categoria do esquecimento pode a rigor aplicar-se vivncia - . as impresses que se tornam conscientes se evaporam, isto , so esquecidas - ela no aplicvel esfera da ex-perincia, reino dos traos mnmicos incorruptveis, corres-pondentes a excitaes que no podem ser esquecidas, por-que nunca se tornaram conscientes.

    , Mas devemos guardar-nos do pedantismo de uma inter-pretao literal da tese de Benjamin, que nos levaria a fechar os olhos ao que ela tem de inovador .

    . Poderamos, a ri.gor, torn-la grosso modo compatvel com a teoria de Freud, se partssemos da diferena entre excita-es traumticas e no-traumticas. Confrontando com estas

    . ltimas, como vimos, o E.go exerce normalmente sua funo de defender o organismo contra as energias do mundo exte-rior, excluindo-as quando excessivas, sem receber qualquer choque, sendo evidente que as excitaes repelidas no se tornam conscientes. Em geral, era essa a situao que pre-valecia em outros perodos histricos, nos quais a conscincia e a memria mantinham uma relao equilibrada. A tese de Benjamin seria que, nas condies atuais, as excitaes trau-mticas se tornam muito mais freqentes, e a conscincia est a todo instante exposta a situaes de choque, defla-grado por tais excitaes. Os acontecimentos .traumticos: geradores de choque, forariam a barreira do Reizschutz, tornando-se conscientes, e transformando-se em vivncias.

    7 Theodor W. Adorno, carta a Benjamin, de 29 de fevereiro de 1940, em Ueber lValter Benjamin, op. cit., pg. 158.

    75

  • Uma hiptese complementar, necessria para validar essa interpretao, seria que o contra-investimento de angstia (Angstbereitschaft) fosse ativado com xito, para evitar um estado de desorganizao psquica que no permitiria sequer essas vivncias. Segundo Freud, esse contra-investimento exige uma formidvel mobilizao de todas as energias psi quicas disporveis, "ao preo do empobrecimento de todos os outros sistemas psquicos e portanto ao preo da paralizao ou reduo do conjunt{) da atividade mental". 18 Com isso, seria reintroduzida a idia de Benjamin sobre a atrofia da memria e da experincia, agora no mais em conseqncia da concentrao de todas as energias na defesa contra o choque - pois, nessa nova verso, o choque no seria aparado pelo Reizschutz- mas em conseqncia da mobilizao ener-gtica necessria para ligar as excitaes que forara.m essa barreira. Ficaria preservada a distino entre vivncia e ex-perincia, justificando-se a idia bsica de que os aconteci-mentos geradores de choque so suscetveis de se tornarem conscientes e constituem a matria na qual se estrutura a viv.ncia, e se confirmaria a imagem do homem moderno como um autmato, dotado de um comportamento mera-mente reflexo, incapaz de se vincular ao seu prprio passado e tradio, .porque todas as suas inst-ncias psquicas foram empobrecidas para alimentar o estado de angstia necessrio para neutralizar oo efeitos de choque dos acontecimentos trau-mticos, no-interceptados pelo Reizschutz.

    Mas essa coincidncia aproximativa entre Benjamin e Freud, to penosamente elaborada, se torna de novo pro-blemtica .Se abandonamos Alm do Princpio do Prazer e investigamos outras obras de Freud, a fim de acompanhar o desenvolvimento da teoria do trauma.

    No incio, Freud aceitava a realidade do trauma infantil - geralmente uma cena de seduo - que reativada por uma experincia posterior, ligada associativamente a essa cena, provocaria a neurose. H por assim dizer dois traumas, um, ocorrido na infncia, que se mantm, sem perder sua virulncia, como um corpo estranho, e um segundo, atual, que reativando o primeiro, desencadeia a doena. 49

    +$ S. Freud, Jenseits des Lustprinzips, (Alm do Princpio do Prazer), GW, vol. XIII, pg. 30.

    41l Cf., especialmente. S. Freud e J. Breuer, Studien ueber Hysterie) (Estudos sobre a Histeria), GW, vol. I.

    76

  • Numa segunda fase, a importncia do trauma como fator etiolgico se relativiza. Freud se convence da irrealidade da maioria das cenas d.e seduo, e atribui maior importncia fantasia, que cria ficticiamente essa cena, a partir de expe-rincias sexuais infantis que de fato ocorreram, e que gera os sintomas. A fantasia substitui o trauma como determinante direto da sintomatologia hiStrica. Nessa fase, a concesso mxima que Freud se permite com relao antiga teoria cio choque inclu-lo, juntamente com outros "momentos etiolgicos banais", tais como doena orgnica e esgotamento fsico, entre os fatores capazes de facilitar a ecloso da do-ena, mudando a correlao de foras entre a pulso e o Ego. Um Ego enfraquecido por esses fatores teria menor capaci-dade de resistir ao impulso. "Isto para justificar a aspirao etiolgica de fatores inespecficos como o excesso de trabalho, e o efeito de choque, que sempre tiveram um reconhecimento geral, e que a psicanlise teve que afastar". 50

    Enfim, numa terceira fase, ilustrada justamente no texto citado por Benjamin, Freud retoma, em outra perspectiva, o que ele chama "a velha e ingnua teoria do choque". 51 Nesse texto, como vimos, o choque invocado para explicar a gnese da neurose traumtica. Em: trabalhos posteriores, o trauma assume uma importncia mais geral, sendo visto como fator do processo de recalque. E.ssa fase coincide com a modificao do conceito de angstia. Em seus primeiros ensaios, Freud via na angstia um subproduto do recalque. A representao censurada privada do seu suporte afetivo, que ao se liberar assume a forma da angstia. Mais tarde, Freud inverte a relao, e afirma que a angstia que provoca o recalque. O Ego pressente que a satisfao de um determinado impulso geraria uma situao de perigo externo. A fim de paralizar esse impulso e inibir a descarga correspondente, o Ego per~ mite, em bases experimentais, que a gratificao se inicie, o que gera uma reao de angstia, derivada da percepo do perigo real, sendo essa reao que, funcionando como sinal, deflagra o automat.ismo do prazer-desprazer; que provoca o recalque. 52 O que importante, nessa nova descrio do pro-5o S. Freud, De Endlche und Unendliche Analyse, (Anlise Termi-.

    nvel e Interminvel), GW, vol. XVI, pg. 70. 51 S. Freud, Jenseits . .. , op. cit., pg. 31.

    :~2 Cf. especialmente S. Freud, Neue Folge der Vorlesungen zur Einfuehrung in die Psycho-Anal:yse, (novas Conferncias Intro-dutrias Psicanlise), GW, vol. XV, pg. 96.

    77

  • I

    cesso de recalque, que. a .angstia desencadeada ... pela per-cepo-do perigo -. modelada sobre .antigas. situaes _de_pe. rigo, tambm.. geradoras-. de angstia .. A.-mais antiga .dessas situaes de perigo. o "trauma. do nascimento". Nessa fase primitiva, a angstia teria sido desencadeada, no como sinal, mas como reao ao trauma, e reapareceria, agora como sinal, com a ressurgncia de situaes de perigo que reativam a memria do trauma do nascimento. Freud caracteriza os mo:.. mentes traumticos do nascimento como decorrentes dp acmulo de excitaes, tendo em vista a inexistncia ou de-bilidade do dispositivo de Reizsc:hutz do recm-nascido. !J:;

    Ora, o que caracterstico tanto da primeira como da ltima teoria do trauma que ele pressupe a preservao na memria do momento traumtico e a mobilizao inte-.gral da memria na defesa contra o perigo.

    Assim, na fase de Estudos sobre a Histeria, a doena vista como conseqncia de uma reminiscncia no-liquidada. o choque no ab-reagido, continuando psiquicamente ativo at que um episdio posterior provoque a volta dessa reminis-cncia, sob a forma de smbolo mnmico. o que leva os autores frmula famosa de que "em grande parte o histrico sofre de reminiscncias". 54 Cada sintoma histrico uma reminiscncia no ab-reagida que sofreu um processo de con-verso orgnica. "Se o indivduo no quer ou no pode liber-tar-se do trauma, a recordao dessa impresso adquire por sua vez a importncia de um trauma, e se .transforma na causa de sintomas permanentes de histeria". Gil A terapia con-siste em suspender a eficcia da reminiscncia no-liquidada, pe.rmitiiido que o afeto correspondente se descarregue atravs da palavra ou de um processo de ret-ificao associ.Rtiva.

    Da mesma {arma, na ltima fase da concepo do trauma, a percepo presente em grande parte condicionada pela recordao do trauma passado. A angstia, que deveria ba-sear-se na percepo realista de um perigo atual, deriva, es-sencialmente, da reminiscncia inconsciente de perigos ar-caicos. Significa isto que a realidade exterior .no avaliada em si mesma, e sim em funo de prottipos infntis, hoje 11ll S. Freud, Hemmung, Symptom und Angust, (Inibio, Sintoma e

    Angstia), GW, vol. XIV, pg. 120-121. iH S. Freud e. J. Breuer, Studen . .. , op. cit., pg. 86.

    ~r, S. Freud, Etude Comparative des Paralysies Motrices organiques et Hystriques, O:W, vol. I , pg. 54.

    78

  • inatuais, e que muit~ impulsos que poderiam ser satis-feitps so .repudiados sob .o peso de um passado no superado. HQ rumo. do .. .novo .. m.ovimento pulsional. cai sob a -influncia do automatismo . . . . O impulso toma as mesmas vjas dos que foram outrora recalcados, como se a situao de perigo, agora ultrapassada, persistisse ainda". 56 Tambm nesse caso pode-mos dizer que o indivduo "sofre de reminiscncias''.

    Mas tambm atravs de reminiscncias que o Ego con-segue identificar as situaes de perigo; assegurando a sobre-vivncia do organismo. Sua funo observar o mundo exte-rior, depositando na memria os traos de suas percepes, e so esses traos, por sua vez, que vo ajud-lo em seu tra-balho de mapeamento do real, completando as percepes atuais com a memria de antigas percepes.

    Vale dizer que a memria das experincias passadas por um lado trunca . a.s percepes presentes, impedindo que as novas situaes traumticas sejam corretamente identificadas, deformao contra a qual o Ego tenta proteger-se atravs da prova da realidade; e por outro lado, condio essencial para que o Ego consiga, apesar de tudo, atravs da atividade do pensamento, gerir a vida pulsional de forma a rejeitar im-pulsos cuja gratifica-o possa expor o organismo a situaes de perigo.

    o Ego deve observar o mundo exterior, depositar dele uma imagem fiel sob a forma de traos mnmicos, e atravs da prova da realidade afastar tudo o que nessa imagem resultar o acrscimo de fontes internas de ex-citao . .. Entre um desejo e a ao, nte_rcalou um adia-mento sob a forma da atividade do pensamento, durante a qual utiliza . os resduos mnmicos . da experincia. 117

    . A concluso desse retrospecto bvia. A defesa. contra o trauma-situaes de risco, que poderiam expor o rga:nismo a "choques" - depende diretamente da moblizao da me-mria, a fim .de neutralizar o efeito patognico das reminis-:cncias no-trabalhadas. Se para Benjamin o indivduo se protege contra o choque pondo fora de circuito a memria, para Fretid precisamente atravs da ativao da memria que os contornos da situao geradora de per~gos _podem ser .conheeidosf tornando possvel a defesa contra novos trauma--

    ~; s. Fsreud, Hemmung. : . , op. cit., pg. 185. > S. Freud, Neue Folge . .. , op. cit., pg. 82.

  • i ll I ll I:

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    tismos. Por outro lado, o individuo que . sucumbe ao trauma no um desmemoriado, e sim, muito pelo contrrio, o por-tador de . uma riqueza e~cessiva de memrias inconscientes, que o imp~dem de avaliar realisticamente oo riscos do pre-sente. Tanto na g.nese da situao traumtica como na de-fesa contra ela a memria decisiva, o que torna a tese de Benjamin, que postula o esvaziamento da memria a fim de fazer face s situaes de choque, dificilmente compatvel com a teoria freudiana do trauma, em qualquer de suas formulaes.

    DEGRADAO DA EXPERINCIA E PSICOLOGIA DE MASSAS

    Mas a importncia da teoria benjaminiana da atrofia da memria grande demais para que sua validade esteja su bordinada a uma passagem de Freud que s com muito arti-ficialismo pode ser aplicada crtica da cultura. Afinal, Ben jamin no est falando das tentativas do indivduo isolado

    de proteger.se contra o choque, e sim de uma constelao trans-individual que expe o homem a situaes de perigo, no enquanto indivduo, mas enquanto massa. A prevalncia das situaes de choque ocorre num momento em que a psi-cologia individual est a ponto de ser abolida, em benefcio da psicologia coletiva. .

    Sem dvida, Benjamin conhecia as interpretaes, basea-das em categorias freudianas, dos fenmenos da psicologia das massas. Em seu ensaio sobre Fuchs, por exemplo, afirma que "os recalques produzidos nas massas pela tabuizao da vida sexual estimulam o aparecimento de complexos sado-masoquistas, aos quais os detentores do poder oferecem aque-les objetos que se revelem mais apropriados sua poltica". ;;s Essa frase claramente um eco das anlises de Fromm, que acabavam de ser publicadas na Zeitschrijt juer SozialfCYrs chung, s quais Benjamin se referiu em uma de suas resenhas: "Os trabalhos do I nstitut fuer Sozialforschung convergem numa crtica da conscincia burguesa ... Os trabalhos de Fromm do um amplo quadro terico a essa investigao. Suas pesquisas partem de Freud e de Bachofen ... " 50

    GS W. Benjamin, Eduard Fuchs, der Sammler und der Historiker, (Eduard Fuchs, Colecionador e Historiador), GS, vol. n-2, pg. 496.

    :m W. Benjamin, Ein deutsches Intitut freier Forschung, (Um Ins-tituto Aletno de Livre Pesquisa), GS, vol. lli, pg. 522.

    80

  • Mas no nessa literatura secundria, e sim nas obras em que o prprio Freud especula sobre a psicologia coletiva que devem ser buscadas as verdadeiras analogias com o pensa-mento de Benjamin.

    Explorando essa nova pista, encontramos, de sada, uma correspondncia manifesta entre a viso freudiana do homem massificado e o passante, de Benjamin: nos dois casos, trata-se de um indivduo heternomo, caracterizado por um com-portamento reflexo, e incapaz de pensamento crtico.

    Partimos. do fato bsico de que um indivduo, no interior da massa, experimenta, sob influncia dela, com muita freqncia, uma alterao profunda em sua personali-dade. Sua afetividade se intensifica, e sua capacidade intelectual se reduz extraordinariamente, dois processos que conduzem assimilao aos outros indivduos-mas-sa... (observa-se) uma falta de iniciativa e de inde-pendncia no indivduo, a identidade de suas reaes com a de todos os outros que compe a massa, sua degradao, por assim dizer, condio de indivduo-massa. 60

    A analogia vai alm do nvel descritivo. Pois para Freud, o indivduo massificado se caracteriza por um empobrecimen-to da personalidade, decorrente do fato de que abdicou de uma parte de si mesmo em benefcio de instncias externas. O indivduo renuncia a seu prprio Ego, ou parte dele. Se na melancolia essa atrofia do Ego ocorre atravs da introjeo do objeto - "o objeto lana sua sombra sobre o Ego" - ela ocorre, no caso da psicologia de massas, por um processo de substituio, pelo qual o objeto posto no lugar de uma ins-tncia especfica do Ego, que o Ideal do Ego. O Ideal do Ego consubstancia os valores ideais, introjetados pelo indivduo, e que constituem para ele um paradigma normativo intra-psquico.

    O Ideal do Ego herdeiro da fase narcisista, em que o Ego era. o seu prprio ideal. Mais tarde, o indivduo absorve das influncias do meio todas as exigncias que este impe ao Ego, e que ele no capaz de satisfazer na ntegra. Se na fase infantH o Ego o modelo de si mesmo, na fase adulta esse modelo, ao qual o indivduo tenta se conformar, cons-titudo pela imago paterna, interiorizada por identificao,

    60 S. Freud, Massenpsychologie und Ich-Analyse, (Psicologia de Massas e Anlise do Ego), GW, vol. XIII, pg. 95 e 129.

    81

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    no processo de liquidao do dipo, assim como por todos os substitutos dessa imago, que incluem os educadores, as au-toridades, e os ideajs coletivos.

    A hiptese de Freud que na massa o indivduo renuncia a seu Ideal do Ego em favor do objeto externo, cujo prottipo o lder. O lder passa a representar a soma de todas as perfeies que o Ego narcisista encontrava em si mesmo. Ao mesmo tempo, o indivduo se identifica com todos os outros individuas que passaram por um processo anlogo de aban-dono do Ideal do Ego, investido na pessoa do lder. "Assim concebida, a massa primria se apresenta como uma reunio de indivduos que substituram seu Ideal do Ego pelo mesmo objeto, o que resultou na identificao recproca dos diferen-tes Egos". 61 Podemos dizer que h uma regresso narcisista, e que ao amar e admirar o objeto, esse Ego infantil est amando e admirando a si .mesmo. Em conseqncia, tudo o que o objeto-lder ou sucedneo abstrato - diz ou faz est, por definio, imune crtica.

    Simultaneamente com esse abandono do Ego ao objeto, que em nada se distingue do abandono sublime a uma idia abstrata, cessam as funes atribudas quilo que o Ego considera como o ideal com o qual desejaria l.lllair sua personalidade. A crtica se cala: tudo o que o objeto faz e exige bom irrepreensvel. . . O objeto tomou o lugar do que era o Ideal do Ego. sz

    A partir de "O Ego e o Id" (1923) a expresso "Ideal do Ego" desaparece, e surge o termo Superego, que inclui, alm da formao dos ideais, a conscincia moral e a auto-obser-vao. O Supcrego a instncia paterna introjetada, e con-tinua exercendo as trs principais funes paternas : a de propor modelos, a de formular proibies, e a de observar o comportamento do individuo, para proteg-lo ou para puni-lo. Podemos reformular, luz desse novo conceito, a psicologia coletiva de Freud, e dizer que n a massa o objeto ocupou o lugar do Superego, em sua trplice funo, ou , o que resulta no mesmo, que o Superego extrovertido, e investido no objeto.

    Em outras palavras, os indivduos massificados se empo-brecem radicalmente, pois so privados de uma instncia que lhes assegurava, embora ambiguamente, alguma autonomia. tll S. Freud, ib., pg. 128. HZ S. Freud, ib., pg. 125.

    82

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    O Superego, embora rep.resente, atravs do pai introjetado, a normatividade .social, representa tambm uma perspectiva de negao: ele censura o desejo, por ser contrrio ao modelo, mas pode tambm, pela mesma razo, censurar o social. E se empobrecem, mais fundamentalmente, porque com a perda do Superego se privam da instncia que assegurava a conti-nuidade da tradio. Perdem a memria histrica, e so con-denados ao eterno presente de um psiquismo incapaz de transcender o aqui e agora da identificao narcisista com a autoridade.

    Com efeito, e aqui que a tese de Benjamin encontra seu:; verdadeiros fundamentos psicolgicos,

    O Superego de uma criana constitudo segundo o mo-delo, no de seus pais, mas do Superego dos seus pais; os contedos que o preenchem so os mesmos, e com isso o Superego se transforma no veculo da tradio e de todos os julgamentos de valor durveis que se propaga-ram dessa forma, de gerao em gerao . . . As teorias materialistas da histria falham em subestimar esse fator. Elas o pem de lado, afirmando que as ideologias huma-nas nada mais so que o produto e a superestrutura de suas condies econmicas contemporneas. Isto ver-dade, mas provavelmente no toda a verdade. A huma-nidade nunca vive inteiramente no presente. O passado, a tradio da raa e do povo, vive nas ideologias do Superego, e s muito lentamente cedem s influncias do presente e a novas transformaes; e enquanto opera-rem atravs do Superego, desempenharo uma parte importante na vida humana, independentemente das condies econmicas. Ga

    Se assim , ao abrir mo de seu Superego, extrojetando-o em instncias externas de dominao, o indivduo-massa est abrindo mo no somente do seu rgo de crtica, como tam-bm do seu rgo de memria histrica: torna-se heternomo e, na linguagem de Benjamin, esvazia-se de sua experincia. O passante que caminha pela multido, dando e recebendo choques, isto , agindo reflexamente e provocando nos outros passantes um comportamento igualmente reflexo, idntico ao indivduo massificado, de Freud, tambm privado de ex-perincia, cujo Ego, atrofiado pela regresso narcisista, in-capaz de se relacionar com o mundo exterior, deixando nele

    63 S. Freud, Neue Folge . .. , op. cit., pg. 73-74.

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  • os seus traos, e cujo Superego, extrojetado, incapaz de proporcionar os impulsos para uma reflexo contestadora.

    Se o pa.ssante no deixa seus traos no mundo porque retirou seu interesse do mundo, desinvestindo-o, e se o de sinveste porque seu narcisismo o impede de sair de si mesmo. Se o mundo no deixa traos no passante, porque ele foi privado de qualquer capacidade de registrar a histria. E com isso a tese de Benjamin, que no pode ser fundada segundo as categorias da psicologia individual, passa a fundar-se nas categorias da psicologia coletiva.

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    4 . DO SONHO A SINTAXE DO MUNDO

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    Os SoNHos SEM DEsEJo

    O tema do sonho central para Benjamin. Seu livro Ein bahnstrasse um verdadeiro protocolo de sonhos, e sa-bemos, por sua correspondncia, que esse tema ocupava um lugar importante em sua vida pessoal. Essa importncia pode ser avaliada pelo fato de que dedicou uma carta inteira a Gretel Adorno para narrar um dos seus sonhos, e isto numa poca e num lugar em que presumivelmente devia estar preo-cupado com realidades mais tangveis: a carta foi escrita em fins de 1939, depois de declarada a guerra, no campo de inter-namento em que foi aprisionado pelo governo francs. 1

    Em sua descrio, eS.ses sonhos no diferem dos narrados por Freud, nos mltiplos exemplos que aparecem na Inter-pretao dos Sonhos. Em alguns casos, as analogias so evi-dentes. Num deles, Benjamin v um templo mexicano, des-coberto durante uma escavao: Anaquivitzl. Decompondo a palavra em seu.s elementos constitutivos, Benjamin encontra Ana = o: v o: , vitzli = vida, e Witz = pilheria. 2 um procedi-mento de condensao verbal anlogo ao sonho de tipo Auto-didasker, de Freud, que combina os elementos auto, autodi-data, e Lasker, (poltico alemo contemporneo de Bismarck), 1 W. Benjamin, carta de 12 de outubro de 1939, a Gretel Adorno,

    em Briete (Cartas), ed. por Theodor W. Adorno e Gerschom Sho-lem, Frankfurt: Suhrkamp 1978, vol. II, pg. 828-831.

    2 W. Benjamin, Einbahnstrasse (Rua de Mo nica) , OS, vol. IV-1, pg. 101.

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