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7/16/2019 19-Juventude-Conteporaneidade-Revista-Brasileira-de-Educaçã http://slidepdf.com/reader/full/19-juventude-conteporaneidade-revista-brasileira-de-educaca-56338833c1d4b 1/272 Revista Brasileira de Educação 1 Revista Brasileira de Educação Editorial Juventude, tempo e movimentos sociais Alberto Melucci O jovem como modelo cultural Angelina Teixeira Peralva Considerações sobre a tematização social da  juventude no Brasil Helena Wendel Abramo Estudos sobre juventude em educação Marilia Pontes Sposito Jovens urbanos pobres: anotações sobre escolaridade e emprego  Jerusa Vieira Gomes Escola noturna e jovens Maria Ornélia da Silveira Marques O trabalho, busca de sentido Guy Bajoit, Abraham Franssen O jovem no mercado de trabalho Heloísa Helena Teixeira de Souza Martins O trabalho como escolha e oportunidade Antonio Chiesi, Alberto Martinelli Juventude temporera: relações sociais no campo chileno depois do dilúvio Gonzalo Falabella 3 5 15 25 37 53 63 76 96 110 126 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6 ISSN 1413-2478 Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação Número especial Juventude e contemporaneidade Angelina Teixeira Peralva Marilia Pontes Sposito organizadoras 

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Revista Brasileira de Educação 1

Revista Brasileira de Educação

Editorial

Juventude, tempo e movimentos sociais

Alberto Melucci 

O jovem como modelo culturalAngelina Teixeira Peralva 

Considerações sobre a tematização social da juventude no BrasilHelena Wendel Abramo 

Estudos sobre juventude em educação

Marilia Pontes Sposito 

Jovens urbanos pobres: anotações sobreescolaridade e emprego Jerusa Vieira Gomes 

Escola noturna e jovensMaria Ornélia da Silveira Marques 

O trabalho, busca de sentidoGuy Bajoit, Abraham Franssen 

O jovem no mercado de trabalhoHeloísa Helena Teixeira de Souza Martins 

O trabalho como escolha e oportunidadeAntonio Chiesi, Alberto Martinelli 

Juventude temporera: relações sociais no campochileno depois do dilúvioGonzalo Falabella 

3

5

15

25

37

53

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76

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126

Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6ISSN 1413-2478

Associação Nacionalde Pós-Graduação e Pesquisaem Educação

Número especialJuventude e contemporaneidadeAngelina Teixeira Peralva 

Marilia Pontes Sposito 

organizadoras 

7/16/2019 19-Juventude-Conteporaneidade-Revista-Brasileira-de-Educaçã

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2 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

De estudantes a cidadãos: redes de jovens eparticipação políticaAnn Mische 

Jovens dos anos noventa: à procura de uma

política sem “rótulos”Anne Müxel 

Transgressão, desvio e drogaCarlo Buzzi 

As gangues e a imprensa: a produção de um mitonacionalMartín Sánchez-Jankowski 

Juventude(s) e periferia(s) urbanas

Eloisa Guimarães 

Short cuts : histórias de jovens, futebol econdutas de riscoLuis Henrique de Toledo 

Espaço AbertoQuando o sociólogo quer saber o que é serprofessor: entrevista com François DubetAngelina Teixeira Peralva, Marilia Pontes Sposito 

ResenhasNotas de LeituraResumos/AbstractsNormas para ColaboraçõesAssinaturas

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151

167

180

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Revista Brasileira de Educação 3

Editorial

infantil e juvenil. Hoje, em um

momento reconhecidamente

marcado pelo prolongamento

geral da esperança da vidaescolar, o trabalho

paradoxalmente já não se

apresenta para o jovem apenas

como constrangimento do qualcabe liberá-lo, mas como

exigência de autonomia

individual. Vários artigos — os

de Jerusa Vieira, Heloísa

Martins, Ornélia Marques, ou

de Chiesi e Martinelli — tratamaqui deste tema. Mas vale

talvez destacar que as chances

de inserção no mercado de

trabalho — e, portanto, de

construção dessa autonomia —são diversificadas em

decorrência de características

da economia e do peso do

desemprego, dramático como é

o caso da Bélgica, analisadopor Guy Bajoit e Abraham

Franssem, que dispõe de

proteção social, mas onde a

sombra do Estado obscurece em

parte as chances do indivíduoinventar seu próprio futuro.

O caráter aleatório,

indeterminado e imprevisível,

constituem elementos centrais

dessas transformações, que

afetam os jovens, mais do que

outras categorias da população,simplesmente porque se trata

de uma história que está

nascendo com eles.

São mudanças gerais, que

se observam simultaneamenteem diversos lugares, embora

cada sociedade as construa sob

uma forma própria e de acordo

com tradições particulares. E

posto que se trata de abrir umdebate, onde o jovem apareça aum só tempo como objeto de

análise, beneficiário de

iniciativas da sociedade civil ou

de políticas públicas, conforme

trata artigo de Helena Abramo,e revelador de tendências

emergentes, pareceu-nos

importante trazer a público,

além de reflexões sobre o caso

brasileiro, outras, capazes deapontar o estado da discussão

nos demais países. Ora, o

paralelismo em cada um dos

campos examinados não deixa

de surpreender.

Historicamente, a escolase construiu contra o trabalho

Depois de um período de

latência, os estudos sobre

juventude reemergem lentamente

no cenário acadêmicobrasileiro. Com este número, a

Revista Brasileira de Educação

pretende contribuir para a

aceleração dessa tendência. Elanos parece capital, não somente

para a compreensão dos

problemas específicos de um

grupo etário particular —

aquele que as definições

institucionais em uso situam nafaixa dos 15 aos 24 anos —,

mas também para a elucidação

de alguns dos mais importantes

problemas da atualidade.

Em um breve lapso de

tempo, mudanças cruciais seimpuseram a nós. A rapidez

com que se processaram tornou

nossa sociedade opaca. A tal

ponto, que experimentamos

hoje uma aguda consciência donovo, e da obsolescência de

uma parte pelo menos das

categorias através das quais

várias gerações de cientistas

sociais e educadores pensaramo mundo. O trabalho, a escola,

os valores, a política

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que define um modelo

emergente de relação com otrabalho, parece definir

também uma nova relação com

a política. Enquanto os

instrumentos clássicos de umapolítica representativa (partidose sindicatos) se debilitam, a

política é, não obstante,

reinventada, conforme

sugerem, a partir de

experiências diversas, AlbertoMelucci, Gonzalo Fallabela,

Anne Müxel e Ann Mische.

Em um mundo onde a

violência se juveniza, nãopoderíamos deixar de abordar

também esse tema. A partir desurvey realizado na Itália em

1992, Carlo Buzzi sugere os

limites das condutas

transgressivas da juventude.Martín Sánchez-Jankowski

aponta, mais além da realidade

material das gangues

americana, o papel da imprensana reconstrução pública dessefenômeno. Eloisa Guimarães e

Luis Henrique de Toledo

abordam, através das galeras

cariocas e da violência no

futebol, casos que têmdespertado a atenção dos

brasileiros.

Encerra este número, que

se pretende apenas um começo,entrevista com François Dubet.

Sociólogo travestido deprofessor de um colégio

público da periferia de

Bordeaux, ele quis saber o que

é, na prática, ensinar paraadolescentes pobres em uma

escola pública de massas.

Em todos os casos, não se

trata aqui de concluir nada. Ostemas aqui abordados são

questões em aberto, tratadassob óticas teóricas e pontos de

vista diversos. Nossa intenção

foi resgatar a relevância dessa

área de estudos e contribuir

para uma discussão que nosparece importante e que apenas

está começando.

Angelina Teixeira Peralva

Marilia Pontes Sposito

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Revista Brasileira de Educação 5

As atuais tendências emergentes no âmbito dacultura e da ação juvenil têm que ser entendidas a

partir de uma perspectiva macro-sociológica e, si-

multaneamente, através da consideração de expe-

riências individuais na vida diária. Neste ensaio,tentarei integrar esses dois níveis de análise e pro-porei que:

1) conflitos e movimentos sociais em socieda-

des complexas mudam do plano material para o

plano simbólico;

2) a experiência do tempo é um problema cen-

tral, um dilema central;

3) pessoas jovens, e particularmente adolescen-

tes, são atores-chaves do ponto de vista da questão

do tempo em sociedades complexas.

Da ação efetiva ao desafio simbólico

Vivemos em uma sociedade que concebe a si

mesma como construída pela ação humana. Em sis-

temas contemporâneos, a produção material é trans-

formada em produção de signos e de relações sociais.

Uma codificação socialmente produzida intervém

Juventude, tempo e movimentos sociais

Alberto Melucci 

Universidade degli Studi di Milano

Tradução de Angelina Teixeira Peralva 

Publicado em: Revista Young. Estocolmo: v. 4, nº 2, 1996, p. 3-14.

na definição do eu, afetando as estruturas biológi-ca e motivacional da ação humana. Ao mesmo tem-

po, existe uma crescente possibilidade, para os ato-

res sociais, de controlarem as condições de forma-

ção e as orientações de suas ações. A experiência écada vez mais construída por meio de investimen-tos cognitivos, culturais e materiais. Tais processos,

de caráter sistêmico, são diretamente vinculados às

transformações, pela produção de recursos que tor-

nam possível a sistemas de informação de alta den-

sidade manterem-se e modificarem-se.

A tarefa não é somente da ordem da domina-ção da natureza e da transformação de matéria-

prima em mercadoria, mas sim do desenvolvimen-

to da capacidade reflexiva do eu de produzir infor-mação, comunicação, sociabilidade, com um au-

mento progressivo na intervenção do sistema na suaprópria ação e na maneira de percebê-la e repre-

sentá-la. Podemos mesmo falar de produção da

reprodução.

Tome-se o exemplo dos processos de sociali-

zação: o que foi considerado no passado como trans-

missão básica de regras e valores da sociedade é

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agora visto como possibilidade de redefinição e in-

venção das capacidades “formais” de aprendizado,

habilidades cognitivas, criatividade. Do ponto devista do planejamento demográfico e da biogenética

o que era considerado reprodução de aspectos na-

turais de um sistema tornou-se um campo de inter-venção social. A ciência desenvolve a capacidade

auto reflexiva de modificação da “natureza inter-na”, das raízes biológicas, cognitivas e motivacio-

nais da ação humana.

Isto revela os dois lados da mudança na nos-

sa sociedade. Por um lado, existe um aumento da

capacidade social de ação e de intervenção na ação

enquanto tal, nas suas pré-condições e raízes; e poroutro, a produção de significados está marcada pela

necessidade de controle e regulação sistêmica.Os indivíduos percebem uma extensão do po-

tencial de ação orientada e significativa de que dis-

põem, mas também se dão conta de que tal possi-

bilidade lhes escapa, graças a uma regulação capi-lar de suas capacidades de ação, que afeta suas raí-

zes motivacionais e suas formas de comunicação.

Os sistemas complexos nos quais vivemos consti-

tuem redes de informação de alta densidade e têm

que contar com um certo grau de autonomia de seus

elementos. Sem o desenvolvimento das capacidadesformais de aprender e agir (aprendendo a aprender),

indivíduos e grupos não poderiam funcionar como

terminais de redes de informação, as quais têm que

ser confiáveis e capazes de auto-regulação. Ao mes-mo tempo, seja como for, uma diferenciação pro-

nunciada demanda maior integração e intensifica-

ção do controle, que se desloca do conteúdo para

o código, do comportamento para a pré-condição

da ação.

O que eu quero dizer é que sociedade não é atradução monolítica de um poder dominante e de

regras culturais na vida das pessoas, ela lembra um

campo interdependente constituído por conflitos e

continuamente preenchido por significados cultu-

rais opostos. Os conflitos se desenvolvem naquelasáreas do sistema mais diretamente expostas aos

maiores investimentos simbólicos e informacionais,

ao mesmo tempo sujeitas às maiores pressões por

conformidade. Os atores nesses conflitos são aque-

les grupos sociais mais diretamente expostos aos

processos que indiquei; eles são cada vez mais tem-porários e sua ação serve de indicador, como se

fosse uma mensagem enviada à sociedade, a respeito

de seus problemas cruciais.A maneira pela qual os conflitos se expressam

não é, de qualquer forma, a da ação ‘efetiva’. De-

safios manifestam-se através de uma reversão decódigos culturais, tendo então basicamente um “ca-

ráter formal”. Nos sistemas comtemporâneos os

signos tornaram-se intercambiáveis: o poder apoia-

se de forma crecente nos códigos que regulam o flu-

xo de informação. A ação coletiva de tipo antago-nista é uma forma, a qual, pela sua própria existên-

cia, com seus próprios modelos de organização e ex-pressão, transmite uma mensagem para o resto da

sociedade. Os objetivos instrumentais típicos de ação

política não desaparecem, mas tornam-se pontuais,e em certa medida, substituíveis. Eu chamo essas

formas de ação desafios simbólicos. Elas afetam as

instituições políticas, porque modernizam a cultu-

ra e a organização dessas instituições, e influenciam

a seleção de novas elites. Mas ao mesmo tempo le-vantam questões obscurecidas pela lógica dominan-

te da eficiência. Trata-se de uma lógica de meios:requer aplicação e operacionalização de decisões

tomadas em nível de aparelhos anônimos e impes-

soais. Mais uma vez os atores através dos conflitoscolocam na ordem do dia a questão dos fins e do

significado.

Mas pode-se continuar a falar de “movimen-

tos” quando a ação se refere a significados, a desa-

fios face aos códigos dominantes que dão forma à

experiência humana? Mais apropriado seria falarde redes conflituosas que são formas de produção

cultural.

Experiência de tempo

Em uma sociedade que está quase que inteira-

mente construída por nossos investimentos cultu-

rais simbólicos, tempo é uma das categorias bási-

cas através da qual nós construímos nossa experiên-

Alberto Melucci

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Revista Brasileira de Educação 7

cia. Hoje, o tempo se torna uma questão-chave nos

conflitos sociais e na mudança social. A juventude

que se situa, biológica e culturalmente, em uma ín-tima relação com o tempo, representa um ator cru-

cial, interpretando e traduzindo para o resto da so-

ciedade um dos seus dilemas conflituais básicos.Viemos de um modelo de sociedade, o capita-

lismo industrial, no qual o tempo era considerado

em termos de duas referências fundamentais. A pri-meira é a máquina. O tempo que a sociedade mo-

derna conhece é medido por máquinas: relógios são

máquinas por excelência. A máquina cria uma nova

dimensão do tempo: não mais “natural” (isto é,

marcado somente pelos ciclos do dia e noite, as es-tações, nascimento e morte) e não mais “subjeti-

vo”(isto é, ligado à percepção e experiência dos ato-res humanos). O tempo da máquina é um produto

artificial que tem a objetividade de uma coisa. É

também uma medida universal que permite compa-ração e troca de desempenhos e recompensas, atra-

vés do dinheiro e do mercado. Tempo é uma medi-

da de quantidade: nos ritmos diários de trabalho

como nos balancetes anuais das empresas. Aliás, em

qualquer cálculo pautado na racionalidade instru-mental, a máquina estabelece uma continuidade en-

tre tempo individual e tempo social.A segunda característica da experiência moder-

na de tempo é uma orientação finalista: tempo tem

direção e o seu significado só se torna inteligível a

partir de um ponto final, o fim da história. A pró-pria idéia de um curso da história, a ênfase com que

a sociedade industrial tratou a história, deriva de

um modelo de tempo que pressupõe uma orienta-

ção para um fim: progresso, revolução, riqueza das

nações ou a salvação da humanidade (um tempolinear que se move em direção a um fim é a última

herança dessacralizada de um tempo cristão). Existe

então uma unidade e uma orientação linear do tem-

po; e o que ocorre nele, o que o indivíduo experi-

menta, adquire sentido em relação ao ponto final:todas as passagens intermediárias são medidas em

relação com o final do tempo.

Na situação presente, podemos perceber nos-

sa distância com respeito a esse modelo porque a

diferenciação das nossas experiências do tempo está

aumentando. Os tempos que nós experimentamos

são muito diferentes uns dos outros e às vezes pa-recem até opostos. Há tempos muito difíceis de me-

dir — tempos diluídos e tempos extremamente con-

centrados. Pense na multiplicidade de tempos queimagens (televisão, gráficos, propaganda) introdu-

zem na nossa vida diária. Isto também significa se-parações, interrupções mais definidas que no pas-

sado — muito mais perceptíveis do que em estru-

turas sociais relativamente homogêneas — entre os

diferentes tempos em que nós vivemos.

Existe particularmente uma clara separação

entre tempos interiores (tempos que cada indivíduovive sua experiência interna, afeições, emoções) e

tempos exteriores marcados por ritmos diferentese regulado pelas múltiplas esferas de pertencimento

de cada indivíduo. A presença dessas diferentes ex-

periências temporais não é novidade, mas certamen-te em uma sociedade rural ou mesmo na sociedade

industrial do século XIX, existiu uma certa integra-

ção, uma certa proximidade entre experiências sub-

jetivas e tempos sociais, e entre os vários níveis dos

tempos sociais. Em sistemas mais altamente diferen-ciados, a descontinuidade tornou-se uma experiên-

cia comum.Tais mudanças refletem tendências amplas no

sentido de uma extensão artificial das dimensões

subjetivas do tempo por meio de estímulos parti-

culares ou de situações construídas. Uma experiên-cia comum de dilatação forçada do tempo interno

é produzida por drogas. Drogas ocupam um lugar

importante em sociedades tradicionais, mas nos li-

mites de uma ordem que lhes atribui uma função

específica. Não há separação entre a droga ritualdos índios americanos e seu papel na vida social e

na vida interior dos indivíduos. Essa “fratura” ri-

tual permitida, essa dilatação do tempo subjetivo

induzida pela droga, é parte de uma ordem sagra-

da e contribui para a reafirmação de um equilíbrioentre a vida social e o espaço assegurado ao indiví-

duo no grupo.

Nas nossas sociedades, no entanto, o extremo

exemplo das drogas representa um sinal dramáti-

 Juventude, tempo e movimentos sociais

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co, o mais significativo e ambíguo sintoma de dife-

rença entre tempo externo e tempo interno. Mas

existe também, embora em uma escala menos dra-mática, um aumento de oportunidades artificial-

mente construídas para viver e experimentar emo-

ções livres dos limites do tempo social: desde o tu-rismo exótico ou experiências de “liberação” do

corpo até os paraísos totalitários das seitas neo-místicas. A ambivalência desses fenômenos deve ser

sublinhada. Eles são sinais de uma tensão não re-

solvida entre os múltiplos tempos da experiência

cotidiana.

A diferenciação do tempo produz alguns pro-

blemas novos. Aumenta, em primeiro lugar, a difi-culdade em reduzir tempos diferentes para a homo-

geneidade de uma medida geral. Mas existe tambémuma acentuação da necessidade de integrar essas

diferenças, tanto em um nível coletivo, quanto,

acima de tudo, dentro da unidade de uma biogra-fia individual e de um “sujeito” da ação dotado de

identidade (Melucci, 1996a; Csikzentmihalyi, 1988

e 1991).

Além disso, um tempo diferenciado é cada vez

mais um tempo sem uma história, ou melhor, um

tempo de muitas histórias relativamente indepen-

dentes. Então é também um tempo sem um finaldefinitivo, o que faz do presente uma medida ines-

timável do significado da experiência de cada um

de nós. Por último, um tempo múltiplo e descontí-

nuo indubitavelmente revela seu caráter ‘construí-do’ de produto cultural. A fábrica industrial já can-

celou o ciclo natural de dia e noite. Agora todos os

outros tempos da natureza estão perdendo sua con-

sistência. A experiência das estações se dissolve nas

mesas de nossas salas de jantar, onde a comida per-de qualquer referência a ciclos sazonais, ou em nos-

sas férias, que nos oferecem um sol tropical ou neve

durante todo o ano. Até o nascimento ou a morte,

eventos por excelência do tempo natural estão per-

dendo sua natureza de necessidade biológica, tor-nando-se produtos de intervenção médica e social.

A definição de tempo torna-se uma questão

social, um campo cultural e conflitivo no qual está

em jogo o próprio significado da experiência tem-

poral. Como medir o tempo? Quando será encon-

trado o significado ‘certo’ para o tempo individual

e coletivo? Como podemos preservar nosso passa-do e preparar o nosso futuro em sociedades com-

plexas? Tais questões sem respostas são alguns dos

dilemas básicos com os quais se confronta a vidahumana em sociedades complexas.

A juventude, por causa de suas condições cul-

turais e biológicas, é o grupo social mais diretamen-te exposto a estes dilemas, o grupo que os torna

visíveis para a sociedade como um todo.

Adolescência e tempo

Adolescência é a idade na vida em que se co-

meça a enfrentar o tempo como uma dimensão sig-nificativa e contraditória da identidade. A adoles-

cência, na qual a infância é deixada para trás e osprimeiros passos são dados em direção à fase adulta,

inaugura a juventude e constitui sua fase inicial. Esta

elementar observação é suficiente para ilustrar o

entrelaçamento de planos temporais e a importân-

cia da dimensão do tempo nesta fase da vida (Le-vinson, 1978; Coleman, 1987; Hopkins, 1983;

Montagnar, 1983; Savin Williams, 1987; Schave,

1989). Não há dúvida que, se a experiência do en-velhecimento está sempre relacionada com o tem-

po, é durante a adolescência que essa relação setorna consciente e assume conotações emocionais.

Pesquisas psicológicas e psico-sociológicas têm tido

uma atenção toda especial durante os últimos anos

para com a perspectiva temporal do adolescente

(Tromsdorff et al., 1979; Palmonari, 1979; Nuttin,1980; Ricolfi & Sciolla, 1980 e 1990; Offer, 1981

e 1988; Cavalli, 1985; Ricci Bitti et al., 1985; Ana-

trlla, 1988; Fabbrini & Melucci, 1991).

Uma análise em termos de perspectiva tempo-

ral considera o tempo como um horizonte no qual

o indivíduo ordena suas escolhas e comportamen-to, construindo um complexo de pontos de referên-

cia para suas ações. A maneira como a experiência

do tempo é vivenciada vai depender de fatores cog-

nitivos, emocionais e motivacionais os quais gover-

nam o modo como o indivíduo organiza o seu “es-

Alberto Melucci

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Revista Brasileira de Educação 9

tar na terra”. Nesse sentido, atitudes relacionadas

com várias fases temporais podem ser levadas em

consideração (ex. satisfação ou frustração, abertu-ra ou fechamento com respeito ao passado, presente

ou futuro); ou a direção que cada pessoa atribui

para a sua própria experiência do tempo (ex. pre-ferência por uma orientação direcionada para uma

ou outras fases temporais); ou o grau de extensãoassumido pelo horizonte temporal para cada indi-

víduo (ex. perspectiva ampla ou limitada, contínua

ou fragmentada). A organização de eventos e sua

seqüência, a relação entre eventos externos e inter-

nos, o grau de investimento emocional em váriassituações — tudo se torna meio de organizar a pró-

pria biografia e definir a própria identidade.

A perspectiva temporal do adolescente tornou-se um tema interessante de pesquisa, porque a bio-

grafia dos dia de hoje tornou-se menos previsível,

e os projetos de vida passaram mais do que nuncaa depender da escolha autônoma do indivíduo. Nas

sociedades do passado, a incerteza quanto ao futuro

podia ser o resultado de eventos aleatórios e in-

controláveis (epidemia, guerra, colapso econômico),

mas raramente envolvia a posição de cada um navida, a qual era determinada pelo nascimento e se

tornava previsível pela história da família e o con-texto social. Para o adolescente moderno, por ou-

tro lado, a relativa incerteza da idade é multiplicada

por outros tipos de incerteza que derivam simples-mente dessa ampliação de perspectivas: a disponi-

bilidade de possibilidades sociais, a variedade de

cenários nos quais as escolhas podem ser situadas.

A pesquisa indica várias tendências. A adoles-

cência é a idade em que a orientação para o futuro

prevalece e o futuro é percebido como apresentan-do um maior número de possibilidades. Uma pers-

pectiva temporal aberta corresponde a uma forte

orientação para a auto-realização, resistência con-

tra qualquer determinação externa dos projetos de

vida e desejo de uma certa variabilidade e rever-sibilidade de escolha. Em comparação com o pas-

sado, a tendência aponta no sentido de uma redu-

ção dos limites da memória e de se considerar o

passado como um fator limitativo, acima de tudo.

Tais resultados de pesquisas sugeririam que a

perspectiva temporal do adolescente constitui um

ponto de observação favorável para o estudo damaneira pela qual nossa cultura está organizando

a experiência do tempo. Na sociedade contempo-

rânea, de fato, a juventude não é mais somente umacondição biológica mas uma definição cultural. In-

certeza, mobilidade, transitoriedade, abertura paramudança todos os atributos tradicionais da adoles-

cência como fase de transição, parecem ter se des-

locado bem além dos limites biológicos para torna-

rem-se conotações culturais de amplo significado

que os indivíduos assumem como parte de sua per-sonalidade em muitos estágios da vida (Mitterauer,

1986; Ziehe, 1991). Nesse sentido, a adolescência

parece estender-se acima das definições em termosde idade e começa a coincidir com a suspensão de

um compromisso estável, com um tipo de aproxima-ção nômade em relação ao tempo, espaço e cultura.

Estilos de roupas, gêneros musicais, participação em

grupos, funcionam como linguagens temporárias e

provisórias com as quais o indivíduo se identifica

e manda sinais de reconhecimento para outros.

Na opinião que prevalece nos dias de hoje, serjovem parece significar plenitude como o oposto de

vazio, possibilidades amplas, saturação de presen-ça. A vida social é hoje dividida em múltiplas zo-

nas de experiência, cada qual caracterizada por for-

mas específicas de relacionamento, linguagem e re-gras. Complexidade e diferenciação parecem abrir

o campo do possível a tal ponto que a capacidade

individual para empreender ações não se mostra à

altura das potencialidades da situação. Esse exces-

so de possibilidades, que nossa cultura engendra,amplia o limite do imaginário e incorpora ao hori-

zonte simbólico regiões inteiras de experiência que

foram previamente determinadas por fatores bio-

lógicos, físicos ou materiais. Nesse sentido, a expe-

riência é cada vez menos uma realidade transmiti-da e cada vez mais uma realidade construída com

representações e relacionamentos: menos algo para

se “ter” e mais algo para se “fazer”.

O adolescente percebe os efeitos dessa amplia-

ção de possibilidades da maneira mais direta atra-

 Juventude, tempo e movimentos sociais

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10 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

vés de uma expansão dos campos cognitivo e emo-

cional (tudo pode ser conhecido, tudo pode ser ten-

tado); a reversibilidade de escolhas e decisões (tudose pode mudar); a substituição de constructos sim-

bólicos pelo conteúdo material da experiência (tudo

pode ser imaginado).O que acontece com a experiência? Ultrapas-

sada e invadida pelo apelo simbólico da possibili-

dade, ela ameaça se perder em um presente ilimi-tado, sem raízes, devido à uma memória pobre, com

pouca esperança para o futuro como todos os pro-

dutos do desencanto. A experiência se dissolve no

imaginário, mas o teste de realidade, na sua dure-

za, produz frustração, tédio e perda de motivação.

Os novos sofrimentos, as novas patologias dos

adolescentes, estão relacionadas com o risco de umadissolução da perspectiva temporal (Laufer, 1975;

Copley, 1976; Selvini Palazzoli, 1984; Lawton, 1985;

Meredith,1986; Noonan,1989). Presenças como a

capacidade de atribuir sentido às próprias ações ede povoar o horizonte temporal com conexões entre

tempos e planos de experiências diferentes, são frá-

geis e pouco sólidas. Exatamente ali onde a abundân-

cia, a plenitude e capacidade de realização parecem

reinar, nós nos deparamos com o vazio, a repetição

e a perda do senso de realidade. Um tempo de pos-sibilidades excessivas torna-se possibilidade sem tem-

po, isto é, simplesmente um mero fantasma da dura-

ção, uma chance fantasma. O tempo pode se tornar

um invólucro vazio, uma espera sem fim por Godot.

Na experiência dos adolescentes de hoje, a ne-cessidade de testar limites tornou-se uma condição

de sobrevivência do sentido. Sem atingir-se o limi-

te não pode haver experiência ou comunicação; sem

a consciência da perda da existência do outro, como

dimensões que compõem o estar-na-terra, não podehaver ação dotada de significado ou possibilidade

de manter uma relação com outros.

Consciência do limite, o cansaço produzido

pelo esforço para ultrapassá-lo, a percepção do que

está faltando — sentido de perda — criam raízes

para que se presencie como algo possível a aceita-ção do presente e o planejamento do futuro: como

responsabilidade para consigo mesmo e para com

outros, como reconhecimento daquilo que fomos e

do que podemos nos tornar. Para os adolescentes

de hoje a experiência de tempo como possibilida-de, mas também como limitação, é uma maneira de

salvaguardar a continuidade e a duração; uma ma-

neira de evitar que o tempo seja destruído em umaseqüência fragmentada de pontos, uma soma de

momentos sem tempo.

Continuidade através da mudança

Está agora claro que a maneira pela qual osadolescentes constróem sua experiência é mais e

mais fragmentada. Adolescentes pertencem a uma

pluralidade de redes e de grupos. Entrar e sair des-

sas diferentes formas de participação é mais rápi-do e mais freqüente do que antes e a quantidade detempo que os adolescentes investem em cada uma

delas é reduzida. A quantidade de informação que

eles mandam e recebem está crescendo em um rit-

mo sem precedentes. Os meios de comunicação, o

ambiente educacional ou de trabalho, relações inter-pessoais, lazer e tempo de consumo geram mensa-

gens para os indivíduos que por sua vez são cha-

mados a recebê-las e a respondê-las com outras men-

sagens. O passo da mudança, a pluralidade das par-ticipações, a abundância de possibilidades e men-sagens oferecidas aos adolescentes contribuem to-

dos para debilitar os pontos de referência sobre os

quais a identidade era tradicionalmente construída.

A possibilidade de definir uma biografia contínua

torna-se cada vez mais incerta.

Nesse sentido, o significado do presente nãose encontra no passado, nem em um destino final

da história; o tempo perde sua finalidade linear e a

catástrofe (nuclear, ecológica) torna-se uma possi-

bilidade. Mas esta des-linearização do tempo reve-

la a singularidade da experiência individual. O tem-po individual e cada momento dentro dele não se

repete nunca. Não somente ele não retorna em um

ciclo repetitivo sem fim, mas tampouco será porta-

dor de outro sentido, outra finalidade senão aque-

la que os indivíduos e grupos são capazes de pro-duzir para si mesmos.

Alberto Melucci

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Revista Brasileira de Educação 11

Nomadismo e metamorfose parecem consti-

tutir respostas para essa necessidade de continuida-

de através da mudança. A unidade e continuidadeda experiência individual não pode ser encontradas

em uma identificação fixa com um modelo, grupo

ou cultura definidos. Deve ao invés disto ser basea-do na capacidade interior de “mudar a forma” de

redefinir-se a si mesmo repetidas vezes no presen-te, revertendo decisões e escolhas. Isso também sig-

nifica acalentar o presente como experiência única,

que não pode ser reproduzida, e no interior da qual

cada um se realiza.

Desafiando a definição dominante de tempo

Para lidar com tantas flutuações e metamor-foses, os adolescentes sentem que a identidade deveser enraizada no presente. Eles devem ser capazes

de abrir e fechar seus canais de comunicação com

o mundo exterior para manter vivos seus relacio-

namentos, sem serem engolidos por uma vasta quan-

tidade de signos. Ainda mais, para abraçar um cam-po amplo de experiências que não pode ser confi-

nado dentro dos rígidos limites de um pensamento

racional, eles precisam de novas capacidades para

contatos imediatos e intuitivos com a realidade.Essas exigências alteram os limites entre dentro efora e apontam para a necessidade de uma maior

consciência de si mesmo e responsabilidade para um

contato mais estreito com a experiência íntima de

cada um.

Novamente, como a cadeia de possibilidades

torna-se muito ampla comparada com oportunida-des atuais de ação e experiência, o questionamen-

to sobre limites torna-se um problema fundamen-

tal para os adolescentes de hoje. Considerando o

declínio dos ritos de passagem que outrora marca-

vam os limites entre infância e vida adulta (VanGennep, 1981; Kett, 1977) e sendo exposto a um

novo relacionamento com os adultos (McCormack,

1985; Herbert, 1987) eles próprios expostos a uma

pressão crescente da mudança, a juventude contem-

porânea tem que encontrar novos caminhos paravivenciar a experiência fundamental dos limites. A

definição e o reconhecimento de limites pessoais e

externos é a chave para se mover em qualquer dire-

ção: através da comunicação com o exterior e con-formidade com as regras do tempo social ou através

de uma voz interna que fala com cada pessoa em

sua linguagem secreta. Somente assim um ciclo deabertura e fechamento pode ser estabelecido, atra-

vés de uma oscilação permanente entre os dois ní-veis de experiência. Tais passagens marcam a evo-

lução dinâmica, as metamorfoses da vida pessoal.

Aprendendo como empreender estas passagens

— um problema de escolha, incerteza e risco — os

adolescentes reativam no resto da sociedade a me-

mória da experiência humana dos limites e da liber-dade. Eles vivem para todos como receptores sen-

síveis e perceptivos da cultura contemporânea, osdilemas do tempo em uma sociedade complexa: o

tempo como medida de mudança para nossas so-

ciedades que necessitam prever e controlar seu de-senvolvimento; o tempo como definição pontual da

identidade indivídual e coletiva; o tempo como uma

flecha linear ou como campo de experiência rever-

sível e multidirecional. Desafiando a definição do-

minante do tempo, os adolescentes anunciam parao resto da sociedade que outras dimensões da ex-

periência humana são possíveis. E fazendo isto, elesapelam à sociedade adulta para a sua responsabili-

dade: a de reconhecer o tempo como uma constru-

ção social e de tornar visível o poder social exerci-do sobre o tempo.

Tornar o poder visível é a mais importante

tarefa na ordem dos conflitos em nossa sociedade.

Revertendo a definição adulta do tempo, os adoles-

centes simbolicamente contestam as variáveis do-

minantes de organização do tempo na sociedade.Eles revelam o poder escondido atrás da neutrali-

dade técnica da regulação temporal da sociedade.

Ação comunicativa

O antagonismo dos movimentos juvenis é emi-

nentemente comunicativo do ponto de vista de sua

natureza (Melucci, 1989, 1996b). Nos últimos trin-

ta anos a juventude tem sido um dos atores centrais

 Juventude, tempo e movimentos sociais

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12 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

em diferentes ondas de mobilização coletiva: refi-

ro-me a formas de ação inteiramente compostas de

jovens, assim como à participação de pessoas jovensem mobilizações que também envolveram outras

categorias sociais. Começando pelo movimento estu-

dantil dos anos 60 é possível traçar a participaçãojuvenil em movimentos sociais através das formas

‘sub-culturais’ de ação coletiva nos anos 70 comoos punks, os movimentos de ocupação de imóveis,

os centros sociais juvenis em diferentes países euro-

peus, através do papel central da juventude nas mo-

bilizações pacifistas e ambientais dos anos 80, atra-

vés de ondas curtas mas intensas de mobilização deestudantes secundaristas dos anos 80 e começo dos

90 (na França, Espanha e Itália, por exemplo) e, fi-

nalmente, através das mobilizações cívicas nos anos90 como o anti-racismo no norte da Europa, França

e Alemanha ou o movimento da anti-máfia na Itá-lia. Todas estas formas de ação envolvem pessoas

jovens como atores centrais; mesmo se apresentam

diferenças históricas e geográficas com o passar das

décadas, elas dividem características comuns que

indicam um padrão emergente de movimentos so-ciais em sociedades complexas, pós-modernas. Nes-

ses sistemas cada vez mais baseados em informação,

a ação coletiva particularmente aquela que envol-ve os jovens oferece outros códigos simbólicos ao

resto da sociedade — códigos que subvertem a ló-gica dos códigos dominantes. É possível identificar

três modelos de ação comunicativa:

a) Profecia: portadora da mensagem de que o

possível já é real na experiência direta dos que o pro-

clamam. A batalha pela mudança já está encarnada

na vida e estrutura do grupo. A profecia é um exem-plo notável da contradição a que me referi. Profe-

tas sempre falam em nome de terceiros, mas não po-

dem deixar de apresentar-se a si mesmos como mo-

delo da mensagem que proclamam. Nesse sentido,

como os movimentos juvenis se batem para subver-ter os códigos, eles difundem culturas e estilos de vida

que penetram no mercado ou são institucionalizados.

b) Paradoxo: aqui a autoridade do código do-

minante revela-se através do seu exagero ou da sua

inversão.

c) Representação: aqui a mensagem toma a

forma de uma reprodução simbólica que separa os

códigos de seus conteúdos os quais habitualmenteos mascaram. Ela pode se combinar com as duas

formas acima (movimentos contemporâneos de ju-

ventude fazem grande uso das formas de represen-tação como o teatro, o vídeo, a mídia).

Nestes três casos, os movimentos funcionampara o resto da sociedade como um tipo específi-

co de veículo, cuja função principal é revelar o que

um sistema não expressa por si mesmo: o âmago

do silêncio, da violência, do poder arbitrário que

os códigos dominantes sempre pressupõem. Mo-vimentos são meios que se expressam através de

ações. Não é que eles não falem palavras, que eles

não usem slogans ou mandem mensagens. Mas suafunção enquanto intermediários entre os dilemas

do sistema e a vida diária das pessoas manifesta-se principalmente no que fazem: sua mensagem

principal está no fato de existirem e agirem. Isto

também significa afirmar que a solução para o

problema relativo à estrutura do poder não é a

única possível e mais do que isso, oculta os inte-

resses específicos de um núcleo de poder arbitrá-rio e opressor. Pelo que fazem e a maneira como

fazem, os movimentos anunciam que outros cami-nhos estão abertos, que existe sempre outra saída

para o dilema, que as necessidades dos indivíduos

ou grupos não podem ser reduzidas à definiçãodada pelo poder. A ação dos movimentos como

símbolo e como comunicação faz implodir a dis-

tinção entre o significado instrumental e expressi-

vo da ação, posto que, nos movimentos contempo-

râneos, os resultados da ação e a experiência indi-vídual de novos códigos tendem a coincidir. E, tam-

bém, porque a ação, em lugar de produzir resulta-

dos calculáveis, muda as regras da comunicação.

Novas redes

Movimentos juvenis tomam a forma de uma

rede de diferentes grupos, dispersos, fragmentados,imersos na vida diária. Eles são um laboratório no

qual novos modelos culturais, formas de relaciona-

Alberto Melucci

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Revista Brasileira de Educação 13

mento, pontos de vista alternativos são testados e

colocados em prática.

Estas redes emergem somente de modo espo-

rádico em resposta a problemas específicos. Trata-se de uma mudança morfológica que nos força a

redefinir as categorias analíticas de atores coletivos.Se os conflitos se expressam em termos de recursos

simbólicos, os atores considerados não podem ser

estáveis. Primeiramente, porque os meios atravésdos quais se criam e distribuem na sociedade pos-

sibilidades de identificação estão continuamente

mudando e operando em campos variados. Segun-

do, os atores vivem as exigências contraditórias do

sistema como fonte de conflitos, não o fazem du-rante a vida inteira e não estão permanentemente

enraizados em uma categoria social única.A hipótese de conflitos sistêmicos antagônicos

pode se manter se preservamos a idéia de um cam-

po sistêmico ou de um espaço no qual os atores

podem variar. O campo é definido pelos problemase diferentes os atores que o ocupam expõem para

toda a sociedade questões relacionadas com o sis-

tema na sua totalidade e não só com um grupo ou

uma categoria social. Evidentemente, as formas em-

píricas de mobilização contêm, como vimos, nume-

rosas dimensões. Mas através de certos aspectos daação a juventude sinaliza um problema relaciona-

do não somente com as suas próprias condições de

vida mas também com os meios de produção e dis-

tribuição de recursos de significado. Os jovens semobilizam para retomar o controle sobre suas pró-

prias ações, exigindo o direito de definirem a si mes-

mos contra aos critérios de identificação impostos

de fora, contra sistemas de regulação que penetram

na área da “natureza interna”.

A maneira pela qual o conflito se manifesta,no entanto, não é a da ação “efetiva”. O desafio

vem através da inversão de códigos culturais e é por

isso eminentemente “formal“. Em sistemas onde os

signos tornam-se intercambiáveis o poder reside nos

códigos, nos ordenadores dos fluxos de informação.

A ação coletiva antagonista é uma “forma” que,pela sua própria existência, pela maneira como se

estrutura, envia sua mensagem. Objetivos com cer-

teza existem, mas eles são esporádicos e até certo

ponto substituíveis. Tais formas de ação exercem

efeitos sobre instituições, modernizando seu pensa-mento e organização, formando as novas elites. Mas

ao mesmo tempo, suscitam questões para as quais

não há espaço. Enquanto nós aplicamos e executamoso que um poder anônimo decretou, os jovens pergun-

tam para onde estamos indo e por quê. Sua voz éouvida com dificuldade porque fala pelo particular.

A natureza precária da juventude coloca para

a sociedade a questão do tempo. A juventude dei-

xa de ser uma condição biológica e se torna uma

definição simbólica. As pessoas não são jovens ape-

nas pela idade, mas porque assumem culturalmen-te a característica juvenil através da mudança e da

transitoriedade. Revela-se pelo modelo da condiçãojuvenil um apelo mais geral: o direito de fazer re-

troceder o relógio da vida, tornando provisórias

decisões profissionais e existenciais, para dispor deum tempo que não se pode medir somente em ter-

mos de objetivos instrumentais.

Se compararmos agora informações relativas

a grupos de jovens em diferentes países europeus e

as diferentes ondas de mobilização mencionadas

acima não é difícil encontrar elementos deste siste-

ma de ação. Os movimentos de jovens dividem-seentre o radicalismo político e a violência de alguns

grupos extremistas (às vezes grupos de direita, às

vezes revolucionários, anarquistas, etc) a expressi-

va marginalidade da contra-cultura, a tentativa decontrolar uma parte das organizações políticas e de

transformar grupos juvenis em agências para polí-

ticas juvenis e uma orientação conflituosa, que to-

ma a forma de um desafio cultural aos códigos do-

minantes. Em um ambiente que favorece a “pobre-za” de recursos internos (desemprego, desintegra-

ção social, imigração) este último componente não

pode ser bem sucedido na combinação com outros

e o “movimento” juvenil se divide. Evapora-se na

pura exibição de signos (variedade de tribos metro-politanas) produz a profissionalização pelo mercado

de recursos culturais inovadores e, de forma ainda

mais trágica, declina na marginalidade das drogas,

da doença mental, do desabrigo. Quando a demo-

 Juventude, tempo e movimentos sociais

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14 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

cracia for capaz de garantir um espaço para que as

vozes juvenis sejam ouvidas, a separação será me-

nos provável e movimentos juvenis poderão tornar-se importantes atores na inovação política e social

da sociedade contemporânea.

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Revista Brasileira de Educação 15

O jovem como modelo cultural

Angelina Peralva 

Faculdade de Educação, Universidade de São PauloCentre d’Analyse et d’Intervention Sociologiques, École des Hautes Études en Sciences Sociales

Da cristalização histórica das idades da vida

Nós sabemos hoje que as idades da vida, em-bora ancoradas no desenvolvimento bio-psíquico

dos indivíduos, não são fenômeno puramente na-tural, mas social e histórico, datado, portanto, e in-

separável do lento processo de constituição da mo-

dernidade, do ponto de vista do que ela implicouem termos de ação voluntária sobre os costumes e

os comportamentos, ou seja naquilo que ela teve de

intrinsecamente educativo.

O trabalho de Philippe Ariès (1960) constitui

provavelmente o marco mais importante no senti-

do dessa tomada de consciência. Ao afirmar o ca-

ráter tardio da emergência do sentimento de infân-cia e sua natureza eminentemente moderna, ele dis-

tingue também (Ariès, 1973, prefácio, 6) o tipo par-

ticular de vínculo que liga adultos e crianças nas eras

moderna e pré-moderna. “A transmissão de valo-res e saberes, e de forma mais geral a socialização

da criança não eram (...) asseguradas pela família,

nem controladas por ela. A criança se afastava ra-

pidamente de seus pais, e pode-se dizer que, durante

séculos, a educação foi assegurada pelo aprendiza-do graças à coexistência da criança ou do jovem e

dos adultos. Ele aprendia as coisas que era neces-

sário saber, ajudando os adultos a fazê-las.”

A noção de aprendizado, sublinhada no tex-to original que acabo de citar, opõe-se à de sociali-

zação, do mesmo modo como o caráter inespecíficoda relação entre adultos e crianças na Idade Média

(quase que reduzida à sua dimensão biológica, fun-

ção da especificidade biológica da fragilidade infan-

til) se opõe ao caráter voluntário da ação socia-

lizadora característica da modernidade, a qual ins-pirou toda uma série de trabalhos capitais sobre a

ordem moderna.

Pouco importa que a consciência da especifi-cidade da infância e da juventude, como objetos de

uma ação educativa, já estivessem presentes na an-

tigüidade clássica, conforme relembram FrançoisDubet e Danilo Martuccelli (1996) ao comparar o

ideal educativo da III República na França a uma

paidéia funcionalista. A perspectiva de Ariès não é

evolucionista. Ele sabe e afirma que a especificida-

de da juventude foi reconhecida em outros tempos

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16 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

e em outras sociedades, anteriores à era medieval.

Mas ao opor esses dois momentos da história oci-

dental, do ponto de vista da particularidade de suasatitudes com respeito à infância e à juventude, re-

vela também a particularidade do vínculo social

através do qual a juventude aparece como configu-ração própria da experiência moderna.

Textos básicos do pensamento contemporâ-

neo, alguns anteriores, outros posteriores a Ariès,podem ser relidos à luz dessa perspectiva aberta por

ele. Em seu estudo sobre a civilização dos costumes,

publicado pela primeira vez em 1939, Norbert Elias

(1973, 78, 70) remete a um período situado entre

1525 e 1550 o aparecimento do termo “civilidade”em sua acepção moderna e atribui sua difusão ao

imenso sucesso de público encontrado por um pe-queno tratado, De civilitate morum puerilium, pu-

blicado pela primeira vez em 1530, e cujo autor é

Erasmo de Rotterdam: tratado que, como seu nomeindica, tem por objeto a educação dos jovens. Sa-

bemos o quanto, para Elias, a civilização dos cos-

tumes é um elemento crucial constitutivo de uma

ordem moderna pacificada.

Também para Foucault educação e ordem são

faces complementares do dispositivo intrínseco à ra-

cionalidade moderna. As técnicas disciplinares, quea escola condensa (1975), situam-se no âmago dos

processos sociais constitutivos de um aparelho de

poder renovado. Também a consciência da infân-

cia e da puberdade são inseparáveis da consciênciada sexualidade infantil e juvenil (sexualidades des-

viantes) e da constituição de um dispositivo cientí-

fico — dispositivo de saber — que pretende produ-

zir efeitos de ordenamento sobre os costumes e os

comportamentos (1976).

Interessa menos aqui retraçar as diferentes eta-pas dessa história (que é parte integrante do saber

contemporâneo sobre a ordem moderna) que relem-

brar que a difusão desses novos mecanismos de orde-

namento do mundo ocorre, como nos mostram to-

dos esses autores, de cima para baixo, da aristocra-cia e da burguesia em direção às classes populares,

porque se vincula também, indissociavelmente, aos

processos históricos de construção da democracia.

Se a difusão é lenta e progressiva, se as cama-

das populares durante muito tempo escapam às in-

junções da racionalidade moderna, se esta se expres-sa durante muito tempo apenas através de trans-

formações imprecisas e fragmentárias no plano da

mentalidade das elites, é também porque esse pro-blema durante muito tempo escapa à esfera da ação

do Estado. Nesse sentido, o período áureo da ex-periência moderna é sem dúvida a era industrial. É

a partir do momento em que o Estado toma a si,

de forma voluntária e sistemática, múltiplas dimen-

sões da proteção do indivíduo, entre elas e sobre-

tudo a educação, é quando a escola se torna, noséculo XIX, instituição definitivamente obrigatória

e universal, escapando à iniciativa aleatória e inter-

mitente da sociedade civil (Furet et Ozouf, 1977),que a racionalidade moderna se torna também im-

perativo universal. Nesse momento, mais do quenunca, a cristalização social das idades da vida se

especifica como elemento da consciência moderna1 .

Ela emerge, diz Ariès (1973), com a escolarização,

que supõe a separação entre seres adultos e seres em

formação, do mesmo modo como o aprendizadosupunha, ao contrário, a mistura e a indiferenciação

dos grupos etários.

Os processos através dos quais ocorre a cris-talização social das idades da vida são múltiplos e

convergentes. Supõem, primeiro, transformações

essenciais no âmbito da família e em primeiro lu-gar da família burguesa, com uma mais nítida se-

paração entre o espaço familiar e o mundo exterior,

e uma redefinição do lugar da criança no interior

da família. A criança se torna objeto de atenção

particular e alvo de um projeto educativo individu-alizado, que de certo modo qualifica o lugar que ela

virá posteriormente a ocupar na sociedade adulta.

Escolarização e sentimento familiar se desenvolvem

1 Uma representação natural das idades da vida, comoparte de uma cosmogonia, precede essa representação propria-

mente social e é discutida por Ariès (1973) no primeiro tópi-

co do capítulo dedicado à análise da emergência do senti-mento de infância, justamente intitulado “as idades da vida”.

Angelina Peralva

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Revista Brasileira de Educação 17

O jovem como modelo cultural

como dimensões complementares e contraditórias

da experiência individual: por um lado, enviar a

criança ao colégio traduz a atenção particular deque ela passa a ser objeto no seio da família; por

outro, essa separação necessária é contraditória com

o sentimento de família nascente e com a nova im-portância assumida pelos vínculos afetivos na es-

truturação das relações familiares.Em segundo lugar, a cristalização social das

idades supõe uma progressiva exclusão da criança

do mundo do trabalho. O aprendizado, forma ge-

ral de iniciação ao trabalho que selava precoce-

mente o fim da infância e marcava a entrada navida adulta, era praticado, diz Ariès (1973, 255),

em todas as camadas da população. À medida que

a escolarização se difunde, ela tende a subtrair seg-mentos progressivamente mais amplos da popula-

ção infantil às injunções do trabalho, retardandoa entrada na idade adulta. Desse ponto de vista

também, a experiência das sociedades industriais

no século XIX introduz elementos novos que ace-

leram essas transformações históricas, redimensi-

onando-as, mas sobretudo redefinem o processo

social de cristalização das idades, institucionali-zando as diferentes fases da vida por efeito da ação

do Estado.Um desses elementos é a generalização do tra-

balho assalariado na manufatura e na indústria nas-

cente, que altera de maneira importante a organi-zação familiar e os modos de vida no seio das ca-

madas populares. Primeiro, as modalidades tradi-

cionais de aprendizado se restringem e o aprendi-

zado de modo geral se decompõe. Marie-France

Morel (1977, 21-22) observa que, em Paris, duranteo Segundo Império, só os ofícios de maior prestí-

gio e melhor remunerados continuam a praticá-lo,

da mesma forma que no passado. “Na maior par-

te dos outros ofícios (a tipografia por exemplo), o

aprendizado se faz sem contrato e na prática. Ascrianças percebem uma remuneração — coisa que

os pais apreciam — mas não recebem uma verda-

deira formação profissional; a criança só efetua as

tarefas subalternas que um aprendiz outrora teria

considerado indignas dele: é chamada burrinho de

carga. Esses aprendizes de um gênero novo, sem

tradição de ofício, são freqüentemente apresenta-

dos na literatura patronal como ‘indóceis, indiscre-tos, mentirosos, grosseiros e algumas vezes insolen-

tes’, ao passo que seus antecessores eram ‘exatos,

assíduos, cuidadosos e habilidosos em seu ofício’.”Por outro lado, as formas de inserção da crian-

ça no mundo do trabalho se degradam. Destacan-

do sua presença maciça na manufatura e na indús-tria, Marie-France Morel explica isso como o resul-

tado da miséria das famílias populares urbanas, que

rapidamente tornou indispensável a contribuição do

magro salário infantil (um terço a um quarto do

salário adulto). Desde então a regulamentação e alimitação do trabalho das crianças transformam-se

em objetivo comum do discurso higienista das eli-tes (Perrot, 1977) e do movimento operário nascen-

te. Na França, a lei de 1841 limita a oito horas o

trabalho das crianças entre 8 e 12 anos, a 12 horaso dos adolescentes entre 12 e 16 anos. Ao mesmo

tempo, a lei obriga os patrões a oferecerem educa-

ção a seus jovens trabalhadores.

Mas é a Terceira República que, ao fim do

século XIX, consolida o processo de escolarização

das crianças das classes populares, tornando-as

objeto de uma ação socializadora sistemática porparte do Estado. A escolarização avança contra o

trabalho, contribuindo com sua lógica própria pa-

ra a modulação social das idades da vida. Mais do

que isso, ela termina por se tornar, ao longo dotempo, e sobretudo a partir do segundo pós-guer-

ra, o verdadeiro “suporte” da família contempo-

rânea (Singly, 1993), que passa cada vez mais a de-

pender do Estado enquanto mediador dos dispo-

sitivos que lhe asseguram a reprodução social.Quanto mais importante é a presença do Estado

na esfera educativa, o que é o caso na experiência

francesa, mais essa assertiva é verdadeira. Nesse

sentido, a definição da infância e da juventude en-

quanto fases particulares da vida torna-se não ape-nas uma construção cultural, mas uma categoria

administrativa — vale dizer jurídica e institucional,

ainda que abrigando fortes diferenças sociais no

seu interior (Touraine, 1993).

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18 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

Fases da vida e ordem moderna

Uma vez dotadas de especificidade própria, as

fases da vida não se tornam apenas autônomas, umas

em relação às outras. Permanecem interdependentes

e mesmo hierarquizadas. Tal hierarquia constrói-se sobre a base de uma tensão, intrínseca à moder-

nidade, entre uma orientação definida pela lógica

da modernização (portanto, orientação para o fu-

turo, através da afirmação conquistadora da reno-vação enquanto valor) e o fundamento normativo

da ordem moderna, que afirma, ao contrário, a pri-

mazia do passado enquanto elemento de significa-

ção do futuro. Cabe ao passado, isto é à ordem so-

cial já constituída, domesticar, sem destruir, os ele-

mentos de transformação e modernização ineren-tes à vida moderna.

Hannah Arendt dedicou alguns dos seus mais

belos ensaios à análise desse dilema. Já no prefácio

de Between Past and Future, na verdade o primei-

ro ensaio da coletânea, ela toma partido e formulasua inquietação: “O testamento, que diz ao herdeiro

aquilo que será legitimamente seu, atribui um pas-

sado ao futuro. Sem testamento ou, para elucidar

a metáfora, sem tradição — que escolhe e nomeia,

que transmite e conserva, que indica onde se encon-tram os tesouros e qual é seu valor — tudo indica

que nenhuma continuidade no tempo pode ser defi-

nida e conseqüentemente não é possível existir, hu-

manamente falando, nem passado nem futuro, mas

tão somente o devir eterno do mundo e dentro deleo ciclo biológico dos seres vivos.” (1972, 14)

Essa perspectiva define diretamente para ela o

sentido do labor educativo, explicitado nesta pas-

sagem extraordinária de A crise da educação(1972,

238-239): “com a concepção e o nascimento, os pais

não somente deram a vida a seus filhos; eles ao mes-mo tempo os introduziram em um mundo. Ao edu-

cá-los, eles assumem a responsabilidade pela vida

e pelo desenvolvimento da criança, mas também

 pela continuidade do mundo. Essas duas responsa-

bilidades não coincidem de modo algum e podemmesmo entrar em conflito. Em um certo sentido,

essa responsabilidade pelo desenvolvimento da

criança vai contra o mundo: a criança precisa ser

particularmente protegida e cuidada para evitar que

o mundo possa destruí-la. Mas o mundo tambémtem necessidade de proteção, de forma a evitar que

ele seja devastado e destruído pela onda de recém-

chegados que o invade a cada nova geração.” (Grifomeu; tradução minha a partir da edição francesa.)

A especificidade portanto da educação no mun-

do moderno é que ela é e deve ser intrinsecamenteconservadora. Concepção que está na origem de

uma noção mágica da sociologia, senão da própria

sociologia, que inspirará toda uma linhagem de so-

ciólogos — e muito especialmente os sociólogos da

juventude — a noção, é claro, de socialização. Co-mo Hannah Arendt, embora talvez de forma mais

radical e mais dura, Durkheim (s.d., 41) dirá daeducação que ela é “a ação exercida, pelas gerações

adultas, sobre as gerações que não se encontram

ainda preparadas para a vida social .” (Grifado nooriginal.) O velho se impõe sobre o novo, o passa-

do informa o futuro e essa definição cultural da

ordem moderna define também as relações entre

adultos e jovens, definindo o lugar no mundo de

cada idade da vida.

Não por acaso, parte considerável da sociolo-

gia da juventude constituir-se-á então como umasociologia do desvio: jovem é aquilo ou aquele que

se integra mal, que resiste à ação socializadora, que

se desvia em relação a um certo padrão normativo.

Se as formas do desvio variam, em função de níveisdistintos de estratificação social e cultural, o des-

vio enquanto tal, ainda que não sempre em suas

modalidades extremas, é inerente à experiência ju-

venil, conforme propôs David Matza (1961), em

sua análise das tradições ocultas da juventude. As-sim, embora a tradição boêmia, o radicalismo es-

tudantil e a tradição delinqüente incidissem sobre

campos diferentes da prática social, as três, confor-

me Matza (1961:106), tinham forte apelo entre a

juventude e eram “especificamente antiburguesas”,ainda que de maneiras diversas. “O delinqüente, por

exemplo, não denuncia os dispositvos da proprie-

dade burguesa, mas ele os viola. Ele rejeita os sen-

timentos burgueses de método e rotina, particular-

Angelina Peralva

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Revista Brasileira de Educação 19

mente quando eles se manifestam no interior do

sistema escolar. A atitude boêmia com relação aos

dispositivos da propriedade burguesa é tipicamen-te de indiferença, embora horrorizada com a dimen-

são mercantil comumente associada a esses dispo-

sitivos. (...)Particularmente nas variedades do mar-xismo revolucionário, que representa o mais impor-

tante exemplo do radicalismo moderno, o foco pri-mário do ataque radical foi o sistema capitalista de

dominação política e econômica e o papel imperi-

alista alegadamente desempenhado por tais sistemas

nos assuntos internacionais. (...) Nesse sentido, ve-

mos que cada tradição subterrânea foi hostil à or-dem burguesa, mas cada uma seguiu uma linha de

ataque algo diferente.” (Matza, 1961, 106)

Embora a contribuição do funcionalismo, so-bretudo norte-americano, para a compreensão das

práticas desviantes da juventude, através de um nú-

mero considerável de estudos empíricos, seja de im-portância inegável, é difícil também não reconhe-

cer o aspecto quase caricatural de uma sociologia

para a qual valores e arcabouço normativo da or-

dem social constituem, não categorias de análise,

mas o a priori, a partir do qual a análise será de-senvolvida. Em artigo anterior, também muito co-

nhecido, o próprio David Matza, juntamente comGresham Sykes (1957), se interroga sobre as técnicas

empregadas pelos jovens para neutralizar o inevi-

tável sentimento de culpabilidade que experimenta-riam ao transgredir valores convencionais. A ordem

social é, simultaneamente, uma ordem moral e nor-

mativa e o desvio, fato excepcional e objeto a ser

explicado — mas também fato inscrito no interior

de uma relação intergeracional. Aliás, Solomon Ko-brin (1951) registra, observação importante, que a

delinqüência propriamente juvenil inexiste em áreas

fortemente controladas por uma criminalidade adul-

ta estável, de tipo profissional e com capacidade de

integração do jovem nas práticas criminosas. Embo-ra a delinqüência do jovem esteja presente, ela perde

nesse contexto sua dimensão juvenil estrito senso.

Vale dizer, de passagem, que os temas da or-

dem e da normatividade estão longe de ser um pro-

blema exclusivo do funcionalismo. E, embora o in-

teracionismo tenha renovado profundamente as

formas de perceber o desvio, sobretudo deslocan-

do uma problemática até então definida em termosmotivacionais para uma outra, definida em termos

de interação, ele não rompe com a estrutura bási-

ca do raciocínio funcionalista, definida pela oposi-ção entre norma e desvio. O ator goffmaniano é

extremamente convencional e para Becker (1985)as próprias normas são produzidas por empresários

da moral, num contexto definido em termos de in-

terações. Nessa perspectiva, se o jovem não cons-

titui uma categoria exclusiva dos desviantes, cons-

titui com certeza uma categoria importante, pode-se dizer mesmo central, nas representações sociais

do desvio.

Assim, o temor suscitado pelo jovem, o senti-mento de insegurança a ele freqüentemente associ-

ado no imaginário adulto, constituem a outra face

dessa moeda. Já não se trata aí do jovem cujo des-vio é necessário prevenir ou mesmo punir, mas da-

quele que ameaça o adulto indefeso, encarnando

tudo aquilo que, em sua vida, este já não consegue

controlar. Gérard Mauger (1991) dirá, nessa pers-

pectiva, que o sentimento de insegurança inspira-do pelos jovens não pode ser reduzido a um efeito

mecânico do crescimento da delinqüência juvenil,porque lança raízes mais amplamente no conjunto

de representações sociais que cada sociedade e cada

época constróem sobre a sua própria juventude.

Tampouco os recortes classistas fogem a essaoposição estrutural de tipo intergeracional. Quer se

trate de uma dominação de classe travestida atra-

vés de categorias administrativas e da ação do Es-

tado, como quer Chamboredon (1971), para quem

os atores institucionais comportam-se de maneiramuito mais flexível e laxista quando se trata de pu-

nir o desvio em jovens originários de classes médi-

as ou abastadas do que quando se trata de jovens

oriundos das classes populares, quer se trate de uma

socialização de classe que as transformações histó-ricas da sociedade, e particularmente o esgotamento

da ordem industrial inviabilizaram (Dubet, 1987),

quer se trate dos prolongamentos dessa temática tal

como se manifesta na discussão sobre as subculturas

O jovem como modelo cultural

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20 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

juvenis, sempre subculturas de classe, o binômio

ordem social/socialização permanece inteiro en-

quanto categoria interpretativa central. Significati-vamente a  juventude da greve historiada por Mi-

chelle Perrot (1984) refere-se ao mesmo tempo ao

caráter violento das greves protagonizadas por jo-vens no século XIX, no bojo de um movimento ope-

rário nascente, e à juventude dessa forma de luta,enquanto tal.

A ruptura com uma problemática fortemente

dominada pelos temas da ordem e do desvio, cris-

talizou-se em torno da idéia de geração. Nos termos

em que foi originalmente formulada por Mannheim

(1990), ela havia significado uma valorização donovo na área da sociologia do conhecimento. Re-

nasce nos anos 60, em meio aos debates sobre oengajamento político da juventude. Culture and 

Commitment , de Margaret Mead (1979), tinha co-

mo subtítulo a Study of the Generation Gap. Sãoduas faces do mesmo problema: é o engajamento

político dos jovens que revela o fosso entre as ge-

rações. Esse engajamento público maciço a que se

assiste então nos mais diferentes países tem, diz

Mead, um único elemento comum: o fato de seruma expressão política juvenil. A noção de geração

estará, pelos mesmos motivos, no centro da análi-se empreendida por Marialice Foracchi (1964) so-

bre o papel do estudante na transformação da so-

ciedade brasileira. A juventude não é apenas vigia-da e desviante: sua marginalidade inova e transfor-

ma (Perrot, 1986).

É preciso, não obstante, reconhecer que os fun-

damentos da sociologia da juventude estão original-

mente ligados a uma representação da ordem social,

e do lugar dos grupos etários e de suas responsabi-lidades respectivas na preservação dessa ordem, na

sua observância, na ruptura com relação a ela, ou

na sua transformação. Quer o passado imprima ao

futuro o seu significado, quer o futuro se imponha

ao passado como perspectiva de renovação.

Des-ordem na representaçãosocial do ciclo da vida

Essa estrutura de oposições significativas que

deu abrigo a uma sociologia da juventude desapa-

rece ou se dissolve, no bojo da aceleração das trans-formações contemporâneas e hoje só se mantém na

ótica da crise ou de uma reação conservadora. Foi,

para Mead (1979), a aceleração, justamente, des-

sas transformações que constituiu um fosso entre

as gerações e deu-lhes a brusca consciência de suasidentidades geracionais, alterando as relações entre

elas. Como para Hannah Arendt (mas também co-

mo para Tocqueville que Hannah Arendt evoca), o

passado não mais iluminando o futuro, a consciên-

cia “caminha nas trevas”: “enquanto os adultospensarem que, como seus pais e os senhores de ou-

trora, eles podem proceder por introspecção, invo-

cando sua própria juventude para compreender a

juventude atual, eles estarão perdidos”. (Mead,

1979, 93)

A consciência da identidade geracional derivaportanto de uma tensão entre duas ordens de sig-

nificados expressos por gerações diferentes e é tanto

mais forte quanto mais forte a própria tensão. Se a

tensão se dissolve, ou por mudança excessivamen-te lenta, ou por mudança excessivamente rápida, jánão há também possibilidade de cristalização de

identidades geracionais diferenciadas. É o que pa-

rece estar ocorrendo agora: o prosseguimento em

ritmo acelerado das mesmas transformações históri-

cas, que para Mead constituíram o fosso entre as ge-rações, impossibilita hoje paradoxalmente a emer-

gência de uma consciência geracional.

Tal questão, de resto, já havia sido considerada

por Mannheim (1990, 66-67). “Temos”, dizia ele,

“a prova contrária de que a aceleração da dinâmi-

ca social é a causa da entrada em atividade da po-tencialidade de criação de novos impulsos de gera-

ção, no fato de que comunidades profundamente

estáveis ou que se transformam pelo menos muito

lentamente — como o mundo camponês — não co-

nhecem o fenômeno das unidades de geração quese destacam, alimentadas por enteléquias comple-

Angelina Peralva

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Revista Brasileira de Educação 21

tamente novas, porque as novas gerações crescem

em meio a transformações contínuas de gradação

invisível. (...) Portanto, quanto mais o ritmo da di-nâmica sócio-intelectual se acelera, maiores são as

chances de que situações de geração determinadas

reajam às mudanças com sua própria ‘enteléquia’a partir de sua nova situação de geração. Por ou-

tro lado, um ritmo excessivamente rápido pode con-duzir a um recobrimento dos germes das enteléquias

das gerações uns pelos outros. Nós, contemporâ-

neos, podemos talvez perceber, graças a uma obser-

vação mais atenta, que faixas etárias diferentes se

seguem, exatamente escalonadas, e coexistem emsua maneira de reagir, mas sem conseguir alcançar

a formação de novas enteléquias de geração e princí-

pios estruturadores correspondentes.” (Grifo meu.)Assim, a cristalização geracional se dissolve

pela dissolução da oposição entre o passado e o

futuro. O futuro se torna presente e absorve o pas-sado. O tempo linear aparentemente se esgota, ce-

dendo lugar a um tempo funcionalmente diferen-

ciado, conforme sugerem alguns autores, inclusive

Alberto Melucci em artigo publicado neste núme-

ro. Importantes mudanças sociais e culturais inci-dem sobre as representações relativas à especifici-

dade das fases do ciclo vital, alterando-as profun-damente. As transformações nas relações de traba-

lho e o prolongamento da escolarização são prova-

velmente as mais importantes.

A incidência da transformação das relações detrabalho sobre a representação social do ciclo da

vida é naturalmente mais visível ali onde a ação

sistemática do Estado mais fortemente contribuiu

para institucionalizá-las, o que é o caso na experiên-

cia das social-democracias européias. Ali, a distri-buição do trabalho ao longo do ciclo da vida so-

freu mudanças significativas nos últimos vinte anos.

Os jovens entram mais tardiamente no mercado de

trabalho, enquanto os adultos saem mais cedo, exa-

tamente em um momento em que o ciclo biológicotambém se alterou, pelo prolongamento da esperan-

ça de vida. Isso acarretou ao mesmo tempo um en-

velhecimento demográfico e um envelhecimento mé-

dio da força de trabalho, conforme observa Anne-

Marie Guillemard (1995, 177): “Estamos assistin-

do a um remanejamento profundo da transição da

atividade para a aposentadoria, que parece anun-ciar uma desinstitucionalização do modelo do ciclo

de vida ternário. Este último ordena o percurso etá-

rio em três tempos sucessivos com funções bem dis-tintas: a juventude se forma, a idade adulta traba-

lha e a velhice tem direito ao repouso.”

Partindo da constatação da queda brutal dosíndices de atividade na faixa de 55 a 64 anos na

maioria dos países desenvolvidos, com exceção da

Suécia e do Japão, Guillemard (1995, 179) consta-

ta que isso acarretou uma modificação na arquite-

tura dos dispositivos institucionais que regulam asaída definitiva da atividade econômica. “O modelo

tradicional de saída definitiva da atividade, que im-plicava simultaneamente um ingresso no sistema de

aposentadoria, tornou-se mesmo claramente mino-

ritário para três países: a França, a Alemanha, osPaíses Baixos.” Em 1988, na França, somente 26,5%

dos ativos passavam diretamente da atividade à apo-

sentadoria: 35% vinham do sistema de pré-aposen-

tadoria e 20% do seguro desemprego. Na Alema-

nha, também a passagem direta à aposentadoriatornou-se minoritária: entre 1980 e 1984, metade

dos que se aposentavam vinham de um regime depensão por invalidez. Além disso, os próprios cri-

térios de atribuições de pensões por invalidez foram

modificados para fazer face às novas injunções defuncionalidade do trabalhador assalariado em re-

lação ao mercado de trabalho, contribuindo para

a multiplicação e a diversificação das modalidades

possíveis de saída precoce do mercado de trabalho,

por outras vias que não a da aposentadoria.

Essas alterações não são inócuas, elas incidemdiretamente sobre a representação social do ciclo da

vida. “O desenvolvimento dos sistemas de aposen-

tadoria ajudou, juntamente com outras políticas so-

ciais (a educação entre outras), a acentuar o peso

dos critérios cronológicos entre as referências quemarcam os limites e balizam as transições entre uma

idade e outra do ciclo da vida. As aposentadorias

contribuíram portanto para a cronologização do

percurso etário, doravante marcado essencialmen-

O jovem como modelo cultural

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22 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

te pelas idades cronológicas — a idade obrigatória

da escolaridade e a idade mínima fixada pelo fim

da escolaridade que delimita a infância e a adoles-cência, a idade fixada para o direito à aposentado-

ria integral assinalando a entrada na velhice, etc.”

Essa definição institucional do percurso etário tinhacomo corolário a sua normatização e a sua forte

previsibilidade. Hoje, o ciclo de vida ternário sofre,sob a influência da reestruturação da proteção so-

cial, duas transformações importantes: uma des-

cronologização do ciclo de vida e sua des-estan-

dardização. Passa-se de referências cronológicas a

referências funcionais para balizar os limites entreuma idade e outra. Isso é particularmente visível no

que se refere à atividade econômica, onde a prote-

ção social se orienta cada vez mais, conforme foidito, por critérios de funcionalidade. Mas essa al-

teração não é puramene corretiva, ela tende a tor-nar-se padrão.2 Por outro lado, a descronologiza-

ção do percurso etário induz um ordenamento im-

preciso, aleatório e não controlável. “O tempo ime-

diato, instantâneo (...) prevalece. Estaríamos evo-

luindo de um ‘tempo administrado’ para uma ‘re-cusa do tempo’.” (Guillemard, 1995, 189-192)

A tendência generalizada a um prolongamento

da escolaridade também estaria contribuindo parauma desconexão dos atributos da maturidade e,

portanto, para a des-organização do modelo terná-

rio do ciclo da vida. “Não se pode (...) tratar essas

transformações da adolescência como um simples

alongamento (modelo do postergamento ou do sur-sis), nem como uma simples redefinição do perído,

ligada às transformações demográficas gerais. São

a estrutura e a composição dos atributos sociais dajuventude, os modos de acesso à maturidade que se

encontram modificados.” Não se trata de fenôme-no puramente social, mas também cultural. O sig-

nificado simbólico de certos atributos se altera e

certas idades diminuem — a idade do acesso ao re-

lógio, ao voto, ao exercício da sexualidade adulta,

à moradia independente, à detenção de um meio delocomoção independente, carro ou moto. (Cham-

boredon, 1995, 17, 18, 20) Mas, ao mesmo tem-

po, isso não ocorre de maneira homogênea em to-das as camadas da população. O desemprego do

jovem e a carência de autonomia financeira obri-gam muitos a permanecerem durante muito tempo

sob o mesmo teto que os pais. Entre as camadas

populares a separação entre sexualidade precoce e

reprodução, que já não encontra mais um freio efi-

ciente na definição moral da honra feminina, nemsempre se faz de modo adequado. Etc.

Mutação biológica do ciclo da vida:o jovem como modelo cultural

A desorganização do modelo ternário do ciclo

da vida, vista sob o prisma do reordenamento funcio-

nal das prestações oferecidas pelo Estado no cam-

po da proteção social, constitui apenas um dos in-

dicadores das transformações mais gerais do mun-do contemporâneo, particularmente no que se re-

fere às responsabilidades respectivas e à lógica das

reciprocidades entre os diferentes grupos etários.

Embora nossa consciência dessas transforma-

ções seja ainda extremamente recente, já parece cla-

ro que o modelo educativo da socialização, co-fun-dador da ordem moderna, entrou em estado de ob-

solescência. Vários indícios apontam para um modo

de ordenamento cultural que seria hoje, se recorrer-

mos às categorias de Mead (1979), mais cofigu-

rativo, no sentido de um aprendizado comum rea-

2 “Assim, no caso dos Estados Unidos, onde invalideze desemprego desempenharam um papel restrito, sabe-se que

qualquer critério de idade para o exercício, após 40 anos,

da atividade profissional foi abolido desde 1986, no qua-

dro da emenda à lei contra a discriminação no emprego. Essedispositivo legislativo introduz o princípio de um direito aotrabalho e ao prolongamento da atividade ao qual não pode

ser oposto nenhum critério etário. Esboça, conseqüentemen-

te, uma forma de organização social diferente do percursoetário, marcada por um recuo do critério da idade crono-

lógica e a prevalência de critérios funcionais, fundados nascapacidades e desempenhos do trabalhador. Somente esses

últimos critérios autorizam doravante legitimamente o em-

pregador americano a despedir ou a aposentar.” (Guille-mard, 1995, 189)

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Revista Brasileira de Educação 23

lizado pelos diferentes grupos etários face às injun-

ções de um mundo que lhes aparece como funda-

mentalmente novo, do que pós-figurativo, como ofoi o modelo da modernidade ocidental, pautado na

transmissão da experiência passada como elemen-

to de ordenação e domesticação do futuro, ou pré-figurativo como foi o modelo fundado nas utopias

de que foi portadora a geração dos anos sessenta.

Mas não se trata apenas de aceleração da mu-dança social. Trata-se também de uma verdadeira

mutação biológica do ciclo da vida, introduzida a

partir de uma elevação importante da esperança de

vida, que já dobrou em menos de um século e cujo

processo de alongamento tende a continuar. Desseponto de vista, a definição das fases da vida, pon-

tuada em seus extremos pelo nascimento e pelamorte, sofre também uma alteração profunda, cu-

jas conseqüências permanecem ainda obscuras para

nós (Morin, 1970). O envelhecimento postergadotransforma o jovem, de promessa de futuro que era,

em modelo cultural do presente.

Guita Debert (1996, 12 e 13) observa, nessa

perspectiva, que “as novas imagens do envelheci-

mento e as formas contemporâneas de gestão da

velhice no contexto brasileiro (...) oferecem (...) um

quadro mais positivo do envelhecimento, que pas-sa a ser concebido como uma experiência hetero-

gênea em que a doença física e o declínio mental,

considerados fenômenos normais nesse estágio da

vida, são redefinidos como condições gerais queafetam as pessoas em qualquer fase.” Acrescenta no

entanto que seria ilusório pensar que essas mudan-

ças são acompanhadas de uma atitude mais toleran-

te em relação às idades. “A característica marcan-

te desse processo é a valorização da juventude queé associada a valores e a estilos de vida e não pro-

priamente a um grupo etário específico.” Mais

do que isso, “a promessa da eterna juventude é um

mecanismo fundamental de constituição de merca-

dos de consumo”. A importância dos meios de co-municação de massa como veículo de integração

cultural e o crescimento do consumo de massa con-

tribuem para essa juvenização. O tema das subcul-

turas juvenis ancoradas em experiências de classes

tende a ser relativizado e cede em parte lugar ao dos

estilos, gêneros e cenas numa representação da so-

ciedade enquanto espetáculo (Abramo, 1994).

O novo significado dos estudos sobre juven-tude emerge ao que parece desse conjunto de trans-

formações. Enquanto o adulto vive ainda sob o im-pacto de um modelo de sociedade que se decompõe,

o jovem já vive em um mundo radicalmente novo,

cujas categorias de inteligibilidade ele ajuda a cons-truir. Interrogar essas categorias permite não so-

mente uma melhor compreensão do universo de

referências de um grupo etário particular, mas tam-

bém da nova sociedade transformada pela mutação.

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Revista Brasileira de Educação 25

Tem crescido a atenção dirigida aos jovens nos

últimos anos no Brasil, tanto por parte da “opinião

pública” (notadamente os meios de comunicação de

massa) como da academia, assim como por parte

de atores políticos e de instituições, governamentaise não governamentais, que prestam serviços sociais.

Entre os meios de comunicação de massa, datelevisão à grande imprensa, passando pelas rádios,

revistas etc, assistimos a uma avalanche de produ-

tos especialmente dirigidos ao público adolescente

e juvenil (os cadernos teen nos grandes jornais, pro-

gramas de auditório na televisão, programas só derock ou de rap nas rádios e canais de televisão, re-

vistas de comportamento, moda e aconselhamento

etc.), mas também ao crescimento de noticiário arespeito de jovens. De forma geral, e a grosso modo,

pode-se notar uma divisão nestes dois diferentesmodos de tematização dos jovens nos meios de co-

municação. No caso dos produtos diretamente di-

rigidos a esse público, os temas normalmente são

cultura e comportamento: música, moda, estilo de

vida e estilo de aparecimento, esporte, lazer. Quan-do os jovens são assunto dos cadernos destinados

Considerações sobre a tematizaçãosocial da juventude no Brasil

Helena Wendel Abramo Departamento de Sociologia, Universidade de São PauloAção Educativa

aos “adultos”, no noticiário, em matérias analíti-

cas e editoriais, os temas mais comuns são aqueles

relacionados aos “problemas sociais”, como violên-

cia, crime, exploração sexual, drogadição, ou as

medidas para dirimir ou combater tais problemas.Na academia, depois de anos de quase total

ausência, os jovens voltam a ser tema de investiga-ção e reflexão, principalmente através de disserta-

ções de mestrado e teses de doutorado — no entan-

to, a maior parte da reflexão é ainda destinada a

discutir os sistemas e instituições presentes nas vi-

das dos jovens (notadamente as instituições esco-lares, ou a família, ou ainda os sistemas jurídicos e

penais, no caso de adolescentes em situação “anor-

mal” ou de risco), ou mesmo as estruturas sociaisque conformam situações “problemáticas” para os

jovens, poucas delas enfocando o modo como ospróprios jovens vivem e elaboram essas situações.

Só recentemente tem ganhado certo volume o nú-

mero de estudos voltados para a consideração dos

próprios jovens e suas experiências, suas percepções,

formas de sociabilidade e atuação.

Com relação às políticas públicas, é necessá-

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26 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

rio notar que, no Brasil, diferentemente de outros

países, nunca existiu uma tradição de políticas es-pecificamente destinadas aos jovens, como alvo di-

ferenciado do das crianças, para além da educação

formal1. Na Europa e Estados Unidos a formula-

ção de políticas para jovens e a designação de ins-tituições governamentais responsáveis por sua im-plementação têm se desenvolvido ao longo do sé-

culo; nos países de língua espanhola da América

Latina, esse fenômeno, de modo geral, ganha sig-

nificação a partir dos anos 80, principalmente es-

timulado por organismos como a CEPAL, ONU eo governo da Espanha, gerando algumas iniciativas

de cooperação regional e Ibero-americana, com in-

tercâmbio de informações e experiências, promoção

de capacitação técnica, de encontros para realiza-ção de diagnósticos e discussão de políticas. O Bra-sil, no entanto, passou ao largo desse movimento.

Somente recente e lentamente pode-se obser-

var, no Brasil, a preocupação de responsáveis pela

formulação de políticas governamentais com os jo-

vens: algumas prefeituras e governos estaduais têm

ensaiado a formulação de políticas específicas para

esse segmento da população, envolvendo programasde formação profissional e de oferecimento de ser-

viços especiais de saúde, cultura e lazer; nota-se tam-bém uma movimentação no plano federal para fo-

car a questão: foi criada, pela primeira vez, no Bra-

sil, uma Assessoria Especial para Assuntos de Ju-ventude, vinculada ao gabinete do Ministério da

Educação, e há dois programas do Comunidade

Solidária destinados a jovens: o Universidade Soli-

dária e um concurso de estímulo e financiamento

a programas de capacitação profissional de jovens.

Há mais tempo e em número bem maior queas ações governamentais, tem crescido projetos e

programas destinados a jovens por parte de insti-

tuições e agências de trabalho social (ongs, associa-

ções beneficientes, instituições de assistência etc.).

A maior parte desses projetos destina-se a prestaratendimento para adolescentes em situação de “des-

vantagem social” (adolescentes carentes é o termo

mais usado, visando adolescentes de família com

baixa renda ou de “comunidades pobres”) ou de“risco”, termo muito empregado para designar ado-lescentes que vivem fora das unidades familiares (os

“meninos de rua”), adolescentes submetidos à ex-

ploração sexual, ou aqueles envolvidos com o con-

sumo ou o tráfico de drogas, em atos de delinqüên-

cia etc.

Numa primeira visão panorâmica, pode-se ve-rificar que a maior parte dos programas desenvol-

vidos por estas instituições dividem-se em dois gran-

des blocos, todos eles visando dirimir ou pelo me-nos diminuir as dificuldades de integração social

desses adolescentes em desvantagem: programas deressocialização (através de educação não-formal,

oficinas ocupacionais, atividades de esporte e “ar-

te”) e programas de capacitação profissional e en-

caminhamento para o mercado de trabalho (que,

muitas vezes, não passam de oficinas ocupacionais,

ou seja, não logram promover qualquer tipo de qua-lificação para o trabalho). É necessário notar, po-

rém, que em parte considerável desses programas,apesar das boas intenções neles contidos, o que se

busca, explicita ou implicitamente, é uma conten-

ção do risco real ou potencial desses garotos, pelaseu “afastamento das ruas” ou pela ocupação de

“suas mãos ociosas”. Há alguns projetos preocupa-

dos com a questão da formação integral do adoles-

cente, na qual se inclui a sua formação para a “ci-

dadania”, enfoque que vem ganhando corpo maisrecentemente. A grosso modo, no entanto, pode-se

dizer que a maior parte desses programas está cen-

trado na busca de enfrentamento dos “problemas

sociais” que afetam a juventude (cuja causa ou cul-

pa se localiza na família, na sociedade ou no pró-prio jovem, dependendo do caso e da interpretação),

mas, no fundo, tomando os jovens eles próprios

como problemas sobre os quais é necessário inter-

vir, para salvá-los e reintegrá-los à ordem social.

Toda essa atividade, gerada por uma sensação

Helena Wendel Abramo

1 Quando falamos de juventude, neste artigo, estamos

nos referindo ao momento posterior à infância, que envol-

ve a adolescência e a juventude propriamente dita.

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Revista Brasileira de Educação 27

de urgência frente a situações de desamparo e des-

regramento, tem permanecido, na maior parte doscasos, num registro muito imediatista e desarticula-

do. Além disso, com pouca capacidade de gerar uma

compreensão mais ampla e aprofundada, por par-

te desses agentes sociais, a respeito do público alvo,de suas características, suas questões e modos deexperimentar e interpretar essas situações “proble-

máticas”. Por exemplo, em contraste com a elabo-

ração de informação, conceituação, pedagogias e

metodologias específicas para lidar com a infância,

que se começa a produzir no Brasil, em conseqüên-cia de toda a movimentação em torno da defesa das

crianças, quase não se encontram subsídios míni-

mos para um tratamento singularizados dos ado-

lescentes, muito menos dos jovens. É quase comose, apesar de terem crescido o número de ações eprogramas destinados a adolescentes e jovens, eles

continuem apenas desfocadamente visíveis, obscure-

cidos por uma sensação de que esta falta de instru-

mentos e “jeito” se deve ao fato de que a “adoles-

cência é mesmo uma fase difícil” de se lidar. É neces-

sário assinalar que há exceções, por exemplo, aque-les projetos que se baseiam na idéia de protagonis-

mo juvenil (ou seja, que buscam desenvolver ativida-

des centradas na noção de que os jovens são cola-boradores e partícipes nos processos educativos que

com eles se desenvolvem)2 ; mas a grande maioriados projetos se limita ao enquadramento anterior.

Num outro plano, tem sido constante, embo-

ra não possamos dizer consistente, a preocupação

de diferentes atores políticos com a juventude (par-

tidos políticos, sindicatos e centrais sindicais, alguns

movimentos sociais). No entanto, trata-se mais deuma preocupação com a ausência dos jovens nos

espaços e canais de participação política do que com

questões políticas relativas a eles. Essa ausência diz

respeito tanto à inexistência ou fraqueza de atores

juvenis nas esferas políticas (ao contrário do que

outrora foram as entidades estudantis e as juven-tudes partidárias), como à baixa adesão de jovens

aos organismos e movimentos políticos. A maior

parte dos atores políticos queixa-se da distância que

os jovens têm demonstrado para com as suas pro-posições, bandeiras e formas de atuação, o que re-flete, em primeiro plano, uma preocupação com a

renovação de quadros no interior dessas organiza-

ções, mais do que em tratar e incorporar temas le-

vantados pelos próprios jovens. Essa preocupação

vem acompanhada de um diagnóstico que identifi-ca nos jovens um desinteresse pela política e de um

modo mais geral pelas questões sociais, como resul-

tado da acentuação do individualismo e do prag-

matismo que se afirmam como tendências sociaiscrescentes, tornando-os “pré-políticos” ou quaseque inevitavelmente “a-políticos”.

É curioso notar que, apesar da juventude es-

tudantil ter tido, durante todo o período dito “de

modernização” do país (dos anos 30 aos 70), des-

tacada presença em prol dos processos de democra-

tização e combate às estruturas conservadoras, hou-

ve sempre certa ressalva com relação à eficácia desuas ações: para os setores conservadores, a suspeita

de baderna e de radicalismo transgressor; para al-guns setores da esquerda, a suspeita de alienação ou

de radicalidade pequeno-burguesa inconseqüente.

No entanto, a partir dos anos 80, o enfraquecimen-to desses atores estudantis levou a fazer notar, e

lamentar, o desaparecimento da juventude da cena

política, erigindo aquelas formas de atuação antes

suspeitas a modelos ideais de atuação, frente aos

quais todas as outras manifestações juvenis apare-cem como desqualificadas para a política. Mesmo

sua participação nas movimentações de rua pelo

impeachment de Collor, em 1992, foram largamen-

te desqualificadas por serem “espontaneistas”, “es-

petaculares”, com mais dimensão de “festa” do quede “efetiva” politização.

Por outro lado, os grupos juvenis que atuam

na esfera do comportamento e da cultura não têm

sido considerados como possíveis interlocutores pe-

los atores políticos, salvo raras exceções (entre elas

Considerações sobre a tematização social da juventude no Brasil

2 A maior parte dos programas que lidam com essa

perspectiva têm se desenvolvido nas áreas da saúde (princi-palmente sexualidade e prevenção de doenças sexualmente

transmissíveis) e da cultura.

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28 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

assume destaque o movimento negro), seja por se

apresentarem como muito difusos e com baixo graude formalização, seja por levantarem questões não

consideradas pertinentes para as agendas políticas

em pauta. Os partidos, principalmente os de esquer-

da, colam-se então, exclusivamente e de um modosufocante, às entidades estudantis, mas sem conse-guir apostar, ao mesmo tempo, em sua capacidade

de representação e mobilização.

Pode-se dizer que a preocupação dos atores

políticos, então, não sai desse plano da preocupa-

ção, não resultando na tentativa de realizar um en-

tendimento mais aprofundado deste setor, nem naformulação de ações a eles dirigidas. Resta, assim,

de um modo amplo e difundido, a manutenção de

uma desqualificação generalizada da atuação públi-ca dos jovens e um temor relativo à inserção dos

jovens nos processos de construção e consolidaçãoda democracia.

* * *

Uma análise mais detalhada dessas recentes

interpretações e ações destinadas aos jovens ainda

está para ser feita3. Contudo, uma questão, desde

já, pode ser levantada: parece estar presente, na

maior parte da abordagem relativa aos jovens, tantono plano da sua tematização como das ações a eles

dirigidas, uma grande dificuldade de considerar efe-

tivamente os jovens como sujeitos, mesmo quando

é essa a intenção, salvo raras exceções; uma dificul-

dade de ir além da sua consideração como “proble-ma social” e de incorporá-los como capazes de for-

mular questões significativas, de propor ações re-

levantes, de sustentar uma relação dialógica com

outros atores, de contribuir para a solução dos pro-

blemas sociais, além de simplesmente sofrê-los ouignorá-los.

Isso pode ser percebido pela discussão que se

faz atualmente a respeito da questão da “cidada-

nia”, tal como este termo tem assumido papel de

destaque na conjuntura brasileira: relativamente àquestão dos direitos e da participação de diferen-

tes sujeitos sociais. No entanto, toda vez que se re-

laciona a questão da juventude à da cidadania, seja

pelos atores políticos seja pelas instituições que for-mulam ações para jovens, são os “problemas” (asprivações, os desvios) que são enfocados; todo de-

bate, seminário ou publicação relacionando esses

dois termos (juventude e cidadania) traz os temas

da prostituição, das drogas, das doenças sexualmen-

te transmissíveis, da gravidez precoce, da violência.As questões elencadas são sempre aquelas que cons-

tituem os jovens como problemas (para si próprios

e para a sociedade) e nunca, ou quase nunca, ques-

tões enunciadas por eles, mesmo por que, regra ge-ral, não há espaço comum de enunciação entre gru-pos juvenis e atores políticos. Nesse sentido, o foco

central do debate concentra-se na denúncia dos di-

reitos negados (a partir da ótica dos adultos), assim

como a questão da participação só aparece pela

constatação da ausência. Ou seja, os jovens só es-

tão relacionados ao tema da cidadania enquantoprivação e mote de denúncia, e nunca — ou quase

nunca — como sujeitos capazes de participar dos

processos de definição, invenção e negociação dedireitos.

Essa dificuldade está ligada a fatores específi-

cos relativos à formulação de direitos sociais nasociedade brasileira (por exemplo, como a idéia de

dádiva e favor sobrepuja a de direito)4 e ao modo

como as diferenças sociais (sejam étnicas, culturais,

de gênero ou geracionais) têm conseguido se trans-

formar em alteridades políticas5, assim como aomodo como se processam a constituição de espa-

ços de conflito e negociação política na sociedade

brasileira. Mas, paralelamente a essa dimensão, tal

dificuldade está ligada, de uma maneira mais geral,

ao modo como a juventude tem sido tematizada na

3 Isto faz parte do projeto que busco desenvolver como

tese de doutorado, no Depto. de Sociologia da FFLCH daUSP.

4 Sales, 1994.

5 Telles, 1996.

Helena Wendel Abramo

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Revista Brasileira de Educação 29

sociedade ocidental contemporânea. É essa a ques-

tão que me interessa desenvolver neste artigo, de ummodo ainda apenas sugestivo e sob a forma de anota-

ção de idéias: a tematização da juventude pelo “sen-

so comum”, apoiada em representações construí-

das pelo pensamento acadêmico, retrabalhadas edifundidas pelos meios de comunicação, por atorespolíticos, agentes culturais e trabalhadores sociais.

* * *

De um modo geral, pode-se dizer que a “ju-

ventude” tem estado presente, tanto na opinião pú-

blica como no pensamento acadêmico, como uma

categoria propícia para simbolizar os dilemas dacontemporaneidade. A juventude, vista como cate-

goria geracional que substitui a atual, aparece comoretrato projetivo da sociedade. Nesse sentido, con-

densa as angústias, os medos assim como as espe-

ranças, em relação às tendências sociais percebidasno presente e aos rumos que essas tendências im-

primem para a conformação social futura.

A tematização da juventude pela ótica do “pro-

blema social” é histórica e já foi assinalada por mui-

tos autores: a juventude só se torna objeto de aten-

ção enquanto representa uma ameaça de ruptura

com a continuidade social: ameaça para si própriaou para a sociedade. Seja porque o indivíduo jovem

se desvia do seu caminho em direção à integração

social — por problemas localizados no próprio in-

divíduo ou nas instituições encarregadas de sua so-

cialização ou ainda por anomalia do próprio siste-ma social —, seja porque um grupo ou movimento

juvenil propõem ou produz transformações na or-

dem social ou ainda porque uma geração ameace

romper com a transmissão da herança cultural.

A concepção de juventude corrente na socio-

logia, e genericamente difundida como noção social,é profundamente baseada no conceito pelo qual a

sociologia funcionalista a constituiu como catego-

ria de análise: como um momento de transição no

ciclo de vida, da infância para a maturidade, que

corresponde a um momento específico e dramáti-co de socialização, em que os indivíduos processam

a sua integração e se tornam membros da socieda-

de, através da aquisição de elementos apropriados

da “cultura” e da assunção de papéis adultos. É,assim, o momento crucial no qual o indivíduo se

prepara para se constituir plenamente como sujei-

to social, livre, integrando-se à sociedade e poden-

do desempenhar os papéis para os quais se tornouapto através da interiorização dos seus valores, nor-mas e comportamentos. Por isso mesmo é um mo-

mento crucial para a continuidade social: é nesse

momento que a integração do indivíduo se efetiva

ou não, trazendo conseqüências para ele próprio e

para a manutenção da coesão social.

É nesse sentido que a ênfase da sociologia fun-cionalista e quase que de toda sociologia preocupa-

da com o tema da juventude recai sobre o proces-

so de socialização vivido pelos jovens e sobre aspossíveis disfunções nele encontradas. Como a ju-

ventude é pensada como um processo de desenvol-vimento social e pessoal de capacidades e ajuste aos

papéis adultos, são as falhas nesse desenvolvimen-

to e ajuste que se constituem em temas de preocupa-

ção social. É nesse sentido que a juventude só está

presente para o pensamento e a para a ação social

como “problema”: como objeto de falha, disfunçãoou anomia no processo de integração social; e, nu-

ma perspectiva mais abrangente, como tema de ris-co para a própria continuidade social.

Não é por acaso que a problematização é quase

sempre então uma problematização moral: o foco

real de preocupação é com a coesão moral da socie-dade e com a integridade moral do indivíduo — do

jovem como futuro membro da sociedade, integra-

do e funcional a ela. É nesse sentido também que na

maior parte das vezes a problematização social da

juventude é acompanhada do desencadeamento deuma espécie de “pânico moral” que condensa os me-

dos e angústias relativos ao questionamento da or-

dem social como conjunto coeso de normas sociais.6

* * *

6 Essa idéia de “pânico moral” foi desenvolvida por

A. Cohen e retomada por Hall & Jefferson, 1978 e por Bes-sant, 1993/94.

Considerações sobre a tematização social da juventude no Brasil

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30 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

De um modo ligeiro e quase caricatural, po-

demos retomar o modo como a juventude veio sen-do tematizada durante a segunda metade desse sé-

culo para verificar como acabou sendo sempre de-

positária de um certo medo7, categoria social fren-

te à qual se pode (ou deve) tomar atitudes de con-tenção, intervenção ou salvação, mas com a qual édifícil estabelecer uma relação de troca, de diálogo,

de intercâmbio.

Nos anos 50, o problema social da juventude

era a predisposição generalizada para a transgres-

são e a delinqüência, quase que inerente à condição

juvenil, corporificadas na figura dos “rebeldes semcausa”. De certa forma, é nesse momento que as-

sume uma dimensão social a noção que vinha sen-

do cunhada desde o fim do século passado a respeitoda adolescência como uma fase da vida turbulenta

e difícil, inerentemente pertubadora; como um mo-mento em si patológico, demandando cuidados e

atenção concentrados de adultos para “pastorear”

os jovens para um lugar seguro, para uma integra-

ção normal e sadia à sociedade.

Nos anos 50, quando os atos de “delinqüên-

cia juvenil” extravasam os limites dos setores “so-

cialmente anômalos” (os marginalizados, os imigran-

tes nas grandes metrópoles, as “classes perigosas”— como foram objeto de atenção na passagem do

século por criminologistas como Pestalozzi8) e se

tornam comuns entre jovens de setores operários in-

tegrados e de classe média, a juventude aparece elamesma como uma categoria social potencialmente

delinquente, por sua própria condição etária. O pro-

blema passa a ser o fato de que jovens que teriam

“condições objetivas” de ajuste ao mundo adulto

manifestam dificuldades nesse sentido, gerando an-gústias quanto ao próprio modelo de integração exis-

tente na sociedade. A interpretação baseada na ex-

plicação da “fase inerentemente difícil” leva a lo-

calizar o problema na adolescência enquanto tal, e

na formação de culturas juvenis como antagônicas

à sociedade adulta, resultando no conhecido proces-so de “demonização” do rock’n’roll, por ex., e na

busca de soluções através da prescrição de uma sé-

rie de medidas educativas e de controle para asse-

gurar a contenção dessa delinqüência. Mais tarde,esse pânico cede lugar a um entendimento da “nor-malidade” do desconforto e agitação adolescentes,

da circunscrição do significado das culturas juvenis

como espaços de socialização diferenciados e da fun-

cionalidade desse comportamento momentaneamen-

te desviante como parte do processo de integraçãoà sociedade adulta. Em algumas interpretações, até

como fonte de inovação e revigoramento sociais9. O

consolo se produz a partir da conclusão de que a

maior parte dos jovens, se bem conduzidos, acaba,depois de alguns percalços, integrando-se de formasadia e normal à sociedade; o problema volta a fi-

car circunscrito, assim, à delimitação dos grupos ou

setores juvenis estruturalmente anômalos, para os

quais se destinam medidas específicas de controle e

“ressocialização”.

Nos anos 60 e parte dos anos 70, o problema

apareceu como sendo o de toda uma geração dejovens ameaçando a ordem social, nos planos po-

lítico, cultural e moral, por uma atitude de críticaà ordem estabelecida e pelo desencadear de atos

concretos em busca de transformação — movimen-

tos estudantis e de oposição aos regimes autoritá-rios, contra a tecnocracia e todas as formas de do-

minação, movimentos pacifistas, as proposições da

contracultura, o movimento hippie.

A juventude apareceu então como a categoria

portadora da possibilidade de transformação pro-

funda: e para a maior parte da sociedade, portan-to, condensava o pânico da revolução. O medo aqui

era duplo: por um lado, o da reversão do “sistema”;

7 A esse respeito, ver Bessant, 1993/94.

8 Flitner, 1968.

9 A sociologia funcionalista norte-americana produ-

ziu intensamente estudos e debates a respeito das ações co-letivas da juventude, num arco amplo de interpretações,

tanto no enfoque da anomia como no da inovação e ajuste.Ver, entre outros, Parsons, 1942; Eisenstadt, 1976.

Helena Wendel Abramo

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Revista Brasileira de Educação 31

por outro, o medo de que, não conseguindo mudar

o sistema, os jovens condenavam a si próprios a ja-mais conseguirem se integrar ao funcionamento nor-

mal da sociedade, por sua própria recusa (os jovens

que entraram na clandestinidade, por um lado; por

outro lado, os jovens que se recusaram a assumirum emprego formal, que foram viver em comuni-dades à parte, com formas familiares e de sobrevi-

vência alternativas etc) — não mais como uma fase

passageira de dificuldades, mas como uma recusa

permanente de se adaptar, de se “enquadrar”.

No Brasil, é particularmente neste momento

que a questão da juventude ganha maior visibilida-de, exatamente pelo engajamento de jovens de classe

média, do ensino secundário e universitário, na luta

contra o regime autoritário, através de mobilizaçõesde entidades estudantis e do engajamento nos par-

tidos de esquerda; mas também pelos movimentosculturais que questionavam os padrões de compor-

tamento — sexuais, morais, na relação com a pro-

priedade e o consumo. Vale a pena lembrar que tal

medo gerou, aqui, respostas violentas de defesa des-

sa ordem: os jovens foram perseguidos pelos apa-

relhos repressivos, tanto pelo comportamento (ouso de drogas, o modo de se vestir etc) como por

suas idéias e ações políticas.Por outro lado, para alguns setores descontentes

com o sistema (como para pessoas de esquerda e pro-

motores da “contra-cultura”), esses movimentos ju-

venis condensaram o oposto, a esperança de trans-formação10. No entanto, mesmo para esse setores,

os jovens apareciam mais como uma fonte de ener-

gia utópica do que propriamente alguém capaz de

levar a cabo efetivamente tal transformação; e mui-

tos setores políticos de oposição à ordem (como ospartidos comunistas e organizações sindicais tradi-

cionais) interpretavam tais manifestações juvenis co-

mo ações pequeno-burguesas inconseqüentes quan-

do não ameaçadoras de um processo mais sério e

eficaz de negociações para transformações graduais;

nesse caso, o medo era o de que as ações juvenis atra-

palhassem a possibilidade efetiva de transformação.

Foi somente depois, quando tais movimentosjuvenis já haviam entrado num refluxo, que a ima-

gem dessa juventude dos anos 60 foi reelaborada e

assimilada de uma forma positiva, generalizando aótica da minoria que neles depositava diferentes

tipos de esperança: a imagem dos jovens dos anos60 plasmou-se como a de uma geração idealista,

generosa, criativa, que ousou sonhar e se compro-

meter com a mudança social. Essa reelaboração po-

sitiva acabou, desse modo, por fixar assim um mo-

delo ideal de juventude: transformando a rebeldia,o idealismo, a inovação e a utopia como caracte-

rísticas essenciais dessa categoria etária.11

É em contraste com essa imagem que a juven-tude dos anos 80 vai aparecer como patológica por-

que oposta à da geração dos anos 60: individualis-

ta, consumista, conservadora e indiferente aos as-suntos públicos, apática. Uma geração que recusa-

se a assumir o papel de inovação cultural que ago-

ra, depois da reelaboração feita sobre os anos 60,

passava a ser atributo da juventude como catego-

ria social. O problema relativo à juventude passa

então a ser a sua incapacidade de resistir ou ofere-

cer alternativas às tendências inscritas no sistemasocial: o individualismo, o conservadorismo moral,

o pragmatismo, a falta de idealismo e de compro-

misso político são vistos como problemas para a

possibilidade de mudar ou mesmo de corrigir astendências negativas do sistema. Tematizada por

aqueles que fizeram parte da geração dos anos 60

e 70, a juventude aparece aqui como depositária de

um certo medo relativo ao “fim da História”, uma

vez que nega seu papel como fonte de mudança.

Nos anos 90 a visibilidade social dos jovensmuda um pouco em relação aos anos 80: já não são

mais a apatia e desmobilização que chamam a aten-

ção; pelo contrário, é a presença de inúmeras figu-

ras juvenis nas ruas, envolvidas em diversos tipos

de ações individuais e coletivas. No entanto, a maior

10 Ver, entre outros autores, Roszak, 1972; Marcuse,

1970; Foracchi, 1972; Ianni, 1968. 11 Ver Abramo, 1994.

Considerações sobre a tematização social da juventude no Brasil

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32 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

parte dessas ações continua sendo relacionada aos

traços do individualismo, da fragmentação e ago-ra mais do que nunca, à violência, ao desregramento

e desvio (os meninos de rua, os arrastões, o surf 

ferroviário, as gangues, as galeras, os atos de puro

vandalismo). De certa forma há uma retomada deelementos característicos dos anos 50, na concen-tração da atenção nos problemas de comportamen-

to que levam a situações de desvio no processo de

integração social dos adolescentes (drogas, violên-

cia, envolvimento com a criminalidade e compor-

tamentos anti-sociais). Fruto de uma situação anô-mala, da falências das instituições de socialização,

da profunda cisão entre integrados e excluídos, de

uma cultura que estimula o hedonismo e leva a um

extremo individualismo, os jovens aparecem comovítimas e promotores de uma “dissolução do so-cial”. O pânico, aqui, se estrutura em torno da pró-

pria possibilidade de uma coesão social qualquer.

Como vítimas ou como promotores da cisão e

da dissolução social, os jovens se tornam depositá-

rios desse medo, dessa angústia, o que os faz apare-

cer, mesmo para aqueles que os defendem, e que de-

sejam uma transformação social, como a encarna-ção das impossibilidade de construção de parâmetros

éticos, de parâmetros de equidade, de superação dasinjustiças, de formulação de ideais, de diálogo de-

mocrático, de revigoração das instituições políticas,

de construção de projetos que transcendam o meropragmatismo, de transformação utópica. Ou seja,

como encarnação de todos os dilemas e dificuldades

com que a sociedade ela mesma tem se enfrentado.

E nessa formulação, como encarnação de impossi-

bilidades, eles nunca podem ser vistos, e ouvidos eentendidos, como sujeitos que apresentam suas pró-

prias questões, para além dos medos e esperanças dos

outros. Permanecem, assim, na verdade, semi-invi-

síveis, apesar da sempre crescente visibilidade que

a juventude tem alcançado na nossa sociedade, prin-cipalmente no interior dos meios de comunicação.

* * *

Uma indicação desse modo de tematizar os

jovens, particularmente no Brasil, no plano do ima-

ginário, tal como ela aparece referida em produtos

culturais, pode ser percebida a partir da observa-ção de dois filmes brasileiros recentes: O que é isso

companheiro e Como nascem os anjos12.

À primeira vista esses dois filmes nada têm em

comum, tratando de fatos, épocas e questões mui-to diferentes, a não ser o fato de que os protago-

nistas da ação, em ambos, são personagens juvenis.Sem nenhuma intenção de fazer considerações de

ordem estética, ou a respeito da propriedade das

abordagens dos fatos tratados pelos filmes (ou mes-

mo de entrar na polêmica relativa à “correção” his-

tórica e política que se produziu em torno do filme“O que é isso companheiro”), o interesse, aqui, é

o de levantar elementos para pensar no modo como

os personagens juvenis são enfocados nos dois fil-mes, para observar como, sob certo ângulo, eles se

apoiam em algumas das problematizações aponta-das ao longo desse artigo. Para isso, destacaremos,

talvez super-dimensionando, alguns traços presen-

tes nos filmes, exagerando certos traços a partir do

qual eles podem ser vistos, sem pretender que essa

leitura seja a única possível. Apenas me interessa

iluminá-la como uma indicação de uma percepçãopresente na opinião pública e que funciona como

pano de fundo para toda a tematização da juven-tude no Brasil.

No filme “O que é isso companheiro” os per-

sonagens protagonistas da ação central são jovens

de classe média que, no final dos anos 60, entran-do para uma organização de esquerda clandestina,

seqüestram o embaixador americano para forçar o

governo brasileiro a soltar e deixar sair do país pre-

sos políticos (fato real ocorrido em 1969, documen-

tado e relatado em livro por um dos integrantes daação, no qual o roteiro do filme foi baseado)13.

12 O que é isso companheiro? é um filme de Bruno

Barreto, lançado em 1997; Como nascem os anjos é de Mu-rilo Salles e foi exibido em 1996.

13 O livro, escrito por Fernando Gabeira, tem o mes-

mo título do filme e foi editado em 1979, pela Ed. Codecri.

Helena Wendel Abramo

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Revista Brasileira de Educação 33

No filme Como nascem os anjos os persona-

gens principais do drama são duas crianças a cami-nho da adolescência (com cerca de 12 anos), mo-

radores de uma favela do Rio de Janeiro, divididos

entre a busca por uma inserção “normal” na socie-

dade (através do estudo) e o mundo do tráfico e dacriminalidade; que se envolvem, meio sem querer,num seqüestro de um alto executivo de uma multi-

nacional americana. Um menino que tenta se man-

ter distante do universo do crime (pertencente a um

núcleo familiar estável e freqüentando a escola re-

gular) e sua maior amiga, que não tem esse tipo deinserção, e é namorada de um rapaz pertencente à

quadrilha da favela onde moram. Esse rapaz, após

um incidente com um dos chefes da quadrilha, tenta

fugir para se estabelecer em outro lugar; na fuga,acompanhado pela menina, que acaba arrastandojunto seu amigo, roubam um carro e vão para num

bairro rico, onde pedem para usar o banheiro de

uma mansão. O motorista do dono da casa, suspei-

tando de assalto, atira no rapaz que, revidando, o

mata. O rapaz, muito ferido, decide entrar na casa

e exigir que o executivo providencie curativo parao ferimento e meios para a fuga sem chamar aten-

ção da polícia; logo depois fica desacordado, e são

as crianças que têm de passar a dirigir a situação.A partir daí o drama se desenvolve em torno das

tentativas dos meninos saírem da casa, sem serempresos pela polícia, e mantendo os moradores da

casa como reféns.

São, como se vê, figuras juvenis totalmente

diferentes, mas nos dois casos, trata-se de figuras

emblemáticas para o período enfocado: jovens poli-

tizados nos anos 60, jovens pobres envolvidos coma criminalidade nos anos 90. E também nos dois

casos, encarnam a face mais dramática da juventude

do período: nos anos 60, a juventude em evidência

eram os jovens de classe média, empenhados em

propostas de mudança, tanto mudanças políticascomo comportamentais e de valores: estudantes do

ensino secundário e universitário, envolvidos nas

suas entidades e manifestações públicas, e jovens

envolvidos em movimentos culturais e contracul-

turais, hippies, “tropicalistas” etc. Os jovens que,

a partir do endurecimento do regime e do fechamen-

to dos canais de participação democrática, se envol-vem na guerrilha, vivendo na clandestinidade, fa-

zendo ações armadas, sendo presos, torturados, exi-

lados e muitas vezes mortos, são de fato, a face mais

dramática dessa juventude genericamente vista co-mo em busca de mudança.

Nos anos 90 as figuras juvenis mais em evidên-cia são os jovens pobres que aparecem nas ruas,

divididos entre o hedonismo e a violência: meninos

de rua, jovens infratores, gangues, galeras, tribos;

e, principalmente, jovens em “situação de risco”

(risco para si próprios e para a ordem social), dosquais aqueles envolvidos no tráfico, matando e mor-

rendo muito cedo, são uma das imagens mais dra-

máticas e ameaçadoras dos nossos tempos.Figuras paradigmáticas em cada conjuntura

histórica, mas também genericamente na constru-

ção social a respeito da juventude no Brasil, dia-metralmente opostas nas equações que se montam

a respeito da exclusão e da cidadania e na formu-

lação das esperanças e das angústias neles deposi-

tadas: numa ponta, os jovens estudantes politizados,

idealistas e comprometidos com as causas sociais e

políticas da sociedade; na outra, jovens carentes e

envolvidos com o mundo da criminalidade. O in-teresse de fazer uma reflexão conjunta desses dois

filmes, embora uma comparação possa, em muitos

aspectos, parecer um pouco forçada, é enfatizar co-

mo há um ângulo comum pelo qual essas duas fi-guras opostas de nossa juventude são vistas.

É curioso notar que alguns elementos de en-

redo se repetem nos dois filmes: no centro da ação

de ambos está o seqüestro de norte-americanos, em-

bora o sentido dos seqüestros seja completamente

diferente. E o seqüestro é um ato que provoca o piordos horrores: é crime hediondo, e nas duas diferen-

tes conjunturas históricas, por motivos e com sen-

tidos completamente distintos, séries de seqüestros

foram motivo de pânico e de violentas respostas

policiais. Nos dois casos escolhidos para serem re-tratados nos filmes, a ação desencadeada pelos jo-

vens é uma ação “criminosa” (embora uma seja um

crime “político” e a outra um crime “comum”),

Considerações sobre a tematização social da juventude no Brasil

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34 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

desencadeando a violenta resposta de aparatos poli-

ciais. Parodiando frase tristemente famosa, a ques-tão dos jovens, no Brasil, parece ser sempre um caso

de polícia.

Nos dois casos, também existe a figura de adul-

tos (ou de pessoas mais velhas que os personagenscentrais, mesmo jovens adultos com mais idade ou

mais experiência, que já não têm uma postura ounão se identificam como jovens) que impelem os

personagens juvenis às situações mais críticas. No

caso do filme “Como nascem os anjos” é o rapaz

envolvido no tráfico que joga as crianças na situa-

ção dramática, e é para salvá-lo que eles pioramcada vez mais a situação. No caso do filme “O que

é isso companheiro”, há a figura do velho militan-

te de esquerda e o outro militante, jovem ainda mascom uma postura totalmente rígida e já sem nenhu-

ma identificação com a jovialidade (que todos osoutros integrantes do grupo inicial conservam), que

“vêm de São Paulo” para dirigir a operação do se-

qüestro, e que buscam imprimir uma “racionalidade

política” (ou de guerra) à ação quase romântica e

fantástica proposta pelos jovens, forçando-os, por

exemplo, a negar critérios afetivos como os de ami-zade (ao indicar a lista dos militantes presos que

deveriam ser trocados pelo embaixador) e a enca-rar “com naturalidade” — ou como imperativo ló-

gico — a necessidade de execução, à queima rou-

pa, do inimigo.

É nesse ponto que me parece que reside umaidéia comum aos dois filmes, e que se relaciona com

a postura geral pela qual normalmente a questão da

juventude é tratada na nossa sociedade. Em ambos,

há uma mesma idéia subjacente, que é a dos jovens

como vítimas das lógicas do sistema e, nesse senti-do, manipulados pelo destino, ou seja, sempre hete-

rônomos, nunca autores reais de suas ações. Embo-

ra os jovens sejam os protagonistas das ações que

montam o drama, ações de alta intensidade e de

profundos efeitos, está presente a idéia de que elessão como que impelidos a essa ação, pela lógica do

sistema e pela lógica de instituições ou de atores que

operam à margem ou contra o sistema. Nunca por

sua própria lógica. Sujeitos incompletos, em suma,

ou incapazes de se tornarem sujeitos no sentido ple-

no da palavra.

No filme O que é isso companheiro?, os jovenssão vítimas da lógica política instaurada na ditadu-

ra: o fechamento dos espaços institucionalizados de

participação, o endurecimento da repressão a qual-quer forma de organização e manifestação e de todo

canal legal de proposição de mudança, joga os jo-vens insatisfeitos com o estado de coisas nos parti-

dos clandestinos que propunham a luta armada.

Uma vez nesse espaço, os jovens acabam aparecen-

do como vítimas da lógica da esquerda armada, que

parece encerrada numa armadilha, isolada e tenden-te a ter de provocar ações cada vez mais extremas

que, por sua vez, a vão isolando e encerrando cada

vez mais o sentido das suas ações. Nesse esquema,os jovens que assumem essa posição, no filme, são

retratados como jovens idealistas, desejosos de mu-dança, mas que acabam engulidos por essa lógica

que lhes escapa (quando não manipulados por adul-

tos com lógicas externas a eles).

Protagonistas de uma ação de alto impacto e

intensidade, de tal forma que é quase inacreditável

que jovens tão jovens pudessem tê-la levado a cabo,

esta acaba ficando, em última instância, sem senti-

do; embora tenha, no plano mais imediato, sido um“sucesso”, pois eles conseguem efetivamente a troca

dos presos políticos pelo embaixador, no plano mais

profundo a sua iniciativa, que visava a denúncia do

regime de exceção e a adesão popular à exigênciada transformação das regras políticas instauradas

pelo endurecimento da ditadura, se vê lograda —

o final do filme acentua o isolamento dos jovens,

sua decepção, o sentimento de estarem perdidos e

de toda sua atuação ter sido, em certa medida, umsacrifício inútil: acabam sendo todos presos, tortu-

rados, alguns são mortos e outros vão para o exí-

lio por força de outra operação da esquerda arma-

da (outro seqüestro de embaixador). Dessa manei-

ra, sua ação é quase uma ação inconseqüente, quan-to ao fim último que eles pretendem, e seu idealis-

mo acaba aparecendo quase como um desvario.

No filme Como nascem os anjos, os jovens são

vítimas da lógica econômica-social, da desigualda-

Helena Wendel Abramo

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Revista Brasileira de Educação 35

de, da exclusão, do mundo peculiar que se monta

nos morros cariocas, como um mundo à parte ondeimpera uma outra lógica, a lógica do tráfico, em

guerra contra a sociedade institucionalizada. No

meio desses dois fogos, os jovens moradores da fa-

vela são vítimas dessas duas lógicas conflitantes ecomplementares; as crianças se vêem compelidas aassumir o lado da marginalidade, meio por acaso

mas quase como destino inelutável. Compelidas por

que o tráfico e a marginalidade impõem padrões

culturais e de valores que conformam a vida na fa-

vela, por que não há outras referências (no caso damenina), ou mesmo, quando o esforço do menino

e da família se faz no sentido de construir um ou-

tro caminho, as chances de vivenciar experiências

que os desviam desse caminho são enormes, quaseinevitáveis. Mesmo que não estejam envolvidos emacontecimentos “delinqüentes”, a sociedade age co-

mo se assim fosse, levando os jovens a reagirem com

respostas que os acabam conduzindo a o que se ima-

gina a respeito deles. É uma lógica inescusável.

Assim, crianças, mais ou menos inocentes (umas

mais, outras menos), todas acabam envolvidas naexecução de atos que não queriam, não previam, de

que quase não têm consciência, sem ao menos en-

tender como chegaram àquilo. Suas ações, assim,são ações desvairadas, fruto de armadilhas do des-

tino, ou melhor, da lógica doentia instaurada nes-sa sociedade tão profundamente dividida. Ações,

novamente, inconseqüentes do ponto de vista da ra-

cionalidade dos próprios sujeitos, ou melhor dizen-

do, das vontades das próprias crianças, e com con-

seqüências terríveis e desastrosas para si própriose para os outros.

Nos dois casos, trata-se de ações inconseqüen-

tes quanto a seus fins, ações que se voltam contra

os próprios sujeitos que as executam, e ao mesmo

tempo, contra a sociedade. Ações que significam

risco para os jovens e risco para sociedade. Os jo-vens tornam-se, assim, fonte de medo e perplexida-

de. Mesmo se vistos com “simpatia”, como idea-

listas ou inocentes e como vítimas dos defeitos do

sistema social.

É importante ressaltar que não se pretende

aqui negar a existência dessas dimensões apontadas

nos filmes, nem a importância de discuti-las. Con-tudo, o que se busca desenvolver neste artigo é a

observação de que a acentuação da atenção nas di-

mensões de vitimização e heteronomia frente às ló-

gicas do sistema, acaba por manter invisível, e im-pensável, qualquer tipo de positividade das figurasjuvenis.

* * *

O que me interessou ressaltar nesse breve elen-

co de anotações, é o fato de que, ao privilegiar o

foco de nossa atenção sobre os jovens como emble-

mas dos problemas sociais, muitas vezes não con-seguimos enxergá-los e entendê-los propriamente;

e, como conseqüência, nos livrar de uma postura dedesqualificação da sua atuação como sujeitos. Se os

jovens que mais se aproximaram de uma atuação

política reconhecida, como os militantes de esquer-da dos anos 60, acabam por, ao fim e ao cabo, se-

rem desqualificados como incapazes de uma ação

com eficácia real, isso se acentua com os sujeitos

juvenis de agora, atuando num plano comporta-

mental e cultural sempre vizinho aos planos do he-

donismo, por um lado, e da violência, por outro —

e dessa maneira ajudando a compor a impressãogeral de que a juventude hoje está confinada a pro-

ceder através de comportamentos de desregramento

social.

Na conjuntura atual, dos anos 90, é muito pre-

sente e forte a imagem dos jovens que assustam eameaçam a integridade social. Vítimas do proces-

so de exclusão profunda que marca nossa socieda-

de e, ao mesmo tempo, do aprofundamento das ten-

dências do individualismo e do hedonismo, se com-

portam de forma desregrada e amoral, promoven-do o aprofundamento da fratura e do esgarçamento

social que os vitima. Podem tornar-se, assim, jun-

to com o medo, objeto da nossa compaixão e de

esforços para denunciar a lógica que os constrói

como vítimas e de ações para salvá-los dessa situa-ção. Mas dificilmente como sujeitos capazes de qual-

quer tipo de ação propositiva, como interlocutores

para decifrar conjuntamente, mesmo que conflituo-

Considerações sobre a tematização social da juventude no Brasil

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36 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

samente, o significado das tendências sociais do nos-

so presente e das saídas e soluções para elas.

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Revista Brasileira de Educação 37

Este artigo apresenta resultados preliminares

de investigação que examina a produção de conhe-

cimento sobre o tema juventude, apontando ques-

tões advindas do exame de dissertações e teses de-

fendidas nos Programas de Pós-Graduação em Edu-cação, de 1980 a 19951.

Estudos sobre juventude em educação

Marilia Pontes Sposito 

Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo

Inicialmente, torna-se necessário considerar

que os problemas da análise da produção de conhe-

cimento sobre jovens ou juventude recobrem um

elenco significativo de questões que incidem, prin-

cipalmente, sobre o próprio tema eleito para inves-tigação e sua eventual presença nos estudos queconstituem o campo da pesquisa educacional.

Para Mauger, o trabalho “aparentemente ino-

cente, técnico, de constituição e de apresentação de

uma bibliografia, de recenseamento de unidades de

pesquisa, de pesquisadores e de trabalhos em cur-

so, coloca um primeiro problema clássico: o da deli-mitação do domínio dos objetos” (1994, p.6). Bus-

cando oferecer um quadro amplo do estado das in-

vestigações sobre os jovens na França, esse pesqui-sador evidencia as dificuldades presentes nesse in-

tento, pois a primeira questão que se apresenta é ada própria definição da categoria juventude.

Poderíamos concluir que, aparentemente, os

pesquisadores interessados em estudar e realizar ba-

lanços sobre essa temática estariam frente a uma

situação paradoxal de difícil resolução. De um lado,

qualquer investigação em torno da produção de co-

1O projeto de pesquisa denomina-se “Juventude e Esco-larização: uma análise da produção de conhecimento” e está

sendo desenvolvido em conjunto com Sérgio Haddad (AçãoEducativa e PUC/SP), com o apoio da FAPESP e CNPq. Agra-

deço aos bolsistas Janaina Vargas, Marco Antonio Edreira,

Paula Gonçalves, Thereza Pozzi e Irene Miashiro pela sistema-tização dos dados. Ao Setor de Documentação de Ação Edu-

cativa o meu particular agradecimento pelo suporte técnicocompetente. Os dados aqui apresentados caracterizam-se pelo

seu caráter ainda inicial, retirados dos resumos das dissertações

e teses defendidas na área de Educação, pois em fase posteriora análise dos trabalhos será realizada a partir da leitura do

texto completo. Eventuais falhas do levantamento da produçãoainda estão sendo corrigidas mediante revisão e acesso a ou-

tras fontes, resultando, provavelmente, no acréscimo de traba-

lhos a serem considerados no âmbito da temática. Algumaslacunas podem, também, decorrer da existência de trabalhos

cujos resumos não foram enviados para a ANPEd ou CAPES.

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38 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

nhecimento exigiria, como pressuposto, a eleição de

uma definição, ainda que provisória, do objeto deestudo de modo a orientar os critérios de seleção.

De outra parte, como afirma Mauger, para formu-

lar essa categorização inicial as dificuldades não são

desprezíveis, pois seria quase impossível recorrer aum uso da categoria jovem que se imporia de modoigual a todos os pesquisadores. Assim, se para or-

denar fosse preciso recorrer a critérios comumente

utilizados e se, de fato, é problemática a adoção

desse mínimo já estabelecido, estaríamos diante de

um impasse de difícil resolução.

Uma das formas de aproximação, tendo emvista a exequibilidade do empreendimento investi-

gativo, reside em reconhecer que a própria defini-

ção da categoria juventude encerra um problemasociológico passível de investigação, na medida em

que os critérios que a constituem enquanto sujeitossão históricos e culturais. Sendo assim, os estudos

sobre tais sujeitos também sofrem essas influências

ao elegerem suas âncoras teóricas e respectivas for-

mas de aproximação do objeto.

Embora ocorra um reconhecimento tácito na

maior parte das análises em torno da condição de

transitoriedade como elemento importante para a

definição do jovem — transição da heteronomia dacriança para a autonomia do adulto — o modo co-

mo se dá essa passagem, sua duração e característi-

cas têm variado nos processos concretos e nas for-

mas de abordagem dos estudos que tradicionalmentese dedicam ao tema2. Pais (1990), ao examinar um

conjunto expressivo de autores que se dedicaram à

investigação sobre juventude, realiza um esforço de

sistematização, configurando, ao menos, dois gran-

des blocos que indicam a construção social do campode estudos: o primeiro compreenderia os trabalhos

que consideram a juventude como um conjunto so-

cial derivado de uma determinada fase de vida, com

ênfase nos aspectos geracionais; para outros a temá-

tica estaria subsumida no interior de outras dimen-

sões da vida social, definida a partir de universos maisamplos e diversificados, sobretudo aqueles deriva-

dos das diferentes situações de classe (p. 140).

É preciso reconhecer que, histórica e socialmen-

te, a juventude tem sido encarada como fase de vidamarcada por uma certa instabilidade associada a de-

terminados “problemas sociais”, mas o modo deapreensão de tais problemas também muda3. Assim,

se nos anos 60, a juventude era um “problema” na

medida em que podia ser definida como protagonista

de uma crise de valores e de um conflito de gerações

essencialmente situado sobre o terreno dos compor-tamentos éticos e culturais, a partir da década de 70

os “problemas” de emprego e de entrada na vida

ativa tomaram progressivamente a dianteira nos es-tudos sobre a juventude, quase transformando-a em

categoria econômica (Pais, 1990). Do mesmo modo, Jankowski (1992), ao realizar balanço sobre estu-

dos de gangues nos EUA — tema que participa do

foco de interesses da sociologia norte-americana des-

de o início dos anos 20 com a Escola de Chicago —

verifica que houve um arrefecimento desses estudos

nos anos 60. Nesse momento a atenção dos pesqui-sadores voltava-se para os movimentos de contra-

cultura e para as manifestações estudantis que atin-giam a sociedade norte-americana. No início da dé-

cada de 80, as pesquisas sobre gangues ocupam no-

vamente o interesse dos estudiosos, não só em vir-tude do decréscimo da visibilidade das manifestações

anteriores, como em decorrência da escalada de vio-

lência juvenil que atingiu o país.

Poderíamos considerar, como hipótese, que na

pesquisa em Educação, ênfases temáticas e catego-

rias de análise não se despem das influências dasconjunturas históricas e dos processos sociais em

que se movem, tornando-se mais ou menos permeá-

Marilia Pontes Sposito

2 As formulações de Mannheim constituem contribui-

ções fundamentais sobre o tema da juventude a partir da

idéia de transição (MANNHEIM, 1968 e 1982).

3 No artigo “De quoi parle-t-on quand on parle du

‘problème de la jeunesse’?”, Bourdieu (1986) examina as am-bigüidades presentes nessa expressão. Pais (1990) também

alerta para as diferenças existentes entre a definição da ju-ventude enquanto problema social e a definição da juven-

tude enquanto problema para análise sociológica.

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Revista Brasileira de Educação 39

veis a essas situações. Parte importante do seu modo

de construção se desvela nessa interação. Mas ou-tro elemento a ser considerado é a dinâmica do pró-

prio campo de conhecimento, caracterizado pela

adoção de matrizes disciplinares que, segundo Oli-

veira (1988), “articulariam de modo sistemático umconjunto de paradigmas, a condição de coexistiremno tempo, mantendo-se todos e cada um ativos e

relativamente eficientes” (p. 15)4.

Por essas razões cabe realizar, no âmbito da exa-

me da produção de conhecimento, a análise de como

um determinado campo de estudos também vem cons-

truindo teórica e conceitualmente o tema da juventu-de enquanto objeto de investigação, seus modos de

aproximação do fenômeno em questão, seus recortes

principais e, se possível, suas relações com os pro-cessos históricos que permitem a visibilidade desse

segmento na sociedade brasileira nos últimos anos.

Mas, a adoção desse escopo não isenta o pesqui-sador da necessidade de utilização de critérios clas-

sificatórios explícitos, mas essa exigência deve con-

templar a idéia de um certo grau de flexibilidade

para possibilitar, inclusive, o exame de estudos que

realizaram aproximações indiretas sobre a temática.

A fixação de alguns critérios relativos à faixa

etária constituiu um procedimento inicial e útil paraa seleção dos trabalhos, pois compreende uma pri-

meira delimitação como ponto de partida. Mas,

mesmo neste caso — a delimitação da faixa etária

— foi preciso considerar as condições sociais em quese opera o desenvolvimento dos ciclos de vida em

sociedades como a brasileira5. Integramos no con-

junto amplo denominado juventude os segmentos

etários que vão de 15 a 24 anos, seguindo as ori-entações de trabalhos na área demográfica, sobre-tudo aqueles desenvolvidos por Felicia Madeira6.

É preciso considerar os estritos limites em que

essa delimitação opera e seu caráter preliminar, pois

há enorme diferenças de tratamento dos dados inclu-

sive sob o ponto de vista sócio-demográfico. Sob o

ângulo restrito das estatísticas, em alguns países euro-peus, os estudos tendem a alongar os limites supe-

riores da faixa etária pela incorporação da população

com a idade de 29 anos (Bauby e Gerber, 1996). Essealongamento tem sido tratado como um desafio para

a investigação, revelador de uma nova fase — a pós-adolescência — que estaria configurando um período

de latência ou de moratória social pois o jovem, ao

concluir sua escolaridade, não consegue se inserir nas

atividades profissionais do mercado de trabalho for-

mal (Chamboredon, 1985 e Müxel, 1994). Mas, pa-

ra o conjunto da sociedade brasileira, a tendênciamaior é a de antecipação do início da vida juvenil

para antes dos 15 anos, na medida em que certascaracterísticas de autonomia e inserção em ativida-

des no mundo do trabalho — típicas do momento

definido como de transição da situação de dependên-cia da criança para a autonomia completa do adul-

to — tornam-se o horizonte imediato para grande

parcela dos setores empobrecidos.

De qualquer modo, a delimitação da faixa etá-

ria para levantamento das dissertações e teses não

Estudos sobre juventude em educação

4 Por essas razões Oliveira considera que no âmbito

da Antropologia Social — por extensão creio ser pertinen-te sua análise para o campo da Educação — matriz disci-

plinar e paradigma não seriam considerados sinônimos. As-sim, “à diferença das Ciências Naturais, que os registram

em sucessão — num processo contínuo de substituição —na Antropologia social os vemos em plena simultaneidade,sem que o novo paradigma elimine o anterior pela via das

‘revoluções científicas’. Discorda assim de Kuhn (1975), poisnesse campo pode ocorrer a convivência, muitas vezes em

um mesmo país ou em uma mesma instituição de várias

matrizes. As idéias de Oliveira foram citadas por Maria Ar-minda Arruda (1995) em seu artigo sobre Florestan Fer-

nandes e a Escola Paulista de Sociologia. Minha apropria-ção do trabalho de Roberto Cardoso de Oliveira decorre,

assim, da leitura do estudo de Arruda (p.123).

5 De acordo com Chamboredon o conceito de ciclo de

vida, útil para fins descritivos, pode ser enganador se ele su-gere a determinação natural dessas etapas e o caráter uni-

versal, homogêneo e estável de seu conteúdo (1985,.19).

6 Para Felicia Madeira, essa ampla faixa por ela estu-dada compreende de 15 a 19 anos os adolescentes e de 20

a 24 os jovens propriamente ditos. Os trabalhos de Madei-

ra (1986; 1988; 1989) a partir dos anos 80 têm se constituídoem uma importante referência sobre o tema no Brasil.

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40 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

implica em mera atribuição burocrática, mas deve

sofrer cuidadoso critério de definição da pertinênciaou não do estudo em questão, possibilitando, em

alguns casos, a incorporação de pesquisas de faixas

etárias um pouco anteriores ou superiores ao uni-

verso 15-24 anos.As questões acima enunciadas são, visivelmen-

te, expressão de processos históricos peculiares queresultaram, nos últimos anos, na superação do “mo-

delo de instalação” na passagem para a vida adul-

ta (Galland, 1991). Para Galland, a entrada na vida

adulta significa ultrapassar três etapas importantes,

delimitadas pela partida da família de origem, pelaentrada na vida profissional e pela formação de um

casal. Segundo este autor, os segmentos operários

eram caracterizados, no início do século, pela ins-tantaneidade da passagem da infância à vida adul-

ta e pela concordância necessária dessas três etapas.Em oposição, o modelo burguês delineava-se pela

idéia do “diletantismo” que possibilitava adiar o

momento e as etapas definitivas de entrada na vida

adulta sem renunciar, no entanto, a conhecer cer-

tas formas de independência.

As transformações observadas nos sistemas

escolares ao longo do século, que definiram um alon-

gamento da permanência no interior da escola paranovos segmentos sociais e as condições diferenciais

de acesso ao mundo do trabalho — sem significar

a formação de uma nova unidade conjugal ou o

abandono da casa paterna — exigiram novas mo-dalidades de compreensão para essa passagem, so-

bretudo nas sociedades urbanizadas, tanto centrais

como periféricas. Chamboredon (1985) propõe, as-

sim, a multiplicidade e a desconexão das diferen-

tes etapas de entrada na vida adulta. Em decorrên-cia, tanto a descristalização, significando dissocia-

ção no exercício de algumas funções adultas, e a

latência, que separa a posse de alguns atributos do

seu imediato exercício, seriam elementos importan-

tes para o estudo dos jovens nos dias atuais. O pri-meiro caso — a descristalização — oferece como

exemplo o exercício das atividades adultas da se-

xualidade já na puberdade, dissociado das funções

reprodutivas e familiares. O segundo caso — a la-

tência — seria ilustrado pela situação de posse de

habilitação profissional oferecida pelo sistema esco-lar sem o imediato ingresso no mercado de traba-

lho, situação típica de países como a França (Cham-

boredon, 1985, 21). Considerando as relações pre-

sentes nos modos de reprodução das diversas clas-ses sociais, torna-se também um desafio concebera multiplicidade e a desconexão das diferentes eta-

pas dessa passagem para a vida adulta incorporando

as situações peculiares da vida urbana e rural7.

Além do critério etário e dos cuidados teóri-

co-metodológicos de sua adoção, foi preciso recor-

rer a outros procedimentos que permitiram incor-porar os usos associados, ainda que indiretamen-

te, à noção de juventude8. A seleção dos trabalhos

foi feita, assim, a partir dos principais descritoresutilizados pelos autores para definir sua aproxima-

ção ao universo estudado, podendo envolver, cadadescritor, temáticas diversas. Um primeiro lote de

trabalhos foi reunido a partir do uso direto da ex-

pressão jovem no corpo da investigação. O segun-

do critério foi a seleção dos trabalhos que explici-

tamente utilizaram-se da categoria adolescentes e o

terceiro pela adoção da categoria adolescentes emsituações de exclusão como os assistidos, carentes,

menores, meninos e meninas de rua (essa últimacategoria foi contemplada pela seleção de estudos

que incorporaram os adolescentes ou a população

de 14 a 17 anos). O quarto uso diz respeito à cate-goria aluno ou estudante e o quinto pela combina-

ção trabalhador-estudante ou aluno-trabalhador9.

Finalmente, quanto aos recortes disciplinares

selecionados, embora a centralidade da investiga-

ção se restrinja aos estudos ancorados nas discipli-

nas compreendidas pelas Ciências Sociais (Sociolo-

7 A essas situações poderiam ser acrescentados os te-

mas relativos ao gênero e às etnias.

8 Esse uso é também reconhecido por Mauger (1994)

9 Sob a categoria outros foram reunidos os trabalhos

que, não obstante considerarem a população em questão noâmbito da faixa etária, utilizaram-se de descritores como

atleta, militares, etc.

Marilia Pontes Sposito

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Revista Brasileira de Educação 41

gia, de forma dominante, seguida pela Antropolo-

gia e Política) não foi possível desconsiderar as ên-fases derivadas da Psicologia no balanço da produ-

ção discente, em decorrência da tradição na pesqui-

sa educacional que sempre contemplou espaços im-

portantes para estudos examinados à luz dos temasdessa disciplina10.

De posse desses critérios iniciais foi precisopercorrer a vasta produção do período (1980-

1995), sintetizada pelos resumos publicados nos

Cadernos da ANPEd, compreendendo 651 Teses e

5441 dissertações, perfazendo um total de 6092

trabalhos. Desse conjunto, até o momento foi le-vantado um total de 217 dissertações e 27 teses

(Tabelas 1 e 2), correspondendo a 4% da produ-

ção em Educação11. Esse índice comparativo sofre

pequenas alterações no período, atingindo limitessuperiores em 1981 (8,4%), 1985 (7,9%) e em

1995 (6,4%). No entanto, é preciso reconhecer

que no interior da temática “Estudos sobre Juven-

tude” há um sensível crescimento nos últimosanos, pois cerca de metade da produção está con-centrada nos anos 90. Embora esse incremento

seja significativo é preciso considerar que nesse

mesmo período se observa, também, um cresci-

mento expressivo no número total de teses e dis-

sertações defendidas. Por essas razões é ainda pre-matura qualquer inferência sobre um maior inte-

resse sobre esse campo de investigações no interior

da área da Educação.

10 Não foram classificados os estudos que trataram de

componentes específicos do processo de ensino e aprendiza-gem — os de natureza estritamente pedagógica — que visa-

vam a uma percepção de questões relacionadas ao modo comoocorre a absorção de conceitos, conteúdos e novas metodo-

logias de ensino. Não constam também do levantamento as

dissertações e teses que examinaram populações portadorasde algum tipo de deficiência. Sobre a presença dos temas psi-

cológicos na pesquisa em educação consultar Warde (1993).

Tabela 1Produção acadêmica discente em juventude 1980-1995

Ano Dissertações % Teses % Total Total %

1980 9 4 0 - 9 3,71981 13 6,5 0 - 13 5,2

1982 8 3,6 1 3,7 9 3,7

1983 0 - 0 - 0 -1984 19 8,8 0 - 19 7,8

1985 16 7,2 2 7,4 18 7,4

1986 9 4 0 - 9 3,71987 12 5,5 0 - 12 5

1988 8 3,6 1 3,7 9 3,71989 18 8,2 7 26 25 10,2

1990 16 7,2 3 11,1 19 7,8

1991 13 6,5 1 3,7 14 5,71992 12 5,5 5 18,5 18 7,4

1993 12 5,5 1 3,7 13 5,21994 7 3,2 0 - 7 2,7

1995 45 20,7 6 22,2 51 20,8

Total 217 100 27 100 244 100

11 Embora tenha sido possível levantar os resumos de

trabalhos do ano de 1980, mediante listagens oferecidas pela

ANPED, os dados globais da produção não integram esseano porque o CD-ROM, que reuniu as informações conti-

das em todos os cadernos, oferece informações a partir doano de 1981.

Estudos sobre juventude em educação

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42 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

Tabela 3Distribuição geográfica da produção acadêmica discente por Ufs e regiões

Região/Estado Dissertações Teses Total % Total

Centro-Oeste 8 0 8 3,2Distrito Federal 3 0 3 1,2

Goiás 1 0 1 0,4

Mato Grosso 1 0 1 0,4Mato Grosso do Sul 3 0 3 1,2

Nordeste 21 0 21 8,4Bahia 7 0 7 2,8

Ceará 6 0 6 2,4

Paraíba 6 0 6 2,4Piauí 1 0 1 0,4

Rio Grande do Norte 1 0 1 0,4

Sudeste 129 20 149 61,3Espítito Santo 4 0 4 1,6

Minas Gerais 7 0 7 2,8Rio de Janeiro 53 2 55 22,6

São Paulo 65 18 83 34,3Sul 54 7 61 25,1

Paraná 8 0 8 3,2

Rio Grande do Sul 45 7 52 21,5Santa Catarina 1 0 1 0,4

sem identificação 5 0 5 2Total 217 27 244 100

Tabela 2Participação da produção acadêmica em juventude sobre o total nacional 1981-1995

Série Produção acadêmica discente nacional Produção acadêmica discente em juventudeAno Dissertações Teses Total Nac. Dissertações % Teses % Total Total %

1980** 9 0 9

1981 150 4 154 13 8 0 - 13 8,4

1982 161 4 165 8 5 1 25 9 5,41983 227 11 238 0 - 0 - 0 -1984 319 17 336 19 6 0 - 19 5,7

1985 205 22 227 16 7,8 2 9,1 18 7,9

1986 211 16 227 9 4,2 0 - 9 41987 244 26 270 12 5 0 - 12 4,4

1988 340 31 371 8 2,3 1 3,2 9 2,41989 383 58 451 18 4,5 7 12 25 5,5

1990 419 41 460 16 3,8 3 7,3 19 4,1

1991 404 47 461 13 3,2 1 1,7 14 31992 537 87 624 12 2,2 5 6,9 18 2,9

1993 526 88 614 12 2,2 1 1,1 13 2,11994 612 86 698 7 1,1 0 - 7 1

1995 693 103 796 45 6,4 6 5,8 51 6,4

Total 5441 651 6092 217 4 27 4,3 244 4* As porcentagens se referem ao total da produção da área de educação catalogadas no CD-Rom da ANPEd.

** O ano de 1980 não está computado no total de porcentagens, uma vez que o CD-Rom da ANPEd não fornece os dadosdeste ano.

Marilia Pontes Sposito

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Revista Brasileira de Educação 43

A distribuição geográfica da produção sobre

o tema revela que a região Sudeste reuniu 61,3%dos trabalhos defendidos nesse período, seguida da

região sul com 25,1%. Os estados de São Paulo e

Rio de Janeiro concentram 56,9% da produção nacio-

nal (34,3% e 22,6%, respectivamente) (Tabela 3)12 .

No entanto verifica-se a presença marcante do es-tado do Rio Grande do Sul, com 21,5% da produ-

ção nacional nos estudos sobre juventude, reunida

em duas instituições (PUC/RS e UFRGS) (Tabela 4).

Tabela 4Distribuição da produção acadêmica discente por entidades mantenedorasa

Instituição Dissertações Teses Total % Total

PUC/SP 25 9 34 14,1UFRGS 25 6 31 12,8

PUC/RS 20 1 21 8,7

UNICAMP 17 2 19 7,9PUC/RJ 13 2 15 6,2

UFRJ 14 0 14 5,8USP 7 6 13 5,4

UFSCar 10 1 11 4,5UFF 10 0 10 4,1IESAE 10 0 10 4,1

UFPR 8 0 8 3,2UFBA 7 0 7 2,8

UERJ 6 0 6 2,4

UFCE 6 0 6 2,4UFMG 6 0 6 2,4

UFPB 6 0 6 2,4

UFES 4 0 4 1,6PUCCAMP 3 0 3 1,3

UFMS 3 0 3 1,2UnB 3 0 3 1,2

UNIMEP 3 0 3 1,2

UFGO 1 0 1 0,4UFMT 1 0 1 0,4

UFPI 1 0 1 0,4UFRN 1 0 1 0,4

UFSC 1 0 1 0,4

UFU 1 0 1 0,4sem identificação 5 0 5 2

Total 217 27 239 100a Faltam os dados sobre as entidades mantenedoras relativos a cinco dissertações do ano de 1980

12 A concentração dos Programas de Pós-Graduação

na Região Sudeste e Sul, aliada à sua longevidade, explica,à primeira vista, a maior incidência de trabalhos defendi-

dos, pois os dados coletados seguem, praticamente, as pro-porções do conjunto da área, como demonstra o estudo de

Warde. No período de 1982/1991 a região Sudeste ficou

responsável por 67,7% e a região sul por 19,5% do totalda produção discente.

Estudos sobre juventude em educação

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44 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

Os descritores utilizados pelos autores referem-

se, sobretudo, às definições do sujeito a partir de suacondição de aluno ou estudante, compreendendo

59,1% dos trabalhos. Desse conjunto (144), 38 es-

tudos se referiram diretamente à categoria estudante-

trabalhador (15,6,% sobre o total dos descritores).O restante criou formas de aproximação do sujeitoa partir de outras categorias tendo como foco de in-

vestigação, os adolescentes (15,2%), jovens (13,5%),

adolescentes em situação de exclusão (9%) (Tabela 5).

O tema constitui um dos elementos importan-

tes para descrever e caracterizar essa produção. Con-

siderando-se apenas o tema principal é possível per-ceber que as relações dos jovens com as formas ins-

titucionais do processo educativo, compreendendo

a escola (primeiro e segundo graus), os cursos no-turnos e ensino superior, significaram 44,8 % dos

assuntos tratados nas dissertações e teses (Tabela 6).

Em termos de grau de ensino, a escolaridade de pri-

meiro e segundo graus recobre a maioria desses in-teresses temáticos e a pesquisa sobre ensino superior

dedicou-se, principalmente, ao estudo do destino

ocupacional e expectativas profissionais dos alunos,

buscando traçar seu perfil13. Os temas relativos aosaspectos psicossociais dos sujeitos investigados, taiscomo valores, julgamento moral, capacidade críti-

ca e representações integram 21,7% da produção,

sendo desenvolvidos por estudos que utilizaram so-

bretudo o termo adolescente como descritor, em sua

grande parte caracterizados por abordagens maispróximas das orientações da Psicologia.

As relações entre trabalho e educação no âm-

bito da faixa etária ocuparam 17,3% dos temas e o

conjunto restante de assuntos investigados, compre-ende 16,2% das dissertações e teses distribuídas em

âmbitos diversos. Nesse último bloco, caracterizado

Tabela 5Distribuição da produção acadêmica discente por descritores

Descritores Dissertações Teses Total % TotalEstudante 95 11 106 43,5

Estudante-trabalhador 34 4 38 15,6Adolescente 32 5 37 15,2

 Jovem 28 5 33 13,5Adolescente excluído 20 2 22 9Outros 8 0 3 3,2

Total 217 27 44 100

Tabela 6Distribuição da produção acadêmica discente por temas pesquisados

Tema Dissertações Teses Total % Total

Escola 41 1 42 17,3Trabalho e Educação 36 6 42 17,3

Cursos noturnos 29 3 32 13,1

Ensino superior 22 8 30 12,3Aspectos psicossociais 27 1 28 11,5

Representações 21 4 25 10,2Participação política 11 1 12 4,9

Projetos de atendimento 8 2 10 4,1

Meios de comunicação 6 0 6 2,4Grupos juvenis 4 1 5 2

Violência 2 0 2 0,8Outros* 10 0 10 4,1

Total 217 27 244 100

* Inclui prática de esporte, educação ambiental, educação militar, prostituição infanto-juvenil

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Revista Brasileira de Educação 45

pela sua baixa freqüência, concentram-se alguns te-

mas mais próximos dos estudos clássicos da Socio-logia da Juventude. Dentre eles estão presentes as

investigações desenvolvidas em torno do movimento

estudantil e da participação política compreendendo

12 trabalhos (4,9% do total da produção sobre ju-ventude). Temas como projetos e instituições destina-das aos adolescentes em situação de risco, envolven-

do propostas alternativas estão presentes em 4,1%

dos trabalhos selecionados e, em menor número, as

pesquisas envolvendo jovens e mídia (2,4%). As aná-

lises sobre grupos juvenis (gangues, galeras, grupos

musicais) que foram objeto de investigação de apenas5 trabalhos (2%) ou violência (0,8%) constituem os

últimos grupos em termos de freqüência. A categoria

outros, reunindo estudos muito díspares quanto ao

tema, inclui educação ambiental, educação militar,prostituição infanto-juvenil e prática de esportes.

Se considerarmos a seqüência temporal tantona utilização dos descritores como nas preferências

temáticas alguns indícios importantes de mudança

de ênfase podem ser verificados (Tabelas de 7 a 10).

Tabela 7Distribuição (ano a ano) da produção acadêmica discente por descritores

Descritores Jovem Adolescente Estudante Estudante Adolescente Outros Total

Ano trabalhador excluído1980 - 2 6 - 1 - 9

1981 - 3 7 1 1 1 131982 1 1 4 - 3 - 9

1983 - - - - - - -1984 - 3 14 1 1 - 19

1985 3 6 6 2 - 1 18

1986 2 2 4 1 - - 91987 2 - 7 1 1 1 12

1988 3 1 4 1 - - 91989 1 4 10 5 4 1 25

1990 3 1 9 5 - 1 19

1991 3 3 3 3 2 - 141992 1 2 8 5 1 - 17

1993 3 1 3 6 - - 131994 1 - - 5 1 - 7

1995 10 8 21 2 7 3 51

Total 33 37 106 38 22 8 244Total % 13,5 15,2 43,5 15,6 9 3,2 100

Tabela 8Distribuição (a cada 5 anos) da produção acadêmica discente por descritor

Descritores 80-84 85-89 90-95 Total Jovens 2% 15% 17,4% 13,5%

Adolescente 18% 17,8% 12,4% 15,2%Estudante 62% 42,5% 36,4% 43,5%

Estudante trabalhador 4% 13,7% 21,5% 15,6%

Adolescente excluído 12% 5,5% 9% 9%Outros 2% 5,5% 3,3% 3,2%

Total 100% 100% 100% 100%

13 Como exemplo, citaríamos estudos que trataram decarreiras, como o perfil do estudante de enfermagem, etc.

Estudos sobre juventude em educação

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46 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

Quanto ao uso de descritores pode ser obser-

vado o decréscimo gradativo da utilização do ter-mo adolescente (de 18% no período 80-84 para

12,4% na fase mais recente); verifica-se o aumen-

to da freqüência para o descritor jovem, pratica-

mente inexistente no início dos anos 80 (2%), al-

cançando proporção maior já nos primeiros cinco

anos da década de 90 (17,4%) (Tabelas 7 e 8). Aeste dado pode se acrescentar um decréscimo nas

categorias relativas à condição escolar — de 66%

no primeiro período para 57,5% — aliado a uma

significativa alteração no modo de sua abordagem.

Tabela 9Distribuição (ano a ano) da produção acadêmica discente por temas pesquisados

Ano 1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 Total

TemaEscola 3 4 1 - 2 3 1 3 1 5 4 1 2 1 - 11 42

Educação eTrabalho 1 2 1 - 5 2 - 2 1 5 - 4 5 5 2 7 42

Cursos

Noturnos - - - - - 3 1 - 1 1 6 2 6 1 4 5 30

EnsinoSuperior - - 1 - 6 1 2 2 1 6 4 1 2 3 - 3 32Aspectos

Psicossociais 5 4 3 - 3 2 1 - 1 1 1 2 1 - - 5 28

Representações - 1 - - 2 4 1 - 2 5 - 1 1 3 - 5 25Grupos

juvenis - - - - - 1 - - - - - - - - 1 3 5Projetos de

Atendimento - 1 2 - 1 - - - - 1 - 1 - - - 3 10

Participaçãopolítica - - - - - 1 2 1 1 - 2 1 - - - 4 12

Violência - - - - - - - - - - 1 - - - - 1 2Meios de

Comunicação - 1 1 - - 1 1 - - - 1 - - - - 1 6

Outros - - - - - - - 4 1 1 - 1 - - - 3 10Total 9 13 9 - 19 18 9 12 9 25 19 14 17 13 7 51 244

Tabela 10Distribuição (a cada 5 anos) da produção acadêmica discente por temas pesquisados

Descritores 80-84 85-89 90-95 TotalEscola 20% 17,8% 15,7% 17,3%

Trabalho e educação 18% 13,7% 19% 17,3%

Ensino Superior 14% 16,5% 10,8% 13,1%Cursos Noturnos - 8,2% 19,9% 12,3%

Aspectos psicossociais 30% 6,9% 7,4% 11,5%Representações 6% 16,5% 8,2% 10,2%

Participação política - 6,9% 5,7% 4,9%Projetos de atendimento 8% 1,3% 3,3% 3,7%

Meios de comunicação 4% 2,7% 1,7% 2,4%

Grupos juvenis - 1,3% 3,3% 2%Violência - - 1,7% 0,8%

Outros - 8,2% 3,3% 4%Total 100% 100% 100% 100%

Marilia Pontes Sposito

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Revista Brasileira de Educação 47

O descritor estudante atingia 62% dos trabalhos e

passa, no último período, para 36,4%, ao passo queestudante-trabalhador de 4% no período 80-84

atinge 21,5% nos anos 90.

O modo de aproximação do sujeito expresso

no uso dessas categorias oferece alguns elementosimportantes para a reflexão. De um lado parece que

a ênfase em categorias consagradas da Psicologia —adolescente — tende a diminuir, envolvendo um mo-

vimento contrário de aumento da categoria jovem,

mais próxima da tradição sociológica. Por outro la-

do, o advento e disseminação da categoria estudan-

te-trabalhador revelam a busca de mecanismos deaproximação da realidade escolar capazes de inte-

grar outros aspectos das relações sociais — o traba-

lho — em que parte significativa de seus sujeitos estámergulhada. Chama a atenção a presença de estu-

dos no início dos anos 80 sobre adolescentes em si-tuação de exclusão e uma pequena recuperação de

sua freqüência nos anos 90. Esses dados indicam,

ainda, pequeno grau de permeabilidade da academia

à problemática desses segmentos. Intensamente de-

batido na segunda metade dos anos 80 e consagra-

do em nova ordenação institucional em 1990 como Estatuto da Criança e do Adolescente, o tema na

área educacional não sofreu tratamento acadêmicosuficiente de modo a oferecer uma contribuição crí-

tica para a formulação de políticas públicas.

As ênfases temáticas (Tabelas 9 e 10), ao lon-

go desses 15 anos, também oferecem elementos parareiterar certas observações já verificadas na análi-

se dos descritores. A sensível diminuição da freqüên-

cia de assuntos em torno dos aspectos psicossociais

da faixa etária parece indicar um decréscimo da

presença de matrizes disciplinares da Psicologia naanálise dos sujeitos (de 36% para 15,6% nos anos

90)14. Os assuntos relativos a educação e trabalho

e, sobretudo, cursos noturnos tenderam o ocupar

espaços mais relevantes, diminuindo as investiga-ções em torno da escola sem o recurso a essas adje-

tivações. As temáticas emergentes dos anos 90 com-

preendem o exame dos agrupamentos e as formas

de violência no horizonte da sociabilidade juvenil,ampliando os estudos sobre jovens, anteriormenterestritos à participação política (sobretudo no mo-

vimento estudantil).

Algumas considerações para a análise

Várias interrogações se impõem ao investiga-

dor, após o exame desses dados ainda preliminares,

resultantes do levantamento empreendido sobre a

produção discente na Pós-Graduação em Educaçãode 80 a 95.

A pequena participação do que amplamente

poderíamos designar como Estudos sobre Juventu-

de em Educação decorre das características da pró-

pria produção, marcada pela dispersão e variação

temática, de acordo com as análises responsáveis

pela avaliação acadêmica da área (Gatti, 1983 eWarde, 1993). Assim, a “dispersão e a variação te-

mática continuam a ser características predominan-

tes sobre a unidade e a continuidade. Não se tratade diversidade, traço positivo a ser conquistado e

preservado, mas de: a) fragmentação dos temas nu-ma multiplicidade de subtemas ou assuntos; b) pul-

verização dos campos temáticos e c) descontinuida-

de no trato dos assuntos” (Warde, 1993, 69).

Mas a investigação realizada por Warde apon-

ta, também, a preferência por temas pedagógicos,

apresentando um índice rápido de crescimento naépoca (1982-1991) principalmente os trabalhos so-

bre o ensino de disciplinas ou áreas de estudo, com-

preendendo gama variável de aspectos tais como

metodologias, técnicas de ensino, didáticas, plane-

jamento, entre outros (Warde, 1993, 57).

A ênfase nas pesquisas de natureza estritamen-te pedagógica, de acordo com Warde, parece decor-

rer da entrada na Pós-Graduação, nos anos 80, de

um número não desprezível de professores e técni-

cos de ensino ligados, por formação e atuação, ao

14 Tanto o decréscimo da presença da vertente psico-

lógica como o incremento de uma possível abordagem an-corada nas Ciências Sociais não indicam, em si mesmos,

progressos ou regressões no campo de estudos. A análisemais detida dessas inflexões só poderá ser empreendida me-

diante avaliação em profundidade dos trabalhos.

Estudos sobre juventude em educação

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48 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

ensino de primeiro e segundo graus e, em menor

quantidade, ao ensino superior. Ao que tudo indi-ca, interessados em compreender a escola, esses pes-

quisadores voltaram-se, sobretudo, para a investi-

gação de aspectos pedagógicos, revelando forte in-

teresse no processo de aprendizagem mas com es-cassa ênfase no conhecimento do aluno, em nossocaso adolescentes ou jovens, enquanto sujeito ao

qual se destina a atividade educativa da escola.

Tal fato parece auxiliar, também, na explica-

ção do isolamento da área em relação às demais

ciências humanas, estabelecendo apenas em alguns

temas e por parte de alguns pesquisadores “um di-álogo diferençado com outras áreas de investigação

social” (Warde, op. cit., 69).

Essas questões iniciais já permitem uma inda-gação importante. Nesse campo de estudos levan-

tados pelo conjunto de dissertações e teses, cujos

dados preliminares foram aqui apresentados, per-cebe-se a sua fraca participação no conjunto da pro-

dução da área nos últimos quinze anos. Mas, nas

teses e dissertações reunidas estaria ocorrendo esse

diálogo apontado por Warde, mediante a constitui-

ção de uma área, ainda que incipiente, de estudos

de natureza sociológica sobre jovens no interior da

pesquisa em Educação? Ou, reduzindo as expecta-tivas, e propondo a questão de forma mais modes-

ta, poderíamos admitir a hipótese de que no inte-

rior dos estudos sobre a Educação estaria sendo

contemplada, ainda que em caráter incipiente, umaforma de aproximação inspirada nas disciplinas

compreendidas pelas Ciências Sociais para a análi-

se do sujeito ao qual se destina o processo educativo,

particularmente na faixa etária que recobre os seg-

mentos juvenis? Seriam apenas os temas psicológi-cos o campo privilegiado de interlocução com ou-

tras áreas de investigação social?

Se considerarmos que a maioria dos pesquisa-

dores, conforme já apresentado, utilizou-se do tema

escola e dos descritores que examinam a condição

de aluno ou estudante, poderíamos supor, ao con-trário, que este seria, ainda, um aspecto reiterador

das características gerais da produção discente na

área. Seria então observada, nesse universo da pro-

dução discente, a inexistência de relativa porosidade

capaz de absorver dimensões da sociabilidade doeducando que afetariam os patamares em que se dá

a sua experiência escolar. As pesquisas estariam

privilegiando no desvelamento do sujeito apenas a

sua condição mais visível de aluno.Um ponto importante de inflexão nesse uni-

verso de dissertações e teses se verifica na adoçãoda categoria estudante-trabalhador no âmbito das

investigações que também procuraram entender a

escola noturna e as relações entre educação e tra-

balho15. Ou seja, para grande parte da população

escolar, a categoria aluno não possibilitaria umaaproximação mais global de suas práticas escola-

res, interesses e formas de sociabilidade. Por essas

razões a pesquisa voltou-se para o exame dessasformas híbridas que caracterizariam a experiência

educativa da maioria da população de origem tra-balhadora ou excluída da sociedade brasileira. Se

essa suposição é correta, as investigações mais re-

centes recorrem a novas abordagens, incluindo aque-

las que dizem respeito às formas associativas e de

expressão cultural dos segmentos juvenis na medi-

da em que se acentua a crise da escola e sua capa-cidade de intervenção socializadora sobre a popu-

lação em idade escolar. A compreensão da vida es-colar estaria, assim, exigindo novos aportes da pes-

quisa, uma vez que além da sua escassa capacida-

de de transmissão de conhecimentos e valores con-siderados legítimos pela sociedade, estaria ocorren-

do no seu interior a emergência de formas de soci-

abilidade juvenil não contempladas nas investiga-

ções (Dubet, 1987 e 1991, Dubet e Martuccelli,

1996). Ao que tudo indica estaria ocorrendo umpadrão de esgotamento das análises sobre a escola

no Brasil que privilegiariam apenas a experiência

pedagógica e os mecanismos presentes na distribui-

15 O primeiro trabalho localizado data de 1981, em-

bora não utilize a expressão estudante-trabalhador, trata doestudante que trabalha, como forma de aproximação do

sujeito, tentando apreender as especificidades da escola no-

turna. A dissertação foi posteriormente publicada sob o tí-tulo Ensino noturno realidade e ilusão (Carvalho, 1984).

Marilia Pontes Sposito

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Revista Brasileira de Educação 49

ção do conhecimento escolar sem levar em conta

outras dimensões e práticas sociais em que está mer-gulhado o sujeito16 .

Por outro lado, seria preciso reconhecer que

uma certa abertura da pesquisa em Educação às

disciplinas constitutivas das Ciências Sociais (emespecial a Sociologia) estaria fortalecida se esse cam-

po do conhecimento tivesse reservado em seus do-mínios uma atenção aos fenômenos educativos e aos

estudos sobre juventude. Este, entretanto, não foi

o caminho seguido.

O início dos estudos sociológicos sobre edu-

cação no Brasil indicava um caminho promissor e

fecundo para o desenvolvimento de pesquisas so-bre a escola que merece ser retomado. Em 1955, ao

realizar um balanço das tendências predominantesno pensamento sociológico sobre a Educação, An-

tônio Cândido identificava três grandes orientações:

uma primeira — filosófica-sociológica — qualifica-da por suas preocupações em definir o caráter so-

cial do processo educativo, estabelecendo as articula-

ções gerais entre o funcionamento da sociedade e

a educação; a segunda vertente — pedagógico-so-

ciológica — buscava os elementos teóricos que pu-

dessem ser traduzidos na possibilidade do bom fun-

cionamento da escola, mas se transformava em com-ponente da Pedagogia e da Administração Escolar;

e, finalmente, um ramo em vias de constituição, a

Sociologia da Educação, que tentava ao mesmo

tempo afastar-se do caráter especulativo da primeiratendência e do imediatismo presente na segunda

orientação.

Propunha Cândido que a Sociologia da Edu-

cação voltasse sua atenção para os aspectos sociais

do processo educacional, sem transformar a expli-

cação dada na chave mestra, que reduziria as situa-ções particulares ao que estaria estabelecido e in-

terpretado “a priori” em seus aspectos mais gené-

ricos. Sugeria, também, a analise sociológica das

situações pedagógicas desenvolvidas no âmbito da

escola, eixo central mas não exclusivo do processoeducativo na sociedade moderna (Cândido, 1973).

Utilizando-se da significação heurística atribuí-

da por Znanieck (1973), que considerava a escola

como grupo social instituído, no artigo “A estru-tura da escola” Cândido (1973 a) desenvolve um

excelente roteiro de investigação para a análise daunidade escolar. O caminho proposto procurava

dar conta do universo de relações que compunham

sua estrutura e funcionamento. Assim, tornava-se

preciso investigar não só os mecanismos que tradu-

zem a ação deliberada dos grupos instituidores, ex-pressos nas ordenações advindas do Poder Público,

como sua forma de sociabilidade interna que nas-

ce na dinâmica do próprio grupo, em decorrênciadas orientações e — tomo a liberdade de acrescen-

tar — do padrão de interações de seus agentes: cor-po administrativo, professores, alunos e suas famí-

lias. Essa sociabilidade, dizia Cândido, poderia ser

investigada tanto nas formas espontâneas de agru-

pamento e nos mecanismos produzidos para a sua

sustentação, como na sala de aula17.

Em suas reflexões pioneiras, Cândido não se

detém nesses aspectos e também aponta não só fe-

cundos caminhos para uma nascente Sociologia daEducação, mas contempla o espaço possível para

uma abordagem sociológica sobre juventude, arti-

culada ao campo dos estudos sociológicos sobre a

educação.

Ao levantar elementos importantes para a aná-lise das situações pedagógicas da escola e do proces-

so educativo, Cândido assinalava a inevitável ten-

são existente entre as gerações. Tratava-se de criti-

car a “ilusão pedagógica” de Durkheim (Durkheim,

16 A tese de doutorado de Guimarães (1995), que pri-

vilegiou no estudo da escola pública da cidade do Rio de Ja-

neiro as suas relações com as galeras de jovens e o narco-tráfico traduz essas tentativas de novos aportes.

17 Os trabalhos de Luiz Pereira, sua dissertação demestrado, “A escola numa área metropolitana” (1967) e o

artigo “Rendimentos e deficiências do ensino primário bra-

sileiro”, publicado no livro Estudos sobre o Brasil contem- porâneo (1971), ilustram a adoção dessas vertentes inspi-

radas em Cândido. João Baptista Borges Pereira (1976) tam-bém em sua dissertação de mestrado, publicada sob a for-

ma de livro em 1966, se utiliza das formulações de Cândido.

Estudos sobre juventude em educação

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50 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

1975) que examinou o tema da educação sem es-

tabelecer os conflitos entre os adultos e os imatu-ros (jovens e crianças) que condicionariam o pró-

prio processo de instrução.

Os estudos de Marialice Foracchi constituem,

até os nossos dias, o exemplo melhor sucedido detratamento do tema. Na busca da compreensão da

educação brasileira, dos dilemas nascidos no inte-rior de uma sociedade dependente, a pesquisadora

voltou sua atenção para os jovens. Analisou uma

categoria construída historicamente na dinâmica

dos embates entre as classes, mas que não se esgo-

tava no âmbito dessa relação. Seus trabalhos reve-lam as tentativas, impasses e as alternativas gestadas

no esforço desenvolvido pelos jovens estudantes

universitários para se afirmarem como sujeitos dosconflitos e das lutas sociais dos anos 60 (Foracchi,

1965; 1972; 1982).

A evolução das Ciências Sociais no Brasil com-preendeu o abandono da educação que se tornou

objeto quase inexistente para os sociólogos18 e o

escasso desenvolvimento do tema da juventude,

após a morte prematura de Marialice Foracchi. As

dissertações e teses defendidas na própria USP são

esparsas, não só na Sociologia como na Antropo-

logia e na Ciência Política. Não se configura nemuma sólida tradição investigativa no campo inicia-

do por Foracchi e, muito menos, a disseminação de

equipes constituídas em torno do tema. Quando a

preocupação se fez presente, as dissertações e teses

foram desenvolvidas por pesquisadores isolados ou

por raros grupos de pesquisa19.

Assim, se as Ciências Sociais no Brasil não de-senvolveram nos últimos 25 anos, com raras exce-

ções, um campo sólido nos estudos sobre juventu-

de, a pesquisa em Educação, quando se debruçousobre os sujeitos do processo educativo não encon-

trou nessa área do conhecimento possibilidades defértil interlocução.

Não obstante o maior desenvolvimento dos

estudos sobre juventude na França, Mauger (1994)

ainda aponta em seu balanço que a Sociologia da

 Juventude, enquanto domínio de pesquisa socioló-

gica nesse país, revestido de forte audiência políti-ca e de intenso teor profético ainda padecia de fra-

ca legitimidade científica e pouca consistência teó-rica no início dos anos 90. Propunha, esse autor, a

seguinte questão, é necessário ajudá-la a ser ou a

desaparecer? Para nós essa indagação se apresentade forma mais aguda, pois só recentemente o tema

da juventude tem aparecido no debate público e

político, recoberto pelos processos de exclusão so-

cial que atingem crianças e adolescentes nas deno-

minadas “situações de risco”. A ampla faixa que

completa 18 anos só se constitui interesse pelos ín-

dices de violência associados a esse segmento. A

19 A pesquisa em andamento pretende realizar balan-

ço de dissertações e teses sobre juventude no campo dasCiências Sociais, esgotando o eixo Rio-São Paulo. Há uma

publicação, em 1987, sobre jovens, “Bibliografia sobre lajuventud brasilera” que apresenta títulos, reunindo artigos

de periódicos, livros e teses, levantados mediante consulta

aos acervos de centros situados em São Paulo (Celaju, 1987).

O trabalho importante de balanço da literatura realizado porAlvim e Valladares (1988), final dos ano 80, abriu perspec-tivas no campo dos estudos sobre crianças e adolescentes em

situação de exclusão, oferecendo subsídios para a análise do

desenvolvimento dos estudos sociológicos sobre juventude.A publicação de Cardoso e Sampaio (1995) em torno da

produção na área, reúne estudos importantes mas não ofe-rece um quadro sistemático da produção devido a um vo-

lume significativo de trabalhos que não foram considerados

e à ausência de periodização e classificação das fontes naforma como a bibliografia foi apresentada.

18 Sobre as relações entre os sociólogos e a Educação

consultar os artigos de Luiz Antonio Cunha, (1992 e 1994).Um balanço realizado por Silke Weber sobre a produção

recente no país da pesquisa que estabeleceu as relações en-tre educação e sociedade, elencou as seguintes linhas de es-tudo: Estado e educação, Universidade e sociedade e Edu-

cação Popular, compreendendo a educação de adultos e osmovimentos sociais pela escola pública. Weber reitera o

relativo desinteresse dos sociólogos pela educação apoian-

do-se em levantamento realizado por Clarice Baeta Nevesem 1991, que havia localizado apenas 4 programas, dentre

os 13 existentes no país na área de Sociologia, que desen-volviam pesquisas em temas explicitamente ligados à edu-

cação (Weber, 1992).

Marilia Pontes Sposito

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Revista Brasileira de Educação 51

fraca visibilidade da questão na esfera pública bra-

sileira, alia-se à fraca penetração no âmbito da pes-quisa educacional, demandando inúmeros esforços

de adensamento teórico.

Os trabalhos mais recentes na área da Educa-

ção, a partir de meados dos anos 90, tendem a in-corporar categorias sociológicas e parecem acenar

com novas perspectivas. Talvez estejam sendo cri-adas as condições para um diálogo mais fecundo e

promissor com os cientistas sociais interessados no

tema, de modo a se constituir uma área sólida de

investigação em torno dos estudos sobre juventu-

de no Brasil.

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Revista Brasileira de Educação 53

Muito se tem escrito sobre a relação entre po-

breza, escolaridade e oportunidades de emprego nas

últimas décadas. Algumas das idéias de maior im-

pacto foram disseminadas e apropriadas como cer-

tezas, a despeito do cuidado de seus respectivos auto-res no sentido de evitar totalizações. Em conseqüên-cia, a tentativa de rediscutir qualquer uma delas

constitui, sempre, um empreendimento de alto risco1.

No Brasil, as principais dessas certezas talvez

sejam: é crescente a demanda por educação nas ca-

madas populares, o que indica o valor a ela atribuí-

do nesse nível de classe; a grande maioria das crian-

Jovens urbanos pobresAnotações sobre escolaridade e emprego

 Jerusa Vieira Gomes Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo

ças que ingressam nas escolas de primeiro grau apre-

senta dificuldades de aprendizagem e de ajustamen-

to, o que explica, em grande parte, os elevados ín-

dices de repetência, de fracasso e de evasão-expul-

são escolar; a luta pela estrita sobrevivência é res-ponsável pelo trabalho precoce de amplo contingen-te infanto-juvenil que, por esse motivo, abandona

a escola; as oportunidades de emprego dependem

do nível de escolaridade alcançado; as novas tecno-

logias e a globalização da economia tendem a im-

por exigências mais elevadas de escolaridade querpara o ingresso quer para a permanência no empre-

1 Bourdieu usa a expressão certezas partilhadas, em re-

lação às quais cabe a dúvida radical. Nas ciências sociais “asrupturas epistemológicas são muitas vezes rupturas sociais,

rupturas com as crenças fundamentais de um grupo e, porvezes, com as crenças fundamentais do corpo de profissio-

nais, com o corpo de certezas partilhadas que fundamenta a

communis doctorum opinio. Praticar a dúvida radical em socio-logia é por-se um pouco fora da lei.” (1989, p.38-9). É ainda

ele quem diz: “Tratando-se de pensar o mundo social, nun-ca se corre o risco de exagerar a dificuldade ou as ameaças.

A força do pré-construído está em que, achando-se inscrito

ao mesmo tempo nas coisas e nos cérebros, ele se apresentacom as aparências da evidência, que passa despercebida por-

que é perfeitamente natural. A ruptura é, com efeito, umaconversão do olhar(...). E isso não é possível sem uma ver-

dadeira conversão, uma metanoia, uma revolução mental,

uma mudança de toda a visão do mundo social. (ibidem, p.49)Porém, temas como o tratado neste texto implicam riscos ain-

da maiores. Afinal, a falácia da neutralidade científica já foisuficientemente desmistificada em nosso tempo.

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54 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

go, em todos os níveis da hierarquia ocupacional;

os índices de desemprego e de exclusão social ten-dem, doravante, a afetar, prioritariamente, as po-

pulações menos escolarizadas. Em vista disso, pre-

vê-se que as desigualdades escolares repercutam ca-

da vez mais nas oportunidades de emprego dispo-níveis ao trabalhador e, em especial, ao jovem tra-balhador pobre2.

Por certo essas idéias são verdadeiras, mas nem

são conclusivas nem estão livres de interpretações

equivocadas. É o que parece ocorrer em relação

àquelas que dizem respeito à evasão/expulsão esco-

lar e ao elevado valor atribuído pelos jovens pobresà educação escolar. E, ainda, àquelas que, implíci-

ta ou explicitamente, reconhecem na escolaridade

o critério mais relevante a ser requerido para o in-gresso e a permanência no emprego, em decorrên-

cia das novas condições de trabalho. No sentido decontribuir para o esclarecimento delas, este artigo

assume o desafio de recolocar duas questões: Em

que medida a escola é verdadeiramente valorizada

pelo jovem pobre e por seu grupo doméstico? Qual

a perspectiva de valorização do critério escolaridade

no caso dos empregos acessíveis ao jovem urbanopobre? Respondê-las talvez nos ajude a desvendar

uma outra face do processo de evasão/expulsão,ainda insuficientemente estudada, e que se relacio-

na à história familiar de socialização. Ou, mais es-

pecificamente, à história familiar de escolarização.

Sem dúvida, a justificativa para retomar duasquestões tão antigas assenta-se na suposição de que,

além dos diversos fatores já sobejamente analisados

pela literatura, a vida escolar de cada sujeito depen-

de, também, de sua história singular de socializa-ção no seu grupo doméstico de origem3. Ou seja: a

história de escolarização de uma família particular

ilumina a história singular de seus filhos. No caso

de famílias populares a escolarização é uma expe-riência recente, o que se reflete na escolarização dasnovas gerações4. Não bastasse isso — e por mais

paradoxal que esta afirmação possa soar em tem-

pos de modernização da produção —, a escolarida-

de parece constituir um critério ainda secundário

quando estão em jogo os emprego acessíveis ao jo-vem nesse nível de classe. À medida que o jovem se

dá conta disso é-lhe mais difícil reconhecer a impor-

tância do saber escolar.

As proposições acima assumidas fundamen-tam-se em dados da literatura, internacional e na-

cional, e em resultados de pesquisas de campo de-senvolvidas com jovens pobres na região metropo-

litana de São Paulo, conforme veremos a seguir.

Pobreza e escolaridade: breve(re)leitura de alguns escritos

Paul Willis (1977), um dos autores mais influen-

tes sobre o pensamento construído nesse campo,aponta-nos as dificuldades de escolarização de crian-

ças e de jovens urbanos da classe operária. Ele tece

sua explicação em termos culturalistas, de oposiçãoentre as esferas (zonas) formal e informal da vida

quotidiana. Para ele, o grupo informal é a unidade

básica de uma cultura e, nessa medida, a sua fonte

de resistência. Assim, explica a indisciplina e a eva-

são escolar entre esses jovens em termos de respos-

 Jerusa Vieira Gomes

2

O fato de o sistema escolar brasileiro reproduzir asdesigualdades sociais e os altos índices de reprovação e deevasão no 1º Grau foi reconhecido, no início do corrente ano

letivo, pelo atual Ministro da Educação que, em entrevistaà imprensa, afirmou: “O número de alunos que concluem

o primeiro grau é apenas a metade dos que ingressam, e os

níveis de evasão escolar e repetência são muito elevados.(...)O sistema reproduz a injustiça social. (...) Na medida em que

os os filhos da classe média entrem na escola pública, os paisvão se interessar pelo ensino. (cf. Jornal do Brasil, 16-02-

97, p.12).

3 A importância da socialização familiar e, nela, damediação foi por mim analisada em textos anteriores. Veja-

se, especialmente: Gomes (1990, 1993 e 1994).

4 No caso brasileiro, embora os estudos realizados e/ 

ou orientados por Maria Helena Souza Patto (ex. Patto,1990) expliquem a produção/reprodução pelas instituições

escolares, cabe, ainda, aprofundar o conhecimento sobre os

aspectos sociais e familiares envolvidos nesse processo.

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Revista Brasileira de Educação 55

ta (oposição) do grupo informal às demandas da

zona formal, ou seja, da escola5.

A despeito das inúmeras críticas que lhe forame ainda são dirigidas, seu trabalho constitui um mar-

co, uma referência obrigatória, e contém pistas para

outras pesquisas. A mais importante delas, tendo emvista o propósito deste artigo, consiste nesse reco-

nhecimento de uma certa resistência à escolariza-ção, quando tantos acadêmicos talvez ainda acre-

ditassem que o desejo de saber, implícito nos mo-

vimentos pró-escolarização, já seria suficiente para

o bom êxito dos empreendimentos individuais. Mes-

mo considerando discutível a interpretação em ter-mos de cultura (e contra-cultura) de classe, tão em

voga naqueles tempos, esse fenômeno de resistên-

cia tem-se revelado persistente nos mais diversospaíses.

Porém, Willis vai ainda mais longe quando:

refere-se à organização social da escola, discute ainfluência parental sobre a escolarização dos filhos

e, sobretudo, quando chama a nossa atenção para

a influência dos valores e das atitudes que os pais

manifestam em relação à escola sobre os valores e

as atitudes dos filhos, pelo menos até que eles am-

pliem o círculo de relações sociais e escapem à in-

fluência parental direta. Em suma, o que Willis aca-ba pondo em jogo, penso, é a necessidade de estu-

dos comparativos sobre a educação familiar e a edu-

cação escolar.

Alguns anos antes, revendo os principais estu-

dos até então divulgados sobre as desigualdades

sociais, Boudon já aconselhava-nos que, embora

fosse extensa a literatura sobre a relação entre he-rança cultural e desigualdades sociais, duas propo-

sições essenciais (segundo ele estabelecidas pelos

trabalhos de Girard e colaboradores na França) de-

veriam ser retidas: “a primeira é que a herança cul-tural joga um papel importante na geração das de-sigualdades sociais diante do ensino; a segunda que

esta influência é particularmente sensível na juven-

tude” (Boudon, 1979, 99).

Além disso, Boudon também chamava a aten-

ção para os “fatores ligados à estrutura familiar.”

E, a partir de dados fornecidos pela literatura in-ternacional, dizia:

Estes diferentes resultados sugerem que o nívelde aspiração escolar do filho depende da imagem so-

cial que a família tem dela mesma. Esta imagem é o

produto complexo, não somente do status sócio-pro-

fissional do pai, mas igualmente da história da família

e da história escolar dos membros da família nuclear

(Boudon, 1979, 101).

E é em função dessa história familiar que o

autor explica a decisão a ser tomada pelo sujeito e

sua família no sentido de dar ou não continuidade

ao projeto individual de escolarização. Segundo ele,todo sistema de ensino contém momentos críticos

nos quais o aluno se depara com a necessidade de

decidir sobre continuar ou não sua vida escolar. E

permanecer ou não “depende de um processo dedecisão cujos parâmetros são funções da posição

social ou posição de classe. A partir de sua posição,

os indivíduos ou as famílias têm uma estimativa

diferente de custos, riscos e benefícios antecipados

que estão associados a uma decisão” (cf. Boudon,op.cit., 117).

Mas, na análise de Boudon, além da importân-

cia atribuída à história familiar — em termos de

relação estreita entre nível escolar e status social de

origem —, deve interessar-nos o fato dele reconhe-

cer que o nível escolar é um dos “mecanismos es-senciais de determinação do status de destinação”

(Boudon, ibidem 305).

E é isso que o sujeito individual pesa em cada

 Jovens urbanos pobres

5 “A oposição à escola manifesta-se principalmente na

luta para conquistar espaço físico e simbólico da instituiçãoe suas regras e para derrotar aquele que é percebido como

o principal propósito dela: fazer você ‘trabalhar.’ (...) O

faltar às aulas dá apenas uma medida imprecisa — até mes-mo sem sentido —, da rejeição à escola. Isso acontece não

apenas por causa da prática de passar na sala para registrara presença antes de sair (...) mas também porque mede ape-

nas um aspecto daquilo que podemos descrever mais acura-

damente como a mobilidade estudantil informal.(...) Elesconstróem virtualmente seu próprio dia a partir daquilo que

lhes é oferecido pela escola.” (Willis, 1977, 26-27)

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56 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

momento decisivo: permanecer na escola é garan-

tia de melhores condições de vida e de trabalho nofuturo? Ou seja, o quanto um grau escolar mais

elevado é capaz de garantir, nesse nível de classe,

melhores empregos?

A antecipação desses riscos e benefícios é, ain-da hoje, facilitada pela história de vida dos compa-

nheiros ou dos vizinhos mais velhos. Esta suposi-ção implica outra: para esses jovens a escola (e o

saber por ela promovido) tem pouco ou nenhum

valor em si; o valor a ela atribuído depende de suas

possíveis conseqüências para a vida adulta de cada

um deles. E a escola perde valor para os mais novosà medida que eles vão se dando conta do fraco im-

pacto da escolaridade na vida da geração anterior6.

Mas, por que a escola parece destituída de umvalor em si? A resposta a esta pergunta talvez tam-

bém explique de maneira mais satisfatória a chama-

da resistência encontrada por Willis e por ele in-terpretada, conforme vimos anteriormente, em ter-

mos de contra-cultura escolar. A pergunta que se

nos apresenta é: o que têm em comum esses jovens

urbanos pobres que os leva a atribuir tão frágil valor

à escolaridade? O que há de comum entre eles, além

da pobreza, que funciona como aspecto distintivo

de seus grupos informais quando comparados a gru-pos informais de jovens urbanos pertencentes a ou-

tros níveis de classe?

Seguindo a pista de Boudon, e reconstruindo

a história dessas populações, descobriremos (em

diversos países, embora em graus variados) um as-pecto distintivo dos mais relevantes, penso: a ori-

gem rural e uma história familiar de analfabetismo

ainda recente. Ou seja, o jovem contemporâneo,habitante dos cortiços e das periferias metropolita-

nas é, em geral, filho e neto de semi-alfabetizados

ou de analfabetos. Dito de outro jeito, a vida esco-

lar dos avós e dos pais do jovem metropolitano po-bre, na melhor das hipóteses, foi bastante incom-pleta e precária, a maior parte sequer chegou a con-

cluir o primeiro grau7.

Se assumirmos também dois dos conceitos cen-

trais de Bourdieu — de capital cultural e de apren-

dizagem por familiarização insensível —, o nosso

problema pode, então, ser colocado nos seguintestermos: o valor que as pessoas atribuem à educa-

ção escolar é propocional à familiaridade delas com

as coisas que dizem respeito à escola. No caso daspopulações pobres essa familiaridade — a partir da

experiência direta e/ou vicária — é, historicamen-te, recente. Em conseqüência, é possível supor que,

nesse nível de classe, é recente e ainda está em cur-

so o processo de incorporação da escola e do valor

atribuído à escolaridade ao capital cultural famili-

ar a ser herdado pelas novas gerações. À medida que

essa apropriação é recente e, pois, incompleta a ma-nifestação dela só pode ser frágil8.

Em contrapartida, para os jovens oriundos deoutros níveis de classe, e com uma história familiar

de escolarização mais antiga, este já é um valor in-

corporado ao capital cultural herdado. Na verda-

de, a grande distinção entre uns e outros reside no

6

Ao comentar os dados por ele obtidos em pesquisasobre a relação família, escola e trabalho, com jovens doNorte de Portugal, diz Esteves: “a escolarização já não tem

o mesmo impacto motivacional nos diversos grupos sociais,

não sendo por isso de estranhar — bem pelo contrário —que assuma formas muito desiguais o investimento que nela

se faz. (...) A medida desse (des)investimento é indiretamentedada pelo facto e pelo grau de exclusão ou admissão de situa-

ções de vida que concorrem com a escolarização na utiliza-

ção de recursos tão escassos e tão importantes como o tempo,o dinheiro, a energia psíquica, etc (Esteves, 1995, p. 53-54).

7 Sobre a escolarização de crianças e de jovens emregiões semi-rurais de Portugal, exemplo quase extremo des-

ses conflitos, dadas as peculiaridades do país, dentre os estu-dos já divulgados veja-se: Araújo e Stöer (1993); Esteves

(1995); Teixeira (1993); Vieira (1992).

8 Estudos sobre bairros populares reconhecem a exis-

tência, neles, de populações pertencentes a diversos níveisde classe, ou melhor, de diversos níveis de pobreza. Porém,

neste trabalho os níveis de pobreza não são levados em con-

ta. A expressão mesmo nível de classe baseia-se na suposi-ção de que, do ponto de vista da estrutura de classes, a gran-

de maioria é de pobres e possui uma história sócio-culturalmais ou menos assemelhada.

 Jerusa Vieira Gomes

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Revista Brasileira de Educação 57

grau em que esse valor foi aprendido, ou não, no

interior dos grupos domésticos de origem. À guisade exemplo, consideremos: é notória a irregulari-

dade da freqüência às aulas entre as populações

pobres. De outra parte, nas demais camadas a ex-

periência escolar é vivida com toda a força de suainevitabilidade tão logo ela tenha início, desde osprimeiros anos de vida.

A idéia de uma apropriação ainda incomple-

ta do valor atribuído à escolaridade ajuda, sem dú-

vida, a esclarecer aspectos ainda obscuros da rela-

ção família-escolaridade, especialmente no que con-

cerne às escolhas dos jovens de ambos os sexos emmomentos decisivos da existência de cada um de-

les. De acordo com a literatura, a jovem vê-se tes-

tada em três momentos decisivos quando deve es-colher entre a vida doméstica e a escolar, ou a ma-

ternidade e a escola, ou o emprego e a escola. Nocaso do jovem o conflito é, quase sempre, entre es-

cola e trabalho. Em todos esses momentos em que

a vida lhes impõe uma escolha, a preterida costu-

ma ser a escola9 .

Dentre os estudos que, direta ou indiretamen-

te, lidam com a relação pobreza-escolaridade no

Brasil retomemos, tendo em vista os propósitos e

os limites deste artigo, os de Gouveia (1981), Spo-sito (1993) e Fonseca (1994).

Gouveia é, na comunidade científica brasilei-

ra, uma das pioneiras no estudo da relação entre

desigualdades educacionais e origem social. Ao re-

ferir-se à persistência do fenômeno em diversos paí-ses, ela também sugere que a questão talvez não se

resolva “inteiramente com a oferta de vagas ou in-

centivos governamentais e nem mesmo com a alte-

ração das condições materiais que, na família, res-

tringem ou dificultam a freqüência à escola e o pros-seguimento da escolaridade” (Gouveia,1981, 113).

E considera a possibilidade de influência de

outros fatores sobre a extensão da escolaridade,

dentre os quais as necessidades ou aspirações da

população. Nesse sentido, refere-se aos dados obti-

dos por Schmidt e Miranda (1977) na região metro-politana de Belo Horizonte, os quais são indicativos

do efeito positivo da elevação da renda familiar so-

bre a escolaridade. Em contrapartida, levanta a pos-

sibilidade de que em grupos economicamente maisfavorecidos outros fatores podem ser relevantes.

Nesses casos, a análise de trajetórias individuais

a partir da condição familiar haveria certamente de

revelar a influência, ora de atitudes altamente favo-

ráveis a uma escolaridade mais prolongada, relacio-

nadas inclusive com o valor simbólico que um diplo-

ma superior possa ter para a família, ora de capital

cultural, consolidado através de duas ou mais gerações

(Gouveia, op. cit. 114).A pergunta inevitável é: por que só nos casos

de grupos em “situação econômica mais favorável”as atitudes famíliares, consolidadas através de gera-

ções sucessivas, influenciariam a extensão da escola-

ridade dos mais novos? Com base na breve (re)lei-

tura levada a cabo até agora, é lícito supor uma

estreita relação entre atitudes familiares e duração

da escolaridade. Em outras palavras, as atitudesfamiliares influenciam a extensão da escolaridade

individual sejam elas: favoráveis consolidadas, oufavoráveis pouco consolidadas ou até mesmo as des-

favoráveis. Ou seja, o grau de influência deriva da

localização de um grupo familiar particular em umaescala de variação que abrange desde as atitudes

mais favoráveis já consolidadas até às mais desfa-

voráveis. Eis, pois, uma das preciosas pistas de tra-

balho legadas por Gouveia: a necessidade de inves-

tigar, além da renda, quais características da famí-lia de origem podem estar relacionadas ao nível de

escolaridade alcançado pelo sujeito individual.

No que concerne a Sposito, em seu criterioso

trabalho sobre movimentos populares e a luta por

educação em São Paulo nos anos 80, ela faz referên-

cia explícita ao que denominou “a recusa da escola”.

As críticas e a recusa da escola contêm também

percepções diferenciadas da prática escolar. Os jovens

que conseguiram permanecer na escola, concluir o

9 A esse respeito, dentre outros, veja-se os trabalhosde: Gouveia, 1981; Teixeira, 1993).

 Jovens urbanos pobres

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58 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

primeiro ou o segundo grau, exprimem suas insatis-

fações ante a educação a que têm acesso; ocorre um

processo de ‘desfetichização’ do saber escolar. Na ver-

dade, quanto mais existe a possibilidade de frequen-

tar a escola, quanto mais longo é o percurso escolar,

maior a crítica. Manifesta-se uma forma de desencan-to, de descrédito diante do conjunto de expectativas

que produziram a vontade de acesso à instrução (Spo-

sito, 1992, 381).

Assim, na linha anteriormente apontada porGouveia, Sposito também estabelece a estreita re-

lação entre atendimento às expectativas familiares

e a extensão da vida escolar. Porém, em decorrên-

cia do modelo de pesquisa de campo adotado, ela

aprofunda a análise dessa relação e nos oferece umacontribuição significativa sobretudo ao reconhecer

que: à conquista da escola, após árduos e intensos

movimentos protagonizados pelos habitantes de um

bairro, seguem-se, por uma série de motivos, o de-

sencanto, o descrédito e, finalmente, a recusa à es-cola (recusa que pode ser meramente temporária ou

definitiva).

Mas, embora desencanto, descrédito e recusa

sejam experiências singulares, lembremo-nos: cada

sujeito compartilha sua experiência com familiares,amigos, vizinhos, parentes e até mesmo com com-

panheiros de trabalho. Nesse sentido, também ossentimentos e as representações a elas associados

são, progressivamente, disseminados no meio social

de pertencimento. Portanto, tendem a ser compar-

tilhados por contingentes populacionais cada vez

mais amplos e significativos. Não faltará quem nosaponte a generalidade desse fenômeno, verificável,

inclusive, em camadas abastadas da sociedade bra-

sileira atual10 . A diferença, contudo, também pode

ser buscada na força da apropriação (ou inculcação,

se preferirem) do valor atribuído à escolaridade, nasdiversas camadas sociais.

Quanto a Fonseca (1994), a sua é uma pesqui-

sa antropológica realizada com moradores de um

bairro popular de Porto Alegre, com o objetivo es-pecífico de apreender as prioridades por eles esta-

belecidas e que, supostamente, determinam a edu-cação dos filhos, tendo em vista a preparação de-

les para a vida adulta. Pressupondo que a hierar-

quia de prioridades deriva da escala de valores de

quem a estabelece, quer se trate de indivíduos ou

de grupos ou de instituições, essa pesquisa lida, ine-vitavelmente, com os valores predominantes nas

populações estudadas. No que tange à vida escolar,

os dados obtidos por Fonseca são aparentementedesconcertantes, embora corroborem a suposição

assumida neste artigo. Vejamos algumas de suasprincipais afirmações: a educação formal faz aparen-

temente pouca diferença na vida das pessoas; a vida

escolar não é uma experiência “familiar” para todos

eles; a escola não ocupa um lugar central nas preo-

cupações das pessoas, que têm suas rotinas cotidi-

anas ordenadas por outras prioridades; há consen-so quanto à necessidade de saber ler e escrever e de

que cabe à escola promover essas aprendizagens.A partir desses e de outros resultados, a auto-

ra conclui: “Para entender o lugar da escola no sis-

tema de valores dos grupos populares no Brasil ur-

bano, é necessário refletir sobre o processo amplode socialização que, neste contexto, prepara a crian-

ça para a vida, dotando-a de conhecimentos úteis

e integrando-as às redes sociais adequadas” (Fon-

seca, op. cit., 155).

É exatamente isto que venho fazendo há mais

de uma década: estudos sobre a socialização de jo-vens e a trajetória deles da família à escola e ao traba-

lho. Algumas de minhas descobertas, penso, ajudam

a esclarecer o tema proposto neste artigo.(cf. Gomes,

1987 e 1996) Porém, elas só podem ser melhor com-

preendidas à luz de alguns dos mais relevantes es-tudos anteriores, especialmente daqueles em cuja

tradição, de certo modo, inscrevem-se os meus pró-

prios trabalhos (p. ex. Willis, Boudon e Bourdieu).

10 De acordo com notícia veiculada em jornal cario-

ca, a educadora Zaia Brandão, ao comentar sobre a quali-dade de ensino no Rio, além de defender as escolas próxi-

mas às casas, teria reconhecido que: “No fundo, a escola é

muito menos importante do que nós imaginamos.” (Jornaldo Brasil,16/02/97, p. 27) E a população pobre, mais do que

qualquer outra, cedo se apercebe disso.

 Jerusa Vieira Gomes

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Revista Brasileira de Educação 59

O retorno aos autores revela, vimos, a antiguidade

de muitas questões e de tentativas de interpretaçõesdelas com as quais nos debatemos até hoje. E, so-

bretudo, repõe a família e a socialização no cerne

da análise da relação entre pobreza e escolaridade.

Transição família, escola, trabalho

Minha primeira pesquisa sobre socialização

consistiu em um estudo geracional (três gerações

consecutivas) acerca da ação socializadora familiar,com base na reconstrução das histórias de vida (Go-

mes, 1987). Nela, também foram colhidas informa-

ções sobre as experiências escolares dos sujeitos e

de seus familiares, mas essas informações não cons-

tituíam o objetivo primordial. No curso do tempodei-me conta de um dado assaz intrigante e insti-

gante: portadores de uma tradição rural e de anal-

fabetismo recente, todos os entrevistados — avós,

mães, crianças e jovens — manifestavam, em suas

falas, interesse, valorização e expectativas razoavel-mente elevadas no que diz respeito à escolaridade;

em contrapartida, a grande maioria daqueles que

freqüentavam a escola apresentava fraco empenho

em sua vida escolar particular. A cada dia eviden-

ciava-se uma discrepância maior entre discurso evida, sobretudo à medida que alguns deles entravame saíam da escola sem que estivessem, de fato, pre-

midos por qualquer necessidade material mais ime-

diata. Ao contrário, alguns jovens manifestavam

acentuada intolerância à rotina escolar, e pareciam

buscar no trabalho um substitutivo dela. Ou seja,para esses, o trabalho parecia ser mais atraente e

mais convincente do que a escola. Aliás, um avô

chegou mesmo a dizer-me, com muita naturalida-

de: “a escola não tem importância mesmo, só ser-

ve para ensinar a viver com os outros.”

As perguntas que se me colocavam, então,eram: por que esses jovens deixavam a escola? A

precariedade das escolas e o trabalho docente ina-

dequado eram explicações suficientes para as ati-

tudes escolares de crianças e de jovens? Em que me-

dida a história familiar de escolaridade ajudava aexplicá-las também? Se as oportunidades de traba-

lho dependem do nível de escolaridade alcançado

— crê-se que as novas tecnologias imponham exi-gências mais elevadas de escolarização —, de que

maneira o jovem conseguia empregar-se sem sequer

concluir o primeiro grau?

Para responder a essas e outras perguntas re-alizei (de 1988 a 1992) uma segunda pesquisa: um

estudo longitudinal das trajetórias de adolescentese de jovens (participantes da pesquisa anterior) da

família à escola e ao trabalho. Para complementá-

la, foi aplicado um questionário aos alunos matri-

culados em uma escola pública das redondezas (27

alunos de uma mesma turma), de maneira a obterdados sobre a história escolar e ocupacional deles

e de seus respectivos grupos domésticos (Gomes,

1996).O conjunto dos dados, ao mesmo tempo em

que confirma as suposições iniciais assumidas nes-

te texto, aponta-nos outras descobertas ainda maisdesconcertantes e instigantes do que as anteriores.

Senão, vejamos: com raras exceções, esses jovens

são filhos e netos de semi-alfabetizados e de analfa-

betos; até, aproximadamente, a idade de 11 a 12

anos a escola constitui, junto com a família, o cen-tro da vida infantil, a partir de então começa a per-

der importância; quanto à expectativa de escolari-zação enquanto os mais velhos deles fazem refe-

rência à oitava série, os mais novos mencionam o

segundo grau; quase todos os discursos contém oreconhecimento do valor da escolaridade prolon-

gada mas, em contrapartida, é comum a história

de repetências sucessivas; há quem assuma sem

constrangimento visível o fato de não gostar de es-

tudar; a grande maioria limita a importância daescola a ensinar leitura, escrita, aritmética e alguns

conhecimentos gerais. Em suma, parece generali-

zada a discrepância entre a fala que idealiza a es-

cola e a vida escolar da maioria deles. Por certo há

exceções, mas raras. É o caso de uma jovem, par-ticipante da pesquisa longitudinal: cultivou desde

criança o gosto pelo estudo; com obstinação en-

frentou os sucessivos obstáculos impostos pela po-

breza e, finalmente, acabou ingressando em um

dos cursos de Ciências Humanas (USP). Quando

 Jovens urbanos pobres

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60 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

ainda cursava a oitava série já relacionava escola-

conhecimento:

Se você encarar a escola como uma coisa de obri-

gação aquilo fica chato. Você tem que ir à escola pen-

sando que você vai aprender uma coisa legal, tendo

em mente que vai aprender uma coisa importante para

você. Conhecimento é bom para as pessoas. A escola

serve para outras coisas também, por exemplo, seu

relacionamento com outras pessoas.

Mas, nem mesmo essa jovem — uma exceção

entre seus companheiros e em seu meio — considera

necessária a escolarização prolongada para todos.E esclarece: “não precisa ir até a oitava série. No

meu caso é porque eu quero saber, quero aprender,

quero estudar, quero ir ao máximo que eu puder,só por vontade de saber. Eu sei que quero, não sei

justificar porquê.”

Nessa mesma época, rapazes e moças entre 14e 21 anos, alunos da escola pública, revelam uma

apreensão vaga e elementar da importância da es-

cola. Até mesmo nas respostas mais consistentes,

claras e objetivas também acabam restringindo essa

importância ao ensino e à aprendizagem da leitu-ra, da escrita e da aritmética. Há, todavia, quem a

justifique relacionando essas aprendizagens às exi-gências do mercado de trabalho: “se você não sabe

ler, tem dificuldade em qualquer trabalho” (moça,

16 anos). Generalizada mesmo, entre eles, é a cons-ciência de ser suficiente e bastante um domínio ape-

nas elementar dessas habilidades para o sujeito con-

quistar e garantir o emprego. Nesse sentido, é exem-

plar a fala de um dos jovens informantes: “a gente

vê cara que só tem terceira série de hoje e trabalhana mesma fábrica, no mesmo setor que o outro mais

estudado.”

Aliás as biografias dos jovens participantes da

pesquisa atestam a veracidade dessa assertiva: a gran-

de maioria realiza a transição para o trabalho en-

tre 12 e 14 anos de idade, antes mesmo de concluiro primeiro grau. Dado no mínimo intrigante em

tempos de modernização empresarial e de globa-

lização da economia. É visível a existência de uma

massa de empregos acessíveis a jovens pouco esco-

larizados. Ou a jovens com uma qualificação edu-

cacional mínima. De fato, os primeiros empregossão conseguidos em empresas, comerciais ou fabris,

de pequeno ou de médio porte localizadas na região.

E quase todas elas já são informatizadas e adotam

modernos padrões de gerenciamento e de produção.Dessa aparente contradição deriva a terceira

pesquisa, com o objetivo de identificar os critériosde seleção e de recrutamento utilizados em uma des-

sas fábricas — uma metalúrgica de médio porte,

fabricante de componentes microeletrônicos. (Go-

mes, 1996) É uma fábrica moderna, razoavelmen-

te informatizada, sobretudo no setor de produção.Porém, a escolaridade está longe de constituir um

critério relevante de recrutamento. De acordo com

a encarregada de selecionar os candidatos a empre-go, os critérios são: “ser não-fumante; ter boa apa-

rência (ser digno, limpo, honrado); ser dinâmico,flexível, rápido; uma pessoa atirada; ter boa coor-

denação motora e habilidade manual; e, sem ser

eliminatório, talvez o primeiro grau.”

Esse testemuho é confirmado pela Gerente de

Qualidade (engenheira), que esclarece enfaticamente:

Antes da escolaridade, bem antes, é a boa von-

tade, a vontade de trabalhar naquela empresa. Gos-tar da empresa, gostar de trabalhar, querer trabalhar.

Esta é a qualificação exigida e que deve funcionar co-

mo critério de seleção. Ela precisa saber fazer conta,

precisa conhecer matemática e precisa saber escrever,

o resto ela vai aprender aqui dentro. Bastaria o pri-

meiro grau.

Quanto às perspectivas futuras, essa mesma

engenheira (formada em escola de renome) é céti-

ca em relação à maior exigência de escolaridade. E

justifica:

a informática não preocupa; precisa ter cursi-

nho? Não. Todos os bons que eu conheço aprende-

ram sozinhos. No futuro vai mudar a escolaridade?

Na minha opinião isso é uma pré-seleção de pregui-

çoso, de firma que não tem diretrizes.

O Gerente de Produção (engenheiro), por seu

turno, revela-se reticente e evasivo. Ao final, após

 Jerusa Vieira Gomes

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Revista Brasileira de Educação 61

salientar a importância atribuída à educação esco-

lar em sua família de origem, diz: “Claro que a es-colarização maior será importante. Se não for para

ingressar e/ou se manter no emprego, será impor-

tante para viver melhor.”

Por certo podemos estar diante de um casoisolado, não generalizável. Todavia, as histórias dos

jovens participantes das pesquisas corroboram todasessas afirmações: nenhuma empresa exigiu deles um

certo grau de escolaridade por ocasião da seleção.

E não eram fabriquetas de fundo de quintal 11.

Ora, se é frágil a atribuição de valor ao saber

escolar em si e se, de outra parte, a escolaridade é

percebida como tendo pouco impacto, conseqüên-cias insuficientes na vida adulta de cada um deles,

de fato o esforço a ser dispendido na condição dealuno é sentido como demasiado, é desproporcio-

nal, não lhes parece compensador.

E tudo indica que esse esforço é percebido e

sentido pouco compensador porque os custos en-volvem, também, aspectos subjetivos. A maior es-

colaridade traz, em si mesma, a ameaça de afasta-

mento dos grupos de pertencimento: da família, dos

amigos, dos vizinhos e dos parentes em geral. Ou

seja. Nos custos são avaliadas as possíveis perdas

de laços afetivos significativos, que é mais ameaça-dora à medida que são apoios da identidade.

Essa percepção talvez ajude a esclarecer o es-

tabelecimento prévio do grau escolar a ser atingi-

do, em cada geração (oitava série ou segundo grau).

É possível supor que esse nível reflita o os novos

patamares econômicos e sociais alcançados pelafamília singular. Mas, sobretudo, tal determinação

se realiza em coerência com a história familiar e do

grupo de pertencimento.

11 Sobre as exigências de escolaridade em empresas,

veja-se: a) Capecchi,V. École et formation professionelle enItalie. La Documentation Française, Paris (44):67-80, 1993;

b) Kawamura, L. e Noronha, O.M. (coord.). Qualificação

do trabalho face às novas tecnologias: parâmetros culturais.Campinas, FE-UNICAMP, 1993 (mimeo).

Qual as vantagens desse tipo de análise? A prin-

cipal delas, penso, é a de obrigar-nos a enfrentar asdificuldades inerentes à história cultural e social

familiar. Reconhecer a força da resistência deriva-

da de uma história recente de analfabetismo fami-

liar é condição sine qua non para que a escola atueno sentido de vencer tais resistências. Para tanto osesforços dela precisam ser redobrados. A sua tare-

fa primordial, inicialmente, haverá de ser a de con-

vencer as novas gerações de estudantes de que o

saber escolar é importante para a vida pessoal e

social, a despeito das atuais exigências associadasao mundo do trabalho. Este é o desafio posto.

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Revista Brasileira de Educação 63

A qualidade da escola noturna

A discussão sobre a democratização e a qua-lidade da escola brasileira tem gerado calorosos de-

bates. Todos os que se debruçam sobre essas ques-tões concordam que houve um considerável aumen-

to da oferta de matrículas e que esse aumento da

oferta não foi acompanhado pela melhoria da quali-dade da escola. As divergências surgem quanto aos

indicadores de qualidade, o que implica uma com-

preensão do papel da educação no processo de de-

senvolvimento do país. Se, para alguns, seu papel

é formar cidadãos conscientes, participativos, com-prometidos com um novo modelo de sociedade, pa-

ra outros, a educação é concebida como a possibili-dade do país sair da crise em que se encontra e como

estratégia de desenvolvimento. No âmbito dessa

segunda concepção se coloca o conceito liberal dequalidade de ensino. Nesta perspectiva, os indica-

dores de qualidade estão submetidos a critérios de

competitividade, produtividade, controle, etc.

Essa discussão sobre a democratização e a qua-

lidade da educação brasileira, necessariamente, nos

Escola noturna e jovens

Maria Ornélia da Silveira Marques 

Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia

Este artigo faz parte de reflexões desenvolvidas na tese de doutoramento defendida pela autora na Faculdade de 

Educação da Universidade de São Paulo (USP), em dezembro de 1995.

leva para uma compreensão do papel da escola no-

turna, tanto no âmbito da oferta de vagas, quanto

da qualidade dos seus cursos, pois é nessa escola de

terceiro ou quarto turno que se encontra a maioria

dos jovens estudantes que tentam conciliar a neces-sidade de sobrevivência e os estudos. Em algunsestados do Nordeste, a escola noturna representa

mais de 80% da matrícula do segundo grau. Segun-

do dados de matrícula de 1993 para todo o Estado

da Bahia, fornecidos por técnicos da Secretaria de

Educação do Estado, mais de 50% da matrícula de5ª a 8ª séries do 1º grau está concentrada no perío-

do noturno. Há regiões administrativas do interior

do Estado em que este percentual chega a ser de

78% nas 8ª séries. Em Salvador, os maiores per-centuais estão nas escolas localizadas nas periferiasda cidade.

Será essa presença significativa da escola no-

turna uma forma de democratização do ensino?

Seus destinatários são todos trabalhadores? Parti-

mos do princípio de que não é somente a situação

de trabalhadores que esteja provocando a ida dosjovens para a escola noturna. Talvez, mais do que

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64 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

1 Neste estudo, o conceito de sociabilidade e/ou socia-

bilização é aquele referendado por Gilberto Velho no livroSubjetividade e sociedade: uma experiência de geração

(1986). Citando Simmel, o autor fala de sociabilidade comouma forma lúdica da associação e sua principal caracterís-

tica é não estar presa a necessidades e interesses específicos,

ou seja a sociabilidade tem um fim em si mesma. A sociabi-lidade é entendida como valorização da amizade, das reu-

niões, das conversas, das festas, dos encontros e dos diálo-gos, despidos de um caráter mais instrumental.

a situação de trabalho, a exclusão através de re-

petências e o abandono da escola seja um fator de-terminante dessa busca pela escola noturna. Pude-

mos verificar, em estudo feito em uma escola no-

turna de um bairro da periferia de Salvador, que a

maioria dos alunos já passou pelo processo de re-petência (72%) e 41% já abandonou a escola. Dototal de alunos da 5a série somente 26% tem idade

entre 14-15 anos, quando, em tese, já deveriam es-

tar concluindo a 8a série.

Por outro lado, a abertura dos cursos notur-

nos tem sido um dos artifícios utilizados pelos sis-

temas estaduais de ensino para responder às pres-sões sociais, ampliando a rede sem grandes inves-

timentos. Discutir, pois, a democratização e a qua-

lidade do ensino básico exige um olhar especial paraa escola noturna, lugar por excelência onde os jo-

vens trabalhadores buscam não só a qualificaçãopara o trabalho, uma ocupação mais digna, o sa-

ber para a sobrevivência, mas também um espaço

de sociabilidade e de troca de experiências que ul-

trapassam as dimensões do processo instrucional.

Qualquer diretriz democratizadora da escola

pública deve resgatar a discussão político-pedagó-

gica da qualidade do ensino noturno na direção de

um novo projeto para este curso que não signifique,a exemplo do que vem ocorrendo em alguns pro-

gramas de educação básica para jovens e adultos,

o aligeiramento ou a banalização das finalidades

básicas do ensino de 1º grau. Um modelo própriopara os cursos noturnos só será construido a partir

de uma avaliação mais densa, sistemática e objetiva

da sua prática e das representações dos seus princi-

pais atores: os professores e alunos.Temos clareza

que as respostas às questões que envolvem dimen-sões relativas à qualidade do ensino não se esgotam

no plano pedagógico, pois uma discussão meramen-

te técnica do problema qualitativo escamoteia seus

aspectos políticos na medida em que não se analisa

a qualidade do ensino no âmbito das questões relati-vas aos grupos sociais que estão tendo acesso ou não

à atividade pedagógica, à cultura sistematizada.

O presente estudo pretendeu, pois, contribuir

para o conhecimento da realidade da escola notur-

na de 1º grau (5ª a 8ª séries) a partir de um de seus

atores — o aluno. É possivel que na luta cotidianadesses pequenos atores, na luta por um espaço de

sociabilização1, na busca do poder da escola como

forma de sobrevivência, na conciliação entre esco-

la e trabalho possa ser gestada uma nova identida-de coletiva. Acreditamos, também, que ao tentar-mos decifrar suas angústias, esperanças e sonhos

podemos estar contribuindo para que estes jovens

sejam portadores de uma nova utopia, construto-

ra de um novo projeto pedagógico para a escola

brasileira, em particular para a escola noturna.

A tentativa de fazer uma nova leitura dessarealidade foi se constituindo como nosso problema.

Tínhamos a certeza de que as análises pautadas na

centralidade do trabalho já não eram suficientes,embora importantes, para explicar a presença dos

jovens na escola noturna. Estávamos convictas, tam-bém, que à essa escola se reservava uma outra fun-

ção social. Nossas dúvidas eram muitas. Como com-

preender esse aluno? A partir de que categorias de

análises? Onde buscar um referencial teórico que

contemplasse outras dimensões do aluno na sua du-

pla condição de jovem e trabalhador? Qual seria afunção dessa escola noturna? O que os jovens es-

peram dessa escola? Quais as suas necessidades?Onde se estruturam essas necessidades? Por que o

jovem, mesmo após várias repetências e abandono,

retorna à escola? O que representa essa escola no-turna para os jovens?

Assim, construimos nosso referencial teórico

em autores que centram seus estudos da sociedade

em paradigmas mais amplos, limitando a influên-

Maria Ornélia da Silveira Marques

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Revista Brasileira de Educação 65

cia da classe social e a centralidade do trabalho nas

determinações da sociedade. Suas análises tentamrecuperar a perspectiva do ator, seu ponto de vis-

ta, sua identidade. Identificam novos sujeitos, pe-

netram na esfera do cotidiano. Ampliam, portan-

to, as possibilidades de explicação das formas deorganização da ação e de mobilização nas socieda-des contemporâneas, afastando-se dos paradigmas

clássicos da sociologia marxista da luta de classes.

Buscam construir uma nova teoria do social, dos

processos que levam à produção e reprodução da

sociedade. Esse referencial permitiu-nos estruturaro nosso trabalho tendo como objetivo traçar o perfil

do aluno do ensino de 1º grau regular noturno da

escola pública e analisar como esse aluno representa

a escola. Apesar da precoce inserção do jovem nomercado de trabalho, seja pela premência das ne-cessidades de sobrevivência da família, seja como

busca de autonomia e consumo, o mundo do traba-

lho não é mais uma referência central para os jovens

trabalhadores. Ao buscarem a escola como forma

de “melhorar de vida”, de “subir na vida”, estes jo-

vens estão construindo nos seus interstícios situa-ções propiciadoras de afirmação de suas identidades.

A juventude como categoria social

A constatação de que a escola noturna é fre-

quentada, na sua maioria, por jovens entre 14 e 24

anos nos mostrou a necessidade de se construir um

conceito de juventude como categoria social. Nes-

se momento, o retorno ao estudo de alguns clássi-cos da sociologia da juventude foi muito importan-

te. Assim fomos buscar em Ianni (1968), Mannhein

(1982) e Foracchi (1982) elementos para a compre-

ensão da juventude e do estudante como categorias

sociais. Entender a juventude como um conceitocultural e histórico levou-nos a contextualizar a sua

visibilidade como categoria social na sociedade bra-

sileira e procurar compreender os diversos proces-

sos de construção da sua identidade. Sua condição

de jovens exigiu uma aproximação com outros es-tudos que tratam das suas relações com a cultura,

com o consumo, com o lazer, com o trabalho, com

a família. Portanto, trata-se de compreender as di-

versas formas de socialização e sociabilidade dos jo-vens filhos da classe trabalhadora, que moram nos

bairros periféricos das grandes cidades brasileiras

e que estudam em escola noturna. Esta, por sua vez,

será analisada e compreendida, também, como umdos espaços prováveis da sociabilidade do jovemtrabalhador, possível de gestar novas identidades

coletivas.

O conceito de juventude gerado pelo modelo

urbano industrial de desenvolvimento se baseia nu-

ma transformação das relações existentes entre a

família e o trabalho no que se refere ao processo desocialização (Sandoval, 1986). Essa transformação

se dá quando o processo de sociabilização do jovem

passa a ser de responsabilidade da educação e estaé concebida como meio de formar mão-de-obra

qualificada para o modelo de vida urbana, para asocupações que requerem um certo grau de escola-

ridade. Nesse momento, o jovem é identificado com

o estudante.

Para Eisenstadt (1976), o sistema escolar sur-

ge porque a família e as relações de parentesco não

são mais capazes de assegurar uma transmissão con-

tínua e fácil dos conhecimentos e das disposições dos

papéis. Assim, o mundo da escola é o mundo de gru-pos etários bem definidos. A escola seria, portanto,

o primeiro estágio de transição da vida familiar para

uma sociedade regulada por princípios universalistas.

Segundo o autor, a juventude aparece como umacategoria social de forma e momentos diferentes de

acordo com as formas de socialização de cada socie-

dade. Porém, ele admite algo de universal comum a

toda sociedade quando se trata de delimitar faixas

de idade que correspondam ao ciclo vital do homem,mesmo que cada sociedade defina e atribua signifi-

cados diferentes a essas faixas de idade ou etapas do

crescimento. Isso ocorre em sociedades que são orien-

tadas por critérios universalistas, distintos dos cri-

térios que regem relações familiares.

Nas sociedades modernas, a educação escolardo jovem tem um papel muito importante pois ela

atua como o “tempo da espera”, o tempo de pre-

paração do jovem para a sua saída da infância para

Escola noturna e jovens

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a idade adulta. François Dubet (1991) analisa essa

situação na sociedade francesa e conclui que o pro-longamento da juventude operária francesa, via pro-

longamento do tempo da escola, tem como objeti-

vo deixar o jovem fora do mercado de trabalho,

“atenuando” a crise do desemprego no país.Segundo Melucci (1991), nas sociedades in-

dustriais modernas o tema da juventude se trans-forma como um dos problemas da modernidade.

Melucci vê no estudo da juventude a possibilidade

de compreensão do agir coletivo das sociedades con-

temporâneas. O interesse sociológico pelo estudo da

juventude estaria no fato mesmo de os jovens seconstituírem como atores de conflito.

Ariès (1978) afirma que a juventude como uma

fase socialmente distinta foi-se constituindo no de-senvolvimento da sociedade ocidental através da

progressiva instituição de um espaço separado de

preparação para a vida adulta. Segundo ele, no pe-ríodo medieval não havia separação entre o mun-

do infantil e o mundo do adulto. Ambos conviviam

no mesmo espaço. Também, não havia a separação

entre o universo familiar e o universo social mais

amplo. Nesta sociedade, a família não era o núcleo

básico da socialização, pois esta era feita no espa-

ço coletivo.A transformação da família, a partir do século

XVII, altera suas relações de sociabilidade, em par-

ticular entre as gerações, passando a retrair-se na

vida privada e delegando à escola o papel de socia-

lizar suas crianças. Assim, a criança perde dois es-paços importantes para a sua socialização até aquele

momento; perde o convívio com o adulto, com a

comunidade mais ampla e, em seguida, perde o con-

vívio com a família. Nesse momento, com a exten-

são da escola, do tempo de preparo para a vida adul-ta, a fase de transição entre a infância e o mundo

do adulto vai adquirindo visibilidade, constituindo-

se na adolescência e juventude. Porém, é somente

a partir de meados do século XX que a juventude

passa a se constituir como um problema para a so-ciedade. Sua presença inicial como categoria social

vai surgir na Europa através de movimentos de jo-

vens delinqüentes, contestadores, excêntricos, que

se rebelavam contra a ordem estabelecida, através

da música, da arte, de modos de vida e até mesmocom o “niilismo” (Abramo, 1994).

Na América Latina, a juventude torna-se vi-

sível somente a partir da década de 60 com a crise

do modelo econômico excludente que atinge a maio-ria dos jovens filhos de trabalhadores. Segundo Otá-

vio Ianni:

a história do capitalismo tem sido a história do

advento político da juventude. Para instaurar-se ou

durante o seu desenvolvimento o capitalismo transfor-

ma de forma tão drástica as condições de vida de gru-

pos humanos, que a juventude se torna rapidamente

um elemento decisivo dos movimentos sociais (1968,

p. 159).Entre as décadas de 60-70, os estudiosos da

sociologia da juventude brasileira (Ianni, 1968, Fo-

racchi, 1972) centram suas análises no comporta-mento político da juventude tendo como certo sua

capacidade de desenvolver uma postura crítica e

transformadora da sociedade. A condição juvenil

era identificada com os jovens universitários filhos

das classes médias. A grande maioria da juventude

brasileira não era visível. Os estudos sobre esta ju-

ventude ou tratavam da sua marginalidade ou dassuas relações com o trabalho/desemprego.

Ao analisar o comportamento radical (de di-

reita ou de esquerda) do jovem, Ianni discorda das

explicações da emergência dos conflitos da juven-

tude como uma crise específica de uma idade soci-al das pessoas, pois, segundo ele, o que gera a crise

é a própria natureza do sistema social criado com

a sociedade industrial: “O inconformismo juvenil

é um produto possível do modo pelo qual a pessoa

globaliza a situação social”.

Ianni retoma também as análises feitas porMannheim (1982) quando este afirma que o pro-

blema da adolescência em nossa sociedade está no

conflito entre o desejo de autonomia do jovem e a

insistência paterna em manter a dependência. Con-

testando a tese de Mannheim, Ianni afirma que elanão explica o comportamento do jovem em socie-

dades urbanas industriais, pois seu comportamen-

Maria Ornélia da Silveira Marques

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to radical está estreitamente vinculado às condições

materiais da existência, isto é, ele é histórico, social-mente determinado.

Sem negar a importância atribuída à família,

a exemplo de Eisenstadt, porém com outra cono-

tação, o autor explica que outros mecanismos ope-ram nas relações entre as gerações, entre esses, a

grande importância atribuída pelos adultos aos jo-vens na sua capacidade de preservar e renovar, se-

guindo os sistemas de valores, instituições e ideais

coerentes com o “status quo” (Ianni, 1968). No seio

da família apenas se inicia o processo de “estranha-

mento” do jovem com os valores da sociedade, masé no grupo mais amplo dos amigos e da escola que

ele vai perceber as contradições do sistema sócio-

cultural e econômico desigual das sociedades capita-listas. Instaura-se assim a relação de negatividade

com o presente, daí o seu comportamento radical.

Foracchi (1972), ao analisar os movimentosestudantis da década de 60, conclui que estes se afir-

mam como um “poder jovem, potência nova que,

desconhecendo sua força, recria na imaginação e na

utopia, a práxis de um mundo que apenas se esbo-

ça”. Segundo a autora, a juventude representa a

categoria social sobre a qual se manifestam de for-

ma mais visível as crises do sistema. Para Foracchi,a noção de juventude se impõe como categoria his-

tórica e social, no momento em que se afirma como

produto histórico, como movimento de juventude.

A busca de uma identidade jovem

Toda identidade é um conjunto de represen-

tações que a sociedade e os indivíduos têm sobreaquilo que dá unidade a uma experiência humana,

que por definição é múltipla e facetada, tanto no

plano psíquico como no plano social. Essas repre-

sentações, evidentemente, são construídas de forma

diferente segundo os diversos tipos de sociedade,segundo o lugar social que o indivíduo ocupa na

sociedade, segundo os conjuntos de valores, de

idéias e normas que pautam o código de leitura atra-

vés do qual ele interpreta a sua visão de mundo. É

a partir desses referenciais que o indivíduo organiza

a sua percepção da realidade. Portanto, toda iden-

tidade é socialmente construída no plano simbóli-co da cultura. Ela é um conjunto de relações e de

representações.

Se queremos pensar a identidade dos jovens

frente aos outros com os quais eles se relacionam,se confrontam na família, na escola, no trabalho,

no espaço da rua, temos que pensar qual é a redede significados que a vida social constrói no plano

simbólico da cultura e que é movida pela própria

dinâmica da sociedade. Rede de significados fren-

te à qual os jovens estão dizendo quem são eles, se

aceitam ou não as identificações que lhes são atri-buídas pelos adultos, se estabelecem campos de ne-

 gociação com os outros atores, com os quais se con-

frontam, se transformam ou manipulam as repre-sentações que os outros fazem de si.

Em graus diversos de complexidade, podemos

pertencer a várias identidades: a identidade pessoal,a identidade de pertencer a uma família, uma identi-

dade social, etc. O que muda é o sistema de relações

ao qual nos referimos e a respeito do qual temos nos-

so reconhecimento. Assim, o jovem tem uma iden-

tidade na família, na escola, no pedaço, no trabalho.

A capacidade de se reconhecer e de se fazer reconhe-

cido nestas diversas situações consiste no que Melucci(1992) chama de afirmação da identidade. No qua-

dro desta complexidade da sociedade moderna ten-

tamos compreender como os alunos da escola no-

turna de 1º grau, vivendo no seu cotidiano diversospapéis, estabelecendo relações pautadas por diver-

sas lógicas, estão construindo suas identidades in-

dividual e coletiva. Esses novos processos de so-

cialização dos jovens moradores dos bairros perifé-

ricos das grandes cidades brasileiras exigem a bus-ca de novos referenciais, de novas interpretações.

Até meados da década de 80, a maioria des-

sas interpretações tem como ponto de referência a

comparação com os movimentos juvenis dos anos

60, em relação aos quais os movimentos espetacula-

res da década de 80 apareciam como significativosde uma juventude carente de idealismo e de empe-

nho transformador, sem nenhum interesse pelas ques-

tões públicas ou coletivas (Abramo, 1994). Nessas

Escola noturna e jovens

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análises, os jovens são considerados como incapa-

zes de formular propostas de transformação social,permanecendo no seu individualismo e pragmatis-

mo, muito identificados como os novos consumi-

dores da indústria cultural.

Hoje, o agravamento da crise social, com aretração ou diminuição do poder de mobilização

dos movimentos populares, impõe a busca de ou-tros referenciais para a compreensão das novas

ações coletivas que se gestam em meio à crise dos

modelos da modernidade. Nesse panorama, as ques-

tões da juventude alcançam outras dimensões. Os

estudiosos estão mais preocupados em perceber asformas de um agir coletivo entre os jovens, os di-

versos processos de sua socialização nos espaços da

cidade, da rua, do trabalho, da escola. Procuramdirigir suas análises para o reconhecimento de que

os jovens, em particular os filhos da classe traba-lhadora, são atores sociais portadores de novas

identidades coletivas (Sposito, 1994). Nessas aná-

lises, a escola não é mais vista somente como o es-

paço onde se reproduz a força de trabalho, mas,

também, como um espaço de socialização, de afir-

mação da identidade do jovem, como espaço depráticas sociais libertadoras.

Entretanto, no Brasil, a maioria dos estudosdedicados aos jovens tem voltado a atenção para as

relações entre trabalho e educação. Nesses estudos,

os jovens são identificados como trabalhadores e a

escola como instituição a serviço do capital. Assim,o tratamento da juventude é, geralmente, subordi-

nado à ótica das questões maiores referentes às for-

mas de exploração e de reprodução da força de tra-

balho, ou dos problemas gerais que a estrutura edu-

cacional do país coloca em termos de qualificaçãoe aproveitamento escolar.

Falar das questões juvenis é ampliar as análi-

ses para além das relações com o trabalho e a es-

cola. Cada vez mais a juventude se apresenta como

uma problemática cultural e política. Suas novas

formas de ação, seus modos espetaculares de exis-tir através da música, dança, vestuário, indicam que

esses jovens paradoxalmente buscam a integração,

mesmo que essa integração se faça pela inserção no

mundo do consumo, da produção de imagens, sím-

bolos, etc. O apelo ao consumo, estimulado pelaindústria cultural, colabora para que esses jovens

entrem precocemente no mundo do trabalho e, al-

gumas vezes, no mundo da droga e da criminali-

dade. Todos esses espaços por onde o jovem vaiconstruindo e/ou afirmando a sua identidade sãoimportantes como potencialidades de gestar novas

identidades coletivas.

O trabalho — uma categoria necessária

A compreensão da presença dos jovens na es-

cola noturna nos coloca a necessidade de perceber

como estes jovens vêem o trabalho e de como este

pode constituir-se como afirmação de suas identi-dades. Os estudos que tratam da relação entre edu-

cação e trabalho, na sua maioria, têm como eixo

estruturador o caráter reprodutor da escola nas re-

lações entre capital e trabalho.

Na década de 70, no bojo das discussões sobre

o caráter reprodutor da escola, as análises sobre a

escolarização dos jovens filhos da classe trabalha-dora refletem uma estreita relação entre o trabalho

e a escola como forma de “educar” o futuro traba-

lhador. São os chamados teóricos da reprodução que,baseados em estudos de Bourdieu, Establet, Passeron,

Althusser, entre outros, ao denunciarem o caráterreprodutor da escola brasileira romperam com a tra-

dição liberal segundo a qual a ação educativa era

concebida como possibilidade transformadora ca-

paz de romper as desigualdades sociais, econômicas

e políticas de uma dada sociedade. Essas análisestiveram entre seus méritos o de romper com as ilu-

sões do liberalismo e do economicismo educativo

representadas pela teoria do capital humano.

Os estudos realizados a partir desse momen-

to, ressalvadas algumas especificidades, tratam da

relação entre educação e trabalho nas sociedadescapitalistas, tendo em comum o trabalho como ca-

tegoria central na explicação dessas relações. Seus

eixos norteadores tratam ora da negatividade, ora

da positividade das relações de trabalho na educa-

ção do trabalhador. Suas análises, na maioria das

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vezes, não captam os desejos, aspirações, expecta-

tivas, a subjetividade e as formas de socialização esociabilidade no e pelo trabalho.

A crise da sociedade do trabalho

Nos anos noventa, novos estudos começam a

questionar as reflexões que têm o trabalho como

categoria central na análise da sociedade. Esses ques-

tionamentos perpassam as discussões presentes so-

bre a função da educação diante do rápido proces-so de desenvolvimento da sociedade, do avanço cien-

tífico e tecnológico e seus impactos na força de tra-

balho, na educação escolar e na formação da mão-

de-obra.

Os autores que falam da “crise da sociedadedo trabalho” negam que este esteja perdendo cen-tralidade na explicação da sociedade e continuam

afirmando que as “chances de participação social,

política e cultural dos indivíduos ainda são deter-

minadas, em parte, por sua posição no sistema pro-

dutivo”. Estes autores, geralmente, problematizam

questões tais como o fenômeno da globalização daeconomia, da crise do fordismo e do pós-fordismo,

dos novos problemas tecnológicos e organizacionais

que configuram o novo contexto do processo deterceirização nas sociedades modernas.

No momento, as análises em torno da crise da

sociedade do trabalho e a sua tradução no discursopedagógico através da relação trabalho e educação

estão sendo pautadas por discussões calorosas sobre

a “qualidade total da escola” que, em linhas gerais,

pretende transferir para a escola os mesmos crité-

rios de qualidade utilizados nas empresas. Mais umavez, o discurso das relações entre capital e trabalho

na educação se reveste de uma nova roupagem.

Diante de todas essas observações, nos questio-

namos sobre quais seriam os campos de possibilidade

do trabalho para a socialização dos jovens e em que

medida as análises sobre a relação entre educação etrabalho não estariam sendo pautadas em uma re-

lação de um trabalhador abstrato com as máquinas

e tecnologias de última geração. O que dizer dos mi-

lhares de jovens desempregados e subempregados

engajados na força de trabalho do mercado de tra-

balho informal? O que essas análises teriam para lhesdizer quando estes afirmam que querem estudar para

conseguir um emprego melhor que, em síntese, sig-

nifica escapar da pobreza? É possível falar hoje da

centralidade do trabalho para a análise do socialdiante de tantos desempregados? O que dizer sobreo trabalho para jovens que não se sentem trabalha-

dores que estudam mas estudantes que trabalham,

inclusive para manter os estudos?

Perda da centralidade do trabalho

Toda essa reflexão retoma a discussão sobre a

centralidade do trabalho como categoria de análise

do social. Segundo Offe (1989), na elaboração domoderno pensamento social — de Marx a Durkheim

— a categoria trabalho é fundamental porque, en-

tão, o mundo do trabalho era o universo inclusivo

onde se inseriam os atores sociais. A tradição clássica

concebia a sociedade moderna e sua dinâmica comouma sociedade de trabalho. Porém hoje, com o de-

senvolvimento, o essencial da existência dos atores

se desenrola para além do mundo do trabalho.

Perseguindo o raciocínio do autor, poderíamos

dizer, numa primeira aproximação com a questão,que a racionalidade que foi capaz de compreender

a dinâmica do mundo moderno já não basta paraapreender a dinâmica da sociedade contemporânea.

A dialética do trabalho, embora importante, se não

combinada com a dialética de outras relações sociais,

torna-se inoperante para explicar o nosso tempo.

O que dizer da sociedade brasileira em que,

com exceção de um pequeno segmento de mão-de-obra mais qualificada e mais valorizada e, conse-

quentemente, com maior garantia de emprego, uma

ampla maioria de trabalhadores tem uma trajetó-

ria de trabalho regida pela insegurança, pela insta-

bilidade, pela precariedade nos vínculos que esta-belecem com o trabalho? Em nossa pesquisa, encon-

tramos um pequeno número de jovens que têm um

emprego regular e com direitos trabalhistas assegu-

rados. Somente 25% dos jovens que trabalham têm

registro em carteira e estão engajados no setor de

Escola noturna e jovens

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serviços. Outros 62% estão trabalhando no merca-

do informal, sem nenhuma garantia.

Portanto, é preciso rever o poder do trabalhona determinação das relações sociais mais amplas,

em particular na socialização do jovem, na constru-

ção de sua identidade, mesmo porque estamos dian-te de uma situação nada promissora na qual o de-

semprego já é uma experiência normal da popula-ção brasileira. Apesar de os jovens apresentarem um

maior índice de escolaridade que seus pais, o que

de certa forma lhes protegeria mais do desempre-

go, esta é uma realidade em suas vidas.

E os jovens como pensam o trabalho?

O trabalho para os jovens funciona quase co-mo um rito de passagem do mundo infantil para omundo adulto, mas principalmente, como um pro-

jeto de família em melhorar de vida o que significa

encontrar possibilidades de fugir da pobreza. A fre-

quência à escola faz parte desse projeto entre os

trabalhadores, daí o grande esforço que as famílias

fazem para manter seus filhos na escola, inclusivecom um redimensionamento dos parcos orçamen-

tos domésticos e a inserção precoce de alguns filhos

no mercado de trabalho.Nosso contato com os jovens da escola notur-

na permitiu-nos buscar outras abordagens para

essas relações. Permitiu-nos também perceber for-mas de socialização que extrapolam as determina-

ções de classe e estão vinculadas a uma rede de rela-

ções significativas para a constituição de suas iden-

tidades. Para os jovens pesquisados, o trabalho não

significa apenas a garantia da sobrevivência do nú-cleo familiar e a capacidade de consumo. Ao dei-

xar o espaço do bairro onde mora para ir trabalhar

em outros locais, o jovem amplia suas possibilida-

des de sociabilidade através de laços de amizade, de

coleguismo, de solidariedade, etc. A fala desses jo-vens revela uma outra razão, revela necessidades

diversas, outras referências, vai muito além da razão

prática ou da lógica mercantil do mundo capitalista.

Apesar de reconhecermos que os jovens trans-

figuram suas necessidades em virtudes, não pode-

mos desconhecer que o trabalho é um campo de

possibilidades de estruturação de suas identidades.Neste sentido concordamos com Gilberto Velho

que, ao privilegiar a subjetividade e a sociabilida-

de nas relações sociais, sugere o retorno e a valori-

zação da amizade, dos encontros, das reuniões, des-pidos de um caráter mais instrumental, como formade garantir a constituição de sujeitos plenos, integra-

dos. Segundo ele, esses espaços de sociabilidade per-

mitem a construção de identidades sociais num con-

tínuo processo de interação entre seus atores.

Também Lapeyronnie, ao analisar as relações

dos jovens na sociedade contemporânea fala da ne-cessidade da busca legítima do individualismo, res-

gatando a dimensão pessoal da existência, da rea-

lização pessoal e da dignidade. Segundo o autor, aconstrução da identidade individual não passa mais

pelo trabalho.

Procura-se, eventualmente, um emprego para

poder satisfazer paixões pessoais. As idéias de uma

relação necessária entre o progresso social e a valori-

zação do trabalho desapareceram (Dubet e Lapeyron-

nie, 1992, 22).

Concordamos com Lapeyronnie, quando diz

que a vida social não é mais estruturada em tornoda produção, pelo conflito no interior de um mes-

mo espaço. O espaço da fábrica não constitui ape-

nas relações conflituosas de trabalho versus produ-

ção. No seu espaço, nos seus interstícios, uma redede relações significativas vai sendo construída. São

relações pautadas pelo cansaço, pela solidariedade,

pelo desejo de mudar a vida. E é nesse sentido que

compreendemos a fala da jovem que anseia encon-

trar um emprego:

Há mais de um ano que estou desempregada e

não agüento mais ficar parada em casa. Já consegui

um para trabalhar em casa de família, mas eu quero

ver gente, quero ter colegas, me arrumar, me produ-

zir para ir trabalhar (aluna da 6ª série).

Em relação à inserção dos jovens no mercado

de trabalho, partimos do princípio de que é muito

limitado tentar compreender as causas dessa inser-

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Revista Brasileira de Educação 71

ção precoce no mundo do trabalho somente atra-

vés da sua situação de marginalidade e pobreza.Não consideramos que a necessidade de trabalho

seja unicamente uma realidade imposta pelas con-

dições de pobreza das famílias, mas que essa neces-

sidade se constrói no próprio processo de socializa-ção do jovem, na afirmação da sua identidade. Tra-balhar, receber algum salário para quem tem uma

autonomia relativa, mas está procurando aumen-

tar seu grau de autonomia, só pode significar liber-

dade (Madeira, 1986). Alguns estudos brasileiros,

entre eles os de Gouveia (1982), Madeira (1986) eSpindell (1985) falam com muita procedência do

significado de liberdade contido na decisão de tra-

balhar por parte dos jovens. Para eles, ser livre sig-

nifica ter liberdade para tomar decisões sobre a pró-pria vida; é ter autonomia em fazer uso do seu di-nheiro, de comprar, de consumir os bens culturais

que os identifiquem como jovens.

Enfim, não podemos compreender as relações

que os jovens estabelecem com o trabalho sem re-

conhecer a importância da sua condição juvenil que

se expressa, freqüentemente, na necessidade de os-

tentar marcas visíveis de pertencer à categoria jo-vem, principalmente àquelas transmitidas pelos

meios de comunicação.

Trabalho e família: uma relação delicada

Esses jovens, educados pelas famílias na éticado trabalho, estabelecem com esse uma relação con-

traditória. Ao mesmo tempo em que vêem na sua

ocupação presente um momento de aprendizagem

para um trabalho futuro, falam com orgulho da

autonomia que têm em relação à família, principal-mente com as mães. Suas falas deixam bem clara

essa situação:

(...) Um dia meu pai quis me bater porque eu es-

tava namorando um colega e estava chegando tarde

em casa todo dia. Daí eu disse pra ele que eu sou dona

da minha vida, que já posso comer e beber sem depen-

der dele. Na minha casa a conta da luz fica por mi-

nha conta (aluna da 7ª série).

Essa relação contraditória entre ser menor de-

pendente e ser trabalhador termina por influenciaras formas de socialização dos jovens tanto na famí-

lia como na escola. Segundo Zaluar (1992), o con-

flito dos jovens com seus pais, principalmente com

as mães, aparece como resultado dos novos padrõesde consumo que lançam os jovens no mercado dovestuário e das atividades de lazer variadas, muitas

vezes incompatíveis com a economia doméstica e a

sua hierarquia de consumo.

Quando questionamos os jovens sobre os mo-

tivos de sua inserção no mundo do trabalho, a maio-

ria respondeu porque era pobre e precisava ajudara família. Porém, quando aprofundamos a discus-

são nas entrevistas individuais e em grupo, outros

motivos ficaram evidentes como: ter mais liberda-de, garantir os estudos, ter dinheiro para comprar

roupas e gastar no fim de semana, ter uma carteirade trabalho, etc. Entre esses jovens, o trabalho, ao

mesmo tempo em que os coloca numa situação de

explorados, possibilita a afirmação de sua identi-

dade. Ao contrário do discurso moralizante de seus

pais sobre a necessidade do trabalho para trans-

formá-los em pessoas responsáveis, eles vêem notrabalho seu caráter de provedor.

Nossas análises nos levam a concluir que otrabalho do jovem aluno da escola notuna faz par-

te do cotidiano das famílias pobres de toda a soci-

edade brasileira, faz parte das obrigações familia-

res e, na maioria das vezes, possibilita a frequênciaà escola. Trabalhar, mesmo sendo parte de sua obri-

gação de filho, não deixa de significar a afirmação

de sua identidade, ou abrir a possibilidade de con-

quistar um espaço de liberdade (Madeira, 1986), na

tentativa de ter acesso a bens de consumo e a pa-drões de comportamento que definem as marcas dos

jovens nas grandes cidades, nos centros urbanos: o

som, o tênis, a roupa etc. (Sarti, 1994). Essa inte-

gração no mercado pela via do consumo nem sem-

pre é valorizada pelos pais, marcados pela ética dotrabalho árduo em seu processo de socialização.

Escola noturna e jovens

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A escola como espaço de sociabilidade

A educação dos jovens trabalhadores, sua ex-

clusão da escola em função de várias repetências,da ausência de um projeto pedagógico que atenda

a sua dupla condição de jovem e de trabalhador eseu retorno à escola através dos cursos noturnos,

não tem merecido muita atenção dos estudiosos

(Sposito, 1989).Porém, entre as análises feitas po-demos identificar duas orientações.

A primeira centra-se na estrutura escolar, en-

fatizando sua organização interna como forma de

seletividade: horários, conteúdos, relação professor/ 

aluno, instalações físicas e recursos humanos da

escola pública. Ao mesmo tempo em que reconhe-

ce a condição de trabalhador do aluno, suas análi-ses tratam do trabalho como algo negativo para o

processo de escolarização do jovem. O trabalho é

visto pela sua negatividade e não pelas possibilida-

des como princípio educativo e como espaço de so-ciabilidade. Trata o aluno trabalhador de forma

genérica, pertencente às camadas mais pobres da

população e, como tal, excluído da possibilidade de

frequentar a escola na idade correta. Nessas análi-

ses, os cursos noturnos são justificados sob o argu-

mento de viabilizar o ensino escolar aos jovens eadultos que, por serem inseridos no mercado de

trabalho de forma precoce, não tiveram acesso à

escola em idade regular.

As análises mais recentes destacam a escola

noturna na sua especificidade no atendimento ao

aluno trabalhador. Negam as soluções técnico-pe-dagógicas propostas pelas análises anteriores e pro-

põem que o estudo da escola noturna seja feito de

forma mais abrangente, que leve em conta a reali-

dade dos alunos. Os estudos nessa linha de inter-

pretação trazem a realidade de trabalho dos alunospara a escola, ressaltando a ausência de um diálo-

go entre o trabalho e o conteúdo real da aprendi-

zagem. Essa ausência de diálogo impossibilita ao

aluno a sistematização do conhecimento construí-

do e/ou assimilado no cotidiano do trabalho. (Ca-poralini, 1991). Ressaltam, também, o caráter do

currículo oculto como forma de disciplinar o tra-

balhador, sublinhando, desta forma, o caráter de

reprodução do sistema escolar. Sem desconhecer osproblemas estruturais da sociedade brasileira e que

se refletem na escola, propomos analisar a escola

noturna a partir da ótica de seus atores, no nosso

caso, alunos jovens, percebendo na sua prática pos-sibilidades de sociabilização e de construção daidentidade de seus atores.

A experiência da escola:discutindo com alguns autores

As análises mais frequentes sobre o processo

de escolarização dos jovens, filhos de trabalhado-

res, evidenciam que a necessidade de trabalhar os

força a abandonar a escola ou impede o seu aces-so. Porém, as estatísticas têm demonstrado que umaparcela cada vez maior de adolescentes tem acesso

à escola de 1º e 2º graus exatamente porque está

exercendo uma atividade remunerada. A necessida-

de de ajudar a família, aliada à pressão do consu-

mo, além de outros fatores, impulsiona os jovens a

procurar trabalho.Por outro lado, as afirmações deque o aluno da escola noturna a procura por moti-

vo de trabalho nem sempre revelam a realidade. Em

muitos casos, o trabalho vem como conseqüênciada freqüência à escola noturna. Há um medo gene-

ralizado entre as famílias pobres sobre os perigosda rua e uma alternativa viável para minimizar esse

medo é manter o jovem sempre ocupado. Entre a

casa e a escola sobra muito pouco tempo para a rua,

para o ócio. A rua deixou de ser uma das referên-

cias tradicionais da socialização do jovem e passoua ser o “espaço do perigo”. Afastar os filhos do

perigo da rua significa para as famílias pobres uma

crença no poder da escola em fazer de seus fillhos

não apenas futuros trabalhadores mas “gente ho-

nesta”. Porém, os jovens atribuem à escola umaoutra função que se tornou bem evidente durante

a nossa pesquisa — a função sociabilizadora, enten-

dida como um conjunto de relações significativas,

porém sem necessidades e interesses específicos. Pa-

ra esses jovens, a escola pode constituir-se num es-paço diferente. Entre o cansaço do trabalho e os

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Revista Brasileira de Educação 73

problemas com a família, eles preferem a escola,

mesmo que sua freqüência se restrinja, muitas ve-zes, aos espaços dos corredores e do pátio. Marca-

dos por um cotidiano denso de relações conflituosas

com o trabalho, com a família, esses jovens trans-

formam o ambiente da escola em espaços agradá-veis, onde há lugar para o namoro, a brincadeira,o encontro com os amigos. Esses espaços são recria-

dos nos interstícios da organização escolar, entre

uma aula e outra, nas ausências dos professores:

Eu fico o dia todo tomando conta de meus ir-

mãos, lavando, cozinhando, arrumando meus irmãos

prá ir prá escola que fico doida que chegue de noite

prá eu vir pra escola e ficar com minhas amigas. Eu

já disse pra minha mãe que quando eu acabar a 8ª sérieeu vou arranjar um emprego. Aqui na escola a gente

conversa com os professores, arranja alguma paquera,

eu estou até namorando um colega da sala (aluna da

7ª série).

Essas falas levantam questões pouco aborda-

das nas análises sobre a escolaridade dos alunos

trabalhadores. Para esses, que têm um cotidiano

tomado por responsabilidades, a escola passa a teruma importância como espaço do encontro e encon-

tro com pessoas com as quais mantêm uma relaçãodiferente do que na família e no trabalho. A rua para

alguns e a escola para todos é o lugar privilegiado

para estabelecerem relações sociais mais amplas, oque pode contribuir na formação da sua identida-

de. A maioria dos alunos fala da presença marcan-

te da escola enquanto espaço de novas relações.

Magnani (1984) afirma que:

Curiosamente, a escola pela sua desorganização

interna e pela falta constante dos professores torna-se um ‘pedaço’ bastante frequentado pelos jovens.

Por outro lado, as relações transitórias e instá-

veis diante do trabalho, aliadas a outras instabilida-

des no meio da família, nos processos de migraçãode um bairro a outro, dificultam a criação de laços

mais perenes entre os jovens, tornando a escola um

dos espaços possíveis para uma vinculação mais

duradoura com os amigos, com os colegas.

Também Guimarães, em estudo sobre a escola

noturna observou que os alunos são capazes de:

(...) metamorfosear o ambiente de trabalho e a

própria escola em espaços agradáveis onde há lugar

para a brincadeira, o encontro com o amigo confidente

(...) Esses momentos de reconstrução cotidiana se dão

nas situações mais diversas, assumindo formas tão

surpreendentes, quanto gratificantes (1992, 61).

Acreditamos que uma das saídas possíveis para

que a escola se transforme num espaço de sociabi-

lidade entre os jovens, seja justamente essa capaci-

dade de subverter o convencional, buscar outrosobjetivos para a escola. Acreditamos, também, que

o modo como os jovens reconstróem o próprio co-

tidiano da escola aliviando o tempo de trabalho,repensando a escola para além da simples transmis-

são do conhecimento, é uma forma efetiva de lutarpor uma nova sociedade (Guimarães, 1992).

Cultura e lazer como afirmaçãoda identidade do jovem

Se no início da pesquisa pensávamos que osjovens da escola noturna construiam suas identida-

des pessoal e coletiva nas suas relações com a fa-mília, a escola e o trabalho, os dados empíricos, as

entrevistas e contatos com esses jovens permitiram-

nos perceber o quanto é importante para eles osmomentos de lazer, de descontração. Daí os cons-

tantes conflitos com a família que, educada na éti-

ca do trabalho árduo, vê no ócio dos jovens o peri-

go da rua. Ficávamos impressionadas com a presen-

ça dos jovens nos corredores da escola na 6ª feiraà noite, mesmo com a ausência de seus professores.

Por que esses jovens vinham para a escola, mesmo

sabendo que não haveria aula? Aos poucos, fomos

nos aproximando desses jovens e descobrimos que

a escola era o ponto de encontro para a ida do grupoaos bailes de pagode do bairro e de outros bairros

vizinhos.

A aproximação com uma literatura pertinente

permitiu-nos uma compreensão de que o tempo livre

das imposições normativas do trabalho, da escola

Escola noturna e jovens

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74 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

e da família, apesar de ocorrer em situações contra-

ditórias, pode ser o tempo dos jovens recriarem aliberdade em direção a seus próprios interesses. En-

tre a dureza do trabalho e a disciplina da escola, há

o espaço da brincadeira, do “gozar a vida”. O di-

vertimento e a recreação são explicados pelos so-ciólogos do trabalho como uma ruptura com o tra-balho, com a monotonia, com a quebra da rotina,

da disciplina. Para alguns estudiosos esta função

pode ser um recurso à vida imaginária, daí a busca

do teatro, do cinema, do jogo (Zaluar, 1994).

Na relação entre a ética do trabalho e a ética

do lazer que impõe um estilo de vida entre os jo-vens, cria-se uma zona de conflito entre estes e seus

pais. A indústria cultural coloca à disposição do

jovem uma série de bens de consumo que, dentroda perspectiva de uma cultura de massa, cria um

estilo de vida jovem. Este estilo de vida cria neces-sidades de lazer, de consumo que se incompatibili-

zam com as necessidades imediatas de suas famílias,

o que gera o conflito, pois são formas diferentes de

hierarquizar as necessidades.

Também Gilberto Velho, em suas análises so-

bre a cultura popular e a sociedade de massas, re-

toma a discussão sobre as possibilidades do consu-

mo ampliar, através do lazer, as redes de relaçõessociais e, ao mesmo tempo, garantir a individuali-

dade dos sujeitos. Segundo o autor, uma das carac-

terísticas marcantes da sociedade contemporânea é

o seu caráter de massificação advindo do processode urbanização e desenvolvimento das grandes ci-

dades, dos meios de transporte e comunicação, dos

avanços tecnológicos que alteraram os padrões de

sociabilidade e interação entre os sujeitos.

Em síntese, a análise dos dados empíricos so-

bre o lazer dos jovens sujeitos da pesquisa, permi-te-nos concluir que, apesar das influências dos meios

de comunicação social, da indústria cultural, esses

jovens recriam, nos limites do bairro e de suas con-

dições materiais, no seu cotidiano, formas de lazer

que garantem a sua identidade jovem. Neste senti-do, a música e a dança têm uma influência muito

grande na conformação de suas identidades. A ida

ao pagode nos fins de semana faz parte do lazer da

maioria do grupo, principalmente dos rapazes. Alia-

da ao pagode, a música também é um referencialforte entre o grupo. Nas respostas ao questionário,

nas conversas informais e nas entrevistas pudemos

depreender que o aparelho de som ocupa um lugar

privilegiado nas suas casas. Comprar um aparelhode som, para muitos jovens, foi a porta de entradano mercado de consumo.

Enfim, concluímos que a juventude nas clas-

ses populares é vivida como um tempo de liberda-

de, de viver com intensidade todo o tempo livre, o

que sobra entre a escola e o trabalho. Aproveitar

da vida como ela é, como nos dizia uma aluna. Parao aluno da escola noturna, divertimento e estudo

são faces de uma mesma moeda que só pode ser

comprada com o seu trabalho precoce. Trabalhoque, na maioria das vezes, não lhe dá o status de

trabalhador, o que o leva a considerar-se um estu-dante que está aprendendo a ser trabalhador. Tra-

balho para esses jovens é coisa de futuro, só depois

de estudar e com carteira assinada. O caráter tran-

sitório de sua condição juvenil permite o estranha-

mento das agruras do trabalho e da pobreza. É na

complexidade dessas relações entre família, escola,trabalho, consumo e lazer que eles constroem a sua

subjetividade, que estabelecem redes de relaçõessociais significativas, ampliam a sociabilidade. É

nessa multiplicidade de papéis de aluno, filho, tra-

balhador, colega, amigo, que eles tentam construirsuas identidades.

Ver no aluno da escola noturna somente o jo-

vem que trabalha sem considerar suas característi-

cas e papéis assumidos, inviabiliza qualquer proje-

to pedagógico que procure responder às suas neces-

sidades.

Nossa pesquisa demonstrou o quanto a escolaestá distante desses jovens. Queremos crer que o

modo como eles reconstroem o próprio cotidiano,

aliviando o tempo de trabalho e repensando a escola

para além da simples transmissão do conhecimen-

to, é uma maneira efetiva de tomar parte em umaluta pela busca de uma nova sociedade. Poderão,

assim, tornar-se portadores de uma nova utopia.

Concordamos com Alberto Melucci quando

Maria Ornélia da Silveira Marques

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Revista Brasileira de Educação 75

diz que os jovens, como categoria social, podem

transformar-se em atores de conflito porque falama língua do possível. Os jovens querem decidir por

si mesmos o destino de suas vidas. Reivindicam para

si o direito à provisoriedade, à reversibilidade das

escolhas, o direito à individualidade, o direito demudar e de dirigir a existência.

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76 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

As expectativas e as atitudes com relação ao

trabalho, ao emprego e ao desemprego são uma di-

mensão privilegiada para apreender a crise e a muta-

ção das referências culturais entre os jovens. O mo-

delo cultural da sociedade industrial se caracteriza pelacentralidade da ética do trabalho. Além disso, o mer-cado de trabalho é o campo em que se exercem mais

diretamente as coerções materiais e simbólicas da

competição. Examinando os “modos de gestão de si”,

pudemos constatar que para numerosos jovens, a

experiência ou inexperiência do mercado de trabalhoconstitui um momento decisivo da sua redefinição

identitária. Aliás, caracterizado o modelo central de

trabalho da sociedade industrial, a ética do rendimento

que está no cerne desse modelo contém várias idéias:

> o trabalho deve contribuir para um pro-

jeto coletivo: deve ser socialmente útil para a

coletividade (donde a ociosidade é sempre mais

ou menos vergonhosa);

> a contribuição e a retribuição devem se

equivaler: a tal contribuição deve correspon-

der uma “justa” retribuição;

O trabalho, busca de sentido

Guy Bajoit 

Abraham Franssen Universidade Católica de Louvain

Tradução de Denice Barbara Catani 

Publicado em: Les Jeunes dans la compétition et la mutation culturalle, Rapport de recherche au Fonds de la 

Recherche Fondamentale Collective, Univ. Catholique de Louvain. Cap.VIII: Le travail, quête de sens.

> a retribuição é sempre postergada: há,

inicialmente, o esforço, o sacrifício que é pre-

ciso fazer a fim de preparar-se para o traba-

lho e em seguida para executá-lo e então como

uma conseqüência, a retribuição legítima;

> a contribuição é medida pelo esforço

que é preciso dispender a fim de se preparar

para o trabalho e para realizá-lo;

> enfim, no modelo tradicional de traba-

lho, o trabalhador participa do mundo do tra-

balho por intermédio de instâncias coletivas:

o sindicato, a classe de origem, a comunida-

de. Sua participação não é exclusivamente in-

dividual: ele não está só face ao seu emprega-dor, faz parte de um grupo, mais ou menos

estruturado, de trabalhadores.

Nossas interrogações remetem às formas de

desagregação do modelo cultural do trabalho, e àemergência de novas orientações com relação ao

trabalho. Examinamos também quais são as repre-

sentações e as atitudes dos jovens com relação ao

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Revista Brasileira de Educação 77

desemprego. Mas, antes, vamos apresentar Hervé,

cuja história ilustra esse conjunto de questões.

Hervé

Ele é oriundo de uma família numerosa. Seuspais, operários, lhe prometiam um futuro que rea-

lizaria seu projeto de promoção social, caracteriza-

do por uma forte preocupação com o status.

Meus pais diziam, é uma boa, um belo ofício,

de muito futuro. Olha o senhor e a senhora Fulano de

Tal, que moram aqui nos fundos. Eles têm uma grá-

fica há não sei quantos anos, olha que belos carros eles

têm, olha que bela oficina, olha isso, olha aquilo, e era

assim o tempo todo...

Depois de duas reprovações no primário, Her-vé começa a escola profissional técnica de tipogra-

fia, em seguida é orientado para a joalheria — o que

lhe agrada muito, tanto mais que na época ele era

“meio hippie”. Contudo, interrompe seus estudos

aos dezoito anos para fazer o serviço militar. A in-

terrupção dos estudos é motivada pela vontade deadquirir independência financeira, mas também, de

maneira mais expressiva, de realizar seus sonhos de

adolescência. Se ele se engajou no exército por di-nheiro, escolheu a marinha para realizar um sonho:

“Eu só via realmente uma coisa, os barcos... eu viaos barcos à vela partir pelos oceanos”.

A experiência cotidiana nas forças armadas, a

maior parte do tempo confinado a tarefas subalter-

nas, destrói seu sonho. “Não é isso que eu queria

fazer, queria era viajar, mas não ficar a bordo de

um pequeno barco com a missão de dragar, ao que parece, dragar minas no mar belga...”1 . A dificul-

dade de concretizar suas expectativas de auto-rea-

lização explica a justificativa puramente instrumen-

tal que ele oferece para o prolongamento do seu

contrato. “Estava cheio, mas tudo bem, vou ficar

dois anos, ganho a vida durante esse tempo e de-

 pois procurarei outra coisa”.

Em seguida a essa experiência, conheceu umperíodo de desemprego de mais de um ano. Viveu

essa experiência com um forte sentimento de degra-

dação social e pessoal. O tempo do desemprego foium tempo socialmente inútil: “O dia de um desem-

 pregado leva cinco minutos”. Insiste bastante sobreas limitações de dinheiro. Depois de pagar o que

deve aos seus pais, restam-lhe-talvez “1000 francos

 por mês para sair um pouco do mofo onde se está

metido”; “Quando você está desempregado, uma

semana, é duro, você vê o tempo passar, você apren-de a contar os minutos”. “A coisa do desempregado

é terrível, é verdade que enquanto jovem você real-

mente carrega um rótulo”; “quando fui rebaixado para 8.500 francos, isso foi o mais difícil, entrei em

 pânico, noites inteiras eu não conseguia dormir...”

Nessa época, a única fonte de ganhos ocasio-nais de que dispunha era a venda de bijouterias de

sua confecção, nos mercados. É para a prática da

moto que Hervé reporta então seus sonhos de eva-

são e suas necessidades de relações sociais. A moto

é um prazer solitário (“é a única coisa que me faz

sair de mim mesmo”): ela é sua companhia, ele lhe

fala e ela o compreende, mas ela é também um fa-tor de sociabilidade importante, especialmente pe-

los clubes de motociclistas que ele freqüenta.

Meu objetivo é a viagem, a comunicação... aliás,

minha moto me permite viajar, conhecer gente nova,

e me comunicar com outras pessoas.

Quando visto meu casaco de couro, ele é minha

segunda pele, é quase uma carapaça como se diz. A

gente é quase como as tartaruga nas estradas, mas tar-

tarugas que se movem rápido. As pessoas têm medode nós... não sei por que. Blusões negros, o couro negro.

“Por interferência de amigos”, ele obtém um

contrato temporário de seis meses para um mutirão

de desobstrução de sítios históricos. Dessa experiên-cia ele guarda sobretudo a lembrança das más re-

lações de trabalho. Diante do chefete que o provo-

ca, Hervé reage referindo-se aos seus direitos: “Se

você continuar tentando me botar prá fora, eu cha-

1 Trata-se de minas militares submersas, abandona-

das pelos alemães ao fim da II Guerra Mundial. (Nota derevisão.)

O trabalho, busca de sentido

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78 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

mo a inspeção do trabalho”. De maneira geral, Her-

vé se afirma resistente a toda autoridade, pelo me-nos quando exercida de uma forma arbitrária ou

absurda. Como na canção de Renaud em que se

escuta: “ele tinha vontade de arrebentar o crânio do

chefete que não sabia suportá-lo”.Segue-se um breve período de desemprego, um

emprego interrompido três dias depois de ele haversido contratado, por causa de um acidente de moto

(que serve de pretexto para seu empregador não

recontratá-lo) e um novo período de desemprego

com duração de quinze meses com prestações do

seguro-desemprego que vão sendo reduzidas pro-gressivamente.

Caro senhor, sentimos muito, o senhor tem 25anos, e apenas um ano de experiência, que podemos

fazer pelo senhor? Não dá para contratá-lo, não é

mesmo...?

Nos últimos meses de desemprego, não supor-

tando mais o tédio e o vazio de seus dias, Hervé

trabalhará voluntariamente um dia por semana nu-

ma associação cultural. Depois ele será contratado

para um cargo de serviços gerais no quadro dos

programas de reinserção para desempregados. Se

seu emprego tem muito pouco de conteúdo próprio,ele valoriza muito, no entanto, o novo tipo de re-

lações que experimenta (“é jóia, você encontra pes-

soas”) e o caráter expressivo das atividades que o

constituem.

Não dá nem para dizer que é meu patrão, por-

que não é um cara como os meus patrões de antes. É

outra coisa. É um cara muito legal, é muito agradá-

vel trabalhar com ele. Desde que estou aqui, eu me

esforço muito, até um pouco demais, acredito, paraque a gente faça alguma coisa que valha a pena. Bom,

o que se chegou a fazer foi um mini-festival com os

“hard-rockers” que foi muito bom.

Essa inserção profissional lhe dá ocasião de se

abrir, de ter acesso a um novo universo cultural erelacional suscetível de lhe proporcionar novos pon-

tos de referência: “eu me sinto crescer com esse tra-

balho cultural, eu evoluo, acredito nisso, as pessoas

que a gente encontra aqui têm outra mentalidade”.

A comunicação, sobretudo, é um eixo central desuas orientações no trabalho. Além do ganho finan-

ceiro e da ocupação, o trabalho é antes de mais nada

valorizado pelos contatos sociais que favorece, o

conteúdo desses contatos sendo menos importantedo que a própria comunicação. Embora encontrenessa cultura da comunicação e da convivialidade

um substitutivo para a identidade profissional não

realizada pelos canais tradicionais, Hervé não con-

sidera, entretanto, seu emprego como um verdadei-

ro trabalho, isto é, como aquele que lhe traria statuse estabilidade.

Para ele, realizar-se é: “eles têm uma casinha,

filhos, um carrinho e... Bom, eles chegaram a um

 ponto onde eu gostaria de chegar. Eu não chegueiaí, mas isso vai acontecer um dia... de qualquer for-

ma, eu poder ter o que quero.”

Enquanto isso, num futuro previsível, seu ho-rizonte inelutável é o desemprego e uma nova bus-

ca para encontrar um emprego.

Agora estou bem porque tenho um trabalho,

mas dentro de três anos terei de recomeçar, e isso vai

ser o quê, recomeçar? Vai ser, talvez, dois anos de

desemprego ou dois meses, como podem ser dois dias.

A precariedade constitui seu universo de refe-

rência, desencadeando efeitos de ruptura, de frag-

mentação ou de desarticulação que impedem a for-

mação de uma relação estável com o trabalho. No

plano profissional, Hervé aspira de modo imprecisoe flutuante a um trabalho, ao mesmo tempo coo-

perativo e independente (“ser meu próprio patrão”),

que lhe assegure um status social condizente com

suas expectativas iniciais e uma auto-realização atra-

vés de uma atividade criativa.

Se eu tivesse podido ser joalheiro, aí eu teria uma

loja... eu gostaria de ter feito dessa loja ou desse atelier,

um atelier de criação, do gênero Van Cleef e Arpels.

Teria sido Van... Hervé. Seria meu próprio patrão e

faria uma associação cooperativa. Acho normal bene-

ficiar outros operários como eu... que seria operário

também, já que faço a criação... Nesse pequeno meio

da criação, faria só um modelo de jóia por pessoa...

Guy Bajoit, Abraham Franssen

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Revista Brasileira de Educação 79

Eu acredito que as pessoas teriam mais vontade de vir

comprar comigo do que com qualquer outro. Além

disso, seria legal de fazer...”

As afirmações de Hervé são assim constante-

mente divididas entre uma aspiração à normalida-de e à conformidade social (“se eu conseguisse en-

trar na pequena burguesia”) e uma busca de eva-

são e de encontros (“Meu objetivo é a viagem e a

comunicação”). Aliás, se ele fosse joalheiro, com-

praria um barco.

Suas condições atuais de existência tornam hi-potética a realização de seus projetos e Hervé ten-

de a refugiar-se numa situação de moratória, entre

sonhos malogrados e projetos indefinidos: “No mo-

mento estou aqui, daqui a três anos, vamos ver”.Essa situação de moratória é acentuada pela depen-dência financeira que o obriga, aos vinte e cinco

anos, a continuar morando na casa dos pais. Ao to-

do, no momento da entrevista, fazia seis anos que

Hervé havia saído da escola. Os dois anos no exér-

cito, os trinta meses de desemprego e os empregosprecários que ele conheceu não lhe permitiram in-

vestir em tarefas de conteúdo importante.

Ele é o exemplo banal de um jovem cuja socia-

lização de trabalho foi, desde o início, fragmenta-da e precária. Longe de constituir uma etapa inicial,

a precariedade de sua inserção profissional é a cons-tante em sua trajetória no mercado de trabalho.

Essa fragmentação e essa heterogeneidade, impedin-

do a realização das expectativas ligadas ao projeto

familiar inicial, são fontes de desestruturação pro-

funda e de ameaças de anomia. O modelo de tra-balho ao qual ele se refere é bastante impraticável.

Para Hervé, face à sociedade fechada e desorgani-

zada, os indivíduos ficam reduzidos à impotênciaexistencial e vivem uma ameaça de desagregação

psíquica. Ele evoca assim o horizonte negativo deuma desorientação pessoal, que ele teme.

No fim das contas, são os nervos que sofrem e

eu não sei se é a maioria dos desempregados que são

assim, e os jovens, porque muitos jovens... depois de

um ano, um ano e meio de desemprego, a bebida co-

meça a chegar... A bebida faz com que — bom, você

chega a um ponto sem volta. Se você não acha traba-

lho nos próximos seis meses, você embarca p’ro hos-

pital, como alcoólatra ou então como... louco.

O trabalho na vida

Contra as apreciações lapidares (“os jovens

 perderam o sentido do valor do trabalho”) é pre-

ciso sublinhar que o trabalho continua sendo uma

fonte importante de normatividade e uma expe-riência central de socialização. Trabalhar — quer

dizer, exercer uma atividade produtiva com cará-

ter social assegurando uma independência finan-

ceira — permanece, para todos os jovens que en-

trevistamos, uma expectativa básica, por vezes es-

sencial, sempre importante. Entretanto, por trás daaparente homogeneidade das expectativas — um

trabalho de que se gosta num ambiente positivo,

que assegure ganho e reconhecimento social — as

experiências vividas e as significações atribuídas aotrabalho são múltiplas. As palavras são as mesmas

(trabalho-emprego-desemprego), mas as significa-

ções são diversas.

A crise do modelo tradicional do trabalho

O modelo tradicional de trabalho é ainda bem

presente e desejável para muitos jovens, mesmo ten-

do-se tornado mais ou menos difícil de praticar.

Para Patrick, encarregado numa pequena em-presa metalúrgica da região de Liège, como para

Bernard, torneiro-fresador numa empresa metalúr-

gica próxima de Bertrix, o trabalho é ao mesmo

tempo uma necessidade vital, uma obrigação social

e um dever moral, cuja contrapartida é o status so-cial que ele confere e a satisfação pessoal que pro-

porciona. O trabalho tem uma dimensão instrumen-

tal (ganhar a vida) mas, apesar de seu caráter pe-

noso, ele comporta também uma forte dimensão

expressiva (realizar-se social e pessoalmente). Aolado do salário, que é um critério importante que

justifica as mudanças de empresa, trata-se “gostar

do trabalho”, “de se sentir bem” e “de estar num

bom ambiente”.

O trabalho, busca de sentido

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Uma grande parte do discurso é espontanea-

mente voltado para a descrição do processo de tra-balho no qual estão engajados, com sua rotina e

seus incidentes. Sua identidade orgulhosa está liga-

da ao conteúdo técnico do trabalho (trabalhar com

uma máquina de tipo digital), à sua dificuldade,até mesmo à sua sujeira, e às competências mobi-lizadas. A valorização está igualmente ligada ao

nível de responsabilidade exercida, à “importância

de seu papel”. Patrick, como Bernard — que deta-

lha longamente o funcionamento de sua máquina:

“uma máquina suíça de 39 que trabalha com mi-cron” — são reveladores de uma cultura do ofício,

com seus códigos, seu ritmo, suas relações, e que

ocupa um lugar central nas suas existências. As

etapas e os mecanismos de sua entrada no mundodo trabalho, e de sua carreira operária são clara-mente balizados. É o tempo do trabalho que deter-

mina o ritmo de vida, distinguindo claramente

tempo de trabalho e de lazer. (“o domingo é sagra-

do”). O tempo do trabalho vem primeiro, e o da

recuperação é secundário. Nem um nem outro re-

clamam por efetuar horas suplementares em fun-ção das exigências da produção.

Se esse modelo tradicional é ainda bastante

desejável, sua impraticabilidade relativa o leva aentrar em crise.2 Hoje, para muitos jovens, como

para Hervé, a experiência do desemprego e da ins-tabilidade, o confinamento em tarefas pouco qua-

lificadas, a consciência das exigências dos contra-

tos e a ausência de perspectivas profissionais des-

truíram a maior parte de suas referências ao modelo

tradicional do trabalho. Ameaçado e obrigado a

recuar, este aparece como uma referência longín-

qua. Além disso, o prolongamento da escolarida-de obrigatória até os dezoito anos e o esgotamento

das fontes tradicionais de empregos operários, tem

contribuído para manter muitos jovens num espa-

ço relativamente indeterminado, impedindo a socia-lização precoce no mundo do trabalho, tal comogeralmente foi vivida por seus pais.

O “garantismo”

Ao fim de um longo período de desemprego

sem estar registrado no organismo competente,

Pierre, cujo pai é chofer caminhoneiro, está disposto

a encarar qualquer trabalho: A pessoa que vai bater

 ponto (no organismo de registro dos desemprega-dos) acaba tomando gosto nisso, e o trabalho... ela

está pouco ligando, se lixa, isso não é para mim”;

“Se me dissessem para ser desentupidor de priva-

das, eu seria desentupidor de privadas... o que eu

 precisava era de uma entrada mensal de dinheiro.”;“Eu pedi para ser varredor de rua. Mas isso não deu

 porque era preciso ser bilíngüe”. Pierre acabou sen-

do engajado no Governo belga: “Eu tive de me fa-

zer de criança nessa hora... eu tive quase que cho-

rar para conseguir o lugar. É verdade que eu eracasado, que meu filho havia acabado de nascer, eutinha necessidade absoluta de dinheiro”3 .

Ao fim de seus estudos de auxiliar de enferma-

gem Solange experimentou um longo período de

desemprego, que significou, para ela, o tédio, o de-

sânimo, o sentimento de inutilidade, os dias em que

se está só, sem nada para fazer: “eu procurei mui-to, muito trabalho, respondi aos anúncios, escrevi...

no começo procurei no meu ramo, mas depois, qual-

2 Esse parágrafo apóia-se bastante numa pesquisa an-

terior levada a efeito sobre as orientações de trabalho dos

jovens e apoiando-se na análise aprofundada de uma dúziade entrevistas com jovens em situação precária no merca-

do de trabalho. É preciso observar que algumas das entre-vistas evocadas aqui (Pierre, Solange, Laura, Hervé) foram

realizadas em 1985 e 1986, num contexto fortemente mar-

cado pela crise do empego indusrial. Ver Molitor, M. e A.de Ronge Jeune et identité au travail , rapport de recherche,

departement de Sociologie UCL, 1987.

3 Essa atitude de implorar emprego, na qual o regis-

tro afetivo (“Tenho necessidade de um trabalho. Obriga-

do...) prevalece sobre a transação mercantil, pode ser igual-mente encontrada, de quando em quando, na página “jo-

vens que procuram emprego” do jornal Le Soir, no qual umavez por semana uns trinta jovens dispõe de 12 centímetros

quadrados para atrair a atenção de um empregador.

Guy Bajoit, Abraham Franssen

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Revista Brasileira de Educação 81

quer coisa, cheguei até a pedir numa usina de fa-

bricação de plástico... como empregada doméstica...babá e tudo”. Por fim, teve a sorte de encontrar um

primeiro emprego, temporário, como auxiliar de

enfermagem num lar para pessoas idosas, substitu-

indo outra pessoa: “Eu gosto de trabalhar, tenhomedo de ficar desempregada de novo”.

Para esses jovens cuja experiência da precarie-dade origina-se freqüentemente numa socialização

familiar que oferece recursos frágeis ou inadequa-

dos e é confirmada pelo veredito do sistema esco-

lar, as dificuldades prolongadas de inserção no mer-

cado de trabalho impedem a estabilização no mode-lo de trabalho ao qual aspiram e se traduz por uma

desestruturação de suas referências identitárias. Con-

trariamente a Bernard ou a Patrick, há aqui a ausên-cia de uma cultura do trabalho estável e constituída.

Nessas condições, as preocupações econômi-

cas (“um trabalho a qualquer preço”) ou de status(“não estou contente de ter um emprego provisó-

rio remunerado pelo Estado”) prevalecem sobre as

características próprias do trabalho. O percurso no

mercado de trabalho é descrito mais em termos

administrativos (“fiz um estágio para desemprega-

dos...”; “naquele momento, estava fazendo um es-

tágio de espera”; “obtive meu certificado 4”) maisdo que em termos de ofícios, de conteúdos. As ex-

pectativas com relação ao trabalho são reduzidas

à sua dimensão instrumental: uma fonte de ganhos,

uma ocupação do tempo, um status social.

Nesse sentido, para esses jovens em situaçãoprecária, a dimensão expressiva do trabalho desa-

parece: o sentimento de participar de um processo

de produção global, de ser útil, de se realizar pes-

soalmente. A organização do trabalho é então sen-

tida como heterônoma. Ela tende a ser reduzida aoorganograma que lhe assinala um lugar, na falta de

um status real e de uma função. A ocupação não é

percebida em termos de ofício, mas de tarefas a re-

alizar (“arrumo as prateleiras”) ou de uma defini-

ção institucional (“Trabalho como estagiário”) ouainda, permanece indefinida e marginal (“sou pau

mandado”).

Para esses jovens cuja inserção se efetua, fre-

qüentemente, através de empregos pouco qualifica-

dos no setor dos serviços ou no quadro de sub-statusdo setor não-mercantil, as relações de trabalho não

são mais vividas como relações de produção, mas

como estritamente hierárquicas e burocráticas (va-

zias de conteúdo) ou, inversamente, como relaçõesinterpessoais, ligadas às categorias do afetivo (“sim- páticos”, “legais”...); “O GB é uma família”; “para

mim, o GB é, como diria, um lugar público, a gen-

te está entre amigos, a gente discute, se diverte, é

isso mesmo.” (Pierre)

A dimensão coletiva e conflitual das relações

de trabalho desaparece aqui completamente, subs-tituída seja por um sentimento de isolamento e de

impotência, seja por uma identificação total à em-

presa: “No GB, eles são boa gente...A prova: eu fuiuma vez surpreendido fumando nos banheiros, o

que é proibido pelo regulamento, fui chamado pelo gerente, discutimos e ele, vendo minhas possibili-

dades de trabalho, me disse: ‘bom, vamos deixar

 passar’”. (Pierre)

A ausência de mediação pelo trabalho e, de

maneira geral, a fragilidade de suas redes sociais,

reforçam o sentimento de vulnerabilidade social

com relação às diferentes instituições (Ofício para

os desempregados, sindicatos, administrações) aoarbítrio das quais eles sentem-se particularmente ex-

postos, na medida que elas constituem seu elo com

o sistema social.

Pode-se, com Michel Molitor, falar da figura

do “garantismo” para caracterizar a degradação dasreferências de trabalho que se observa entre os jo-

vens confrontados com o fracasso relativo de seu

projeto de integração. A cultura do trabalho, capaz

de proporcionar uma identidade digna e positiva ao

trabalho, torna-se uma referência distante, mas sem-pre desejada. A dimensão expressiva do trabalho

como locus da realização de si é progressivamente

abandonada em favor unicamente da lógica do em-

prego, o tema da retribuição prevalece sobre o da

contribuição, as categorias administrativas ou afe-tivas substituem as categorias sociais e profissionais.

Pierre, Solange, Stéphane, Luc, Hervé, Didier

e tantos outros agarram-se aos farrapos da norma-

O trabalho, busca de sentido

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lidade do trabalho, sem realmente questioná-la, nem

dela distanciarem-se. Trata-se, por certo, de umalógica de crise no sentido de que a impraticabilidade

das normas adquiridas é vivida dolorosamente e dá

lugar a diversas estratégias de compensação e de

racionalização, sem alternativa positiva.É a lógica do gato escaldado e da nostalgia que

melhor caracterizam a atitude desses jovens no mer-cado de trabalho e, de maneira mais geral, face a

uma sociedade da qual eles se sentem marginalizados

e à qual se agarram. Experimentando a precariedade,

eles se retraem sobre as referências de que dispõem,

sem contar com recursos culturais e sociais que lhespermitiriam viver diferentemente sua situação.

O transitório

Ao mesmo tempo, por freqüentarem a diver-

sos meios, por força da necessidade de uma aven-

tura sempre recomeçada, a própria heterogeneida-

de de sua experiência propicia uma socialização

inédita e a aquisição de novas referências e orien-

tações com relação ao trabalho. No caso de Hervé,como no de muitos outros jovens, essa modificação

das orientações com relação ao trabalho está liga-

da à experiência de empregos “alternativos” do se-tor não mercantil no quadro de sub-status (diver-

sos mecanismos institucionais especialmente cria-dos pelo governo para atendê-los...), onde eles têm

a oportunidade de experimentar outros tipos de

relações de trabalho.

De uma maneira mais global, podemos nos

interrogar com relação aos efeitos, em termos de

socialização, da experiência de trabalho, decorren-tes de políticas de emprego destinadas aos jovens.

Com relação à experiência de Hervé, é possível for-

mular a hipótese de que esses empregos de substi-

tuição não permitem uma integração real no mun-

do do trabalho, mas induzem uma socialização que,com Michel Molitor, se poderia qualificar de “so-

cialização do transitório”, fortemente marcada pela

lógica da precariedade.

O exemplo de Hervé esclarece a lógica interna

dos jovens que galeram no mercado de trabalho, que

se mantêm bem ou mal, provisoriamente, mas sem

esperanças realistas de encontrar uma saída, nessazona brumosa que separa as exigências do merca-

do de trabalho dos seus recursos e das suas aspira-

ções. Por exemplo, nas conversas de Hervé ele evo-

ca o grupo dos “irredutíveis” com o qual se vêem“confrontadas” as instituições de reinserção profis-sional que se habituaram a distinguir, no seu públi-

co, os jovens “aptos à formação para o trabalho” e

os jovens que é preciso antes “ressocializar”. Esses

jovens — maciçamente encontrados nas diferentes

iniciativas públicas e privadas de formação atravésdo trabalho (escolas de aprendizado, formação em

alternância), onde se insiste em fazê-los adquirir uma

qualificação de base (construção civil) — são tam-

bém os mais conscientes das imposições do merca-do de trabalho e sem ilusões sobre suas próprias pos-sibilidades de exercer um trabalho interessante. Para

aqueles que, decididamente, resistem à socialização

pelo trabalho (e tanto mais na medida em que esta

se efetua sob a forma de estágios mal remunerados

no quadro de pequenas e médias empresas marca-

das pelo autoritarismo das relações de trabalho), a“apatia” é apenas a distância que os salva.

Verifica-se, nesse caso, ao mesmo tempo, uma

desestruturação das referências tradicionais de tra-balho tornadas completamente impraticáveis e a ma-

nifestação de orientações novas, particularmente em

torno da temática da comunicação e da auto-reali-zação expressiva. Essas aspirações, na medida em que

não podem se realizar no âmbito do mercado de tra-

balho, transformam-se em atitude de auto-preserva-

ção, entre desestruturação psíquica e o distanciamen-

to lúcido. Às ofertas tradicionais de formação, ain-da amplamente elaboradas com base nas normas do

modelo tradicional de trabalho, esses jovens respon-

dem freqüentemente com indiferença, manifestan-

do em contrapartida mais interesse por atividades

com forte dimensão expressiva (“teatro”).

Novas Aspirações ao Trabalho

Na ética tradicional, o trabalho é consideradocomo um dever moral e social. É através de sua parti-

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Revista Brasileira de Educação 83

cipação no processo de produção que o indivíduo

pode pretender a uma auto-realização, tanto no pla-no da satisfação pessoal quanto do status social. Aca-

bamos de ver que para um certo número de jovens,

esta referência tornou-se longínqua e impraticável

e que esta degradação é vivida sob a forma da crise.Ao mesmo tempo, paralelamente, a crise de pratica-bilidade e de legitimidade das normas tradicionais

de trabalho dá também ocasião a uma mutação es-

trutural das orientações com relação ao trabalho.

O que muda não é tanto a importância do tra-

balho, mas sim a relação com ele. Enquanto no mo-

delo tradicional a realização pessoal estava subor-dinada ao trabalho, hoje é o trabalho que tende a

estar subordinado à realização pessoal, permane-

cendo entretanto como um elemento e um locusessencial, embora não exclusivo. Nesse sentido, não

se trata tanto de uma rejeição do trabalho, mas simda reivindicação de um trabalho que tenha sentido

para o próprio indivíduo e/ou que lhe deixe tempo

para uma vida própria.

Em outras palavras, o trabalho continua sen-

do importante, mas diferentemente. Enquanto an-

tes ele era importante em si, pela participação que

assegurava ao projeto coletivo da sociedade indus-

trial, agora ele se torna importante para o próprioindivíduo, na medida que pode contribuir para o seu

projeto singular. O valor do trabalho tende a não

ser mais sacralizado, mas autoreferido, isto é, a ser

submetido às aspirações e à crítica do indivíduo.Não é mais o indivíduo que é referido ao trabalho,

o trabalho é referido ao indivíduo.

Para mim, é importante ter sucesso no plano

profissional, mas mantendo um distanciamento com

relação a isso. Não esquecer que o resto também temimportância e que o fundamental é estar bem na pró-

pria pele. A melhor profissão é, antes de tudo, aquela

de que a gente gosta, (posto que representa uma gran-

de parte da nossa vida) (Jean Pierre).

Essa reivindicação se exprime muito nitida-mente na vontade de “não se deixar consumir pelo

trabalho” e de realizar um trabalho que tenha sen-

tido, no qual o indivíduo possa realizar-se.

A recusa do trabalho-alienação

De maneira defensiva, negativamente, essa

aspiração exprime-se por uma rejeição ao trabalhoassalariado na fábrica e por uma recusa do traba-

lho-alienação. Muitos jovens manifestam assimsua rejeição a uma carreira operária normal tal

como a que foi vivida por seus pais. Assim, Chris-

tian, 22 anos, interrompeu a escola aos dezoitopara ir trabalhar.

Eu trabalhava numa usina química. Rompi meu

contrato. O ambiente não me agradava. Tinha muito

barulho. Era meio que trabalho em cadeia. No começo

para guardar o lugar, você tem que trabalhar. E com

isso os outros operários aproveitam. Eles vêem quevocê é o otário... Havia relações entre os operários,

mas para mim não dava. Eu não teria conseguido con-

tinuar ali. Vê-los todos os dias, não dava. É o tempo

todo a mesma coisa, e depois, no final do ano, vamos

todos ao restaurante e você tem a impressão de que é

o carrossel encantado. Não, eu não quero... Eu prefi-

ro achar alguma coisa melhor, que eu esteja seguro de

gostar mais...

Christian encontra-se agora desempregado há

seis meses (“com o desemprego eu posso aprovei-tar melhor a vida”), situação que ele sabe que é

provisória sem que por isso seus projetos estejam

claramente definidos (“Eu não sei, a gente vê, a

 gente vê”). Embora faça rock com um grupo decolegas, não tem ilusões quanto às exigências do

mercado musical e não imagina que vai poder vi-

ver disso. De qualquer forma, sabe que não volta-

rá à fábrica. E quando lhe perguntam se está inte-

ressado numa formação em trabalho com madei-ra, organizada em sua região no quadro de uma

AID (ação integrada de desenvolvimento) destina-

da aos jovens “excluídos”, sua resposta é inequívo-

ca: “Não, a poeira, eu não suporto, sou alérgico a

isso. Essa coisa de poeira, eu já conheço.”

Esta experiência de sujeição à máquina e à agres-sividade nas relações de trabalho, Silvana também

já viveu. Para ela, o choque da entrada no “mun-

do do trabalho” foi tanto mais violento quanto sua

O trabalho, busca de sentido

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84 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

socialização anterior, no universo protegido da fa-

mília e no quadro convivial da escola, não a tinhapreparado de maneira alguma para isso: “Quando

você está na escola, você tem a impressão que é

mimada... você é protegida.”

Da fábrica onde Silvana trabalhou três anos,ela guarda uma experiência heterônoma, sem con-

teúdo próprio, sujeita ao ritmo da máquina, con-frontada com a vulgaridade e com as rivalidades de

suas colegas mais velhas:

Numa fábrica, é preciso sempre andar rápido.

A máquina gira todo o tempo, você não pode parar a

máquina... É depressa demais, é rápido demais. Ali,

oito horas, você só pode ir (ao banheiro) duas vezes.

Cinco minutos... Porque nas fábricas, freqüentemente,a briga é essa: os banheiros. Eu emagreci cinco qui-

los, porque não conseguia comer em vinte minutos...

Então eu não comia nada. Com isso você fica sono-

lenta e isso é mau porque... você pode meter os dedos

na máquina. As antigas se aproveitavam das mais jo-

vens... te deixam o tempo todo no mesmo lugar... fa-

zer o trabalho mais duro e o mais chato, o dia inteiro.

Desempregada há quinze dias (“eu mereci”)

Silvana não voltará a trabalhar na fábrica para não

perder a sua humanidade:

Se eu trabalhar toda a minha vida num lugar

assim, vou ficar como elas, vou me tornar ruim.. Não,

isso eu não quero. (...) Para mim, o trabalho ideal é o

de mãe de família...criar os filhos... cuidar das pes-

soas...permanecer humana.

A dimensão alienante do trabalho assalariado,

o sentimento de monotonia e de vazio que o acom-

panha não são novos. Toda a literatura sociológi-

ca sobre a condição operária, e em particular aspesquisas junto às operárias, ressaltaram abundan-

temente essa escravização da pessoa à máquina e as

micro-estratégias individuais ou coletivas acionadas

para escapar a isso (psicossomatização, fuga atra-

vés do sonho, greve tartaruga...).Não obstante, ape-sar de seu caráter penoso, o trabalho determinava

uma condição operária vivida como uma razão so-

cial, com relação à qual não havia outra escolha

senão submeter-se, interiorizando as coerções. É

precisamente essa perspectiva que é rejeitada de for-ma explícita por Christian, Silvana ou Isabelle (que

trabalha como secretária): não terminar como eles,

rotinizados, escravizados e aviltados pelo ritmo de

trabalho e suas relações convencionais.Para esses jovens, a primeira experiência de

trabalho — às vezes depois de muitos anos — lon-ge de conduzir a uma confirmação do modelo de

trabalho (como no exemplo de Patrick que “está re-

começando tudo de novo”) conduz a uma rejeição

total ou parcial. Passado o primeiro choque de en-

trada no mundo do trabalho, eles tentam se acomo-dar: “Eu não queria dizer aos meus pais que esta-

va infeliz nessa fábrica” (Silvana) “É verdade, eles

têm razão, vou fazer como todo mundo” (Isabelle).Mas acabam desistindo, antes de se perderem como

sujeitos:

Faz mais ou menos 6 meses que estou desempre-

gada, no começo eu fiquei, admito, feliz, porque pas-

sei cinco anos de minha vida numa fábrica abominá-

vel onde o patrão era o patrão e a operária um ins-

trumento de trabalho. Fiquei tão horrorizada com esse

cara que me arrependi realmente de ter parado de estu-

dar. Mas o fato de ter trabalhado como um cão me

ajudou a pensar. Por isso, quando me registrei no Ofí-

cio do desemprego, me senti em férias e foi depois de

dois, três meses que comecei a refletir e disse a mim

mesma que não queria mais voltar a trabalhar numa

fábrica. Eu penso que os desempregados não devem

se deixar abater, porque, ainda que se duvide, os de-

sempregados não são necessariamente pessoas que não

prestam para nada, ou pessoas à parte. Eles também

têm sua vida, mesmo se eles não têm os meios finan-

ceiros como os outros. Quanto a mim, é verdade que

eu não gasto mais tanto como antes, mas por enquanto

estou vivendo muito bem e espero poder achar um

trabalho, mas desta vez um trabalho que me agrade

(agência de viagem) porque gosto de estar em conta-

to com as pessoas. Só agora me dou conta disso, foi

primeiro preciso que eu tivesse uma experiência ruim

para adquirir vontade e caráter. Eu não voltarei jamais

a uma fábrica (Gabriella, 23 anos, atelier de escrita).

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Revista Brasileira de Educação 85

O trabalho desinvestidoe o trabalho sonhado...

Tudo se passa como se a experiência de tra-

balho de numerosos jovens fosse caracterizada por

uma distância importante, sentida e expressa, en-tre suas aspirações e a realidade (conteúdo e ambien-

te) do seu trabalho. Freqüentemente a decepção os

espera na entrada do “mundo do trabalho”: “Na

realidade, de início, você imagina muita coisa comrelação ao trabalho...”, “há um certo desencanta-

mento”. Numa pesquisa realizada com jovens de

camadas populares, Daniel Ruquoy e Jean-Pierre

Hiernaux mostraram bem a defasagem entre a im-

portância atribuída a priori ao trabalho e a satis-

fação advinda da experiência concreta com o mes-mo. Uma maioria de jovens vão, assim, lamentar a

falta de interesse qualitativo de seu trabalho, esti-

mando-se, ao contrário, mais satisfeitos com suas

características extrínsecas (ganhos, status...)4.

Bem, eu procuro emprego com contrato inde-

terminado, um pouco o que me cai nas mãos. Rara-

mente são coisas que eu gosto (Ana).

A consciência e a gestão desse descompasso dá

lugar a diferentes estratégias, atitudes e representa-ções, que permitem ao indivíduo existir como su-jeito dissociando-se de sua situação, ou mesmo de

sua condição profissional. A figura mais clássica

dessa gestão da insatisfação é a do trabalho desin-

vestido. O trabalho é, no máximo, reduzido à sua

função instrumental (pelo dinheiro) enquanto todaa dimensão da autorealização é reportada à esfera

privada e à sociabilidade escolhida.

Mathieu, que ao fim de um contrato de apren-

dizagem de 6.000 francos belgas por mês durante

dois anos, acabou de ser contratado como repara-

dor de caixas registradoras, precisa bem o alcancede seu investimento no trabalho:

como eu já caí na armadilha, me envolvo um

mínimo... Para mim, o trabalho é como um negócio.

E vejo família como realização... Eu não sou diretor

de empresa, então não vejo como poderia... Se eu fosse

chefe de empresa, seria milionário, talvez fosse desse

jeito. Não é o meu caso.

Quanto a Ana, recepcionista de uma agência

de viagens,

“Isso depende do trabalho. Se eu tivesse um traba-

lho de que gostasse muito, não me incomodaria de tra-

balhar dez horas por dia. De bom grado eu trabalharia,

mas... Quando é um trabalho de que você não gosta

muito, 4 horas bastam... Só para ganhar a vida, é só isso.”

Essa recusa de um trabalho que impõe suas li-mitações ao conjunto da existência (“o trabalho queabsorve vida inteira”) é expressa, de maneira mais

ou menos aberta e declarada, pela maior parte dos

jovens, qualquer que seja seu nível sócio-profissio-

nal: “Não quero uma vida em que você se sacrifica

 pela empresa” (Joy). O trabalho no quadro de um

emprego não é considerado como o único modo deautorealização. Na medida em que não seja realiza-

dor, ele tende a ser minimizado, para justificar uma

auto-redefinição, na esfera familiar para alguns, oua partir de uma atividade pessoal para outros. “Eu

não me definiria pelo trabalho, eu me definiria prin-cipalmente pelo que faço paralelamente” (Isabelle).

O trabalho então é apenas um “bico”, o “trabalhi-

nho”, o “contrato”, “temporário”, enquanto o ver-

dadeiro trabalho é a atividade autônoma.

Esta lógica é particularmente presente entreos jovens que seguiram estudos do tipo artístico ou

literário e que experimentam sua frágil rentabilida-

de no mercado de trabalho. É na medida que não

encontram um trabalho que corresponda a suas as-

pirações profundas e no qual eles possam investir,que alguns adotam uma atitude estritamente mini-

malista e instrumental com relação ao emprego.

Inclusive para Mike e Antoine, aparentemente os

mais alérgicos ao trabalho, a minimização às ve-

zes desdenhosa da implicação de si no trabalho(“um trabalho, mas era só para ter direito ao de-

4 Hiernaux, J.P., Ruquoy, D. Travail Ras-le-bol? Jouis-

sance? Ed. Vie Ouvrière, Bruxelles, 1986.

O trabalho, busca de sentido

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semprego, faço questão de deixar claro”, “um tra-

balho tranqüilo, sem chateação...”) aparece comoa contrapartida das aspirações não concretizadas

de autorealização “num trabalho que não seja mais

um trabalho”.

Eu quero fazer alguma coisa interessante, estu-

dei fotografia, e gostaria muito de me fixar na foto-

grafia, no teatro, numa coisa artística, ou pelo menos

cultural. Eu me sentiria útil à beça e faria uma coisa

que gosto (Antoine).

Daí se eu pudesse achar outra coisa, qualquer

coisa mais — como dizer —... onde eu me envolvesse

mais, por assim dizer... Assistente social, isso é um

treco que eu bem que gostaria de fazer (Mike).

No horizonte, subsiste freqüentemente o so-nho de um trabalho que propiciasse a auto-reali-zação pela realização de um projeto próprio. Joy —

atualmente desempregada e que, desde que parou

de estudar com dezessete anos, só trabalhou em

secretariado, “uma pura exploração” ou “peque-

nos serviços ingratos” — tenta lançar as bases quea aproximariam de seu sonho:

Meu grande sonho e minha grande ambição se-

ria trabalhar um pouco mais na área do espetáculo oudo canto, tudo o que é um pouco público, isso é a

minha grande ambição. Mas é evidente que é preciso

viver de coisas que não somente sejam sonhos, e daí,

por isso, eu gostaria muito de ter uma formação como

vitrinista, isso seria minha base...

Ana, que sofre no balcão de uma agência de

viagens, gostaria de viajar “organizar viagens paraas pessoas e tudo isso” ou então fazer fotografia.

Isabelle que “fica lendo atrás de sua máquina de

escrever enquanto o chefe não está lá”, gostaria de

escrever ou então “ir para o Terceiro Mundo”. E

para Didier, amarrado há muitos anos entre umasituação de desemprego e um status indetermina-

do, o emprego ideal seria trabalhar em postes de

eletricidade, um trabalho perigoso e ao ar livre, lá

no alto.

A imprecisão e a grandeza do projeto pura-

mente virtual permitem a evasão. O que não impe-

de de ter os pés no chão e uma consciência lúcida

das obrigações. A maior parte dos jovens não pro-cura enfeitar, nem assumir com orgulho sua própria

situação: ao contrário, eles depreciam seu “traba-

lho de paus mandados” para dele melhor se distan-

ciarem. (“É uma questão de lucidez”).

Tempo de trabalho e tempo de vida

Essa aspiração à autorealização e essa relação

dessacralizada com o trabalho se traduzem tam-bém em uma outra relação com o tempo, quer se

trate do tempo cotidiano ou da divisão das etapas

da vida. No modelo tradicional de trabalho, o tra-

balho é um dado indiscutível que determina o rit-

mo da existência. A norma é a do emprego emtempo integral e para toda a vida. A estabilidade

do emprego é uma dimensão importante e é o mo-

delo progressivo e cumulativo da carreira que cons-

titui a norma (sancionada por uma medalha depois

de 25 anos de fidelidade). Trata-se de ter “um bomlugar” que permita efetuar toda uma carreira — os

papéis profissionais são papéis para toda a vida,

com a possibilidade de “reconversão” sob o impé-

rio da necessidade, mas o termo mesmo de “recon-

versão”sugere a amplitude da reorientação queisso significa. Se ainda se encontra entre os jovens

esta aspiração a uma segurança na existência, for-

çoso é constatar que há menos empregos estáveis

e que a norma do emprego em tempo integral e

para toda a vida tende a aparecer como um con-tra-modelo. O receio da monotonia supera o de-

sejo de segurança e de retorno financeiro (“o di-

nheiro, a gente precisa, mas é para gastar”). Mui-

tos jovens reivindicam assim o caráter temporário

da sua ocupação atual: “eu vou sair logo”, “nãovou envelhecer lá dentro”.

 Jovens com maiores recursos inquietam-se às

vezes de se verem confinados em um lugar “confor-

tável” (estabilidade, bom salário, mas pouco inte-

resse intrínseco) que não se teria mais coragem de

deixar. Os jovens executivos tendem a afirmar seudesprendimento e sua capacidade de ruptura não

somente com relação ao emprego, mas também com

Guy Bajoit, Abraham Franssen

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Revista Brasileira de Educação 87

relação à carreira. (“parar”, “fazer qualquer outra

coisa”). Mesmo que isso não venha a ser feito.

Eu me vejo muito mal num escritório sempre

com o mesmo patrão, sempre com as mesmas ordens

o dia todo. É isso que me dá muito medo no traba-

lho, é de fato a rotina que para mim vai um pouco de

encontro à vida, que desgasta, que é constrangedora,

que te imobiliza e é enfadonha (Joy).

Quanto ao tempo cotidiano, a motivação pe-

lo salário é aqui secundária com relação ao desejo

de ter tempo para a própria vida, de que o tempo

todo não seja consagrado à recuperação da “for-ça de trabalho”.

O trabalho, na verdade, toma espaço demais.Quando você pára, termina o trabalho às duas horas,

chega em casa são duas e meia, você faz o quê? Você

descansa no sofá porque você não agüenta mais. E, às

vezes, no começo, nos primeiros meses, eu ficava no

sofá e dormia, às vezes até 7, 8 horas. Depois você não

tem mais vontade de fazer nada no começo. Você fica

meio abatida porque você acha que é horrível, horrí-

vel mesmo o que você faz (Silvana).

Você vive só p’ra isso (Christian).

Eu acho que isso toma um tempo enorme, e ener-gia também... Freqüentemente, no final da semana eu

estou realmente a nocaute....completamente exausta,

liquidada (Isabelle).

O trabalho: uma experiência individual

Esta vontade de considerar o trabalho a par-

tir das categorias da experiência manifesta-se, en-

fim, nas expectativas de comunicação e de convi-vialidade nas relações de trabalho. A maioria dos

jovens não viveram as condições de constituição

de uma identidade coletiva a partir do trabalho.

Para a maior parte dos jovens, a individualização

das trajetórias profissionais e a precariedade dosdiferentes empregos ocupados fazem da experiên-

cia do trabalho uma experiência vivida indivi-

dualmente, sem referência a um coletivo (a um

“nós”).

Numerosos jovens falam assim do trabalho

manifestando um sentimento de isolamento comose fossem os únicos a conservar uma distância crí-

tica, em meio a colegas rotinizados. O mau ambien-

te e o caráter hierárquico e competitivo das relações

de trabalho são freqüentemente evocados como oprimeiro fator de desgaste e de rejeição ao traba-lho assalariado.

Bom, eu diria que entre os colegas aqui embai-

xo na agência, não há problemas, entre os quatro, não

há problemas, é principalmente no nível da hierarquia

enfim porque eles se acreditam talvez um pouco su-

periores pelo fato de serem secretárias ou contadores,

tendem a te rebaixar um pouco (Ana).

Positivamente os jovens são sensíveis à quali-dade das relações de trabalho, às quais eles tendem

a aplicar as exigências da comunicação, da auten-ticidade, da reciprocidade das relações pessoais. Es-

sa importação de categorias do afetivo pode ser am-

bígüa, a relação social empregador-empregado di-

luindo-se, por vezes, atrás da relação interpessoal

“legal”, “jóia” ou da personalidade simpática do

empregador.

Quanto às instâncias de mediação e defesa dos

interesses coletivos dos trabalhadores, elas são, comfreqüência, julgadas pouco legítimas e inoperantes

para responder às situações particulares dos jovens.

O recurso ao sindicato tende, a partir daí, a ser estri-

tamente instrumentalizado ou rejeitado em proveitode um protesto individual que se traduz mais dire-

tamente pela desimplicação e a saída expressiva do

que pela reivindicação e a negociação. “Eu rompi

com esse sistema que assegurava vantagens demais

 para o patrão”, “eu acumulo toda a minha raiva,depois me desabafo e vou-me embora...” (Ana).

O trabalho-paixão

Como antípodas do trabalho alimentar, e sem

envolvimento, um número reduzido de jovens che-

gam a conciliar, isto é, a confundir sua atividade

profissional e seu projeto de auto-realização. Tra-

ta-se, com freqüência, de jovens com grandes recur-

O trabalho, busca de sentido

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88 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

sos sociais, culturais, econômicos, cujo percurso é

caracterizado pelo controle de suas escolhas. Essemodelo do trabalho como paixão encontra-se en-

tre os jovens executivos e entre as profissões criati-

vas, que incluem um forte componente tecnológi-

co (informática) e/ou artístico (música, desenho,engenharia de som): “eu desejo que meu trabalhoseja um hobby, de fato” (Martial).

Na imagem desse jovem executivo que indica

em pós-scriptum de seu curriculum vitae: “Uma

 paixão: O trabalho é uma paixão se é envolvente”.

Os critérios de medida, de equilíbrio entre a pres-

tação e a retribuição, de estabilidade, de separaçãoentre tempo de trabalho e tempo de lazer apagam-

se aqui em proveito total de um modelo hiper-pro-

fissional, sem concessão ao diletantismo.Melhor do que outros, Sophie resume as ca-

racterísticas desse modelo. Deixemos, de início, que

ela defina suas funções numa agência de comuni-cação para cuja fundação ela contribuiu:

Eu tenho uma função de coordenação que me

permite, ao mesmo tempo, bancar a jornalista quan-

do tenho vontade, e escrever; que permite bancar a

mulher de marketing quando tenho vontade e orga-

nizar as campanhas de promoção; que me permite tero luxo universitário de pensar e elaborar projetos, mes-

mo que eles não se concretizem nunca; ter um papel

de diretor de projetos e obter subsídios junto à CEE

para um caderno complementar; que é um papel de

RP quando nos convidam nas conferências da impren-

sa, para uma viagem para jornalistas.

O critério fundamental do êxito é a satisfação

que se experimenta. É um critério que deve se apli-

car permanentemente.

Eu tenho necessidade de um trabalho no qual

possa me envolver, com o qual eu me divirta todos os

dias. Porque no dia em que levanto dizendo: ‘merda,

não tenho vontade de ir trabalhar’, então devo refle-

tir e ver como reconstruir alguma coisa.

O grau de satisfação é ele próprio ligado aofato de poder envolver-se totalmente, fazer alguma

coisa de que se gosta.

E eu me dei conta de que o que me interessava

era justamente... justamente esse aspecto total: gestão

de uma equipe e criação de um produto. E ter todos

os elementos nas mãos.

Além disso, importa ser confrontado, incessan-

temente, com novos desafios, colocar-se em ques-

tão, evoluir, fazer o tempo todo coisas excitantes e

apaixonantes escapar à rotina.

Penso que meu trabalho não evolui mais na me-

dida que sou obrigada a refazer a mesma coisa que já

foi feita... depois de dois anos, trata-se de ver outras

pessoas.

As gratificações material, de status e simbóli-

ca não são o mais importante: elas não são busca-das enquanto tais, e sim consideradas como a con-

trapartida normal do investimento.

E que para mim é importante ter o reconheci-

mento dos outros, isso é claro. Meu salário, minha

função, eu os mereço.

Assiste-se assim a um reinvestimento e a umarelegitimação, às vezes ambígua, das normas tradi-

cionais da ética do esforço, em nome de uma bus-

ca do sujeito e de uma vontade de auto-realização.A retribuição do esforço não é postergada, mas ime-

diata pela auto-realização para a qual ela contribui.

Isso não me incomoda, estar sob stress dez ho-

ras por dia, se os projetos me interessam.

A intensidade do investimento liga-se também

à vontade de vencer no jogo da competição plena-

mente assumida. O registro de Sophie é o da admi-

nistração de empresas, com termos como “investi-mento”, “competição”, “performance”, “ser hiper-

rentável”, ela “recruta” seus “colaboradores”em

função do seu “potencial”, de sua propensão a in-

tegrar-se numa equipe”e como há um turn-over im-

portante (o tempo de se fazer um nome no mundoda publicidade), é preciso que sejam “pessoas que

aprendam rápido”. “Todo mundo na casa sabe que

está permanentemente sobre um assento ejetável”,

inclusive ela mesma. Sophie integra totalmente a lei

Guy Bajoit, Abraham Franssen

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Revista Brasileira de Educação 89

da empresa, da concorrência, da performance. A

norma é “estar sob stress dez horas por dia” e aquelesque não sabem acompanhar não há lugar para eles.

Não se cria uma estrutura para agradar às pes-

soas com quem se trabalha. Sobretudo, quando se

está em condições econômicas tão difíceis, só sepaga pessoas que sejam hiper-rentáveis:

Chega um momento em que se tem que tomar

a devida atitude com uma série de colegas e isso é re-

almente duro. É... a grande limpeza. Da equipe do

início, sobram apenas três. Todos os outros cairam,

cairam antes. A partir do momento em que viram que

não tinham a responsabilidade que deles se esperava,

procuraram outro rumo (...) E... desapareceram. E é

verdade que eu estou consciente de que estou senta-da em um assento ejetável.

Uma segunda figura do modelo de trabalho-

paixão encontra-se nas conversas dos jovens artis-tas. Para Bill, o desenhista, para Pascal, o fotógra-

fo, ou para Yves, o engenheiro de som, o trabalho

é, antes de tudo, apreendido como lugar de reali-

zação e de expressão de uma essência pessoal —

“qualquer coisa que está neles”, “em sua natureza”.

Isso é uma vocação: eles não são chamados de fora,

mas de dentro. Não é mais um papel socialmentereconhecido como útil: eles não pretendem seguir

caminhos batidos e balizados por outros. Mesmo

quando eles vinculam seu projeto a um papel, não

é sua concretização enquanto tal o que eles buscam,mas a sua auto-realização através dele. E pretendem

também ser os únicos juízes de seu êxito ou fracas-

so. O trabalho encontra seu sentido a serviço des-

se projeto, que é vivido como singular, único, pes-

soal. E eles consagram todo o seu tempo a ele, con-fundindo trabalho e lazer e envolvendo-se muito

intensamente.

Aos 22 anos, ao terminar seus estudos de en-

genheiro de som no IAD, Yves já tinha muitas rea-

lizações profissionais a seu favor: jingles para a te-

levisão, músicas de filmes publicitários, arranjos emestúdios... É preciso dizer que desde a idade de 15

anos, encorajado por um ambiente familiar em que

“todo mundo se interessava pela música” foi “ten-

tado a inserir-se nesse meio, trabalhando muito, não

se incomodando de se deixar explorar um pouqui-nho desde que isso lhe permitisse encontrar pessoas

interessantes.” Sua família teria preferido que fizesse

estudos mais clássicos, como engenheiro, mas “para

terminar isso deu certo, sem problema”. Encontra-se aqui uma forte vontade estratégica em proveitode um projeto-paixão clara e precocemente defini-

do: “era realmente aquilo que me interessava, eu

 gostaria de ir fundo”, “me comprometi bem antes

de largar os estudos”, “eu tinha começado bem afia-

do o trabalho lá dentro”.

Para os jovens que rejeitam resolutamente aperspectiva de um trabalho alimentar, há a combi-

nação, em proporções variáveis, de um projeto de

auto-realização e de um modelo competitivo. A so-ciedade é apreendida como um mercado que ofe-

rece recursos a serem mobilizados e que impõe obs-táculos a serem ultrapassados. Esta atitude estraté-

gica a serviço de um projeto de auto-realização su-

põe uma forte confiança em si mesmo, apoiando-

se sobre uma facilidade natural de classe ou sobre

a convicção de um “fogo sagrado” interior.

Os jovens independentes

Esta figura do “trabalho-paixão” deve distin-

guir-se das orientações para o trabalho dos jovens

independentes. Se esses não cedem nada aos primei-

ros quanto à intensidade e ao volume horário de seu

investimento pessoal, a finalidade visada e a signifi-cação atribuída ao trabalho são outras. Assim, Eric,

que ao fim de uma aprendizagem em marcenaria de

luxo lançou-se na restauração de móveis antigos, ou

Stéphanie, que acabou de abrir um snack, estão

mais próximos da ética protestante de trabalho doque de um projeto “pour le fun”.

O êxito de sua empresa confunde-se com o seu

êxito pessoal do qual eles são a encarnação e a ex-

pressão. A importância do envolvimento é vivida

como forma de sacrifício, mais do que como for-

ma de prazer ou de alegria.

Digo que é preciso um mínimo de sacrifícios du-

rante alguns anos e depois... No momento, é impos-

O trabalho, busca de sentido

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90 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

sível economizar porque o que se pega é realmente o

que sobra no fim do mês. Isto é realmente o mínimo

para viver. Apesar de tudo é preciso não ceder, ser

forte, poderoso... e não se desesperar (Eric).

Nesse sentido, trata-se mesmo de um prazerpostergado: “temos a riqueza de nossas obrigações”

Vence-se graças ao trabalho, partindo do nada (“eu

tinha 600 francos na minha conta”), com a força

de vontade, superando todas as limitações, sendo

feliz com o que se realiza.

O desemprego

As representações e as vivências do desempre-

go são o oposto do trabalho. A insatisfação expressacom relação ao emprego e ao trabalho não implica

de modo algum uma valorização positiva da situa-

ção de desemprego. Longe disso, impressiona ao

contrário, a intensidade negativa da experiência dedesemprego entre os jovens. Na melhor das hipó-

teses, ele é considerado como um período de mo-

ratória, que permite tomar fôlego ou autoriza uma

redefinição de projetos. Se as expectativas e as as-

pirações com relação ao trabalho são, com freqüên-

cia, frustradas, o desemprego é quase sempre vivi-do negativamente e isso, inclusive para os jovens que

se definem mais diretamente por um projeto de au-

to-realização.

Num artigo, já antigo, sobre a vivência do de-

semprego, Dominique Schnapper5 distingue trêstipos de experiências de desemprego. O desempre-

 go total  caracterizado pela humilhação, o tédio e

a dessocialização, designa a experiência do desem-

prego vivida como um tempo vazio, desfeito, sem

atividade de substituição e com o sentimento desua própria inutilidade. O desemprego invertido

indica uma vivência do desemprego totalmente

desdramatizada, isto é, valorizada pelo tempo libe-

rado para atividades pessoais que desemprego per-

mite. O período do desemprego é consideradocomo transitório e apreendido sob o ângulo dos

recursos (tempo-dinheiro) assim colocados à dis-

posição pela busca de um projeto pessoal. O de-

semprego postergado é o desemprego vivido naforma de “como se”. A situação de desempregonão é verdadeiramente apreendida como tal, po-

rém mais como um período ativo de busca de em-

prego e de formação profissional.

As diferentes lógicas assim distinguidas podem

nos ajudar a dar conta das experiências vividas pelos

jovens de nossa amostra desde que sejam entendi-das como simultâneas.

O desemprego: o tédio e a desvalorização

Apesar da banalização objetiva do fato — mais

de 25% dos menores de vinte e cinco anos estão

desempregados: e se levarmos em conta o fluxo con-

tínuo dos que entram e dos que saem, isso faz do

desemprego uma experiência comum — a situaçãode desemprego, quando se prolonga, além de alguns

meses, é certamente uma experiência muito nega-

tiva, isto é, traumatizante para a maior parte dos

jovens que encontramos. Para eles, o emprego con-tinua sendo o lugar privilegiado da participaçãosocial, e um elemento essencial de sua identidade.

Não ter emprego é ser excluído. A preocupação fi-

nanceira, que não é geralmente citada nas motiva-

ções principais do emprego, torna-se aqui a primei-

ra. Um emprego satisfatório, que assegure um gan-ho e se possível que permita “fazer um trabalho que

se gosta”, num bom ambiente é sentido pela maior

parte dos jovens desempregados como a condição

necessária da participação social.

A maioria vive o desemprego sob a forma de

culpabilidade ou da vergonha: “é duro com relaçãoaos outros da família que trabalham, e eu estou

desempregado e não faço nada dos meus dias”. (Do-

minique). Difícil nessa situação é, principalmente o

sentimento de desvalorização social que daí provém.

Os jovens desempregados não se reconhecem naimagem que a sociedade cria deles. O status do de-

5 Schnapper, D. “Crise Economique, chômage, ano-

mie” in La crise dans touts ses états: ouvrage collectif,CIACO, Louvain-La-Neuve, 1984.

Guy Bajoit, Abraham Franssen

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Revista Brasileira de Educação 91

sempregado está, freqüentemente, “engasgado”, afe-

tando sempre a identidade social e às vezes a iden-tidade pessoal. É o caso de Dominique:

O desemprego, foi um horror, o inferno da mi-

nha vida, eu penso (risos). Psicologicamente, para mim,

foi muito difícil aceitar estar desempregado, aceitar

esse status, foi terrível. Não era nada do que eu tinha

vontade de fazer, eu nem sonhava com uma coisa se-

melhante. Para me colocar, foram precisos meses e

meses e somente agora começo a...

Acho que eu valho mais que isso, tenho realmen-

te uma imagem negativa do desemprego e acho que

isso não vai comigo mesmo.

Para mim, uma pessoa que ganha 50.000 fran-

cos vale 50.000 francos e uma pessoa que ganha

10.000 francos vale 10.000... Meu problema é que me

sinto diminuído.

Dizem que os desempregados não servem para

nada, mas são pessoas como as outras.

Ter o rótulo de desempregada, de mulher que

não faz nada, que não tem vontade de fazer, que não

sabe fazer mais nada, isso me deixa doente.

Outras características do desemprego total es-

tão presentes nas conversas dos jovens desemprega-

dos. Passado o primeiro mês, o tédio e o sentimentode desestruturação do tempo são freqüentemente evo-

cados para caracterizar a experiência do desemprego.

Quando estou sem trabalho, a tendência é me

deprimir. Fico com raiva, vou perturbar minha mãe e

meu pai... vou estar atrapalhando alguém. Ou então

destruo minha saúde. E é o caso, no momento. Depois

de um tempinho, minha saúde não vai tão bem (Luc).

O tempo me parece longo, os dias não passam,

o tédio ocupa a maior parte dos dias. Não chego a me

interessar pelo que quer que seja, tanto a leitura quan-

to a limpeza da casa. Não tenho mais conversa com

meu pessoal que já está restrito. Às vezes tenho a im-

pressão de não ter nada para comunicar, mesmo com

meu companheiro. Eu me deixo viver sem reagir, de

verdade, às vezes eu me repreendo, me esforço para

não me afundar e depois é o tédio de novo. Meus des-

locamentos diários se limitam ao ofício do desempre-

go. Às vezes tenho a impressão de que todas as pes-

soas que encontro sabem que estou nesse lugar horrí-

vel. Tenho um pouco de vergonha” (Solange).

Também me refugio no sono, quanto mais eu

durmo, menos eu penso. Entretanto sei que é covar-

dia, o aborrecimento vem, com freqüência, me visitare tenho dificuldade em vencê-lo (Texto de Florence,

22 anos, esteticista).

Inclusive para os jovens que escolheram volun-

tariamente a situação de desemprego ou que o apro-veitam para realizar um projeto pessoal, o tempo

no desemprego é uma variável fugaz cujo controle

requer uma auto-disciplina forte:

“É por isso, eu tenho um pouco de medo de

ficar desempregado, porque não sei se teria a dis-ciplina para fazer tudo que tenho vontade”. O de-semprego é sempre visto como uma armadilha, com

o risco para a pessoa de se instalar aí confortavel-

mente e o próprio Bill, que está tenso com relação

ao seu futuro profissional fica apreensivo com o

prolongamento de sua situação.

O desemprego também é horrível porque a gente

se sente muito isolado. Mas também isso tranqüiliza,

porque a gente tem alguma coisa no fim do mês. Mevejo acabar mal, desempregado: de qualquer forma

isso acaba sendo insuportável. E de toda forma não

há... nada de interessante nisso (Bill).

O sentimento de desvalorização social, a vivên-

cia de desestruturação do tempo, o mal estar liga-

do ao caráter provisório da situação são, além da

diversidade de situações, os traços comuns e gene-

ralizados da experiência do desemprego.

O desemprego moratório eo projeto de auto-realização6

Ao lado dos jovens que vivem o desempregocomo uma verdadeira doença, um certo número den-

tre eles vão manifestar com relação a ele um ponto

5 Le Movel, Jacques. Le chômage des jeunes: des vécustrès differents.

O trabalho, busca de sentido

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92 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

de vista mais desenvolto e banalizado em relação a

ele (sem, no entanto, transformá-lo numa experiênciapositiva). Trata-se geralmente de jovens com maio-

res recursos escolares e culturais, isto é, que se be-

neficiam de ajuda econômica familiar, para quem o

desemprego é, antes de tudo, compreendido comoforma de redefinição de projetos pessoais. Os auxí-lios de desemprego permitem destinar um momen-

to para tomar fôlego ou para buscar uma atividade

considerada como um verdadeiro trabalho, isto é,

como uma vocação pessoal (escrever, fazer fotogra-

fia...), não reconhecida pela sociedade mercantil...

Agora eu me dou uma chance no desemprego

(Bill).

O desemprego vai bem alguns meses, quando

você tem necessidade de se situar, de fazer outra coi-

sa que não trabalhar. Há momentos em que a gente

tem necessidade de uma vida mais calma para se en-

contrar um pouco (Isabelle).

Como os jovens que vivem um desemprego-

doença, esses jovens que se definem freqüentemente

a partir de uma sensibilidade artística, exprimemum ideal profissional que assegura tal projeto de

auto-realização, mas diferentemente dos primeiros,

manifestam geralmente uma capacidade de concre-tizar seu projeto, instrumentalizando suas relações

com diversas instituições sociais (ONEM, sindica-to, academia...) e ao preço de uma auto-disciplina

incessantemente ameaçada de relaxamento.

Entre a vivência do desemprego-doença e aque-

la do desemprego-projeto pessoal, alguns jovens

querem essencialmente experimentar o desempre-

go como um período de expectativa, um prolonga-mento da moratória da adolescência, com saída in-

determinada (“a gente vê”), cuja duração está ligada

à coerção financeira.

Vou me dar um ano tranqüilo no desemprego

(Antoine).

Tanto melhor, aquele que não tem vontade de

trabalhar, que pode ter dinheiro assim, apesar de tudo.

Se o sistema é feito assim, tanto melhor (Julie).

Não é uma situação sustentável a longo prazo,

nem do ponto de vista financeiro, na medida em que

a situação é um pouco delicada... eu levo uma vida da

qual aproveito cada instante... estou meio na expec-

tativa de uma boa idéia (Joy).

O desemprego postergado

O “desemprego postergado” é aquele que en-

contramos principalmente entre os jovens executivos

de nossa amostra, de modo geral aqueles que dispõe

de diploma negociável no mercado de trabalho.

 Jacques, 23 anos, casado há cinco meses, ter-minou uma graduação em informática como ana-

lista programador. Perseguindo um objetivo de es-

tabilidade, no respeito às normas tradicionais, ele

considera o trabalho como um elemento estruturan-te de sua existência: “um lugar que seja estável e queme traga ao menos alguma coisa”; “a informática

é apesar de tudo, uma paixão.

Desempregado há seis meses, ele tende a viver

esta experiência sob a forma da negação. Trata de

fazer como se não houvesse nada, fazendo do tem-

po do desemprego um tempo ativo. (“não incomo-dar em casa”, “ocupar ativamente seus dias”, “man-

ter-se construtivo”: buscar emprego sistematica-

mente, fazer cursos complementares, consertar coi-sas em casa). O tempo de desemprego é vivido como

o do exercício de um ofício em tempo integral, odaquele que procura. Essa atividade torna-se obje-

to de uma verdadeira cultura profissional, necessi-

tando da aquisição de competências ad-hoc.

Dizem que eu deveria aprender por mim mes-

mo a ver as cartas que dão resultado e as cartas de

candidatura que não dão resultado (...) Observei que

alguns empregadores respondiam, outros não respon-diam nunca; então passei a ficar atento aos termos da

minha carta, a fim de redigi-la com a clareza em rela-

ção aos problemas que ela poderia ter.

O critério de validade da atitude é aqui a ade-

quação à forma esperada pelos empregadores, à

qual é preciso conformar-se: escrever um bom curri-

culum, apresentar-se bem, dar boas respostas na

entrevista.

Guy Bajoit, Abraham Franssen

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Revista Brasileira de Educação 93

Agora, encontrei um livrinho que se chama: co-

mo achar um emprego e ser contratado?O subtítulo

é: você sabe se vender? Explicam como se apresentar

bem e propõe respostas para questões que funcionam

como armadilhas.

 Jacques dirigiu-se igualmente ao CRAE - Clu-

be de Busca Ativa de Emprego, uma divisão do Fó-

rum de Arlon — que organiza sessões intensivas de

busca de emprego, via um “método ativo, eficaz e

dinâmico, oito horas por dia durante três semanas”.O CRAE já fez muito sucesso na França e em ou-

tros lugares: Canadá, Suécia, Áustria. Essa organi-

zação reivindica 80% de colocações bem sucedidas,

ao preço, é verdade, de uma seleção prévia de can-

didatos... e com grande pesar para Jacques que nãofoi selecionado!

É curioso esse fetichismo do curriculum ou da

entrevista para contratação, tanto para Jacques,

quanto para outros executivos desempregados que

nós encontramos. O essencial é negar ao máximo

a situação de desemprego na ótica do “como se” e

desenvolver uma atitude positiva e internalizante,que lhe permite viver como ator o seu próprio de-

semprego. Esse modo de gestão da situação de de-

semprego só é sustentável a médio prazo. Com oprolongamento da situação, esse sistema de defesa

progressivamente, se esboroa.

Digamos que eu me fixe como objetivo que es-

pero trabalhar daqui... digamos, o mais cedo possível...

No entanto, no fim não trabalhar torna a gente em-

brutecido. Se eu tiver que continuar... a não fazer nada,

ainda durante um ano ou dois, acho que vou ficar co-

mo um verdadeiro leão na jaula (Jacques).

Sobre a mesa de carvalho do apartamento, aca-

ba de ser instalado um computador e os arquivos:

cartas expedidas, respostas...

Uma experiência multidimensional

É preciso insistir na simultaneidade das dife-

rentes lógicas presentes na experiência concreta dodesemprego. Não há de um lado, desempregados

felizes que resplandecem e de outro, desemprega-

dos doentes que se deprimem. Trata-se de uma ex-periência multidimensional e que evolui ao longo

do tempo.

Cecília é “um pouco à parte”. Ao cursar a uni-

versidade conforme as expectativas da sua mãe, elacumpriu seu contrato até o fim. Optou por estudar

filosofia (“a rever, eu deveria estudado marketing”)ela está frustrada de não rentabilizar o diploma e

queria trabalhar. Mas, por outro lado, constata que

a agrada estar desempregada, ela se realiza: ela pró-

pria faz o pão, retomou o curso de guitarra que

havia abandonado por causa dos estudos, (“umabobagem”), restaura móveis velhos e ocupa-se de

seu companheiro que lhe diz que ela deve aprovei-

tar enquanto pode e que a situação financeira de-les não é crítica.

Na prática, se você olhar bem, sou um pouco

diferente. De um lado, é verdade que faço uma por-

ção de coisas, aprendo muitas coisas que me agradam.

Aprendo a bordar, faço montanhas de coisas. Queria

aprender a fazer pão. Mas por outro lado, estou an-

gustiada e descontente com os empregadores que nem

sempre são muito honestos e o mercado de trabalho

que é uma verdadeira porcaria.Bom, depois... não sei... quando tiver que fazer

minhas oito horas de trabalho, se ainda vou me diver-

tir amassando o pão.

O que concluir? A diversidade das experiên-

cias dos jovens no trabalho e no desemprego reve-

lam a fragmentação das diferentes dimensões do

modelo tradicional do trabalho. Enquanto no pas-

sado articulavam-se trabalho e emprego, participa-ção social e realização pessoal, dimensão instrumen-

tal e dimensão expressiva, as entrevistas dos jovens

ilustram a dissociação dessas diferentes dimensões.

O trabalho não corresponde mais necessariamente

ao emprego: para um certo número de jovens, otrabalho é sentido como um obstáculo à realização

pessoal, quando antes constituía a condição; o su-

perinvestimento de alguns no trabalho coincide com

a desimplicação de outros, o elo entre a contribui-

ção e a retribuição se atenua numa atitude garan-

O trabalho, busca de sentido

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94 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

7 Gorz, André Métamorphoses du Travail: quête du

sens, Ed. Galilée, Paris, 1988.

tista, quer dizer se investe em nome da auto-reali-

zação pessoal.

Esta modificação de orientações com relaçãoao trabalho pode estar ligada à experiência da ins-

tabilidade. Para os jovens de meio popular, o mun-

do do trabalho organizado a partir do processo deprodução cede lugar a múltiplos serviços, empregos

cujos próprios titulares não sabem se devem quali-ficar de “trabalho” ou designá-los em termos ad-

ministrativos: TCT, estágio, substituição...

Esta ruptura da normalidade esperada das tra-

jetórias profissionais é vivida sob a forma de crise

por um certo número de jovens. As preocupações

com o emprego, a sobrevivência econômica, o aces-so a um salário, trazem sobretudo outra conside-

ração, particularmente, no que se refere a afirma-ção de uma cultura do trabalho e do ofício que se

tornaram bastante inviáveis.

Através das formas degradadas do antigo mo-

delo e as atitudes de distanciamento com relação aosconteúdos e ao ambiente tradicional do trabalho

assalariado manifestam-se, também ora sob a for-

ma de recusa (“eu não voltarei jamais à fábrica”)

ora sob a da alternativa, uma série de atitudes no-

vas com relação ao trabalho.

Pode-se resumi-las, falando de uma orientaçãode fundo com relação ao trabalho que tende a serapreendido a partir das exigências de auto-realiza-

ção. Estas já não se definem pelo fato do indivíduo

conformar-se às exigências de um trabalho até dele

adquirir ethos e a cultura, e sim está no trabalho de

levar em conta as aspirações individuais. É, especi-almente, através de uma modificação da relação

com o tempo e com o ambiente de trabalho que se

pode apreender essa exigência. O tempo de traba-

lho, quando não se está envolvido, tende a ser opos-

to e subordinado ao tempo de vida “para si”. Asidentidades coletivas e a cultura do ofício dão lu-

gar a uma sensibilidade à comunicação e ao cará-

ter convivial, isto é, interpessoal das relações de

trabalho.

Com respeito a essas diferentes dimensões, o

mercado de trabalho é freqüentemente o lugar dadecepção e do desencantamento, após o espaço pro-

tegido da escolaridade. A maior parte dos jovens

experimentam um fosso entre suas aspirações e arealidade concreta do mercado de trabalho. A ges-

tão dessa defasagem dá lugar a diversas estratégias

de minimização do envolvimento no trabalho e de

reinvestimento na esfera privada, em proveito dotrabalho “autônomo”. À exceção dos jovens quedispõem de meios para concretizar um projeto de

auto-realização no campo profissional, a maioria

não encontra mais num emprego assalariado um

modo satisfatório de auto-realização.

Se o emprego continua sendo uma dimensão

central da identidade e a base da normalidade so-cial, o trabalho não é mais considerado como o úni-

co modo de auto-realização de si, ele tende a entrar

em concorrência com outras experiências que lheimpõem seus próprios critérios.

Quanto à experiência do desemprego, apesar

de sua banalização objetiva, ela continua muito pro-blemática e negativa a médio prazo. Se se pode opor

duas maneiras distintas de viver e de se represen-

tar o desemprego, distinguindo o desemprego vivi-

do sob a forma do tédio e da desestruturação de

alguns, e o desemprego-moratória ou projeto pes-

soal de outros, é preciso entretanto sublinhar a si-

multaneidade dessas lógicas e a permanência dosentimento de desvalorização social que acompanha

sempre o “rótulo de desempregado”.

Em suma, a diversidade e a fragmentação das

experiências de trabalho e de desemprego dos jo-

vens ocupam os cenários desenvolvidos por AndréGorz7 quando se inquieta com a cisão crescente en-

tre uma minoria fortemente qualificada, que dispõe

de empregos com altos ganhos e nos quais se realiza

e uma maioria confinada a tarefas subalternas. O

uso do tempo é um bom indicador dessa distância.Entre Robert que afirma que seu tempo é precioso,

e que permanece preso ao trabalho até nos engarra-

famentos, e Enzo para quem os dias decorrem, longos

Guy Bajoit, Abraham Franssen

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Revista Brasileira de Educação 95

como uma jornada sem trabalho, há a distância que

separa aqueles que têm recursos para participar dojogo da competição e aqueles que são obrigados a

suportar a mutação do mercado de trabalho.

Enfim, é preciso considerar que as diferentes

experiências e representações do trabalho e do de-semprego aparecem como socialmente diferencia-

das. Globalmente os jovens do meio popular con-tinuam mais ligados às normas tradicionais do tra-

balho e sua vivência do desemprego se aproxima da

figura do desemprego total. Os jovens das classes

médias tem, com freqüência, mais recursos para

redefinir seu projeto existencial e marginalizam olugar do trabalho assalariado em proveito de um

projeto de auto-realização.

O trabalho, busca de sentido

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96 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

As discussões a respeito do destino do traba-

lho no limiar do século 21 têm favorecido a elabo-

ração da imagem de uma sociedade onde o traba-

lho não teria mais lugar, ou não se constituísse mais

como a referência a partir da qual homens e mu-lheres pudessem construir a sua identidade. O queparece se colocar hoje como questão central é a abo-

lição do trabalho (Gorz, 1982), pois as pessoas es-

tão encontrando cada vez menos empregos perma-

nentes, estão trabalhando menos horas. Diante da

diminuição do tempo de trabalho disponível e docomprometimento das concepções éticas do traba-

lho (Offe, 1989), tem sentido falar em sociedade do

trabalho? Pode-se pensar ainda na existência do

proletariado ou de uma classe trabalhadora?Tomando em consideração a observação de

Offe, a respeito das temáticas de pesquisa, das te-ses, as conferências e as publicações atuais nas ciên-

cias sociais, vemos o surgimento do que ele chama

de “novo subjetivismo sociológico” na análise da

sociedade e do espaço vital, que rompe com a pri-

mazia da categoria trabalho na “determinação daconsciência e da ações sociais” (1989, 17). Ou seja,

O jovem no mercado de trabalho

Heloísa Helena Teixeira de Souza Martins 

Departamento de Sociologia, Universidade de São Paulo

hoje, no interior das ciências sociais, aponta-se a

limitação dos modelos de sociedade “centradas no

trabalho”, de tal forma que até mesmo as experiên-

cias feitas no trabalho e o potencial de conflitos daí

resultantes receberiam interpretações elaboradasfora do ambiente do trabalho. Outras variáveis sãoapontadas como mais significativas do que aquelas

relacionadas com o trabalho, como por exemplo,

a religião. Mesmo na pesquisa social aplicada, os

temas são buscados em áreas à margem da esfera

do trabalho, tais como a família, os papéis do sexo,a saúde, o comportamento divergente, etc. Isto tudo

leva Offe a concluir pela “implosão da categoria

trabalho”(p. 19) e que a sustentação de “modelos

de sociedade e critérios de racionalidade centradosno trabalho ‘assalariado’, representa, hoje, uma po-sição conservadora”(p. 18).

Creio que aqui está o ponto central da crise

que permeia o pensamento sociológico em nossa

época. Privadas da utopia que inspirou trabalhado-

res, sindicatos, partidos e intelectuais, todas essas

análises, impregnadas de pessimismo e negativida-de, acentuam a falta de perspectivas e possibilida-

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Revista Brasileira de Educação 97

des de pensar a construção do futuro. De fato, que

projetos podem ser elaborados diante das transfor-mações que ocorrem no mundo do trabalho, com

os novos processos e organização do trabalho, com

a introdução de novas tecnologias, que alteraram

não só o modo de trabalhar, mas provocaram mu-danças nas qualificações dos trabalhadores, nas con-dições de trabalho, nas relações existentes no local

de trabalho?

Uma das principais consequências do chama-

do regime da acumulação flexível (Harvey, 1992)

diz respeito ao mercado de trabalho, com a pre-

valência de formas precárias de trabalho — carac-terizadas por redução de salários, ausência de ga-

rantias ou benefícios sociais e por condições infe-

riores quanto à segurança e instalações — e o au-mento das taxas de desemprego. Nestes tempos de

economia globalizada, o que se tem observado é aconstituição de um padrão segmentado do merca-

do de trabalho, com um núcleo cada vez mais re-

duzido de trabalhadores qualificados, com empre-

go permanente, em tempo integral. A nova realidade

imposta pela reestruturação produtiva é marcada

pela introdução de novos termos, que são usadospara explicar o que está acontecendo. Fala-se hoje

em um processo de produção enxuto, onde os des-perdícios de material e mão-de-obra, irracionali-

dades e grandes estoques devem ser evitados; o tra-

balhador agora não é mais especializado, é poliva-lente, ou seja, realiza mais de uma tarefa, operan-

do mais de uma máquina; o trabalhador não fica

mais fixo a um posto de trabalho na linha de pro-

dução, mas trabalha em grupos ou equipes, sejam

os chamados semi-autônomos (quase inexistentesno Brasil), sejam as ilhas ou células de fabricação;

o trabalhador não é mais visto como mero executor

das determinações vindas da gerência, mas espera-

se que ele participe das decisões, fornecendo idéias

para melhorar a produção. Diminue-se, assim, adistância entre os gerentes e os trabalhadores, re-

feridos como parceiros envolvidos nos interesses

comuns de aumento de produtividade e da quali-

dade do produto; diante de todas essas mudanças,

o trabalhador tem, de um lado, destruídas as suas

antigas habilidades, mas, de outro, enfrenta a ne-

cessidade de reconstruir habilidades e se requalificarpara o trabalho nessas novas condições (Abramo,

1988).

Informações referentes às montadoras de car-

ros no Brasil revelam que no período de 1991 a1995 houve um crescimento da produção de 70%

e de 78% na produtividade, enquanto verificou-seuma redução no emprego de 5%. No setor de auto-

peças, no mesmo período, houve um aumento no

faturamento de 74%, de 97% na produtividade, e

uma diminuição de 12% no emprego (DIEESE,

1996a). O que esses dados demonstram é o cresci-mento econômico acompanhado pela redução dos

postos de trabalho e que, apesar da exigência cada

vez menor de mão-de-obra, obtem-se cada vez maisbens e serviços.

O setor da economia que tem sido mais atin-

gido é o industrial, com acentuada redução nocontingente de trabalhadores. Tomando em consi-

deração o relatório elaborado pela subseção do

DIEESE em Osasco, vemos que só nos treze muni-

cípios abrangidos pela base territorial do Sindica-

to dos Metalúrgicos, a distribuição dos ocupadosno setor industrial, que era de 32,4% em 1989, cai

para 24,5% em 1995. Em contrapartida, observa-se um crescimento significativo nos setores do Co-

mércio e de Serviços: no primeiro, a distribuição de

ocupados era de 15,3% em 1989, aumentandopara 17,4% em 1995; em Serviços, a ocupação

passou de 37,4% em 1989 para 43,6% em 1995

(DIEESE, 1997). O que se tem argumentado é que

a abertura de emprego no setor terciário da econo-

mia, entretanto, não consegue absorver o númerode desempregados. Dados referentes ao desempre-

go em 1995, em algumas regiões metropolitanas,

mostram que a taxa de desemprego foi, em média,

de 12,9%, sendo que as maiores se verificaram nas

regiões metropolitanas do Distrito Federal, com15,7% e de São Paulo, com 13,2% (DIEESE,

1996). Considerando somente esta última região,

vemos que a procura de trabalho, segundo os di-

ferentes tipos de desemprego, levava, em 1995,

cerca de quatro meses no caso do desemprego

O jovem no mercado de trabalho

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98 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

aberto, cinco meses no desemprego total e de seis

a sete meses no desemprego oculto (DIEESE,1996).

Na discussão do emprego/desemprego quero,

ainda que rapidamente, destacar alguns aspectos

que considero importantes para o objetivo destetexto. Dados da Pesquisa de Emprego e Desempre-go, realizada mensalmente pelo Dieese/Seade, para

o período de março de 1986 a março de 1995, evi-

denciam como o trabalho assalariado foi desvalo-

rizado. As informações referem-se à População

Economicamente Ativa (PEA), ou seja, a parcelada população com 10 anos e mais de idade que

está ocupada ou desempregada na região da Gran-

de São Paulo. Assim, para aquele período, enquan-

to a PEA cresceu 24,5% (2,5% em média, ao ano),a ocupação aumentou 22,1% (2,2% ao ano). Maso crescimento do desemprego foi maior: 42,0%

(4,1% ao ano), praticamente o dobro do número

de empregos. Entretanto, o dado mais significati-

vo diz respeito à composição da ocupação: enquan-

to o emprego assalariado cresceu 11,3% (1,2%, em

média, ao ano), o trabalho autônomo aumentou57,1%. Em grande parte, o trabalho autônomo,

ou por conta própria, se caracteriza pela precarie-

dade, pela ausência de vínculos empregatícios epela insegurança.

Para completar esse quadro da perda de qua-lidade do emprego, cito os dados referentes ao re-

gistro em carteira: no mesmo período, o emprego

de trabalhadores assalariados com carteira de tra-

balho aumentou 3,5% (0,4%, em média, ao ano),

enquanto o dos assalariados sem carteira de traba-lho assinada cresceu 72,7% (6,3% ao ano), o que

salienta ainda mais o quadro de insegurança exis-

tente. Se considerarmos apenas o período que vai

de março de 1990 a março de 1995, caracterizado

pela recessão que se estendeu até 1993 e pela aber-tura da economia brasileira, vemos que é nele que

ocorrem as principais alterações: neste curto perí-

odo de cinco anos, o emprego assalariado com car-

teira assinada diminuiu em 8,2%, o relativo ao sem

carteira assinada aumentou 54,3%, e o empregoautônomo cresceu 40,5% (DIEESE, 1995).

Assim, mesmo os trabalhadores que, aparen-

temente, estariam protegidos pelo contrato de tra-balho, são atingidos pela “insegurança do traba-

lho”(Mattoso, 1994), a precariedade das formas de

trabalho, pelo temor de desemprego, pela superex-

ploração do trabalho, pela acentuação das desigual-dades. O depoimento de um metalúrgico trabalhan-do em uma montadora da região do ABC revela a

pressão a que estão submetidos:

Hoje os trabalhadores se matam de trabalhar,

tão implantando um tal de Q1, PMC quadrado. Aon-

de você vai, você vê quadro da empresa com palavras

jogando a responsabilidade para o trabalhador, dizen-

do que se nós não vendermos aqui, a Fiat ganha no

mercado, se não vender aqui, vai dá desemprego (...)tem companheiros que vão no domingo lá, além de

trabalhar no sábado, na hora extra, é chamado para

ir no domingo, para aprender o que é o Q1 (...) a em-

presa joga tudo na cabeça do companheiro: ‘tem que

dar qualidade, tem que produzir com eficiência’, faz

com que o cara se bitole. Quando eu estava na A1 até

86, eles tinham mais companheirismo, eles conversa-

vam com o outro na fábrica. Hoje, o que eu sinto é

que o companheiro não conversa com o outro, só pen-

sa realmente na produção. Ela (empresa) conseguiupôr na cabeça da peãozada que ‘olha você só tem que

produzir’, tá uma coisa assim que não tem aquela coisa

que tinha antes de companheirismo, um conversava

com o outro, trocar idéias, fazer com que eu pensas-

se não só na produção, pensasse no salário, pensasse

em organizar, pensasse em lutar por quarenta horas,

e hoje, não, hoje a empresa tá tão avançada que ela

nem obriga, o peão chega a pedir. Nós temos compa-

nheiro lá, por exemplo, que trabalha das sete (da ma-

nhã) às dez da noite, nessa situação.

O que esse e outros depoimentos revelam é que

mesmo o trabalhador que está empregado é indu-

zido à demissão “voluntária”, enfrenta o medo do“facão”, a ameaça da perda do emprego. Isso o faz

aceitar o salário e as condições de trabalho que lhe

são oferecidos, submete-se à pressão pela realiza-

ção de horas-extras, desgasta-se no esforço de “ves-

tir a camisa”da empresa e de “mostrar serviço”.

Heloísa Helena Teixeira de Souza Martins

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Revista Brasileira de Educação 99

Reaparecem, portanto, sob novas formas, as velhas

armas para restabelecer a obediência e a disciplinana empresa (Gorz, 1982).

Defrontamo-nos, portanto, com um movi-

mento contraditório que nos mostra, de um lado,

a redução dos postos de trabalho com um aumen-to significativo da produtividade e do faturamento

das empresas, e, de outro, o aumento do númerode horas trabalhadas, tanto para obter rendimen-

tos maiores, quanto para atender às exigências da

empresa. Desde meados da década de 80, uma das

reivindicações mais constantes do movimento sin-

dical foi a da redução da jornada de trabalho. Efe-tivamente, dados referentes à região metropolita-

na de São Paulo, indicam que, a partir de 1985, a

jornada legal começa a ser reduzida, sendo que nosetor industrial ela passa de uma jornada média

semanal de 46 horas em 1985, para 43 horas em1995; no setor do comércio passa de uma jornada

média semanal de 50 horas em 1985, para 46 ho-

ras em 1995; em serviços, a jornada média sema-

nal é reduzida de 43 horas em 1985, para 41 ho-

ras em 1995. Entretanto, para os três setores ob-serva-se a mesma tendência: a redução da jornada

legal de trabalho é acompanhada pelo aumento do

trabalho, expresso em horas extras. Assim, na in-dústria, enquanto 22,4% trabalharam mais do que

a jornada legal em 1985, uma década depois,42,5% dos trabalhadores fizeram horas extras. No

comércio, verifica-se, também, que em 1985,

41,8% trabalharam além da jornada legal, e em

1995, 55,1% dos empregados fizeram horas ex-

tras. No setor de serviços, a porcentagem dos as-salariados que trabalharam além da jornada é de

23,8% em 1985 e de 35,9% em 1995 (DIEESE,

1996b).

Todas essas informações parecem-me funda-

mentais para a reflexão que proponho neste texto

a respeito dos jovens trabalhadores. Diante das ques-tões que se colocam hoje para o mundo do traba-

lho, que acentuam as dificuldades de inserção e de

permanência no mercado de trabalho para amplas

parcelas de trabalhadores, tomarei como referência

uma parcela significativa dessa população — os jo-

vens1 —, no sentido de verificar como ela tem sido

atingida pelas transformações que ocorrem na es-trutura produtiva e que afetam o trabalho. As mu-

danças introduzidas tanto na organização do pro-

cesso de trabalho, quanto no conteúdo do trabalho,

ou seja, na natureza das atividades, nas exigênciasde qualificação ou requalificação profissional, e queparecem configurar um novo tipo de trabalho e de

trabalhador, se já provocam situações difíceis para

os trabalhadores adultos, no caso dos jovens elas

ganham certa dramaticidade.

Uma análise do perfil do desemprego em al-

guns países da Europa, em 1994, mostra que a taxade desemprego é sempre maior entre as mulheres e

os jovens. Na Espanha, enquanto a taxa de desem-

prego atingiu 23,8% para todas as pessoas, entreas mulheres ela chegou a 30,9% e entre os jovens

a 38,3%. Na França, para toda a população ativa,a taxa foi de 12,5%, atingindo, para as mulheres,

13,6% e para os jovens 23,4%. Na Itália, enquan-

to a taxa de desemprego para todas as pessoas foi

de 12,0%, entre as mulheres foi de 13,6% e entre

os jovens de 31,1%. Mesmo nos países de cultura

não-latina, como a Inglaterra e a Suécia, onde omercado de trabalho é mais favorável às mulheres,

a taxa de desemprego é maior entre os jovens. Nes-ses dois países, em 1994, com a taxa de desempre-

go para toda a população atingindo, na Inglaterra,

9,5% e 8,0% na Suécia, o desemprego entre as mu-

1 Não pretendo, nos estreitos limites deste artigo, dis-

cutir mais amplamente a noção de juventude. Remeto paradois textos que considero importantes para o balanço bibli-

ográfico a respeito do uso sociológico desse conceito: o deHelena Abramo (1994, especialmente das pp. 1-53) e o dePais (1990). Para os objetivos deste trabalho, esclareço que

entendo por jovem aqueles que estão compreendidos na fai-xa etária que se estende dos 15 aos 25 anos. O problema

maior na definição do jovem concentra-se, ao meu ver, no

limite superior da faixa. Segundo a OIT, o corte seria aos24 anos, sendo que a denominação de adolescentes abran-

geria aqueles que têm entre 15 e 19 anos e a de jovem os de20 a 24 anos (Madeira, 1996). Afinal, até onde se estende

a juventude? Quando o jovem deixa de ser jovem?

O jovem no mercado de trabalho

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100 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

lheres se situava em 7,4% e 6,7%, respectivamen-

te. Já com relação ao desemprego juvenil, a taxa foide 14,9% no primeiro país, e de 16,6%, no segun-

do (DIEESE, 1996).

No caso do Brasil a situação não é diferente.

Assim, em 1985, enquanto a taxa de desempregoentre os homens era de 10,1%, entre as mulheres

era de 15,5%. Em 1995, entre os homens era de11,8% e entre as mulheres, 15,3% (DIEESE, 1996).

Quanto aos jovens, dados da Pesquisa de Empre-

go e Desemprego do DIEESE/SEADE mostram que,

em 1985, “enquanto o nível de emprego oscilava

entre 12,2%, a taxa de desemprego entre adolescen-tes (de 15 a 19 anos) atingiu 25,5% e a de jovens

(de 20 a 24 anos) chegava a 14,1%”. Em 1995,

“enquanto o nível de desemprego total variava emtorno de 13,2%, as taxas de desemprego entre ado-

lescentes e jovens saltavam para 21,4% e 16,7%,respectivamente” (Madeira, 1996).

Vários autores tem discutido as dificuldades do

acesso dos jovens ao trabalho e ao emprego, acen-

tuando que isso parece depender das recentes mo-

dificações nas estruturas produtivas, especialmen-

te com a introdução de novas tecnologias, que afe-

tam o perfil setorial do emprego, transformam as

atividades profissionais, alteram o funcionamentodo mercado do trabalho e modificam, inclusive os

modos de vida. Pais (1991), resume essa discussão

apontando os fatores que exprimiriam essa dificul-

dade de inserção dos jovens no mercado de traba-lho e fortalecem a insatisfação, entre eles, com as

perspectivas do futuro profissional: a diminuição

das oportunidades de empregos para os jovens, prin-

cipalmente em decorrência da introdução de novas

tecnologias, com as exigências de maior qualifica-ção e experiência; a significativa mobilidade ocupa-

cional dos jovens, com a circulação por diversas

situações seja de trabalho (formação, aprendizagem,

precário, temporário, em tempo parcial, etc.), seja

de emprego (desemprego, inatividade, emprego); aprecarização do trabalho juvenil seria acompanhada

pela periferização dos jovens em torno do merca-

do de trabalho secundário, tanto em consequência

da sua fraca especialização/qualificação, que os

orientaria para o trabalho nos setores periféricos,

quanto por uma preferência pelo trabalho “inter-mitente”, antes de buscarem estabilidade e assumi-

rem maiores responsabilidades.

Essa discussão sobre a precarização do traba-

lho do jovem tem em outro autor, Y. Clot, argumen-tos que apontam, de um lado, as menores oportu-

nidades de trabalho para os jovens com pouca ounenhuma qualificação e, de outro, as condições des-

vantajosas que enfrentam quando inseridos no tra-

balho. Uma citação de Tartakowsky, feita por aque-

le autor, parece-me bastante significativa: “Pode-se

considerar que um jovem em cada dois na Françaé o que se convencionou chamar de trabalhador

precário, o que conhece uma vida marcada pelo

signo ‘menos’: ele ganha menos, ele tem menos di-reitos, não tem nenhuma garantia sobre a duração

do emprego que ocupa e sua eventual recondução”(p. 5). São essas condições de trabalho que levam

Clot a falar em “marginalização objetiva” do jo-

vem, ou seja, a um afastamento ou recusa do tra-

balho. Para ele, isso não pode ser reduzido a uma

simples mudança de “valores” na juventude, mas

sim que “a transformação de atitudes, as práticasnovas de inserção constituem muito mais respostas

a uma situação nova e não o efeito de uma alergiacultural”(p. 5).

Assim, para Clot, a experiência de trabalho e

de vida do jovem, especialmente da juventude ope-

rária, com a imagem de seus pais, de suas condiçõesinsatisfatórias de trabalho, fazem com que os jovens

elaborem negativamente a sua identidade com o

emprego e o trabalho. Dessa maneira, o trabalho

temporário ou “intermitente”, que aparece para

muitos como uma demonstração da falta de empe-nho do jovem, para Clot, poderia ser considerado

pelo jovem como “uma maneira de viver livre, se

reapropriando dos ritmos de inserção social e pro-

fissional” (p. 5/6). Deve-se, então, distinguir entre

o trabalho temporário inserido ou como parte deum “plano de carreira” e o que aparece como a

única possibilidade de sobrevivência para os jovens

menos qualificados, ou seja, para aqueles “que não

encontram aí senão um meio temporário de esca-

Heloísa Helena Teixeira de Souza Martins

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Revista Brasileira de Educação 101

par aos ritmos de uma temporalidade imposta por

um ‘destino’ de classe” (p. 6). Isto nada mais é doque uma avaliação realística de suas chances no

mercado de trabalho, constituindo o que M. Pialoux

(Clot, s/d) chama de “realismo do desespero”, que

exprime, exatamente, a especificidade da relaçãosubalterna que os jovens das classes trabalhadorasestabelecem com o mundo do trabalho.

Pais (1991), chama a atenção para o fato de

que cada vez mais amplas camadas da população

juvenil passam por um período relativamente lon-

go de indeterminação antes de ingressarem na vida

adulta ou, pelo menos, da inserção profissional. Éo que denomina de “interregno entre a escola e o

emprego” (p. 960), que significa um prolongamen-

to da juventude, seja pela ampliação do tempo naescola, seja pela permanência na casa dos pais. A

explicação desse interregno tem sido dada ou pelatese da “inadequação da escola ao mercado de tra-

balho”, ou pela da “alergia do jovem ao traba-

lho”. O autor refuta as duas, mas detenho-me, por

ora, na discussão da segunda, que também foi re-

cusada por Clot. Para Pais, a tese da alergia ao tra-balho resulta de teorias preocupadas com a análi-

se das atitudes e representações que os jovens têm

sobre o trabalho e o emprego. Assim, para essasteorias, o interregno vivido pelos jovens entre a

escola e o emprego resulta das dificuldades deadaptação ao modo de vida adulto, marcado pela

disciplina do trabalho, rigidez de horários, pela

redução do convívio com os amigos, etc. Os jovens

desenvolveriam, então, uma alergia ao trabalho,

que implica em uma desvalorização do trabalho,uma recusa da ética tradicional do trabalho. Ou

seja, os jovens não constituiriam sua identidade a

partir do trabalho, recusando a possibilidade de

uma realização pessoal e profissional através dele.

Daí as atitudes de resignação ou indiferança emrelação às escolhas profissionais.

É exatamente esse sentido de desencantamen-

to com o mundo do trabalho que Clot, apoiando-

se em um trabalho de Vincent Merie, pretende des-

tacar em sua crítica à tese da alergia ao trabalho,afirmando que não se pode atribuir a “um fenôme-

no de geração, o que não pode ser imputável se-

não às transformações nas condições de escolari-zação e de funcionamento do mercado de traba-

lho” (p. 4). Tanto Clot como Pais procuram mos-

trar, com suas críticas, que não é possível tratar de

juventude sem acentuar a diversidade que essa ca-tegoria encobre. Para Clot, o recorte privilegiadoé o de classe, pensando especificamente como as

transformações no processo de trabalho afetam a

juventude operária. Pais também se opõe à gene-

ralização, à consideração dos jovens como um con-

junto homogêneo e propõe a tese das reações dife-renciadas dos jovens em relação ao trabalho, ao

emprego e ao desemprego.

Convém, então, observar mais detalhadamente

as condições objetivas de inserção do jovem no em-prego. Na entrevista realizada com um dos direto-

res do Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco, temoso relato de como o jovem está entrando hoje na

produção:

Antes, há dez, quinze anos atrás, ele entrava na

empresa, a grande maioria, iniciando pelos cursos do

Senai (...) Hoje, a maior parte dos jovens trabalhado-

res está entrando nas empresas como ajudantes de

produção, como auxiliares, quer dizer, não estão tendoa oportunidade de no começo de seu trabalho, no seu

primeiro emprego, ele poder se profissionalizar (...)

Hoje, proporcionalmente, existem menos trabalhado-

res dentro das empresas, quer dizer, diminuiu a quan-

tidade de trabalhadores jovens; apesar de reduzidos

nas empresas, entram para, vamos dizer, serem, na

verdade, massa de trabalho. As empresas não estão

fazendo uma qualificação, dando uma oportunidade

de qualificação desses trabalhadores. Entram para se-

rem mão-de-obra mais barata, mão-de-obra com umpotencial energético muito mais forte do que pessoas

com um pouco mais de idade”.

Este dirigente refere-se, em seu depoimento, àscondições desfavoráveis de inserção no emprego,

acentuando a tendência à subutilização de uma

mão-de-obra de pouca ou nenhuma qualificação.

Mas, tanto a sua entrevista, como a de outro diri-

gente, evidenciam, também, a realidade das empre-

O jovem no mercado de trabalho

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102 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

sas metalúrgicas brasileiras. De um lado, temos um

núcleo de empresas que, buscando enfrentar a con-corrência, modernizam-se, introduzindo inovações

tecnológicas, reorganizando o trabalho e mudando

as formas de gestão empresarial. Nelas, o emprego

e o desemprego decorrem dessas modificações. Mas,na grande maioria das empresas, o que se observaé o baixo investimento, a falta de competitividade,

a pouca eficiência da estrutura produtiva e a escassa

experiência e tradição empresarial. Nestas, o desem-

prego é consequência do encerramento das ativida-

des ou da redução drástica dos postos de trabalho.

Em outra entrevista, realizada com operárioempregado em uma montadora da região do ABC,

há uma informação que parece contradizer o depoi-

mento anterior, ao mostrar o aumento dos traba-lhadores jovens na empresa:

... é muita gente nova que tá na fábrica hoje, na

faixa de 22/21 anos, 23, até 27, tem bastante jovens

mesmo (...) bastante molecada (...) (o trabalhador an-

tigo da empresa) está sendo convidado, depois de 28

anos de companhia, a deixar a companhia, porque ela

quer acabar com todos os velhos, que eles saiam fora,

não adianta, é mudar, ela vai mudar, não quer velho

lá dentro. Pessoal velho de 28/30 anos (na empresa)é para sair da companhia, não tem nada, é convida-

do, ‘por favor, deixe a companhia’ (...) é uma humi-

lhação, é humilhante.

Na verdade, o primeiro informante quando sereferia aos jovens, tinha em mente aqueles entre 15

e 18 anos de idade, enquanto o segundo, como vi-

mos, os que estão situado na faixa etária acima dos

vinte anos. De qualquer maneira, os dois depoimen-

tos apontam a segmentação do mercado de traba-lho, que não só pode explicar a inserção do jovem

no mercado de trabalho2 como, também, impõe a

oposição entre os jovens e os não jovens e a com-

petição que, nem sempre, é favorável aos primeiros(Pais, 1991). Mas há, ainda, um outro aspecto que

nessas entrevistas foi destacado: mesmo os jovens

portadores de alguma qualificação, ou com um grau

maior de escolaridade, estão hoje trabalhando nalinha de produção, muitos realizando atividadesaquém de sua capacidade e com dificuldades de

ascensão profissional. É o que nos diz o relato do

operário de uma montadora do ABC:

A molecada do Senai, lá tem mais de 100 garo-

tos que se formaram no Senai, que era para estarem

na ferramentaria, na manutenção e estão todos na

produção. Então, não vão admitir mais, se precisar de

alguém na manutenção, tem na produção, se precisarde ferramenteiro, também tem na produção. Tem mais

de 100 garotos hoje na produção porque não tem vaga

na ferramentaria, não tem na manutenção, quer dizer,

tem tudo ali dentro.

Se, por um lado, essa situação decorre do au-

mento da terceirização, ou seja, da transferência

para empresas contratadas, de parte ou de setores

2 A pesquisa realizada por Marta Luedemann (1996),em duas empresas automobilísticas, aponta a relação com

os trabalhadores jovens como um problema enfrentado pelosrepresentantes das comissões de fábrica. Ela mostra que a

Ford “contratou, em 1994, quase mil trabalhadores com

menos de 30 anos e com escolaridade entre o 2º grau e ní-

vel superior, para trabalharem na linha de montagem. Amaioria desses jovens não tem tradição de mobilização ope-

rária, muito menos memória do movimento de lutas e rei-vindicações da classe trabalhadora. Geralmente, não parti-

cipam de assembléias e quando há paralisações, ao contrá-

rio de tomar parte das discussões ficam, por exemplo, jo-gando dominó”(p. 140). Um outro aspecto que é salienta-

do no decorrer do texto, especialmente ao tratar da Ford, éa relação de competição e de fiscalização existente, princi-

palmente, entre os trabalhadores de mais idade e os jovens.

No caso da Volkswagen, é apontada, também, a existênciade trabalhadores jovens, especialmente na linha de monta-

gem onde se produz o Gol 1000. São trabalhadores commenos de 25 anos, chamados de “debutantes”, ou seja, es-

tão em seu primeiro emprego, por isso “se apegam mais à

empresa e recebem uma atenção especial; a administraçãogosta do perfil jovem, criativo, participativo e que não está

ligado à organização sindical” (p. 171).

Heloísa Helena Teixeira de Souza Martins

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Revista Brasileira de Educação 103

da produção, por outro, é também uma exigência

da implantação da polivalência3 ou da multifunçãono processo de trabalho. Assim, a “molecada” a que

o operário se refere está sendo preparada para tra-

balhar em vários setores da fábrica, adquirindo uma

mobilidade impensada há alguns anos antes. Masesse conhecimento geral de tudo não significa, en-tretanto, salários mais altos.

Esses garotos não ficam numa área só, ficam

dois meses na usinagem, dois meses na funilaria, dois

meses na estamparia, dois meses na pintura. É o pes-

soal que vai conhecer toda a fábrica e, por outro lado,

esse pessoal além de conhecer a fábrica na produção,

também são mecânicos da manutenção, são ferramen-

teiros (...) Quando eles foram para a produção há umano atrás, foram todos empolgados, essa molecada

ficou entusiasmada porque iriam para o grau 5 (na

hierarquia salarial), só que hoje eles não têm nenhu-

ma perspectiva.

Essas colocações são reiteradas em entrevistas

realizadas pelo jornalista Alceu Castilho (1997),

com seis jovens, com idade variando de 16 a 23

anos, trabalhando em grandes indústrias da regiãometropolitana de São Paulo. Todos enfatizam a for-

mação profissional obtida previamente ou a neces-

sidade de ampliação dos conhecimentos para, pelo

menos, manter o seu emprego na linha de produ-ção. Assim, Daniel, de 20 anos, calibrador na Volks-wagen, está no terceiro ano do curso de engenha-

ria mecânica e considera difícil ocupar um lugar de

engenheiro, devido ao número de candidatos. João

Américo, de 16 anos, trabalhando na linha de pro-

dução da Mercedes Benz, pretende estudar “inglês,alemão e engenharia ou computação, para garan-

tir o seu lugar na linha de montagem”. Já Fernando,

de 18 anos, trabalhando no setor de câmbio da

Volks, faz escola técnica e cursos extracurriculares,acreditando que, com isso, possa sair da linha deprodução. Márcio, de 18 anos, montador na linha

de produção da Siemens, cursa química industrial,

mas já fez cursos de programação, interpretação de

desenho, instrumento e “caminha para ser torneiro

mecânico”. César, de 19 anos, operador de máqui-

nas também na Siemens, ao contrário, nunca pen-sou em trabalhar em indústria. Fez cursos colegial,

de computação, contabilidade, administração e da-

tilografia, destinando-se ao trabalho em escritório.Pensava em trabalhar em “um lugar sossegado, tran-

quilo, limpinho”. Hoje trabalha das 7 às 17 horasproduzindo imãs, “e só imãs”.

Como vemos, esses relatos revelam, por par-

te dos jovens, a interiorização das condições obje-

tivas do mundo do trabalho, que definem as dire-

trizes de seus projetos profissionais, ao mesmo tem-

po que impõem limites aos seus sonhos e esperan-ças. Parece-nos inteiramente apropriada a denomi-

nação dada pelo autor do artigo a esse novo tipo

de trabalhador — “o peão ilustrado”. Um trabalha-

dor, afinal, que precisa adquirir ou ampliar os seus

conhecimentos para manter-se no mesmo lugar. En-tretanto, o mais significativo nessa reportagem é o

fato que todos esses jovens são filhos e, dois deles,

também, netos de operários, que trabalham ou tra-

balharam nas mesmas empresas que hoje os empre-

gam. Aliás, é justamente esse “passado familiar”

3 Gorz (1995), discutindo a polivalência do operário

nas indústrias de processo contínuo, aponta que, na medi-da em que suas operações possuem qualificações comuns e

formação de base também comum, haveria uma mobilida-de potencial desses trabalhadores, que podem circular de

uma empresa a outra sem problemas. Mesmo reconhecen-

do que além de uma formação comum, esse operário deveter uma formação específica de acordo com a indústria, esta,

entretanto, não exige muito tempo de treinamento. Esseoperário tem, então, uma “autonomia existencial” maior,

não sendo um prisioneiro de “sua” empresa. Mas, em con-

trapartida, esta também pode substituí-lo muito mais facil-

mente. É isso que torna banalizado o saber profissional. Comesse termo, Gorz não quer dizer que o trabalho seja des-qualificado ou monótono, mas sim que há uma acessibili-

dade muito grande da qualificação, ou seja, hoje as pessoas

podem muito facilmente ter acesso a certas habilidades oucompetências. É o processo de banalização das competên-

cias que torna o saber ou as capacidades profissionais fácile rapidamente substituíveis. Provavelmente, a presença de

jovens nas empresas, portadores de nível maior de escolari-

dade, mais “educados”, ainda que menos qualificados, prende-se a essa banalização das competências apontada por Gorz.

O jovem no mercado de trabalho

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104 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

que garantiu a eles a entrada em uma grande em-

presa, especialmente nas montadoras, pois “filhose irmãos de funcionários têm prioridade na hora de

fazer os cursos do SENAI”, ou mesmo na hora da

contratação. E, como nos lembra o operário da mon-

tadora entrevistado, quando um trabalhador sai daempresa ou se aposenta, ele pode, “orgulhosamen-te”, indicar um filho para ficar em seu lugar, caso

haja vaga.

Concluindo essas considerações sobre a inser-

ção do jovem no emprego, volto ao depoimento do

operário da montadora do ABC, para reintroduzir

a questão de como os jovens trabalhadores inter-pretam a sua relação com o emprego e o trabalho.

Essa molecada nova que entrou, muitos são fi-lhos de chefe, outros o pai já tem uns vinte e três anos

na empresa, tem sua casa (...) então essa molecada está

preocupada em trocar de carro, moleque que entrou,

com um ano lá, dois anos, já tem um carro zero. Cara

que quer fazer hora extra para trocar de carro. Essa

molecada não está preocupada com o sindicato, não

vai se preocupar com mais nada, o que ganha é só para

gastar mesmo.

Essa entrevista, de um operário com vinte anos

de trabalho na empresa, perplexo e sentindo-se im-potente diante das mudanças introduzidas no tra-

balho dentro da empresa, reproduz a visão genera-

lizada na sociedade a respeito dos jovens trabalha-

dores. Trata-se de uma imagem da juventude mar-cada pela negatividade, que ressalta o individualis-

mo, o consumismo, a passividade, a falta de com-

panheirismo e o afastamento das questões que afe-

tam o conjunto dos trabalhadores.

Nas análises sociológicas da juventude, essa re-

lação instrumental com o trabalho tem sido expli-cada como decorrência da mudança nos valores e nos

modos de regulação social que afetam a maneira pela

qual o jovem é socializado e preparado para entrar

no mundo do trabalho. As exigências de autonomia

individual, o individualismo exacerbado e a valori-zação dos modos privados de consumo, constitui-

riam os elementos sociais básicos que orientam os

jovens na elaboração das representações do empre-

go e do trabalho. Mas, como insiste Pais, é preciso

considerar a existência de reações diferenciadas dosjovens diante do trabalho, do emprego e do desem-

prego. Assim, buscando escapar da tendência de

apenas ver a juventude como um conjunto homo-

gêneo, Pais destaca as diferenças existentes entre osjovens, a diversidade de origens sociais, de interes-ses, de perspectivas e de aspirações (Pais, 1993), que

os conduzem a trajetórias profissionais específicas,

concepções e idéias diferenciadas. Portanto, com re-

lação ao emprego e ao trabalho, mais de uma rea-

ção pode ser apontada: “enquanto entre alguns jo-vens se encontra uma mais disseminada ideologia de

realização individualista, aparecendo, muitas vezes,

a obtenção de emprego fortemente associada ao em-

penhamento, ao esforço e à realização pessoal e pro-fissional, para outros jovens, o emprego aparece co-mo uma fonte de satisfação meramente instrumen-

tal, parecendo cada vez menos irrelevante a ética do

trabalho” (Pais, 1991, 962).

Algumas questões decorrem da análise feita até

aqui: como se formam e são transmitidos os valo-

res referentes ao trabalho? Como as diferentes re-

presentações sobre o trabalho são elaboradas? Ini-ciei esta exposição, colocando em dúvida a possi-

bilidade de se considerar, na sociedade contempo-rânea, a centralidade do trabalho na vida de homens

e mulheres, jovens e adultos, apontando as dificul-

dades para a inserção e a permanência no merca-do de trabalho. Resta agora, contudo, discutir co-

mo, e porque, na sociedade brasileira, o trabalho

ainda se afirma como um valor cultural e simbólico.

Considerando a distribuição dos ocupados,

pela idade em que começaram a trabalhar, dados

da PNAD, para o Brasil, referentes a 1993, mostramque 86,1% da população empregada começou a

trabalhar antes dos dezoito anos. Olhando apenas

a faixa etária de 10 a 14 anos, vemos que 48,6%

dos trabalhadores iniciaram a sua trajetória de tra-

balho nessa fase de sua vida (DIEESE, 1996). O queimpele essas crianças e adolescentes para o traba-

lho, em um momento em que deveriam estar na

escola, e só na escola, preparando-se, exatamente,

para uma profissão?

Heloísa Helena Teixeira de Souza Martins

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Revista Brasileira de Educação 105

A explicação mais frequente nos estudos so-

ciológicos sobre essa questão, repousa na correla-ção estabelecida entre pobreza e trabalho4. Porque

pertencentes a famílias de baixa renda, criança e

adolescente são inseridos precocemente no merca-

do de trabalho, tendo que, muitas vezes, abando-nar a escola. A imposição do trabalho assalariadoseria, então, decorrente do “aguilhão da fome” (Ma-

chado da Silva, 1990).

Assim, por exemplo, considerando o caso do

município de São Paulo, nos anos de 1994 e 1995,

vemos que a média do rendimento familiar médio

era de 4,3 salários mínimos, e que 55,5% das fa-mílias ganhavam de menos de meio salário mínimo

até três salários mínimos. Dados da PNAD mostram

que, dos 58 milhões de crianças e de adolescentesde 0 a 17 anos, mais de 50% vivem em famílias com

rendimento de até meio salário mínimo per capita.Poderíamos concluir, então, que seria a evidente

pobreza que empurra para o trabalho os filhos des-

sas famílias.

Mas, a pesquisa realizada pelo DIEESE em seis

capitais brasileiras, nos anos de 1995 e 1996, com

1.419 crianças de sete a catorze anos, revela alguns

dados surpreendentes. Contrariando a afirmação de

que as crianças trabalham no lugar dos pais, a pesqui-sa constatou que em torno da metade delas tem pais

trabalhando, em ocupações tipicamente urbanas5.

De uma maneira geral, os dados não justificam o

trabalho dessas crianças, pois “são crianças que estu-

dam, têm hábitos urbanos, moram com a família emcasas relativamente cômodas, em grandes cidades do

país” (DIEESE, 1997a, 10).Uma das conclusões da

pesquisa é que o motivo imediato da entrada dessas

crianças no mercado de trabalho é a necessidade decomplementação da renda familiar, em virtude dosbaixos salários recebidos por seus pais6. Mesmo com

sua pequena remuneração, crianças e adolescentes

contribuem para o aumento da renda familiar.

Essas colocações não são suficientes, todavia,

para explicar porque o trabalho infanto-juvenil, que

contribui tão pouco com a renda familiar e implicaem tantos sacrifícios para essa geração, adquire esse

caráter imperioso, constituindo-se em uma ocor-

rência habitual em famílias com as mais diversasorigens e condições sociais. Outros motivos pare-

cem orientar a inserção precoce da população nomercado de trabalho.

Pesquisa realizada por Dauster (1992), com

crianças a partir de 7 anos e com jovens que cur-

sam a escola pública em uma favela do Rio de Ja-

neiro, permite avançar nessa discussão. O objetivo

da pesquisa era estudar o chamado fenômeno do

“fracasso escolar” entre crianças pertencentes a fa-

mílias de baixa renda, o que a levou a discutir, maisamplamente, a relação entre a escola e o trabalho.

Este é um tema que, como apontam Ferretti e Ma-

deira (1992), tem sido discutido pelos analistas no

sentido de apontar a importância da escola na for-mação das novas gerações para o trabalho. O que

esses dois autores propõem é pensar que “para a

grande maioria da população, o trabalho antecipa

a escola ou se dá concomitantemente a ela”(p. 83).

Assim, Dauster, procurando entender o que

leva as crianças das camadas populares a buscarema escola — crianças que se auto representam como

4 Remeto, neste aspecto, para o texto de Felícia R.

Madeira, Pobreza, Escola e Trabalho — convicções virtuo-sas, conexões viciosas, 1993, que desenvolve uma reflexão

crítica das interpretações correntes sobre o tema.

5 Em pesquisa realizada em 1981, com crianças e ado-

lescentes de 9 a 17 anos, na área metropolitana de São Paulo,Aparecida J.Gouveia já comprovara que 95% dos chefes de

família trabalhavam em atividades manuais e, destes, cercada metade eram trabalhadores não qualificados. Além do

mais, tratavam-se de famílias estruturadas, em sua maioria,

compostas de pai, mãe e filhos. Confirma-se, assim, que otrabalho precoce não decorre, necessariamente, da desagre-

gação familiar ou do fato dessas crianças e adolescentesprovirem de uma família incompleta (Gouveia, 1983).

6 Essa conclusão aparece, também, nos artigos de Gou-

veia (1983) e Madeira (1993), afirmando-se, praticamente,como consenso nas pesquisas sobre o trabalho de crianças

e adolescentes de 10 a 17 anos. Mas, esses mesmos estudos

mostram que outros motivos interferem, igualmente, na de-cisão de trabalhar.

O jovem no mercado de trabalho

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106 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

 pobre, trabalhadora e estudante — mostra que o

ingresso delas nas classes de alfabetização revelamgrande interesse e expectativa, expressando, por

parte de suas famílias e delas, a valorização da es-

cola. Mas, aos poucos, as crianças demonstram uma

atitude de resistência, que a autora explica comoresultado tanto de uma escola afastada dos interes-ses das crianças, quanto do incentivo dos pais para

o trabalho. Aqui, Dauster retoma as colocações de

autores como Alvim e Valladares, a respeito da im-

portância do trabalho enquanto um valor cultural 

e econômico, ou seja, da transmissão, pela família,da ideologia do trabalho, que vê o trabalho pelo seu

aspecto de formador das novas gerações.

Uma de suas hipóteses, portanto, é de expli-

car a inserção no trabalho não apenas a partir dascondições econômicas em que essas crianças vivem,

mas, considerando-a como “uma estratégia do sis-tema de socialização das camadas populares, que

não se opõe necessariamente à escola mas, ao con-

trário, deve complementá-la” (p. 33).

Nesse sentido, a autora procurou, em sua pes-

quisa, recuperar as orientações e os valores, os cos-

tumes e atitudes que se expressam nos “usos sim-

bólicos da escola e do trabalho” (p. 33), por parte

das camadas populares. Analisando os depoimen-tos, Dauster mostra que o trabalho de crianças e

jovens não é visto apenas como imposição de uma

necessidade decorrente das condições econômicas

da família, mas a valorização do trabalho é resul-tado de fatores culturais, ou seja, a questão do tra-

balho infantil é tratada pela autora como “uma for-

ma cultural que coletivamente se impõe às crianças

das camadas populares” (p. 33). Entre os morado-

res da favela pesquisada, o trabalho infantil, a partirdos sete anos, é representado como obrigatório, por

se constituir em uma prática cotidiana coletiva e

também como natural , segundo as orientações dos

pais. Assim, no cotidiano de vida dessas famílias,

o trabalho, desde cedo, aparece como regra, comoparte da socialização das novas gerações. Em um

sistema de troca nas relações familiares, as crian-

ças e jovens se dispõem a “ajudar” sua família, tra-

balhando em retribuição aos pais que lhes dão mo-

radia e comida. Constrangidas pela necessidade,

essas crianças e adolescentes submetem-se à impo-sição de uma norma que, entendida como natural

e legítima, constitui-se como dever e obrigação das

gerações mais jovens das camadas populares.

Dessa maneira, a condição de trabalhador éinerente à condição de pobre, mas se constitui, tam-

bém, na visão dos pais, como anteparo aos perigosvividos “na rua”, ao risco da marginalidade, afas-

tando seus filhos das más companhias, do bandi-

tismo, do tóxico, enfim, o que não presta, o mun-

do com os seus perigos7.

Contudo, há ainda, um outro significado do

trabalho que Dauster observa em sua pesquisa: osentido de decisão e de afirmação. Os jovens que-

rem trabalhar para se sentirem importantes dentrode sua família, mas, também, para poderem com-

prar, com o seu dinheiro, certos objetos — como o

tênis e as roupas de marca, o relógio — que lhespermitam o acesso a uma “gramática do gosto” (p.

35), fundamentais na construção de uma identida-

de jovem8. Essa pressão do consumo é destacada,

7 Zaluar (1985) aponta o limite tênue que separa otrabalhador da marginalidade, as constantes solicitações de

passagem para a deliquência e, especialmente, a atração queesta exerce sobre os jovens. Uchôa (1994), em sua reporta-

gem, mostra como é difícil, para crianças e jovens, mora-dores do morro do Borel, no Rio de Janeiro, persistirem no

seu trabalho de carregadores de pesadas sacolas de compras

que lhes rende cerca de R$ 30,00 por semana, quando um“soldado do pó” empregado pelos traficantes tira, em mé-

dia, R$ 100,00 por semana.

8 Uma dimensão importante do cotidiano dos jovens

é o lazer e, nesse sentido, o estudo de Helena Abramo (1994)é uma contribuição importante. Diante da escassez de pes-

quisas sobre os jovens, a análise dessa autora se afirma comoleitura obrigatória para todos que pretendem discutir as

questões relacionadas com a juventude. Mas, lembro aquiapenas a sua colocação de que “a juventude é vista como

período em que se pode gozar a vida e tentar um futuro

melhor” (p. 62). A inserção dos jovens no mercado de tra-balho é o que lhes permite, portanto, “viver a condição ju-

venil” (p. 64), seja no sentido da aquisição de bens de con-sumo, seja no desfrute do lazer.

Heloísa Helena Teixeira de Souza Martins

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Revista Brasileira de Educação 107

9 Apresento uma pequena variação da definição ela-

borada pelos trabalhadores da periferia de São Paulo pes-

quisados por Cintia Sarti (1994), que se identificavam como“pobre honrado, porque trabalhador” (p. 66).

também, em vários outros textos como um dos mais

fortes motivos que impulsionam os jovens para otrabalho (Ferretti e Madeira, 1992). Mas, aliado ao

sentido da afirmação, lembro a observação de Gou-

veia (1983), destacando que são pouco frequentes,

entre os seus entrevistados, as manifestações de amar-gura ou revolta pelo fato de precisarem trabalhar.A quase totalidade deles expressa um sentimento de

auto-realização e de orgulho. Dessa maneira, como

destaca Gouveia, o trabalho se afirma como a “ne-

cessidade transformada em virtude”.

Pode-se concluir, portanto, ou pelo menos for-

mular uma hipótese de pesquisa, de que os jovensde 18 a 25 anos reproduzem, em seus projetos de

vida, elementos dessa ética do trabalho, construin-

do a sua identidade no trabalho a partir da noçãode “honesto e digno” porque um trabalhador9.

O último aspecto que destaco nestas reflexões

sobre o jovem trabalhador, diz respeito à relaçãoentre a educação e o trabalho. Como já apontamos,

as alterações no processo de trabalho e as novas

técnicas organizacionais introduzidas nas empresas,

vem propiciando o aparecimento (e o desapareci-

mento) das qualificações ou especializações exigi-

das dos trabalhadores. O “novo” profissional de-

pende, portanto, de um grau de escolaridade maior.Aliás isso não é tão novo assim nas empresas. Chaia

(1987) já apontava em seu artigo, que a indústria,

por exemplo, parecia preferir os jovens que tinham

completado um ciclo de estudo e que, provavelmen-te, tivessem deixado de ser estudante. A novidade

com respeito a essa colocação é que, hoje, certamen-

te, as empresas esperam que seus empregados sejam

sempre capazes de aquisição de novos conhecimen-

tos e requalificações.

A pesquisa realizada pelos economistas EdgardLuiz Alves e Fábio Veras, do Instituto de Pesquisa

em Economia Aplicada (IPEA), analisando dados

etários, de renda e de qualificação dos ocupados daGrande São Paulo, com base nos levantamentos do

DIEESE/SEADE entre 1988 e 1995, contem infor-

mações significativas a respeito dessa questão. Es-

pecificamente com relação ao grau de instrução des-ses trabalhadores, a pesquisa aponta a redução donúmero de analfabetos, caindo de 6,1%, em 1988,

para 5% em 1995. A participação dos ocupados

com até a quarta série declinou de 35% para

27,2%, assim como a dos que tinham o primeiro

grau incompleto: de 18% para 15,8%. Ao contrá-rio, houve um acréscimo da parcela daqueles com

curso universitário completo, que passou de 8,6%

para 12,3% e dos com o segundo grau completo,

de 11,7% para 16,3%, nos dois anos indicados.Confirma-se, portanto, a tendência que tem sidoapontada em várias pesquisas, inclusive na que ve-

nho realizando entre os jovens trabalhadores meta-

lúrgicos em Osasco. Na indústria hoje, aliás, como

nos outros setores da economia, a inserção profis-

sional será daqueles com o grau de instrução maior.

Não se deve estranhar, portanto, a presença de en-genheiros na linha de produção.

Os dois economistas concluem a sua pesqui-

sa afirmando que “a batalha da produtividade sóserá ganha se os trabalhadores elevarem seu nível

de educação” (Campos, 1996). Ferretti e Madeira

(1992), em artigo no qual realizam uma importan-te revisão bibliográfica das relações entre trabalho

e escola, destacam como a década de 90 inicia-se

com os governos de diferentes países reintroduzindo

a importância da educação para o desenvolvimen-

to econômico. Os autores manifestam a sua perple-xidade diante do fato de que, apesar da crítica ela-

borada durante os anos 80, “a década de 90 inau-

gura-se com forte revigoramento das antigas espe-

ranças no poder transformador da educação via

impacto no processo de trabalho, portanto, em suaversão economicista”(p. 84). O estudo dos dois eco-

nomistas, citado acima, expressa muito bem essa

visão, compartilhada, sem dúvida, por pesquisado-

res e empresários e que é imposta como uma neces-

sidade aos trabalhadores.

O jovem no mercado de trabalho

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108 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

A reestruturação produtiva e as novas formas

de gestão e organização do trabalho, portanto, co-locam para os educadores, como acentuam Ferretti

e Madeira no artigo referido, novos desafios, na

medida em que “o novo paradigma dos processos

de produção está apoiado na formação mais plura-lista da força de trabalho, em sua maior capacitaçãopara apreensão de linguagens, sobretudo a matemá-

tica. O que se deve incrementar, agora, é a cria-

tividade, a participação, a solidariedade, etc. Dife-

rente, portanto, da ideologia dos anos 60, que en-

caminhou a escola para um modelo profissiona-lizante stricto sensu, mais próximo de um adestra-

mento específico. De certa forma, o que se acredi-

ta hoje que seja demanda do mercado é algo pró-

ximo do que os educadores reivindicam há muitotempo” (p. 85).

Procurei, nesta exposição, destacar as questõesfundamentais para discutir a relação do jovem com

o trabalho, baseando-me em um conjunto de tex-

tos e de entrevistas com trabalhadores, todos ati-

vistas sindicais. Portanto, uma reflexão de adultos

sobre o jovem. Como a maioria dos autores cita-

dos, tomei como referência dados estatísticos quenos dizem a porcentagem dos que trabalham, dos

desempregados, do nível de renda, do grau de ins-trução, mas que não informam em que condições

esses jovens trabalham, nem o quê o trabalho sig-

nifica para eles e, muito menos, como se situamdiante das condições de trabalho e as exigências que

se colocam hoje para o exercício de suas atividades

profissionais. Pelo menos, não na faixa etária que

escolhi como ponto de partida para a minha pes-

quisa, ou seja, os que situam entre os 18 e os 25anos. Na realidade, quase não existem pesquisas

que tenham como ponto central da análise o traba-

lhador situado nesse período do ciclo vital. Isto, por

um lado, pode representar uma desvantagem inicial

mas, por outro, constitui-se em um desafio, que opesquisador deve enfrentar.

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O jovem no mercado de trabalho

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110 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

Premissa

As atitudes em relação ao trabalho constituí-

ram sempre um dos temas de maior interesse nos

estudos sociológicos e psicológicos sobre a condi-ção juvenil por razões facilmente compreensíveis.

Em contextos culturais muito diferentes entre si,de fato, o trabalho é um dos âmbitos mais impor-

tantes em que se desenvolvem as relações entre ge-

rações, acentuam-se os mecanismos de socializa-

ção dos jovens para os papéis da vida adulta, de-

senvolvem-se processos de reprodução econômicae social.

As pesquisas IARD sobre a condição juvenil

na Itália, efetuadas em 1983 e 1987, produziram al-guns resultados relevantes: em primeiro lugar, mos-

traram como a condição e as atitudes dos jovens

italianos relativas ao trabalho, mesmo conservan-do algumas especificidades significativas, têm se

uniformizado às de seus coetâneos de outros paí-

ses desenvolvidos do ocidente. Em segundo lugar,

confirmaram alguns lugares-comuns difundidos na

opinião pública, em particular, o estereótipo da re-

O trabalho como escolha e oportunidade

Antonio Chiesi 

Alberto Martinelli IARDI

Tradução de Nilson Moulin 

Publicado em: CAVALLI, Alessandro e LILLO, Antonio (orgs.). Giovani anni 90. Bologna: Il Mulino, 1993. Cap. II.

cusa do trabalho dos jovens dos anos 70 e do este-

reótipo da competição individualista e do confor-

mismo dos jovens da década sucessiva. A pesquisa

IARD de 1992 confirma e esclarece tais resultados,

introduzindo também alguns elementos de novidade.A propósito da crescente afinidade das atitu-

des dos jovens italianos com os seus coetâneos eu-ropeus, vale a pena destacar algumas tendências

claramente perceptíveis. A primeira tendência é o

prolongamento da idade juvenil e o significado novo

do próprio conceito de juventude: ser jovem é cada

vez menos um processo direcionado para uma fi-nalidade, isto é, a meta de se tornar adulto, come-

çar a trabalhar e assumir as responsabilidades da

idade adulta e é cada vez mais uma condição socialque pode durar vários anos. Os jovens tendem a

deixar a família mais tarde e igualmente adiam aidade do casamento e do nascimento dos filhos,

tendência esta, mais acentuada na Itália que em ou-

tros países por causa das atitudes de proteção mais

acentuadas por parte de muitos pais e da menor ten-

dência dos jovens a afastar-se da família por razõesde estudo e trabalho e para estabelecer uniões con-

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Revista Brasileira de Educação 111

jugais de fato, como acontece difusamente nos paí-

ses da Europa do Norte e na França.

A segunda tendência é o crescimento das ex-pectativas, determinada pelo aumento do nível de

instrução, que comportou um defasamento progres-

sivo entre oferta e demanda no mercado de traba-lho, um crescente desemprego intelectual (sobretudo

nas áreas em que não se verificou um desenvolvi-mento dos papéis técnicos e profissionais, relaciona-

dos com a conversão industrial e com a expansão

da economia terciária, a ponto de satisfazer a deman-

da de trabalho qualificado dos jovens escolarizados)

e uma recusa dos trabalhos com pouco prestígiosocial que são deixados aos imigrantes.

Enfim, como nos outros países desenvolvidos,

a condição laboral e as atitudes perante o trabalhodos jovens são influenciadas pelo gênero, pelo status

sócio-econômico da família e pelo lugar de origem

e de residência. As desigualdades associadas a taisfatores acham-se bem visíveis na pesquisa de 1992,

também no caso do gênero parecem atenuar-se. Com

efeito, observa-se uma redução das diferenças en-

tre homens e mulheres em relação ao diploma es-

colar e à presença nos vários tipos de emprego. De

qualquer modo, continuam muito fortes as desigual-

dades de gênero (a favor, obviamente, dos homens)entre os inativos e entre os que ainda estão à pro-

cura do primeiro trabalho.

Nem “hippies” nem “yuppies”

A análise dos estereótipos mostra que a atitu-

de de recusa do trabalho parece interessar a mino-

rias reduzidas. Os jovens da geração de 68 intro-duziram valores e atitudes antiautoritárias nas re-

lações de trabalho, que se desenvolveram nos anos

posteriores, não no sentido de uma crise de meca-

nismos de socialização para o trabalho, mas no sen-

tido de uma atitude mais racional diante da expe-riência laboral. O trabalho permanece um aspecto

central da vida dos indivíduos, porém, procura-se

introduzir mais elementos de liberdade e autono-

mia, nos casos de trabalhos que permitam realizar

as próprias capacidades; trata-se de reduzir as quan-

tidades e os tempos, no caso de trabalhos pouco

gratificantes, aos quais ninguém quer sacrificar aprópria vida afetiva.

A esse respeito, a pesquisa IARD de 92 permite

aprofundar e interpretar melhor a demanda crescen-

te de autonomia e de valorização das próprias ca-pacidades. Tais resultados permitem superar o es-

tereótipo do “yuppismo” dos anos 80. A atitude damaior parte dos jovens em relação à escolha do tra-

balho não parece caber na execução de um projeto

final de afirmação individual e de um planejamen-

to rigoroso da própria carreira, mas parece mostrar,

ao contrário, tanto uma atitude de incerteza no mo-mento da escolha do primeiro trabalho quanto uma

atitude pragmática e negociadora e um compromis-

so realista entre opções e oportunidades.A tendência para uma incerteza crescente acer-

ca das próprias opções laborais pode por sua vez

ser atribuída a dois tipos de causas. Em primeirolugar, o conhecimento escasso e a experiência ain-

da reduzida que boa parte dos jovens tem do tra-

balho nos anos de escola: o trabalho é uma reali-

dade bastante remota e pouco visível para muitos

estudantes, que só se concretiza sob a forma de tra-

balho precário e ocasional. Os programas escola-

res não prevêem formas alternativas de instrução-trabalho, os meios de comunicação de massa trans-

mitem mensagens centradas no tempo livre e no

consumo em vez de abordar a produção, tratam da

gratificação imediata das necessidades, negligenci-ando a necessidade de aprendizagens longas e com-

plexas e sobre as obrigações derivadas de um con-

trato de trabalho. Em segundo lugar, os pais care-

cem muitas vezes de uma percepção clara das incli-

nações e das capacidades efetivas dos filhos e dasinformações adequadas sobre a evolução do mun-

do do trabalho, quando não oferecem uma imagem

do trabalho enquanto fonte de ansiedade, preocupa-

ção e cansaço mais que de satisfação. Contudo, tal

incerteza não deve ser supervalorizada, pois paramuitos ela esconde uma atitude de experimentação

e de prova que conduz a adiar a escolha definitiva

após ter explorado as próprias capacidades pesso-

ais e as demandas do mercado por meio de diver-

O trabalho como escolha e oportunidade

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112 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

sas experiências de trabalho ocasional, temporário

ou precário.

Autonomia, flexibilidadee crescimento profissional

A exigência de autonomia, uma atitude de ex-perimentação e uma abordagem realista quanto à

escolha do trabalho, capaz de mediar expectativas

e oportunidades, surgem como os traços mais mar-

cantes dos jovens entrevistados. O início da déca-

da de 90 coincide com o ápice de um período emque o mercado do trabalho atingiu a plena ocupa-

ção nas regiões do norte e também no sul se pre-

sencia uma diminuição do desemprego. As estraté-

gias de oferta de trabalho por parte dos jovens sebeneficiam com esta conjuntura favorável, que nãotem precedentes na última década e são influencia-

das também pelas políticas de flexibilização da ofer-

ta, adotadas a partir de meados da última década,

que modificaram sobretudo os comportamentos dos

jovens em busca do primeiro emprego (basta pen-

sar, por exemplo, no desenvolvimento dos contra-tos de formação e trabalho).

Embora as perspectivas do mercado de traba-

lho tenham piorado rapidamente, a partir do anoseguinte da acentuação, provocado pela deteriora-

ção das condições econômicas gerais, das incerte-

zas crescentes de muitas empresas sobre o futuro eda conseqüente redução dos investimentos, na épo-

ca em que foi feita a pesquisa (março de 92), a per-

cepção dos jovens acerca do próprio futuro ocupa-

cional, no seu conjunto, era mais positiva que an-

tes, com as costumeiras exceções parciais de algu-mas áreas do Mezzogiorno (região centro-sul). Por-

tanto, é ao contexto sócio-econômico precedente à

crise do início da década de 90 que temos de refe-

rir-nos para interpretar as atitudes dos jovens.

Grande parte dos jovens, tendo exorcizado a

preocupação pelo posto de trabalho, parece muitointeressada nos conteúdos e nas modalidades de

trabalho e manifestam uma forte exigência de au-

tonomia, não temem a flexibilidade da relação de

trabalho, chegando a encará-la favoravelmente, pri-

vilegiam a dimensão criativa do trabalho, capaz de

favorecer a realização pessoal, buscam oportunida-des de aprendizagem e crescimento profissional,

com o objetivo de poder potencializar as próprias

capacidades. Neste sentido, é significativa a pro-

pensão ao trabalho autônomo, a abrir um negóciopor conta própria, a serem os únicos responsáveispelo próprio trabalho. A relação de trabalho depen-

dente parece sempre ser cada vez menos um mode-

lo apreciado, um porto seguro e protegido para o

qual dirigir-se1.

É preciso destacar também o fato de que a pre-

ferência pelo trabalho por conta própria é alta nãosó entre os filhos de trabalhadores autônomos, mas

também entre os filhos de funcionários, ao passo

que só é nitidamente mais baixa entre os desempre-gados, para os quais prevalece, é claro, a preocupa-

ção de encontrar trabalho de qualquer jeito. Alémdisso, o trabalho sempre é considerado importan-

te no projeto pessoal de vida, mas justamente por

ser percebido como mais seguro em relação ao pas-

sado, perde posição na hierarquia das coisas impor-

tantes da vida, em favor da amizade e do amor.

Se examinarmos a relação entre as estratégias

dos atores e as condições do contexto, surge clara-

mente a adoção de comportamentos muito realis-tas, aos quais correspondem atitudes desencantadas

e racionais na pesquisa do trabalho, tendentes a

encontrar uma mediação praticável entre expecta-

tivas e oportunidades do mercado, confimando as-sim uma tendência datada de uma década, já pre-

sente desde a primeira pesquisa IARD de 83. Por

exemplo, cotejando as atitudes dos estudantes e dos

jovens que trabalham, observa-se um progressivo

redimensionamento das expectativas sobre o traba-

1 As edições anteriores da pesquisa já sublinharam a

preferência dos jovens pelo trabalho autônomo, em detri-

mento do trabalho dependente, mas o último levantamentomostra uma queda ulterior contra o trabalho dependente (de

32,4% em 1983 para 27,5% em 1992) e um aumento daque-les que responden “depende”, isto é, que mostram pretender

avaliar racionalmente os prós e os contras da alternativa.

Antonio Chiesi, Alberto Martinelli

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Revista Brasileira de Educação 113

lho autônomo, expressão do fato de que as trans-

formações do sistema produtivo (desenvolvimentodos papéis profissionais e de condições laborais com

alto grau de autonomia) caminham mais lentamente

do que seria exigível pelas expectativas dos jovens.

Todavia isso não deve induzir a subestimar tais ex-pectativas de autonomia, auto-realização e retoma-da de responsabilidade da maior parte dos jovens.

Ao contrário, tanto as grandes empresas quanto a

administração pública deviam adotar formas de or-

ganização do trabalho com características bem de-

finidas de delegação de responsabilidades e de fun-ções, de avaliação dos resultados, de autonomia na

definição das modalidades e dos tempos da presta-

ção laboral.

Indicações análogas emergem do exame dasmodalidades de pesquisa do trabalho, que parecem

adaptar-se realisticamente à situação específica domercado nas diferentes áreas do país. Os jovens

meridionais investem com mais freqüência na ins-

crição nos escritórios de alocação de mão-de-obra

e nos concursos públicos, estratégias complemen-

tares numa situação de carência de postos no setor

privado. Os jovens do norte e do centro confiammais freqüentemente nos pedidos encaminhados a

empresas e nas respostas a classificados que ofere-cem emprego. Além disso, os resultados da pesquisa

desmentem a imagem de que os jovens do sul sejam

obrigados, mais que os do norte, a recorrer ao apoiode pessoas influentes para obter trabalho. A persis-

tência da defasagem entre norte e sul também se

manifesta pelas diferenças no modo de trabalhar e

de encontrar emprego dos jovens. Mas as dificul-

dades do mundo do trabalho juvenil no sul não sãomais uma condição homogênea e difundida e só

produzem degradação quando intervêm fatores de

precipitação bem identificados pela pesquisa, como

baixo nível de estudos, a origem social camponesa

e a condição feminina.

Esclarecidas as tendências gerais, vejamos ago-ra analiticamente os principais aspectos da condi-

ção laboral dos jovens e de suas atitudes em rela-

ção ao trabalho.

Os jovens em condiçãode (quase) pleno emprego

Antes de mais nada, podemos nos perguntar

que peso tem a conjuntura econômica sobre as es-

tratégias de atraso da transição para a idade adul-ta. Com efeito, se é verdade que nos últimos 25

anos, e não só na Itália, os jovens tendem a adiar

cada uma das cinco passagens essenciais a tal tran-

sição (conclusão dos estudos, novo endereço resi-dencial, união de casal, trabalho e paternidade-ma-

ternidade), também é plausível supor que pelo me-

nos duas dessas passagens sejam muito influencia-

das pela conjuntura econômica. A nova residência

pode representar, de fato, uma opção realizável só

se o mercado de casas for favorável às modestasdisponibilidades econômicas de um jovem. Inclu-

sive a entrada no mundo do trabalho pode depen-

der, em última instância, das condições da oferta

de vagas. O ano de 1992 mostra condições de em-prego muito favoráveis aos jovens. Apesar disso, a

percentagem dos que têm uma experiência de tra-

balho não ocasional desce para 37,9%, em relação

aos 43% de 5 anos antes. Portanto, os dados su-

gerem que a melhoria das condições de mercado

não consegue alterar uma tendência cultural mui-to profunda.

A cota dos jovens em busca do primeiro em-

prego, categoria histórica da condição juvenil nos

últimos 30 anos, reduziu-se a menos de um terço

(passando de 11% em 1987 para 3,7% em 1992).Trata-se de uma queda deveras relevante, difícil de

encontrar nas estatísticas oficiais de outros países

desenvolvidos. Por outro lado, tal dado tem conexão

com as dinâmicas ocupacionais reais de 1992, consi-

deradas pelo CENSIS (1992) substancialmente posi-tivas até o outono, e com os resultados do levanta-

mento trimestral ISTAT (1992) sobre as forças de

trabalho do segundo trimestre de 1992, que mostram

uma leve piora do desemprego a partir de julho.

Existem muitas probabilidades de relação di-

reta entre a diminuição do desemprego juvenil nadécada de 80 e a aplicação das políticas de flexi-

bilização das relações de trabalho buscada nos úl-

O trabalho como escolha e oportunidade

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114 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

timos anos também na Itália. Basta pensar que os

trabalhadores inseridos com contratos de formaçãoe trabalho, que entram exatamente nas faixas etárias

incluídas em nossa pesquisa, dobraram depois da

metade dos anos 80, até superar meio milhão2. In-

clusive os contratos de tempo parcial, que não abar-cam apenas os jovens, superam 200.000 em 1991.

Os dados obtidos em nossa pesquisa não mos-tram apenas uma redução drástica dos jovens que

esperam o primeiro emprego. Também os desem-

pregados, isto é, aqueles que estão à procura de um

novo trabalho, tendo perdido o anterior, diminuí-

ram, embora em proporção menor (passando de5,3% para 4,9%).

Do total de entrevistados abaixo de 25 anos,

41% hoje trabalham em diversos setores e segun-do modalidades muito diferenciadas. Os jovens que

desenvolvem uma atividade compõem, de fato, uma

categoria heterogênea, pois somente a metade tra-balha com um contrato em tempo integral, isto é,

segundo a modalidade de trabalho standard 3. Os

autônomos representam 15,4% ao passo que 14,5%

têm uma relação de trabalho atípica ( part-time, tra-

balho por tempo limitado, trabalho precário). A

esse grupo deve ser somado um conjunto de 22,2%,

representado por estudantes-trabalhadores.Dentre os estudantes que atualmente não tra-

balham (46,8%, em aumento sensível comparado

aos 39,1% da pesquisa de 1987), 4,4% já trabalha-

ram de modo não ocasional, 4,9% aceitam com

freqüência trabalhos ocasionais remunerados. Dequalquer modo, 28,2% tiveram pelo menos uma

experiência de trabalho ocasional.

Basicamente, pode dizer-se que a percentagem

daqueles que, durante a vida, tiveram alguma ex-

periência de trabalho sobe de 60% em 1983 para

66,4% em 1992. Assim, trata-se de um crescimen-to não negligenciável, que diz respeito essencialmen-

te à ampliação da faixa de emprego marginal. Con-

forme trataremos de demonstrar recorrendo aos

dados sobre a subjetividade do trabalho, a difusãodos papéis marginais corresponde em parte a umaestratégia precisa e depende portanto da combina-

ção de escolhas conscientes e de novas condições

estruturais. A atração que o mundo do trabalho

exerceu sobre os jovens é testemunhada, de resto,

também pela redução dos inativos e dos estudan-tes que, mesmo não se declarando estudantes-tra-

balhadores, admitem trabalhar ocasionalmente no

momento da entrevista. Este último grupo chega a

dobrar no período considerado, passando de 4,3%para 8,5% do conjunto da amostragem. Assim, éverdade que os jovens adiam a entrada definitiva ou

“oficial” no mundo do trabalho, permanecendo mais

tempo na condição de estudantes, mas experimentam

seu sabor com algumas experiências “oficiosas”, de

um modo igualmente generalizado (tabela 1).

A atração pelo mercado de trabalho, contudo,

não travou o crescimento progressivo a longo pra-zo do título de estudo, que continua a representar

uma credencial importante para ter acesso ao mer-cado dos empregos. De fato, os que só possuem o

curso primário enfrentam uma taxa de desempre-

go muito mais alta do que aqueles que têm algumdiploma (12,7% contra 5,7%) e sobretudo uma

percentagem mais alta de desempregados sem estí-

mulo que já não procuram trabalho (22,5% con-

tra 1,5%) (tabela 2).

A tabela 3 mostra além disso de modo evidente

a permanência das diferenças tradicionais entreregiões ricas e pobres. No sul, o desemprego é mais

alto, é mais elevada a proporção de jovens em bus-

ca do primeiro trabalho e também continua alta a

percentagem dos inativos, isto é, jovens desempre-

gados que, tendo sido desencorajados, sequer pro-curam o primeiro trabalho. A situação do merca-

do de trabalho parece mais favorável na região nor-

deste que na noroeste. Nas 3 Venezas e na Emília

Romana, o grupo de 341 entrevistados só abrange

2 Por causa das modificações normativas concernentes

a este tipo de contrato de trabalho, os jovens inseridos sereduzem a 286.000 indivíduos em 1991 (cf. Ministério do

Trabalho, 1992).

3 Trata-se especificamente de 54,2% sobre um total

de 661 indivíduos empregados, isto é, apenas 20,9% doconjunto da amostragem.

Antonio Chiesi, Alberto Martinelli

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Revista Brasileira de Educação 115

2 (dois) jovens em busca do primeiro emprego. As-sim, pode afirmar-se que, no início da década de 90,

nessas regiões, o problema não diz respeito aos jo-

vens, mas sim às empresas, que correm o risco de não

encontrar trabalhadores em caso de necessidade.

Os homens tendem a entrar mais precocemen-

te que as mulheres no mercado de trabalho, poisentre os empregados, 31,5% dos homens apresen-

tam uma ancianidade laboral superior a 4 anos,

Tabela 1Condição profissional por sexo (%)

1987 1992Condição M F M F

Trabalhador-estudante/Trabalhador 43,5 30,6 43,9 38,3

Estudante 40,1 38,1 45,1 48,5

Em busca do primeiro emprego 7,8 14,3 2,3 4,2Desempregado 5,5 5,1 5,1 4,7Inativo 3,1 11,9 3,6 4,2

100,0 100,0 100,0 100,0

N=2.000 N=1.718

Tabela 2Condição profissional por nível de estudo (%)

Média Média

Elementar* Inferior** Superior***Trabalhador-estudante/Trabalhador 50,1 47,5 54,6

Estudante 8,8 39,3 30,9Em busca do primeiro emprego 3,9 2,6 5,2

Desempregado 12,7 5,5 5,7

Inativo 24,5 5,4 3,5100,0 100,0 100,0

N=2.500* corresponde a primeira etapa do ensino fundamental (1ª a 4ª aérie)

** corresponde a segunda etapa do ensino fundamental (5ª a 8ª série)

*** corresponde ao ensino médio (1º a 3º colegial)

Tabela 3

Condição profissional por zona geográfica de residência (%)NO NE Centro Sul

Trabalhador-estudante/Trabalhador 59,4 61,4 46,9 43,1Estudante 32,9 32,7 41,8 33,0

Em busca do primeiro emprego 1,3 0,5 3,6 6,5Desempregado 2,8 2,5 4,5 9,5

Inativo 3,6 2,9 3,2 7,9

100,0 100,0 100,0 100,0N=2.500

contra 23,3% das mulheres. Entre os trabalhado-res-estudantes, os homens têm acesso a um traba-

lho estável com maior freqüência que as mulheres,

ao passo que elas vivem mais freqüentemente ex-

periências de trabalho ocasional. Tal situação é fru-

to da persistente maior dificuldade relativa do com-ponente feminino para encontrar trabalho e é com-

provada também pelo fato de que, para obter um

posto, as jovens estrevistadas devem possuir um

O trabalho como escolha e oportunidade

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116 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

título de estudo em média superior ao dos homens.

Com efeito, entre os desempregados, as mulherescom diploma representam 45,2% contra 32,7% dos

homens. Também as jovens com instrução poste-

rior à escola obrigatória ou diploma superior são

relativamente mais numerosas que os homens (9,1%contra 6,4%). Portanto, não surpreende que as ta-xas de desemprego feminino sejam sensivelmente

superiores às dos homens4.

A pesquisa mostra o duplo aspecto do desem-

prego, o quantitativo e o qualitativo. A taxa abran-

gente representa de fato um indicador de gravida-

de genérica, concentrada sobretudo entre os jovensdo sul, com baixo título de estudo e baixa extração

social. A incidência dos que estão em busca do pri-

meiro trabalho nos diz também alguma coisa sobrea qualidade do desemprego: quanto mais baixo é

o valor, numa situação de desemprego elevado, maisgrave o próprio desemprego, pois envolve jovens

que viveram a experiência da perda de um traba-

lho. É sobretudo o caso daqueles que não termina-

ram a escola obrigatória, sujeitos a um sistema de

expulsão precoce do processo produtivo por causa

da falta de capacidade profissional ou até de umainadequada socialização para o trabalho. Onde, ao

contrário, o peso relativo dos jovens em busca doprimeiro trabalho é baixo, no interior de uma situa-

ção de baixos níveis de desocupação abrangente,

pode-se sustentar que a desocupação causada porperda do posto corresponde a uma situação de mo-

bilidade do trabalho absolutamente fisiológica. É

esse o caso das regiões do nordeste. Enfim, pode

surgir o caso de que níveis de desemprego superio-

res à média sejam representados sobretudo por jo-vens em busca do primeiro trabalho. É este o caso

das altas qualificações, dos diplomados e sobretu-

dos dos que têm curso superior, entre os quais per-

sistem fenômenos de desemprego intelectual devi-

do às dificuldades para obter um emprego adequa-do ao nível de instrução formal conseguido.

Porém, as estatísticas sobre as taxas de desem-

prego ocultam um aspecto ulterior, circunscrito masgrave, constituído por aqueles jovens que desejariam

um trabalho, mas sendo desencorajados, não o pro-

curam mais. Entre os filhos de camponeses, por

exemplo, a percentagem de desestimulados é de12,7% do total dos entrevistados, enquanto entreos filhos da burguesia (empresários, dirigentes, pro-

fissionais liberais) e entre os filhos de funcionários,

tal percentagem desce para 3,2%.

As estratégias para busca de trabalho

São bem conhecidas as carências institucionais

do nosso país no campo da orientação profissional,

da integração entre escola e trabalho e da inserçãodos jovens no mundo do trabalho. A Itália não pos-

sui, de fato, um sistema de orientação e formação

para os jovens, capilar e eficiente como o francês e

sequer estruturas formativas similares às alemãs,

que se baseiam na integração estreita entre escolae empresa e prevêem períodos de permanência dos

estudantes nas empresas.

Apesar dessas carências estruturais, os dados

disponíveis mostram um grau notável de espírito de

iniciativa dos jovens italianos. A propensão para otrabalho autônomo e a alta percentagem de entre-

vistados que viveram experiências de trabalho pre-coces desde o período estudantil induzem a consi-

derar que os jovens estejam em condições, não obs-

tante tudo, de desenvolver estratégias muito realis-

tas e “competentes” na busca de um trabalho qua-

litativamente satisfatório. Um primeiro aspecto detais estratégias consiste na definição dos limites geo-

gráficos dentro dos quais movimentar-se para ofe-

recer as próprias capacidades (tabela 4).

A disponibilidade em mudar para encontrar

trabalho ou melhorar as condições é muito eleva-

da porque abrange mais da metade dos interroga-dos e também envolve a maioria dos entrevistados,

tanto homens (61%) quanto mulheres (53%). Um

título de estudo elevado torna mais disponíveis para

a mudança, pois os mais instruídos aspiram a pos-

tos de trabalho com maior remuneração e o mer-

4 As taxas de desemprego são calculadas segundo a

definição do ISTAT: relação entre os que procuram traba-

lho e o total da mão-de-obra ativa.

Antonio Chiesi, Alberto Martinelli

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Revista Brasileira de Educação 117

cado de trabalho com altas qualificações normal-

mente é mais vasto que o de mão-de-obra genéri-

ca. De fato, enquanto entre os que têm só a 4ª sé-rie, pouco mais de um terço (37%) está disposta a

transferir-se por motivo de trabalho, tal proporção

atinge quase dois terços (64%) entre os que concluí-

ram o 2º grau e os que têm diploma universitário.

A disponibilidade para mudar para o norteengloba 64% dos jovens do sul dispostos a trans-ferir-se, enquanto a disponibilidade de ir para o sul

só envolve 34% dos residentes no nordeste, ou seja,

aqueles para quem é mais fácil encontrar trabalho

na própria zona de residência.

Recentes pesquisas comparadas internacionais

reafirmaram a preferência dos trabalhadores italia-nos em geral para as relações de trabalho autôno-

mo5. Tal preferência também é bastante visível em

nossa amostragem de jovens e diz respeito, obvia-mente, mais aos homens que às mulheres, além de

ser ligada à disponibilidade de chances, como a ori-gem social ou o nível de segurança do atual posto

de trabalho. Em particular, enquanto a área geográ-

fica de residência não parece influenciar a preferên-

cia pelo tipo de relação de trabalho, os jovens per-

tencentes a famílias burguesas e de trabalhadoresautônomos são relativamente menos propensos ao

trabalho dependente, que é ao contrário mais apre-

ciado pelos desempregados e pelos jovens que atual-

mente possuem relações de trabalho não standard 

( part-time, trabalho temporário, contrato de forma-ção e trabalho, trabalho negro etc.) (tabela 5).

Num contexto em que os jovens se acham de

fato privados de uma tutela e de uma orientação

institutcional para a entrada no mercado de traba-

lho (menos de 9% se dirige a centros de orientação),as modalidades de busca deste último mostram a

predominância de estratégias individuais e familia-

res: o posto de trabalho é procurado envolvendo a

retícula das solidariedades primárias e as ligaçõesfortes do vínculo de amizade e de parentesco (ta-bela 6). É verdade que a inscrição nas agências de

emprego abrange quase a mesma percentagem da-

queles que confiam em amigos e parentes e é a mo-

dalidade de pesquisa do trabalho mais difundida

(quase três quartos dos entrevistados), mas quemse inscreve nas agências de emprego é também mais

pessimista quanto à possibilidade de encontrar efe-

tivamente um posto e, conforme mostram muitas

pesquisas, o faz por razões que muitas vezes não têmdiretamente a ver com os objetivos ocupacionais6.

Os dados mostram ainda estratégias adapta-tivas ao mercado de trabalho. Enquanto no norte

existe um recurso mais freqüente à relação direta

com as empresas (demandas, respostas a classificados,

inserções), estimulado pelas condições mais favo-

ráveis para a oferta de trabalho juvenil, no sul e nocentro, na falta de alternativas, as pessoas se inscre-

vem sem ilusões nas agências de emprego e partici-

pam de concursos públicos com atitude cética.

Tabela 4Para encontrar trabalho ou melhorá-lo, estaria disposto a mudar de município? (%)

NO NE Centro Sul TotalNão 29,8 35,3 27,3 27,6 29,3

Sim 52,8 51,6 56,8 61,3 56,9

Depende 17,3 13,1 15,9 11,1 13,8

100,0 100,0 100,0 100,0 100,0N=2.500

5 A comparação de 11 amostragens referentes a igualnúmero de países industrializados mostra um nível mais alto

de preferência absoluta pelo trabalho autônomo na Itália (cf.Eurisko, 1993).

6 Os limites do papel desempenhado pelas agências de

emprego no mercado de trabalho são bem conhecidos. A

inscrição nas listas de emprego depende de vários fatores,alguns externos (prioridade de acesso a algumas prestações

assistenciais), outros só indiretamente relacionados à pro-cura do trabalho (obter pontos em classificações para a ad-

missão mediante concurso).

O trabalho como escolha e oportunidade

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118 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

Os jovens que já entraram no mundo do tra-balho em diversos níveis continuam a buscar estra-

tégias para melhoria da própria condição. De fato,

quase um terço (31,1%) dos empregados procura

um trabalho melhor. Esta proporção constitui, obvia-

mente, um dado médio e varia notavelmente con-forme os recursos efetivos de que o jovem já inse-

rido pode dispor, além das condições e das caracte-

rísticas do trabalho que desenvolve. Diante dos 33%

que concluíram o 2º grau e dos universitários que

procuram um trabalho melhor, evidentemente nãose contentando com o primeiro emprego que encon-

Tabela 5Grau de preferência dos jovens pelo trabalho por conta própria (%)

No conjunto: 58,8homens 65,7

mulheres 51,6

Posição empregatícia:

contrato estável 52,9contrato atípico 48,0trabalhador autônomo 76,2

desempregado 43,1

estudante 64,6Posição social paterna:

burguesia 69,1funcionário 58,0

trabalhador autônomo 61,7

operário 53,0camponês 52,9

Título de estudo:elementar 52,8

média inferior 61,0

média superior ou universitário 56,5

Tabela 6Modalidade de procura de trabalho (%)

NO NE Centro Sul Total

Influência de amigos e parentes 68,7 52,0 56,0 59,2 59,4

Cadastro em agências de emprego 33,0 33,3 46,6 72,0 57,6Participação em concursos públicos 26,1 24,0 44,0 43,2 38,6

Pedidos em empresas 45,2 40,0 43,1 26,3 33,5Resposta a classificado 37,4 29,3 32,8 28,7 30,8

Apresentação em escolas, empresas 28,7 33,3 25,9 20,0 23,8

Proteção de pessoas influentes 24,3 13,3 17,2 16,4 17,5Cadastro em centros de orientação 8,7 8,0 6,9 9,4 8,8

Colocar anuncio em jornais 7,0 12,0 6,0 4,6 6,0

N=2.500

traram, colocam-se os 46% que têm menos de 3meses de ancianidade e portanto demonstram aceitar

o posto com a idéia de mudar na primeira oportu-

nidade e 54% daqueles que de algum modo obti-

veram um posto de trabalho de baixa qualificação.

Desenha-se, basicamente, um quadro em que

a separação entre condição de emprego e condiçãoinativa, entre ocupação e desemprego, não é mais

delineada nitidamente como antes. Com freqüên-

cia os estudantes trabalham; junto aos empregados

em tempo integral, sujeitos a contrato de trabalho

indeterminado, coloca-se uma proporção significa-

Antonio Chiesi, Alberto Martinelli

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Revista Brasileira de Educação 119

tiva de trabalhadores em condições atípicas, do pon-

to de vista de contrato de trabalho e de horário.Aqueles que entram no mundo do trabalho conce-

bem o primeiro posto simplesmente como uma oca-

sião temporária, à espera de encontrar melhores

condições, tendo por base a experiência amadu-recida e a aquisição de capacidades profissionais onthe job. Em suma, os jovens dos anos 90 aprende-

ram a servir-se do mercado do trabalho para explo-

rar uma realidade ocupacional muito mais variada

do que no passado, em que o trabalho é descritível

como um continuum da atividade eventual ao postode trabalho seguro e esse continuum pode ser per-

corrido mudando o posto de trabalho com freqüên-

cia, numa situação mais móvel e flexível que no

passado, quando o posto era fixo por definição, aser alcançado de uma vez para sempre.

As condições de trabalho

Nos parágrafos anteriores nos ocupamos dasestratégias no mercado de trabalho. Vamos concen-

trar-nos agora na análise das condições de traba-

lho. O tema é tão complexo que pouco se adapta a

ser estudado de “fora”, mediante um questionário,

capaz de nos dar somente uma imagem sumária eum juízo sintético do entrevistado, sem nos permi-tir captar a extrema variedade das condições efeti-

vas de trabalho, que podem, por exemplo, dividir

os professores precários do sul dos operários das

regiões com industrialização difusa do centro da

Itália, dos funcionários do terciário urbano avan-çado de uma grande cidade do norte. Apesar dis-

so, a pesquisa permite analisar ao menos dois parâ-

metros fundamentais da prestação laboral: a retri-

buição e o horário de trabalho.

As diferenças nos valores médios das remune-

rações salariais reiteram em parte as desigualdades,emersas nas tabelas precedentes, relativas à entra-

da no mercado de trabalho: quem tem dificuldades

para encontrar um posto provavelmente terá de con-

tentar-se com um medíocre. Todavia, como se de-

duz da tabela 7, a origem social, mensurada a par-tir da posição paterna, não está em condições de

explicar as diferenças dos níveis de retribuição, co-

mo se a condição juvenil garantisse a todos pelomenos as mesmas condições de partida. Entre o que

ganha o filho do camponês e as entradas do filho

do profssional ou do dirigente não há diferenças

estatisticamente significativas. Sabemos que em pes-quisas deste tipo, as respostas sobre rendas tendem,não só a serem subestimadas, mas também a dar

uma imagem menos desigual em relação à realida-

de efetiva. Todavia, as diferenças reaparecem entre

os sexos e entre as diversas regiões do país. As mu-

lheres ganham em média um quinto (22,6%) me-nos que os homens, com um leve agravamento das

diferenças com respeito ao levantamento de 1983,

embora o nível médio de instrução delas seja, em

média, superior ao dos homens. De qualquer modo,a defasagem entre o norte e o sul foi reduzida, em-bora mantendo níveis consideráveis. Da pesquisa de

1983 resultava que um jovem trabalhador no sul

ganhava cerca de um terço (35%) menos que seus

coetâneos do resto do país. Em 1992, a diferença

foi reduzida a um quarto (-24,7%). As maiores di-

ferenças salariais permanecem, contudo, ligadas aotítulo de estudo: quem tem diploma universitário

ganha em média 50% a mais do que aqueles que

só têm a 4ª série.A desigualdade das condições de trabalho emer-

ge, de modo mais abrangente e qualitativo, da aná-

lise das diferenças na duração do período laboralque descreve não apenas a relação óbvia segundo

a qual quanto mais se trabalha mais se ganha, mas

evidencia também como na faixa do part-time7, até

29 horas semanais, existe uma enorme disparidade

das retribuições para o mesmo horário de trabalho,conforme demonstrado pelo cálculo do desvio pa-

7 Aliás, é interessante notar que essa faixa de traba-lhadores representa 17,7% do total, mas que só 3,1% de-

clara explicitamente trabalhar em regime de part-time. Taldiferença percentual demonstra a aspiração dos jovens ao

tempo integral e reforça a hipótese de que o tempo parcial

enquanto condição estável seja considerado apenas comouma solução de retrocesso.

O trabalho como escolha e oportunidade

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120 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

drão. Para horários de aproximadamente 40 horas

semanais correspondem remunerações bem mais

altas, representativas do elevamento rápido da cur-va dos valores médios e da baixa da curva do des-

vio padrão. Trata-se, de fato, da faixa de trabalhotutelado, que encontramos no mercado de trabalho

central, que os jovens almejam. Acima das 45 ho-

ras semanais, as retribuições já não aumentam nomesmo ritmo, mas os valores dos desvios padrão

recomeçam a se elevar. Isso indica que horários de

trabalho particularmente penosos implicam maio-

res desigualdades econômicas e assinalam a presen-

ça de marginalidade e desvalorização.

A essa altura, é interessante analisar as carac-terísticas sociais dos jovens que se colocam princi-

palmente nas áreas extremas do gráfico 2.4. O ho-

rário de trabalho efetivo depende antes de mais na-

da do gênero do entrevistado, pois as mulheres ten-

dem a ter horários de trabalho semanais mais cur-tos e nas faixas acima das 45 horas semanais sua

proporção é muito inferior à dos homens (18% de-

las contra 36% deles). A explicação corrente de tais

diferenças remete para o estado civil das mulheres:

Tabela 7Remuneração média por categorias relevantes em milhares

Média Geral: 1223homens 1361

mulheres 1053

Áreas de Residência:

Noroeste 1378Nordeste 1296Centro 1300

Sul 1003

Posição Paterna*:burguesia 1208

funcionário 1263autônomo 1235

operário 1194

camponês 1264Nível de estudo:

elementar 970médio inferior 1175

médio superior 1256

universitário 1444* Diferenças estatisticamente não significativas (sig=>.01).

as casadas são menos disponíveis para horários de

trabalho longos por causa dos compromissos do-

mésticos. Os dados à disposição exigem contudouma explicação um pouco mais complexa. Se é ver-

dade, de fato, que na faixa de horário standard , aoredor das 40 horas semanais, encontramos uma per-

centagem de solteiras quase igual à dos homens e

que entre as casadas a percentagem se reduz emquase um terço, abaixo das 20 horas a proporção

de solteiras equivale à das casadas e é quase o tri-

plo dos homens. Basicamente, os dados confirmam

que o horário de trabalho curto é também um in-

dicador de subemprego feminino: muitas mulherespreferem trabalhar com horário reduzido por cau-

sa de seus compromissos familiares, mas outras não

logram obter um horário maior, como veremos8.

8 A diferenciação por estado civil de homens e mu-

lheres mostra também que quase a metade das casadas(47,1%) concentra o próprio horário entre 20 e 39 horas

semanais, ao passo que mais de um quarto dos homens ca-

sados (26,8%) trabalha mais de 50 horas.

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Revista Brasileira de Educação 121

Os jovens do sul não apenas trabalham menoshoras em média, mas o horário standard de 40 ho-

ras semanais abrange a percentagem mais baixa, pois

a proporção dos jovens com horário de trabalho lon-

go (superior a 45 horas) é em média mais alta que

em outras regiões. A idade também influi no horá-rio de trabalho, no sentido de tornar progressivamen-

te mais homogêneos os regimes ao redor do horá-

rio standard em tempo integral, à medida que se pas-

sa para as faixas de idade mais avançadas. Um horá-

rio muito curto, mas também muito longo, é portan-to um indicador de marginalidade temporária para

quem entrou há pouco no mercado de trabalho.

Os jovens que realizam um trabalho autôno-

mo têm horários de trabalho semanais muito mais

longos que os colegas sob regime contratual. De

fato, 43,8% deles trabalhou mais de 45 horas naúltima semana contra 23% dos contratados. O fato

de que certas condições de trabalho impliquem ho-

rários mais ou menos longos e que certas ocupações

imponham um regime semanal específico, pode es-

tar na base da persistente segregação de gênero emmuitas ocupações, mas a tabela 8 mostra também

que a segregação contra mulheres jovens concerne

também outras dimensões, como o nível de quali-

ficação do trabalho manual e o nível de responsa-

bilidade do trabalho intelectual (empresários e pro-fissionais), com uma única exceção significativa no

trabalho de funcionários, onde a feminilização das

tarefas mais intelectualizadas supera a dos funcio-nários executivos.

Em resumo, pode afirmar-se que as gerações

jovens não constituem exceção à tradicional regra

geral que reza existirem ocupações mais ou menos

“adequadas” conforme o gênero. Tendem portan-

to a persistir os estereótipos que vêem a profissãode magistério como uma ocupação predominante-

mente feminina e o trabalho autônomo como pre-

dominantemente masculino.

A subjetividade do trabalho

O debate dos anos 70 sobre as novas tendên-

cias culturais (isto é, as tendências de então) das

jovens gerações foi condicionado pela contraposi-ção entre valores materialistas e pós-materialistas.

Neste dilema, a imagem do trabalho e seus signifi-

cados foram assumidos como um indicador con-

fiável da cultura juvenil em geral, tanto na reafir-

mação da centralidade do trabalho ou na sua ne-gação pós-materialista, quanto na sua concepção

instrumental ou realizadora. O nosso ponto de vista

é mais circunscrito. Queremos analisar as atitudes

e a imagem do trabalho em si mesmas, não enquan-

to indicadores de um sistema cultural mais vasto.Nesta ótica, o ponto de partida da análise é cons-

tituído pela distribuição das respostas relativas ao

nível de satisfação no trabalho.

Tabela 8Ocupação e respectivas taxas de feminilização

% F no TotalEmpresário, profissional liberal, proprietário agrícola 26,9

Cargo de Dirigente 40,9

Professor 85,0

Funcionário com tarefas mais intelectualizadas 60,0Funcionário executivo 51,5Operário qualificado 27,4

Artesão 40,7

Comerciante 23,1Aprendiz, trabalhador a domicílio 25,0

Ajudante 37,4Outros 73,5

Total 43,6

O trabalho como escolha e oportunidade

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122 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

Na pesquisa de 1992, levada a cabo, confor-

me foi dito, em condições de mercado de trabalho

decididamente melhores do que aquelas que carac-

terizaram as edições anteriores da pesquisa, o grau

de satisfação declarada não aumentou, porém tor-nou-se mais moderado e ponderado. De fato dimi-

nuíram os entusiastas (os muito satisfeitos baixa-

ram de 28,7% em 1983 para 25,3%), mas também

os insatisfeitos (passaram de 26,6% para 21,2%).

Assim, prevalecem os juízos matizados, ao passoque são confirmadas as relações entre nível de sa-

tisfação e área geográfica. Mesmo permanecendo

nuançada, a avaliação é muito influenciada pelo

nível de instrução: os menos instruídos estão bem

mais insatisfeitos, enquanto a posse do diploma uni-versitário aumenta igualmente o nível de satisfação

(tabela 9).

A satisfação com o trabalho também se rela-

ciona positivamente com o ganho mensal (os mui-

to satisfeitos ganham em média 1.374.000 de liras

contra 936.000 dos não satisfeitos) e com a origemsocial do entrevistado. Demonstrando coerência

com o modelo de racionalidade estratégica, os me-

nos satisfeitos estão também mais propensos a trans-

ferir-se para melhorar sua condição. Se compara-

do com pesquisas análogas de amostragens repre-sentativas de toda a população9, o grau de satisfa-

ção no trabalho expresso pelos jovens não se afas-

ta substancialmente daquele dos colegas mais ve-

lhos. De fato, as perguntas que visam simplesmen-

Tabela 9Satisfação no trabalho (15-29 anos)

NO NE Centro Sul TotalNenhuma 6,1 1,7 7,5 10,4 6,5

Pouca 9,0 7,3 14,1 21,7 13,3

Não sabe 0,9 0,9 1,0 1,2 5,7

Suficiente 53,0 59,0 54,8 49,5 50,8Muita 31,0 31,2 22,6 17,2 23,7

100,0 100,0 100,0 100,0 100,0

N=1.257

te a medir o nível absoluto de satisfação no traba-

lho pecam por escassa variação e tendem em geral

a deslocar a distribuição das respostas sobre valo-

res correspondentes a outros níveis de satisfação

declarada. Este fenômeno é bem conhecido e estáligado ao fato de que o juízo sobre o próprio tra-

balho equivale em parte também a um julgamento

sobre si mesmos, envolvendo a imagem e a identi-

dade pessoal. A medida correta do nível de satisfa-

ção no trabalho deve por isso ser cotejada com ou-tras grandezas de valor.

Conforme discutido em outra parte do livro10,

no interior da tipologia dos valores apresentada, o

trabalho é colocado no terceiro lugar em ordem de

importância, depois da família e das amizades/ amor. O trabalho conta mais que o tempo livre, queo estudo e a cultura, que o compromisso social,

religioso e político. É interessante notar que, em

relação às pesquisas anteriores, o valor atribuído ao

trabalho perde a segunda posição e é superado pelo

concernente aos afetos (amizade e amor). A perdada importância do trabalho em relação a outros

objetivos é, em nossa opinião, atribuível à obten-

ção do pleno emprego e, em conseqüência, deveria

ter um caráter conjuntural. Em particular, podem

ser feitas duas previsões para o futuro, tendo porbase uma interpretação conjuntural ou uma estru-

tural. A interpretação conjuntural sugere que a pio-

ra das condições ocupacionais juvenis deveria au-

9 Cf. Ceri (1988) e Chiesi (1990).

10 Ver a propósito o capítulo terceiro e, em particu-

lar, a tabela 3.1.

Antonio Chiesi, Alberto Martinelli

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Revista Brasileira de Educação 123

mentar a importância relativa do trabalho com re-

lação a outros aspectos da vida. A hipótese estru-tural, que se baseia sobre a perda progressiva da

importância do trabalho a longo prazo, reforçaria

ao contrário as interpretações pós-materialistas da

cultura juvenil.A análise das hierarquias de valores feita por

categorias relevantes de entrevistados não parececontudo dar muito crédito a este tipo de interpre-

tação. Percentuais de entrevistados acima da média

geral que consideram o trabalho “muito importan-

te” estão presentes entre aqueles que não atingiram

ainda uma posição satisfatória, como os jovens àprocura do primeiro emprego (72%) e os trabalha-

dores ocasionais (79,1%). Também os jovens do sul

atribuem uma importância relativa maior ao traba-lho em relação aos jovens do norte (65,1% contra

57,1%), provavelmente por causa de sua maior es-cassez relativa. Porém, os modelos de resposta não

devem induzir a pensar que o trabalho seja mais

importante só para aqueles que visam obtê-lo ou

conseguir um outro melhor. Também os que desen-

volvem atividades gratificantes e realizadoras, como

os empresários (73,8%) e os profissionais (76%),consideram o trabalho muito importante. Mais em

geral, a importância atribuída ao trabalho crescecom o aumento do título de estudo.

Em suma, os resultados da pesquisa colocam

em evidência que não nos encontramos perante o

declínio da importância do trabalho, mas assistimosà transformação de sua concepção. De fato, a hie-

rarquia dos aspectos mais importantes do trabalho

sofre uma mudança ainda mais significativa em rela-

ção às precedentes edições da pesquisa. Já tinha sido

levantado11 que as opiniões dos jovens se dividementre uma concepção tradicional do trabalho, que

assume sua valência instrumental, e considera por-

tanto o rendimento como o aspecto mais importan-

te, e uma concepção realizadora, colocada mais alto

na escala da evolução das necessidades. Com os

anos 90, o crescimento dos níveis de instrução e aevolução das condições de trabalho juvenil conduzi-

ram ao predomínio da concepção realizadora sobre

a instrumental, conforme demonstrado pela inversão

na classificação das duas concepções (tabela 10).O interesse pelo aspecto reditício do trabalho

aumenta quando se considera o sul e entre os jovensde extração social mais modesta. O título de estu-

do influi muito na imagem do trabalho. Com o au-

mento da titulação cai o interesse pelo rendimento

(os jovens que têm apenas a 4ª série colocam a re-

muneração em primeiro lugar, os que concluíramo segundo grau, em terceiro lugar), pela qualidade

das relações com os companheiros de trabalho e

com os superiores e pelo horário e aumenta o inte-resse pela dimensão realizadora, como a possibili-

dade de melhorar a própria posição e sobretudo apossibilidade de aprender coisas novas e exprimir

as próprias capacidades (primeiro lugar entre os que

concluíram o segundo grau, terceiro para os jovens

só com quarta série).

Em resumo, o trabalho perde uma posição sig-

nificativa na competição com outros valores exis-

tenciais, mas adquire uma dimensão mais aprecia-

da na aspiração qualitativa. O trabalho passa a sercada vez menos uma necessidade cansativa, a ser

conquistada, para reduzir os efeitos negativos de sua

ausência, mas tampouco passa a ser neutralizado ou

circunscrito, uma vez obtido, para reduzir os efei-tos negativos de sua presença.

A tabela 11 exemplifica esta atitude através da

análise das respostas à alternativa entre duração do

horário de trabalho e remuneração. A maior parte

dos entrevistados gostaria de trabalhar mais e ga-

nhar mais, porém, para os que têm diploma de 2ºgrau e universitário tal propensão se reduz sensivel-

mente, embora permaneça majoritária. Também a

idade influi sobre a alternativa entre horário e sa-

lário. A aspiração dos jovens é de chegar logo a uma

integração completa no mundo do trabalho, porisso os jovens, que de fato trabalham menos, pre-

feririam trabalhar mais para ganhar melhor.

Tal propensão se reduz com a idade, por cau-

11 Ver em especial a interpretação dos dados propos-

ta na edição anterior do relatório (cf. Cavalli e de Lillo,1988).

O trabalho como escolha e oportunidade

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124 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

Tabela 10Gradação dos aspectos mais importantes no trabalho

1. Possibilidades de aprender coisas novas e exprimir as próprias capacidades2. O salário, o rendimento

3. A possibilidade de melhorar (rendimento e tipo de trabalho)

4. As condições de trabalho (ambiente, tempo de transporte etc.)

5. Boas relações com os companheiros de trabalho6. Boas relações com os superiores, com os chefes7. A possibilidade de viajar muito

8. O horário de trabalho

Tabela 11Gostaria de fazer menos horas ganhando menos ou ganhar mais fazendo maior número de horas?

Elementar Médio Inf. Médio Sup. Universitário Total

Menos horas 13,6 19,7 29,4 28,3 24,1

Mais horas 72,7 63,3 52,0 56,6 58,2Não sabe 13,6 17,0 18,6 15,1 17,7

100,0 100,0 100,0 100,0 100,0N=1257

sa da obtenção progressiva de uma posição de tra-

balho estável e em tempo integral. De fato, 65% dos

jovens que trabalham há menos de dois anos gos-

tariam de trabalhar mais, contra 49,5% daqueles

que estão empregados há mais de 4 anos.

Assim, pode afirmar-se que a racionalidade

ativa com que os jovens enfrentam sua relação como trabalho parece emergir de um capítulo sobre o

individualismo metodológico de um manual qual-

quer de sociologia. O trabalho é des-ideologizado,

os ideais de realização e autonomia deixam espaçotambém para atitudes moderadamente oportunis-

tas (basta pensar, por exemplo, que 65% dos en-

trevistados condena o absenteísmo no trabalho co-

mo inadmissível, mas apenas 50% se declara alheio

ao fenômeno) e também os interesses são buscadosnuma lógica predominantemente individual, como

fica evidente pelo fato de que somente 8,2% dos

empregados sob regime contratual participou nos

últimos 12 meses de atividades sindicais, ao passo

que um percentual maior de autônomos (11,7%)aderiu a atividades das respectivas associações de

categoria. Numa lista de 15 organizações, grupos

associações e iniciativas coletivas, o sindicato apa-

rece exatamente no último lugar no interesse dos

entrevistados, depois dos clubes desportivos, dos

escoteiros e das associações turísticas. Estas dados

estão sincronizados com o que emerge do Euroba-

rômetro de 1990, dedicado aos jovens dos países da

União Européia, que mostra o nível de sindicali-zação italiana de 2,1% semelhante ao da Espanha

(1,8%) e da França (2,2%), ao passo que os paísesem que os jovens são mais sindicalizados atingem

apenas 10% como na Alemanha e na Inglaterra. No

panorama europeu de declínio da participação sin-dical, os jovens representam o componente mais

crítico. A situação é particularmente grave na Itá-

lia, pois, comparando as taxas de sindicalização

abrangentes, estimáveis ao redor da média européia

de 40% na segunda metade da década de 80, a sin-dicalização juvenil é relativamente muito baixa, si-

milar à de países como França e Espanha, em que

a taxa de sindicalização do conjunto aparece mais

baixa em absoluto, ao redor de 15%. Portanto, é

preciso explicar o relativo distanciamento maior dosjovens do sindicato em nosso país.

Em geral, foi verificado de forma confiável12

12 Cf. Accornero (1992).

Antonio Chiesi, Alberto Martinelli

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Revista Brasileira de Educação 125

13 Diante da pergunta sobre o grau de confiança

concedido a 13 diferentes instituições e figuras sociais,o sindicalista ocupa apenas o décimo lugar.

14 Por exemplo, a taxa de sindicalização dos tra-

balhadores dependentes que consideram mais importan-te o salário e as condições de trabalho supera 10%, ao

passo que entre os jovens que buscam sobretudo ocasi-

ões para aprender a exprimir as próprias capacidades,a taxa de sindicalização cai abaixo de 5%.

que os sindicatos na Itália permaneceram estranhos

ao segundo milagre econômico da década de 80, oque permitiu aos jovens entrar no mercado de tra-

balho. O sindicato de fato defendeu sempre o em-

prego das grandes empresas, onde a contratação de

jovens foi marginal nos últimos 10 anos e viu o de-senvolvimento da pequena empresa dispersa e doterciário como uma vitória das tendências desre-

guladoras e neo-conservadoras do capital.

Igualmente nas grandes fábricas, a represen-

tação sindical de base permaneceu muito tempo im-

permeável à troca da força de trabalho, por causa

de uma incapacidade generalizada de renovar osconselhos de delegados, os quais ficaram por mui-

to tempo como expressão dos segmentos anciãos da

força de trabalho. Assim, não causa surpresa queos jovens de nossa amostragem associem, no grau

de confiança concedido, a imagem do sindicalistaàquela, bastante deteriorada, do funcionário esta-

tal, da classe política e dos membros do governo13.

Os sindicatos se colocaram tradicionalmente obje-

tivos concretos de tutela do salário, de redução do

horário e de melhoria das condições de trabalho e

nestes campos obtiveram, no passado, resultadossignificativos e amplo consenso das bases. A pesqui-

sa mostra que os jovens não são insensíveis a tudoisso, pois as taxas de sindicalização aumentam sig-

nificativamente entre aqueles que partilham uma

concepção instrumental do trabalho. Mas é tambémverdade que, conforme foi dito, tal concepção ten-

de a ser substituída pelo trabalho enquanto opor-

tunidade de realização14. Sobre tal objetivo os sin-

dicatos ainda não souberam oferecer nada aos tra-

balhadores, inclusive porque estes têm sido procura-

dos de forma eficaz recorrendo a estratégias indi-viduais, bem mais que coletivas.

Referências bibliográficas

ACCORNERO, A., (1992). La parabola del sindacato. Bo-lonha: Il Mulino.

CAVALLI, A. e DE LILLO, A., (1988). Giovani anni 80.

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Bolonha: Il Mulino.

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MINISTERO DEL LAVORO, (1992). Lavoro e politichedell’ocupazione in Italia. Rapporto 1990/91. Roma:

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O trabalho como escolha e oportunidade

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126 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

Este trabalho se organiza em torno de três hi-

póteses que se relacionam: a) o caráter das trans-

formações vividas no Chile, particularmente no se-

tor agro-exportador, e o jovem rural moderno que

dali surge; b) o tipo de ação estatal e social que se

desenvolvem em vista das características deste no-vo personagem; e c) o perfil particular destes tra-

balhadores e a organização e movimento social que,

em conseqüência, deles surgem1.

Jovens Temporeros2 e aReestruturação Econômica

A hipótese central desta seção sustenta que há

uma correspondência entre os jovens deste mundo

Juventude temporeraRelações sociais no campo chileno depois do dilúvio

Gonzalo Falabella Corporação Mancomunal

Tradução de João Carlos B. Alves de Lima 

1 O marco mais amplo dentro do qual se desenvolve

este trabalho se encontra em Gonzalo Falabella, (1993),

“Reestructuración y respuesta sindical: la experiencia enSanta María, madre de la fruta chilena”, em Revista de Eco-

nomia y Trabajo, Nº 2, Segundo Semestre.

2 Temporero: trabalhador rural que encontra serviçosó em algumas épocas do ano e trabalha sem vínculo empre-

gatício formal. A realidade brasileira, tem no “bóia-fria” o

seu equivalente. (N.T.)

moderno que surgiu no campo chileno e o caráterda reestruturação da economia, que exige enorme

flexibilidade nas relações de trabalho e que, justa-

mente, é uma das características principais destes

jovens, particularmente das mulheres. Cabe assina-

lar que no Chile a reestruturação que teve início hámais de 20 anos, está concluída e abarcou também

o Estado, a Sociedade e a Cultura em seu conjun-

to, diferentemente de outros países onde este pro-

cesso é recente e basicamente econômico. No cam-

po chileno a profunda reestruturação que resultouda contra-reforma agrária e o fomento das expor-

tações horti-frutícolas e florestais têm correspon-

dência com a profundidade da mudança social vi-

vida pelo setor agrário.3

Os jovens são, por sua idade e circunstâncias

de trabalho e vida, mais maleáveis e permeáveis aesta profunda flexibilização de sua existência, em

3 Ver, Falabella, G. (1994), “Temporeros y Campe-

sinos en América Latina. Podán reorganizarse? Cómo?”,trabalho apresentado no Seminário “Social Change in Latin

America. Towards the year 2.000”, Universidade de Ma-

ryland, College Park, USA, 8 e 9 de abril.

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Revista Brasileira de Educação 127

particular das relações trabalhistas trazidas pela

economia exportadora. Um bom indicador da pro-fundidade da flexibilização ocorrida é o fato de os

contratos de trabalho temporários no setor frutícola

serem de uma a três semanas, por empreitada, por

tipo de fruta e, muitas vezes, em distintas proprie-dades. Isto se dando ao longo de uma temporadaque dura de 4 a 6 meses cada ano, tendo o traba-

lhador de em seguida deslocar-se para outro traba-

lho, muitas vezes em outra região. Todavia, esta

grande maleabilidade, não impede que a relação de

trabalho com o produtor ou packing  4 dure muitasvezes vários anos.

Em 1985-1987 realizei um estudo nos três se-

tores onde o trabalho temporário se implantou em

toda sua profundidade: o florestal, o produtor debeterraba (principal setor do mercado interno) e o

frutícola5. Em relação à profundidade da reestrutu-ração, à desarticulação da vida social e exigência de

flexibilidade do trabalhador, a mais extremada era

a do setor florestal. Nem sequer existia ali uma re-

lação direta entre as empresas e os trabalhadores, já

que ela se dava exclusivamente através de contra-

tistas6. Estes intermediários das relações trabalhis-tas eram eles mesmos temporeros, já que as tarefas

básicas no setor florestal duram três meses, mais oumenos, cada uma (plantações de inverno, colheita

— ou seja a derrubada ou roçagem — e construção

de aceiros — a limpeza dos limites do bosque duranteo outono). No tipo de produção em questão, em que

se trabalha intensamente por 15, 20, 25 anos, o gru-

po de trabalho vai mudando de contratistas, de re-

gião e de empresa a cada três meses. O resultado é

que nem sequer existe um mesmo coletivo que con-

tinue trabalhando com um mesmo contratista ou

com uma mesma empresa de um lugar para outro.A vida social chega assim a sua mínima expressão.

No setor produtor de beterraba esta situação

era mais estável devido ao caráter anual do cultivo.

Inclusive o trabalho mais intensivo não se dava naépoca de colheita, no inverno, mas durante a roça-

gem, no verão. Também neste setor se constatava adesestruturação da vida social — embora não no

nível encontrado no setor florestal — isto por que

aos “trateros”7, migrantes de outras zonas, não se

permitia residir na propriedade com suas famílias,

temendo o patrão que surgisse uma organização sindi-cal ali, como ocorreu no passado. Surgiu assim um

mercado de trabalho local baseado nestes migrantes,

que lhes permitiu negociar individualmente suas con-dições de contratação8. Havia migrantes das zonas

mapuche, pré-cordilheranas e costeiras, homens sós,amontoados em “coletivos” dentro das proprieda-

des, como fizeram anos atrás os “torrantes”9.Isto lhes

possibilitava, ao menos em parte e enquanto dura-

va o contrato — às vezes por até um ano — recons-

tituir sua vida social, deslocada pela distância de suas

famílias, povoados ou bairros de origem.

No setor frutícola, pelo contrário, surgiram mer-

cados locais de trabalho estruturados com a popu-lação local, nos Vales do Norte e Centro do país —

com exceção dos extremos de Curicó e Copiapó10

—, ainda que a demanda de trabalho não ultrapas-

4 Packing : na cadeia de produção da fruta, é a seção

de acondicionamento e empacotamento das frutas após acolheita. (N.T.)

5 Falabella, G. (1990), “Trabalho Temporal y Desor-ganización Social”, em Proposiciones, Nº 18.

6 Contratistas: são arregimentadores de trabalhado-

res temporários para as propriedades de produção agríco-la; têm seu equivalente na realidade do campo do Brasil na

figura do “gato”. (N.T.)

7 Tratero: temporero do setor produtor de beterraba.

(N.T.)

8 Falabella, G. (1970), “Desarrollo del capitalismo yformación de clase: el torrante en la huella”, em Revista

Mexicana de Sociología, Nº 32:1.9 Torrantes: denominação dada aos trabalhadores agrí-

colas temporários até 1973, período anterior ao golpe mi-litar que derrubou o governo Allende. (N.T.)

10 Rodríguez, D. e S. Venegas (1990), De Praderas a

Parronales, GEA/Uneversidad de Humanismo Cristiano,

Santiago do Chile; e Venegas, S. (1992), Una gota al dia...Un chorro al año. El impacto social de la expansión fru-

tícola, GEA/Universidad de Humanismo Cristiano, Santia-go do Chile.

 Juventude temporera

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128 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

sasse os seis meses, diferentemente dos setores flo-

restal e da beterraba. Também, em contraste comestes dois últimos setores, aqui existiam povoados

rurais ou cidades relativamente importantes ao re-

dor dos vales frutícolas, que vão desde o Huasco ao

Cachapoal. Em conseqüência, neste setor a desestru-turação social era bem menor, existindo, ademais,uma proximidade entre o lugar de trabalho e o de

residência. Sem dúvida, o tipo de trabalho exigia uma

flexibilização bastante profunda também, porque a

labuta era muito intensa e durava até 6 meses. Nos

outros 6 meses era preciso migrar para os vales ondenão existiam estes mercados locais, como é o caso

de Copiapó, o que desorganizava novamente a vida

social, já desorganizada durante o verão quando o

trabalho do homem se realizava durante o dia e oda mulher durante a tarde e a noite, não podendo ocasal temporero encontrar-se nem sequer em casa:

ela chegava às duas horas da manhã e ele se levan-

tava às seis. Em Copiapó os temporeros migrantes,

de Aconcágua e de outras regiões próximas a Santi-

ago, devem organizar sua sobrevivência como me-

lhor puderem. Houve casos de violações de homensjovens em espaços sociais onde as mulheres são maio-

ria, relatados por espantados dirigentes camponeses

nacionais em visita à região!As mulheres são maioria na fruticultura (52%

—e 62% em Aconcágua—) e dominaram sem con-

trapartida a vida do packing e dos povoados tem-poreros durante as noites nos últimos 10 a 15 anos.

Surgiu ali uma cultura feminina bastante consolida-

da, destas “mães da noite” que trabalham durante

as horas da liberdade. Fala-se de protagonismo, não

somente dos jovens mas também das mulheres, quecumprem o papel fundamental na produção, pois

realizam um trabalho mais especializado e manejam

a fruta quando já está cortada e deve ser embalada

no mesmo dia, como ocorre no caso da uva. Em conse-

qüência, elas têm um controle decisivo sobre o pro-cesso produtivo, porque as mulheres manipulam a

fruta em sua etapa mais vulnerável, e a fruta corta-

da e deixada ao sol é poder de negociação em suas

mãos! Por isso mesmo, obtêm maiores salários que

os homens. São até 3 meses de trabalho noturno —

além dos 3 meses que dura a poda— durante 10, 12,

15 anos. Em geral os grupos vão se repetindo anoapós ano e com eles o fluxo de cumplicidades entre

estas mulheres. Nos packings de noite trabalham

quase somente mulheres, só com a presença de um

capataz, sem o patrão. Foi surgindo ali uma cultu-ra e perspectiva trabalhista feminina. Suas deman-das como assalariadas e um sentido de dignidade de

setor de ponta (por trazerem as divisas ao país e não

serem remuneradas de forma equivalente —”produ-

zimos em dólares e ganhamos em pesos”—) se mes-

clou durante anos com suas reivindicações de gêne-ro e de mães, devido às tensões decorrentes de terem

abandonado os filhos para poderem trabalhar. Isso

permite compreender sua peculiar cultura e espíri-

to rebelde, mais acentuado que o do homem. Em San-ta Maria, depois de sete anos de vida sindical, de umtotal de cinco, quatro dirigentes são mulheres.

Por serem mais abertos à reestruturação, o ca-

pital sempre busca os setores mais débeis e/ou mais

flexíveis, como os jovens e as mulheres, para impor-

lhes o peso e o custo da transformação em marcha.

Mas há efeitos inesperados. As mulheres jovens de-

senvolvem durante seu trabalho noturno, paralela-mente, “espaços de liberdade” em seus packings e

povoados. São horas em que dorme o patrão, dor-mem o padre, o prefeito e o policial, dormem seus

familiares, e o packing , o povoado e o bairro lhes

pertencem. Esta cultura da liberdade no trabalho eno bairro, durante a temporada, permeia suas vi-

das dando um perfil peculiar a estas jovens mulhe-

res assalariadas da produção da fruta.

A reestruturação feita sobre os ombros dos

jovens e mulheres não é impedimento para que exis-

ta, paralelamente, um grau de satisfação curiosa-mente bastante alto no trabalho11, provavelmente

11 Díaz, E. (1991), Investigação participativa acerca

das trabalhadoras temporeras da fruta, O Canelo de Nos,

Chile. A resultados similares chegou a análise do “focusgroup” de mulheres temporeras em um estudo feito pela

Corporação Mancomunal para a Fundação Ford: “Desar-rollo con la gente, con la naturaleza en el Valle de Aconcágua

(sus provincias “temporeras” de San Felipe y Los Andes).

Informe de investigação não publicado, janeiro de 1995.

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Revista Brasileira de Educação 129

(e quem sabe justamente), porque existem estes es-

paços peculiares de liberdade. Isto ajuda a explicara incorporação massiva desta população assalariada

durante a temporada e o fato dela ser submetida a

condições de trabalho extremas e desregulamen-

tadas. Ou seja, existe uma adequação entre o tipode demanda de trabalho, a necessidade de flexibili-zar suas relações e um espírito juvenil permeável à

mudança, em particular aquele da jovem mulher

temporera.

Entre o fim do populismo e o Estado Liberal:relações catalisadoras, facilitadoras.

A segunda hipótese estabelece a adequação que

existe entre a flexibilização das relações de traba-lho, este tipo de jovem trabalhador —permeável às

mudanças econômicas e trabalhistas, com uma cul-

tura individualizada, de liberdade e autonomia— e

o tipo de resposta que requer por parte das insti-

tuições que trabalham com ele. Por exemplo, o pa-pel catalisador do programa de cuidado de crian-

ças criado pela Casa do Temporero, e o papel fa-

cilitador de um Estado que contrata assessoria dessa

instituição e expande o programa a sete vales fru-

tículas articulando empresários e temporeros, supe-rando assim práticas de indiferença liberal, tantocomo de populismo assistencialista e clientelista.

Oito anos atrás o autor que escreve este artigo

criou esta organização não governamental (ONG),

A Casa do Temporero, na Comuna de Santa Ma-

ria em Aconcágua, a 80 km de Santiago e Valpa-

raiso, com o objetivo de responder ao processo deflexibilização, que trouxe extrema desregulamen-

tação a estes trabalhadores. No estudo já nomea-

do12, por mim presidido, a situação se caracterizou

como “a institucionalização da desconfiança, da

incerteza e da desorganização social”, efeito da açãotransformadora do regime militar em reação às po-

líticas de um governo marxista. O resultado foi uma

reestruturação muito profunda da vida social. Fala-

se da institucionalização da desconfiança, pois o

sistema de relações entre trabalhadores e empresá-rios é muito precário, baseado em vínculos efême-

ros. Esta flexibilização extrema pode ser simboli-

zada, como já fizemos nas páginas anteriores, pela

duração dos contratos de trabalho: no setor da be-terraba são por “acordos” e praticamente ao dia;no florestal, são de três meses, incluindo até os con-

tratistas, que também têm contratos de três meses;

e no setor da fruta, as contratações são no máximo

por três semanas, por acordos e por tipo e varieda-

de de fruta. Estes contratos curtos são absurdos,porque os trabalhadores tendem a se repetir ano

após ano nos mesmos packings e propriedades, da

mesma forma que é absurdo o trabalho por emprei-

tada em um produto onde a qualidade é decisiva.A experiência da Casa do Temporero definiu-

se como “um lugar de encontro” deste mundo dotrabalho juvenil disperso, através de programas que

iam ao coração de suas necessidades, como o cui-

dado de crianças e informação sobre leis trabalhis-

tas para suas mães trabalhadoras, e festas durante

a colheita, já que não há nenhuma outra possibili-

dade de que se “encontrem” as pessoas durante overão senão através destes programas. Quando se

trabalha 12 ou 14 horas durante 6 dias da semananão cabe ministrar cursos sobre a historia social ou

política do Chile. Isso se realizou através da Esco-

la de Inverno, que ofereceu estes e outros cursos decaráter técnico. O objetivo foi abrir um espaço para

a reorganização social de sujeitos muito individua-

lizados, e foi alcançado só na medida em que se

combinaram estratégias que cobriram demandas

individuais e sociais.

Com efeito, após 3 meses do estabelecimentoda Casa, surgiu um sindicato de grande influência.

Nasceu de uma greve muito dura e vitoriosa no

 packing de uma das grandes exportadoras. As mu-

lheres sentem o sindicato como algo próprio (“nós

o formamos, porque vocês (os homens) não se atre-veram...”), diferentemente de tantos outros setores

produtivos, a ponto de hoje, como já observamos,

80% de seus dirigentes serem mulheres. O Sindicato

nasceu com um grande índice de sindicalizados,12 Ver nota 5. (N.T.)

 Juventude temporera

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130 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

chegando a representar 35% da força de trabalho

temporera do município, enquanto que nos outrosmunicípios do país a sindicalização temporera não

chegava a 1%. Mas, no ano seguinte, as jovens mu-

lheres dirigentes dessa greve, e núcleo central do

sindicato não foram reincorporadas ao trabalho.Quando nós indagamos, como Casa do Temporero,porque elas aceitavam esta repressão e não defen-

diam a organização, a resposta foi: “eu não vou me

humilhar frente a esse sujo; em qualquer  packing 

do Vale me dão trabalho”. A nossa lógica foi de-

fender a organização; a delas, respeitarem-se a simesmas. Primeiro está o “eu”, como dizem elas, e

depois a organização: dois projetos, duas experiên-

cias, duas classes sociais (trabalhadoras e profissi-

onais) que se encontravam e negociavam os termosde sua colaboração.

O relato reflete o diálogo de duas culturas, ados anos sessenta, representada por nós, os profis-

sionais e “professores sindicais” que trabalhavam

no projeto, e a dos noventa, em particular a deste

jovem, esta nova mulher jovem assalariada, surgida

da radical reestruturação flexibilizadora do traba-

lho na fruticultura de exportação. Outro exemplodesta nova cultura emergente se deu quando se for-

maram os grupos de mulheres jovens no interior doSindicato, apoiados pelos programas de mulheres

da Casa do Temporero. O primeiro tema que sur-

giu nestes espaços femininos foi a reafirmação dopessoal: o “eu”, porque, em suas palavras, “se es-

tou bem, a casa está bem, as crianças estão bem, a

família está bem”.

Surgiu assim a necessidade de institucionalizar

no projeto profissional, na organização social e na

relação do Estado com elas, novas formas que dêemexpressão ao eu individual e seu ser social. Anterior-

mente tudo era social e a pessoa se dissolvia na mas-

sa perdendo seu perfil particular. Neste mundo emer-

gente o individual precede ao social. Mas também

colocamos, como Casa e como Sindicato, o direitoà negociação coletiva dos temporeros antes da tem-

porada, pois sem este direito a organização sindi-

cal, embora exista formalmente, não terá sentido.

O sindicato existe para negociar, para melhorar as

condições de vida e trabalho. Do contrário conti-

nuarão as práticas atuais em que a ação coletivatrabalhadora terá só uma existência pontual e efê-

mera: por volta do 1 de fevereiro, que é o pico da

temporada frutícola em Aconcágua, as mulheres

jovens param às 2 da tarde e a fruta cortada pelamanhã fica exposta ao sol. A cada minuto que passaos salários sobem 1% e trabalhadoras e empresá-

rios chegam a um acordo em não mais do que 20

minutos. Depois, não há mais o que conversar, o

coletivo se desmonta, a qualidade da fruta segue

baixa, assim como sua participação nos mercadosinternacionais, e os temporeros seguem sem previ-

dência social, sem comida, transporte adequado,

saúde, durante todo o ano, nem moradia adequa-

da, menos ainda trabalho fora da temporada. Des-ta maneira o sindicato não tem sentido. Este siste-ma de desproteção se institucionalizou durante os

duros anos da ditadura, no qual o desemprego che-

gou a mais de 30%.

Estas variadas necessidades até hoje não en-

frentadas tornam necessário estabelecer, através de

outra lei, um sistema de serviços com financiamento

provavelmente tripartite (por exemplo, que envol-va municípios — para o que seria necessário pos-

tular um fundo nacional para este fim —, empre-sários e trabalhadores), com contribuições iguais

para cada um e a exigência de contribuição do ter-

ceiro quando as outras duas partes tenham levan-tado os recursos.

Realizamos um segundo diagnóstico depois de

uma primeira experiência de três anos e descobri-

mos que, após o grande dilúvio, houve uma “Arca

de Noé” da qual saíram alguns animaizinhos que

começaram novamente a repovoar a terra, comoestá dito na Sagrada Escritura13. Assim, depois da

atomização e desorganização social que se seguiu

13 “Organizarse y sobrevivir en Santa María. Demo-

cracia social en um sindicato de temporeros e temporeras”.

Trabalho apresentado no 47º Congreso Mundial de Ame-ricanistas, Nova Orleans, USA, 7-11 de julio de 1991. A ser

publicado em inglês sob o título “Conspiracy spaces andunion democracy in Santa María”, Jonathan Fox, ed. MIT.

Gonzalo Falabella

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Revista Brasileira de Educação 131

à des-reforma agrária, reapareceu a vida social en-

tre essas mulheres dos packings e a população tra-balhadora da noite, e em seus povoados e bairros

de periferia começou a reemergir uma nova vida

social e a refazer-se uma nova convivência. Isso não

ocorre na fruticultura de Copiapó, nem na zonaflorestal, nem na zona da beterraba, pois não exis-tem ali mercados de trabalho locais instituciona-

lizados em torno aos povoados temporeros, como

nos demais vales frutícolas. Mas onde existiam es-

tes povoados e novos mercados de trabalho locais,

após 10, 12 e 15 anos, surgiu novamente a vidasocial, com novas lealdades, novas solidariedades,

novas cumplicidades, ainda que o individual tenha

primado sempre como eixo da vida social.

Desde 1993 o Serviço Nacional de Capacita-ção e Emprego (SENCE), recolhendo a experiência

desenvolvida em Santa Maria, criou uma linha es-pecial de capacitação para trabalhadores tempore-

ros durante a baixa estação nos três vales (Aconcá-

gua, Maipo, Cachapoal), onde se reproduziu a ex-

periência da Casa do Temporero, com o apoio do

Governo da Noruega e o Ministério de Agricultu-

ra14. Isso permitiu começar a enfrentar deficiênciasde capacitação próprias à fruticultura (com o cur-

so sobre manejo integral de frutas, por exemplo),assim como o desemprego de inverno (com os cur-

sos de alvenaria, hotelaria, secagem de frutas, ges-

tão de microempresas).

A partir dos egressos do curso de alvenariapropusemos a criação de uma bolsa de trabalho.

Esta foi uma forma de responder aos empresários

que, acossados pelo surgimento dos contratistas que

os estavam despojando de sua mão-de-obra local e

cativa, pediram que formássemos essas bolsas paraque os temporeros não se comprometessem com

aqueles, seja para a temporada de Copiapó ou local-

mente. Assim, os temporeros chegarão, através dacapacitação, em muito melhores condições para ven-

der sua força de trabalho, podendo desenvolver, in-

clusive, formas coletivas de contratação. No curso de

alvenaria, por exemplo, também recebem formaçãoem negociação coletiva na seção de leis trabalhistas.

O programa Casa do Temporero foi concluí-do depois de institucionalizar um trabalho de duas

Confederações e três ONGs, as Corporações de De-

senvolvimento, nestes três vales, incluindo nove se-

des, dois programas nacionais (cuidado de crianças

e capacitação na baixa temporada), duas leis nacio-nais (direitos básicos e corresponsabilidade dos pro-

dutores e contratistas) e a negociação coletiva em

discussão atualmente no Congresso.Foi iniciado um novo ciclo no trabalho pro-

fissional com os temporeros, centrado agora na que-

da do emprego de temporada e no desemprego depós-temporada. Para isso concluiu-se recentemen-

te um estudo para a Fundação Ford acerca da crise

econômica do Vale de Aconcágua (o primeiro a re-

converter-se, há mais de 15 anos, à fruticultura da

uva de exportação), sobre os atores sociais e gover-

nos locais com que se conta para se fazer frente a

esta crise, e os caminhos de saída para ela. Quan-do se atravessa o túnel de Chacabuco, aparece o

Vale como um só parreiral, o que traz dificuldades

quando cai o preço da uva, quando se saturam os

mercados. Ainda mais que os parreirais concluíramseus 15 anos de vida útil, sem que se tenha pago as

inversões iniciais —o que os deixa sem acesso ao

crédito— sem renovar os pomares; ademais, surgi-

ram variedades de uva muito mais competitivas,

produzidas em outros vales, para mercados maiscompetitivos, com melhor tecnologia e fácil acesso

ao crédito (muitas vezes pelas próprias exportado-

ras de maior envergadura — que ao todo não são

mais de cinco).

O estudo —baseado em uma de suas partes em

“focus groups” de produtores, empresários não fru-tícolas, camponeses produtores para exportação,

temporeros/as e trabalhadores permanentes— con-

clui que a saída para a crise é multisetorial, e requer

14 Ver Venegas, Sylvia (1992), “Programas de apoyo

a temporeros y temporeras en Chile” en Gómez, S. y Emilio

Klein (eds.) Los pobres del campo, FLACSO/PREALC, San-tiago do Chile; e Ministerio de Agricultura-Chile (1995),

Proyecto centro de servicios para trabajadores de temporadaagrícola. Un esfuerzo mancomunado de apoyo a los tem-

 poreros, Santiago do Chile.

 Juventude temporera

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132 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

um desenvolvimento diversificado com criação de

emprego para o ano todo. A base de sustentação deum tal projeto de desenvolvimento é assim uma no-

va institucionalidade, que inclua municípios com

maior capacidade de gestão própria, e que conte,

para isso, com um sistema de apoio profissionalcomum a eles. Ademais, formas acertadas de rela-ções entre as empresas locais com as Universidades,

as Corporações de Desenvolvimento, os Sindicatos

e os órgãos descentralizados do Estado; e com aces-

so ao crédito, informação, treinamento, extensão,

experimentação e formas negociadas de acesso aosmercados. Em particular o projeto atual — da Cor-

poração Mancomunal, a ONG herdeira da Casa do

Temporero — se propõe formar, para estes fins, fun-

dos de garantia, agências de capacitação e empre-go, banco de dados para o Vale e comprometer asuniversidades em trabalhos de extensão na região.

Conclui-se esta seção estabelecendo que exis-

te um novo tipo de ação estatal e estilo de ação so-

cial das Corporações de Desenvolvimento sem fins

lucrativos, que se correspondem com o novo tipo

de ator individual e social que nasce desta reestru-

turação econômica e flexibilização do trabalho tãoprofundas.

Primeiro, este tipo de situação que descreve-mos convida a uma ação estatal facilitadora, ou seja,

não populista, uma vez que ação populista o Esta-

do toma para si o encargo do que só ele pode rea-

lizar e também do que outros podem fazer, invadin-do toda a vida econômica, social, política e cultu-

ral. Sob as condições descritas, de pessoas muito

individualizadas, este tipo de Estado não tem sen-

tido, não serve. Tão pouco serve o Estado liberal,

no qual cada um se arranja como melhor pode e nãoé problema de ninguém o que sucede ao vizinho.

Nenhum deles é apropriado ao caráter do tempo-

rero e à imensidão de suas necessidades de todo tipo.

Tem sentido, por outro lado, um Estado que se faz

responsável, que acompanha, abrindo espaços paraque a própria sociedade civil opere a transforma-

ção social.

Segundo, cabe recordar que, antes, a ação so-

cial era basicamente reivindicativa e centrada na

mera redistribuição. Hoje em dia, sem perspectivas

de que a lei de negociação coletiva seja aprovada,com um Estado com poucos recursos, menor e mais

indiferente, com empresários que não têm, do ponto

de vista legal, quase nenhuma obrigação social, a

estratégia social deve combinar várias formas. Emprimeiro lugar, deve-se resgatar o mutualismo, por-que se ninguém toma para si as responsabilidades,

as pessoas têm que se juntar para, elas mesmas, se

fazerem responsáveis pelas suas necessidades bási-

cas, como as Mancomunales do norte no século

passado que nasceram recolhendo a cota mortuáriade seus filiados para não deixar insepultos seus com-

panheiros trabalhadores do salitre. Ali começa a

ação solidária: na própria casa. No século passado,

o mutualismo se expandiu fortemente no Chile por-que, justamente, havia uma economia internacio-nalizada e um Estado liberal que pouco se impor-

tava com a sorte das pessoas, e empresários sem

nenhuma responsabilidade, nem exigências que so-

bre eles pesassem. Hoje em dia, o mutualismo é mui-

to importante em certas áreas, inclusive como a saú-

de e previdência social, como demostraram os tra-balhadores bancários constituindo seu próprio sis-

tema privado de aposentadoria, a AFP.

São importantes, em terceiro lugar, que os tem-poreros, ante sua total desproteção, possam esta-

belecer sistemas de alianças com outros atores afins,

como Corporações de Desenvolvimento, um Gover-no aberto e um Estado menor, mais descentraliza-

do, muito mais cooptável pelas organizações sociais.

Deve-se negociar com o Estado, obviamente, e sen-

do assim é necessário aliar-se com os diversos se-

tores que estejam dispostos a apoiá-los a partir doEstado ou em sua relação com ele, como ocorreu

no projeto apoiado pelos Noruegueses. Sobre a base

destas alianças com organizações e entidades esta-

tais afins será mais possível para os temporeros es-

tabelecerem, em quarto lugar, negociações sociaisamplas com empresários e outros órgãos do Esta-

do como no projeto proposto de serviços munici-

pais tripartites para temporeros.

Estabelecidas estas amplas relações, é possível

e perfeitamente necessário desenvolver, finalmen-

Gonzalo Falabella

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Revista Brasileira de Educação 133

15 Ver por exemplo, Jo Freeman, Social Movements

of the 60’s and 70’s (Nueva York: Longman, 1983) e AlainTouraine,Antinuclear Movement , (Cambridge: Cambridge

University Press, 1979).

te, estratégias reivindicativas de luta social, basea-

das em contradições de interesses legítimos e legi-timados em seu mutualismo, alianças e negociações

amplas, sem as quais não haverá participação dos

temporeros nos frutos do desenvolvimento que eles

trouxeram ao país.Do ponto de vista de uma Corporação de De-

senvolvimento sem fins lucrativos, que apóia umprocesso deste tipo, sua ação social se define como

catalisadora de um desenvolvimento econômico

distinto, como no caso do projeto em andamento

de desenvolvimento diversificado com criação de

emprego para enfrentar a crise atual do Vale deAconcágua.

Juventude temporera e movimento social.

Finalmente, só se esboçará a terceira hipóte-

se que guiou a exposição. Essa hipótese estabele-

ce que a flexibilização das relações trabalhistas,

que resulta da reestruturação econômica e queproduz um jovem mais personalizado e cidadão

(com maior noção de direitos e dignidade), e que,

por sua vez, tem correspondência com um certo

estilo de relação estatal e de Corporações de De-

senvolvimento (caracterizados como facilitador ecatalisador, respectivamente), são sincrônicas, com

um tipo peculiar de resposta coletiva por parte dos

temporeros.

O movimento social que surge caracteriza-se

pelo fato de cada indivíduo manter seu próprio per-

fil, sem diluir-se no grupo, mediante sua adesãomais ou menos consciente à ação coletiva; como

ocorre, por exemplo, em uma greve de mulheres em

um packing . São movimentos de indivíduos perso-

nalizados, movimentos de cidadãos nos quais per-

siste o indivíduo para além do fato de que se atuepontualmente de forma coletiva. Este tipo de mo-

vimento e natureza da relação com seus membros

e o caráter deles se parecem muito mais com os mo-

vimentos culturais surgidos nos Estados Unidos e

Europa a partir dos anos sessenta e setenta, comoos movimentos contra a guerra do Vietnã, os mo-

vimentos antinucleares, ecologistas, de mulheres, de

jovens15 do que com os movimentos sociais popu-

listas latino-americanos, pré-diluvianos, nos quaisocorria uma dissolução do indivíduo no coletivo,

enquanto o caráter deste último muitas vezes se re-

sumia a de uma mera massa social manipulável.

No tipo de movimento como o aqui apresen-tado, a relação entre o individual e o social é mais

fértil, mais interessante, com mais possibilidades, eas condições de cooperação, ao menos enquanto

dure o movimento, são bastante menores. O pon-

to a sublinhar é, no caso descrito, que a organiza-

ção dura tanto como o movimento, não mais de 20

a 40 minutos. Poderia-se definir a relação como de“negociação” de cada membro no interior da or-

ganização ou movimento. Trata-se, precisamente,

de uma concepção moderna de participação: “a lutapelos termos da incorporação”, na qual os membros

da organização mantêm um nível de controle domovimento durante seu desenvolvimento.

Compreender este fenômeno é fundamental

para entender o caráter da ação social destes jovens

trabalhadores sob as atuais condições. E no caso

que descrevemos, claramente o ordenamento é pri-

meiro o “eu”, depois “nós”. Esta articulação per-

mite relações frutíferas com um Estado facilitador,

que se faz responsável pela sorte de seus cidadãos,sem inibir sua capacidade de ação coletiva; e se liga

também com uma Corporação de Desenvolvimen-

to dinâmica, catalisadora de um desenvolvimento

com a organização, com o movimento social, comas pessoas e com uma organização social que res-

peita o espaço, os direitos e o controle social dos

membros em seu interior.

 Juventude temporera

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134 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

Cinco anos depois das manifestações juvenis

que animaram o país e ajudaram a derrotar um pre-

sidente, esses eventos ainda inspiram surpresa e mis-

tificação. A convergência dramática dos “caras pin-

tadas” nas ruas das principais cidades brasileiras emagosto de 1992 tem gerado interpretações contra-ditórias, desde as celebrações eufóricas do “renas-

cimento” da resistência estudantil de três décadas

atrás, até as manipulações cínicas dos meios de pro-

paganda, usando a “grife” dos caras pintadas para

vender roupas, cursinhos, e computadores. Até hojehá poucas tentativas sérias de analisar as origens e

os impactos desses eventos em termos da especifi-

cidade histórica dessa corte de jovens. Neste ensaio,

procuro examinar as manifestações de 1992 numaperspectiva histórica, analisando tanto as mudançasnas relações sociais, quanto as reformulações polí-

tico-culturais que influiram na participação dos jo-

vens brasileiros nas últimas três décadas.

Comecemos com as palavras de um dos jovens

que se destacou na época: “O movimento estudantil

hoje é outro (…) mudou pelos próprios estudantes.Eles despertaram e começaram a descobrir o que é

De estudantes a cidadãosRedes de jovens e participação política

Ann Mische Universidade de Columbia

Este artigo faz parte de tese de doutorado defendida na New School for Social Research e envolveu dois anos de 

pesquisa de campo com várias organizações políticas e sociais de jovens brasileiros nos anos 90. Agradeço os 

comentários de Helena Abramo, Mustafa Emirbayer, Fernando Rossetti Ferreira, Maria da Gloria Gohn, Carlos 

Antonio Costa Ribeiro, Salvador Sandoval, Charles Tilly, e Harrison White.

lutar verdadeiramente pela cidadania. É uma gera-

ção que tem consciência de cidadania”1. Além do

heroísmo, essa declaração de Lindberg Farias, pre-

sidente da União Nacional dos Estudantes na épo-

ca, levanta uma série de perguntas críticas para aanálise da participação política da juventude. Deque consiste essa nova “consciência de cidadania”?

De onde surge a nova identidade “cívica” entre os

jovens, e como se distingue da identidade estudan-

til dos anos 60? Dada a heterogenidade e dispersão

das várias “juventudes” dos anos 90, quais são osfatores que contribuiram, ainda que provisoriamen-

te, para sua convergência no movimento pelo im-

peachment e, ao mesmo tempo, quais as contradi-

ções e tensões sociais que também se manifestaram?Finalmente, quais são as perspectivas levantadaspara a futura participação dos jovens, tanto em rela-

ção à consciência e aos projetos pessoais, quanto em

relação aos grupos e movimentos que contribuem

1 Entrevista com Lindberg Farias no caderno Folha-

teen, 28/6/93.

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Revista Brasileira de Educação 135

de diversas maneiras à sociedade organizada do

país?

Para aprofundar a análise dessas questões, pre-cisamos de instrumentos adequados à complexidade

da dinâmica social que leva à formação de novas

identidades e projetos de ação. Na consideração da“cidadania juvenil”, aponto para uma reformula-

ção teórica da noção de identidade coletiva — e suarelação com a estrutura ou a posição social — ques-

tionando as visões estáticas e pré-deterministas que

geralmente acompanham tais conceitos. Precisamos

de uma nova ótica teórica capaz de englobar a mul-

tiplicidade de relações e significações sociais, e ocaráter interativo e processual de toda experiência

social. Essa ótica deve visar tanto os mundos inte-

rativos dos jovens, quanto as relações emergentesentre os grupos organizados, e os pontos de conver-

gência ou distanciamento entre os dois. Sugiro aquique a análise sistemática de “redes” interpessoais

e organizacionais, focalizando a “multivalência” de

discursos e ações, pode abrir novos caminhos na

compreensão de como a cultura política é refor-

mulada através da ambiguidade conflituosa das in-

terações sociais.

A batalha das interpretações

Quando milhares de jovens brasileiros — amaior parte de classe média — saíram às ruas para

protestar contra a corrupção no governo do pre-

sidente Fernando Collor de Melo, eles pegaram a

maioria dos brasileiros (incluindo os próprios jo-

vens) de surpresa.2 Reportagens na grande imprensaretratavam o ceticismo e disinteresse político da

“geração shopping center”, nascida durante a di-

tadura e criada entre as expectativas crescentes edisilusões sucessivas da lenta e conservadora tran-

sição à democracia. Quando a constituição de 1988

estendeu o voto para jovens de 16 anos, só a metade

dos jovens esperados tirou o título de eleitor. Umapesquisa na Folha de São Paulo, alguns meses an-tes das eleições de 1989, indicou que embora a

maioria dos jovens aprovassem ideais como “liber-

dade” e “participação”, muitos duvidaram se as

instituições democráticas brasileiras constituiriam

os melhores meios para realizar esses fins. Em 1991,uma pesquisa da agência de publicidade McCann

Erickson declarou que, “em contraste com seus pais,

que queriam mudar o mundo, a próxima geração

está mais interessada em melhorar a própria vida…Os jovens de hoje não se interessam por qualquertipo de manifestação social. Vivem para resolver

seus projetos pessoais.”3

Devido à percepção predominante de apatia e

individualismo juvenil, o inesperado entusiasmo

político dos jovens em 1992 gerou amplo comen-

tário e debate. Nos dias e meses depois das mani-

festações, diversos atores — a mídia, educadores,representantes do governo, partidos políticos, mo-

vimentos sociais e organizações estudantis — bata-lharam para dar interpretações públicas dos even-

tos imprevistos. Surgiram comparações nostálgicas

com a oposição estudantil dos anos 60, que come-çou com a campanha pela reforma universitária e

se radicalizou ao longo de vários anos de confron-

to com a ditadura militar. O movimento estudan-

til foi brutalmente esmagado em 1968 com a pri-

são, perseguição, morte ou exílio da maior parte daslideranças, muitas das quais entraram em grupos

clandestinos de resistência armada durante os anos

70. A nostalgia dessa época influiu tanto na con-

fluência dos eventos como nas interpretações post-

hoc; não foi por coincidência que as manifestações

2 Segundo estimativas policiais, as primeiras manifes-

tações em 11 de Agosto (o Dia dos Estudantes) mobiliza-

ram 10.000 em São Paulo. Foram seguidas por uma ondade manifestações em várias cidades brasileiras, incluindo atos

de 20.000 a 40.000 no Rio de Janeiro, Brasília, Salvador, eoutras cidades. O movimento culminou em um grande ato

no dia 25 de agosto, que mobilizou mais de 200.000 pes-

soas em São Paulo.

3 A pesquisa de McCann Erikson sobre os jovens bra-sileiros faz parte de um perfil maior da juventude na America

Latina. Jornal da Tarde, 30/5/91.

De estudantes a cidadãos

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anti-Collor aconteceram no final da mini-série da

Rede Globo Anos Rebeldes, que cativou a audiên-cia jovem com seus personagens simpáticos e sua

visão romântica do movimento de 68, e certamen-

te serviu como inspiração nas semanas exaltadas de

agosto de 1992.Apesar da evocação da mémoria de 68, há for-

tes diferenças entre os dois episódios de mobilizaçãojuvenil. Enquanto as mobilizações anteriores foram

conduzidas num campo político polarizado entre o

Estado militar e a oposição estudantil, os caras pin-

tadas foram atores privilegiados em uma ampla mo-

bilizaçao da sociedade civil e política contra o go-verno Collor. Depois da revelação de uma extensa

rede de patrocínio coordenada pelo assessor Paulo

César Farias, o governo ficou mais e mais isolado,enquanto as bandeiras da moralidade pública e da

“ética na política” ganharam força na imprensa, nasorganizações civis e nos partidos de oposição. Isso

tocou numa grande reserva de frustração pública

com o clientelismo e a corrupção crônica do sistema

político. Nesse clima, a participação entusiasmada

dos jovens nas passeatas pelo impeachment — orga-

nizados pelas entidades estudantis, apoiados pelospartidos e entidades civis, e divulgados pela gran-

de imprensa — não pode ser chamada de “indepen-dente” ou “espontânea”, pois eles receberam am-

plas formas de apoio oficial e não-oficial, o que fica

evidente no ceticismo deste comentário jornalístico:

Nos anos 60, as passeatas eram na hora do “rush”,

para chamar atenção e buscar adesão do povo: “Você

é explorado, não fique aí parado” (…) Saldo do dia:

estudantes mortos, policiais feridos e quebra-quebra

nas ruas. À noite, o Reporter Esso falava do clima de

guerra civil no centro da cidade, mas não mostrava

imagens (…) Nos anos 90, a liderança sobe nos pa-

lanques montados pela prefeitura e pelo governo do

Estado, a repressão ajuda a interromper o trânsito, as

palavras de ordem viram jingles, os rostos estão pin-

tados, e, à noite, o “Globo Repórter” dedica uma ho-

ra, em horário nobre, para nova “onda teen”.

Há um aparato que garante a segurança dos ma-

nifestantes, de ambulâncias a bombeiros. Profissionais

do ramo distribuem banderinhas de partidos de opo-

sição. Suspeita-se que alguns manifestantes, que não

arredam o pé da frente do palanque, sejam contrata-

dos por políticos em campanhas. Um tom oficial en-

tra em choque com a espotaneidade juvenil. Rataza-

nas da política procuram aproveitar de manifestantesingênuos…

Nos 60, a visita do banqueiro Rockefeller gerou

protestos: criticavam a presença no país do represen-

tante de imperialismo. Hoje, a FIESP está presente, e

se o presidente da cadeia de lojas 7-Eleven ou a dire-

toria da Nike visitarem o Brasil, periga serem convi-

dados a subir no palanque. Não há compromissos

ideológicos vinculados aos padrões marxistas. Mas há

democracia. (Marcelo Rubens Paiva, Folha de São

Paulo, 19/9/92).

Embora não seja verdade que os compromis-

sos marxistas estivessem completamente ausentes

das manifestações pelo impeachment, outra diferen-ça notável em relação aos anos 60 foi a subordina-

ção dos discursos tradicionais da esquerda à lingua-

gem mais expansiva e universalizante de “cidada-

nia.” O discurso do Movimento pela Ética na Po-

lítica focalizou a defesa das instituições democrá-

ticas (as ditas “regras do jogo”), conseguindo man-ter a unidade provisória na medida em que deixou

de lado as questões mais conflituosas sobre o futu-

ro social e econômico do país. Nesse sentido, os

jovens estavam participando — pelo menos em teo-

ria — não como radicais ou conservadores, socia-listas ou liberais, membros de grupos políticos, ou

até como “estudantes”, mas como “cidadãos-em-

formação”, tentando resgatar a “democracia-em-

formação” da herança de corrupção e impunidade

pública. Esse redirecionamento no sentido do dis-curso universalizante de cidadania é evidente na

declaração de Marco Aurélio Chagas Martonelli,

presidente do histórico Centro Acadêmico XI de

Agosto da Faculdade de Direito da Universidade de

São Paulo:

Retoma, assim, o ME seu papel político, repre-

sentativo dos interesses dos estudantes, reencontran-

do caminhos para a concretização da cidadania no

Ann Mische

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Revista Brasileira de Educação 137

país. O impeachment do presidente é ponto de honra

para qualquer cidadão, independente de qualquer ide-

ologia. Instituir-se a ética na política, não como pri-

vilégio, mas como pressuposto básico para a demo-

cracia, será o verdadeiro divisor de águas da História

brasileira. (Folha de São Paulo, 15/8/92.)

Mas apesar do universalismo da noção de ci-

dadania, a multivalência do conceito o sujeita a in-

terpretações múltiplas e as vezes contraditórias.Assim, atores diversos — desde militantes e inte-

lectuais da esquerda até políticos conservadores e

comandantes militares — puderam fazer afirma-

ções entusiasmadas sobre a “nova cidadania” dos

jovens, porém com implicações divergentes. Por

exemplo, o coronel Erasmo Dias, deputado esta-dual pelo PDS e ex-secretário de segurança públi-

ca (que comandou uma violenta invasão da PUC-

SP em 1977, na qual dois mil estudantes foram

presos), declarou seu forte apoio ao movimento de1992:

A sociedade precisa unir-se para dar um basta

à atividade criminosa no governo federal. O povo in-

dignado deveria fazer uma tomada do Planalto, como

foi a tomada da Bastilha.

Porém, o coronel Dias também procurou sub-

dimensionar o potencial político do movimento,

contrariando a interpretação de que as manifesta-

ções juvenis foram ligadas ou coordenadas por gru-

pos organizados da esquerda:

Esses grupos, de cuja probidade eu duvido, já

não têm força para organizar o que quer que seja.

(Estado de São Paulo, 24/8/92)

Numa linha parecida, a grande impresa enfa-tizou o caráter apartidário do movimento, focali-zando a falta de experiência política e a indignação

espontânea dos jovens, como na seguinte reporta-

gem da Veja:

Na verdade, a quase totalidade dos estudantes

que tomaram a Paulista não pertence a nenhum par-

tido e jamais participou de uma reunião política na

vida. Eles marcharam, e continuarão marchando, por-

que simplesmente não aceitam que seu país seja assal-

tado impunemente por corruptos. (Veja, 9/9/92)

Por outro lado, políticos e intelectuais da opo-

sição, muitos deles lideranças estudantis no passa-

do, viram na nova cidadania dos jovens o renas-cimento de uma consciência crítica mais ampla, e

a possível revitalização da atividade estudantil or-

ganizada. Segundo José Dirceu, deputado federal

pelo PT em 1992 e presidente da União Estadual dos

Estudantes de São Paulo em 1968,

A CPI do PC desvendou para a juventude um

quadro cruel: o estado de decomposição moral de nos-

sas elites e os sinais de desagregação social que nosso

país enfrenta. A juventude reage com indignação e

exige punição, apóia o impeachment e pode ser o esto-pim da mobilização contra Collor (…) Em sintonia com

a juventude, jogando um papel importante nas mobi-

lizações a favor do impeachment, o movimento estu-

dantil pode se reorganizar e assumir seu papel políti-

co institucional. (Folha de São Paulo, 15/8/92)

Na mesma linha, as lideranças das entidades

estudantis, embora se esforçando para parecer apar-

tidárias e representativas de amplos setores da ju-

ventude, celebraram a emergência de uma novapolitização entre os jovens que indicava seu maior

desejo de participação política. Nas palavras de

Lindberg Farias, então presidente da UNE e mili-

tante do PC do B,

É uma juventude politizada, eles foram os pri-

meiros a ir às ruas defender o impeachment. Essa é

uma bandeira extremamente política. A politização

dessa juventude se dá no processo, nas ruas, queren-

do participar. Aí é que vai aprender a resgatar os va-

lores democráticos. (Folha de São Paulo, 31/8/92).

Em contraste marcante com o minimalismo

político e a indignação puramente “ética” dos co-

mentários conservadores, as entidades estudantis —

lideradas por jovens militantes de partidos da es-querda — tentaram ligar a participação de estudan-

tes “como cidadãos” a uma crítica mais ampla da

injustiça social, da crise econômica, e da política

neo-liberal do governo Collor:

De estudantes a cidadãos

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138 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

Descontração, irreverência e rebeldia tomaram

conta das ruas. De cara pintada a juventude demons-

trou estar disposta a construir um país diferente, li-

vre desta quadrilha que assaltou o Palácio do Planal-

to (…) Uma crise que vai além da falta de ética, da

moral dos bons costumes, e que ameaça a própria exis-tência do país, das instituições, de cada um (…) É fo-

me, recessão, arrocho, desemprego, impunidade. No

país de abundância, o povo e a juventude no maior

sufoco, tudo se faz para manter o plano “neo-liberal”,

o plano de desmantelamento do estado público (…)

Continua a rebeldia característica de juventude. A ca-

pacidade de nos revoltarmos frente à injustiça. (Pan-

fleto de UNE/UBES, 8/92).

Com interpretações tão contraditórias sobre aparticipação dos jovens nas manifestações de 92, a

compreensão dessa “nova cidadania” apresenta um

desafio para a pesquisa e a análise. Entre o espon-

taneísmo dos conservadores e a exaltação dos gru-

pos organizados, como poderemos medir as verda-deiras dimensões desse momento de participação

juvenil? Não queremos tampouco cair no ceticismo

de atribuir o fenômeno dos caras pintadas somen-

te à manipulação pela mídia ou pelos partidos po-

líticos. Se existiu manipulação (de vários lados),também houve uma experiência orgânica importan-

te, indicativa de mudanças estruturais e culturais,

tanto nas vidas e perspectivas dos jovens, quanto

na organização social e política da sociedade bra-

sileira. Porém, uma análise dessas mudanças requeruma reformulação teórica do vínculo entre as rela-

ções sociais e a dinâmica cultural da formação de

identidades e projetos.

A formação de identidade: redes e projetos

Um dos problemas com as tentativas de expli-

car a participação política de jovens é a utilização

de modelos estáticos e deterministas de influência

social. Tais modelos têm várias versões, desde a teo-

ria funcionalista de socialização, que explica o com-portamento dos jovens como a internalização de

normas pré-concebidas, até as análises mais estrei-

tas de classes sociais, que reduzem a ação e os inte-

resses do jovem à sua posição nas relações de produ-ção. Sem subestimar os efeitos reais de normas e de

classes sociais, precisamos de outros instrumentos

de análise mais flexíveis, capazes de compreender

o dinamismo, a contingência, e a multiplicidade dasexperiências e interações sociais. Para entender asmudanças históricas que levaram os jovens da identi-

dade participativa forte de “estudante” nos anos 60

à nova identidade, complexa e contraditória, de “ci-

dadão” nos anos 90, é necessário analisar as trans-

formações nas redes interpessoais e organizacionaisnas quais os jovens se encontram, e como as estru-

turas diferenciadas dessas redes influenciam na ar-

ticulação de projetos pessoais e sociais.

A noção de “identidade” em si já coloca umasérie de dificuldades teóricas. O problema princi-

pal é como reconciliar as pressuposições estáticas,categóricas e substancialistas da palavra com uma

visão dinâmica, processual e interativa. Um comen-

tário de Alberto Melucci, teórico dos “novos mo-

vimentos sociais”, aponta para as tensões ineren-

tes ao conceito: “A palavra ‘identidade’ é insepa-

rável da idéia de permanência, e por isso pouco ade-quada para a análise processual que estou defenden-

do...” (Melucci, 1994). Na tentativa de achar umasaída parcial para esse dilema, alguns pesquisado-

res de movimentos sociais estão incorporando o

trabalho recente da análise de redes (“network ana-lysis”) que enfatiza o caráter relacional — em vez

de puramente categórico ou atribucional — de iden-

tidades, baseadas em redes sociais (Wellman e Ber-

kowitz 1988; White 1992; Emirbayer e Goodwin,

1994). Por exemplo, Doug McAdam (1986, 1988)demonstra que os laços prévios entre estudantes

recrutados para o movimento de direitos civis nos

anos 1960, junto com a experiência prévia em ou-

tros grupos organizados, são os fatores mais impor-

tantes que influem no compromisso político dosjovens. Da mesma forma, Roger Gould (1991, 1995)

demonstra que foram os laços múltiplos, tanto de

bairro como de grupos organizados, que influiram

no recrutamento para a Comuna de Paris em 1871.

Gould introduz o conceito útil de “identidade parti-

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Revista Brasileira de Educação 139

cipativa”, referente à “identidade social que um

indivíduo assume em uma dada instância de pro-testo social” (Gould 1995, 13, grifos no original).

Ele demonstra que tais identidades podem ser re-

formuladas a partir de uma reestruturação das re-

des de trabalho e comunidade; na França, por exem-plo, havia uma mudança da identidade participativabaseada em classe social na Revolução de 1848,

para uma outra identidade na Comuna de 1871,

baseada na comunidade urbana.

Embora esses trabalhos representem avanços

significativos na compreensão do caráter múltiplo

e interativo de identidades, eles oferecem apenasuma solução parcial à problemática desse concei-

to. Ainda sofrem de uma visão substancialista e de-

terminista, vendo identidade como algo pré-existen-te nas relações sociais, objeto dos “apelos” dos mo-

bilizadores. Por isso não conseguem focalizar o pro-cesso fluido e contingente da formação de identi-

dades na interação dinâmica entre o “ciclo de vida”

da pessoa, a participação no movimento e as mu-

danças históricas da época. Para resgatar esse as-

pecto, é necessário um conceito de identidade como

focalizador de projetos, dando direção às açõesalém de definição aos grupos.

Identidade como reconhecimento

O primeiro passo nessa nova conceituação é

a potencialização de identidade. O que normalmen-

te entendemos com essa palavra são as qualidades

agregadas de categorias sociais, como classe, gêne-

ro, raça, ou nacionalidade. Na realidade, esses atri-butos são simplesmente identidades possíveis, que

se tornam visíveis, efetivas e relativamente “fixas”

apenas quando reconhecidas publicamente por ou-

tros, dentro do que Pizzorno (1986) chama de “cír-

culos de reconhecimento.” Esse conceito abarca adimensão intersubjetiva de redes sociais: cada rede

representa um repertório mais ou menos delimita-

do de reconhecimentos coletivos, que dão sentido

e direção aos laços sociais. Redes diferentes — por

exemplo, de trabalho, bairro, escola, familia — dãovisibilidade social às dimensões específicas de ex-

periências que são relevantes naquele círculo, entre

a multiplicidade de conexões que poderiam ser fei-tas. Nesse sentido, não é apenas o atributo ou a

posição social que determina a identidade, mas tam-

bém são as experiências e orientações coletivas den-

tro de um dado contexto concreto que criam o po-tencial para formas diferenciadas de reconhecimen-to. Também implica que em qualquer momento,

muitas dimensões de relações — junto com laços ou

identidades possíveis — são desarticuladas, não re-

conhecidas, e por isso relativamente invisíveis nas

superfícies de interações públicas.

Identidade como experimentação

Para entender a dinâmica temporal de identi-dades como influência na ação coletiva, é preciso

analisar como elas interagem com o ciclo de vida

da pessoa. Como Erikson (1968) e outros mostram,

a juventude é um período sensível na formação de

identidades, em que as pessoas experimentam vá-rias expressões públicas, procurando reconhecimen-

to no meio de diversos “círculos” (ou redes): famí-

lia, colegas, escola, trabalho, atividades de lazer e,

às vezes, atividade política. Durante esse período de

experimentação, eles estabelecem compromissos (ain-da provisórios) com laços sociais e significados co-letivos, que terão um impacto crítico nas suas op-

ções ao longo da vida. Essas experiências também

têm um impacto na emergência de novos “estilos

geracionais”, como Mannheim demonstra: “Na ju-

ventude, em que a vida é nova, as forças de formaçãoestão apenas vindo a ser, e atitudes básicas no pro-

cesso de desenvolvimento podem se aproveitar das

forças moldantes de novas situações” (Mannheim

1952, 296). Embora a “estratificação da experiên-

cia” esteja condicionada tanto por classe social, co-mo por grupos de idade, Mannheim enfatiza que

não é apenas a posição social que determina a emer-

gência de uma identidade geracional distinta, pois

é necessário que as experiências comuns estejam

sujeitas à reflexão consciente dentro de situaçõeshistóricas de “desestabilização dinâmica.” Isso é

facilitado pela participação em “grupos concretos,

De estudantes a cidadãos

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140 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

onde a estimulação mútua numa unidade próxima

e vital inflama os participantes e os ajuda a desen-volver atitudes integradas adequadas aos requisitos

de suas posições comuns” (p. 307).

Identidade como orientação

Outra limitação do conceito de identidades é

uma tendência a focalizar seu aspecto delineador,

quer dizer, as determinições de quem pertence ou não

a uma dada categoria ou grupo. Dá-se pouca aten-ção ao papel de identidades como mecanismos de

orientação, usados pelos atores para dar direção e

forma à ação futura. Identidades não são apenas ca-

tegorias sociais que em si dão estrutura e sentido às

redes sociais, mas são mobilizadas de forma seleti-va, segundo os projetos emergentes dos atores, pe-

los quais eles tentam resolver conflitos e criar novas

oportunidades de ação (Emirbayer e Mische, 1994).

Não é apenas a pergunta “quem sou eu?” que os

jovens procuram responder enquanto experimentamexpressões de identidade, mas também “por onde

vou?” Embora as carreiras e trajetórias abertas aos

jovens estejam estruturadas pelas posições de clas-

se e pelas instituições sociais e políticas, os jovem

também têm algum espaço de escolha, manobra e,às vezes, invenção de caminhos e direções de vida.Experiências dentro de vários locais sociais criam as

oportunidades e barreiras, esperanças e frustrações,

que levam os jovens a experimentar diferentes futu-

ros possíves, com mais ou menos receptividade às

identidades e projetos pré-concebidos que são ofe-recidos pela sociedade. Muitas vezes as soluções en-

contradas implicam em uma fusão de múltiplos “pro-

jetos-em-formação”, cristalizados numa dada iden-

tidade social. Assim as identidades funcionam mais

como prismas do que como fronteiras, oferecendopossibilidades para a fusão de projetos pessoais e

coletivos que atravessam círculos e redes sociais.

Mudanças estruturais e culturais: 1960-1990

Como será que esse conceito mais dinâmico e

interativo de identidade pode nos ajudar na com-

preensão da participação dos jovens brasileiros em

episódios diferenciados de ação coletiva? Utilizare-mos essas formulações na análise das diferenças

históricas entre o movimento estudantil dos anos 60

e os caras pintadas dos anos 90, na tentativa de

entender como os jovens foram levados da identi-dade participativa de “estudante” no movimentoanterior a uma outra identidade participativa, qua-

lificada pela noção mais abrangente de “cidadão”,

em 1992.

Meu argumento básico é que o período ante-

rior, de 1960 a 1968, serviu como um nexo para a

concentração de identidade. A identidade forte de“estudante” se tornou um prisma para múltiplas

dimensões dos projetos emergentes dos jovens da

classe média universitária, dentro de uma dinâmi-ca radicalizante de oposição política. Isso não se

deve a uma lógica intrínseca ou “destino histórico”de estudantes como categoria social, mas resultou

da estrutura específica de suas redes sociais, concen-

tradas principalmente na família e, mais importante

ainda, nas universidades. Em contraste, o período

posterior de reestruturação democrática, nos anos

80 e 90, é caracterizado pela dispersão crescente dasredes juvenis. Os anos formativos dos jovens não

são limitados à familia e às universidades, mas acon-tecem em contextos sociais, culturais e políticos mais

diversos, englobando um campo maior de possíveis

(e às vezes contraditórios) projetos pessoais e cole-tivos. Por isso, a categoria de “estudante” não tem

a multivalência necessária para servir como um pris-

ma para a diversidade de projetos-em-formação dos

jovens nos anos 90. Daí a necessidade de uma iden-

tidade mais abrangente (e ambígua), evidente nouniversalismo formal de “cidadão.”

Concentração de identidade: os anos 60

Para acompanhar essa transformação, é neces-

sário prestar atenção à estrutura do mundo juvenil

universitário nos anos 60. No início da década, esse

mundo estava no meio de uma reconfiguração im-

portante, devido ao influxo da classe média no en-sino superior do país. Embora a porcentagem dos

Ann Mische

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Revista Brasileira de Educação 141

jovens no ensino superior continuasse minúscula em

relação ao conjunto juvenil do país, esse setor seachava em plena expansão, aumentando de 27.253

estudantes matriculados em 1945, para 142.386 em

1964, o que significa um crescimento linear anual

de 12,5% (Cunha, 1983). Até 1971, esse númeroaumentou para 561.387, um crescimento de maisde 500% ao longo da década dos 60 (Durham,

1993). Segundo a análise de Luís A. Cunha (1983),

essa expansão se deve a uma confluência de fato-

res, incluindo, por um lado, o aumento da deman-

da pelo ensino superior entre a “nova classe média”,para garantir acesso ao novo setor burocrático das

empresas privadas e estatais, e por outro lado, “o

atendimento da demanda de ensino universitário

por parte do Estado populista”, que removeu asbarreiras ao ensino superior enquanto aumentavao número de vagas nas universidades públicas e gra-

tuitas (Martins, 1987, 35). Esse aumento de vagas

se deu por meio da “federalização” do sistema uni-

versitário, que, começando no final dos anos 50,

juntava os estabelecimentos isolados de ensino (par-

ticulares, municipais e estaduais) e criava grandescentros universitários, que começavam a ter um pa-

pel importante na vida intelectual, cultural e polí-

tica do país.4

Dentro desse quadro, podemos traçar a cres-

cente importância da categoria de “estudante” nassuas passagens por diversas redes interpessoais e

organizacionais, durante a tumultuada década de

60. Num estudo revelador sobre os estudantes da

Universidade de São Paulo em 1962, Marialice Fo-

racchi descobriu uma alta incidência de estudantesda primeira geração universitária, muitas vezes de

familias de ascendência imigrante. Foracchi de-

monstra como a ambigüidade da categoria de “es-

tudante” serve como veículo tanto do projeto fa-

miliar de ascensão social, quanto do questiona-

mento pelo jovem das expectativas familiares, e a

formação de “projetos de carreira” que melhor ex-pressam seus desejos de autonomia e participação

dentro do contexto do desenvolvimento nacional

do país:

Transformando-se em estudante e procurando

dar sentido renovador ao seu projeto de carreira, o

jovem está, ao mesmo tempo, reconhecendo os con-

tornos de uma condição alienada, tal como se formula

no plano da experiência familiar, e lutando para ultra-

passá-la com os recursos de engajamento de que se

dispõe como estudante, ou seja, como futuro profis-

sional. (Foracchi, 1977, 299)

Enquanto os jovens passavam do círculo res-

trito da família para as redes mais complexas dauniversidade, a identidade estudantil se investia com

novas e autônomas significações. Desiludindo-secom as condições inadequadas do ensino nas uni-

versidades, que não foram equipadas para atender

ao influxo dramático de jovens de classe média,

muitos estudantes se juntaram às discussões e ma-

nifestações pela reforma universitária no início dadécada, que para muitos foi o ponto de partida para

uma postura crítica e um engajamento maior. Na-

quele momento, as universidades serviram como osprincipais centros de intercâmbio intelectual, polí-

tico e cultural, constituindo uma concentração in-tensa de círculos de reconhecimento por parte dos

estudantes: “Quase toda a vida cultural e compor-

tamental juvenil, mesmo quando não consubstan-

ciada no movimento estudantil, é constituída e se

expressa no espaço universitário: das discussões exis-tencialistas à bossa nova, passando pelo projeto de

constituição de uma cultura nacional popular do

CPC (Centro Popular de Cultura) da UNE, pelos

festivais de música universitária e pela tropicália:

são culturas e estilos de vida identificados aos meiosuniversitários, vividos por universitários” (Abramo

1992, 85).

Essa rica interatividade nas universidades cru-

zou, naquele momento, com uma nova configura-

ção nas redes organizacionais dos militantes estu-

dantis. A direção do ME estava saindo de uma po-

4 No meio da década de 60, 65% da matrículas eramem universidades, a grande maioria instituições públicas

(Cunha, 1983, 94.).

De estudantes a cidadãos

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142 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

larização, na década anterior, entre os grupos ude-

nistas/liberais, que controlavam a UNE de 1950-55, e os grupos vanguardistas da esquerda, hege-

monizados pelo Partido Comunista. O início dos

anos 60 foi marcado pela ascendência da juventu-

de católica, organizada primeiro na JUC e depois,quando as lideranças se radicalizaram e sairamdaquela entidade, na Ação Popular (Souza, 1994;

Lima e Arantes, 1984). Essas lideranças consegui-

ram se compor com diversos grupos da esquerda

marxista, formando o dito “grupão”, ao mesmo

tempo que expandiam o apoio entre as bases estu-dantis, ajudando a superar a distância entre essas

bases e os grupos vanguardistas: “Melhor do que

elas, as organizações católicas canalizaram a insa-

tisfação da juventude da classe média, e sensíveisaos reclamos de um meio que muito bem conheci-am, souberam levantar a bandeira da “Reforma da

Universidade” (Martins 1994, 2). Nos anos que

dirigiu a UNE, esse grupo ajudou a intensificar o

intercâmbio político e cultural nas universidades

por meio da UNE-volante, onde os diretores da

UNE viajavam aos estados para discutir as refor-mas e mobilizar a “greve do 1/3” pela democrati-

zação interna das universidades. Essas viagens fo-

ram dinamizadas pelas apresentações culturais dorecém formado Centro Popular de Cultura (CPC

da UNE), que aumentaram a receptividade dos jo-vens aos mensagens políticas. Segundo João Ro-

berto Martins Filho, a participação maciça dos es-

tudantes na greve de 1962 “cristalizou um mo-

mento da convergência entre a ‘vanguarda’ estu-

dantil e a massa universitária” (Martins 1994, 2),embora a derrota da greve resultasse no deloca-

mento do interesse da militância das lutas “espe-

cíficas” universitárias para a busca de alianças “po-

líticas” com setores operários e camponeses (Mar-

tins, 1987, 1994).Depois do golpe de 1964, o movimento estu-

dantil (e a categoria de “estudante”) ganhou uma

nova forma de reconhecimento, através da dinâmica

do confronto com o Estado militar. Durante os pri-

meiros anos da ditadura, as universidades foram osúnicos espaços que restaram de oposição visível e

organizada.5 Embora a sede da UNE no Rio de Ja-

neiro tenha sido invadida e incendiada, e as entida-des estudantis autônomas banidas (substituídas pe-

los “diretórios” atrelados ao Estado), o movimen-

to continuou a crescer durante os anos subsequen-

tes. Como uma liderança estudantil comentou, “ho-je, é mais fácil convencer um estudante de que eledeve ser contra a ditadura, do que era antes con-

vencê-lo que ele deveria ser contra o capitalismo”

(Foracchi 1982, 63). O reconhecimento e aprendi-

zado social dos estudantes, ocasionados pelas ma-

nifestações de massa e os conflitos com a polícia,aguçaram tanto a crítica do Estado militar (e seus

laços com o imperialismo capitalista), quanto a iden-

tidade empolgante dos estudantes como “sujeitos

da história”, engajados em projetos revolucionáriosde transformação social. Ao lado da radicalizaçãocrescente dos setores militantes, se viu de novo uma

convergência de lutas específicas do meio estudan-

til — como a crítica ao projeto MEC-USAID e a

retomada das bandeiras da reforma universitária —

com as lutas políticas mais gerais, contra a ditatura

e a interferência norte-americana no desenvolvimen-to do país. Além disso, o clima foi permeado pela

utopia social, a liberalização cultural e a alta serie-

dade político-moral que caracterizou o movimen-to juvenil internacional que estava explodindo em

várias partes do mundo.

Para resumir, os contextos interpessoais, ideo-lógicos e políticos dos anos 60, vividos principal-

mente pelos jovens universitários, carregaram a iden-

tidade de “estudante” com significados múltiplos

capazes de ligar uma variedade de projetos-em-for-

mação. A “atualização” dessa identidade (para usar

5 Alguns comentaristas argumentam que, diferente do

movimento sindical e camponês, o ME sobreviveu inicial-mente depois do golpe militar devido à posição ambígua dos

estudantes da classe média, e à ascendência, nos anos 1964-66, de setores “liberais” à liderança estudantil em vários

estados, onde no começo simpatizaram com o golpe, em-

bora logo em seguida ficaram disiludidos com a perda dademocracia (Martins, 1987).

Ann Mische

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Revista Brasileira de Educação 143

o termo de Mannheim) e sua capacidade de crista-

lizar um “estilo geracional” emergente não eram“inerentes” à posição de familia, classe, ou geração

dos estudantes, mas dependia dos processos de apren-

dizagem social que ocorriam em vários “círculos de

reconhecimento”, através de redes densas e concen-tradas, ocasionando a radicalização de uma iden-tidade que fôra, no início da década, relativamen-

te restrita e delimitada.

Dispersão de identidade: os anos 90

Três décadas depois do desmantelamento bru-

tal do movimento estudantil dos anos 60, os jovens

brasileiros enfrentam uma outra configuração, bas-

tante diferenciada, de seus contextos relacionais eculturais. Uma mudança crítica é que as universi-

dades — e o movimento estudantil — já não se cons-

tituem como os centros da vida cultural e política

juvenil. Com a crise da esquerda, o fim da ditadu-

ra como fator unificador e a abertura de espaçosalternativos para participação política, o movimen-

to estudantil perde seu monopólio na mobilização

juvenil. A diversificação da experiência da juventu-

de, especialmente com a extensão da “cultura jo-

vem” para jovens trabalhadores e das periferias, éconfirmada por estudos recentes sobre os jovensbrasileiros durante a “modernização conservadora”

dos anos 80:

Descortina-se uma nova configuração do univer-

so juvenil: a crise do espaço universitário como signi-

ficativo para a elaboração das referências culturais, o

enfraquecimento da noção de cultura alternativa como

modo de contraposição ao sistema, e a emergência de

uma intensa vivência, por parte dos jovens das cama-das populares, no campo de lazer ligado à indústria

cultural. (Abramo, 1994, 82)

Em contraste com os anos 60, os jovens ago-

ra passam seus anos formativos em redes mais dis-

persas, formadas nas escolas públicas e particula-

res, nos lugares de trabalho, nos “shopping cen-

ters”, nos clubes noturnos, nos bairros e ruas, e emoutras espaços de lazer, cultura e sociabilidade (Abra-

mo, 1992; Costa, 1993; Sposito, 1994). Segundo

Felícia Madeira, as décadas intermediárias dos 70e 80 visavam “uma série de modificações que (...)

estenderam a identidade jovem para uma parcela

maior da sociedade” — entre as quais se destacam

o rejuvenescimento (e monetarização) do mercadode trabalho, o aumento das oportunidades de estu-do, a penetracão dos meios de comunicação de mas-

sa, e a difusão do sistema crediário, facilitando o

acesso ao consumo para jovens das classes popu-

lares (Madeira,1986). “Ser jovem” não é mais equi-

valente a “ser estudante”; a identidade juvenil sedesloca para fora das universidades, estendendo seu

alcance além dos setores médios e abrangendo ou-

tras significações, altamente ligadas ao consumo e

aos “estilos” culturais.Ao mesmo tempo, o meio universitário viveu

seu próprio processo de diversificação. De 1971para 1991, o número de matrículas no ensino su-

perior cresceu de 561.397 para 1.565.056, embo-

ra houvesse uma estagnação do crescimento durante

os anos 80 (Durham, 1993, 8). O excedente de de-

manda pelo ensino superior que começou a se ma-

nifestar no final dos anos 60 foi absorvido em gran-de parte pelo setor privado, localizando-se com

maior frequência em faculdades isoladas, em vez deuniversidades centralizadas6. Em 1990, das 918 ins-

tituições de ensino superior, 749 eram estabeleci-

mentos isolados, dos quais 582 eram particulares(Durham, 1993, 10). As universidades públicas tam-

bém foram decentralizadas, exemplificado no de-

mantelamento da Faculdade de Filosofia da USP na

Rua Maria Antonia, que nos anos 60 foi sede de

uma intensa interatividade político e cultural; e suasubstituição pelas faculdades fragmentadas e isola-

doras da Cidade Universitária, que dificultam a or-

ganização política.

6 A proporção de estudantes matriculados nas insti-tuições particulares subiu de 44.05% em 1961 para 61,30%

em 1991 (Durham, 1993); no início dos anos 90 a porcen-

tagem de instituições privadas establizou-se em torno de75% do total (Sampaio, 1995).

De estudantes a cidadãos

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Entre os estudantes dessas faculdades, as con-

dições de trabalho e as redes de sociabilidade tam-bém se diversificaram. Numa pesquisa recente so-

bre universitários em São Paulo e Campinas, Ruth

Cardoso e Helena Sampaio anotam que mais da

metade dos alunos pesquisados trabalham, uma ca-racterística que atravessa atributos como gênero eclasse social, embora varie significamente por cur-

so universitário (Cardoso e Sampaio, 1994). Des-

ses alunos, 48% se socializam com mais frequência

com pessoas fora da escola, embora 26% saiam

com pessoas dentro e fora da escola, e apenas 12%dão preferência aos amigos do meio escolar (Sam-

paio, s.d.)7. Essa diversificação das redes de estu-

do, trabalho, e sociabilidade expõe os jovens a in-

fluências e pressões diversas, exigindo um certo jogode coordenação e segmentação entre os diversosenvolvimentos.

No meio dos grupos organizados, também se

vê uma complexificação marcante das formas de

participação social e política, embora essas redes

continuem a ser densas e entrelaçadas. Jovens com

algum interesse político agora podem escolher en-

tre muitas formas alternativas de militância, inclu-indo partidos políticos, movimentos populares, sin-

dicais e anti-discriminatórios, organizações não-governamentais e associações profissionais. Desde

seu reaparecimento nas manifestações pela demo-

cratização no final dos anos 70, o movimento es-tudantil tem se engajado num processo conflituoso

de reconstrução, embora ficasse politicamente mar-

ginalizado durante a maior parte dos anos 80. Nesse

período, a Pastoral de Juventude da Igreja Católi-

ca começou a se destacar, focalizando os anseios eesperanças das camadas populares, e formando qua-

dros importantes de lideranças comunitárias e par-

tidárias. Porém, no início dos anos 90 a PJ também

se encontra em uma “crise” de reavaliação, distan-ciada da população jovem mais ampla. Mais recen-

temente, outros grupos juvenis estão emergindo,

desde os movimentos dos negros e homossexuais,

até as associações de área e as empresas juniores,localizadas nos cursos universitários. Muitas vezesas redes dos movimentos, partidos, e outras orga-

nizações se cruzam, criando novos conflictos e opor-

tunidades vindo da superposição de diferentes pro-

jetos e estilos de intervenção. Essas tensões per-

meiam o campo político-juvenil nos anos 90, influin-do tanto nas relações entre os grupos, como nas di-

ficuldades de atrair mais jovens para a participação

política organizada (Mische, 1996b).

A partir dessa breve análise, vimos como asredes interativas dos jovens — junto com os con-

textos culturais-ideológicos para a formação de iden-tidades — se diversificaram durante os anos 90,

tanto para os militantes juvenis como para as juven-

tudes mais amplas. Para muitos jovens, a perplexi-

dade diante desse quadro foi intensificada pelas in-

certezas e frustrações da década anterior de transi-

ção democrática. Os jovens testemunharam as cri-ses e escândalos recorrentes do retorno ao gover-

no civil, junto com as contradições de verem os dis-cursos e formalismos democráticos (incluindo uma

nova constituição) ao lado dos vestígios de auto-

ritarismo. Esses vestígios foram especialmente visí-veis para os estudantes na resistência de muitas di-

reções escolares aos grêmios estudantis e na repres-

são às greves dos professores no final dos anos 80.

Ao mesmo tempo, viviam a ansiedade da inflação

crônica, junto com uma recessão econômica quesufocou as aspirações de muitos jovens, de diver-

sas classes sociais. Esses fatores confluiram para

sustentar uma ambivalência forte sobre a política,

um ceticismo sobre a possibilidade de mudanças

institucionais e uma tendência à paralisia política.

Porém, essa ambivalência não significa neces-sariamente que os jovens fossem acríticos ou apá-

ticos. Aponta, por outro lado, para a falta de espa-

ços centralizadores ou de identidades públicas uni-

ficadoras, capazes de transformar suas críticas so-

7 É interessante notar que a preferência de sociabili-

dade varia de acordo com o grau de centralidade ou isola-mento das escolas: nas universidades públicas, 20% saem

com pessoas das escolas, enquanto nas escolas isoladas pri-

vadas esse número diminui para 12%, chegando a 5,4% nasuniversidades particulares (Sampaio, s.d.).

Ann Mische

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Revista Brasileira de Educação 145

ciais — muitas vezes agudas — em ação coletiva.

Mas o potencial que poderia ser mobilizado paraprotesto social ainda estava presente; a simpatia, a

indignação e o entusiasmo dos jovens poderiam ser

tocados de forma inesperada, como aconteceu em

agosto de de 1992.

Convergência e interlocução

Embora essa análise das configurações juvenis

explicasse a ressonância reduzida da identidade es-tudantil nos anos 90, ainda não explica por que a

categoria de “cidadão” surgiu como alternativa efe-

tiva. Nem explica a dinâmica de articulação dessa

identidade no meio de uma convergência política

inesperada e multifacetada. Para entender essa di-nâmica no contexto da diversificação das redes ju-

venis nos anos 90, precisamos examinar como a

articulação de identidades e projetos atravessa re-

des distintas, tanto interpessoais como organizacio-

nais. Aqui é essencial o papel de interlocutores so-ciais, com identidades múltiplas, posicionados no

cruzamento de vários contextos sociais.

Para entender esse processo, precisamos vol-

tar à ideia dos círculos de reconhecimento: as iden-

tidades se tornam visíveis apenas quando reconhe-cidas por outros dentro de locais específicos de inte-

ração. As pessoas que servem como pontes efetivassão aquelas que podem evocar sua multiplicidade

de laços (e identidades) para serem “vistas” em uma

variedade de contextos sociais, e assim viabilizar

oportunidades para conexão e ação conjuntas de

diversas pessoas ou grupos. Porém, essas conexõesnão implicam necessariamente em uma correspon-

dência de objetivos entre todos os setores ligados,

pois só funcionam porque atores desligados reco-

nhecem dimensões diferentes de si mesmos na iden-

tidade multivalente da “pessoa-ponte”, que assimserve como um “prisma” para projetos diversos. Por

isso, as ligações formadas são sempre ambíguas,

experimentais e, às vezes, contraditórias, embora

possibilitem alianças provisórias e conjunturais. Co-

mo qualquer intermediário, tais interlocutores po-dem também colher benefícios próprios dessas ar-

ticulações, embora as vantagens possam tomar a

forma não-material de liderança ou status dentrodas várias redes conectadas através deles.

No contexto brasileiro, uma ponte importan-

te se constróoi por meio do fenômeno da “militân-

cia múltipla”, no caso de jovens que são simulta-neamente lideranças no movimento estudantil, nos

partidos políticos, nos grupos da igreja, ou em ou-tros movimentos e organizações. Apesar das afir-

mações da “autonomia” dos movimentos e protes-

tos contra a “partidarização” das entidades, na ver-

dade, as redes de liderança são extremamente inter-

ligadas. Facções do movimento estudantil são inti-mamente ligadas à participação em partidos e ten-

dências de esquerda — um fator que não quero de-

nunciar como falha-base, como fazem muitos ou-tros críticos, pois aparece quase como uma neces-

sidade estrutural dentro da complexa organizaçãoda sociedade civil e política dos anos 90, onde o

engajamento nas “lutas institucionais” faz parte das

estratégias e repertórios dos movimentos sociais. Ao

mesmo tempo, é importante reconhecer que o ca-

ráter denso e entrelaçado dessas redes — onde os

militantes falam muito entre si e pouco para quemestá fora — tem tido consequências negativas para

o movimento. Contribui para a desilusão de mui-tos jovens com a política estudantil organizada e as

entidades históricas do ME, que eles vêem como

distantes de suas preocupações e aspirações. Comefeito, os laços fortes e identidades restritas dos mili-

tantes têm reforçado uma tendência ao auto-isola-

mento do ME, devido à falta de resonância com as

identidades mais dispersas dos jovens brasileiros.

Durante as manifestações pelo impeachment,

porém, alguns interlocutores novos entraram emcena que foram capazes de renovar tanto os víncu-

los fortes dentro do ME e da esquerda, quanto os

laços mais amplos com outros setores juvenis. Um

exemplo marcante aparece na pessoa de Lindberg

Farias, que virou herói popular em decorrência dasmanifestações. Lindberg também foi militante do

PC do B, que controlara a direção da UNE desde a

reconstrução da entidade em 1979 (com exceção

dos anos 1987-1991, quando foi dirigida majori-

De estudantes a cidadãos

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tariamente pelo PT). Por causa de suas múltiplas

identidades públicas, Lindberg foi a figura ideal pa-ra construir a ponte entre o movimento estudantil

tradicional, os projetos da esquerda, e as experiên-

cias dispersas da geração “shopping center.” Em-

bora filho de ativistas políticos, um “socialista con-victo” e uma militante comunista de muitos anos,ele projetou uma imagem bonita e charmosa, com

um vocabulário jovem que ajudou a quebrar a es-

tereotipia do militante chato e barbudo. Assim ele

conseguiu se projetar para fora das redes militan-

tes, aparecendo nas manifestações (e na mídia) co-mo figura simpática e inteligente na qual os jovens

de classe média poderiam reconhecer suas própri-

as experiências e aspirações. Como já vimos, Lind-

berg conscientemente subordinou sua orientaçãosocialista, declarando que “como presidente daUNE, represento os interesses dos estudantes bra-

sileiros e tenho posições mais amplas” (Folha de São

Paulo, 31/8/92). Nas passeatas, como nas inúme-

ras entrevistas, ele abraçou seu papel de pessoa-

ponte, enfatizando a convergência de diversos se-

tores de jovens:

Eram 20 mil jovens. Diversos os rostos. Desde

os que usavam camisas de Che Guevara até os fre-quentadores de shopping centers. Estudantes pesqui-

sadores, bolsistas do CNPq, junto a metaleiros e ska-

tistas. Todos, revoltados, pediam o impeachment do

presidente. Foi a passeata do grito indignado de uma

juventude que acredita na mudança no Brasil. (Folha

de São Paulo, 15/8/92)

Para não supervalorizar o papel do indivíduo,

é importante lembrar que Lindberg não agiu sozi-nho, nem em relação a sua própria corrente políti-

ca, nem em relação às outras forças ativas no mo-

vimento pelo impeachment. A própria eleição de

Lindberg como presidente da UNE se deve a uma

mudança explícita de estratégia dentro do ME, queestava sendo articulada nas várias forças políticas

desde o final dos anos 80. Por exemplo, a juventu-

de do PC do B começara a destacar uma “nova men-

talidade” entre os jovens, que estaria mais voltada

para cultura, esporte, ecologia e outras formas mais

leves e alegres de participação social (embora essa

mentalidade ainda pudesse levá-los a uma críticamais aprofundada das barreiras impostas aos jovens

pelo sistema capitalista). De tal maneira, essa cor-

rente tentava focalizar as novas aspirações e frus-

trações dos setores médios estudantis, nas escolassecundárias e nas faculdades públicas e particula-res. Nas outras alas da militância, incluindo alguns

setores do PT, surgiu uma discussão paralela sobre

as novas preocupações dos jovens, não necessaria-

mente concentradas nas universidades, porém mais

dispersas nos movimentos sociais e sindicais, e nasexpressões culturais das periferias.

Enquanto tais discussões levaram muitos mi-

litantes petistas a desvalorizar o engajamento no

ME, o PC do B manteve seu investimento na poten-cialidade estudantil. Devido à sua tenacidade na

disputa pelo controle das entidades estudantis, essacorrente conseguiu colocar Lindberg numa posição,

em 1992, que o permitiu desfrutar de uma explo-

são política que nem ele nem o partido previam. À

frente da entidade histórica dos estudantes, e com

a ajuda da militância partidária, Lindberg cresceu

como liderança dentro de seu papel múltiplo, comoporta-voz emergente do movimento, articulador su-

prapartidário das lideranças estudantis e mobili-zador-relâmpago da logística e infraestrutura das

passeatas. Especialmente notável foi uma colabora-

ção entre as direções da UNE e do Centro Acadê-mico XI de Agosto, que sediou o ato que fechou a

primeira passeata, forjando uma aliança provisória

entre os comunistas e os social-democratas em nome

do projeto mais amplo da defesa da cidadania.

Por outro lado, se Lindberg, junto com a UNE

e os partidos políticos souberam aproveitar e cana-lizar a conjuntura emergente, eles também foram

usados por atores e forças distintas — e muitas vezes

alheias — a seus próprios projetos políticos. Já vi-

mos como a grande imprensa, os políticos diversos,

e até os ex-representantes do Estado militar, con-correram para oferecer seus elogios aos jovens ma-

nifestantes, embora enfatizassem a visão esponta-

neista e puramente ética da cidadania. O papel da

imprensa foi especialmente importante aqui, pois

Ann Mische

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Revista Brasileira de Educação 147

Lindberg deve sua extraordinária projeção social em

grande parte à sua “adoção” como menino-dos-olhos da imprensa, que aumentou mil vezes o po-

der “prísmico” de sua posição multivalente. A mí-

dia também operou no sentido de possibilitar que

milhares de jovens, em redes dispersas e desorga-nizadas, soubessem com antecedência do percursodas manifestações, e assim pudessem se juntar a

partir de mil focos informais nas escolas, nos bair-

ros, nos locais de trabalho e de sociabilidade. O

descaso dessa mesma mídia com os projetos maio-

res do ME se evidenciou no ano seguinte, quandofoi lançado um ataque feroz contra o “sectarismo”

e a “visão antiquada” que a imprensa visava nas

entidades estudantis.

Reconfigurações emergentes

O ponto de partida da análise desenvolvida

aqui é a necessidade de reexaminar a participação

juvenil a partir da intersecção de duas óticas dife-rentes: 1) da estrutura relacional e cultural dos mun-

dos juvenis num dado momento histórico, e 2) da

estrutura dos grupos organizados, que serve, às ve-

zes de maneira ambígua e contraditória, como “pon-

te articuladora” na fusão de projetos pessoais e cole-tivos. Contra os perigos gêmeos do espontaneismoe iluminismo, procuro localizar os pontos de cone-

xão e de distanciamento entre essas óticas, e ver

como influem na formação de novas identidades e

práticas políticas. Restam três linhas de indagação,

que abro brevemente aqui como indicativas para oestudo mais amplo que estou elaborando sobre mo-

vimentos juvenis brasileiros nos anos 90.

De que maneira a nova identidade de “cida-

dão” está funcionando como ponte-articuladora

dos movimentos juvenis? Como vimos acima, a res-

posta é muito mais complexa do que se imagina,devido às interpretações tão diversificadas do sen-

tido e prática de “cidadania” (Mische, 1996a). A

trajetória do discurso cívico no Brasil, desde seu

reaparecimento nos movimentos populares e sindi-

cais no final dos anos 70, passando por sua expan-são com os movimentos anti-ditatoriais e anti-dis-

criminatórios (dos negros, mulheres, povos indíge-

nas, homosexuais, etc.), até sua recente apropria-ção pelos setores consumidores e empresariais, re-

vela sua capacidade de veicular projetos divergen-

tes dentro da linguagem universalista de direitos e

responsibilidades. Assim, coloca-se uma questãoideológica de fundo: nesse cruzamento, quais pro-jetos substantivos estão ganhando campo em rela-

ção à futura direção política e econômica do país?

As divergências nesse ponto aparecem no meio dos

grupos organizados, e se evidenciam na falta de uni-

formidade na adoção da identidade cívica: em al-guns contextos, os jovens abraçam essa identidade

com conviccão e energia, embora em outros, te-

nham bastante ambivalência e disputa ideológica

sobre o alcance e os limites do conceito. Porém, doisaspectos do universalismo do conceito de “cidada-nia” merecem mais atenção: como essa linguagem

está sendo mobilizada para articular conexões com

setores mais amplos da juventude, como vimos aci-

ma; e talvez mais criticamente, como o discurso

cívico também serve para estabelecer parâmetros

éticos de comunicação interna entre os própriosgrupos organizados, dada a heterogeneidade e com-

plexidade do campo político-juvenil nos anos 90.

Como as redes organizacionais juvenis estãose reconfigurando, em decorrência das manifesta-

ções de 1992? Embora os caras pintadas aparen-

temente tivessem se ausentado do cenário nacionallogo após o impeachment, as manifestações juvenis

tiveram um forte impacto nas redes organizadas,

reforçando um processo de reavaliação interna que

os militantes ainda estão tentando desenrolar. O

ME se ocupou em canalizar o influxo de energia ereconhecimento social que ganhou com o impeach-

ment, se empolgando na tarefa de formar grêmios

estudantis e revitalizar os centros acadêmicos e DCEs.

Embora o número de entidades estudantis tenha cla-

ramente aumentado, especialmente nos meses imedia-tamente após o impeachment, os dados sobre a quan-

tidade de novas entidades são bastante incertos; e

a comprensão do papel que elas exercem nas diver-

sas cidades e regiões do país requer um levantamen-

to sistemático. Além disso, é importante analisar as

De estudantes a cidadãos

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148 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

8 Como fui lembrada enfaticamente por jovens uni-versitários engajados no movimento negro, do ponto de vista

deste, é o movimento estudantil que aparece como movimen-to “específico”, em relação à luta mais abrangente contra

o racismo.

reconfigurações das relações entre os diversos gru-

pos organizados, não apenas em relação às corren-tes políticas tradicionais, mas também visando a

relação do ME “geral”, simbolizado pela entidade

histórica da UNE, com os outros movimentos e or-

ganizações mais “específicos” (do ponto de vista doME), incluindo o movimento negro,8 os movimen-tos de área (ligados aos cursos universitários), as

empresas juniores, e outros setores que se organi-

zam fora do meio escolar ou universitário, como os

movimentos sindicais, religiosos e comunitários. A

necessidade de tal análise está colocada pelo carác-ter majoritariamente branco e de classe média dos

caras pintadas e das lideranças estudantis, apesar

do presidente da UNE eleito em 1996 ser negro e

usar este fato como bandeira da entidade. A mar-ginalização da questão racial na política estudantilfoi salientada por universitários negros no Congresso

da UNE de 1993 sob a bandeira: “A juventude ne-

gra não tem cara pintada.” As relações muitas vezes

conflituosas entre esses setores, além de tentativas

recentes de aproximação, apontam para uma refor-

mulacão (ainda em progresso) dessas relações, cujosparâmetros precisam ser melhor compreendidos.

Existem sinais do advento de uma consciên-

cia “cívica”, embora difusa, entre setores mais am- plos da juventude?Essa pergunta é mais difícil para

se responder, especialmente do ponto de vista de

uma pesquisa que focaliza os grupos organizados.A pressuposição básica aqui é que um evento pú-

blico de tais proporções como o impeachment, am-

plamente divulgado e celebrado nos meios de co-

municação de massa, não poderia passar sem dei-

xar alguma marca nessa coorte de jovens brasilei-ros. Porém, dada a diversificação das redes e seto-

res juvenis, e a grande dispersão de identidades e

projetos-em-formação, seria difícil delinear as vá-

rias manifestações assumidas por essa nova “cons-

ciência de cidadania.” Para não incorrermos no re-trato individualista e desinteressado da juventude,

é importante indagar sobre a existência de novas

maneiras de articular projetos pessoais e coletivos,

talvez sem a grande escala utópica das décadas pas-sadas, porém mostrando outras formas, mais prág-maticas e delimitadas, de ligar as preocupações e

aspirações pessoais com visões mais amplas da so-

ciedade e seus problemas. Os sinais recentes de maior

interesse estudantil pelas organizações específicas de

curso, além da emergência de várias formas con-testadoras de expressão cultural, apontam para al-

gumas possibilidades nesse sentido, embora as ten-

dências ao corporativismo e/ou ao recuo político

desses setores também precisem ser analisadas.

Conclusão

As influências a médio e longo prazo das ma-

nifestações de 1992, tanto para os jovens como paraa cultura política democrática no Brasil, ainda es-

tão para ser vistas. Depois das passeatas, a maio-

ria dos caras pintadas voltaram para suas redes dis-

persas nas escolas, trabalhos e shopping centers.

Embora mais alguns se juntaram aos movimentosorganizados, esses ainda constituem um grupo pe-queno. Não se pode dizer que as passeatas “causa-

ram” o impeachment do presidente Collor, embo-

ra certamente contribuiram nessa direção. Porém,

elas ajudaram a provocar um momento dramático

de diálogo social, no qual os discursos e repertóriosda cultura cívica podiam ser reformulados.

Meu argumento é que a interlocução social de

atores como Lindberg Farias funcionou em direções

diversas: ajudou a dar identidade e orientação aos

jovens nos atos pelo impeachment, ao mesmo tem-

po que contribuiu para a rearticulação dos discur-sos e projetos dos setores organizados (da esquer-

da e talvez da direita também), na tentativa de ca-

tivar o engajamento de uma coorte de jovens mui-

to diferenciada daquela de três décadas atrás. Esse

processo certamente não começou com Lindberg,pois as auto-reflexões da esquerda já estavam acon-

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Revista Brasileira de Educação 149

tecendo havia algum tempo, como parte de um di-

alogo interno — às vezes doloroso — decorrente dasmudanças no Leste Europeu. Porém, a alta visibi-

lidade de Lindberg, dentro do clima intensificado

de indignação e debate público, criou um círculo

multivalente de reconhecimento, um prisma forteno qual os projetos políticos no processo de refor-mulação poderiam alcançar setores mais amplos da

sociedade. Se ele foi usado por diversas forças po-

líticas, ele também se aproveitou de uma dinâmica

que lançou aprendizados sociais em vários sentidos.

Nesse processo, criou-se a possibilidade de uma re-focalização de discursos políticos no sentido mais

abrangente de cidadania, e a incorporação desse

discurso aos estilos emergentes de participação, es-

pecialmente entre jovens recebendo suas primeirasexperiências formativas na esfera pública.

Assim, a inflexão de múltiplos projetos-em-formação no universalismo ambíguo de cidadania

serviu para criar pontes — pelo menos momenta-

neamente — entre as redes densas dos militantes e

as redes juvenis mais dispersas, contribuindo tan-

to para a mobilização da ação coletiva, quanto para

as interpretações subsequentes dessa ação no debatepúblico. A manutenção dessas pontes — e suas sig-

nificações substantivas para o futuro do país — fi-cam como desafios no complexo mundo juvenil do

final do século.

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Revista Brasileira de Educação 151

Em todos os tempos e em todos os lugares, o

diagnóstico do relacionamento dos jovens com a po-

lítica suscita de uma forma muito particular o in-

teresse e a curiosidade, e solicita com abundância

os discursos sábios assim como os discursos co-muns. O estado de saúde de um sistema político ede uma organização social depende disso. Funda-

mentalmente, esta interrogação levaria à necessida-

de e, ao mesmo tempo, à dificuldade, de transmitir

para as novas gerações, os poderes institucionais,

reais e simbólicos, que instauram e legitimam o po-lítico. Reflexo e espelho e ao mesmo tempo, ante-

cipação do futuro, a juventude cristalizaria, a par-

tir dos próprios pressupostos que fundamentam sua

identidade e sua especificidade — entre outras coisas,a inocência da mocidade, a força de suas motiva-ções, a exigência das suas expectativas e de suas

aspirações, ou ainda a necessidade de se tomar parte

e se colocar na sociedade —, as condições da acei-

tabilidade ou da rejeição do sistema político vigente.

As constatações sobre a “crise da representa-

ção política”, sobre a demanda crescente de uma“nova política”, assim como sobre a decomposição

Jovens dos anos noventaÀ procura de uma política sem “rótulos”

Anne Müxel Centre d’Étude de la Vie Politique Française (CNRS-FNSP)

Tradução de Ines Rosa Bueno 

Publicado em: PERRINEAU, Pascal (org.). L’Engagement Politique: déclin ou mutation? Paris: Presses de la 

Fondation Nationale des Sciences Politiques, 1994.

do sistema e a necessidade de sua “recomposição”

são abundantes (Cevipof, 1990, J.-L. Missika, 1992).

Os jovens, em primeira linha, sofreriam mais mar-

cadamente, como um tipo de “espelho agigantador”

(A. Percheron, 1991), os traços de uma política deaparência distorcida. Pois, as mesmas constataçõestocam o conjunto da sociedade, todas as idades,

todas as categorias de população. Não são novos

(G. Vedel, 1926), mas têm indubitavelmente, hoje

em dia, um relevo e uma acuidade, sobre a base da

crise econômica, que não tinham há vinte anos atrás.

Em relação aos jovens, faz uns trinta anos queos diagnósticos são mais ou menos otimistas, mais

ou menos pessimistas de acordo com os momentos;

eles frisam, um após outro, o retrato de uma gera-ção em revolta, engajada e politizada, nos anos ses-

senta; depois “apática” e “despolitizada”no decor-rer dos anos setenta até os finais dos anos oitenta,

um episódio marcado pelo recuo e a frieza antes do

ressurgimento de uma geração “moral” na época

do movimento colegial-estudante de 1986; e final-

mente de uma juventude “realista”e “pragmática”que dominou em seguida até os dias de hoje. Em-

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152 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

bora seja preciso tomar cuidado com generalizações

e clichés que são a receita das manchetes de jornaisnesta área, estas representações sucessivas são in-

dicadores, não só entre os jovens em questão, da

qualidade dos laços entre os cidadãos e a política

assim como dos interesses dominantes que estão emjogo na sociedade.

Os jovens de quem falaremos, atravessaram,de certa forma, estas paisagens políticas. A maio-

ria tendo nascido em 1968, quando da efervescência

revolucionária que tocava a geração de seus pais,

assiste, no início de sua adolescência, à profunda

mudança política que representa a chegada da es-querda ao poder. A aparição progressiva, tecnolo-

gicamente mágica — como se costuma dizer — do

rosto de Mitterrand nas telas de televisão, é a lem-brança mais frequentemente mobilizada na memó-

ria política. Segundo as famílias, os prazeres e osmedos que se lhe sucederam, assim como o dia su-

plementar de férias dado pelo presidente aos alu-

nos, são objeto de muitas estórias e anedotas e for-

necem uma primeira estruturação ao quadro de sua

socialização política. De lá para cá, só conheceram

a esquerda no poder, exceto no período de co-ha-bitação do qual guardam basicamente uma lem-

brança de uma potencialidade de renovação polí-tica que não vingou.

A sua entrada no cenário político, é para a

maioria deles, inesperada: é a greve no colégio em

novembro-dezembro 1986 e a experiência de umacomunidade de interesses intermediada pela primei-

ra vez, pela política e, como pudemos observá-lo,

não sem reticência e ambigüidade. Nesta correria,

a oportunidade de seu primeiro voto é dada quan-

do da eleição presidencial de maio de 1988, etapainaugural de sua entrada “oficial” na política.

Tal é o contexto em que cresceram estes jovens

de 23-24 anos de idade, assalariados, ainda estudan-

tes ou na véspera de sua entrada na vida ativa. Será

que as percepções das características do sistema po-

lítico atual estão acompanhadas de representações,senão novas, pelo menos diferentes, da política?

Será que os hábitos e os comportamentos até então

vigentes são substituidos por exigências e práticas

próprias da geração ascendente dos cidadãos de

hoje?

No quadro de uma pesquisa longitudinal quevimos realizando há cinco anos sobre as condições

da entrada na política de uma mesmo coorte de jo-

vens (A. Müxel, 1990, 1992)1, coletamos umas trin-ta entrevistas aprofundadas, relatando, a partir de

fragmentos de histórias de vida, a diversidade desuas trajetórias sociais e familiares. Elas revelam as

condições de sua socialização política assim como

os métodos de estruturação de sua identidade po-

lítica nos tempos de juventude.2

1 O período de observação fixado pelo protocolo da

pesquisa quantitativa é relativamente longo (entre 18 e 25anos, ou seja, por volta de sete anos), isto para apanhar as

formas de passagem do estado de cidadão de direito ao es-tado de cidadão ativo. Ele permite seguir a evolução das

primeiras escolhas, medir sua durabilidade assim como sua

estabilidae no tempo. Até hoje, cinco levas de pesquisa fo-ram realizadas: novembro-dezembro 1986, maio 1988, mar-

ço 1989, março 1992 e março 1993. O painel constituidocontem hoje 11200 jovens de 23-24 anos, a maoria deles

vivendo em região parisiense, a metade deles assalariada e

o resto estudantes.

2 Os 31 jovens do painel com quem foram realizadasas entrevistas aprofundadas que representam o lado quali-

tativo desta pesquisa foram escolhidos em função de um

certo número de critérios pertinentes, em relação à nossaproblemática de análise: critérios sociológicos, para cobrir

uma diversidade de classes sociais, de nível de estudos e desituação em relação ao emprego, mas também de critérios

políticos tais como os seus niveis de interesse pela política,o tipo de orientação e de filiação partidária. A amostra sedivide em metade de estudantes e de assalariados em em-

pregos mais ou menos estáveis, morando na região pari-siense. A entrevista tinha duas partes: uma primeira parte

que solicitava uma história de vida, visando estabelecer as

condições de sua inserção social e de sua experiência exis-tencial do tempo de juventude, uma segunda parte centra-

da nas atitudes e comportamentos diante da política, a partirde uma instrução não direcionada e muito ampla: “Gosta-

ria que falássemos do que a política representa para você.”

Anne Müxel

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Revista Brasileira de Educação 153

A política “desmascarada” rejeição,distância e perda de credibilidade

A evocação da palavra “política” suscita, an-

tes de qualquer outra perspectiva, imagens negati-

vas. A rejeição da política, como se pode ver diaria-mente, é vivamente expressa, os desvios dos homens

e das instituições são denunciados com a mesma

força de convicção, tanto pelos estudantes como

pelos assalariados, pelos jovens sejam eles diplo-mados ou não, de direita, de esquerda ou sem orien-

tação política definida. A homogeneidade dos ar-

gumentos é impressionante. A constatação é unâ-

nime. A crise da representação política se impõe

pelo seu caráter evidente.

Os discursos se alimentam de uma mesma bri-ga e têm como alvo um certo número de reivindi-

cações que questionam a natureza das relações en-

tre o cidadão de base com o mundo político. A po-

lítica está posta à prova dos fatos. A perda de cre-

dibilidade das personalidades assim como das ins-tituições é um elemento recorrente do conjunto dos

discursos. Ela define uma argumentação principal

a partir de três tipos de denúncias:

Primeiro, a das promessas não cumpridas pela

esquerda e do “desencanto” duramente sentido quese sucedeu, levando à falência, a própria idéia de

eficácia ou de projeto políticos. Esta queixa, liga-da às próprias orientações políticas do partido so-

cialista, não vem apenas dos simpatizantes da es-

querda, mas manifesta também nos discursos dos

jovens que se colocam à direita ou se situam fora

de quaisquer amarras partidárias. Como se esta re-tórica do desencanto servisse para alimentar a sus-

peita de mentira da qual a política é tão frequente-

mente acusada e para manter um relacionamento

desiludido e distanciado para com esta: “As pessoas

foram ludibriadas, é normal que hoje, elas sintamum certo desdém” ou “prometer coisas sabendo que

não se poderá cumprí-las, é inútil” ou ainda “Quer

seja um governo ou outro, nada mudou”, voltam

como leitmotivs nos discursos; — as brigas politi-

queiras despojam a política de seus conteúdos e deseus projetos. Por isto mesmo, esta se encontra re-

duzida ao jogo das divisões internas, das alianças

e dos oportunismos, cada vez mais complicados pa-ra se compreender e decodificar. As maracutaias

financeiras, além das ambições pessoais e os arri-

vismos de todos os tipos dos políticos, condenam

qualquer perspectiva de autenticidade política. Apolítica “domínio das pessoas sem escrúpulos”, dos“fantoches” e do dinheiro, não inspira um senti-

mento de aprovação. Como disse um dos nossos

entrevistados: “Há mais respeito em uma luta de

boxe do que na política!”

Finalmente, os escândalos políticos e financei-

ros que agitaram o país nestes últimos anos exacer-baram, muito particularmente, a perda de confiança

dos cidadãos para com estes representantes e contri-

buiram fortemente para uma impressão de nojo.Esta perda generalizada de credibilidade esta-

belece um tipo de ruptura nos laços que podem unir

os jovens ao mundo político. Este é percebido comoum mundo “paralelo”que suscita cada vez mais in-

compreensão e em relação ao qual eles têm cada vez

mais dificuldade de se identificar e se situar.

A ruptura é denunciada em vários níveis.

A própria classe política é responsável por essa

situação. Os políticos não são suficientemente pró-

ximos dos “problemas concretos das pessoas” e sãosuspeitos, por causa dos privilégios de que dispõem,de nem poder compreender e apreendê-los. Uma

ruptura entre dois mundos: “Temos a impressão

que o mundo político é um mundo que não é o mun-

do em que vivemos”, disse um. “Eles governam pa-

ra eles mesmos sem pensar nas consequências queesta situação pode provocar”, diz um outro.

Além disso, o jovens têm o sentimento de dis-

por de poucas chaves para compreender a atual si-

tuação política. A sofisticação dos debates e das

clivagens políticas, cultivada pela mediatização dos

shows políticos, mantém uma impressão de confu-são. A política é “mal explicada, mal relatada e por-

tanto mal-compreendida”, disse uma estudante; ou

ainda esta: “Não entendo bem o que eles querem,

não entendo bem o que eles dizem. Em relação à

política, eu me sinto ‘pequenininha.’” Este senti-mento de uma competência política falimentar é

 Jovens dos anos noventa

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154 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

amplamente difundido. É sem dúvida, mais o refle-

xo da complexificação dos interesses políticos doque uma diminuição do conhecimento político em

si3. É preciso fazer um esforço para seguir, se man-

ter a par e não há nada particularmente motivador

para fazê-lo.Acrescente-se a isto a impostura denunciada

por alguns de uma política cada vez mais “pré-fa-bricada” obedecendo à lógica do marketing e da

quota de popularidade nas pesquisas de opinião.

Um estudante, em uma seção comercial de um IUT

(Institut Universitaire de Technologie), declara ter

se distanciado da política depois de um curso decomunicação que apresenta as técnicas de fabrica-

ção dos discursos dos políticos.

Finalmente, esta política “distante” e exclu-dente desemboca no sentimento de uma impotên-

cia, de uma ausência de controle, de domínio sobre

a realidade política assim como sobre as decisõesdos governantes. O dia a dia das pessoas se tece fora

das políticas e, por outro lado, a política vive para

si mesma, fechada em suas próprias lógicas, como

uma torre de marfim superprotegida.

“São só faladores, uma elite que entra na polí-

tica. Nós, nos matamos dando um duro. Quando agente vê os teletons na tevê, eu acho genial que todo

o mundo se mobilize. Mas isso vem dos governantes,

eles estão muito longe, eles pensam demais em suas

viagens, em suas quotas de popularidade.” (jovem subs-

tituto, expert em contabilidade)

Último tipo de constatação para fechar este

dignóstico: não é menos em termos políticos do que

em termos econômicos que se jogam os verdadei-

ros interesses da sociedade. A primazia da econo-

mia, a construção européia, a mundialização dosproblemas, as leis da finança internacional relati-

vizam de fato a autonomia do político e seus meios

de ação. A política seria um “disfarce”, “as idéias,

o que se coloca na frente para esconder o dinhei-

ro”, estando a realidade na vida econômica, e maisgeralmente, no trabalho das pessoas mesmas. Sem

esquecer o trabalho científico, tecnológico... a po-

lítica é irreal em relação a tudo isto.

O conjunto deste discurso de negação da po-lítica, com eventuais acentos de protesto, não é for-

çosamente novo. Em outros tempos, em outras ins-tâncias, os argumentos aqui usados serviram de re-

tórica para outros tipos de discurso a certas corpo-

rações profissionais conhecidas pelas suas visões

reivindicatórias, como por exemplo, os artesãos e

os pequenos comerciantes (Mayer, 1986) ou aindapara movimentos políticos tradicionalmente anar-

quizantes ou contestatórios.

Mas o que é indubitavelmente novo em rela-ção a tempos idos é encontrá-los partilhados de for-

ma tão consensual pelas classes de idade mais novas,

e em uma interpretação tão unívoca. A política,como percebida e julgada hoje em dia não evoca

imagens positivas e poucas apreciações nuançadas.

Da parte dos novos eleitores, os adultos de

amanhã, a constatação não é anódina. Desiludida

e cínica antes da idade, será que a visão da política

dos jovens deve permanecer nesse patamar? Em con-

traponto a um questionamento tão radical e tãodesesperado, será que encontramos sugestões e até

mesmo referentes sobre o que deveria ser a políti-

ca? Dito de outra maneira, se eles desconstróem, o

que irão eles reconstruir no lugar?

Em busca de um “novo” repertório político

Quando esta mesma pergunta lhes é dirigida,o pessimismo rigoroso sobre a eficácia e a legitimi-

dade da política atual difere singularmente das ex-

pectativas fortes e ambiciosas que se expressam

para com ela. Esta geração crítica da política e, en-

tretanto, dificilmente suspeita de irrealismo, nãodesistiu de sua panóplia de ilusões. A lista dos re-

médios está feita, não sem algum surto de idealis-

mo nas expectativas da política. Lá se percebe no-

tadamente a confirmação de certas predições sobre

a evolução da participação política, sobre a emer-

3 Os trabalhos de Annick Percheron (1989, 1991) mos-

traram um crescimento dos conhecimentos políticos ds crian-

ças e dos jovens nesses vinte últimos anos.

Anne Müxel

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Revista Brasileira de Educação 155

gência de novas formas de cidadania e sobre a di-

versificação dos modos de ação da política. Reco-nhece-se neles valores pós-materialistas, estabele-

cendo um laço muito direto com novos imperati-

vos morais, e implicando, por novos interesses, o

indivíduo na coletividade (H. Barnes, M. Kaase etal. 1979, R. Inglehart, 1977, 1990).

Previamente, a necessidade de uma moraliza-ção da política se impõe: a necessidade de transpa-

rência, uma “glasnost” que seria aplicada a nosso

país, a emergência de se encontrar uma “dignida-

de” no debate político, e até mesmo uma “objetivi-

dade” nos dossiês tratados, de “dar uma impressãode verdade”, “e mais profundidade”, “mais amor”,

tantas expressões da vontade dos jovens de depu-

rar a política para se reconciliar com ela e voltar alhe devolver a sua credibilidade e legitimidade. A

educação é muitas vezes invocada, notadamente porvia da instrução cívica ou mesmo das aulas de moral

na escola, citadas em exemplos do passado, como

os avalistas e substitutos na transmissão de um certo

número de marcas e de referências a serviço, mes-

mo indiretamente, do político. Como disse um de-les, às vésperas de se tornar professor em um colégio:

A política, para que funcione, é preciso que aspessoas tenham respeito (...). Podemos chegar a mui-

to mais coisas com a educação, a cultura. A política é

muitas vezes bloqueada por contingências materiais

da economia.

Outros recursos podem ser usados para ali-

mentar e substituir a atividade política, por exem-

plo, a arte e a cultura: “Os políticos não podem

responder a todas as expectativas. Há pessoas querespondem muito mais nos seus escritos, feitos, can-

ções, no que se cria.” Uma melhor comunicação

entre as pessoas, uma melhor difusão da informa-

ção fazem, também, parte das novas expectativas

em relação ao político.

Vem em seguida a necessidade de uma recon-ciliação entre os imperativos econômicos e os impe-

rativos comandados por aquilo que poderiamos de-

finir como “um humanismo de bom senso”. A polí-

tica seria a interface destes dois tipos de exigência,

e assim mesmo constituiria um tipo de “esqueleto”

moral da sociedade, levantando o desafio de “pen-sar nas pessoas e na economia ao mesmo tempo.”

O “programa” é ambicioso. Para aplicá-lo, as

idéias, os projetos devem se abrigar novamente a

política, dando-lhe substância. Mas não se tratamais das idéias políticas de antigamente, sustenta-

das pelas clivagens ideológicas tradicionais e poramarras partidárias que delas decorriam. Agora, é

preciso “convergir antes que divergir, se unir antes

que se diferenciar”. Tal poderia ser a palavra de

ordem de uma nova ética política. Os rótulos são

rejeitados não somente em nome da sua obsoles-cência, mas também porque são fatores que alimen-

tam as brigas e impasses e dos quais os jovens que-

rem livrar o sistema político. As idéias são “des-ideologizadas” em nome da eficácia e da competên-

cia políticas. A caricatura desta nova ordem políti-ca está contida nas seguintes palavras:

A política, deveria criar um ambiente para tirar

idéias de tudo quanto é lugar para poder fazer avan-

çar. Eu vejo a política um pouco assim, um pouco

como uma empresa que tem um patrão e que vai se

cercando de colaboradores e de empregados que, cada

um na sua individualidade e seu trabalho, vai permi-tir e fazer progredir seu objetivo, atingir sua meta.

É preciso apelar mais para a competência e

para a boa vontade do que para a ideologia política.

Finalmente, um reforço da democracia direta

é muito vivamente reclamado, o que confirma anecessidade de aproximação entre o mundo políti-

co e a população. Os cidadãos devem ser consulta-

dos, levados em conta nas decisões: “Eu sou a fa-

vor das pessoas tomarem conta delas mesmas. É

preciso que reflitam sobre os problemas da socie-dade.”A idéia de uma política “interativa” está emi-

tida, assim como da propaganda que deve encon-

trar novas lógicas de comunicação, instaurando uma

reapropriação pelo consumidor da base das suas

mensagens, além de levar em conta aquelas que elepode emitir em retorno: “Outro dia, Séguela dizia

que o futuro da propaganda era a propaganda in-

terativa. É exatamente o que penso da política: per-

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mitir a volta de uma opinião vai fazer evoluir as

coisas”, explica um jovem adido comercial. Um es-paço político concebido como “grandes orelhas”

onde se expressariam ao mesmo tempo que seriam

canalizadas todas as tendências da sociedade. Re-

sumindo, a política serviria o sonho de uma comu-nicação verdadeira entre todos e entre todas, os do-minantes e os dominados, em nível local ou em es-

cala planetária, no respeito às diferenças das cultu-

ras e das individualidades.

Esta visão de um espaço político ampliado, emi-

nentemente “democrático”, reapropriado e habitado

por uma diversidade de tendências e de interesses,põe em causa a dimensão elitista da política, de seus

atores, assim como dos seus modos de ação4. Supõe

uma intensificação da participação, cada vez maisorientada por ações pontuais e objetivadas, de acor-

do com os interesses específicos de certos grupos,certas categorias sociais, ou até mesmo em função

de comunidades de interesses individuais5.

O nível de exigência que transparece neste “re-

pertório” das expectativas em relação à política está

alto. Ele mobiliza referentes “de alto nível” e lan-

ça mão dos imperativos que anunciam talvez as con-

dições de emergência de uma “nova moral políti-

ca”: dignidade e transparência, coesão antes quecoerção, unidade e respeito das diferenças, comu-

nicação e reforço da democracia, tantas palavras de

ordem que, por detrás de seu idealismo aparente,

redefinem as condições de restauração entre os jo-vens cidadãos e a política.

A nebulosa esquerda-direita:formas vazias de filiação

As pesquisas de opinão revelavam, há dez anos,

um aumento bastante importante do número de pes-

soas para quem a distinção entre esquerda e direitanão fazia mais tanto sentido. Em 1991, 55% dos

franceses estimavam que a distinção esquerda-direita

está ultrapassada para julgar as tomadas de posição

política, em 1981, só 33% aqueles que comparti-lhavam da mesma opinião; perto de um terço da popu-

lação (30%) se recusa hoje, a se colocar entre a es-

querda e a direita; em 1981, a proporção só era de

20% (R. Cayrol, 1992). Esta evolução acontece no

sentido de uma menor legibilidade das clivagens entre

a esquerda e a direita e de um recuo do sentimentode pertencimento. Resta saber entre a maioria dos

que se posicionam, o sentido e o significado de seu

posicionamento. Os trabalhos de Guy Michelat mos-

tram que a existência de uma coerência e de umacorrespondência entre as posições no eixo esquerda-

direita e as dimensões do universo sóciopolítico per-

manecem globalmente verificadas (G. Michelat, 1990).

Será isto válido, mesmo entre os mais novos, cujos

referentes nesta área não podem ser tão estruturados

quanto os das gerações anteriores? Só tendo conhe-cido a esquerda no poder, além de se tratar de uma

esquerda cujas distinções próprias foram se confun-

dindo, quais referências poderão eles mobilizar?

A contribuição das entrevistas qualitativas per-

mite levar um pouco mais adiante esta reflexão e

revela constatações onde se misturam confusão eparadoxos.

Todos os jovens que interrogamos exceto um

adotam uma classificação na escala esquerda-direi-

ta6. Mas se as identificações à esquerda ou à direi-

4 Citaremos Max Kaase e Samuel H. Barnes (1979)

que, na conclusão de sua obra, fazem a seguinte observa-ção: “No futuro, as posições sociais das elites vão se tornar

cada vez menos permanentes, hierárquicas e abrangentes (...)crescentemene variáveis e pluralistas. Tomadas de decisão

se tornarão mais difíceis em razão da participação amplia-

da dos cidadãos” (p. 531). (Tradução do revisor)

5 Ronald Inglehart (1990) prevê uma mudança dosmodos de participação política: “um declínio da mobilização

política dirigida pelas elites e um crescimento de grupos

orientados por questões contestatórias”(p. 6). (Tradução dorevisor)

6 Na escala esquerda-direita em sete pontos, partin-

do da esquerda para a direita, contamos as classificaçõesseguintes no seio de nossa amostra: dois jovens se colocam

na posição 2, dois entre as posições 2 e 3, cinco na posição

3, sete na casa central, três entre as posições 4 e 5, cinco naposição 5 e três na posição 6. É bom observar que as casas

nos extremos nunca são ocupadas.

Anne Müxel

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Revista Brasileira de Educação 157

ta sempre acontecem (A. Müxel, 1992), elas pare-

cem funcionar como formas vazias de filiação, o queresume muito bem um deles (“sou de direita por-

que sou contra a esquerda”), mas sem poder ir mui-

to longe em sua argumentação, nem mesmo com-

preeender realmente as razões de sua escolha; osdiscursos que elas suscitam só encontram poucasreferências sólidas na própria realidade da relação

de forças políticas, para reconhecer o que os dife-

rencia. A observação seguinte é exemplar: “Muita

coisa está acontecendo, a situação está muito ins-

tável. Por enquanto até eles estão perdidos; conoscoentão, não adianta.”

Este sentimento de diluição das referências é

compartilhado, quer se esteja reconhecidamente filia-

do à esquerda ou à direita. Aliás, esta visão emba-çada e turva das clivagens ideológicas não aparece

mais marcadamente naqueles que não confessamnenhuma filiação particular (os que se colocam na

posição central da escala, por exemplo) do que entre

os jovens cuja orientação é mais determinada.

Neste marasmo geral, apenas algumas referên-

cias mínimas continuam sendo usadas para delimi-

tar a esquerda e a direita. Para a primeira são re-

servados o campo da ação social, uma aceitação

mais popular, a instauração de mais igualdade, o“tomar partido” das pessoas comuns e a defesa dos

pobres. Concebida como mais “indulgente”, mais

“conciliante”, é também suspeita de impostura: “ser

de esquerda e viver em bairros bonitos, não sei seisso é possível”, disse um deles. Geralmente as re-

presentações da esquerda não vão além da lembran-

ça destes poucos princípios, exceto alguns raros in-

divíduos mais engajados que evocam com fé a “mis-

são social” que cabe a eles. Por seu lado, a direitaé associada ao “liberalismo”, ao “capitalismo” —

a palavra ainda é usada —, à ordem e à performance

econômica. Os interesses políticos da direita dizem

respeito sobretudo ao país e a situação econômica,

enquanto que os interesses políticos da esquerda sãomais percebidos como, prioritariamente, tocantes

aos indivíduos e suas condições de vida.

Apesar das diferenças apontadas graças à in-

sistência muito particular do entrevistador, os dis-

cursos permanecem, no conjunto, espantosamente

pobres sobre este assunto. Há uns vinte anos atrás,no quadro de uma pesquisa similar, teriamos apa-

rentemente encontrado discursos mais estruturados

ideologicamente, e coletado pedaços inteiros de re-

tórica doutrinária ou profissões de fé políticas. Semdúvida, não entre todos, mas certamente de alguns.Hoje em dia, a ausência total deste tipo de discur-

so é reveladora da mudança que ocorreu. As pala-

vras desta jovem simpatizante comunista, a mais

engajada da nossa amostra, dispensam comentários:

“Sou comunista com referências capitalistas”. Osdiscursos políticos não são, em absoluto, a receita,

da base ao cume da pirâmide política!

Se a esquerda e a direita são muitas das vezes

colocadas no mesmo pé de igualdade, com a suacredibilidade recíproca posta em perigo, e seus per-

tencimentos fragilizados, em contrapartida, as úni-cas verdadeiras balizas que delimitam o campo polí-

tico, facilmente identificáveis e identificadas pelos

jovens, são os “extremos”. Extremos contra os quais

é preciso se garantir e se proteger, mas extremos dos

quais eles têm a impressão que são as únicas posi-

ções políticas a partir das quais se estrutura o de-bate político atual. A Frente Nacional (Front Na-

tional), por exemplo, desempenha nisto um papelde repelente, é claro, mas um papel muito eficaz na

construção da identidade política dos jovens de hoje

em dia, única referência forte em relação à qual elespodem se situar e existe uma posição real a tomar7.

Além destes extremos, que muitas vezes de-

signam para eles, o limiar de “perigo” político e

uma exposição da democracia ao perigo, a confu-

são reina. A distinção entre a esquerda e a direita,embora sempre suscite a idéia de dois campos opos-

tos, mas de uma maneira formal ou virtual do que

real, com uma “barragem”entre os dois, não é mais

reivindicada. Entretanto, ela é instrumentalizada

em um duplo discurso relativamente ambíguo econtraditório. A interpretação que se dá do apagar

7 Reportar-se à contribuição de Nonna Mayer: “A

mobilização anti-Front National”, infra.

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das marcas ideológicas esquerda-direita revela um

tipo de duplo constrangimento em que seu racio-cínio está envolvido — à maneira do sistema “dou-

ble bind” descrito pelos interacionistas sistêmicos

americanos8 —, colocando o indivíduo diante da

impossibilidade de responder a duas injunçõescontraditórias.

De um lado, por detrás das suas palavras, se

subentende uma demanda por clarificação dos in-

teresses reais da política. Eles sentem falta de um

tipo de idade mítica ultrapassada em que as refe-

rências existiam e onde lhes parecia forçosamentemais fácil se determinar e decodificar as lógicas

políticas:

Mesmo que eu não tenha vivido e que tenha,

portanto, dificuldade para falar a respeito, eu acredi-

to que em termos históricos, havia realmente mais

disparidades. Hoje em dia, a gente vê como a política

se define: a gente vai à esquerda, a gente vai à direita,

a gente vira e depois vê no que é que dá!

Por outro lado, a rejeição do conflito, a pri-

mazia da eficácia e da competênca objetiva sobreas querelas ideológicas, tornam possível a crença

nesta evolução. Se, em um primeiro momento, o de-

sejo do consenso se impôs por meio das própriascircunstâncias da conjuntura política, ele designa

também hoje em dia, segundo eles, uma verdadei-ra via de reconstrução do político.

Ainda existem diferenças entre a esquerda e a

direita. Eu não digo que isto é algo desejável. Se isto

pode se nivelar, é bom. Chegaremos lá.

Ou ainda:

Não vejo a política como uma separação: a es-querda, a direita e o centro. São todos homens que

fazem alguma coisa e eu os julgo mais pelos seus atos

do que pelas filiações políticas.

As expectativas em relação à política pedem

portanto, ao mesmo tempo, uma maior legibilidadede seus conteúdos e de suas referências e a anula-

ção da dependência destes últimos em relação às

grandes clivagens políticas tradicionais. Um duplo

constrangimento difícil de se reconciliar, a não serpor uma total redistribuição das cartas políticas, eisto, com o risco de perder a própria essência da

política.

A vontade geral de consenso revela uma evo-

lução profunda da cultura política no sentido, ao

mesmo tempo, de uma homogeneização de suas ex-

pectativas e de uma diversificação de seus interes-ses. Como o disse um deles, que acaba de conseguir

um diploma comercial: “É preciso estar no centro

das idéias. Tomar o que há de bom à esquerda e àdireita, por todos os lados, e fazer um conjunto que

seja o mais homogêneo possível, que possa fazeravançar.” As clivagens políticas se estabelecem do-

ravante menos no conflito entre as classes ou os

grupos sociais, arbitrados até então pelos partidos

tradicionais de direita e de esquerda.

Um jovem estudante de direito, eleitor do PS

ou dos comunistas renovadores e que reivindica

porém, um engajamento quase militante, na ala

mais à esquerda da movimentação socialista, decla-ra assim:

Não se pode mais cair na facilidade de pensar

que as coisas caridosas são o apanágio da esquerda e

que o patriotismo intransigente é o apanágio da direi-

ta. Chevènement mostra que o patriotismo pode ser

de esquerda. Balladur mostrou que ele podia ser so-

cial sendo de direita.

Novos valores fundamentam outras clivagens

a respeito das quais as palavras de ordem tradicio-nais não funcionam mais. O desejo de autonomia

individual vem se interpor entre a demanda de con-

trole e de planejamento do Estado e a economia de

mercado, fiadora da liberdade, e isto quaisquer que

sejam as filiações políticas (R. Inglehart, 1990). Ailustração que propõe um jovem estudante das Be-

las-Artes, sem filiação política definida, é deste pon-

to de vista, eloqüente:

8 Reportar-se aos trabalhos da escola de Palo Alto,apresentados na obra, dirigido por Paul Watzlawick e John

Weakland (1977).

Anne Müxel

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Revista Brasileira de Educação 159

Se eu jogar na raspadinha e ganhar 1 milhão, eu

vou votar para uma política que conserve meu milhão:

a direita. Por outro lado, se eu trabalhar e o meu pa-

trão se esquecer de me pagar 1000F, eu vou votar para

a política que vai recuperar estes 1000F.

Neste caso, mesmo que a esquerda e a direita

estejam bem diferenciadas, podemos, não obstante,

duvidar de sua capacidade para fixar amarras fiéis

e duradouras a partir de uma concepção dessas.

Nesta nebulosa esquerda-direita, como é que

são, então, arbitradas as escolhas eleitorais? Nestecontexto, o que significa o voto dos recém chega-

dos na política? A partir de que dados, de que in-

fluências, os jovens se determinam para decidir as

suas escolhas?

Trajetórias de voto: “moderato cantabile”

A memória eleitoral parece espantosamente

fraca. Se a eleição presidencial de maio 1988, querepresenta o primeiro voto da maioria dos jovens

interrogados, constitui a referência mais confiável,

as outras eleições são dificilmente citadas e preci-

sam da intervenção do entrevistador para que se-

jam lembrados os interesses e o contexto da épo-ca. O período é, entretanto, curto, cinco anos, ecobre seis eleições9.

Esta falha de memória destoa da importância

que a maioria dos jovens dá ao direito de votar:

“Mas mesmo que precise votar em branco, sempre

votarei. Tem países onde se briga para conseguir o

voto. Nós temos este direito mas ao invés de apro-veitá-lo, nós não estamos nem aí. Francamente, fico

danado quando sei que alguém vai ser eleito com

70% dos votos”. A consideração que eles dão ao

direito de voto se reveste de uma dimensão simbó-

lica particular: o fato de votar, de expressar a legi-

timidade de suas escolhas, é considerado como umapassagem significativa para a entrada na vida de

adulto (A. Müxel, 1990). O primeiro voto é mui-

tas vezes investido de um entusiasmo e de um sen-

timento de poder: “Era excitante se encontrar nomeio dos adultos. A gente se sente inserido com aspessoas que votam pelo mesmo candidato. A gen-

te se sente integrado na sociedade.” Até os que se

declaram abstencionistas ou desistiram da política

demostram muitas vezes um sentimento de trair um

direito e também um dever.

Deste calendário eleitoral retraçado passo apasso, se revelam vários itinerários, nem sempre

fáceis de serem decifrados e interpretados. Eles

permitem entender um certo número de configura-ções reveladoras do relacionamento dos jovens com

a política, e de sua evolução nos últimos quatroanos, isto é, desde a reeleição de François Mitte-

rand em 1988.

Mesmo que as escolhas não se confirmem sem-

pre com muita convicção, mais de um terço dos

jovens se destacam por um comportamento relativa-

mente constante no seio de uma constelação políticadeterminada. Entre eles, as poucas flutuações obser-

vadas permanecem moderadas e se explicam sobre-tudo pelas condições da oferta política ou pela ten-

tação de uma hora para outra pelo voto ecologista.

Entretanto, mesmo no caso destas trajetórias

e votos, cuja sucessão das escolhas expressa umacerta determinação assim como uma relativa esta-

bilidade, a eventualidade de uma mudança de cam-

po se torna possível. Quando as filiações são reco-

nhecidas, elas só raramente revestem um caráter

definitivo. A abertura, a fluidez da adesão, e sobre-tudo o livre arbítrio permanecem as condições de

expressão das escolhas políticas, até entre os jovens

cujas orientações ideológicas são mais definidas.

Dois outros tipos de trajeto são particularmen-

te significativos da sensibilidade eleitoral atual.

O primeiro, mais ou menos um quarto dos jo-

vens entrevistados, resulta de um tipo de “partici-pação negativa”. Ele junta os abstencionistas, mais

ou menos constantes, mas também os votos bran-

9 Eleição presidencial de maio 1988, as eleições legis-lativas de junho de1988, o referendo para a Nova-Caledônia

de outubro de 1988, as eleições municipais de março de1989, as eleições européias de junho de 1989, e finalmente

as eleições regionais e cantonais de março de 1992.

 Jovens dos anos noventa

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cos e as desfiliações progressivas ao sabor do inte-

resse eleitoral. Os abstencionistas constantes sãoraros e são, de fato, os mais afastados. Mas, há uma

outra família de abstencionistas que parece se im-

por mais ainda. Nela se expressa uma desfiliação

recente e progressiva da política. A inconstância dovoto resulta muitas vezes da desilusão e do desen-canto em relação à esquerda. Ela traduz uma ver-

dadeira impossibilidade de saber onde se situar e

como se sentir novamente envolvido. “De cansei-

ra, nada se mexe. Eles resolvem os seus problemas

entre eles mesmos, eu não me sinto envolvida. Mes-mo que eles administrem o país onde moro, não me

sinto, de maneira alguma, envolvida” declara uma

jovem secretária que votou em Mitterrand no pri-

meiro turno da eleição presidencial de 1988 e de-pois não votou mais. Um outro que trabalha cominformática e votou muitas vezes no PS reconhece,

hoje, ter desistido:

Eu tinha escolhido o Mitterrand porque estava

um pouco exaltado, o socialismo, a rosa. (...) E depois,

sempre o mesmo contexto. Lá, se eu tivesse que vo-

tar, me absteria. A menos que eu volte decididamen-

te a ler as notícias e isto me interessar. Mas já que não

é o caso, me sentiria burro de ir votar estupidamentenos socialistas.

E muito menos votará na direita como ele faz

questão de frisar.

Os votos em branco participam de uma mes-ma lógica. Porém, eles parecem mais investidos de

sentido por seus usuários. Eles respondem a uma

preocupação de se expressar, mas “sem tomar po-

sição”, e a uma vontade de exercer uma pressão

política. “O voto em branco é a minha maneira dedizer: não acredito em Sicrano, não acredito em

Beltrano, mas eu acredito em alguma coisa”, afir-

ma um jovem adido comercial. Eles são mais ou

menos sistemáticos e são mobilizados de forma in-

termitente com outros votos: “Eu voto na direita ouem branco”, “Eu voto na esquerda ou em branco”

são observações que sempre voltam na descrição

dos itinerários.

O segundo tipo de trajetória revela uma fra-

gilidade das identitificações partidárias, uma verda-

deira instabilidade das escolhas e uma mobilidadedos votos, mais ou menos sistematizadas e racionali-

zadas. Na amostra, um jovem em três ultrapassa no

momento de seus votos, a famosa “barragem” es-

querda-direita na adesão aos candidatos. Esta mo-bilidade se apresenta de duas maneiras que não têmexatamente o mesmo alcance político.

Primeiro caso de destaque, a mobilidade ob-

servada aparenta mais uma flutuação ligada à atra-

ção de certas políticas na movimentação do centro

(entre outros, Raymond Barre, Michel Noir, ou Si-

mone Veil...) do que uma verdadeira instabilidade.Ela é em geral acompanhada de identificações par-

tidárias senão pouco afirmadas, mas pelo menos

relativamente flexíveis. Prioridade talvez dada, emum momento ou em outro, às qualidades pessoais

de um candidato acima das orientações ideológicasou partidárias habitualmente expressas pelo indi-

víduo. Assim, este entrevistado que votou muito

mais vezes na esquerda, mas também votou nos eco-

logistas,e Simone Veil nas eleições européias pelas

suas qualidades pessoais e políticas:

Quando votamos, é para expressar alguma coi-

sa. Votei na Simone Veil, não era bem no partido dela,era nela, para lhe dar voz. Há medidas que ela tomou

que eu gosto. É uma boa mulher daquelas que a gen-

te não vê muito na política.

Ou este outro que costuma votar no PS, masque, nas municipais, deu seu voto a Jacques Tou-

bon: “Embora tenha afinidades com a esquerda,

não é por causa disso que vou questionar todo o

trabalho que ele fez.” Na análise quantitativa, fei-

ta com a coorte que seguimos há cinco anos, sobrea mobilidade das posições na escala esquerda-direita

em sete pontos ao longo dos ciclos de pesquisa, só

encontramos um número muito restrito de passa-

gens entre a esquerda e a direita (4%). Em compen-

sação, contabilizamos um número muito importan-te de “hesitantes” (36%) que se caraterizam por um

flutuamento de suas posições devido à escolha in-

termitente na casa central. De acordo com as eta-

pas da enquete, estes hesitantes se colocam alterna-

Anne Müxel

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Revista Brasileira de Educação 161

damente no centro e em uma posição de esquerda

ou de direita, sem por isso ultrapassar a barreira quesepara os dois campos, representada pela posição

central (Müxel,1992).

O outro tipo de mobilidade aparece menos fre-

qüentemente mas se mostra mais radical. Ela tema ver com voto “estratégico” ou “racional”(P. Ha-

bert, A. Lancelot, 1988) que já não depende estrei-tamente, como no passado, das determinações so-

ciológicas do eleitor, das variáveis ditas “pesadas”,

e questiona na sua própria lógica, a idéia de iden-

tificação e de laços partidários. O caso do jovem

estudante citado anteriormente, discutindo com umraciocínio puramente individualista e oportunista

as vantagens respectivas da esquerda ou da direita

de acordo com um milhão que ele pode ganhar naloto ou um litígio qualquer com seu patrão, é bem

ilustrativo como exemplo. Neste caso de destaque,a arbitragem dos votos se faz, em primeiro lugar, a

partir das circunstâncias e dos interesses da vida

pessoal. Além disso, este tipo de comportamento

eleitoral fica fortemente submetido à influência tan-

to da conjuntura como da oferta política.

Certas trajetórias aparecem espantosamente

movimentadas. Assim, esta jovem secretária que

votou FN, no primeiro turno da eleição presiden-cial de 1988, F. Mitterrand no segundo turno, FN

nas européias e ecologista nas municipais, e que

todavia, declara: “É duro ir votar, não é algo que

se faz levianamente, não é só um nome que se co-loca de um envelope, são também as idéias em que

acreditamos.”

Tanto um como outro destes exemplos nos

levam à dimensão protestatória do voto que tam-

bém explica este tipo de comportamento eleitoral.

A maneira como o voto Le Pen pode ser utilizadoe argumentado é, deste ponto de vista, significati-

va. Cinco jovens declaram ter votado pelo menos

uma vez em Le Pen, e no discurso de alguns outros,

geralmente próximos da direita, ou entre jovens

que, decepcionados com a esquerda, “passaram” àdireita, a eventualidade de fazê-lo um dia não é to-

talmente excluída. A tentação do voto Le Pen, quan-

do ela surge nos discursos, enuncia um tipo de exor-

cização do sentimento de mal-estar que se sente tan-

to para com a política quanto para com a socieda-de em seu conjunto. Se ele funciona para muitos

como referência-repelente, ele pode também susci-

tar a atração da travessia do proibido, e até mes-

mo do perigo, para “amedrontar, amedrontá-los”(subentendido o resto da classe política). Ele podeser instrumentalizado como uma ferramenta de con-

testação, para fazer mudar as referências e os inte-

resses da política, “para agitá-la”, em nome da mo-

ralização, da transparência, e da busca por eficácia

tão reclamadas hoje em dia. O falar-franco de JeanMarie Le Pen, sua “coragem” para dizer o que os

outros não querem dizer, sua vontade de tratar os

reais problemas podem ser considerados por um

bom número deles (cinco ou seis) como qualidades,embora o espectro do extremismo de direita ou doracismo seja assim mesmo rejeitado. Nos jovens

cujas orientações políticas são pouco fixadas, ou em

quem o sentimento em relação à política é parti-

cularmente desabusado, isto pode representar uma

atração.

A decalagem aparente que pode ser observa-

da entre, por um lado, a permanência das classifi-cações na escala esquerda-direita, assim como o

fraco número, em nível da coorte, das travessias debarreira mostrada pela posição central entre os dois

campos e, por outro lado, a relativa mobilidade das

trajetórias de votos, é significativa da perda de subs-tância e de conteúdo das identificações que acon-

tecem à esquerda e à direita. Formas vazias de filia-

ção, tais como nós descrevemô-las anteriormente,

toda a latitude do jogo eleitoral pode se afundar

nelas.

O engajamento político, consciência planetária,e “estratégia dos pequenos passos”

Apesar do mal-estar do marasmo político e da

instalação de uma morosidade ambiente quanto às

esperanças de mudança na sociedade, apesar da di-

fusão da ideologia da renúncia e do “egoismo da

fatalidade”, — a expressão foi encontrada por umdos nossos entrevistados —, que parecem afetar

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todo o mundo, os discursos dos jovens sobre o en-

gajamento político revela uma vontade de implica-ção e um grau de consciência espantosos. É certo

que com bemóis e nuances, e sobretudo invocando

uma concepção do engajamento que já não tem mais

muito a ver com os usos militantes do passado. Masnada deixa transparecer nas suas palavras um re-cuo do terreno de ação política. Não a ação políti-

ca que seria levada no quadro institucional dos par-

tidos, mas uma ação política com “P” maiúsculo,

como dizem, o que que significa, atacar por meios

“concretos” os “verdadeiros” problemas, os do diaa dia e também os que dizem respeito à sociedade

em escala planetária. Eles não acreditam na possi-

bilidade de grandes mudanças e medem os limites

de eficácia das ações que eles poderiam realizar à suaaltura. Eles desenvolvem uma outra visão da mu-dança social, ao mesmo tempo mais modesta e mais

realista, e imaginam a generalização e a multiplica-

ção de pequenas ações, uma ampliação de um en-

gajamento “artesanal”, segundo os meios e as von-

tades de cada um, um avanço por “passinhos”. Não

se trata de “mudar o mundo”, mas de tão somente“melhorar as coisas”. Nem pensar ser “revoltados”,

“anarquistas” ou “utopistas”, mas também, mui-

to menos se desengajar, se “desligar” de uma obri-gação de consciência, e talvez de um dever de soli-

dariedade que correspondem bastante bem à defi-nição que Gilles Lipovetsky dá para “cidadania pla-

netária”. Esta última enunciar-se-ia de um tipo de

“ética de síntese que reconcilia ecologia e economia,

moral e eficácia, qualidade e crescimento, nature-

za e proveito”(G. Lipovetsky, 1992, p. 227).

O engajamento político, como ele é concebi-do hoje em dia, se constrói a partir de um discurso

de dupla voz: a de um idealismo, sempre ativo, nem

que seja através da obrigação de consciência, e a que

inspira o realismo e a renúncia, tamanha a comple-

xidade e a amplitude dos problemas que parecemde difícil resolução. Mas no fundo, há pouco lugar

nisso para o recuo “individualista”. O engajamen-

to deve se fazer “fora das cores políticas”. A recusa

das etiquetas, o medo da “arregimentação”, do as-

sujeitamento, e de toda restrição à liberdade de pen-

sar ou de agir, fazem rejeitar o engajamento de tipo

partidário. O caráter definitivo do militantismo tra-dicional amedronta.

A ação no quadro dos partidos políticos é ma-

culada com a dupla suspeita de uma ausência de

autenticidade e do risco de impostura. Seria no fun-do “mais um engajamento para si mesmo do que

para os outros”, portanto a própria negação da idéiade engajamento. Além disso, este tipo de adesão não

poderia escapar da luta pelo poder, das brigas in-

ternas e externas do jogo partidário, cujos defeitos

na vida política atual, eles denunciam. “Nos parti-

dos políticos, são profissionais. Não existe mais estanoção de associação. Na noção de partido, existe

a da entidade econômica, procurando desenvolver

as suas idéias e tomar o poder”, esclarece um deles.Esta idéia de “associação” é a principal peça

da sua aceitação dos modos de ação e de interven-

ção dos cidadãos de hoje. Ela define uma concep-ção depurada, a também em nome de uma morali-

zação da política, da noção de partido.

São benévolos que pedem a outras pessoas para

serem benévolas para consolar outras pessoas que so-

frem. Sendo benévolos, não existe mais o lado “show-

bizz”do sistema político que faz se avance seu perso-nagem para introduzir suas idéias.

Descrito desta forma, este tipo de engajamen-

to apela para valores morais e se concebe como

uma cadeia de solidariedade de um espaço de in-tervenção que pode ir da “soleira da sua porta” até

os confins do outro lado do mundo, dos restauran-

tes para namorados à instalação de bombas de

água no Sahel.

Além disso, o modelo de associação supõe um

controle mais direto sobre a realidade dos proble-mas, um laço mais estreito com os atores envolvi-

dos e, portanto, a posibilidade de uma maior eficá-

cia. “Engajar-se em uma associação, é mais objeti-

vo, mais concreto. Se eu ajudo, gostaria que isso se

visse, que haja algo positivo e que sirva.” O discursocheio de imagens deste desenhista-projetista, sobre

o papel dos sindicatos, é revelador desta redefinição

e desta atomização dos modos de ação:

Anne Müxel

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Revista Brasileira de Educação 163

10 Lembraremos mais uma vez aqui, as considerações

de Samuel H. Barnes e de Max Kaase que vêem, no aumen-to destes modos de ação, a expressão de valores pós-mate-

rialistas que redefinem a ação política: “Eles estarão obvi-

amente entre os primeiros a traduzir a insatisfação políticaem uma ação política corretiva.” (Tradução do revisor).

Fazer um sindicato dentro das empresas, sim.

Mas não quero que estejam CGT ou FO por detrás

dele. Quero que seja o sindicato dos Seres Humanos,

a par dos problemas, à escuta das pessoas, que não

sejam muito grandes. Um micro-sindicato em uma

micro-sociedade. O sindicato dos locatários da 64, ruade Lyon. O sindicato das pessoas que têm algumas

coisas em comum, no trabalho. Que não haja filtro.

Que as coisas andem mais rápido.

Idealismo e utilitarismo se misturam para de-finir formas de engajamento mais “fraternais”.

As causas pelas quais os jovens se declaram

interessados e eventualmente prontos para se mo-

bilizarem dizem respeito tanto aos interesses plane-

tários quanto aos interesses da vida cotidiana. Asgrandes causas clássicas de tipo humanitário ou eco-logista ocupam um espaço amplo, em torno de três

quartos dos entrevistados a um momento ou outro

da entrevista. A Cruz Vermelha, Médicos-Sem-Fron-

teiras, Anistia International ou os apelos do coman-

dante Cousteau são algumas das iniciativas às quais

os jovens poderiam imaginar se juntar um dia. Umponto comum a todas elas, sempre o mesmo: a au-

sência de marca política. Embora os jovens que se

situam politicamente na movimentação da esquer-da manifestem uma vontade de engajamento mais

marcada que nos outros.

O racismo, a guerra, a subida dos nacionalis-mos podem suscitar impulsos espontâneos parti-

cularmente determinados. A respeito das guerras

étnicas, um deles, o mesmo porém que avaliava a

sua escolha política em função de seus interesses

próprios, seja de ganhador na loto, seja de explo-rado pelo patrão, declara: “Se conseguirmos encon-

trar 20.000 pessoas, fazer uma cadeia e fazer de tal

modo que os dois campos que lutam parem, eu en-

tro nesta na hora.” Ou deste outro, resoluto a “en-

trar na guerrilha”, de acordo com o modelo míti-co da Resistência Francesa durante a segunda guerra

mundial, aliás lembrado muitas vezes, caso Le Pen

chegue ao poder.

Paralelamente a este registro clássico de mo-

bilização, outros tipos de intervenção são imagina-

dos, tipos de missões sociais no cotidiano, mais cen-

tradas, apoiando-se em uma implicação pessoal doindivíduo, no seu conhecimento ou na sua experiên-

cia imediata do problema, que desencadeariam as

motivações de seu engajamento. A grade dos temas

mobilizadores recenseados nos discursos faz apare-cer a dimensão protestatória subjacente a estes mo-dos de ação, cada vez menos substituidos pela me-

diação das instituições políticas tais como os par-

tidos, os sindicatos ou até mesmo a representação

parlamentar, e cada vez mais administrados pela

iniciativa autônoma dos indivíduos10.

Encontramos aí a necessidade de democraciadireta mencionado anteriormente. Os exemplos de

ação a realizar abundam e seriam, se precisasse

montar uma lista, tão diversos quanto os problemaso são, dos mais graves aos anódinos, que afetam a

vida cotidiana dos franceses, hoje. Um deles, apai-xonado por carros, poderia se engajar em uma “as-

sociação da estrada”, para “lutar contra as mortes”.

Um outro poderia fazer parte de uma associação de

bairro para “ajudar as pessoas” e “lutar contra a

solidão”. Uma jovem estudante de matemática, pro-

fundamente ligada à sua cidade de Aveyron, iria àluta “para que o campo não morra, para que o mun-

do rural continue a existir”. Este outro ainda que-ria combater para a programação dos filmes em

VO, nas redes públicas de televisão e nos cinemas

do interior. É preciso também lembrar da ajuda aosdoentes aidéticos, das ações a realizar na periferia,

dos direitos das mulheres, sem esquecer a luta con-

tra o racismo.

No final das contas, só um quarto dos jovens

entrevistados descarta a perspectiva de qualquer

engajamento, seja por excesso de individualismo(“A mim, o que me preocupa é a minha vida, a dos

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164 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

meus amigos, dos meus pais, não quero saber como

vai o mundo e nem para onde ele vai”), seja por-que eles não se sentem nem prontos nem suficien-

temente seguros de si para concretizar e assumir a

responsabilidade do engajamento.

O conjunto destes discursos sobre engajamen-to revela portanto grande disponibilidade potencial

dos jovens. A realidade dos engajamentos efetivosque podem deles resultar não é sem dúvida tão oti-

mista. Os jovens são, aliás, os primeiros a reconhe-

cê-lo. “Tenho vontade de me engajar. Mas há tam-

bém uma certa inércia, uma certa frieza. Uma von-

tade de fazer alguma coisa, mas também um medodo combate”, afirma, como muitos outros, um de-

les. Será que se encontraria, manifestada nas pala-

vras dos nossos entrevistados, a expressão da ideo-logia do engajamento que parece se difundir bas-

tante amplamente, — os textos atuais das cançõesde variedades são, sob este ponto de vista, eloquen-

tes e portadores de novos valores —, mas que esta-

ria circunscrita nesta nova ética moral “indolor”da

qual fala Gilles Lipovetsky (1992)? Esta supõe ao

mesmo tempo uma forte tomada de consciência dos

problemas, animada dos valores morais fundamen-tais que são o altruismo e a tolerância, mas sem

implicar em uma obrigação de devotamento ou dedever, sem por em causa o próprio indivíduo, nem

sem ter incidência direta sobre o curso da vida co-

tidiana. Será que grandes princípios e pequenos passospodem traçar o caminho de engajamentos reais?

Se todos não estão dispostos a partir para a

Somália, muito pelo contrário, nem mesmo, de uma

forma mais acessível, a aderir a um movimento ou

uma associação que tornaria realidade o seu enga-

jamento, a sua disponibilade parece todavia prolon-gar se além somente de seus discursos. Os seus com-

portamentos testemunham de uma capacidade de

mobilização não desprezível. Todos, mais ou me-

nos, se implicaram ou participaram de uma forma

ou de outra, mais ou menos contestatória, em umaação política.

O movimento colegial e estudantil de 1986

mobilizou mais da metade dos jovens entrevistados.

Foi a oportunidade para uma experimentação di-

reta da política. Esta deixa mais ou menos traços

nos seus discursos e os interesses do movimento sãodecodificados e muitas vezes despojados de parte do

entusiasmo e da ilusão que os animava na época.

Mas a experiência permanece inteira e marca data

no percurso da sua socialização política.Além deste evento maior, precisamos consta-

tar a diversidade de ações realizadas por cada um,em mais ou menos grande escala. Raros são aque-

les que, a um dado momento, não se envolveram

na ação coletiva.

Os jovens situados à esquerda aparecem mais

motivados e mais ativos do que os outros. Sinal de

que os traços da herança, mesmo em crise, do en-gajamento de tipo esquerda, perdurariam? Revela-

dor da necessidade suplementar no campo político,dada a conjuntura atual, capaz de redefinir os in-

teresses de uma “nova esquerda”? De qualquer for-

ma, as ações às quais eles participaram dizem maisrespeito frequentemente a luta contra o apartheid

e contra o racismo do que no resto da amostra. Ma-

nifestações, abaixo-assinados, participação em con-

certos, até, em certos casos, passagens mais ou me-

nos duradouras, em movimentos tais como SOS-

Racismo, Anistia International, ou mesmo Luta Ope-

rária. Diversas experimentações da ação políticaque testemunham um engajamento relativamente

consequente, mas que não são acompanhadas de

nenhuma estruturação militante ou ideológica pro-

funda e persistente.

A mobilização política dos outros jovens quese situam à direita ou são indeterminados nas suas

escolhas políticas, parece mais aleatória e obedece

a motivações mais individualizadas, mais atomi-

zadas, defendendo sobretudo interesses categoriais.

Por este fato mesmo, ela é menos fácil de localizar.

A relação dos jovens hoje, com o engajamen-to, organiza-se em um espaço de duas dimensões,

quer se trate da sua própria geografia ou de suas

orientações estratégicas. Seus territórios podem ser

ao mesmo tempo muito vastos, o conjunto das pai-

sagens e dos interesses em escala planetária estáenvolvido, e muito restritos, se limitando às paisa-

gens familiares das contingências existenciais do dia

Anne Müxel

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Revista Brasileira de Educação 165

a dia. Define diferentes momentos de implicação

respondendo ao mesmo tempo à lembrança dos gran-des princípios idealistas da moral, com o risco de

não sobrar senão a intencionalidade de um discur-

so e à necessidade de reintroduzir um modelo de

ação concreta, regido pelo imperativo da eficácia.Mesmo com “pequenos passos”, a sua concepçãodo engajamento define uma “nova” ética de respon-

sabilidade que pode se revelar futuramente eficiente

e mobilizadora.

Concluindo esta leitura exploratória, sentimo-

nos desconfortáveis e, sem dúvida, ligados à etapa

em que se situa este trabalho — primeira explora-ção, primeiro inventário —, de não ter dado conta

da trama existencial que, apesar da homogeneida-

de observada, define a relação com o político decada um dos jovens entrevistados. Todavia, as cons-

tatações esboçadas neste texto respondem a certasinterrogações que animam os debates atuais sobre

o estado das relações entre os jovens cidadãos e a

política.

Em primeiro lugar, a própria homogeneidade

dos discursos é reveladora. Ela se encontra, no pre-

sente caso, reforçada pelo fato que os discursos fo-

ram recolhidos no interior de uma mesma classe de

idade. Entretanto, estes jovens não compartilhamnecessariamente a mesma comunidade de experiên-

cias. Estes interesses próprios às suas condições de

“entrada na vida”adulta, de acordo com o meio,

com os níveis de estudos e de qualificação, não têmas mesmas implicações. Estas diferenças não trans-

parecem no nível das representações e nem das ex-

pectativas que eles demostram em relação à políti-

ca hoje. Sinal de que o mal-estar é geral, sinal de que

o estado das reivindicações é o mesmo, sinal de quea espera de uma renovação é unanimemente com-

partilhada. Deste ponto de vista, a recomposição do

político, que só aconteceria através da anulação

relativa das determinações sociais, já está realiza-

da. Sem dúvida, estas diferenças se encontram ain-da nas urnas. Os eleitores “contestadores” da nos-

sa amostra têm posições mais frágeis ou mais difi-

cilmente adquiridas que os outros. Mas, enfim, a

difusão do “novo”repertório político, cujos conteú-

dos nós tentamos explicitar, pode questionar as ar-

bitragens clássicas do jogo eleitoral.

A existência deste “novo” repertório é um se-gundo ensinamento. Se a crise da representação po-

lítica parece inegavelmente presente, as respostas,

às expectativas são também desenvolvidas. Assimcomo é anunciado, ele permite uma reabilitação da

política a partir dos imperativos seguintes: uma exi-gência de moralização de todas as instâncias envol-

vidas; uma recusa dos rótulos e uma forte deman-

da de reconciliação dos interesses partidários, em

nome de uma lógica da eficácia e de um maior con-

trole sobre a realidade concreta dos problemas aserem tratados; um deslocamento dos interesses e

uma rejeição dos conflitos; uma restauração do va-

lor de engajamento.Terceira constatação, as contradições que le-

vantamos em várias ocasiões na sua interpretação

da política, e nas suas próprias expectativas, — porexemplo, entre a demanda conjunta de esclareci-

mento dos interesses, de diferenciação das referên-

cias, por um lado, e a recusa das clivagens, por ou-

tro, ou entre o idealismo e a eficácia pragmática,

tipo de bandeira bicolor do engajamento político,

na sua maneira de entender, ou ainda entre a cons-

ciência planetária e a estratégia dos pequenos pas-sos, — são o produto de uma situação de transição

entre dois mundos políticos. Os referentes se mis-

turam e se recompõem em lógicas que nem sempre

são fáceis de identificar pelos próprios atores. Nis-to, os discursos dos jovens se inscrevem em uma

relação ao mesmo tempo heterônoma e autônoma

em relação ao político, até porque eles sofrem as

consequências de uma ruptura relativa na transmis-

são da cultura política entre as gerações.

Como encontrar novos substitutos para defi-nir as condições de emergência de uma “nova” po-

lítica que, tal como transparece nos discursos dos

jovens, seria uma “pós-política”, sofrendo uma evo-

lução comparável à da moral, da modernidade ou

do materialismo aos quais foram atribuídos os mes-mo prefixos?

 Jovens dos anos noventa

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166 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

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Revista Brasileira de Educação 167

Premissa

A população juvenil sempre se caracterizoupor uma propensão transgressiva maior em relação

às normas morais e legais da sociedade, mas foi nosúltimos anos que o distanciamento entre gerações

parece ter aumentado. Nas pesquisas anteriores do

IARD, de 1983 e 1987, tal fenômeno se confirmoupontualmente: em muitos campos de vivência so-

cial, a orientação ética dos jovens mostrava uma

certa distância de tudo aquilo que era partilhado e

considerado legítimo pelo mundo adulto. É óbvio

que o processo de evolução social, que comportamudanças nos costumes e na moral, faz também

com que a validade dos afastamentos das normascodificadas mude e se transforme com o passar do

tempo. Todavia os modos e as formas com que se

manifestava a transgressividade entre as novas ge-rações pareciam bastante estáveis durante a déca-

da de 80, dando a entender que o inconformismo

perante os valores e as normas dominantes podia

ser considerado um aspecto fisiológico da condição

juvenil.

Transgressão, desvio e droga

Carlo Buzzi 

IARD

Tradução de Nilson Moulin 

Publicado em: CAVALLI, Alessandro e LILLO, Antonio (orgs). Giovani anni 90. Bologna: Il Mulino, 1993. Cap. VII.

Em tempos mais recentes, as tendências de cri-

se, manifestas ou latentes, que surgiram sempre mais

numerosas no contexto nacional, sem dúvida enfra-

queceram o sentido da legitimidade. Isso provocou,

como veremos difusamente mais adiante, um rela-xamento dos princípios éticos na população juvenile talvez não só nela. É sob esta luz que provavel-

mente deva ser lido o aumento da propensão trans-

gressiva registrada no início dos anos 90.

A respeito desta problemática, no questioná-

rio aos jovens entrevistados foi proposta, em ana-

logia com as pesquisas anteriores do IARD, umalista de 18 comportamentos1. Para cada um deles

foi pedido: a) se o consideravam socialmente criti-

cado; b) se, em sua avaliação pessoal, o considera-vam admissível; c) se lhes seria possível colocá-lo

em prática.

1 Dos dezoitos comportamentos utilizados na tercei-ra pesquisa do IARD, catorze já estavam presentes também

nas duas primeiras; em dois comportamentos só foi possí-

vel sua confontação na primeira pesquisa; outros dois fo-ram inseridos no questionário pela primeira vez.

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168 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

As respostas à primeira pergunta exprimem a

percepção dos jovens sobre o juízo dado pela socie-dade; aquelas da segunda pergunta exprimem a

avaliação de admissibilidade dos próprios jovens;

as da terceira exprimem, embora de modo indire-

to, a tendência dos jovens para assumir comporta-mentos considerados potencial ou explicitamentetransgressivos.

A percepção das normas sociais

A análise comparada do trend evolutivo dos

modos com que os jovens percebem as normas sociais

mostra alguns afastamentos de certa importância. No

conjunto, permanece a convicção de que os compor-

tamentos propostos, em geral, sejam mais criticadosque tolerados pela sociedade, mas a intensidade de

tais convicções tende a diminuir sensivelmente em

alguns âmbitos ético-normativos específicos.

É o caso, por exemplo, da área das relações

sexuais e conjugais. Os jovens dos anos 90 identi-ficam maior permissividade social para as relações

pré-matrimoniais, para a convivência e para o di-

vórcio; o primeiro comportamento, em especial,

encontra uma significativa maioria dos jovens (trêsquintos) disposto a considerá-lo hoje aceito social-mente, fenômeno novo, pois nas pesquisas anterio-

res aqueles que não o consideravam criticado não

ia além da metade dos entrevistados.

Estes resultados mostram como os jovens es-

tão captando algumas transformações em curso no

país. O enfraquecimento progressivo das normas edos vínculos sociais ligados à esfera da sexualida-

de, que parece cada vez mais pertencer ao livre ar-

bítrio do indivíduo singular e cada vez menos ob-jeto de controle social, é um fenômeno que o con-

fronto entre as três revelações do IARD permite pôrem evidência. Todavia, neste contexto, duas são as

Tabela 1Variações no tempo da percepção das normas sociais. Percentagem dos que consideram criticadospela sociedade os diversos comportamentos, segundo o ano do levantamento (idade: 15-24 anos)

1983 1987 1992Área das relações econômicas

Não pagar o transporte público 79,5 74,6 64,6Faltar ao trabalho com desculpa de doença 77,6 72,8 67,1

Pegar objetos numa loja sem pagar 91,8 91,9 90,2

Falsificar a declaração de renda 74,3 72,3 70,8Área das relações familiares e sexuais

Divorciar-se 65,0 66,0 62,1Ter relações sexuais sem ser casados 52,4 50,0 40,9

Ter experiências homossexuais 88,2 91,6 91,5

Morar junto sem ser casados 63,8 61,7 57,2Ter relação com uma pessoa casada 82,4 82,1 81,8

Área do consumo de drogas

Embriagar-se 78,6 78,5 77,5Fumar maconha ocasionalmente 90,1 91,1 88,7

Usar drogas pesadas (heroína) 95,2 96,1 97,5Área da vida humana

Suicidar-se 84,2 – 83,4Abortar 72,1 75,4 78,8

Matar um inimigo na guerra combatendo pelo próprio país – – 30,3

Área da violência e do vandalismoBrigar para impor opiniões pessoais 66,6 70,4 67,2

Brigar contra torcedores de outro time – – 90,7Danificar bens públicos – 90,1 88,8

Carlo Buzzi

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Revista Brasileira de Educação 169

exceções, aliás bastante significativas: a homosse-

xualidade, que ainda mantém todas as caracterís-ticas do tabu social e as relações extra-conjugais,

comportamentos que pressupõem a não sincerida-

de nas relações internas da família. Em ambos os

casos, o estigma social é percebido pela grande maio-ria dos jovens.

Um segundo âmbito no qual é possível notara atenuação da constrição das regras sociais é cons-

tituído pelos comportamentos ligados às relações

econômicas. Assim os entrevistados parecem um

pouco mais propensos a considerar tolerável viajar

num transporte público sem pagar a passagem oufaltar ao trabalho sem motivo válido ou enganar o

fisco.

Também neste caso os jovens parecem receberda sociedade algumas práticas comportamentais

que desvalorizaram pesadamente o sentido do de-

ver cívico por parte do cidadão.

Ao contrário, continua substancialmente está-vel no tempo o modo de entender a moral social no

que concerne ao uso de substâncias psicotrópicas,

ao recurso à violência e à esfera da tutela da vida

humana. Neste último campo, encontramos o úni-

co comportamento que denota um incremento no-

tável de intolerância captada: abortar, aos olhos dosjovens, parece cada vez mais uma opção socialmente

criticada (tabela 1).

As normas individuais

Deslocando a análise da moral social para a

pessoal, o quadro abrangente muda sensivelmente.

Baseando-nos nas declarações de aceitação relati-

vas aos comportamentos propostos, os dados daúltima pesquisa do IARD, conforme o das pesqui-

sas anteriores, mostram uma forte propensão juve-

nil a se considerar pessoalmente mais tolerantes do

que a sociedade em que vivem. Mas é um fenôme-

no que se manifesta em termos de intensidade per-missiva mais que de qualidade, no sentido de que

os comportamentos com maior punição social, bem

como os mais aceitos, encontram também um con-

fronto no mesmo sentido por parte da moral juvenil.

A aceitação máxima é atribuída aos compor-

tamentos da esfera sexual; o trend está em alta e,no início da década de 90, os jovens que não con-

sideram aceitáveis no plano ético as relações pré-

matrimoniais ou o divórcio ou então morar juntos,

constituem uma minoria. Emerge, em tal contexto,também uma tolerância maior em relação ao ho-mossexualismo.

Da mesma forma, os comportamentos ligados

à área econômica mostram uma tendência a uma

avaliação cada vez menos rígida. Transparece im-

plicitamente um certo relaxamento da moral rela-

cionada com os deveres cívicos.

Assim, muitos são os comportamentos pelosquais se concretiza entre os jovens um menor rigor

em relação ao passado. Todavia existem 3 exceçõesrelevantes: convém notar como, tanto as relações

extra-conjugais quanto o aborto e os comportamen-

tos violentos aparecem com redução progressiva noque concerne à aceitação (tabela 2).

O quadro geral que emerge revela um cruza-

mento heterogêneo de fatores que interagem e tor-

nam complexa a relação entre moral comum e mo-

ral juvenil. Para entender melhor sua lógica é útil

o confronto entre normas sociais e códigos morais

pessoais.A transgressão das normas submetidas à regu-

lação dos comportamentos privados encontra os

jovens altamente tolerantes, muito mais do que eles

percebem que a sociedade o seja. Sob tal ótica a li-

berdade sexual, a convivência, o divórcio, são ava-

liados como opções praticadas por indivíduos cons-cientes, plenamente legitimados para realizá-las.

Ao contrário, o que não se tolera é quando a

transgressão viola os direitos do outro. É o caso dos

comportamentos violentos, em relação aos quais a

recusa dos jovens é maior do que aquela que se di-

funde na sociedade. Neste contexto, também encon-tra espaço crescente o rechaço à infidelidade con-

jugal e ao aborto, embora os jovens permaneçam

em relação a ambos muito mais permissivos do que

consideram ser o mundo dos adultos.

São as normas instituídas para a convivência

social que vão encontrar jovens e sociedade numa

Transgressão, desvio e droga

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170 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

sintonia singular. Só o furto é estigmatizado ampla-

mente: as demais transgressões, incluindo a evasãofiscal, cada vez mais parecem fazer parte daquela

área de admissibilidade que associa setores consi-

deráveis das velhas e novas gerações.

A propensão a transgredir

As tendências transgressivas dos jovens foram

analisadas com a pergunta sobre a possibilidade de

pôr em prática os vários comportamentos propos-tos. Como as modalidades de resposta eram “sim”,

“não”, “não sei”, interpretamos as afirmações po-

sitivas como tendências evidentes para a violação

normativa, as negativas como introjeção plena e

aceitação da norma e o “não sei” como instabili-dade do código moral. Em outras palavras, a incer-

teza pode significar que, mesmo tendo consciência

de praticar um ato sujeito a reprovação social, a

situação contingente poderia induzir à transgressão.Por isso juntamos os “sim” com os “não sei”, con-

siderando-os como expressão de uma potencial pro-

pensão transgressiva.

Aqui os dados mostram maior estabilidade no

tempo com relação aos outros dois planos de aná-

lise. Os comportamentos que denotam um aumen-to significativo da possiblidade de transgredir as

normas sociais são apenas três: viajar num meio

público sem pagar (de 83 a 92 o afastamento é de

8% a mais), faltar ao trabalho com desculpa de

doença (+ 7%), ter relações sexuais sem ser casa-dos (+ 5%) (tabela 4).

No conjunto, tudo o que se afirmou anterior-

mente sobre os critérios de aceitação “teórica” é

reiterado também com referência à possibilidade

prática de transgredir. Tudo o que concerne à es-

Tabela 2Variação no tempo das regras de conduta individuais. Percentagem daqueles que consideram

admissíveis os diversos comportamentos por ano de levantamento (idade: 15-24 anos)1983 1987 1992

Área das relações econômicas

Não pagar o transporte público 26,3 25,5 35,1Faltar ao trabalho com desculpa de doença 28,6 32,2 38,5

Pegar objetos numa loja sem pagar 10,9 9,3 9,3

Falsificar a declaração de renda 24,9 28,7 28,3Área das relações familiares e sexuais

Divorciar-se 73,8 74,1 78,6Ter relações sexuais sem ser casados 79,9 79,8 84,9

Ter experiências homossexuais 36,7 30,9 40,8

Morar junto sem ser casados 76,2 79,0 77,9Ter relação com uma pessoa casada 53,0 49,3 48,0

Área do consumo de drogasEmbriagar-se 49,8 49,6 49,2

Fumar maconha ocasionalmente 26,9 20,8 27,6Usar drogas pesadas (heroína) 8,8 6,7 7,7Área da vida humana

Suicidar-se 21,8 – 18,6Abortar 57,6 51,8 47,5

Matar um inimigo na guerra combatendo pelo próprio país – – 55,7

Área da violência e do vandalismoBrigar para impor opiniões pessoais 35,7 33,7 31,6

Brigar contra torcedores de outro time – – 7,0Danificar bens públicos – 6,2 3,6

Carlo Buzzi

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Revista Brasileira de Educação 171

Tabela 3Coerência entre normas sociais e individuais. Percentagem dos que consideram os comportamentos

criticados e não admissíveis segundo o sexo e a idadeM F M F M F M F

15-17 15-17 15-17 15-17 15-17 15-17 15-17 15-17 Tot.

anos anos anos anos anos anos anos anosÁrea das relações econômicas

Não pagar o transporte público 37,6 43,5 46,9 46,6 44,3 50,7 50,9 59,0 48,2

Faltar ao trabalho com desculpa de doença 48,1 37,3 50,8 42,9 54,0 44,9 58,8 57,3 50,3Pegar objetos numa loja sem pagar 75,2 82,8 84,6 85,9 79,8 87,1 84,0 87,3 83,6

Falsificar a declaração de renda 59,4 58,9 55,9 60,1 48,5 52,2 50,5 54,8 54,3Área das relações familiares e sexuais

Divorciar-se 20,5 12,1 21,4 14,3 16,7 13,5 14,4 15,2 15,8

Ter relações sexuais sem ser casados 9,2 16,4 9,0 15,0 4,7 11,0 4,0 13,7 9,8Ter experiências homossexuais 66,4 52,4 63,2 49,6 58,0 45,8 53,1 48,3 53,9

Morar junto sem ser casados 11,2 21,9 16,9 18,1 15,8 17,4 10,8 20,2 16,3Ter relação com uma pessoa casada 44,4 55,4 45,5 52,0 32,2 47,3 34,2 48,9 43,9

Área do consumo de drogasEmbriagar-se 40,1 46,1 42,6 50,8 37,4 43,8 33,2 46,2 41,9Fumar maconha ocasionalmente 68,6 68,8 66,8 69,2 55,1 69,3 60,3 67,2 65,0

Usar drogas pesadas (heroína) 89,3 88,8 89,4 91,5 88,4 92,3 90,1 91,2 90,2Área da vida humana

Suicidar-se 69,3 68,4 71,6 74,7 72,6 69,2 67,3 67,8 69,9

Abortar 45,8 44,2 49,8 41,6 41,4 40,9 36,0 41,5 42,0Matar um inimigo na guerra combatendo

pelo próprio país 16,2 16,7 15,3 16,3 17,5 18,1 13,5 18,9 16,6Área da violência e do vandalismo

Brigar para impor opiniões pessoais 40,7 47,2 52,8 54,7 53,5 54,9 56,7 59,9 53,4

Brigar contra torcedores de outro time 86,0 84,1 85,8 86,2 87,8 84,6 89,1 86,5 86,5Danificar bens públicos 85,5 82,8 88,2 84,7 88,4 86,3 86,9 87,6 86,5

fera privada do indivíduo está amplamente aberto

a escolhas que não colocam sérios dilemas morais,

a tal ponto que teríamos dificuldades, por exemplo,

para definir as relações pré-matrimoniais como vi-

olação de uma norma social (apenas 1 jovem sobre6 exclui categoricamente a eventualidade, assim co-

mo só 1 sobre 4 garante que nunca se divorciará e

1 sobre 3 que não vai conviver sem ser casado).

Desrespeitar as normas que regulam a vida dos

indivíduos na esfera pública, que vimos ser consi-

derado admissível por uma minoria significativa dejovens, parece envolver na prática uma cota bem

mais ampla, em alguns casos superior à metade dos

entrevistados. Isso remete ao problema da coerên-

cia entre códigos éticos e comportamentos de fato.

O confronto entre os dois níveis mostra como

apenas poucas transgressões encontram os jovens

unanimemente coerentes ao recusá-las no plano mo-

ral e no de uma hipotética realização concreta. São

aqueles comportamentos que poderíamos definirexplicitamente “desviantes”. Por ordem: os atos de

vandalismo, o consumo de drogas pesadas, a vio-

lência desportiva, o roubo. Todo o restante parece

mais controverso. Em geral, a coerência aumenta

com a idade e as moças são mais coerentes que osrapazes, conforme a pesquisa de 87 já havia eviden-

ciado. Entre os subgrupos da amostragem separa-

dos por sexo e por idade, destaca-se o dos adoles-

centes masculinos (15-17 anos); neles a presença de

tensões quanto aos comportamentos que implicam

Transgressão, desvio e droga

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172 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

vandalismo e violência é notoriamente mais forte(tabela 5).

No conjunto, muitos jovens parecem possui-

dores de instâncias morais e de propensão à ação

que se diferenciam, em diversos níveis, daquelas que

são as expectativas captadas do mundo adulto. Por-

tanto, estabelecemos o objetivo de identificar, naampla variedade de atitudes juvenis, uma tipologia

que reagrupasse os entrevistados ao redor de mo-

dalidades homogêneas de orientação geral em re-

lação ao comportamento transgressivo.

Por meio de uma série de cluster analysis a

solução mais simples e convincente pôs em evidên-cia 4 grupos de jovens que refletem igual número

de modos típicos de relacionar-se com a eventuali-

dade de incorrer em comportamentos socialmente

reprováveis (figura 1).

Tabela 4Variações no tempo das atitudes de “não exclusão” da possibilidade de transgredir as normas sociais.

Percentagem daqueles que consideram possíveis os diversos comportamentos, o que não exclui apossibilidade de praticá-los, por ano de levantamento (idade: 15-24 anos)

1983 1987 1992

Área das relações econômicasNão pagar o transporte público 53,9 54,6 62,1Faltar ao trabalho com desculpa de doença 49,1 50,5 55,9

Pegar objetos numa loja sem pagar 14,9 12,8 12,7Falsificar a declaração de renda 42,5 40,4 37,8

Área das relações familiares e sexuais

Divorciar-se 72,3 70,1 72,8Ter relações sexuais sem ser casados 79,6 79,6 84,3

Ter experiências homossexuais 10,8 5,2 4,4Morar junto sem ser casados 64,6 64,9 65,8

Ter relação com uma pessoa casada 56,1 49,6 49,8

Área do consumo de drogas

Embriagar-se 51,0 49,3 48,7Fumar maconha ocasionalmente 18,4 14,6 19,1Usar drogas pesadas (heroína) 5,7 3,8 3,3

Área da vida humana

Suicidar-se 13,9 – 10,7Abortar 42,9 42,0 40,4

Matar um inimigo na guerra combatendo pelo próprio país – – 48,2Área da violência e do vandalismo

Brigar para impor opiniões pessoais 44,6 43,7 40,1

Brigar contra torcedores de outro time – – 11,6Danificar bens públicos – 10,1 7,7

Figura 1Tipologia da propensão à transgressão

Desviantes

8%

Integrados

36,6%

Permissivos

37,6%

Oportunistas

17,8%

Carlo Buzzi

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Revista Brasileira de Educação 173

Tabela 5Coerência entre normas individuais e comportamento. Percentagens dos que consideram não

admissíveis nem praticáveis os diversos comportamentos segundo o sexo e a idadeM F M F M F M F

15-17 15-17 15-17 15-17 15-17 15-17 15-17 15-17 Tot.

anos anos anos anos anos anos anos anosÁrea das relações econômicas

Não pagar o transporte público 19,9 32,3 30,7 35,6 33,1 42,4 42,0 54,0 37,7

Faltar ao trabalho com desculpa de doença 30,4 25,8 43,3 36,7 46,6 42,5 60,0 58,3 45,0Pegar objetos numa loja sem pagar 73,0 85,1 80,9 87,9 81,3 87,3 85,2 90,1 84,3

Falsificar a declaração de renda 51,0 62,1 55,7 59,3 44,6 58,3 57,1 63,8 56,4Área das relações familiares e sexuais

Divorciar-se 15,1 15,0 16,4 11,8 15,0 13,8 11,4 14,8 14,0

Ter relações sexuais sem ser casados 10,0 19,8 5,3 14,2 3,9 11,2 5,0 14,3 10,0Ter experiências homossexuais 69,6 56,9 63,8 53,7 61,7 48,2 54,0 49,6 56,4

Morar junto sem ser casados 12,4 26,0 19,3 22,6 15,7 22,0 13,3 25,4 19,4Ter relação com uma pessoa casada 30,4 54,7 33,9 46,8 23,9 45,9 27,3 49,2 38,3

Área do consumo de drogasEmbriagar-se 28,0 44,9 31,0 46,5 30,5 42,9 27,7 47,9 37,2Fumar maconha ocasionalmente 66,4 73,7 64,9 71,4 57,3 73,5 62,3 70,2 66,9

Usar drogas pesadas (heroína) 86,7 91,0 91,4 92,7 87,0 92,3 90,9 92,6 90,6Área da vida humana

Suicidar-se 74,9 74,2 79,1 77,8 79,4 75,5 77,2 74,1 76,6

Abortar 43,5 50,2 53,5 41,9 42,4 44,2 36,7 42,3 43,6Matar um inimigo na guerra combatendo

pelo próprio país 20,8 43,4 20,1 48,4 27,5 44,0 25,4 42,5 34,0Área da violência e do vandalismo

Brigar para impor opiniões pessoais 31,3 62,1 45,7 59,7 48,2 65,7 48,8 69,4 54,6

Brigar contra torcedores de outro time 67,4 88,9 80,9 89,1 86,0 92,1 87,4 92,6 86,4Danificar bens públicos 74,3 88,5 90,7 94,7 91,5 96,2 93,6 94,5 91,2

No primeiro grupo, que poderíamos definir

como o dos integrados, é possível reconhecer 36,6%

da amostragem. O tipo se caracteriza por um baixo

índice de propensão em todos os possíveis “desvios”,

exceto alguns relativos à esfera das relações sexuais,que vimos serem hoje amplamente difundidos; do

mesmo modo também neste âmbito as percentagens

de propensão para transgredir se mantêm de ma-

neira considerável abaixo da média geral.

Um segundo grupo, que denominamos opor-

tunistas, é representado por jovens caracterizadospor um sentido modesto dos deveres civis. As ten-

dências transgressivas se direcionam todas para a

área das relações econômicas (exceto o furto); quan-

to ao restante as atitudes que emergem são iden-

tificáveis com as do grupo precedente. Pensando

bem, poderíamos considerar tais jovens como inte-

grados oportunistas, cujos códigos morais coinci-

dem com os da ética comum até que o interesse cole-

tivo exige certos custos ao indivíduo. No conjunto,encontramos neste grupo 17,8% da amostragem.

O terceiro tipo, dos permissivos, surge como

portador de instâncias mais articuladas. O perfil

ético que daí emerge pode ser relacionado com es-

tilos de vida permissivos que provavelmente carac-

terizam as tendências evolutivas da cultura juvenilmoderna. Duas parecem ser as características que

mais chamam a atenção. A primeira concerne à li-

beralidade quase unânime em relação aos compor-

tamentos sexuais (com exceção do homossexualis-

Transgressão, desvio e droga

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174 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

mo). Neste contexto, pode ser incluído também o

modo diferente de considerar o aborto; se nos pri-meiros dois grupos as práticas abortivas eram for-

temente estigmatizadas por serem ligadas à esfera

da defesa da vida humana, neste terceiro grupo, elas

parecem mais inerentes ao âmbito sexual, a ponto

de dois terços não excluírem a possibilidade de seenvolverem com elas. A segunda característica pa-

rece relacionada à cultura da addiction: embriagar-

se ou o uso de drogas leves atingem níveis de pro-

pensão bem superiores à média da amostragem. Ao

contrário, o grupo dos permissivos, que é compos-to por 37,6% dos entrevistados, mesmo não poden-

do ser definido completamente fiel quanto às nor-

mas que regulam as relações econômicas e civis,

demonstra por esta área níveis de transgressão in-

feriores, embora consistentes, àqueles típicos dosegundo grupo.

Minoritário (8,0% dos entrevistados) mas nem

por isso de menor importância é o quarto grupo,que reunimos sob a definição de desviantes. Entre

esses jovens, a propensão à transgressão é parti-

cularmente difundida e indiferenciada. Todos os

itens propostos apresentam altos índices, mesmo

para aqueles relativos a comportamentos violentos,ao roubo em lojas e à droga, a ponto de podermos

definir o grupo como sob grande risco de desvio.

Na tabela 6 é apresentado o perfil típico dos

quatro grupos em relação aos 18 comportamentos

transgressivos utilizados.

Os tipos registrados se distribuem de modo

diferente em relação às condições sociodemográfi-cas. Isso torna mais fácil avaliar seu significado real.

Sublinhando que o sexo tem uma influência

relevante, pois entre os tipos “integrados” e “opor-

tunistas” prevalece a presença feminina e nos ou-

Tabela 6Tipologia da propensão à transgressão (15-29 anos)

TipologiaIntegrados Oportunistas Permissivos Desviantes Total

Área das relações econômicas

Não pagar o transporte público 20,0 86,6 71,4 93,4 57,1

Faltar ao trabalho com desculpa de doença 17,5 89,5 53,5 85,9 49,3Pegar objetos numa loja sem pagar 1,9 5,7 6,9 81,2 10,9Falsificar a declaração de renda 11,8 52,4 42,8 76,6 35,8

Área das relações familiares e sexuais

Divorciar-se 49,4 61,1 94,0 86,9 71,5Ter relações sexuais sem ser casados 67,9 77,0 98,7 96,9 83,4

Ter experiências homossexuais 1,8 1,4 5,9 20,8 4,8Morar junto sem ser casados 37,1 39,1 93,4 88,3 62,7

Ter relação com uma pessoa casada 18,3 22,7 85,0 83,2 49,4

Área do consumo de drogasEmbriagar-se 17,6 30,8 76,2 86,2 47,4

Fumar maconha ocasionalmente 2,9 5,0 29,7 61,4 18,1Usar drogas pesadas (heroína) 0,4 0,9 2,7 21,3 3,0

Área da vida humana

Suicidar-se 4,8 5,2 14,8 33,2 10,9Abortar 19,2 27,6 63,2 71,8 41,5

Matar um inimigo na guerra combatendo pelo próprio país 33,8 40,5 62,0 66,8 48,2Área da violência e do vandalismo

Brigar para impor opiniões pessoais 21,2 33,0 49,3 78,7 38,5

Brigar contra torcedores de outro time 3,5 7,5 9,9 47,2 10,1Danificar bens públicos 1,7 6,6 3,8 38,1 6,2

Carlo Buzzi

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Revista Brasileira de Educação 175

tros dois a masculina, adquire interesse especial acomposição dos grupos segundo a idade. Sob este

aspecto a maior incidência de jovens adolescentes

nos tipos “oportunistas” e “desviantes” redimen-

siona, num certo sentido, a relevância de tais incli-

nações, destinadas, com o aumento da idade, a re-duzir-se quantitativamente. É muito provável que

haja uma incidência, por um lado, de maior cons-

ciência dos adolescentes quanto à coisa pública e,

por outro lado, uma propensão acentuada para com-portamentos notoriamente desviantes pode ser lidacomo o resultado de identidades ainda em constru-

ção que vêem na transgressão, mais teórica que real,

uma modalidade de auto-afirmação.

Contudo, são as determinações geográficas que

assinalam a persistência também no interior do uni-

verso juvenil de culturas diferentes. Os “integrados”atingem a densidade máxima nas regiões meridio-

nais e a mínima nas centrais. Os jovens do centro e

do sul do país encontram-se associados por sua pre-

sença marcante no grupo dos “oportunistas”. Por

fim, a região meridional se distingue por uma ten-dência menor à permissividade, tendência que se

afirma como majoritária nas outras três realidades

italianas (tabela 7).

A avaliação e a propensão ao uso de drogas

A percepção social e aimagem pessoal do uso de drogas

Que o consumo de drogas seja consideradocomportamento socialmente reprovado é uma con-

vicção amplamente difundida entre os jovens, mas

ao contrário não é tão difusa a crítica pessoal a tal

consumo. Ou melhor, as opiniões se diferenciam demodo consistente em relação à substância psicotró-pica considerada: grande tolerância para as drogas

comumente chamadas de “leves”, maior rigor para

as “pesadas”.

Referindo-nos a duas situações distintas, “fu-

mar maconha ocasionalmente” e “usar drogas pe-

sadas (heroína)”, a percentagem de jovens que con-sidera que o uso de drogas não seja criticado de

modo especial pela sociedade é muito restrita: 11,3%

no primeiro caso e 2,5% no segundo. Porém, se o

juízo se desloca para o nível pessoal, para exprimir

a aceitação ou a recusa do uso de drogas, a atitudetolerante assume dimensões mais relevantes: 28,6%

para a maconha e 7,5% para a heroína. O confron-

to entre estes dois juízos demonstra como os jovens

são muito mais permissivos do que eles julgam ser

a sociedade ao avaliar os comportamentos ligadosao consumo de estupefacientes. Dois jovens em cada

Tabela 7Tipologia da propensão à transgressão por algumas condições sociodemográficas (%)

Sexo IdadeTipologia Total Masculino Feminino 15-17 18-20 21-24 25-29

Integrados 36,6 28,8 44,6 28,2 34,5 33,9 45,5

Oportunistas 17,8 14,0 21,8 26,1 20,2 16,2 12,8

Permissivos 37,6 46,7 28,2 31,5 38,6 41,6 37,0Desviantes 8,0 10,5 5,4 14,3 6,7 8,4 4,6

100,0 100,00 100,00 100,0 100,0 100,0 100,0

Segmento Social de Origem Região

Superior Funcionários Autônomos Operários Noroeste Nordeste Centro/Ilhas SulIntegrados 25,6 34,7 41,5 42,7 35,5 33,0 27,4 42,3

Oportunistas 19,2 17,6 17,7 16,7 11,5 14,1 20,7 21,6Permissivos 44,8 40,0 34,2 32,9 44,0 42,6 43,3 29,7

Desviantes 10,4 7,7 6,7 7,6 9,0 10,3 8,5 6,3

100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0

Transgressão, desvio e droga

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176 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

grupo de 7 declaram assim o uso de drogas “leves”

perfeitamente compatível com os próprios códigosmorais. Tal posição é mais difusa entre os homens,

entre os segmentos sociais médio-superiores e au-

menta com a idade. Também as variáveis territoriaisexercem uma influência significativa: a tolerância

de fato atinge o máximo nas áreas metropolitanas

(nos centros com mais de 250 000 habitantes, os

jovens que não condenam o uso de drogas leves

supera 40%) e naquelas com desenvolvimento eco-

nômico mais alto (nas regiões centro-setentrionais

do país a percentagem de jovens permissivos giraao redor de 34-37% contra o índice bem mais mo-

desto de 19% das regiões meridionais).

A propensão ao uso de drogas

Considerar pessoalmente admissível o consumo

de substâncias psicotrópicas ilegais exprime uma ava-

liação genérica sobre um problema social mas não im-plica necessariamente um envolvimento pessoal. Este

aspecto foi indagado, embora de modo indireto, com

uma pergunta específica: “Teria acontecido de o en-

trevistado haver fumado maconha ocasionalmente”

ou então “usar uma droga pesada como a heroína”?

Os dados parecem bastante significativos: qua-se um jovem sobre 5 não exclui a experiência do

consumo de drogas leves ao passo que quase 1 em

cada grupo de 30 não exclui o consumo de drogas

pesadas. Encontramo-nos portanto diante de um

fenômeno quantitativamente de grande relevância:

mesmo com as devidas cautelas, é de fato possívelestimar ao redor de 2 milhões e meio os jovens que,

embora abstratamente, não se consideram comple-

tamente estranhos à cultura da droga. A idade nãoparece ter uma grande influência na determinação

desta atitude, à diferença do sexo, da classe social

e das variantes regionais. A propensão ao uso é de

fato notavelmente mais acentuada entre os homens,

entre os segmentos superiores, nas áreas metropoli-

tanas e nas regiões do centro e do norte do país. Es-

tas últimas indicações demonstram que a cultura dadroga não está diretamente relacionada com fenô-

menos de marginalidade e de subdesenvolvimento;

ao contrário, os mais expostos pareceriam aqueles

grupos sociais marcados por características que po-deríamos definir como privilegiadas (tabela 8).

O contato com o mundo da droga

A incidência real que o fenômeno droga pode

ter como fato social e cultural entre os jovens deve

contudo ser necessariamente medida em termos de

“contatos” com o mundo da droga.

Um primeiro indicador importante é o conhe-

cimento de pessoas que usam drogas. No conjun-to, mais de um jovem em cada dupla conhece, nem

que seja superficialmente, consumidores habituais.

Mas é dos dados relativos à experiência pessoal que

emerge como uma grande parte dos jovens é expos-

Tabela 8A propensão ao uso de drogas (percentagem daqueles que NÃO excluem que poderia acontecer com eles)

Sexo IdadeTipologia Total Masculino Feminino 15-17 18-20 21-24 25-29

Maconha 18,0 21,8 14,1 17,9 19,0 19,8 15,9

Heroínas 3,0 3,9 2,2 4,7 2,0 3,3 2,5

Segmento Social de OrigemSuperior Funcionários Autônomos Operários Camponeses

Maconha 26,7 18,1 14,2 16,8 8,1

Heroínas 3,1 2,6 1,8 4,2 1,7

Amplitude comum (x 1.000) Regiões>250 50-250 20-50 <10 Noroeste Nordeste Centro Sul Ilhas

Maconha 26,1 18,3 13,0 17,0 20,6 19,3 21,7 15,2 12,9Heroínas 5,2 1,4 2,2 3,3 2,9 2,3 3,8 3,3 2,5

Carlo Buzzi

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Revista Brasileira de Educação 177

ta à droga de modo direto. Aqui é oportuno esta-

belecer, uma vez mais, uma distinção entre drogas“leves” e drogas “pesadas” pois o fenômeno se ar-

ticula diversamente. Falar com alguém que consu-

miu haxixe ou maconha faz parte da experiência de

quase 40% dos jovens entrevistados, bem como cer-ca de 30% viu jovens que tinham consumido hápouco (ou talvez estavam consumindo) tais tipos de

drogas. Estamos ainda num nível superficial de con-

tato onde o caráter ocasional ou involuntário do

fato poderia também ter tido o seu peso. É diferente

se avaliamos o contato físico com a substância oua oportunidade concreta de consumo: 20,6% dos

jovens entrevistados viu ou tocou maconha; 23,1%

receberam propostas para experimentá-la.

A experiência de contato com o mundo, bemmais preocupante, da heroína ou da cocaína, é me-

nos freqüente mas em termos relativos decididamen-te relevante: 26,2% falaram com consumidores,

20,2% viram alguém usar tais drogas, 3,4%, dado

emblemático, viu ou tocou uma dessas substâncias,

3,8% foi convidado a experimentá-las.

Tais contatos constituem por si mesmos uma

“fotografia” da extensão do fenômeno, contudo se

deve considerar que, com toda probabilidade, o da-

do quantitativo esteja subdimensionado: a delica-deza do tema faz com que muitas reticências sejam

previsíveis. De qualquer modo a relevância dos da-

dos mostra como a experiência de ocasiões de pro-

ximidade com o mundo da droga não é coisa depequenas franjas de marginais mas sim de uma con-

siderável minoria de jovens.

As variáveis que mostram as correlações mais

significativas são o sexo, a idade, a extração social,

a amplitude do município de residência e a região

de origem. Se tomarmos como exemplo o indica-dor que mais aparece associado à contigüidade com

o fenômeno — ver ou tocar qualquer tipo de dro-

ga — os homens denotam uma percentagem de “ex-

posição” dupla em relação às mulheres. Com o au-

mento da idade, aumentam também as ocasiões derisco, atingindo seus níveis máximos na faixa de 21-

24 anos: basta pensar que um quarto dos jovens

deste grupo declara ter tido experiências de conta-

to direto com a substância, cota que se eleva a 44%

se considerarmos só os homens. Entre os segmen-tos sociais, a maior contribuição é dada pelos jo-

vens provenientes de famílias de classe elevada (fi-

lhos de empresários, profissionais liberais, dirigen-

tes). Além disso, o fenômeno encontra sua maiorconcentração nos centros com mais de 50 000 ha-bitantes e em particular nas grandes cidades do nor-

te e do centro da Itália.

De que modo a proximidade com o mundo da

droga influi na propensão ao consumo? Eis uma ques-

tão destinada a não produzir respostas satisfatórias.

No âmbito das pesquisas extensivas usando questio-nários, as perguntas diretas, quando tocam esferas

privadas muito delicadas, não conseguem quantificar

de modo confiável um determinado fenômeno. Igual-mente a pesquisa oferece alguns elementos de refle-

xão. Dentre os entrevistados, 9,5% declara ter sen-tido o desejo ou a curiosidade de provar haxixe ou

maconha, e já vimos no parágrafo anterior que 18%

não exclui que isso poderia acontecer. Se deslocamos

a atenção para as drogas pesadas, 3,4% sentiu pelo

menos uma vez o desejo ou a curiosidade de experi-

mentar heroína ou cocaína e uma percentagem quaseidêntica (3%) não exclui que isso poderia acontecer.

Trata-se de dados que, mesmo que não fossem, comona realidade são, subdimensionados, seriam consis-

tentes por si mesmos (tabela 9).

Um “trend” em alta

O cotejo entre os levantamentos da primeira

e da segunda pesquisas nacionais do IARD sobre acondição juvenil tinha evidenciado quanto o fenô-

meno “vizinhança com o mundo da droga” estava

diminuindo. Na terceira pesquisa, a tendência não

apenas se inverteu, mas todos os indicadores mais

significativos utilizados alcançaram e superaram onível, já alto, de 1983-84.

Analisemos brevemente os dados: a convicção

de que o consumo de substâncias psicotrópicas ile-

gais seja condenado pela maioria das pessoas mos-

tra um trend divergente conforme o tipo de droga.

Em relação às revelações precedentes surge o dado

Transgressão, desvio e droga

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178 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

de que os jovens de hoje, talvez por causa das re-

centes e reiteradas campanhas sociais visando com-

bater sobretudo o uso da heroína, tenham em seuconjunto a imagem de uma sociedade mais decidi-

da a combater as drogas pesadas, porém mais to-

lerante quanto às leves (tabela 10).

Deslocando a análise para as regras de conduta

individual, as declarações de aceitação do uso de es-

tupefaciantes como a maconha registram um aumentoem toda a linha; é diferente no que concerne à heroína

que, embora em alta comparando-se com 1987, ain-

da não atingiu os níveis de 1983 (tabela 11).

A propensão explícita ao consumo de drogas,

ou melhor, a não negação decidida de que a expe-riência de provar drogas possa ocorrer, mostra igual-

mente maior abertura às drogas leves que contras-

ta com um juízo mais severo em relação às pesadas.

Portanto, o fenômeno é interessante pois transpa-

rece, ao menos nas opiniões e nas crenças dos jo-vens, uma tendência a distinguir e diferenciar os

Tabela 9Contatos com o mundo das drogas (qualquer tipo) por segmento social de origem (%)

Segmento social de origemNo conjunto Superior Funcionários Autônomos Operários Camponeses

Aconteceu com você:

Falar com alguém que tenha usado

drogas ao menos uma vez 56,5 70,7 56,6 54,8 53,9 34,5Conhecer pessoas que usam droga

regularmente 54,4 63,9 56,3 52,0 51,4 39,7

Ver alguém que havia acabado de

consumir droga 43,0 54,3 46,4 43,9 34,9 29,9Receber convites para provar (ou

comprar) qualquer tipo de droga 26,0 37,3 26,9 22,4 21,6 19,5Ver ou provar qualquer tipo de droga 22,8 32,6 23,1 20,7 18,6 18,4

Tabela 10Variações no tempo da percepção das normas sociais (percentagem dos que consideram NÃO

criticáveis pela sociedade os comportamentos ligados ao consumo de drogas)1983 1987 1992

Maconha 9,6 8,7 11,2

Heroína 4,5 3,5 2,5

Tabela 11Variação no tempo da avaliação pessoal sobre o uso de drogas (percentagem dos que consideram

admissíveis comportamentos ligados ao consumo de drogas)1983 1987 1992

Maconha 26,9 20,8 27,6

Heroína 8,8 6,7 7,7

Tabela 12Variação no tempo da propensão ao uso de drogas (percentagem dos que NÃO excluem

que poderia acontecer com eles)1983 1987 1992

Maconha 18,4 14,6 19,1Heroína 5,7 3,8 3,3

Carlo Buzzi

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Revista Brasileira de Educação 179

efeitos das substâncias estupefacientes (tabela 12).

Os dados objetivos de exposição à droga estão

em franco aumento. Conhecer jovens que delas seutilizam faz parte da experiência de mais da metade

dos entrevistados, quando em 1987, dizia respeito só

a um terço deles; o contato físico com uma substânciaestupefaciente mais que dobrou, como também a

confissão de ter vontade (ou só a curiosidade) deexperimentá-la. Já vimos como tais resultados se

aplicam sobretudo às drogas leves mas a consistência

do fenômeno, mensurado em sua evolução quanti-

tativa, é sem dúvida muito preocupante (tabela 13).

A última questão relacionada às drogas esta-

va centrada nas opiniões dos jovens quanto a uma

eventual legalização futura do uso dos estupefaci-

entes. Os contrários superam de modo bem nítidoos favoráveis; contudo, estes últimos atingem cer-

ca de um terço dos jovens. As características sócio-

identitárias dos jovens que se declaram favoráveis

à descriminação do consumo de drogas não são es-pecialmente nítidas, embora se destaquem os ho-

mens, os mais velhos, os moradores das grandes

cidades. Obviamente, tal opinião resulta mais fre-

qüente entre os que constatamos serem os mais pró-

ximos a comportamentos contíguos à cultura dadroga; por exemplo, entre os que tiveram contato

com uma substância estupefaciente, os favoráveis

à legalização sobem para 43,3%.

Conclusões

O quadro geral resultante confirma assim al-

gumas tendências que foram se consolidando na

última década.

Se, no conjunto, os jovens parecem portado-

res de uma moral que se distancia progressivamentedos valores tradicionais, no específico, é nas atitu-

des e nos comportamentos quanto ao uso de subs-

tâncias psicotrópicas que estão se difundindo no-

vos modelos culturais.O caráter de “desvio” ligado à proximidade

com o mundo da droga é posto em discussão tan-to de um ponto de vista quantitativo (percentagens

muito elevadas de jovens são envolvidos nele com

intensidade variável) quanto qualitativo (o “perfil”

social do jovem envolvido parece amplamente

indiferenciado).Portanto, não parece existir nenhum critério

previsível que induza relações significativas entre

predisposição para o consumo e características só-cio-econômicas dos entrevistados; a proximidade

com a droga se propõe de fato como um fenôme-no indiferenciado aberto à experiência de qualquer

jovem. O uso — ocasional — de drogas se torna

assim completamente desligado de condições de

desvantagem e de marginalidade, para se tornar

uma experiência “normal” de grandes grupos dejovens.

Numerosos sinais indicam quanto o problema

social da droga deva ser explicado em termos cul-

turais; certamente, um papel não irrelevante é re-

presentado por alguns elementos que caracterizam

o universo juvenil: a percepção da reversibilidadedos percursos existenciais, aí incluindo os de caráter

transgressivo; a tendência a antever canais de dupla

moralidade conforme os âmbitos de experiências vi-

vidas contingentemente; a projeção no presente co-

mo produto natural de uma lábil projeção futura.

Tabela 13Variação no tempo dos indicadores de contato com o mundo das drogas (%)

1983 1987 1992Aconteceu com você:

Falar com alguém que tenha usado drogas ao menos uma vez 54,8 46,8 56,6

Conhecer pessoas que utilizam droga regularmente 39,3 32,8 54,9

Ver alguém que havia acabado de consumir alguma droga 44,7 39,1 43,7Receber convites para provar (ou comprar) qualquer tipo de droga 21,1 nr 24,9Ver or provar qualquer tipo de droga 20,4 10,8 22,6

Sentir desejo (oucuriosidade) de provar alguma droga 7,8 4,5 10,7

Transgressão, desvio e droga

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180 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

Le crime tient sans trêve le devant de la scène,

mais le criminel n’y figure que furtivement, pour y être

aussitôt remplacé.

Albert Camus, La Chute, 1956

Foi no iníco do século 20 que as gangues apa-receram no cenário urbano americano. Desde en-

tão, elas foram continuamente estigmatizadas como

um “problema social” maior. O que sempre cha-

mou a atenção da opinião pública, são as suas ati-

vidades que podemos qualificar como delituosas ouilegais, que fazem nascer o medo e atentam contra

os bens ou ameaçam as pessoas. O Estado, então,

sempre empenhou meios consideráveis e cada vez

maiores, para tentar erradicar o fenômeno. Entre-

tanto, apesar destes esforços impressionantes e inin-terruptos, as gangues não só persistiram mas não

pararam de se expandir, particularmente nas duas

últimas décadas. Como explicar este paradoxo? Por

quê o empenho de tantos esforços na luta contra as

gangues não produziu os resultados esperados? Estainterrogação é que esteve na origem das minhas

As gangues e a imprensaA produção de um mito nacional

Martín Sánchez-Jankowski Universidade de Berkeley

Tradução de Ines Rosa Bueno 

Publicado em: Actes de la Recherche en Sciences Sociales. Paris: nº 101-102, março 1994, p. 101-117.

pesquisas sobre o fenômeno das gangues na Amé-

rica urbana contemporânea1.

Dez anos de investigações avançadas sobre o

assunto me levaram à conclusão de que a resposta

para esta interrogação reside no fato de as ganguesserem organizações, um dado que a maior parte dos

estudos anteriores tinha desprezado. Enquanto res-posta coletiva a uma situação econômica de gran-

de penúria e de isolamento, estas organizações ela-

boraram estratégias racionais de sobrevivência que

se aplicam tanto aos meios de aumentar seus efeti-

vos e fazer florescer seus haveres financeiros quan-to ao estabelecimento de relações com seu ambiente,

quer se trate de organizações rivais, da polícia, do

sistema político e da mídia. Estas relações formamum sistema de intercâmbios multiforme que se re-

vela, em última instância, como sustentáculo daexistência das gangues. O artigo a seguir se inscre-

1 Cf. M. Sánchez-Jankowski, Islands in the Street: Gangsin the American Society, Berkeley e Los Angeles, University

of California Press, 1991, obra em que este artigo se apóia.

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Revista Brasileira de Educação 181

ve nesse quadro conceitual e se propõe a analisar a

contribuição que a mídia traz para a persistência dofenômeno das gangues urbanas americanas.

A mídia se vê, ora observadora neutra das gan-

gues, ora sua adversária, quando na realidade ela

contribui em parte para a sua sobrevivência. Defato, de todas as instituições que podem exercer

uma influência sobre o fenômeno, poucas ocupamuma posição tão estratégica2. Convém notar logo

de início, que não são “especialistas” sobre gangues

mas jornalistas das mídias ditas de “massa” que são

autoridades na matéria. De modo que são a prin-

cipal fonte de informação não somente do “cida-dão médio”, como também dos pretensos “especi-

alistas” responsáveis pela elaboração e realização

das medidas de luta contra as gangues. Fiquei ad-mirado ao longo das minhas investigações, quan-

do constatei o quanto aqueles que se consideramcomo “experts” retiram os seus conhecimentos do

fenômeno pelo menos, tanto das reportagens emi-

tidas pelas mídias quanto dos trabalhos de pesqui-

sa. Isto, para dizer que é indispensável elucidar o

modus vivendi que se estabelece entre a mídia e as

gangues se pretendemos entender a perenidade des-sas últimas.

A maioria das pessoas — inclusive, experts —está convencida de que a cobertura pela mídia dá

conta da realidade das gangues, quando ela na ver-

dade introduz distorsões tão profundas quanto sis-

temáticas. Estas distorsões têm a ver com as exigên-cias estruturais a partir das quais a mídia funcio-

na, assim como a ignorância, a incompetência e as

ambições profissionais dos jornalistas. As análises

que seguem se apóiam em três tipos de dados: ob-

servações diretas efetuadas quando membros dasgangues de New York, Boston e Los Angeles, cujas

atividades eu compartilhei, foram entrevistados pela

imprensa ou pela televisão; uma série de entrevis-

tas com jornalistas cobrindo a atualidade urbana;

finalmente roteiros de programas de rádio e de te-levisão dedicados as gangues, assim como as gra-

vações em vídeo de telejornais, de documentários,

debates, docu-dramas, novelas como Hill Street 

Blues e filmes (Colors, The Warriors, Fort Apache-The Bronx) em que as gangues desempenham umpapel central.

A reportagem de atualidade ouo procedimento “informativo”

Os jornais e revistas da atualidade não têm

como objetivo apenas difundir notícias: eles devem

também realizar lucros. Os redatores-chefes da im-

prensa e os produtores dos telejornais e de rádiodevem coletar e selecionar informações mas devemsobretudo interessar os leitores, ouvintes ou teles-

pectadores pela apresentação que eles fazem. No

quadro competitivo, uma reportagem sobre as gan-

gues se inscreve na rúbrica de “jornalismo de roti-

na3” que trata de acontecimentos do dia a dia e este

tratamento afeta obviamente a imagem pública dasgangues. Uma tal imagem não pode ser uma repre-

sentação detalhada e nuançada da realidade, em

razão das exigências de programação e de tempo,além do quê uma reportagem responde a um impe-

rativo econômico preciso: suscitar no público uminteresse que o leve a comprar tal jornal ou a assis-

tir ao noticiário numa determinada rede de rádio

ou de televisão ao invés das outras.

As gangues só são notícia quando estão impli-

cadas em um acontecimento particularmente sen-

sacional. Pela sua própria natureza, os jornais e asinformações de televisão não podem tratar a “no-

tícia” de forma exaustiva (diga o que disser o New

York Times,cujo lema é — “All the news that’s to

 print”: Todas as notícias que merecem ser impres-

2 Vigil e Hagedorn abordam as mídias mas sem ana-lisar suas relações com as gangues. Ambos se contentam em

sublinhar a imagem negativa que elas veiculam destas últi-mas. Ver Hagedorn, People and Folks,.23-24, 156; e Vigil,

Barrio Gangs, P. 40, 124.

3 Todd Gitlin usa a expressão “jornalismo de roti-

na”em The Whole World is Watching: Mass Media and 

Unmaking of the New Left,Berkeley, University of Cali-fornia Press, 1980. P.4.

As gangues e a imprensa

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182 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

sas). Para merecer algumas colunas na rubrica das

notícias populares ou alguns minutos no jornal danoite, uma gangue deve cometer um ato fora do

comum: para ser mais claro, é preciso que tenha se

tornado culpada de ações violentas ou criminosas.

E quanto mais violento o crime cometido, maischances ele tem de ser escalado no noticiário do dia.Deste modo, os telejornais e as rádios assim como

os jornais de informações estão a toda hora em bus-

ca de acontecimentos “captadores de interesse” pa-

ra agarrar e tornar fiel seu público. As violências e

os crimes que implicam gangues são, neste aspec-to, assuntos cobiçados. De fato, eles estimulam a

curiosidade do público e poupam aos jornalistas

inúmeras dificuldades técnicas com que costumam

se deparar. Por exemplo, os repórteres têm o hábi-to de apresentar os principais acontecimentos do diacomo fatos comprovados. Entretanto, na maioria

dos incidentes ligados a gangues, esta pressuposicão

é errada. Nas três cidades estudadas (Los Angeles,

New York e Boston), um grande número de notí-

cias populares violentas é regularmente apresenta-

do como “crimes envolvendo gangues” (gang-rela-ted crime), quando na maioria dos casos, o que é

apresentado ao público como “verdade” dos acon-

tecimentos, não tem absolutamente nenhum funda-mento. Quando experts (em geral policiais) são in-

terrogados para comentar o incidente em questão,eles sempre o fazem com termos cautelosos, usan-

do expressões como “achamos que este crime tem

a ver com gangues”. Neste caso, o setor de infor-

mação pode atribuir o ocorrido que, ele tem a cer-

teza, será do agrado do público, a ação de uma gan-gue sem ter de identificar nominalmente a pessoa

ou grupo presumidamente responsável pelo crime.

Um caso de gangues é, por natureza, um produto

midiático ideal: cativa o público sem realmente pôr

em jogo a responsabilidade do jornalista. O repór-ter de uma rede de televisão de New York explica:

“Fazer uma matéria sobre as gangues, é a panacéia

para um jornalista e para a sua rede de informação.

(...) Em primeiro lugar, já que só se cobrem as his-

tórias de gangues quando há crime ou violência, émais fácil determinar quem é o culpado: pode se

acusar um grupo, e não uma pessoa em particular.

É mais fácil identificar um grupo do que tentar re-montar até um indivíduo: e isto permite que todo

o mundo tenha folga! (...) Todo o mundo ganha

tempo e a reportagem é valida assim mesmo. Em

uma palavra, a rede consegue um ótimo “furo” semmuito trabalho. Além do mais, a vantagem, quan-do dizem que o culpado é uma gangue, é que nin-

guém precisa se fazer perguntas: porque ao acusar

um indivíduo particular, corre se o risco de preju-

dicar as suas chances de ter um processo justo.”

É assim que muitos crimes são abusivamente

estigmatizados como “envolvendo gangues”. Emmuitos casos precisos que eu estudei, o erro era por-

que o jornalista ignorava a existência de outros ti-

pos de crimes coletivos, como os cometidos pelascrews, estas equipes de três a cinco pessoas que se

associam apenas para o tempo de um assalto. Damesma forma, quando um jovem comete um crime

a título individual, independentemente da gangue

à qual se alega que ele faz parte, é incorreto e abu-

sivo falar em “crime de gangue”. E quando este tipo

de erro ocorre, os jornalistas e os órgãos de infor-

mação não correm o risco de ser criticados, já queo público desconhece que o crime relatado foi co-

metido por um grupo que não tem, nem a estru-tura nem o modo de funcionamento específico da

gangue. Aquilo que um jornalista de um diário de

New York reconhece: “Era uma série de assaltosdurante os quais muitas pessoas levaram tiros. Quan-

do cheguei no lugar para fazer a cobertura dos acon-

tecimentos, fiz a minha investigação e descobri que

os ladrões eram pelo menos seis. Então, fiz a minha

matéria dizendo que as vítimas tinham sido agre-didas e roubadas por uma “gangue”. Mas de fato,

pouco depois, compreendi que os ladrões não ti-

nham nada a ver com uma gangue: eles formavam.

o que, na periferia, se chama uma “equipe” (crews).

Em outras circunstâncias, ficaria muito aborrecidode ter cometido tamanho erro na minha matéria.

Mas lá não, já que ninguém não está nem aí. Você

acha que o público quer saber se estes caras forma-

vam uma gangue no sentido estrito da palavra? Cla-

ro que não! O que importa para eles é que alguém

Martín Sánchez-Jankowski

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Revista Brasileira de Educação 183

foi assaltado e roubado por um bando de vagabun-

dos e foi o que eu escrevi... Aliás, meus patrões selixam para o meu erro, já que, de qualquer forma,

esta história agradou aos leitores; além disso, eles

sempre têm a desculpa de poder dizer que tudo isto

tinha um pouco a ver com uma gangue.”Na verdade, os contatos diretos entre os jorna-

listas que produzem a “notícia” e os membros degangues são extremamente limitados. De uma ma-

neira geral, estes não interrogam os jovens das gan-

gues no momento de cada acontecimento, simples-

mente porque não têm tempo material para isto. Eles

têm prazos para cumprir, que os impedem de loca-lizar o ou aos membros da gangue incriminada e es-

tabelecer com eles o clima de confiança indispensá-

vel a uma boa cooperação4. Aliás, a maioria dos jor-nalistas considera este procedimento como inútil e

supérfluo. E, de fato, o número de encontros entreum jornalista e as gangues com que trabalha varia

entre nenhum, no caso dos apresentadores de pro-

gramas de televisão e alguns no máximo, o caso dos

repórteres da imprensa. É por esta razão que os jor-

nalistas se contentam com as informações sobre as

gangues vindas da polícia, como o admite um jor-nalista que trabalha em um diário de New York: “De

fato, quase nunca encontrei as gangues das quais eufalo nas minhas reportagens, nunca precisei realmen-

te disso, já que se tratava sempre de casos de homi-

cídio. Os comentários da polícia eram, portanto, am-plamente suficientes. Você entende, eu não escrevia

matérias de fundo: não é o que o redator-chefe que-

ria de mim. Tudo o que eles queriam de mim era que

eu escrevesse uma matéria sobre um acontecimen-

to interessante e que o produza a tempo.”

A reportagem de fundo ouo método “explicativo”

Dada a extrema raridade dos contatos entre asgangues e os jornalistas que trabalham para as emis-

soras e a imprensa diária, não é de admirar que as

notícias não ofereçam praticamente nenhum dadode fundo sobre o fenômeno, quando não fornecem

delas dados inexatos e enganadores. As reportagens

sobre os casos de gangues têm, não obstante, uma

função muito útil para a mídia como um meio cô-modo de atrair a atenção e cativar o público5. Osprodutores de programas de televisão sabem que

para segurar o público é preciso produzir jornais

variados e movimentados6. Da mesma maneira, os

diretores de diários e de revistas procuram atrair

leitores com manchetes, capas e títulos chamativos7.Mas os produtores e diretores de jornais são tam-

bém conscientes dos limites do procedimento pu-

ramente “informativo”. Eles se esforçam, portan-

to, para capitalizar em cima do desejo de explica-ções complementares despertado no público pelasinformações factuais, para oferecer artigos ditos de

“fundo”, reportagens longa metragem e documen-

tários que alegam tratar de forma mais profunda os

acontecimentos relatados de maneira muito sucin-

ta no noticiário do dia. O objeto declarado deste

segundo procedimento, que eu chamarei “explica-tivo”, é uma compreensão em profundidade da na-

tureza das gangues. Em matéria de televisão, a gran-

de referência é o documentário realizado nos anos50 por Edward R. Murrow para a CBS, intitulado

Who Killed Michael Farmer? É muito citado nasuniversidades como paradigma do gênero e todos

os jornalistas que, desde então, fizeram filmes so-

bre gangues se inspiraram nele. Neste trabalho,

Murrow trata de um incidente violento que fez mui-

to barulho na época, a morte de um jovem deficientenas mãos de uma gangue do Bronx na cidade de

New York, cujas causas ele tenta trazer à luz do dia

4 Ver Gitlin, The Whole World is Watching, p.35, sobre

a importância dos prazos na simplificação das reportagens.

5 É claro que as gangues não são o único tema que

serve para “prender” leitores, ouvintes ou telespectadores

ao noticiário.

6 Ver Herbert J. Gans, Deciding What’s News: A Studyof CBS Evening News, NBC Nightly News, Newsweek and 

Time, New York Random house, 1980,p.218.

7 Ibid., p. 219.

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para esclarecer o grande público a respeito do fe-

nômeno mais geral das gangues na América8.

A comparação entre o documentário de Mur-row e dos recentes programas como Our Children:

The Next Generation de Dan Medina, 48 hours: on

 gang street de Dan Rather (o famoso apresentadordo jornal da noite da CBS nos EUA), ou Not my kid 

de Tyne Daly, produzido em 1989, revela que to-dos usam as mesmas técnicas de apresentação ino-

vadas por Murrow9. Após ter lembrado os detalhes

de uma notícia popular que fez derramar muita tinta

nas manchetes, cada um traz informações sobre o

contexto e as circunstâncias ambientes, para pro-duzir uma análise de maior alcance sobre as gan-

gues. No caso de Murrow, a notícia inicial é um

incidente isolado, o homicídio de Michael Farmer;no de Dan Medina e de Dan Rather, são duas séries

de crimes provocadas por confrontos coletivos en-tre muitas gangues de Los Angeles. Cada um des-

tes eventos teve a cobertura de jornais da noite antes

de se tornar o suporte de uma investigação mais

completa que procura acima de tudo cativar e co-

mover o público.

O documentário de Murrow é inegavelmenteum filme que enche os olhos: a lembrança das cir-

cunstâncias que levaram à morte trágica de Mi-chael é entrecortada pela narrativa da história pes-

soal de seus agressores assim como pelas reações

dos pais do jovem deficiente num tom que alterna

emoção e suspense. Mas, embora com perfeito do-

mínio no plano da forma, o famoso documentáriosofre, no fundo, enormes lacunas. As informações

fornecidas esclarecem alguns dos fatores que po-

dem ter influído os autores do crime mas que não

dizem quase nada sobre a gangue em si, a não serque Michael foi a vítima inocente de uma luta in-testina entre seus membros. Nada é dito, notada-

mente, sobre o modo de organização e os compor-

tamentos específicos de uma gangue urbana. E à

pergunta inicial, “quem matou Michael Farmer?”,

Murrow se contenta em responder in fine que foia sociedade a responsável na medida em que per-

manece cega e insensível perante as condições so-

cio-econômicas opressivas que levam os jovens dos

bairros pobres a formar grupos suscetíveis de agre-dir pessoas. Uma resposta destas só faz reforçar aidéa comum de que as gangues são hordas de pre-

dadores, lobos ou hienas, famintos e violentos. O

espectador, a quem ninguém propõe nenhuma aná-

lise séria da gangue enquanto tal, não pode, por-

tanto, captar a relação entre a gangue como orga-

nização e a criminalidade juvenil.Os programas de Rather e Medina diferem do

de Murrow na maneira de se articular em torno de

assassinatos em série atribuídos a várias gangues deLos Angeles. Como o filme de Murrow, eles rela-

tam a vida dos membros das gangues incriminadase suas atividades e utilizam, para manter o interes-

se e o ritmo do programa, cenas comoventes con-

tando a vida das vítimas. Entretanto, há trinta anos

de distância, eles parecem notavelmente próximos

da reportagem de Murrow e só fornecem mesmobreves comentários e lugares comuns sobre a vida

das gangues. Isto se explica pelos imperativos téc-

nicos, profissionais e comerciais que guiam a esco-

lha e a apresentação dos “casos” considerados dig-

nos de serem documentados pela mídia.

As exigências do trabalho de jornalista

Exigências inerentes ao processo de produçãojornalística explicam em parte as semelhanças que

se observam entre os diferentes programas de tele-

8 Embora Murrow e Yablonsky (na sua obra The Vio-

lent Gang) usem o mesmo incidente para analisar o fenô-

meno das gangues, eles chegam a conclusões diametralmenteopostas. É possível pensar que é porque um deles é um so-

ciólogo de profissão (Yablonsky) e o outro um jornalistapersistente (Murrow) e que Yablonsky tem por esta razão

mais chances de estar certo, por causa da sua formação. Não

é nada disto: minhas pesquisas sobre este caso me levam acrer que as conclusões de Murrow estão mais próximas da

realidade das gangues e do encadeamento dos eventos queconduziram efetivamente à morte de Michael Farmer

9 No meio de uma gama de documentários dedicadosa gangues, escolhi centrar nestes três programas por serem tí-

picos do método “explicativo” com destino ao grande público.

Martín Sánchez-Jankowski

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Revista Brasileira de Educação 185

visão dedicados às gangues. Estas contingências fo-

ram analisadas detalhadamente por Herbert Gans10;eu me limitarei aqui a desenvolver as que se apli-

cam especificamente aos documentários de Mur-

row, Rather e Medina.

A primeira das contingências que pesam sobreo trabalho dos jornalistas é o que os próprios cha-

mam de “importância do caso” (story suitability),isto é, se ele é sucetível de interessar o país inteiro

ou, pelo contrário, se só merece a atenção em um

perímetro local e regional. Nenhuma das reporta-

gens sobre as gangues faz a comparação entre di-

ferentes cidades dos EUA mas todas usam diversosprocedimentos para lhes dar um alcance nacional.

A primeira receita usada em todos os programas de

televisão consiste na exploração do tema da violên-cia. Em cada um dos documentários citados, o jor-

nalista insiste no fato de que a violência das ganguesé onipresente em todas as grandes cidades dos USA

e prossegue afirmando que “em nenhum lugar, esta

violência só está presente em X”, justamente a ci-

dade em que se situa a reportagem. O documentá-

rio é feito para permitir que os espectadores enten-

dam a violência que assola o seu próprio bairroatravés dos exemplos, aliás, extremos de New York

e de Los Angeles. E é a idéia de violência que per-mite aqui, alargar o alcance da reportagem no país

inteiro. Outro método visando a produção deste

efeito de generalização é a exploração emocional dador das vítimas da criminalidade das gangues e de

sua família. O que permite que Dan Rather e Tyne

Daly concluam ambos seu programa (48 hours e

Not my kid ) com a idéia de que “não é um proble-

ma que concerne apenas aos habitantes de Los An-geles: é um problema que concerne a todos nós”.

Assim, eles mesmos trazem uma resposta afirmati-

va a pergunta que todo jornalista de profissão deve

se fazer nos EUA: será que a minha reportagem vai

interessar a sociedade toda? — enquanto que o con-teúdo de seus documentários, desprovidos de todos

os dados comparativos, não estabelece rigorosa-

mente nenhuma relação entre o que acontece em

Los Angeles e no resto do país.

A segunda regra que condiciona a produçãode tais documentários é o “imperativo do inédito”.

Antes mesmo de começar o seu trabalho, os jorna-

listas precisam se perguntar se ele traz alguma no-vidade: se falharem neste ítem, os seus superiores

lhes chamarão logo a atenção sobre este ponto. É,portanto, preciso ou selecionar um assunto total-

mente novo, ou encontrar uma nova luz para um

tema que já foi tratado. É por esta razão que todas

as reportagens sobre as gangues são variações, mui-

tas vezes forçadas, sobre um mesmo tema.

A terceira pergunta que um jornalista deve sefazer é a de saber se uma reportagem contem bas-

tante “ação”’. No jargão jornalístico, “ação” sig-nifica na verdade, emoção. Todas as reportagens

sobre as gangues redobram esforços para gerar a

emoção nos telespectadores mostrando-lhes pessoasque são elas mesmas absolutamente transtornadas.

Para criar “ação”, os jornalistas apelam para dois

tipos de registros, o da violência e o das emoções,

como a tristeza e a cólera que a morte ocasiona. É

por esta razão que as reportagens sempre contêm

cenas de violência entre as gangues cuja finalidade

não é tão somente a de descrever o dia a dia nosbairros pobres e operários quanto a de fornecer

“ação”, este ingrediente indispensável à produção

de uma “boa” reportagem.

A quarta regra tem a ver com o “ritmo”. Um

dos credos dos profissionais da notícia é que o rit-mo de um programa deve ser controlado, para que

o interesse do telespectador não relaxe nunca. Esta

exigência é particularmente evidente nos programas

citados acima. Assim, eles só dão um espaço extre-

mamente reduzido aos comentários pessoais dosprotagonistas entrevistados já que é muito sabido

que este tipo de comentários “quebra” o ritmo do

programa, e passam muito rapidamente de um as-

pecto da vida das gangues para outro, tendo como

resultado que nenhum destes aspectos é suficiente-mente desenvolvido para permitir o menor esclare-

cimento sobre o fenômeno. Por exemplo, no do-

cumentário de televisão, Our Children: The Next 10 Ibid., p. 146 -181.

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Generation, Dan Medina diz notadamente: “A vi-

olência na rua se tornou um esporte para alguns.”Seguem curtíssimas cenas violentas de apenas alguns

segundos, após o quê ele acrescenta: “A violência

é um excitante e é também o maior sustentáculo das

gangues da região de Los Angeles”, se referindo àexcitação da ação violenta como catalizador dasgangues. E neste passo, ele sugere três outros fato-

res que levariam os jovens a se juntar a gangues, a

saber o status social, o dinheiro e as mulheres, sem

a menor explicação nem prova, embora o status

social, o dinheiro e as mulheres se encontrem amal-gamados na idéia de violência.

Quinta exigência: a “clareza” da reportagem.

Os jornalistas consideram que seu trabalho deve

poder ser entendido por todo o público embora seuscomentários se reduzam ao estritamente necessário,

a ponto de, às vezes, tirar todo o significado de suapalavras. É também muito comum um jornalista

que dialoga com os membros de uma gangue obri-

gá-los a transformar suas palavras para simplificá-

las. É o caso de um jornalista entrevistando um mem-

bro de gangue de New York sobre as razões que

levavam a sua gangue a se enfrentar com outra. Orapaz, chamado Nimble, respondeu que muitos fa-

tores explicavam este conflito e começa a enumerá-los. Mas ele ainda não havia terminado o terceiro

quando o jornalista o cortou: “Na verdade, o que

você quer dizer é que é um problema de território.”No que Nimble respondeu: “Bem, se você quiser,

mas é mais complicado do que isto...” O jornalista

o interrompeu então, outra vez: “Mas, falando sim-

plesmente, é o que você quer dizer.” E Nimble as-

sentiu: “É, se você quer realmente simplificar, en-tão sim, suponho que é isto.” Mas quando o repór-

ter se foi, o jovem declarou: “Suponho que ele quer

que as pessoas entendam; mas, p...., não tem mais

jeito de eles entenderem agora! Mas se é o que ele

quer, f...-se!”

A sexta exigência que pesa no trabalho jorna-lístico recomenda uma reportagem “equilibrada”,

isto é, que mostre diversidade mas também igualdade

na escolha das matérias e na expressão das orienta-

ções políticas. O que se traduz nos programas dedi-

cados às gangues, por um esforço visando apresen-

tar aspectos muito diversificados da vida das gan-gues, oferecendo ao mesmo tempo diferentes pers-

pectivas sobre cada uma delas. Se esta intenção pa-

rece a priori louvável, e deontologicamente defen-

sável, ela só leva, na verdade, a análises extremamen-te pobres e sucintas que cabem, às vezes, em umaúnica frase. É por esta razão que esta exigência só

faz reforçar a incompreensão geral que reina em tor-

no do fenômeno das gangues. Por exemplo, no co-

meço do documentário de televisão Our Children:

New Generation, Medina afirma que entre as víti-mas das gangues aparecem as suas famílias e ele pros-

segue anunciando que “são famílias que se mobili-

zaram contra a violência”. Pouco depois, para equi-

librar as coisas, eles mostra pais que não têm nadaa dizer sobre o fato dos filhos fazerem parte de umagangue. E, como fim de programa, ele conclui dizen-

do que uma das causas da perenidade da violência

juvenil é que as famílias não assumem suas respon-

sabilidades. Mostrando ao mesmo tempo pais que

se levantam contra as gangues e outros que parecem

não preocupados, sem dar a menor explicação a res-peito desta diferença, abandona-se para o público

a tarefa de dar um jeito de reconciliar estes compor-

tamentos de aparência contraditória.O conteúdo das reportagens sobre as gangues

é também submetido a exigências mais diretamen-

te técnicas, entre as quais a mais tirânica é sem dú-vida a dos prazos a serem cumpridos pelos jorna-

listas. A conseqüência mais evidente disto é que o

jornalista trabalha muito pouco tempo no mesmo

assunto. É, portanto, difícil e até mesmo impossí-

vel para ele juntar as informações de base, o que res-tringe drasticamente seu conhecimento sobre as gan-

gues. Porém, é muito óbvio que enquanto o jorna-

lista não tem domínio suficiente de certos aspectos

fundamentais da questão, o público corre o risco de

não aprender grande coisa com as suas reportagens.Os comentários deste jornalista, há seis anos em

Boston, ilustram bem este dilema da atividade dos

repórteres: “Estava fazendo uma matéria de fundo

sobre as gangues e havia realmente todos os elemen-

tos para que a reportagem fosse um arraso. Mas eu

Martín Sánchez-Jankowski

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Revista Brasileira de Educação 187

precisava passar muito tempo com os jovens. Gos-

taria de pelo menos ter podido ficar com eles, maso meu diretor tinha prazos para cumprir e portan-

to eu tive de ceder também. Estava frustrado, pois

sabia que precisaria de mais tempo mas não fiquei

com bronca do meu chefe porque eu sei que ele mes-mo estava preso na engrenagem. Mas isto não im-pede de reconhecer que deixei de escrever o artigo

que eu poderia ter redigido.”

Uma outra exigência tem a ver com a dificul-

dade de acesso aos membros das gangues, proble-

ma que os jornalistas compartilham com os soció-

logos. Esta dificuldade não consiste tão somente ementrar em contato com eles, pois um encontro se

obtém bastante facilmente. O verdadeiro problema

é ganhar a confiança dos seus membros para serautorizado a observar diretamente o conjunto das

atividades da gangue e a recolher as confidênciasdos jovens implicados. Salvo exceção, os jornalis-

tas não são aceitos no seio das gangues e não têm

portanto acesso à sua vida externa e muito menos

à vida interna — as idéias, os sentimentos e as as-

pirações — de seus membros. Mas este problema

não parece, de maneira algum, incomodar os jor-nalistas: eles produzem apesar de tudo suas repor-

tagens compensando a sua própria carência de in-formações diretas tomando emprestado os comen-

tários de outras análises, geralmente dos sociólogos

e dos criminologistas, o que cria um sério proble-ma de qualidade do nível das informações forne-

cidas no programa. Para preencher as lacunas de

suas reportagens, os jornalistas confiam no que já

foi dito antes deles sobre o assunto11, o que faz com

que os estereótipos os mais comuns sobre as gan-gues não parem de se reproduzir e se reforçar.

A terceira dificuldade técnica tem a ver com a

formação dos jornalistas. Quase todos aqueles que

fazem reportagens de fundo sobre as gangues am-

bicionam produzir um diagnóstico de caráter socio-

lógico. Mas nenhum deles tem a formação reque-rida nem as ferramentas necessárias para este tipo

de abordagem. A maioria dos jornalistas é, aliás,

consciente disto e reconhece até um certo embara-

ço. Para dar o troco, eles muitas vezes pedem parapretensos especialistas comentarem os aspectos doassunto a respeito dos quais eles mesmos se sentem

os mais incompetentes. Infelizmente, acontece que

pedem aos especialistas para discutirem um aspec-

to da vida das gangues que foi relatado ao jorna-

lista ou que ele viu, mas que o especialista mesmonão observou. Ou, ainda, pergunta-se aos especia-

listas sobre um assunto fora das suas competências,

ou que ele estudou há tanto tempo que suas obser-

vações são completamente obsoletas. Isto é o quecostuma acontecer quando o jornalista não conse-gue convidar o especialista desejado para o seu pro-

grama e se vê obrigado a substituí-lo, de improvi-

so, por uma pessoa menos competente porém mais

disponível. Mais uma vez, o resultado é que a aná-

lise dos pretensos especialistas repousa menos so-

bre dados atuais do que sobre imagens repetidas.

A quarta dificuldade técnica é a da extensãoimposta ao programa ou ao artigo. Os jornalistas

sempre podem sonhar em não ter nenhum limiteneste caso, mas a realidade profissional é comple-

tamente diferente. E estas exigências de duração e

de extensão afetam diretamente tanto a profunde-za quanto a qualidade da reportagem. Isto, de fato,

obriga os jornalistas a fazerem uma escolha entre

os diferentes aspectos do assunto que eles vão tra-

tar e a decidir sobre o tempo a dedicar a cada um

deles12. Aí vem notadamente o problema de comosaber usar os comentários dos especialistas. Mui-

tas vezes, o jornalista pressiona o especialista a res-

ponder muito brevemente a suas perguntas e com

termos diferentes dos que ele gostaria de usar, como

estes repórter que eu pude ver perguntar a especia-

11 Usar observações feitas por outrem não acontece

sem riscos, dos quais os dois principais são que estas obser-vações sejam falsas ou sem pertinência no contexto em que

são trazidas.

12 Estas decisões são elas mesmas fortemente determi-nadas pelo que a profissão tem costume de considerar como

uma boa reportagem (clara, comedida, equilibrada, etc.).

As gangues e a imprensa

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listas: “E o senhor, a sua “linha” (your take) sobre

a violência das gangues, qual é?”. O especialista,seguro após vários anos de reflexão sobre o assun-

to, se prepara para se lançar numa explicação bas-

tante longa mas é imediatamente interrompido pelo

jornalista que exige uma resposta precipitada. Vi,até, um jornalista explicar a um expert que sua teo-ria devia ser falha, já que não conseguia expressá-

la em poucas palavras. Nos casos em que o jorna-

lista deixa o especialista se expressar à vontade, sua

intervenção será pura e simplesmente reduzida ou

suprimida na hora da montagem. Resumindo, asexigências de tempo, de espaço e de formação di-

tam, para uma boa parte, o conteúdo das reporta-

gens sobre as gangues e as explicações que dão para

justificar a sua multiplicação.

Interesses profissionais e pressões comerciais

Ambições profissionais e pressões comerciais

são o último elemento que explica a perceptívelsimilitude dos programas dedicados às gangues.

Mostrou-se que as gangues são invariavelmente

associadas aos temas do crime, do sexo e da vio-

lência e que são envoltas por uma atmosfera sul-

fúrica que mistura sinistro e mistério. Estes clichésque a mídia contribuiu para criar, são aqueles mes-

mos sucetíveis de atrair um grande público. As gan-

gues representam portanto para os jornalistas um

assunto — ou, para ser mais preciso, um produto

— de destaque que pode, além do mais, se revelarparticularmente eficaz para ganhar dinheiro, pres-

tígio e poder. Explorar estes clichés, limitando-se

a adotar um ângulo novo para apresentá-los, tor-

nou-se um dos meios mais concorridos para fazer

carreira na mídia.

Os jornalistas estão convencidos de que umaboa reportagem sobre as gangues pode realçar o seu

prestígio no seio da profissão e, por conseguinte, no

seu próprio jornal ou rede de televisão ou rádio. Eles

esperam firmemente conseguir graças às gangues

um cargo mais importante com responsabilidadesampliadas assim como um salário mais generoso.

Um jornalista, há pouco tempo, em Los Angeles, no

momento da entrevista, afirmou sem constrangi-

mento: “É claro que quero fazer uma reportagemsobre as gangues. Muito francamente, é um ótimo

assunto para se trabalhar porque continua haven-

do violência e crimes nos casos de gangues e é exa-

tamente com isto que o público sonha. É realmen-te o tipo de matéria ideal para um jovem jornalistacomo eu, pois se eu conseguisse fazer uma repor-

tagem sobre as gangues, tenho certeza que teria mui-

to a ganhar. (...) O que eu espero de uma boa re-

portagem é que me faça ganhar o respeito de meus

colegas, e que me faça conseguir outros programas;e também espero que me permita ganhar muito di-

nheiro. Um jovem jornalista tem uma tremenda ne-

cessidade de uma ou de duas boas reportagens des-

tas para lançar a sua carreira.” Um outro jornalis-ta em New York há muitos anos, explica tambémo interesse de tais reportagens: “Você me pergunta

por quê eu quero fazer esta reportagem sobre as

gangues? Na verdade, não é muito complicado no

meu caso. As gangues são um problema muito grave

nas cidades americanas e sempre foi assim porque

os grupos representam uma ameaça para o ameri-cano médio. Escolhendo um assunto que sempre

costuma ser a notícia destes últimos tempos, eu pos-

so provar a mim mesmo que ainda estou por den-tro. Seriamente, se eu me encarrego de uma repor-

tagem difícil sobre um assunto importante que in-teressa para todo o mundo, eu sei que vou conser-

var a estima profissional que eu adquiri em todos

estes anos aos olhos de meus colegas. E se eu con-

seguisse dar uma visão nova das gangues ou de um

outro assunto tão explosivo quanto esse, eu ganha-ria ainda mais respeito e prestígio na profissão, e

isto, não me desagradaria.”

Todos os jornalistas que eu encontrei, assim

como os que eu interroguei durante as entrevistas

formais e com quem tive a oportunidade de dis-cutir quando vinham entrevistar as gangues com as

quais eu andava, estavam convencidos de que ao

acumularem as informações necessárias, eles se-

riam capazes de dar uma visão nova das gangues.

Porém, na maioria dos casos, os seus projetos nãotinham nada de muito novo, a não ser aos seus

Martín Sánchez-Jankowski

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Revista Brasileira de Educação 189

próprios olhos. Alguns até confessaram que outros

que haviam trabalhado sobre o tema tinham avi-sado que sua abordagem não era original; mas, ao

discutir comigo, eles não davam a mínima para

estas advertências e continuavam falando como se

tivessem efetivamente uma concepção revolucioná-ria do problema para vender ao seu diretor ou pro-dutor. As declarações deste jornalista ilustram bem

esta atitude: “Dois colegas me disseram que a mi-

nha matéria sobre as gangues já tinha sido feita,

francamente, não acredito que seja exatamente a

mesma coisa. Passei muito tempo nesta reporta-gem e acho que vou poder convencer o redator-

chefe de que é algo inédito”.

O que os jornalistas consideram ou teimam em

considerar como uma apresentação “inovadora” sófaz, geralmente, reforçar o mais comum ponto de

vista sobre as gangues com todas as suas falhas. Emsuma, as reportagens de fundo difundidas sobre as

gangues pelas revistas, jornais ou pela televisão só

se aproveitam do interesse criado pelo noticiário

para faturar, se apresentando como análises apro-

fundadas do assunto. É porém, raro que permitamuma melhor compreensão do fenômeno. Isto é de-

vido ao fato deles nem procurarem compreender o

que são realmente as gangues. Sob a cobertura dainvestigação “explicativa”, na verdade, escondem-

se objetivos essencialmente profissionais e comer-ciais. E este tipo de reportagem reforça uma ima-

gem das gangues que deve menos à realidade do que

aos mitos que as envolvem.

As gangues como assunto de diversão

Os debates de televisão e os filmes marcam

uma etapa suplementar — e uma escalada — na

exploração midiática do interese do grande públi-co pelas gangues. Os talk-shows de grande audiên-

cia na parte da tarde como Geraldo, The Phil Do-

nahue Show, e The Oprah Winfrey Show se apre-

sentam — e se vendem — como programas que,

além dos debates que alegam promover sobre dife-rentes “problemas da sociedade” vistos através das

situações individuais, têm como grande ambição a

de revelar “o aspecto humano” de cada história,

destacando as atitudes e as emoções dos participan-tes13. Estas emissões são retiradas das programações

sempre que elas deixam de ter uma alta taxa de au-

diência. É por esta razão que elas privilegiam todos

os assuntos considerados como os mais “chamati-vos” junto ao público da tarde. Porém, o fenômenodas gangues é o próprio tipo de assunto que estimu-

la o interesse dos telespectadores, sobretudo quan-

do é tratado com um sensacionalismo desmedido.

Um talk-show destes é sempre aberto com uma

apresentação do assunto pelo animador que dá o

tom do programa, usando termos e imagens este-reotipados e alarmistas. No caso das gangues, uma

frase de introdução basta para dramatizar o proble-

ma. O apresentador lembra algum incidente violen-to notório que implique uma ou mais gangues, cita

diversas estimativas da amplitude do fenômeno pe-los experts e salienta a extrema gravidade da situa-

ção. Ele diz o número de vítimas inocentes desta

manifestações de violência, particularmente entre as

pessoas que não residem nos bairros pobres asso-

lados pelas gangues. Como estes programas apre-

sentam um assunto diferente a cada dia (ou seja,cinco assuntos por semana), eles só têm pouco tem-

po para dedicar ás pesquisas necessárias a cada te-ma. Mas em compensação, eles juntam no palco

“experts” ou pretensos experts na matéria, a quem

13 [Nota do tradutor] Estes programas diários, anima-

dos por um apresentador-astro (como Geraldo Rivera, Phil

Donahue, e Ophrah Winfrey, que emprestam o seu patrô-nimo ao programa) que conduz uma discussão personalizada

de alto teor emocional em volta de um tema selecionado pelo

seu impacto midiático (os temas giram invariavelmente emtorno de dinheiro, amor, sexualidade e imoralidade) junta,

ao vivo, no palco pessoas que viveram tal situação extremapara ilustrar o tema do dia, representantes de associações

envolvidas e diversos experts (geralmente psicólogos e pro-fissões paramédicas, devidamente certficados por seus diplo-

mas) que supõem sugerir alguma terapia individual como

solução do dilema discutido. A participação ativa e baru-lhenta da platéia, que aplaude, apita e ovaciona os deba-

tedores, é ativamente encorajada pelo animador, assim comoas tomadas de posição definitivas e irreconciliáveis.

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190 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

se pede comentários sobre o que for dito ao longo

do programa pelos convidados ou pelo público14.

O apresentador manipula seus convidados pa-ra que o debate seja o mais ágil possível; ele limita

as intervenções de cada um a algumas frases que ele

utiliza como ponto de partida daquilo que é ou vairealmente ser o coração e a razão de ser do progra-

ma: as interações múltiplas e rápidas entre o ani-mador, os convidados, o público do estúdio, e os

telespectadores. Durante as emissões dedicadas às

gangues, chovem as perguntas de senso comum tais

como: Por quê eles são tão violentos? Como fazer

para tirá-los desta? etc. Porém, é obviamente impos-sível dar respostas um pouco complexas e comple-

tas que sejam, a esta questões em meia hora de pro-

grama (sem contar as propagandas que interrom-pem os debates a cada seis ou oito minutos). Até

porque os muitos convidados têm todos conheci-mentos e opiniões muito dispersos sobre o assunto.

O papel do apresentador face aos convidados

é ressaltar as diferenças e acentuar as oposições en-

tre os pontos de vista expostos. O objetivo é criar

um debate conflituoso entre todos os participantes

(sem dúvida porque se considera que é o único meio

de interessar os telespectadores), e entreter a anima-

ção do programa incentivando ininterruptamenteas trocas (bate-papo) entre os convidados, entre o

público presente e os telespectadores, finalmente

entre os convidados e o público. O apresentador

assume portanto o papel do provocador para criara polêmica entre os diferentes grupos de participan-

tes15. Obviamente, os produtores do programa es-

timam que se eles conseguem “esquentar o públi-

co” do estúdio, os espectadores se empolgarão tam-

bém. Porém, nos programas que estudei, mesmoque a estratégia posta em prática permita efetiva-

mente obter debates animados, não se aprende, por

assim dizer, nada sobre o fenômeno das gangues.

É verdade que o procedimento e o objetivo destesprogramas não é buscar a compreensão, mas utili-zar as gangues como suporte para vender o espetá-

culo das trocas (bate-papo) entre os partcipantes.

Definitivamente, o objetivo divertimento é bem atin-

gido mas ao preço de uma acentuação dos clichés

sobre o problema das gangues.

O cinema também usa este assunto para finsrecreativos e comerciais16. Entre a pletora de filmes

sobre as gangues, os mais memoráveis são sem dú-

vida West Side Story, The Warriors e Colors. Cadaum destes filmes descreve uma gangue de uma época

diferente: West Side Story nos fala das gangues dosanos 50, The Warriors das dos anos 70 e Colors dos

anos 80. Entretanto, apesar deste quadro temporal

muito preciso, eles são notavelmente similares na

sua maneira de apresentar as gangues e o seu meio

ambiente. Cada um destes filmes apresenta os mem-

bros das gangues como jovens pobres, oriundos daclasse operária, e que não têm nem competência

nem vontade de crescer na escala social ou de setornar cidadãos produtivos17. Fundamentalmente,

são “perdedores”, mas sobretudo, perdedores com

costumes primários e com comportamento violen-to. Eles representam tudo aquilo que a sociedade

execra profundamente e sobretudo tudo aquilo que

ameaça os seus valores mais sagrados. Em Warriors

e Colors os princípos que guiam a conduta dos mem-

14 Falar em pretensos experts não significa que as pes-soas solicitadas careçam de competência. Mas muitas vezes,

sua competência não tem nada a ver com o assunto em pauta.

15 Acontece que este segundo método funciona tãobem que o apresentador se vê transbordado e paga por isto.

Assim, um bate-boca violento estourou em Geraldo durante

um programa, que colocou face a face defensores da supre-macia branca e militantes afro-americanos, em que os gru-

pos quebraram o nariz de Geraldo Rivera.

16 Podemos incluir aqui os telefilmes e as passagensde seriados que integram históras de gangues. As telenove-

las Hill Street Blues, L.A. Law, Cagney and Lacey e The

Mod Square contêm todos episódios em que as gangues sãodestaque.

17 Outros filmes recentes como Fort Apache-The Bronx

fazem semelhante pintura das gangues. Até os primeiros fil-mes sobre os Bouwery Boys os apresentam como coitados,

metidos e sedutores apesar de tudo.

Martín Sánchez-Jankowski

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Revista Brasileira de Educação 191

bros das gangues representam verdadeiros anátemas

lançados contra a sociedade18.

Da mesma forma, os parentes dos jovens de-linquentes aparecem com traços particularmente

sombrios. Os pais, por exemplo, ignoram ou negli-

genciam suas responsabilidades face a seus filhos nodescaminho. Mas são as companheiras dos mem-

bros de gangues que são, de longe, as personagensmais negativas. Estes filmes, que precisam de um

mínimo de cenas de amor e de sexo para serem ven-

didos, apresentam as intrigas amorosas dos mem-

bros de gangues de uma maneira ao mesmo tempo

sexista e racista que em nada corresponde à situa-ção específica das gangues. As mulheres que têm

qualquer tipo de relações com membros de gangues,

sejam elas namoradas, amantes ou simples conhe-cidas, têm todas costumes suspeitos. Elas estão dis-

postas a cometer o adultério e até a se prostituir,ou ainda são alcoólatras ou drogadas. Esta repre-

sentação é muito mais chocante porque a maioria

destes filmes se concentra sobre gangues de “não

brancos”, em bairros “não brancos”. Basta compa-

rar as personagens femininas de cor e policiais bran-

cos em Colors e em Fort Apache-The Bronx, umfilme mais antigo que descreve a vida de uma co-

munidade particularmente pobre19. Nestes dois fil-

mes, todas as mulheres de cor são imorais e irrespon-

sáveis. Nos dois casos, a única mulher “não bran-ca” apresentada como diferente das outras é justa-

mente aquela que parece ter escapado da influên-

cia corruptora da sua comunidade. Em Fort Apa-

che, é uma enfermeira portoriquenha e, em Colors,uma mexicana que vende sanduíches. E claro, nosdois filmes, o policial branco — Paul Newman em

Fort Apache e Sean Penn, o marido de Madonna,

em Colors — se apaixona pela mulher “diferente

das outras”. Mas descobre-se logo durante o filme

que estas duas mulheres não são nada “boas”, quea sua moralidade aparente não passa de uma más-

cara de hipocrisia. A enfermeira portoriquenha se

revela ser uma viciada em heroína e a garçonete

mexicana, uma mulher fácil que corre pelas ruascom a sua gangue latina. Elas não só são apresen-tadas como desleais para com seus namorados bran-

cos, mas a maneira como elas os traem é particular-

mente repreensível aos olhos da moral dominante.

Quando lhes é oferecida a possibilidade de sair de

seus guetos e escapar da corrupção que as assola,

as duas se mostram profundamente incapazes deagarrar esta oportunidade: a jovem portoriquenha

se recusa a parar com a heroína e acabará morren-

do de overdose; a garçonete mexicana termina comSean Penn, que a encontrará depois nos braços de

um dos membros da gangue, seu inimigo pessoalmas também e sobretudo o único negro desta gan-

gue mexicana! O simbolismo racial é particular-

mente revelador em relação a isto: fazer amor com

um delinquente mexicano já seria bastante imoral;

mas fazê-lo com o único negro da gangue é realmen-te a traição suprema.

Chegamos finalmente à definição que Holly-

wood dá do ambiente social das gangues. Em todos

estes filmes, as comunidades a que pertencem as

gangues aparecem como completamente desorgani-

zadas e completamente incontroláveis e os indivíduosque as compõem incapazes de tomar conta delas

mesmas. Assim, cada filme contém várias cenas que

procuram demonstrar que “esta gente” é incapaz de

fazer reinar a ordem, que todos eles aspiram, sem

dúvida, a mais disciplina, mas que ninguém sabe

18 É também a mensagem de West Side Story, embo-

ra de maneira mais sútil: as forças do “bem” se manifestam

através de Maria e Tony enquanto que o “mal” é encarna-do por todos aqueles que pertencem a uma gangue, sejam

eles brancos ou portoriquenhos (como mostra a célebre cenado assassinato seguido pela dor de Maria). A morte de Tony

é tratada no flme à maneira da paixão do Cristo. O sacrifíco

de Tony leva os Jets e os Sharks à humanidade, quando le-vam juntos seu corpo para a terra, enquanto Maria chora

este sacrifíco como a Virgem Santa.

19 Fort Apache The Bronx é um filme sobre o bairro“ghetificado” do South Bronx de New York. Seu tema cen-

tral é a criminalidade neste enclave pobre de New York e

as tribulações dos policiais que lá trabalham; ele só trataincidentalmente das gangues. Em compensação, Colors está

centrado sobre as atividades presumidas das gangues de LosAngeles assim como o seu meio ambiente.

As gangues e a imprensa

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192 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

como instaurá-la20. O único meio de restabelecer a

ordem é então fazer com que a polícia intervenha.A mensagem mandada ao público é que, sem a po-

lícia (enquanto instituição cuja autoridade vem de

fora da comunidade e cujo pessoal é igualmente com-

posto de indivíduos que, em sua grande maioria nãoé de lá), esta comunidade afundaria no maior caos.Dito de outra forma, Hollywood representa uma

situação urbana contemporânea através de uma vi-

são colonialista das mais tradicionais: sem a polícia

(exército colonial), estas comunidades pobres (paí-

ses colonizados) viveriam numa desordem contínua,já que os moradores mais bem intencionados des-

tes bairros (países pobres) não têm as competências

necessárias para controlar as gangues (facções e tri-

bos) e impedí-las de guerrear entre si. Este simbo-lismo colonial é tanto mais evidente e chocante quan-to os recentes filmes são dedicados às gangues das

comunidades de cor, à exclusão das gangues de ori-

gem européia (italina ou irlandesa, por exemplo). A

idéia definitivamente veiculada é a de que as gangues

e seus próximos (ou seja o conjunto da população

“não branca”) constituem e vivem em um universoprofundamente imoral, em ruptura com o resto da

sociedade21. São eles os elementos diabólicos da so-

ciedade: verdadeiros “inimigos do interior” que amea-çam os próprios fundamentos da moral nacional22.

Assim, Hollywood fez gangues e, sobretudo, gangues

“não brancas” e das suas mulheres fez agentes do

mal por excelência. Hollywood criou um verdadei-ro mundo imaginário com seus personagens míticos.

Para responder às críticas que lhes foram feitas a este

respeito, os produtores e os diretores de Warriors,

Fort Apache-The Bronx e Colors retorquiram ob-viamente que seus filmes não tinham a pretensão deser documentários mas apenas filmes de ação pro-

curando o divertimento23. Acontece que tais imagens

se instalam no espírito do público e, na ausência de

informações e análises rigorosas sobre o assunto, se

tornam o prisma principal através do qual as pes-soas constróem a sua própria compreensão da rea-

lidade social das gangues.

Como as gangues usam a mídia

As gangues não se impressionam nada com a

mídia e a perspectiva de ser o objeto de um artigo

ou de uma entrevista não os entusiasma a ponto de

liberar sem reserva as informações que os jornalis-tas procuram obter delas. Elas estão dispostas a

informar desde que seja de acordo com suas condi-

ções. As gangues são de fato desconfiadas dos jor-

nalistas — como o quer o seu “individualismo de-

safiante” acentuado24. Mas são também conscien-

20 Cada um dos quatro filmes citados contém cenas

deste tipo. Em West Side Story, há um gentil vendedor que

gostaria muito de ajudar mas que é reduzido à impotência pelaviolência das gangues. Em Colors, os moradores do bairro

se juntam e colaboram com a polícia para elaborar um dis-positivo de defesa contra as gangues, mas o palanque desmo-

rona durante a assembléia e a reunião afunda no caos.21Notemos que muitas obras acadêmicas de alto reconhe-

cimento científico contribuem, talvez sem querer, para se acre-ditar na idéia de que os pobres teriam uma moral radicalmente

diferente da que está em curso no resto da sociedade. Assim

o faz Gerald Suttles, Social Order of the Slum, p. 4-6, 223-224.

22 Sobre a tendência que grande parte dos americanostem de se empolgar com os demônios políticos e sociais que

aterrorizam a sociedade, ler a notável obra de Michael Rogin,Ronald Reagan, The Movie.

23 Este filme suscitou muitas reações críticas. The War-

riors foi criticado até por gangues que protestaram escreven-do para a revista trimestrial Youth at Large (revista publicada

em Los Angeles pela Inner City Rountable of Youth, Inc./ ICRY

organization). A sua observação se conclui com estas palavras:“No filme, parece que os jovens demônios fabricados peça por

peça, exatamente como os jovens de ICRY, não têm nada dehumano, nem sentimento, nem família, nem amigos, nem cons-

ciência, nem senso moral, nem ambições, nem alguma destas

molas que associamos com os objetivos da existência. [...] Épor esta razão que não gostamos de Warriors, já que Warriors

somos nós (itálicos no original). Ver Youth at Large, no 2, de-zembro de 1979, p. 10 e 21. Aliás, os jovens que escreveram

na revista defendem Sol Yurick, o autor do romance que ins-

pirou o filme, ao assinalarem que o filme trai o livro.

24 Sobre a noção de “individualismo desafiante” queestrutura a visão do mundo dos jovens das gangues, ver M.

Sánchez-Jankowski, Islands in the Street , op.cit., p. 23-28.

Martín Sánchez-Jankowski

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Revista Brasileira de Educação 193

tes do fato de que toda informação que lhes diz

respeito é muito procurada e, portanto, tem valor.Todas as gangues que estudei entenderam muito

bem que a mídia está sempre disposta a fazer repor-

tagens a seu respeito desde que tenham algo de novo

a lhe propor. As gangues são portanto “vendedo-ras” mas controlam estreitamente os fluxos de in-formação tanto em volume como em seu teor. Os

comentários, a seguir, de três jovens membros de

gangues ilustram esta consciência que elas têm da

utilização estratégica que podem fazer da mídia.

Coal, 19 anos, pertence a uma gangue negra

de New York City: “Era uma jornalista que queriafazer uma reportagem sobre nós. Dava para ver que

ela precisava tremendamente fazê-la. Como se a

carreira dela dependesse disso! Ela nos mandou ummonte de mensagens pelo intermédio de M.G. (um

animador social do bairro). Então, durante a reu-nião da gangue, falamos sobre o que íamos fazer

com ela. Decidimos que a gente podia aproveitar

para fazer um pouco de propaganda e, portanto, fi-

xamos o que a gente ia passar para ela: sabe como

é, quem ia falar com ela, o que a gente ia dizer para

ela...Ela veio e interrogou os caras que a gente es-calou. E depois respondemos o que quisemos. Ela

nem entendeu o que estava acontecendo. A gente éótima para este tipo de besteiras, eles ficam embas-

bacados, os jornalistas! Ela, estava toda contente

mas, antes de ir embora, a gente a fez babar umpouco; falamos dois-três negócios que podiam in-

teressá-la para que ela volte ou fale para outro jor-

nalista e para que eles voltem”.

Bird, 18 anos, que é membro de uma gangue

irlandesa de Boston, conta: “Claro, tem um monte

de jornalistas que já tinha tentado fazer reportagenssobre a comunidade e sobre nós; mas a gente não

queria falar com eles. E depois finalmente a gente

pensou: “As suas reportagens, eles as farão de qual-

quer forma, então melhor dizer para eles o que a

gente quer que eles digam.” Entramos nesta e ro-lou mais vezes. Eles faziam todo tipo de perguntas:

se a gente fazia tráfico de armas para a IRA, coisas

assim, mas a gente só os enrolava. Era sempre pre-

ciso que eles voltem, para saber mais e a gente só

dizia o que queria. Eles não entendiam bulhufas. E

depois, de qualquer forma, a sua reportagem se en-caixava bem, era chamativa, então eu acho que eles

também não estavam nem aí.”

 Jammer, 20 anos, é membro de uma gangue

de Los Angeles. Ele acrescenta a este respeito: “Osjornalistas, eles precisam fazer boas matérias e de-

pois, é bom dizê-lo, as gangues são um ótimo cavalode batalha. Sabe, o lado suspeito de uma cidade, isto

interessa as pessoas. Mas, estar no noticiário pode

ser muito útil para nós, para muitos de nós, e tam-

bém para a organização. Então, a gente dá as in-

formações aos jornalistas, mas só que são as nos-sas informações. Eles obtêm o que nós queremos

que eles obtenham e nada mais. A gente dá para eles

um pouquinho, só para lhes dar água na boca, masnão tudo o que eles querem. Tudo isto é só arma-

ção, sabe, mas se funciona, todo mundo fica con-tente por que eles não entendem nada...A gente só

procura fazer funcionar os nossos negócios.”

Todas as gangues que eu estudei em Los An-

geles, New York e Boston entenderam o interesse

que elas podem ter em serem cobertas pela mídia.

Mas nem todos são capazes de organizar e aplicarestratégias tão elaboradas quanto as descritas an-

teriormente. Muitas vezes, as gangues que encon-tram dificuldades para manipular a mídia expli-

cam isto pelo fato de alguns membros se recusa-

rem a qualquer contato com os jornalistas. A ra-zão deste comportamento, dizem as gangues, é que

estes indivíduos temem ser identificados pelas au-

toridades e presos ou ainda porque não querem

cooperar com a mídia que sempre os apresenta de

forma negativa. De fato, estas desculpas só servempara esconder a inaptidão destas gangues para

controlar suas relações com a mídia já que a sua

organização e a sua estrutura estão definhando.

Assim, um rapaz de 17 anos, pertencente a uma

gangue de New York confessa: “Muitos jornalis-tas queriam entrar em contato conosco, mas a gen-

te não dava mais entrevista para ninguém, já que

muitos brothers (membros da gangue) não que-

riam que o fizéssemos. Eles diziam que não que-

riam a cara deles na televisão porque os policiais

As gangues e a imprensa

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194 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

poderiam reconhecer e prendê-los. Na verdade era

tudo papo furado já que eles nem precisavam es-tar lá no momento das entrevistas. Outras gangues

fazem muito bem isso... Quer saber de uma coisa,

a verdadeira razão, você sabe, já que você estava

lá, é que eles não queriam que o cara que é presi-dente agora aproveite da propaganda, porque elestinham um outro cara em mente para substituí-lo.

Mas a gente está se lixando para o motivo pois, de

qualquer forma, eles conseguiram nos impedir de

fazer os nossos negócios com os jornalistas.”

Um outro membro de uma gangue de Los An-

geles, com 20 anos, dá razões mais próximas: “Ti-nha um pessoal entre nós que queria aceitar a oferta

dos jornalistas de nos levar para a mídia; mas mui-

tos chegados dos outros kikas (ramificações da gan-gue) queriam opinar na escolha daqueles que iam

ser escalados para as entrevistas...Finalmente nãopudemos tirar nada da mídia porque não consegui-

mos decidir entre nós o que fazer. A gente só fica-

va lá sentado e brigando um com outro. Um ver-

dadeiro bordel e não havia chefe com bastante au-

toridade para acabar com aquilo. (...) Todos aque-les que estavam a favor das entrevistas disseram que

as gangues estavam realmente na moda naquele mo-

mento, mas que não seria sempre assim e que a gen-te ia perder uma p... oportunidade para fazer a nos-

sa propaganda; mas não adiantou nada.”

Ao longo de mais de dez anos de pesquisas decampo, nunca vi gangue nenhuma receber dinhei-

ro da mídia como contrapartida da sua cooperação

nem nunca vi um único jornalista propor um negó-

cio desta natureza. O que leva a fazer muitas per-

guntas: primeiro, se as gangues não recebem dinhei-ro, o que é que ganham cooperando? Segundo, por

que lhes parece tão importante adotar uma estra-

tégia coletiva nas suas relações com a mídia? Para

responder à primeira destas perguntas, é óbvio que

as gangues tiram muitas vantagens de uma passa-gem no noticiário. Uma gangue que se beneficiou

de uma “plataforma midiática” poderá sempre co-

meçar uma outra ramificação em um outro bairro

da cidade, pois o programa terá despertado um in-

teresse para esta gangue entre os novatos. Tomemos

como exemplo o testemunho de um membro de uma

gangue de Los Angeles (21anos): “Sabe, se um pes-soal de televisão faz uma reportagem sobre nós e a

gente se mostra cooperativo, isto ajuda a recrutar

mais membros. O que importa é saber como coo-

perar com eles, sabe, é legal, assim a gente faz pas-sar as mensagens úteis. (...) Por exemplo, eles (osjornalistas) vão nos fazer perguntas e nós vamos

responder dizendo coisas que dão a impressão aos

caras da vizinhança de que o que fazemos é o má-

ximo. Sabe, é assim, a gente diz coisas que o resto

do mundo escuta e para eles, parece até mesmo bo-bo. Mas para os caras da vizinhança isto quer di-

zer outra coisa. Isto quer dizer que nós temos pos-

sibilidades para eles. É o poder das palavras, como

quando a gente vê na tevê a propaganda do exérci-to, sabe, quando dizem: “para alguns, ser um recru-ta é o início de uma carreira” ou besteiras deste tipo.

A mim, de fato, esta mensagem não me interessa-

va. Me parecia até bobo entrar no exército para

aprender alguma coisa e depois fazer uma carrei-

ra. Mas têm caras que acreditam nestas besteiras.

Bem, é parecido com o nosso papo: têm caras queentendem e que vêem possibilidades para eles. É

assim que a coisa acontece.

Um jovem de 18 anos que faz parte de umagangue de New York acrescenta: “Estava vendo o

noticiário na tevê quando de repente falaram das

gangues. Estes brothers eram realmente bad  (nojargão deles: bons, fortes, duros) e tinham algo a

dizer; então eu disse para mim mesmo: “Eh! talvez

eles tenham coisas interessantes para mim, estes aí”.

Então decidi ir lá ver com meus próprios olhos e me

juntei à gangue. (...) Não, nunca entraria neste gru-po em particular, poderia ter participado de outro

grupo, mas não teria escolhido este se não tivesse

ouvido o que falavam no programa. Bateram na

tecla certa!”

Segunda vantagem procurada pelas gangues

nas suas relações com os jornalistas: uma passagempela mídia serve para incrementar os negócios. Elas

esperam de uma reportagem que as descreva como

sendo mestres de um território bem definido e dis-

postas a usar a força, se preciso, o que é muito útil

Martín Sánchez-Jankowski

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Revista Brasileira de Educação 195

para elas, notadamente para as suas atividades de

trambique. Assim, quando entram em contato comnovos clientes para propor-lhes a sua proteção, elas

têm mais chances de fazer o negócio se já tiverem

saído na televisão. Dos 53 pequenos comerciantes

que eu entrevistei após terem aceito a proteção deuma gangue, 16 deles (ou seja 30%) me disseramter sido influenciados (ou intimidados) por repor-

tagens da mídia sobre as gangues. O testemunho de

um proprietário de uma pequena mercearia de New

York, é tipico: “Eu vi um programa na tevê sobre

uma gangue do bairro. Ouvi o que eles diziam, edepois a polícia falou dos crimes que esta gangue

havia cometido. Então, tive um pouco de medo. E

quando vieram me propor a proteção, claro que eu

falei para eles que, ‘tudo bem’! Você vê, não estouneste país há muito tempo, então, não quero abor-recimentos com ninguém. E depois que eu os con-

trato não tenho mais problemas.”

A mídia pode também oferecer uma outra

forma de propaganda às gangues ao lhes servir

“páginas amarelas” da economia ilegal. Acontece

realmente que alguns traficantes encontram pormeio da imprensa ou da televisão o nome de gru-

pos que poderiam lhes ser útil na produção ou na

distribuição de suas mercadorias. Em um caso des-tes, traficantes de objetos roubados entraram em

contato com determinada gangue para expandir oseu mercado ou para terceirizar algumas de suas

atividades após ter notado durante uma reporta-

gem que esta gangue controlava o bairro. Uma

manobra destas permite aos traficantes evitar ou

reduzir os gastos gerados pela organização e a for-mação de um novo grupo para uma atividade par-

ticular. Para as próprias gangues a mídia é também

o meio de fazer chegar às outras gangues (ou a

outros adversários eventuais) advertências contra

possíveis invasões de território. É por esta razãoque cada vez que uma gangue é objeto de uma re-

portagem, seus membros se esmeram em dar de si

uma imagem particularmente impressionante. Em

todas as gangues estudadas, os membros são per-

suadidos a se sairem bem, que a sua entrevista lhestrará no mínimo esta vantagem. Eis por exemplo

o testemunho de um jovem membro de uma gan-

gue irlandesa de New York (18 anos): “Quando agente dá entrevista a um jornalista, a gente faz os

caras superdelirantes, a gente tenta ser realmente

durão; porque, desta forma, a gente consegue fa-

zer passar a mensagem para todos aqueles que gos-tariam de vir tentar um golpe no nosso bairro: seos pegarmos, seremos sem piedade, eles sabem que

serão massacrados.”

Finalmente, alguns membros adotam um com-

portamento mais assustador ainda do que os outros

durante as entrevistas na esperança de fazer repu-

tação e de ganhar mais respeito e mais prestígio noseio da própria gangue ou, ainda, para assegurar

melhor a segurança pessoal na rua25: “Quando dei

a entrevista para este jornalista, dei uma de doidão,saca. Disse coisas muito puxadas, mas o que eu ha-

via planejado; porque eu queria ter uma aparênciacompletamente pirada. Se as pessoas acreditarem

que você é louco ninguém vem te encher o saco.

Então eu procuro parecer o mais alucinado possí-

vel quando topo com algum jornalista, porque eu

sei que ele dirá por tudo quanto é lugar para nãome procurarem!” (17 anos, membro de uma gangue

de Los Angeles).

Para maximizar o seu proveito midiático, 9 das37 gangues que eu estudei elaboraram uma estra-

tégia coletiva destinada a influenciar o conteúdo das

reportagens. Mesmo que nem sempre consigam,elas sempre têm mais sucesso do que as que não têm

estratégia deste tipo. E. Man, 21 anos, chefe de gan-

gue em Los Angeles, explica: “Durante anos os jor-

nalistas vieram nos fazer perguntas e tocar os ne-

gócios deles e a gente não lucrava nada com isto.

25 No documentário Our Children: The Next Gene-

ration, um jovem a quem foi perguntado por quê ele pensaque a sua gangue e ele mesmo não serão atacados por ou-

tras gangues responde: “Temos 357 razões para não nos

deixar chatear”, trocadilho sobre o fato de que eles têmarmas calibre 357. No programa de domingo à noite da CBS,

60 minutes, produzido por Dan Rather, um membro de umagangue de Chicago dá um tiro em seu próprio pé para pro-

var a sua virilidade.

As gangues e a imprensa

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196 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

Então decidimos ver se tinha jeito de tirar uma gra-

na deles, mas eles disseram que não. Então decidi-mos fazer passar mensagens úteis, sabe, como ofer-

tas de recrutamento e para dizer às pessoas onde era

o nosso território. Mas foi só quando começamos

a refletir realmente no que a gente queria passar etivemos um plano do que íamos dizer e fazer comos jornalistas que conseguimos obter o que a gente

queria. Mas não posso dizer que tenha funcionado

todas as vezes porque, às vezes, dava certo, e depois

às vezes, o jornalista, ou não sei mais quem, mu-

dava a reportagem e nos enrolava. Mas, assim mes-mo, a gente se saia melhor que estes filhos da p....

(outras gangues) que só diziam o que lhes passava

pela cabeça e que não tinham nenhum plano. E de-

pois, a gente não tinha do que se queixar quandoas coisas não davam sempre certo, porque de qual-quer maneira, a gente ganhava uma propaganda

gratuita em horários de grande audiência! Por en-

quanto, estamos com problemas de organização,

então não é possível pensar numa estratégia midiá-

tica porque temos problemas mais urgentes. Mas

assim que tivermos resolvido tudo isto, voltaremosa pensar nisso.”

Em vista das múltiplas vantagens que a mídia

pode lhes trazer, as gangues desejam que esta últi-ma continue a falar delas. Elas elaboraram, por

esta razão, algumas táticas que procuram estimu-lar ou entreter o interesse da mídia. A primeira

consiste em criticar o que outros jornalistas disse-

ram sobre elas alegando que suas proposições são

inexatas. Na maioria dos casos todavia, elas não

põem em causa o conjunto da reportagem já queisto significaria que elas mesmas mentiram para o

jornalista. Elas só mantêm que a reportagem é só

parcialmente condizente com a verdade, para pas-

sar a certeza de que elas não enganaram o jorna-

lista mas que foi este último que não soube relataras suas palavras. Assim, elas podem iscar outros

jornalistas ou outros canais interessados em voltar

para refazer uma reportagem mais exata. Cada vez

que um novo jornalista se apresenta, a gangue pro-

mete lhe dizer “toda a verdade” para aguçar o seuinteresse. Mas, é claro, na maioria dos casos, a

gangue controla estreitamente o que é dito e o que

o jornalista é autorizado a ver. Assim as ganguesconservam todo o seu mistério e poderão de novo

responsabilizar o repórter pela inexatidão. O tes-

temunho de Sonic, chefe de gangue de New York

de 18 anos, ilustra bem esta situação: “A gente nãopode dizer tudo para eles (os jornalistas). Só pode-mos dizer o suficiente para manter o interesse de-

les, mas guardando muito mais, escondendo o jo-

go. Assim, quando a gente diz que a última repor-

tagem sobre nós contém monte de erros, é verda-

de. Ao fazer isto, a gente se arranja para que hajasempre um outro jornalista que venha nos ver,

porque todo jornalista acredita que ele é que vai

fazer a melhor repotagem sobre as gangues.” De

um ponto de vista de marketing , as gangues pos-suem um grande trunfo sobre os jornalistas pelofato da cultura das ruas se transformar continua-

mente. As gangues, portanto, sempre têm novida-

des para oferecer aos jornalistas; estes poderão en-

tão vender a sua reportagem a seus diretores que,

por sua vez, a venderão para um patrocinador e o

grande público.

Algumas observações para concluir

Hoje como ontem, as gangues são o objeto de

uma intensa atenção por parte da mídia. E entre-

tanto, no fim da análise, o que mais choca na ma-

neira como esta última tratou e trata o fenômeno,

é a sua notável uniformidade. Dois fatores se com-binam para produzir os invariantes observados na

forma e no conteúdo das reportagens sobre as gan-

gues: de um lado, os interesses profissionais e os

interesses comerciais dos diversos agentes do mundo

da mídia, assim como as exigências técnicas quepesam sobre eles; por outro lado, a influência deli-

berada que as próprias gangues exercem sobre es-

tas reportagens para tirar proveito delas. Gangue

e mídia instauraram, portanto, uma com a outra,

uma relação que permite a cada uma manter o seuestatuto no seu mundo social respectivo e na soci-

edade. E elas reforçaram juntas o mito popular das

gangues na cultura americana.

Martín Sánchez-Jankowski

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Revista Brasileira de Educação 197

26 Sobre este tema da mulher de cor que seduz um

homem branco, ver Winthro D. Jordan, White over Black:

American Attitudes towards the Negro, 1550-1812 , Balti-more, Penguin Books, 1969, p.150-151.

Porém, é preciso salientar que este mito é por-

tador de uma imgem muito negativa com as co-notações maléficas e perigosas. De fato, as gangues

são invariavelmente apresentadas como uma amea-

ça física para o cidadão médio respeitador da lei e

também como perigo para a moral e os valores dasociedade toda. É esta imagem, ancorada nos me-dos individuais e coletivos, que estimula e susten-

ta o interesse do público; e esta mesma imagem

que reforça continuamente o lugar e o estatuto das

gangues na cultura e na sociedade urbanas ameri-

canas. Embora a mídia apresente as gangues comomalfazejas e destruidoras, tanto uma como outra

se aproveitam de uma relação que não contribui

em nada, muito pelo contrário, para eliminar o

tipo de delinquência que elas encarnam. As gan-gues tais como aparecem na mídia, constituem ummito inesgotável, que se nutre de estereótipos cul-

turais e de distorções comuns da realidade social.

A mídia oferece uma imagem seletiva e sistemati-

camente deformada da atividade das gangues. Pri-

meiro, ela insiste incessantemente sobre a violên-

cia das gangues e sobre a agressividade dos seusmembros. Mas se é verdade que muitos membros

de gangues se envolvem em incidentes graves, a vi-

olência não é um elemento tão fundamental davida das gangues como a mídia dá a crer. Depois,

as gangues não são um fenômeno que concerne ex-clusivamente comunidades negra e latina, como o

sugere a imagem difundida pela mídia. Embora a

sua presença seja mais marcada nos bairros pobres

de gente de cor, os bairros brancos têm também, e

sempre, produzido muitas gangues. Este artigo fazmenção de gangues irlandesas, mas existem tam-

bém gangues brancas ítalo-americanas e apala-

chianas. Em terceiro lugar, as comunidades pobres

não são mais “desorganizadas” que as outras no

plano social, nem seus membros menos capazes deinstaurar por elas mesmas uma disciplina de vida

individual e coletiva. Finalmente, a imagem da jo-

vem de cor de “vida fácil” agarrando nas suas re-

des homens brancos e íntegros tem uma longa his-

tória no imaginário social americano; esta imagemé muito mais eloqüente a respeito das fantasias se-

xuais e raciais dos brancos do que sobre a realida-

de das gangues26.

O estudo aprofundado das relações entre gan-gues e mídia prova que as gangues são uma “pro-

dução” social em que os jornalistas desempenham

um papel não desprezível e encontram amplamen-te o seu interesse. Relatar casos de gangues, seja nas

novelas, seja em forma de documentário, lhes pro-vê dinheiro seguro, promoção, prestígio e poder no

seio do mundo midiático por causa do gosto que o

grande público tem por este tipo de reportagem. É

por esta razão que os jornalistas só tomam empres-

tado do saber dos “especialistas das gangues” asinformações que se inscrevem no quadro dos temas

que interessam ao grande público, isto é, sexo, dro-

ga, crime e violência, e que são conformes à ima-gem que eles mesmos têm das gangues. Como no

caso das primeiríssimas gangues americanas queforam os bandidos do Far West, o mito popular que

eles contribuem para produzir e perpetuar é apenas

uma imagem deformada e longínqua da realidade.

Paradoxalmente, se a imagem fabricada pela

mídia diaboliza as gangues, também é mérito dela

o fascínio ligado a estes outros personagens dacultura americana que são o cowboy, o desperado

e o tira-gangster . Estes modelos de violênca virilocupam um lugar de honra no panteão folclórico

americano pois possuem, no grau mais elevado, as

qualidades que a cultura nacional venera: um in-dividualismo resoluto, uma independência feroz,

uma força física fora do comum (ou seja, a capa-

cidade de lutar e ganhar) e uma temeridade a toda

prova. O que não signfca que a oposição entre o

bem e o mal não figure na mesa dos valores ame-ricanos, mas antes, que bem e mal são dissociados

das noções de legalidade e de ilegalidade. O único

critério determinante na matéria é a exibição das

qualidades enumeradas acima; quem as possui está

As gangues e a imprensa

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do lado do bem; quem está desprovido delas é de-

finitivamente relegado para o lado do mal. Osamericanos preferem, portanto, a imagem defor-

mada e romanesca que a mídia lhes propõe à pró-

pria realidade prosaica das gangues. Mas os mem-

bros das gangues têm as mesmas aspirações e sãoanimados pelo mesmo desejo de sucesso materiale social que todos os americanos, e neste plano

pelo menos, seu comportamento coletivo não di-

fere de jeito nenhum do de outras organizações de

caráter mercantil. Esta realidade é sem dúvida

muito, demasiadamente, difícil de aceitar pelo pú-blico americano. Mostrar as gangues como elas

são equivaleria a tirar todo o charme associado aos

personagens violentos da mitologia nacional, o

que os tornaria menos divertidos e abaixaria o seuvalor midiático. Isto suporia igualmente fazer comque o país tome consciência da estratificação rígi-

da da sociedade e da pobreza persistente em que

estas organizações encontram a sua fonte. Final-

mente, mais incômodo ainda para o conjunto da

sociedade, reconhecer as gangues pelo que elas são

levaria os dirigentes do país a procurar para o pre-tenso “problema das gangues” uma solução eco-

nômica em vez de se embrenhar em políticas pe-

nais que só fazem agravá-lo.

Martín Sánchez-Jankowski

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Revista Brasileira de Educação 199

Como em outros estados brasileiros, as agre-

miações juvenis (res)surgem no Rio de Janeiro no

final da década de 70, assumindo grande vulto nos

anos 80 — a partir de sua segunda metade —, e nos

anos 90. De fato, a questão das agremiações juve-nis, em sua multiplicidade, com seus diferentes sím-bolos e estilos, seus modos de ser singulares, moti-

vações e modos de representação distintos pode ser

pensada como uma das marcas da atualidade.

Essa marca, que se estrutura e se define nesse

século, com a constituição de uma cultura jovem,

tece-se nos diferentes espaços sociais dos quais osjovens participam — a rua, onde se constitui uma

cultura voltada para os diferentes modos de utili-

zação do tempo livre, a casa, a escola, assim comoas áreas de lazer — e nas redes de relações que aí

são estabelecidas. São elementos que se combinamde diferentes maneiras produzindo estilos e modos

de ser singulares e distintos entre os vários univer-

sos juvenis. É na tensão entre esses elementos, e

entre eles e os contextos em que vivem os jovens,

que podem ser buscadas as linhas de formação e deconstituição dos subgrupos juvenis.

Juventude(s) e periferia(s) urbanas

Eloisa Guimarães 

Universidade Federal do Rio de JaneiroInstituto de Estudos da Cultura e Educação Continuada

Esse artigo tem como propósito analisar uma

dessas agremiações, as galeras, grupos formados nos

subúrbios cariocas — embora não fiquem restritos

a essas áreas —, em processo de expansão. Relacio-

nam-se ao mundo funk sem que os dois universosse confundam. São movimentos distintos, cada umcom suas próprias características, cruzando-se em

alguns aspectos e diferenciando-se em outros. O

principal ponto desse cruzamento pode ser locali-

zado no gosto pela música e pelos bailes funk.

A expressão galeras designa, fundamentalmen-

te, no Rio de Janeiro, grupos de jovens da perife-ria1 da cidade, com relativa organização interna,

que se estruturam em torno de suas áreas de resi-

dência — o bairro, o morro ou favela ou, ainda, arua — e das quais incorporam os nomes. Desenvol-

1 Uso o termo “periferia” para designar áreas da pe-

riferia geográfica da cidade, mas também aquelas áreas que,em função da geografia da cidade, e das formas de ocupação

do espaço, poderiam ser denominadas de “periferia social”,

com referência às populações pobres que habitam favelasconstruídas em morros encravados em bairros centrais.

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200 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

vem, com base nesse parâmetro de organização, que

representa, ao mesmo tempo, uma dimensão geo-gráfica e outra social, intensa rivalidade entre si —

de onde os conflitos e os embates públicos pelos

quais se tornaram conhecidas. A expressão galeras

se torna familiar sobretudo a partir da década de90, imprimindo suas características, a partir de en-tão, à juventude das periferias. Contudo, recente-

mente, vêm-se registrando, de forma crescente, a

existência de galeras de classe média. Não se conhe-

ce o número dessas  galeras, nas áreas centrais da

metrópole ou na periferia, entre as populações demelhor poder aquisitivo ou entre as de menor ren-

da. Entre as últimas, entretanto — jovens de áreas

periféricas e de baixo poder aquisitivo —, sabe-se

que é um movimento largamente disseminado.É necessário destacar dois princípios que fa-

zem parte da constituição dos movimentos juvenisatuais e que estão fortemente presentes entre as ga-

leras (e entre os funk), sejam elas de classe média

ou de periferia: sua intensa fagmentação e forte he-

terogeneidade. Não há unidade, menos ainda, ho-

mogeneidade, entre esses grupos como não há em

seu interior.

A extrema heterogeneidade referida se revela

inter e intra grupos juvenis e está fortemente pre-sente entre as galeras. Embora se estruturem tendo

como referência princípios comuns, esses grupos se

diferenciam em relação a vários aspectos. Entre es-

ses vale, de início, destacar que há galeras “guer-reiras” e galeras pacíficas e pacifistas; galeras asso-

ciadas às quadrilhas de traficantes e outras que bus-

cam delas se distanciar; galeras masculinas, galeras

femininas e galeras mistas. Há, inclusive — embo-

ra seja raro — galeras chefiadas por mulheres.

As galeras são, ainda, grupos fortemente frag-mentados e intensamente segregados, característica

que se manifesta, ao mesmo tempo, no interior das

agremiações pertencentes às camadas médias e da-

quelas de periferia. Em ambas, a referência para essa

segmentação é a mesma, e está representada, inici-almente, pelo critério geográfico em torno do qual

os diferentes grupos se configuram e a partir do qual

se constróem, inicialmente, suas identidades: são as

divisões por áreas de moradia que podem estar re-

presentadas pelo bairro, pelo morro ou favela emque se vive, ou, ainda, pelas ruas de residência.

Processo de segmentação semelhante, embo-

ra operado a partir de outros critérios, pode ser

verificado entre diferentes grupos urbanos: as tor-cidas organizadas, freqüentadores de academias ri-

vais, entre outros.

Elaborados e reelaborados por cada subgrupo,a partir dos contextos sócio-culturais em que estão

inseridos e de suas motivações e condições de vida,

os padrões de organização hoje adotados pelas ga-

leras não são, entretanto, novos. Tais grupos são

herdeiros de certas tradições organizativas desen-volvidas por outras agremiações juvenis.

Refiro-me, por um lado, às “gangs” de ruanorte-americanas, nas quais as galeras de periferia

buscam inspiração, e que têm uma tradição orga-

nizativa que remonta ao início do século, a qual as

galeras cariocas buscam ainda desenvolver. Por ou-tro lado, às turmas de jovens de classe média exis-

tentes no Rio nas décadas de 50 e 60, entre as quais

já estavam desenvolvidas algumas das principais

características das atuais galeras: a constituição por

bairros (ou ruas) e a rivalidade exacerbada entre

turmas de bairros (ou ruas) diferentes lembram,hoje, não só as galeras dos subúrbios, mas as de

classe média.

Embora a rua fosse, naquela época, o espaço

de socialização por excelência dos jovens do sexo

masculino e representasse muito menos perigo, os

conflitos já podiam ser sentidos entre aqueles jovens(brigas entre turmas rivais, nos clubes, nas ruas, nas

saídas das escolas). A violência que atingia o núcleo

metropolitano parecia vir, então, da classe média.

Ou, pelo menos, era nesse nível que ela se coloca-

va como objeto de percepção e de registro.

A questão da delinquência juvenil já era, tam-bém, objeto de percepção e de registro entre as cama-

das médias. Referindo-se à curra da jovem Aída Curi,

seguida de assassinato, Ventura (1995) nota que

Eles inauguraram um modelo de agressividade,

cruel e gratuita, que não encontrava equivalente na

Eloisa Guimarães

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Revista Brasileira de Educação 201

violência praticada pelos malandros de morro de en-

tão. Essa geração do asfalto, que se diverte com brin-

cadeiras como atear fogo em mendigos, antecipou uma

vertente moderna da violência urbana.

Grupos de jovens — ingleses, franceses, ame-ricanos, alemães e outros —, desenvolvem, nesse

século, histórias e modos de organização similares.

A originalidade dos grupos atuais está, pois, na

imensa capacidade que têm, de criar e recriar tal

herança em torno das atuais condições sociais e dasnovas práticas culturais — centradas no lazer e nas

novas culturas musicais —, de construção e recons-

trução de sua prórpria história e da utilização dos

recursos hoje disponíveis.

Galeras (e) Funk

A grande clivagem entre os jovens cariocas,

entretanto, anterior às várias possibilidades de frag-mentação que teria sido possível enumerar acima,

se faz entre a geração do asfalto, de um lado, e a

juventude dos morros e da periferia da cidade, do

outro. É desse último segmento que trata esse arti-

go, ou seja, das galeras residentes nas periferia ou

em morros localizados em áreas centrais, mas ha-bitados pelas populações pobres e, é bom registrar,

em grande medida ocupados por quadrilhas ligadas

ao tráfico de drogas. O termo galeras será utiliza-

do, a partir desse momento, para designar tais gru-

pos da periferia.

As galerasganharam grande visibilidade a par-tir de 1992 com os “arrastões” ocorridos nas praias

da Zona Sul, e amplamente divulgados pela mídia,

levando a um processo de estigmatização crescen-

te desse segmento juvenil — a quem foi debitada a

conta pelos “arrastões”. Contudo, uma idéia quevem se tornando dominante é a de que os famosos

“arrastões” não passaram de conflitos entre gale-

ras rivais, que tendem a se reproduzir nos espaços

públicos, como cheguei a afirmar em trabalho an-

terior (cf. Guimarães, 1995).

Nesse mesmo processo estigmatizante, junta-mente com as galeras, foi incluída uma outra cate-

goria de jovens — os funkeiros — que, mesmo ten-

do várias conexões com as galeras, não podem a elasser reduzidos. Embora muito relacionados, galeras

e funkeiros se distinguem, pela própria natureza de

seus movimentos: o funk é um fenômeno musical

de massa, fortemente centrado na diversão. Enquan-to estilo musical e pela frequência2 aos bailes funké hoje o fenômeno mais generalizado entre os jo-

vens da periferia, extrapolando necessariamente o

contingente que se organiza em galeras. É bom men-

cionar que parte da confusão gerada em torno desta

questão resulta do fato de que as galeras são funk,sendo comumente denominadas de galeras funk.

A idéia do “arrastão”, graças em boa parte à

concorrência da mídia, contribuiu ainda para que

as galeras e funkeiros passassem a aparecer semprerelacionados à temática da violência e, de modo

particular, às quadrilhas de traficantes de drogas.Para isso, contribuiu, ainda, a ampla difusão dada,

a partir de então, às notícias de crimes ligados aos

bailes funk, a eles imprimindo a imagem de bailes

violentos (esse aspecto será tratado no último item

desse artigo).

Os bailes funk e, em consequência, a popula-

ção que os frequenta passaram a ser maciçamente

criminalizados, de forma sistemática e recorrente,em discursos e ações públicas e no discurso cotidi-

ano das populações, resultando em projetos e, mui-

tas vezes, em exigências de intensificação de proces-

sos repressivos. A violência da cidade passou a ser,em grande medida, identificada às galeras, ao funk

e ao funkeiros, ao mesmo tempo que ambos têm

sido por ela responsabilizados, condição que se ge-

neraliza aos frequentadores dos bailes.

São em número muito restrito os estudos que

buscam analisar de forma sistemática os fenômenosfunk(eiros) e galeras no Rio de Janeiro, lugar onde

aparecem, por sua expressividade numérica, como

2 Segundo estimativas feitas em 1994 os bailes funk

que se realizavam a cada final de semana em vários clubesda cidade, já congregavam, ná época, mais de um milhão e

meio de jovens.

 Juventude(s) e periferia(s) urbanas

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202 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

a(s) maior(es) manifestação(ões) de massa entre jo-

vens da periferia. Em menor número, ainda, estãoos estudos empíricos de base acadêmica sobre o

tema. Por isso, apresenta-se como problemática a

questão da relação (e, portanto, das diferenças) en-

tre galeras e mundo funk na cidade.Por parte da imprensa há um movimento de

geração, na opinião pública, de uma imagem ma-ciça e homogeneizadora, que identifica o movi-

mento musical (funk),  galeras , tráfico e “arras-

tões” como elementos articuladores de um mesmo

e único fenômeno: a violência. Essa questão foi

profusamente tratada pela imprensa televisiva epela imprensa escrita entre 1992 e 1993, manten-

do-se, com menor ênfase até os dias atuais. Embo-

ra no corpo das matérias essa identidade por ve-zes se dilua, as manchetes jornalísticas, que têm

maior impacto sobre a opnião pública, insistem emchamadas como:

“Funk carioca mistura música e violência” (O

Estado de São Paulo, 26/10/92).

“Arrastão: o mais novo pesadelo carioca nasce

nos bailes ‘funk’” (O Globo, 23/02/92).

“DJ’: traficantes pagam bailes ‘funk’” (O Glo-

bo, 20/06/95).“Funks voltam aos bailes e às brigas” (O Dia,

15/02/93).

Em estudos mais sistemáticos, que buscam te-

matizar a questão dos movimentos juvenis em sua

conexão com os movimentos urbanos relacionados

à violência, esse aspecto também nem sempre é cla-

ramente estabelecido. Em uma dessas análises Ven-tura (1995), em trabalho jornalístico desenvolvido

a partir da convivência com populações de áreas

periféricas, aborda o aspecto da violência relacio-

nada a esses grupos — que se manifesta sobretudo

nos bailes — sem, no entanto, estabelecer diferen-ças entre eles, de forma clara. Pode-se encontrar,

contudo, diferentes inflexões em sua narrativa onde

transparecem certas distinções: quando suas análi-

ses se relacionam ao funk a associação é com o fe-

nômeno musical e com as festas (os bailes), enquan-to as referências à violência, no contexto do mun-

do funk são sempre pontuadas pela menção às ga-

leras (Ventura, 1995, cap. 9).

Em Vianna (1996), estudioso do fenômenofunk desde os anos 80, a quem se deve uma com-

petente etnografia sobre esses bailes, se encontra a

distinção mais enfática, ao negar a idéia da músicae bailes funk como essencialmente violentos. Rea-

firma, como já fizera em trabalhos anteriores, seucaráter de festa e de diversão. O problema da dis-

criminação do funk (e dos bailes) se relacionaria,

segundo o Vianna, a outros processos que existiram

na história da cidade, caracterizados pela recusa a

prática culturais desenvolvidas e/ou adotadas pelaspopulações do subúrbio. Assim, o samba e a capo-

eira, inicialmente discriminadas e condenados fo-

ram, posteriormente, através de diferentes media-ções, aceitos e incorporadas à vida urbana.

Outro estudo que tem importância para a ques-

tão levantada é o de Herschmann (1994-95), pou-co voltado para os subgrupos galeras e funkeiros,

que aborda o problema do ponto de vista da cul-

tura hip-hop3 (ou culturas das ruas, em seus pró-

prios termos) e suas relações com a cultura da vio-

lência que toma corpo nos últimos anos no meio

urbano. As referências para o autor são, então, as

práticas culturais e os estilos musicais que mobili-zam parcela expressiva dos jovens atuais, aí incluí-

dos o funk, o rap, as  galeras funk, entre outros.

Assim, Herschmann introduz uma outra perspec-

tiva que não está presente nas colocações anterio-res e que possivelmente representa o ponto de in-

terseção entre os diferentes universos juvenis atual-

mente presentes na cena urbana.

3 O autor define a cultura hip-hop como “conjunto

de manifestações culturais (abrange o rap, o funk, o breakgraffiti, b-boy) bastante comum nos guetos negros norte-

americanos e que vêm sendo apropriada de modo geral pela

camada menos favorecida da população que habita basica-mente as periferias das grandes cidades brasileiras” (Hersch-

mann, 1994-95: nota 2 à pagina 90). Sobre as diferençasentre a cultura hip-hop e sua apropriação pelos grupos bra-

sileiros (cariocas e paulistas) ver Vianna, 1990.

Eloisa Guimarães

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Revista Brasileira de Educação 203

O autor aborda a questão da violência buscan-

do tematizá-la e explicá-la no contexto das práti-cas culturais referidas. Sua interpretação é a de que

tais práticas instituem-se como reação a uma socie-

dade tradicionalmente autoritária e excludente e

como forma de se contrapor a representações e mo-delos, de certa eficácia no passado, que preconiza-vam a harmonia entre raças e classes sociais. É no

esgotamento dessas representações e modelos, e co-

mo reação ao caráter excludente e autoritário da

sociedade que pode ser entendida a mobilização de

diferentes segmentos juvenis, entre eles o que é ob-jeto desse artigo.

Assim, enfatizando a existência de diferentes

segmentos juvenis, como estratégias distintas de in-

tervenção no social4 o autor adverte que:

(...) numa sociedade ainda muito marcada pelo

autoritarismo e pela exclusão social, o discurso e o

comportamento funk/rap, em certo sentido, são a res-

posta de um segmento social que já não acredita mais

na conciliação, na concretização de uma harmonia

social. Ao contrário, esses grupos tentam também im-

primir, em certo sentido, à cultura hip-hop um tom

segregador. (...) (Herschmann, 1994-95, 93).

A cultura guerreira das galeras

Não há como negar a existência de forte po-

tencial de conflito no interior de alguns desses gru-

pos — as galeras incluem-se entre eles. A questão

consiste em buscar compreender seu significado, em

que condições ele se atualiza (ou não) e em relaçãoa que segmentos juvenis.

A configuração das galeras do cruzamento da

vida e de uma história forjada nas ruas, fortemen-

te marcada pela divisão espacial (e social) da cida-

de com uma cultura marcadamente guerreira. Es-

sas duas dimensões são faces de um mesmo proces-so. A constituição e a auto-representação das gale-

ras em torno e a partir de um território determina-

do acionam certos processos de pertencimento e deexclusão característicos. A segmentação do espaço

em áreas delimitadas e controladas define normas,

regras e comportamentos exigidos do que a elas se

vinculam e por elas circulam, ao mesmo tempo queas interdita aos de fora, os “alemães”, caracterizan-do como inimigo o outro. Definem-se por oposição

umas às outras disputando, sistematicamente, a he-

gemonia das áreas onde se encontram. As brigas5

aparecem, então, simplesmente como resultado do

encontro entre alguns desses grupos.

A demarcação territorial é, assim prática fun-damental de estruturação das galeras, definindo, ao

mesmo tempo, uma forma de organização e de per-

tencimento ao grupo, uma área de atuação e de con-trole por seus membros, a quem cabe defendê-lo e

no interior do qual elaboram seu estilo e suas re-gras de funcionamento definindo, também, frontei-

ras demarcatórias com outros grupos. Todas têm

um código particular que inclui não só uma lingua-

gem própria e diferenciada, mas regras sociais de

relacionamento e de hierarquia que não podem ser

violadas. É essa a origem da extrema rivalidade quese observa entre as diferentes galeras e motivo dos

embates permanentes entre elas.As rixas entre as galeras representam algo mais,

ocupando lugar central em sua existência e na ló-

gica de sua organização. Muitas se estruturam ape-

nas para brigar. Outras brigam apenas quando pro-vocadas. Entre os depoimentos ouvidos em uma

pesquisa empírica realizada eram frequentes depoi-

mentos do tipo: “é briga, briga de galera, galera!

Galera é assim: cada morro, gangue de cada mor-

ro, o morro X, galera do Morro X” (Guimarães,1995, 64).

Apesar dessa caracterização generalizante, que

parece contituir a marca por excelência desse tipo

de organização juvenil, tem surgido entre as galeras

4 Sobre essa questão dos modos de intervenção dos

grupos juvenis no social ver Abramo (1994)

5 É esse o termo utilizado por pessoas relacionadas às

galeras para traduzir os conflitos e os confrontos físicos entre

eles, inclusive aqueles que resultam em morte.

 Juventude(s) e periferia(s) urbanas

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204 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

cariocas aquelas que se recusam às brigas, pautan-

do-se por comportamentos pacifistas e buscandodesenvolver ações de pacificação dos outros grupos.

Não constituem-se ainda, contudo, em um segmen-

to dominante.

A rua, espaço fundamental para a constituiçãoe existência das galeras é, tradicionalmente, parte

do universo masculino e lugar, por excelência, daelaboração de seus padrões de virilidade. As de-

monstrações de coragem e de força física ainda re-

presentam modos tradicionais de afirmação desses

grupos, sobretudo entre as camadas populares. Em-

bora venham sendo relativizados os espaços, os mo-dos e estilos de vida masculinos e femininos, sobre-

tudo entre jovens, não se pode dizer que essa dis-

tinção tenha desaparecido completamente.No caso brasileiro, essa questão relaciona-se

ao próprio modo de ser da sociedade, característi-

ca que ganha maior relevo entre os meios pobres dasociedade. Assim, segundo a análise de Da Matta

sobre o significado da “casa” e da “rua” como ca-

tegorias sociológicas fundamentais para a compre-

ensão da sociedade brasileira, cada um com sua

lógica particular. Relacionando-se dinamicamente,

essas duas categorias expressariam formas de orga-

nização do mundo social brasileiro: o mundo da ruacomo espaço do legal e do jurídico — universo, no

Brasil, marcadamente masculino —, mas também

— e é sob esse aspecto que as considerações desse

autor interessam aqui — como lugar da luta (...) edo perigo (cf. Da Matta, 1991, 13-70).

Autores, sobretudo os norte-americanos e os

ingleses, que analisam grupos formados em países,

destacam a importância das lutas e dos combates

como princípio fundamental para aprópria contitui-

ção e estruturação das “gangs” de rua, uma vez quea consciência de pertencimento a ela tende a cerscer

com os combates, ao mesmo tempo que aumenta

seu potencial para as lutas. É também instrumento

de elaboração da identidade do grupo. A consciên-

cia de pertencimento e a lealdade ao grupo seriamincrementados através dos combates travados. É

necessário, entretanto, levar em consideração que,

embora as galeras cariocas busquem inpirar-se nas

“gangs”de rua norte-americanas, estão longe de

atingir o nível de organização e estruturação daque-las. De fato, a existência de “gangs” de rua, em

escala expressiva, é registrada em algumas áreas dos

Estados Unidos desde os anos 20. No Rio de Janeiro

o processo de estruturação de tais grupos é aindaemergente com relativa, mais ainda precária, orga-nização interna.

Galeras, espaços de sociabilidadee circuito da violência

Uma das frases mais ouvidas quando se trata

do assunto galeras é a de que “quando duas gale-

ras rivais se encontram, o embate é certo”. Como

deve ter ficado claro no intem anterior, a ocorrên-cia de briga entre as galeras é parte da própria cons-tituição desses grupos (às vezes, trata-se de mera

dramatização da briga) assim como representa uma

forma de desenvolver e colocar em ação seus pró-

prios projetos. Resultam, em parte, das disputas e

dos deslocamentos de grupos nos quais hoje se or-

ganiza parcela dos jovens para resolver suas pen-dências fora dos espaços residenciais, onde seus mo-

dos de ação, por imposição do tráfico, são muitas

vezes proibidos; resultam, ainda, de movimentosdos mesmos jovens que buscam novas formas de se

relacionarem — e de se afirmarem — com as po-pulações e as instituições.

Em qualquer das hipóteses consideradas, es-

ses conflitos estão relacionados aos padrões de so-

ciabilidade que vêm se desenvolvendo no meio ur-

bano. De modo mais específico, a ocorrência dos

embates pode ter várias interpretações. Tentareidestacar algumas mais comuns e frequentes, sem ter

a pretensão de dar conta da explicação de todas elas

no espaço desse artigo.

As brigas aparentam ser, muitas vezes, gratui-

tas, ocorrendo como parte dos rituais das galeras.

Essa foi uma das interpretações dadas aos modosde ação e de estarem presentes das galeras em uma

escola (de subúrbio) pesquisada entre 1991-1992.

Durante longos períodos a escola se encontrava per-

manentemente cercada por grupos externos, alheios

Eloisa Guimarães

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Revista Brasileira de Educação 205

à vida escolar. A ação das galeras ocorria sob a for-

ma de ações dramatizadas, através das quais essesgrupos criavam e mantinham um clima permanen-

te de confronto com a instituição. Operavam de

forma a demonstrarem aos quadros escolares a pos-

sibilidade de invasão iminente. Algumas vezes, apóslongos períodos em que a ação se dava apenas deforma dramtizada, tentativas de invasão eram, de

fato, tentadas6. Processos semelhantes podem ser

vistos em outras situações (uma delas, os bailes, de

que falaremos adiante).

Uma segunda interpretação diz respeito à briga

como movimento de cobrança e de punição de mem-bros das próprias galeras, que tenham ferido algu-

ma das regras internamente estabelecidas. Essas re-

gras variam de galera para galera. Entretanto, umavez estabelecidas, devem ser rigorosamente cumpri-

das. Sua violação provoca a intervenção do grupo,dando origem a punições rigorosas que podem che-

gar à morte. Essa é uma das situações em que gru-

pos de jovens podem ser utilizados pelo tráfico, quan-

do são acionados para buscar e punir pessoas (jo-

vens ou não) que estejam devendo7 às quadrilhas.

A situação aqui tratada indica, também, uma dascircunstâncias de assédio das escolas por esses gru-

pos — e, muitas das vezes, de invasão do espaçoescolar —, quando a instituição se apresenta como

lugar em que, seguramente, algumas das pessoas

buscadas podem ser encontradas.

Um terceiro motivo desencadeador dos confli-tos aponta para o desdobramento de brigas ante-

riores. O confronto entre galeras, uma vez inicia-

do, não fica sem conclusão. Se interrompido, sofrerá

deslocamentos, até que seja satisfatoriamente resol-

vido, segundo os termos desses grupos. Essa é ou-tra circunstância explicativa de cercos às escolas

pelas galeras, quando o objetivo dos grupos pode

ser — e o é muitas vezes — o de concluir a briga

começada em bailes e interrompida pelos seguran-ças. Representa, nesses casos, um dos pontos incluí-dos nos múltiplos deslocamentos desses grupos para

fazer cumprir seus projetos e forjar sua própria tra-

dição enquanto grupo.

Finalmente, um último elemento que seria in-

teressante lembrar tem relação com o mundo do

tráfico e suas articulações com parcela dos gruposque se organizam como galeras. Em certos casos,

os embates podem estar relacionados a ações orde-

nadas e/ou coordenadas pelas quadrilhas de trafi-cantes, a quem certas galeras servem como sistema

de apoio, ou ainda, podem derivar da presunção decertos grupos de partilharem, por estarem a eles

ligados, do mesmo “poder” dos traficantes.

A questão dos bailes, maior diversão dos jo-

vens da periferia da cidade e, por consequência,

espaço privilegiado de aglutinação dessa juventu-

de8, é elucidativa de alguns dos processos descritos

acima. Sua abordagem pode ter como ponto de par-

tida o enfoque que consta no trabalho de Ventura(1995), elaborado a partir das posições de dois es-

pecialistas que, a partir da vivência dos bailes da

frequência mais ou menos sistemáticas a alguns de-

les, desenvolveram certas formas de pensar a par-ticipação das galeras nos bailes, aí incluindo a

dimensão da violência.

Manoel divide os bailes em três categoria. Na

primeira, não acontece nenhum tipo de violência (...).

Nos bailes do segundo tipo, as galeras inimigas vão

para provocar brigas esporádicas, que são violenta-

mente reprimidas pelos seguranças.

A categoria mais interessante é a terceira, dos

6 Para uma descrição mais completa ver Guimarães,

1995, caps. 1 e 2 e Guimarães, 1997.

7 O termo dever é amplamente utilizado entre popu-

lações que vivem no interior ou nas proximidades de áreasocupadas pelo tráfico de drogas. Pode ter um significado

literal, indicativo de que alguém deve dinheiro às quadrilhas

por ter apanhado a droga em consignação ou para uso pró-prio não tendo liquidado a dívida, ou ter o indicar grupos

ou pessoas que tenham violado as regras estabelecidas.

8 Matérias de jornais vêm, recorrentemente, mostran-

do e enfatizando a adesão de grupos de classe média aos

bailes funk.

 Juventude(s) e periferia(s) urbanas

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206 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

bailes que Manoel chama de embate, um confronto

ritualizado de galeras, (...) Os dois acreditam, e já estão

trabalhando para isso, que a violência que aí ocorre

pode ser regulamentada (Ventura, 1995, 121).

Estudantes ouvidos em 1992, em pesquisa decampo realizada na Zona Oeste, apresentavam uma

versão mais dura das brigas nos bailes. Há alguns

fatores importantes que contribuem para elucidar

esse maior rigor na posição dos escolares, relacio-

nados à heterogeneidade dos grupos juvenis. Umdeles, referente à área em que a pesquisa se desen-

volveu, fortemente marcada pela presença do trá-

fico de drogas mas ainda em processo de ocupação

e que, por isso mesmo, exige um processo de recru-

tamento mais intenso — e mais ativo — entre jo-vens. O segundo diz respeito ao fato de que as ga-

leras, naquela área, segundo diferentes depoimen-

tos ouvidos, estão vinculadas ao tráfico de drogas.

Há um terceiro fator relacionado à inserção social

e às espectativas de parte dos escolares ouvidos.

Esse último grupo referido, em sua maior par-

te, divide, compulsoriamente, a área de moradiacom as quadrilhas de traficantes, buscava distanci-

ar-se e criar, onde e quando fosse possível, barrei-

ras não só físicas — evitando os lugares freqüenta-dos por “bandidinhos” e pelas galeras —, mas sim-

bólicas. Pode-se supor que, por esse motivo, fossemmais radicais ao enfatizar as diferenças.

Do ponto de vista dos alunos entrevistados, a

violência que aparece nos bailes é, sem dúvida, uma

violência grupal, ainda quando os grupos são aci-

onados para assumir a defesa de um de seus mem-

bros. Ouvi com alguma frequência, de funkeiros, aexplicação de que o problema da briga diz respei-

to aos bailes nos salões, fora das áreas controladas

pelo tráfico. No interior destas áreas, nos bailes

realizados nas quadras ou em outros espaços, ele

não se apresentaria. Funkeiros e não-funkeiros têmconsciência de que não podem “armar confusão”

no pedaço.

Segundo os entrevistados, as brigas nos bailes

assumem diferentes formas e ocorrem por motivos

distintos. Três fatores foram por eles destacados. A

música e o modo de dançar (os trenzinhos e os mo-

mentos de maior pique dos bailes, quando todospulam a um só tempo) são apontados com muita

frequência como um desses fatores. Aí qualquer es-

barrão ou uma pisada no pé pode gerar o início de

uma briga (sobre as danças desenvolvidas nos bai-les funk, ver Vianna, 1988, cap. 4). Exemplo de umadessas situações pode ser encontrado em Ventura,

na descrição do baile realizado para celebração da

paz entre Vigário Geral9 e Parada de Lucas, no mo-

mento em que algumas galeras começam a dançar,

o que o autor denomina uma “brincadeira infer-nal”: os trenzinhos. O risco de que a situação se

resvalasse para o tumulto foi percebido por várias

pessoas. O autor declara ter ouvido de um dos che-

fes do tráfico presentes, em conversa com outro, afrase: “se tiver briga, a gente num vamos poder pa-rar. Tu segura o teu pessoal que eu seguro o meu”

(Ventura, 1994, 221).

A fala do traficante se referia à ameaça de briga

entre duas galeras, processo que, de acordo com os

alunos entrevistados, é o responsável pelo maior

número de brigas, sendo também a situação em que

elas ocorrem com maior violência. Eram, por isso,as mais temidas pelos jovens funkeiros entrevista-

dos. A briga entre elas ocorre, regra geral, pelo sim-ples encontro entre galeras rivais. O estarem fren-

te a frente, um esbarrão em algum elemento da ou-

tra galera e os gritos de guerra são os sinais para oinício dos conflitos: “é briga, briga de galera, por-

que tem que provocar outra galera”.

De acordo com seus depoimentos, as galeras

vão aos bailes apenas para brigar, o que constitui-

ria o segundo daqueles fatores. Algumas delas já

descem os morros armadas de paus, correntes, pe-dras. Impedidos de levá-los para dentro dos clubes

pelos seguranças que procedem a rigorosas revistas

na entrada, esses instrumentos permanecem escon-

didos fora e são recuperados na saída, quando os

9 Vigário Geral e Parada de Lucas são dois bairrostradicionalmente rivais no Rio de Janeiro.

Eloisa Guimarães

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Revista Brasileira de Educação 207

conflitos se radicalizam. Apesar de não serem per-

mitidas nos clubes, as brigas começam lá dentro, atéque sejam interrompidas pelos seguranças que ex-

pulsam os envolvidos; seus desdobramentos trans-

ferem-se, então, para a saída do baile, quando são

freqüentes os couros, os tiros e as mortes. Se nãosão resolvidas nesse espaço, na medida que é co-mum, também aí, a atuação dos seguranças ou a

fuga dos grupos que se encontram em desvantagem,

numérica ou instrumental, as brigas se transferem

para outros espaços: é então que chegam às esco-

las, ponto de encontro certo de alguns dos envol-vidos, como foi mencionado acima.

Nesses casos, não se procuram motivos para

explicar a origem do conflito. A briga representa a

forma de curtir dos grupos e para isso vão aos bai-les. Namorar faz parte de suas vidas, e a maioria

tem namorada que é abandonada nos bailes em fa-vor das brigas, mesmo nos momentos em que são

tocadas músicas lentas. Como explica uma das

“funkeiras” entrevistadas:

“até a hora da música lenta, mesmo, alguns nem

ligam pras namoradas, até na hora da música lenta eles

tão querendo saber só de brigar, e vão dar um beijo

na namorada, ficam namorando um pouquinho e jávoltam, e voltam correndo para ir brigar de novo, para

não perder nem um segundo na briga”.

Esse processo é desenvolvido por vários gru-

pos de jovens, do passado e do presente, nacionaise internacionais: são parte da estrutura e da histó-

ria desses segmentos. É também valorizado como

fonte de emoção e excitação, elementos que são apre-

sentados por vários autores como inerentes à ado-

lescência e à juventude, da mesma forma que o de-sejo de aventura.

Finalmente, um terceiro fator desencadeador

de briga nos bailes deve ser localizado no compor-

tamento de certas garotas — namoradas de mem-

bros das galeras ou de jovens pertencentes ao mun-

do do tráfico, os “bandidinhos”. Elas “ pensam que podem tudo” ou elas “ gostam de arrumar confu-

são” são as frases empregadas pelos estudantes ao

se referirem a essas grarotas e às confusões por elas

provocadas nos bailes que, muitas vezes, resultam

em brigas; em outras, não. Essas provocações po-dem derivar de um olhar que se dê na direção de-

las, de um esbarrão ou acontecer de modo totalmen-

te gratuito. De acordo com os depoimentos, têm

como objetivo envolver o namorado em sua defesa,mostrando que “ por ser namorada de bandido, ela pode tudo, ela tem poder”. Em situações como es-

sas, a briga pode ou não ocorrer, dependendo da

adesão dos bandidos. Como esclarecem os frequen-

tadores do funk, em muitos casos eles contribuem

para evitar as confusões, quando reconhecem emquem é provocado um elemento de sua própria área

ou alguma amiga de infância que, independente das

regras do “pedaço”, eles buscam proteger.

Esses processos merecem estudos mais apro-fundados que, ao mesmo tempo, permitam carac-

terizações mais abrangentes, que deêm conta daatual situação da juventude nos centros urbanos.

Esta parece ser uma responsabilidade que diz res-

peito, hoje, a educadores e professores em geral.

Afinal, são esses jovens, em grande parte, os alunos

de nossas escolas, mais do que os escolares ideali-

zados por mirabolantes propostas curriculares.

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187.

Eloisa Guimarães

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Revista Brasileira de Educação 209

Em O Visconde Partido ao Meio, romance es-

crito por Italo Calvino, um dos personagens assim

descreve o fenômeno da juventude:

(...) Meu tio [o próprio Visconde] se achava naprimeira juventude: a idade em que os sentimentos se

misturam todos num ímpeto confuso, ainda não se-

parados em bem e mal; a idade em que cada experiên-

cia nova, também macabra e desumana, é toda trepi-

dante e efervescente de amor e vida (...) (Italo Calvino,

O Visconde Partido Ao Meio).

Polaridade levada ao extremo num desencon-tro fatal entre o bem e o mal, amor e ódio, compa-

Short cuts 

Histórias de jovens, futebol e condutas de risco*

Luiz Henrique de Toledo Núcleo de Antropologia Urbana, Universidade de São Paulo

decimento e intolerância, prazer e violência, mate-

rializada, de modo surreal, na errância das duas

metades da personagem do Visconde, cindida por

uma bala de canhão nas porções esquerda e direita

de seu corpo, esta fantástica história narrada porCalvino evoca, nas palavras do autor, um dilemado próprio homem contemporâneo, fragmentado e

alienado em suas experiências sociais.

A desfiguração corpórea e psíquica do aludi-

do Visconde se deveu a uma encarniçada guerra,

acirramento das conviccões em justas religiosas,

entre cristãos e turcos, descritas pelo autor, numprovável século XVII. Ao enfrentar o inimigo e no

calor do combate físico, num golpe certeiro, ocor-

reu o esgarçamento e dilaceração do corpo do pro-tagonista da história, vitimado pelos desígnios da

determinação, paixão e fé.

Assim, das metades esquerda e direita da per-sonagem, vagando a esmo pelas pradarias e cam-

pos, irrompem o bem e o mal, anteriormente alo-

cados num mesmo corpo cristão, que passam a go-

zar de uma autonomia, ainda que temporária, im-

posta pelas circunstâncias de ruptura social provo-

* O termo conduta de risco, utilizado por Peralva(1996), indica uma específica modalidade de transgressão

e violência verificadas entre setores juvenis da população,como será mencionado mais adiante. A propósito, aproveito

a oportunidade para agradecer ao antropólogo Piero de Ca-

margo Leirner pela leitura que fez da primeira versão desteartigo, bem como à socióloga Angelina Peralva pelas críti-

cas e sugestões.

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210 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

cada pela referida guerra. O bem e o mal, e outras

dicotomias correlatas, agora em estado puro , cadaqual corporificada em uma das metades do infeliz

rompante, ocupam-se, por onde passam, em instilar

a desordem, a desconfiança, a repugnância, a inveja

e a insegurança. Violados e privados da sua relaçãodialética, acabam por instaurar o caos na cultura.Situação revertida somente com a união das meta-

des corpóreas ao final do romance.

Tais alegorias bem poderiam aludir a outras

tantas narrativas, agora mais locais e verídicas, cujos

protagonistas sem títulos nobiliários, jovens anôni-

mos das camadas populares da cidade de São Pau-lo, encontram-se próximos ao dilema existencial do

efebo Visconde que, partido ao meio, viu-se priva-

do na sua percepção e representação das coisas, nasua visão de mundo, esgarçado em duas metades tão

irreais quanto irreconciliáveis, desde que apartadas.

Igualmente arrebatados por convicções e pai-xões dilaceradoras, atributos inerentes à lógica1

engendrada pelas manifestações esportivas, que re-

partem e polarizam indivíduos, grupos e até socie-dades em comunidades morais nos rituais compe-

titivos, estes jovens irão conferir, como constata-

remos mais adiante ao enfocar dois casos específi-

cos, concretude a peculiares sociabilidades, alicer-çadas por uma heráldica futebolística, expressasnas cores, símbolos e marcas distintivas de times e

respectivas torcidas de futebol. Cisões que nos úl-

timos tempos têm se revelado irreconciliáveis e in-

tolerantes pelos campos e estádios, apartando mi-

lhares de adolescentes nas representações bons emaus, ou em realidades mais trágicas, entre víti-

mas e algozes. Antes, porém, de relatarmos os acon-

tecimentos dramáticos protagonizados por alguns

desses jovens torcedores verifiquemos, ainda quede modo breve, as condições socio-históricas quegestaram tais condutas coletivas e as práticas so-

ciais dos agrupamentos juvenis em torno do fute-

bol profissional.

Coletividades contrastivas de jovens torcedo-

res de futebol existem no Brasil desde os anos 40,

na cidade de São Paulo exatamente a partir de1942, quando foram fundadas algumas das deno-

minadas torcidas uniformizadas dos clubes mais

populares (Sport Club Corinthians Paulista, SãoPaulo Futebol Clube e a então recém nomeada So-

ciedade Esportiva Palmeiras, até aquela data Pales-tra Itália). Diverso do mosaico de subgrupos que

compõem as torcidas organizadas atuais, integra-

vam estes agrupamentos sobretudo jovens de clas-

se média, na sua maioria sócios dos próprios clu-

bes, cujas atividades torcedoras somavam-se aosinteresses e aspirações dos diretores das referidas

associações esportivas.

É curioso observar de que modo estas torcidas

estavam alinhadas ao arranjo institucional do fu-

tebol da época. Podemos constatar tal fato desde oano de 1943 quando o jornal A Gazeta Esportiva

e a Rádio Gazeta promoveram o campeonato das

torcidas uniformizadas, iniciativa que buscava nor-

matizar, sobretudo, a conduta torcedora já que,

desde então, distúrbios, transgressões e violênciasganhavam uma dimensão significativa enquanto um

1 Poderíamos conceber as competições esportivas, e ofutebol em específico, como um extenso sistema de rituais

de trocas complexas (materiais e simbólicas) cuja recipro-cidade, contudo, ao invés de marcada pela simetria dar-re-

ceber-retribuir, característica de uma série de instituições das

sociedades ditas  primitivas, é reduzida para a assimétricaequação do ganhar-perder,portanto uma reciprocidade que

denominaria aqui de aberta. De outro modo, “(...) Lévi-Strauss [na obra O Pensamento Selvagem] também atentou

para o elemento irruptivo e passional dos jogos competiti-

vos (rituais disjuntivos). Segundo ele, diferentemente do queocorre nos rituais das sociedades pré-industriais e nas soci-

edades ditas primitivas, nas quais a lógica separa de ante-

mão os envolvidos (iniciados e não-iniciados) para, nummomento posterior, promover a união ou junção em uma

só categoria ou classe (todos iniciados), inversamente, osjogos e as competições partem de uma situação de igualda-

de (o 0x0, por exemplo) para, ao final, promoverem umacisão, uma diferenciação entre perdedores e ganhadores. De

uma simetria pré-ordenada, em virtude da igualdade das re-

gras entre os participantes, chega-se a uma assimetria im-posta pelas contingências do acaso, talento ou circunstân-

cias outras, que levam alguns a vencer e outros a perder”(LÉVI-STRAUSS apud TOLEDO, 1996, 133).

Liuz Henrique de Toledo

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Revista Brasileira de Educação 211

2 Os anos 40 são marcados por um redimensionamen-

to significativo do futebol profissional com a inauguraçãodo estádio do Pacaembu, que passa a congregar milhares de

torcedores nas partidas (por volta de 60 mil torcedores nosjogos que estavam envolvidos os times mais populares). Tal

fato alavancou a participação popular nestes eventos espor-

tivos, o que gerou uma maior preocupação por parte dasautoridades em conter e regular a conduta torcedora. É neste

período que os jornais esportivos começam a noticiar esque-mas de segurança e de prevenção de como evitar brigas entre

os assistentes, como atesta a matéria intitulada O policia-

mento de amanhã no Pacaembu (A Gazeta Esportiva, sá-bado, 16 de setembro de 1944), por motivo do jogo São Pau-

lo versus Palmeiras.

3 Apenas para lembrar, este período é marcado, no

plano internacional, pela segunda grande guerra e o nazi-fascismo. No âmbito nacional, pelo estado centralizador

getulista, aliás, grande propagador dos esportes a serviço deum ideário de nação baseado na saúde social . De algum

modo, como pode ser notado, estas primeiras organizações

torcedoras evocam tais aspirações nacionalistas.

4 Em 3 de maio de 1943 o jornal A Gazeta Esportivatraz em sua matéria A Torcida Líder em Ação duas fotos

da torcida uniformizada corinthiana empunhando faixas deexaltação à pátria e aos jornalistas beneméritos dos espor-

tes: Para uma Pátria grande e raça forte; Salve! Cronistas e

locutores esportivos. Fatos que atestavam a plena anuênciadeste modelo de participação de torcedores no arranjo ins-

titucional do futebol profissional da época, como aconteceainda com parte das torcidas na atualidade.

problema sério no futebol2. Aliás, muitos atribuíam

e creditavam às torcidas uniformizadas um certopapel dirigente, de elite torcedora, capaz de integrar,

regular e até mesmo manter a ordem na assistên-

cia, nos espetáculos esportivos. Estas torcidas nas-

ceram inspiradas e bastante delineadas pelas fortesmotivações de época, alicerçadas e difundidas empalavras como  juventude, raça, nação e ordem3,

cujos papéis consistiam tão somente em propagar

o futebol oficial dos clubes, dos dirigentes e demais

artífices dos espetáculos esportivos, tais como os

meios de comunicação e a crônica esportiva4, co-responsáveis pela invenção do já então denomina-

do esporte-rei.

Este modelo de assistência instituído por estas

torcidas uniformizadas perdurou até os anos 70

quando outra modalidade de participação, nitida-mente mais popular e contendora, ganhou signifi-

cativo espaço e apelo torcedor, as autodenominadas

Torcidas organizadas de futebol, que originalmen-

te surgiram num contexto de efervescência políti-ca, como foi o caso da primeira agremiação torce-dora, a Gaviões da Fiel5. Em parte autônomas das

vidas institucionais dos clubes6, muitas vezes em

confronto aberto com os dirigentes destes, estas tor-

cidas rapidamente se popularizaram e hoje domi-

nam o cenário das organizações torcedoras, sobre-tudo na cidade de São Paulo, já que em outros es-

tados o atrelamento aos clubes ainda é verificado

como um modelo preponderante.

De modo genérico, este torcedores, não maisuniformizados mas organizados, podem ser tipifica-

dos como sendo predominantemente do sexo mas-culino, oriundos das classes populares e possuindo

idades variando entre 15 e 18 anos, estudantes que,

esporadicamente, exercem alguma atividade remu-

nerada, embora, é preciso salientar, este perfil típi-

co-ideal não seja, de fato, aquele que caracterize e

prepondere entre os subgrupos dirigentes destas or-ganizações, à propósito, muito mais complexas do

ponto de vista etário, geracional e da segmentação

5 Discutia-se, na ocasião, a legitimidade do então pre-sidente corintiano Wadih Helu, que estava há aproximada-

mente 15 anos a frente do Sport Club Corinthians Paulis-

ta. Os Gaviões são a primeira e atualmente a maior torcidaorganizada existente no Brasil. É relevante correlacionar o

surgimento dessas instituições torcedoras num contexto maisamplo de valorização das instituições populares num perí-

odo em que os direitos políticos e a cidadania estavam cer-

ceados pelo regime militar.

6 De modo geral, estas torcidas caracterizam-se porserem instituições sem fins lucrativos, organizadas burocra-

ticamente por estatutos e cargos eletivos. Possuem sedes e

organizam-se em função de várias atividades em torno dofutebol (festas, excursões, etc). Para maiores detalhes sobre

os desdobramentos sociais e simbólicos destas organizaçõesno que diz respeito às formas de sociabilidade gestadas con-

sultar Torcidas Organizadas de Futebol , citado.

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em termos de estratificação social7. Todavia, é ine-

gável a presença marcante e destacada destes seto-res juvenis e populares em torno do futebol, bem

como o forte papel agregador que estas torcidas

organizadas suscitam, mesmo entre aqueles jovens

que não participam ativamente ou cotidianamentedestas organizações.

A vivência e a fruição de uma partida de fute-bol transcendem seus limites convencionais de tem-

po e espaço para muitos destes aficcionados. A cons-

trução da pessoa do jovem torcedor organizado, ou

de milhares de outros que sancionam esta modali-

dade de participação coletiva no futebol ou em ou-tras práticas esportivas, requer um investimento

simbólico rico e plural em experimentações que,

num certo sentido, caracteriza uma demanda pre-dominantemente juvenil. Como enfatiza Helena

Abramo, abordando outros contextos de manifes-tação dessa experiência geracional, os jovens utili-

zam-se do tempo e dos elementos de consumo dis-

poníveis, aqui, no caso, o futebol como um bem de

consumo e entretenimento “(...) para abrir espaços

significativos de vivência e para elaborar e expres-

sar as inquietações relativas à sua condição (...)”(Abramo, 1994, 79). Além do mais, como demons-

tro alhures8, as torcidas cumpriam e, em parte, pen-so que algumas ainda o fazem, este papel institu-

cional de garantir aos torcedores um certo espaço

de exercício e participação coletiva nas franjas dofutebol organizado profissionalmente, historica-

mente marcado por um gerenciamento autoritário

e elitista desde o seu surgimento enquanto mani-

festação popular e simbolicamente relevante de nos-

sa identidade.

Não obstante, um ciclo mais ou menos recor-rente de acontecimentos fatais, inaugurado por vol-

ta do final da década de 809, vêm colocando em

cheque, no domínio público, a participação dessasorganizações torcedoras como co-atores do ritual

do futebol profissional. Esta radicalização da con-duta predominantemente juvenil, acarretando uma

sucessão de tragédias em torno do futebol, ao que

tudo indica não consiste num fenômeno circunscrito

somente às manifestações esportivas de massa no

Brasil, sendo observadas, com outras implicaçõeshistóricas e culturais, também em um nível interna-

cional. Contudo, naquilo que concerne ao âmbito

nacional, modalidades variadas de transgressão ju-venil vem sendo analisadas por alguns autores10 que

as vinculam a um contexto mais amplo e que dizemrespeito, sobretudo, a crise dos papéis desempenha-

dos pelas instituições populares ou vicinais (Zaluar,

1996). Momento caracterizado pela fragmentação,

recuo e desinvestimentonestas tradicionais institui-

ções que, num período recente de nossa história,

garantiam uma dada inserção e supriam uma carên-cia institucional regular entre as populações desasis-

tidas pelos poderes constituídos11.

7 Dada a complexidade e variedade de grupos que parti-

cipam destas torcidas pode-se constatar também projetosdiversificados de participação na esfera pública, que extrava-

zam os limites do universo do futebol. Por exemplo, inúmeras

torcidas participam ativamente dos festejos carnavalescoscomo blocos e escolas de samba, aliás, a Gaviões da Fiel ,

uma torcida corintiana, como se sabe, já ganhou um campeo-nato oficial do carnaval na cidade de São Paulo, em 1995.

8 Consultar o livro Torcidas Organizadas de Futebol ,citado.

9 Cronologias da violência no futebol podem ser da-tadas a partir de 1988 com a morte de um torcedor e diri-

gente da Mancha Verde palmeirense, Cléo. De lá para cá

adensaram-se as estatísticas sobre delitos torcedores.

10 Trabalho aqui, basicamente, com duas autoras queatualmente vem elaborando instigantes análises sobre as

novas modalidades transgressoras de inserção juvenil naesfera pública, a saber, Zaluar (1996) e Peralva (1996;

1996b).

11 Zaluar analisa o desinvestimento popular em algu-

mas instituições (religiões afro-brasileiras, o universo dosamba, associações de bairro e etc) associando-o a um com-

plexo processo (relacionado à globalização) de fragmenta-

ção local de determinados grupos e práticas culturais. Im-possível reconstituir toda a linha argumentativa da autora,

porém o que ela enfatiza, e assumo os riscos de imprecisãoao elaborar um mau resumo, são as consequências devas-

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Revista Brasileira de Educação 213

tadoras que tais mudanças acarretam em vários domínios

como, por exemplo, a intensificação, a partir do final dos

anos 80, da presença jovem no tráfico de drogas, alimenta-

do tanto por um novo reordenamento econômico, quantopelo desinvestimento aludido acima. Como exemplos citao avanço de certas manifestações religiosas intolerantes que

reordenam e segregam indivíduos e famílias, alimentadas por

uma ampla demonização midiática de certas práticas reli-giosa mais tradicionais, ou a popularização de novas práti-

cas de expressão e entretenimento jovem (igualmente exclu-dentes) que também possuem uma natureza contendora e

fragmentária, tal como pode ser verificado na lógica do funk,

diverso do samba que congregava gerações e grupos maisextensos.

Atualmente proibidas, as torcidas organizadas,

ao menos nos campeonatos locais e jogos realiza-dos no estado de São Paulo, estão afastadas formal-

mente dos estádios, como veremos, e veementemen-

te combatidas nos meios de comunicação e crôni-

ca esportiva. No entanto, constituem-se, mesmo quede maneira transitória, numa referência expressiva,seja no que se refere às modalidades de sociabilidade

e comportamento (verbal, estético) por elas estimu-

lados, seja no que se refere às contendas ou as trans-

gressões observadas entre jovens torcedores em tor-

no destes padrões coletivos de conduta.

Sendo assim, esta mesma conjuntura gestadapor estas atuais torcidas, que alimentam convicções

e paixões irrefreadas entre torcedores, também afas-

tam, por opção ou compulsoriamente, muitos des-tes mesmos jovens torcedores das arquibancadas.

Uns pelo cessar ou arrefecimento da paixão, cir-cunstância em que abandonam as hostes e a mono-

mania pelo futebol em função de outras atividades,

outros por terem sido vitimados nas contendas, in-

clusive com a privação da própria vida. Outros,

ainda, por estarem entre aqueles que responderam

(e estão respondendo), moral e judicialmente, pe-los delitos e transgressões cometidos.

É a partir desses últimos, torcedores direta-mente envolvidos em casos de violência física, que

desenvolvo a presente análise. Indivíduos tidos por

parte significativa da mídia e da opinião pública

como delinquentes, bárbaros, socialmente pernicio-

sos mas que, como milhares de outros, preenchiam

suas vidas adolescentes com o futebol, bruscamen-te interrompidas pelas participações trágicas decor-

rentes do envolvimento em brigas e confrontos ge-

neralizados. O material etnográfico que sustenta

toda a argumentação que segue provém de depoi-mentos, manchetes, fragmentos de histórias de vidasistematizados a partir de uma pesquisa documen-

tal realizada na imprensa escrita alicerçada ainda

por uma pesquisa de campo12 sobre as práticas so-

ciais dos agrupamentos torcedores na cidade.

Contextualizar estes dramas individuais nos

quais se envolveram estes jovens consiste em reto-mar, ainda que de modo sumário, algumas das ex-

plicações mais correntes sobre a violência urbana,

ou melhor, sobre determinadas modalidades e ex-pressões da violência observadas entre agrupamen-

tos juvenis ou com a participação dos mesmos, so-bretudo em se tratando de contendas torcedoras.

Campo crivado de armadilhas conceituais de pou-

co vigor analítico, todavia de grande apelo socio-

lógico, seja no discurso da mídia ou até mesmo no

discurso científico, explicações tais como a fome,

a pobreza, a crise econômica13, a desesperança frutodesta conjuntura, ou até mesmo aquelas que ape-

lam para a infalibilidade da violência como carac-

12 Convivi com torcedores por um período de três anos,

entre 1990 a 1993, na ocasião em que desenvolvi a pesqui-sa de mestrado no departamento de Antropologia Social na

USP e que resultou no livro já citado em notas anteriores.

13 Muitas das explicações veiculadas na mídia possu-

em um forte componente determinista, econômico ou socio-lógico, aludindo que “(...) a selvageria ligada ao futebol tem

um componente social, que o desemprego e a falta de perspec-tiva levam muitos jovens a extravasarem frustrações de for-

ma violenta (...)” (Folha de S. Paulo, editorial, 26/10/94).

Observaremos que nem sempre a violência pode ser contextua-lizada por estas variáveis tão objetivas. A antropóloga Alba

Zaluar também critica esta postura confortável de determi-nadas análises ao “(...) tornar o econômico o fator deter-

minante ou a pobreza a explicação de fatos que, como to-

dos os outros fatos sociais, são coisa e representação, coisae ideal ao mesmo tempo, sempre foi a maneira mais pobre

de explicar qualquer um deles (...)” (Zaluar, 1996, 53).

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terística de um país de etnia indecisa, enfim, tendem

a adensar o debate cotidiano acerca do comporta-mento transgressor e dos conflitos urbanos de um

modo geral.

Inúmeras vezes os discursos sobre a violência

podem vir imbuídos de um excessivo essencialismoque busca uma explicação para a violência no di-

lema brasileiro, denunciando a convivência contra-ditória em nossa formação histórica entre formas

hierárquicas (patriarcais, coronelistas, autoritárias)

e impessoais (da ordem da igualdade entre indiví-

duos) na constituição da sociedade brasileira. No

entanto, como adverte Alba Zaluar, “(...) tentarexplicar as formas atuais de manifestação da vio-

lência entre nós, apelando para o hibridismo de uma

cultura brasileira que apresenta esses valores hierár-quicos expressos paradigmaticamente na relação

senhor-escravo que se reconstitui sempre é eternizaruma forma cultural, é seguir à risca a lógica iden-

titária contrastiva e é também negar a história que

põe o institucional e o cultural em eterna transfor-

mação (...)” (Zaluar, 1996, 49).

Naquilo que diz respeito às sanções mais seve-

ras impostas às modalidades de transgressão obser-

vadas entre torcedores, ou seja, prisões e processos

judiciais, geralmente tais atitudes violentas são qua-lificadas como fenômenos exógenos ao futebol, cir-

cunscritas somente às organizações torcedoras (tor-

cidas organizadas), o que na prática sustenta e tende

a se justificar na perpetuação da repressão e exclu-são dos socialmente  perigosos e desajustados do

arranjo institucional do futebol profissional. No

entanto, a expiação destes torcedores perante a opi-

nião pública, como será mencionado, feita muitas

vezes de maneira precipitada, não garante a exclu-são do uso da violência física como linguagem en-

tre os jovens torcedores, muito embora se observe,

momentaneamente, uma diminuição das contendas

desde a proibição das manifestações dos agrupa-

mentos torcedores no estado de São Paulo.

É preciso enfatizar, todavia, que na prática nãosó os agrupamentos torcedores estão participando

dos jogos, de modo mais ou menos velado, como

o nível de animosidade e intolerância continua disse-

minado entre uma parcela imensa de torcedores, orga-

nizados ou comuns. Basta observar que o contingen-te policial nos estádios continua a ser expressivo14.

Outro dado a ser levado em conta é que as

punições às atitudes delinquentes, que permanecem,

repito, latentes nos estádios, inibidas apenas pelaforte e agora intensificada intolerância policial, o

que revela outra faceta da violência, sensibilizam ouconscientizam pouco, apesar de alguns torcedores

serem presos, julgados e sentenciados. O que só

confirma o distanciamento entre estes sistemas pu-

nitivos legais e as representações de justiça, ordem

e legalidade presentes entre determinados agrupa-mentos sociais. Aliás, muitas vezes ser preso ou de-

tido em contendas torcedoras só vem adensar bio-

grafias já repletas de atitudes socialmente reprová-veis, porém com forte caráter persuasivo e praze-

roso, características muito peculiares e simbolica-mente valorizadas entre parcelas expressivas dos

segmentos juvenis.

Mais ainda, a frequente exorcização da violên-

cia, como se ela fosse um fenômeno à parte das so-

ciedades, não leva em conta o caráter ontológico e

até mesmo atemporal da violência como constitu-

tiva de qualquer ordenamento social15, inclusive no

desenvolvimento das modalidades esportivas.

14 Apesar do arrefecimento das lutas abertas entre tor-

cedores, em maio de 1997 houve uma outra morte de umtorcedor e uma generalizada manifestação violenta de tor-

cedores na partida entre os times do Guarani Futebol Clu-

be e do Sport Club Corinthians Paulista, na cidade de Cam-pinas. O fato se deveu a venda de uma carga excessiva de

ingressos, o que impossibilitou milhares a de torcedoresocuparem as dependências do estádio Brinco de Ouro. Nem

a polícia, sequer a Federação Paulista de Futebol assumiram

a responsabilidade pelos incidentes.

15 Maria Lúcia Montes sintetiza esta argumentação daseguinte maneira: “(...) nenhum sistema normativo se sus-

tenta sem a sanção que obriga a respeitá-lo, através da vio-

lência organizada, simbólica ou concreta, através da qualele se impõem e se conserva ao longo do tempo. Longe de

ser uma excrescência indesejada na vida social, irrupçãocaótica da natureza em meio à cultura, a violência consti-

tui, portanto, no avesso da norma e da ordem que instaura,

Liuz Henrique de Toledo

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Revista Brasileira de Educação 215

seu fundamento oculto que, ao manifestar-se, como trans-

gressão e ruptura da ordem, manifesta também o embasa-mento último em que esta se assenta. Neste sentido, tanto

quanto a norma, a violência, como forma ou resultado dasua transgressão, constitui também ela uma linguagem, atra-

vés da qual uma sociedade nos fala do seu modo de organi-

zação, dos valores que reputa fundamentais, da sua concep-ção sobre o mundo, a natureza e o sobrenatural, e do lugar

que nela ocupa a vida humana, como princípios ordenadoresda vida associada (...)” (Montes, 1996, 225).

16 Para uma verificação do processo de constituiçãodo campo esportivo em interdependência com outras esfe-

ras sociais consultar Norbert Elias, citado. Segundo esteautor, o futebol concorreu para disciplinar o nível de vio-

lência da esfera pública das sociedades pré-industriais. O

condicionamento coletivo e individual às regras impessoaise universais formam o apanágio das sociedades ocidentais

burguesas.

Uma outra dimensão crucial para se compre-

ender a eclosão das manifestações transgressoras emestádios de futebol reside na própria constituição

do campo esportivo, aspecto raramente levado em

conta nas análises que circunscrevem e esgotam a

compreensão do fenômeno da violência nos limitesdo comportamento torcedor. No entanto, “(...) oprocesso de constituição das configurações espor-

tivas esteve sempre imbricado ao processo de civi-

lização ( parlamentarização da vida pública)16, ou

seja, na criação das mediações institucionais regu-

ladoras por um lado e auto-controle individual naresolução dos conflitos, por outro [em qualquer

instância da vida social: seja no âmbito da política

ou no âmbito dos costumes, jogos e divertimentos].

O advento dos esportes contribuiu para o desenvol-vimento desse processo e, dessa forma, o fenôme-no esportivo esteve vinculado, desde sua gênese, à

domesticação mais geral dos conflitos deflagrados

nas sociedades. Desta maneira, parece impossível

abordar quaisquer fenômenos esportivos, sobretu-

do o futebol, lugar da emergência de identidades e

antagonismos coletivos por excelência, ocultandodo horizonte das análises os processos conflitivos,

transgressores e violentos que eclodem de tais ma-

nifestações sociais. Até hoje observamos acirradas

discussões a respeito das regras esportivas e a ne-

cessidade em conter a violência entre jogadores. Ajustiça desportiva constitui outro foco de controvér-

sias na gestão da equanimidade no cumprimento

das regras e manutenção de ordem desportiva (...)”

(Toledo,1997, 113-114). A conduta torcedora, so-bretudo entre aqueles que militam no futebol pro-fissional, em grande medida, faz parte desta lógica

inerente ao processo de esportificação17.

Estas considerações feitas acima podem ser

adensadas com as descrições de dois fatos amplamen-

te divulgados pela mídia que estimularam, de modo

decisivo, uma política de repressão, por parte dospoderes públicos, às coletividades organizadas de

torcedores: um que ficou vulgarmente conhecido

como a guerra do Pacaembu e outro como o casodo gordo do ABC, cronologicamente anterior àquele.

O gordo do ABC, o são-paulino Reinaldo Ma-

rin, foi acusado de ter vitimado o adolescente Ro-drigo de Gásperi, à época com 13 anos, office-boy

de uma ótica em Perus, região da zona norte da

cidade de São Paulo, ao arremessar uma bomba de

fabricação caseira na torcida corintiana por ocasião

da partida entre São Paulo Futebol Clube e Sport

Club Corinthians Paulista, taça São Paulo de fute-

bol juvenil, torneio tradicional que acontece todosos meses de janeiro e que antecede as temporadas

do futebol profissional (campeonatos estaduais e

competições nacionais).

Adalberto dos Santos, à época com 20 anos,

palmeirense, foi um entre dezenas de outros torcedo-res que se engalfinharam na guerra do Pacaembu,

final de um campeonato de juniores entre São Paulo

Futebol Clube e Sociedade Esportiva Palmeiras, no

ano de 1995. Único indivíduo responsabilizado e que

está até hoje (1997) preso, acusado de ser o responsá-

17 José Sérgio Leite Lopes, ao resenhar um conjunto

de textos de Norbert Elias sobre a temática do futebol, uti-

liza-se do neologismo esportificação para adequar a evolu-ção do referido esporte ao processo de longa duração de-

nominado pela expressão processo de civilização, utilizadopor Elias.

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vel pela morte de Márcio Gasparim da Silva, 16 anos,

são-paulino, que trabalhava como balconista, Adal-berto, ao contrário de Reinaldo Marin (o gordo), não

fazia parte de qualquer torcida organizada.

* * *Reinaldo Rocha Marin tinha na ocasião do

acontecido, o ano de 1992, 20 anos de idade. Fi-

lho de um pequeno empresário de Santo André, pro-prietário de uma malharia, o gordo, como era co-

nhecido na torcida a qual estava associado, a Tor-

cida Tricolor Independente que acompanha o São

Paulo Futebol Clube, trabalhava com o pai como

vendedor havia três anos e cursava o primeiro anodo segundo grau na escola estadual Dr. Américo

Brasiliense.A paixão pelo futebol herdou do pai, que o

levava aos estádios desde criança. Rotina que se

alterou bruscamente a partir do dia 23 de janeiro

de 1992, semifinal da taça São Paulo realizada noestádio do Nacional, clube da segunda divisão da

capital paulistana. Havia uma superlotação no es-

tádio, ânimos acirrados como de costume, insultos

disparados por ambas as partes e uma proximida-

de perigosa entre as torcidas rivais, imposta pelas

reduzidas dimensões do estádio. Num determinadomomento do gol do São Paulo Futebol Clube, além

da explosão de alegria incontida do lado da torcida

são-paulina, uma bomba de fabricação caseira é

arremessada a esmo em meio aos corintianos ainda

aturdidos pelo tento adversário. Bomba sem ende-reço determinado, a não ser pelo contraste das co-

res dos opositores, atingiu o outro aglomerado tor-

cedor. Situação em que mal se podia identificar os

contendores, sequer qualquer atributo que os indi-

vidualizassem. Um gol, a explosão posterior, espan-to, alegria, dor, indignação compuseram o cenário

que vitimou o corintiano Rogério de Gásperi.

Passados alguns dias uma caravana da Torci-

da Tricolor Independente é detida na serra do mar,

rodovia Anchieta, ocasião em que os são-paulinos

iriam acompanhar o time num outro jogo, desta vezcontra o Santos Futebol Clube, na Vila Belmiro, na

cidade de Santos. Uma bomba de fabricação casei-

ra18 foi encontrada, apesar das controvérsias até

hoje não explicadas pois alguns torcedores alega-ram que a própria polícia militar havia plantado19

a bomba no ônibus, e 99 torcedores, 43 deles me-

nores de idade, foram conduzidos ao 1o distrito po-

licial de São Bernardo. Do interrogatório com osadolescentes se chegou ao gordo do ABC como oprovável culpado pelo arremesso da bomba dias

atrás, no campo do Nacional. As próprias circuns-

tâncias em que foi preso o ajudaram, 45 dias depois,

na sua libertação20. Houve até a alegação de sobre-

vivência política do então secretário de segurançapública Pedro de Campos em tentar resolver rapi-

damente o caso.

A única testemunha de acusação, Clóvis Ma-

noel Gouveia, mudou seu depoimento em 13 demarço alegando ter sido pressionado pela PM no

momento de apreensão da bomba no ônibus: “(...)eles me disseram para arrumar as poltronas, fiquei

com a cabeça abaixada durante a revista. Só vi a

bomba na mão do policial, disse (...)” (Folha de S.

Paulo, 14/03/92).

Pouco antes de ser libertado, no dia 14 de mar-

ço, Reinaldo concedeu uma entrevista à Folha de

S. Paulo (num dia em que haveria um jogo entre São

Paulo e Palmeiras) alegando que jamais iria a umestádio novamente: “(...) Logo de início é bom di-

zer que nem quero saber com quem o São Paulo vai

jogar ou deixar de jogar. Quero mesmo é sair da

18 Em tempo, estas bombas caseiras consistem em bo-linhas de gude confinadas misturadas a pólvora.

19 Torcedores juram: foi armação foi uma das man-

chetes do Jornal da Tarde do dia 29/01/92 trazendo alguns

relatos dos torcedores envolvidos na ocasião. Porém a teseda armação pela polícia também não ficou comprovada.

20 A Folha de S. Paulo, de 8 de fevereiro de 1992, trou-

xe uma matéria em que a reconstituição do caso num testesimulado não confirmava ser Reinaldo o autor do arremesso

da bomba. Pela posição em que se encontrava no estádio e

a provável distância que o separava de Rogério (45 metros)seria impossível a ele arremessar um artefato de 250 gramas

a tal distância, segundo as simulações feitas pela recons-tituição pericial.

Liuz Henrique de Toledo

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Revista Brasileira de Educação 217

cadeia. Mas como até aqui dentro a rivalidade con-

tra o Palmeiras é grande, e não posso fugir das brin-cadeiras dos colegas de cela, espero apenas que não

haja violência. Porque foi por causa dela que vim

penar nesse inferno. Continuo tricolor, mas nunca

mais pretendo passar na porta de estádios de fute-bol, nem ver pela TV ou ouvir no rádio. Quando abola tiver rolando no Morumbi vou pra algum can-

to do pátio da cadeia pra não ouvir o radinho dos

palmeirenses. Eu não quero ficar falando sobre os

times porque pode ser ruim pra minha imagem. Não

quero que fiquem pensando que estou querendoaparecer ou ser candidato a alguma coisa no futu-

ro (...) Hoje sei que há coisa muito mais importan-

te no mundo do que futebol. Aqui na cadeia, por

exemplo, tem um monte de gente que já cumpriupena mas não saiu porque ficou esquecido pela jus-tiça. E alguns, como eu, que não são culpados e

aguardam julgamento há anos. É triste. Não dese-

jo nem ao pior inimigo (...)” (depoimento de Rei-

naldo Marin à Folha de S. Paulo, 08/03/92)

Passemos à guerra do Pacaembu. A partida era

uma final de campeonato de juniores21 entre São

Paulo Futebol Clube e Sociedade Esportiva Palmeirase, como no jogo anterior onde Reinaldo Marin pro-

tagonizou o ocorrido, este também revestia-se depouca importância se comparado às pelejas acirra-

das que marcam e instilam animosidades na cidade,

desde as primeiras décadas deste século, entre osgrandes times profissionais. Se não fosse pelos fatí-

dicos acontecimentos ambos os jogos aqui em ques-

tão ficariam confinados às estatísticas esportivas.

Difícil descrever as imagens, abundantemen-

te veiculadas nas TVs e estampadas nos jornais.

Raro encontrar alguém que não as tenha visto. Fin-do o jogo, por morte súbita22, torcedores palmei-

renses invadiram o gramado para comemorar o 1x0

e apupar os torcedores adversários, predominante-mente os organizados, que se agrupavam numa par-

te da arquibancada. O revide veio logo em seguida

com os são-paulinos pulando e derrubando alam-

brados, situados ao lado e ao fundo de um dos golse, misturando-se aos palmeirenses, policiais, joga-dores assustados, profissionais da imprensa que co-

briam o evento entre outros, travaram uma sequên-

cia de investidas, retrocessos, avanços e recuos uns

contra os outros, munidos de muito entulho deixa-

do atrás do gol em virtude de uma reforma no se-tor comumente conhecido como tobogã (arquiban-

cada atrás do gol). Paus e pedras foram desferidos

entre os torcedores. As imagens de um jovem com-

balido, à deriva sobre suas pernas, percorrendo comdificuldades pela lateral do gramado, por fim pro-jetado contra o alambrado, desmaiado, demonstra-

va, ao vivo pela TV, o tamanho da agressividade

coletiva que se instaurava naquele momento. O sal-

do foi ainda pior com a ocorrência de uma morte,

segundo os primeiros laudos médicos, por lesões

generalizadas, de um adolescente, Márcio Gasparimda Silva, atribuída ao já referido adolescente Adal-

berto B. dos Santos (Toledo, 1997, 110).

Durante todo o segundo semestre e os anos de1996 e 1997 pode-se verificar os desdobramentos do

fato23. Forte pressão da imprensa, o ministério pú-

blico do Estado designando um promotor de justiça

21 A categoria de juniores faz parte dos departamen-

tos amadores dos clubes profissionais. É uma das etapas para

se chegar ao futebol profissional.

22 Morte súbita, ou gol de ouro, consiste no términodo jogo imediatamente após um dos contendores fazer um

gol. Houve, na ocasião, quem atribuísse a esta regra as ra-

zões do desfecho funesto desta partida, alegando que a in-

terrupção brusca pelo gol fatal, sem dar chances de recupe-ração ao adversário, gera uma maior tensão entre os aficcio-

nados, fato que colaborou para o acirramento dos ânimos.Pista interessante porém insuficiente para compreender todo

o desencadeamento do acontecido.

23 Entre outros o afastamento dos grupos organiza-

dos dos estádios, indiciamento de Adalberto por homicídiodoloso, suspensão das atividades e extinção da Torcida Or-

ganizada Mancha Verde, suspensão das atividades da são-paulina Torcida Independente, proibição dos cantos de guer-

ra nos estádios, proibição de venda de bebidas alcoólicas,

bem como de levar aos estádios paulistas bandeiras e ins-trumentos percussivos.

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218 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

para acompanhar o caso, abertura de inquérito poli-

cial. Não cabe aqui reconstituir toda esta sequênciade eventos, aliás rica do ponto de vista de uma in-

vestigação mais detida na medida em que veio à baila

uma série de contradições no andamento do inqué-

rito em função de possíveis irregularidades nos pron-tuários médicos do torcedor vitimado. Era necessá-rio, como no caso do gordo do ABC, um rápido pro-

cedimento para indiciar e apresentar ao público os

responsáveis. Apesar de uma série de irregularida-

des evidenciadas na ocasião, por exemplo a presen-

ça de uma grande reforma no estádio, o que impli-cava numa evidente ausência de condições em sediar

qualquer partida, e outras relativas à condução da

cirurgia e dos laudos médicos, o único indivíduo efe-

tivamente culpabilizado pela morte de Gasparim foiAdalberto. Tal como na lógica sacrificial , cataliza-ram-se as violências parciais (institucionais, sobre-

tudo), convergindo-as para uma única pessoa, como

se pudessem evitar que a “(...) violência se espalhasse

por toda a sociedade (...)” (Rifiotis, 1996, 9).

A precipitação dos fatos culminou na prisão

preventiva de Adalberto sob a alegação de clamor

 popular. Um balanço feito pela promotoria da ca-pital em novembro de 1996, passados quinze me-

ses, computou 23 indiciados, denunciados por cri-me de rixa e um preso, acusado de homicídio do-

loso, Adalberto. Ainda que as imagens claramente

mostrem a sua participação no acontecido há indí-cios de que o golpe considerado fatal por ele desfe-

rido não tenha sido o causador da morte de Gas-

parim. Suspeita-se que houve um erro (na leitura da

chapa e na abertura do crânio) na cirurgia feita no

adolescente vitimado24.

Em fevereiro de 1997 o juiz Sérgio Rui da Fon-

seca denuncia-o por homicídio triplamente quali-ficado, motivado por crueldade, impossibilidade de

defesa da vítima e futilidade25 (briga entre torcedo-

res). A defesa, ainda alegando incongruências nos

laudos periciais, propôs que o renomado legista For-tunato Badan Palhares depusesse como testemunhade defesa, o que não foi permitido pelo referido juiz

a pedido da promotoria que alegou que o legista não

havia “acompanhado as investigações e por isso,

não poderia ir a plenário” (O Estado de São Pau-

lo, 10/04/97). O advogado de defesa Laertes Tor-rens consegue, desse modo, o adiamento do julga-

mento que estava marcado para 14 de abril deste

mesmo ano.

Quais semelhanças guardam estes dois acon-tecimentos e tantos outros ocorridos com adoles-

centes ou jovens torcedores de futebol? Em que me-dida é possível verificar um padrão de conduta mais

objetivo e causal nestas contendas? Tomando como

exemplo grande parte das mortes entre torcedores,

constata-se que um número reduzidíssimo delas acon-

teceu em função de vendetas ou vinganças na dis-

puta por algum bem, material ou simbólico, queextravazasse os limites temporais dos jogos futebo-

lísticos (em São Paulo, ao menos, é raro estas ati-tudes violentas ocuparem o tempo da esfera coti-

diana, em geral torcedores não se confrontam para

além dos limites dos dias de jogos).

Dezenas destes confrontos aleatórios envolve-ram indivíduos sem quaisquer vínculos uns com os

outros. Vínculo no sentido de uma ação recíproca

mediada por uma história previamente comparti-

lhada entre os contendores. Se tal fato ocorresse

certamente a cronologia da delinquência em tornodo futebol seria alimentada por casos ainda mais

contundentes como ocorre, por exemplo, com as

participações juvenis nos bandos rivais do crime

organizado, no tráfico de drogas e disputas por pon-

tos e bocas de fumo, cuja modalidade de violência

24 Os advogados de defesa de Adalberto pediram a

exumação do corpo de Márcio e uma perícia para indicarque o golpe desferido pelo réu não foi aquele que vitimou

o referido adolescente. Até janeiro deste ano (1997) o laudo

ainda não havia sido divulgado pelo IML, ou seja, seis mesesapós o pedido. O advogado de defesa iria solicitar em juízo

tal documento no intuito de comprovar sua hipótese de quenão foi o golpe desferido por Adalberto que matou o são

paulino Márcio Gasparim (Folha de S. Paulo, 16/01/97). 25 Grifo do autor.

Liuz Henrique de Toledo

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Revista Brasileira de Educação 219

conflagrada possui, sociologicamente, outros ele-

mentos definidores26.

A exposição aos perigos (e aos prazeres) par-tilhados na forma da contenda futebolística entre

torcedores mobiliza dezenas de jovens em situações

similares cujos desfechos potencialmente poderiamser tão trágicos como aqueles vivenciados por Ma-

rin, Adalberto e, principalmente, por Gasparim eRodrigo de Gáspari. A despeito do débil esforço por

parte de alguns segmentos dirigentes das organiza-

ções torcedoras (torcidas organizadas) em conterem

as transgressões e em que pesem todo o aparato

quase bélico (bombas caseiras, pedras, paus) e sim-bólico que sustentam a atribuída intolerância des-

tas torcidas (os gritos de guerra, representações de

masculinidade posta à prova nestas coletividades,etc), parece por demais linear tributar exclusivamen-

te a uma ação organizada, valorizando uma dadaidentidade coletiva desses agrupamentos, a ocorrên-

cia destas situações de conflito. Por quê, ainda, esta

modalidade de violência é constatada de modo mais

reincidente a partir dos anos 80?

Não querendo negligenciar o caráter coletivo

de tais investidas, motivadas obviamente por uma

centralidade e catalização das animosidades por

parte dos agrupamentos torcedores, tais manifesta-ções revelam, entretanto, que a mobilização de al-

guns elementos profundamente desagregadores, que

parecem animar determinadas condutas individua-

lizadoras, compõem o universo de possibilidades deação diante de situações tais como no caso do gor-

do ou da guerra do Pacaembu.

O relato de Adalberto em certa medida corro-

bora com esta análise ao negar uma identidade27

substantiva que se quer atribuir às torcidas em si-

tuações similares às relatadas: “(...) Eu nunca fui de

organizada (...) bota aí que a pior coisa da vida éviver sob as influências dos outros. Isso leva os ga-

rotos a agir [sic] no embalo, que foi o que me le-

vou a encarar uma situação dessas (...) não se pode

viver sob o incentivo dos outros para praticar umabriga (...)” (depoimento de Adalberto ao Jornal daTarde, 16/04/96). A própria fala de Adalberto ao

enfatizar um caráter coletivo das investidas, afir-

mando que os jovens vivem de embalos, deixa trans-

parecer, todavia, que tais atitudes são opções que

vão além da imediata solidariedade coletiva. Pare-ce que há um forte elemento desagregador de iden-

tidades neste comportamento manifesto e um for-

te apelo individualizador na busca de prazer e emo-

ção em tais atitudes, contudo não destituídos deapreensão, recuos e medos.

O indivíduo agredido, preso ou até mesmo mor-to simplesmente se fudeu, foi vacilão, como comu-

mente dizem os torcedores, demonstrando não so-

mente um desprezo pela existência do outro, e aqui

inclui-se os próprios aliados de uma mesma torci-

da, como pude constatar várias vezes observando

circunstâncias semelhantes as relatadas neste arti-go, mas, paradoxalmente, por parte do agressor,

uma certa representação de desapego da sua pró-pria integridade física.

Entre os jovens torcedores de futebol das clas-

ses populares, de modo preponderante, é muito

usual, no linguajar evocativo de afirmação e bra-vura entre os grupos, o uso do termo apavorar para

denotar algum feito espetacular, audacioso e social-

mente perigoso (um roubo da bandeira adversária,

pequenas transgressões em estabelecimentos comer-

ciais, brigas) até uma atitude mais deliberadamen-te agressiva. Apavorar revela um êxtase e prazer na

atitude furtiva, evidenciando, ainda que de modo

variável, um acontecimento limite que, ao mesmo26 Para uma interessante análise sobre o envolvimen-

to de jovens no tráfico de drogas consultar Alba Zaluar, DaRevolta ao Crime S.A. São Paulo. Ed. Moderna, 1996, e o

texto da mesma autora citado no presente artigo. Outrosautores, tais como Peralva (1996), também vêm estudando

a inserção juvenil no tráfico de drogas.

27 José de Souza Martins adverte para o uso inadequa-

do do termo identidade no estudo de pequenos grupos ur-

banos, gerações, classes sociais, afirmando que se tais iden-

tidades existem, no contexto destes grupos específicos, en-tretanto se “(...) superpõem e se anulam no decorrer de um

único dia (...)” (Martins, 1996, 38).

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220 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

tempo, traduz-se em temor e angústia na realização

do próprio ato. Quanto mais individualizada for atransgressão maior o prazer suscitado na atitude de

apavorar terceiros. Apavorar, por fim, consiste nu-

ma ação em que embora motivada pelo comporta-

mento coletivo instituído pelos grupos torcedoresé profundamente desagregadora. Momento em quealguém se destaca do anonimato da torcida e con-

quista uma certa visibilidade, ainda que efêmera e

socialmente reprovável.

Alguns outros fenômenos vêm sendo concei-

tuados na literatura especializada sobre sociabilida-

de e delinquência entre os segmentos juvenis pelaexpressão comportamento de risco, cujo “(...) en-

gajamento voluntário dos sujeitos em um risco de

morte é o mecanismo ao qual recorrem para enfren-tar a angústia diante de um mundo desprovido de

proteção (...)” (Peralva, 1996b, s/n). E segue a au-tora: “(...) No contexto de um Estado de direito frá-

gil e incapaz de assegurar os requisitos básicos de

uma ordem legal [como é o caso brasileiro], o ape-

lo à ordem se manisfesta sobretudo através da vio-

lência policial e extra-policial contra o jovem (...).

A violência do jovem, ao contrário, parece maisdiretamente pautada pelo engajamento em condu-

tas de risco, envolvendo significados plurais” (Peral-va, 1996b, s/n).

Vale ressaltar, ademais, que tais condutas são

caracterizadas por se constituírem em atitudes auto-

referidas, ou seja, individualizadas, cuja inexistên-cia do outro como objetivo de consumação da trans-

gressão concretiza uma situação limite de negação

do ato de realizar-se no ou pelo outro, mesmo que

pautada numa sociabilidade negativa, como o en-

frentamento ou a aniquilação física do desafeto.

Segundo ainda esta autora, o que permeia asatitudes que envolvem condutas de risco é a angús-

tia da morte28 revelada pela e na ação transgressora,

efeito perverso engendrado nas próprias sociedades

modernas, politicamente igualitárias que, entretan-to, ao superdimensionar a noção de indivíduo, mui-

tas vezes acabam abortando experiências mais co-

letivas de socialização devido a um processo de

“(...) liquidação de antigas formas de regulação dasrelações humanas (...)” (Peralva, 1996b, s/n). Des-sa maneira, a sociedade “(...) já não funciona sufi-

cientemente como matriz protetora, abandonando

o indivíduo face à angústia da morte. No caso do

jovem, aos efeitos da desregulação social, agregam-

se os de uma mutação cultural, que debilita a anti-ga preeminência exercida sobre ele pelo adulto: a

desregulação não é apenas social, mas também in-

ter-geracional. Essa dupla desregulação parece tor-

ná-lo em muitos casos mais sensível ao engajamentoà violência como forma de gestão da angústia damorte (...)” (Peralva, 1996b, s/n).

As condutas torcedoras, particularmente os ca-

sos extremos aqui expostos, em certa medida podem

ser informadas pela categoria precedente (conduta

de risco) só que não exatamente para tipificar tais

atos beligerantes, mas, antes, para inseri-los neste

movimento mais amplo de desregulação e recuo ins-titucional descrito acima, ao que parece, correlacio-

nado aos processos sociais de fragmentação e desin-vestimento nas instituições populares mencionados

por Zaluar, citados em parágrafos anteriores.

No caso da presença do outro (dos adversários)

nas transgressões protagonizadas por torcedores defutebol, lembrando que a violação aqui não se ca-

racteriza por ser auto-referida como nas condutas

de risco típicas29, o que ocorre é que o contendor

ou oponente em potencial parece também não con-

sistir no objetivo da ação, mas tão somente no ob-jeto, espécie de anteparo que simplesmente veicula

ao mesmo tempo uma negação do coletivo e uma

auto-afirmação, que parecem evidenciar também

uma manipulação angustiada da morte. O engaja-

mento dos torcedores em circunstâncias semelhan-28 Segundo Peralva (1996b), citando outros autores

tais como Edgar Morin, a acentuação da angústia da mor-te consiste num fenômeno generalizado das sociedades onde

o processo de individuação foi intenso, como nas socieda-

des ocidentais.

29 A autora vem estudando, como expressão mais ra-

dical de condutas de risco, o surf ferroviário.

Liuz Henrique de Toledo

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Revista Brasileira de Educação 221

30 O que se constatou a partir da Guerra do Pacaembu

foi uma verdadeira demonização, no senso comum, dos gru-

pos de torcedores desordeiros, como se estes pudessem sercomparados a outros agrupamentos que se utilizam das ações

transgressoras e violentas como um meio para atingir obje-tivos pré-determinados.

tes às descritas acima em grande parte é voluntá-

rio (e solitário), nem sancionado nem coibido pe-las coletividades torcedoras, fragilizadas que estão

num contexto de repressão e despolitização de seus

quadros. O apelo a um projeto de torcida, tão va-

lorizado em determinados momentos por inúmerosdaqueles organizados, parece não mais estimular emobilizar os jovens sócios que buscam, nessas mes-

mas formas de organização, uma via mais segura

(dada até mesmo pelo próprio anonimato da mul-

tidão) de aparição espetacular no domínio público.

O que pode acarretar em efeitos até mais perversosde atomização e desregulação ainda maior de tais

condutas intolerantes nos estádios.

Saímos, então, do terreno propriamente instru-

mental do uso da violência, ou seja, aquele que atri-bui uma dada racionalidade à ação30 (a violência

como um meio consciente para se atingir um deter-minado fim, como um roubo, um sequestro, qual-

quer ação terrorista ou mesmo uma ação policial

mais ostensiva ante algum delito por exemplo), para

ingressar num âmbito mais subjetivo (e porque não

dizer movediço) de sua dimensão. Neste momento

as análises igualmente instrumentais perdem em mui-to seu valor heurístico.

Estamos diante, portanto, de fenômenos intri-gantes e que ainda não foram suficientemente es-

clarecidos nas análises. As ações transgressoras en-

tre torcedores relatadas aqui, e me parece pouco

razoável explicá-las como sendo, exclusivamente,demandas conscientemente organizadas por coleti-

vidades torcedoras, indicam um processo, senão de

esgotamento, ao menos de impasses e crises na for-

mação de identidades coletivas, sobretudo entre os

segmentos jovens, errantes viscondes habitantes dosgrandes centros urbanos.

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222 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

Em entrevista concedida à Revista Brasileirade Educação em setembro de 1996, durante breve

estada no Brasil, o sociólogo François Dubet reflete

sobre a sua experiência de um ano como professor

de história e geografia em um colégio da periferia

de Bordeaux, França. Conhecido por suas pesquisassobre a juventude marginalizada na França, Fran-

çois Dubet quis vivenciar, diretamente como profes-

sor, os dilemas da escola francesa contemporânea.François Dubet é pesquisador do Centre d’Ana-

lyse et d’Intervention Sociologiques (CNRS - École

des Hautes Études en Sciences Sociales), professortitular e chefe do departamento de sociologia da

Universidade de Bordeaux II e membro senior do

Institute Universitaire de France. É autor de mais

de uma dezena de livros, entre os quais: La galère:

 jeunes en survie. Paris: Fayard, 1987; Les lycéens.

Paris: Seuil, 1991; Sociologie de l’experience. Paris:Seuil, 1994 (Edição portuguesa: Lisboa, Instituto

Piaget, 1997) e A l’école. (com Danilo Martucelli)

Paris: Seuil, 1966.

Por quê, enquanto pesquisador, você escolheu

lecionar por um ano em um colégio?

Eu quis ensinar durante um ano por duas ra-

zões um pouco diferentes.

A primeira é que nos meus encontros, coleti-vos ou individuais, com professores, eu tinha a im-

pressão de que eles davam descrições exagerada-

mente difíceis da relação pedagógica. Eles insistiam

muito sobre as dificuldades da profissão, a impos-

sibilidade de trabalhar, a queda de nível dos alunos,etc. E eu me perguntava se não era um tipo de en-

cenação um pouco dramática do seu trabalho.

Espaço Aberto

Quando o sociólogo quer saber o que é ser professorEntrevista com François Dubet

Entrevista concedida à 

Angelina Teixeira Peralva Marilia Pontes Sposito Universidade de São Paulo

Tradução de Ines Rosa Bueno 

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Revista Brasileira de Educação 223

A segunda razão é que, durante uma interven-

ção sociológica com um grupo de professores, en-

contrei duas professoras com uma resistência muitogrande ao tipo de análise que eu propunha. Elas dei-

xaram o grupo. Uma delas escreveu uma carta em

que me criticava particularmente por não ter lecio-nado, de ser um “intelectual”, de ter uma imagem

abstrata dos problemas. Foi um pouco por desafioque eu quis dar aulas para ver do que se tratava.

Devo dizer que esta experiência não era nada

central para mim já que não era o coração do meu

trabalho de pesquisa; nunca imaginei seriamente

escrever um livro sobre a minha experiência de pro-

fessor. Assumi uma classe de cinquième, 2º ginasial(que começa após os cinco anos de escola elemen-

tar), com crianças de 13/14 anos, em um colégiopopular, bastante difícil em que o nível dos alunos

é baixo e dei aulas durante um ano. Portanto, da

volta às aulas em setembro até o mês de junho, qua-tro horas por semana, ao lado de minhas ativida-

des de acadêmico, de chefe de departamento, me

esforcei para ser um professor razoável. Ensinei his-

tória e geografia já que são disciplinas que me in-

teressavam e que não requeriam uma formação es-pecífica como o inglês ou as matemáticas, pelo me-

nos no nível escolar em que eu trabalhava.Podemos dizer muitas coisas sobre esta expe-

riência.

Logo, me dei conta de que a “observação par-

ticipante” era um absurdo. Durante duas semanas,

tentei ficar observando, isto é, ver a mim mesmodando aula. Mas após duas semanas, estava com-

pletamente envolvido com o meu papel e eu não era

de maneira algum um sociológo, embora tivesse me

esforçado para manter um diário de umas cinquenta

páginas no qual redigi minhas impressões. Entretan-to, não acredito que se possa fazer pesquisa se co-

locando no lugar dos atores; eu acho que é um sen-

timentalismo sociológico que não é sério ou que

supõe muitas outras qualidades diferentes das mi-

nhas. Contudo, eu fiz este trabalho em boas con-dições pois fui muito bem acolhido pela grande

maioria dos professores que ficaram bastante sen-

sibilizados pelo fato de eu ir dar aulas e tive real-

mente muito apoio, muita simpatia (...) Aliás, não

é preciso esconder que o fato de ser um homem no

meio de mulheres pode também ajudar. Era um cli-ma bastante agradável.

A minha primeira surpresa, e que é fundamen-

tal, corresponde ao que os professores dizem nassuas entrevistas. Os alunos não estão “naturalmen-

te” dispostos a fazer o papel de aluno. Dito de ou-

tra forma, para começar, a situação escolar é defi-nida pelos alunos como uma situação, não de hos-

tilidade, mas de resistência ao professor. Isto signi-

fica que eles não escutam e nem trabalham espon-

tâneamente, eles se aborrecem ou fazem outra coi-

sa. Lá, na primeira aula, os alunos me testaram, elesqueriam saber o que eu valia. Começaram então a

conversar, a rir (...) Um aluno, um menino que es-tava no fundo da sala, fazia tanto barulho que eu

pedi para ele vir se sentar na frente. Ele se recusou.

Fui buscá-lo, o levantei e o trouxe para frente. Elegritava: “Ele vai quebrar meu ombro!” Bom, final-

mente, depois de dez minutos, houve um contato

(...) fiquei muito contente que o menino tivesse 13

anos, pois se tivesse pego uma classe de troisième

(3º ginasial) e que o menino tivesse 1,80 m e pesasse75 kilos, eu estaria com problemas. Ou se eu fosse

uma jovem professora de 22 anos, não sei comoteria reagido.

A minha segunda surpresa: é preciso ocupar

constantemente os alunos.Não são alunos capazes

de fingir que estão ouvindo, sonhando com outracoisa e não fazer barulho. Se você não os ocupa com

alguma coisa, eles falam. É extremamente cansati-

vo dar a aula já que é necessário a toda hora dar

tarefas, seduzir, ameaçar, falar (...) Por exemplo,

quando a gente fala “peguem os seus cadernos”, sãocinco minutos de bagunça porque eles vão deixar

cair suas pastas, alguns terão esquecido seus cader-

nos, outros não terão lápis. Aprendi que para uma

aula que dura uma hora, só se aproveitam uns vin-

te minutos, o resto do tempo serve para “botar or-dem”, para dar orientações. Tive muitas dificulda-

des. Por exemplo, não sabia como contar histórias

e fazer com que os alunos escrevessem ao mesmo

tempo. Se eu contasse a história de Roland e de

Espaço Aberto

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224 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

Carlos Magno, os alunos me escutavam como se eu

contasse um conto de fadas e não escreviam nada.

E quando escreviam, obviamente, não entendiamnada do que eu dizia, eles perguntavam se era para

escrever com caneta azul, vermelha ou sublinhar (...)

É extremamente difícil e eu tive uma grande agita-ção na sala, muito penosa, que durou mais ou menos

dois meses. Durante estas dificuldades, falei dissocom os meus colegas. Disse a meus colegas que eles

bagunçavam e eu estava tão mais surpreso com a

bagunça porque, tendo sido assistente muito jovem

ainda, nunca tive a menor sombra de um problema

desta natureza. Porém lá, de cara, eu não contro-lava nada e os meus colegas apreciaram talvez que

eu tivesse tido problemas, já que alguns me ofere-

ceram um livro: Comment enseigner sans stress? (co-mo ensinar sem estresse?) Talvez eu pudesse dizer

que sentia dificuldades porque meu status social mepermitia dizê-lo sem ter o sentimento de vergonha.

Pode ser mais duro para um professor iniciante.

Você disse que fez um “golpe de estado”.

Depois de dois meses, eu estava um pouco de-

sesperado: eu não conseguia nunca dar a aula. E en-

tão um dia, fiz um “golpe de estado” na sala. Dis-

se aos alunos: de hoje em diante não quero maisouvir ninguém falar, não quero mais ouvir ninguém

rir, não quero mais agitação. Aliás, não era bagun-

ça, era agitação. Eu disse: vocês vão colocar as suas

cadernetas de correspondência, a caderneta em que

se colocam as punições, no canto da mesa, e o pri-meiro que falar, eu escrevo a seus pais, e ele terá

duas horas de castigo. E durante uma semana foi o

terror, eu puni. De fato, facilitou a minha vida e

tenho a impressão de que esta “crise”deu aos alu-

nos um sentimento de segurança, já que eles sabiamque havia regras, eles sabiam que nem tudo era per-

mitido. Depois, as relações se tornaram bastante

boas com os alunos e bastante afetuosas. É preciso

reter desta história extremamente banal que o fato

de ser sociológo pode permitir explicar o que acon-tece, mas não de antecipar melhor que a maioria das

pessoas.

Como acaba se construindo uma relação com

os alunos?

Sem me dar muito conta disso, os alunos eram

sensíveis ao fato de eu me interessar por eles comopessoas, isto significa que eu falo com eles, que eu

me lembro de suas notas, de suas histórias (...) Nofim do ano, eles gostavam muito de mim. Me de-

ram presentes. Fizeram uma festa quando eu fui

embora. Enfim, eles me suportavam. E eu também.Era uma relação muito complicada já que era ao

mesmo tempo afetivo, muito disciplinar e muito

rígido. Com os alunos, digamos que eu tive o sen-

timento que começava a aprender pouco a pouco

a dar aulas.

Quando olho para os meus colegas, havia mui-

tos deles que eram muito fortes, que davam boasaulas. Havia outros que visivelmente, não conse-

guiam. O que mais me chamou a atenção, foi o cli-

ma de receio para com os alunos na sala dos profes-

sores. Isto quer dizer que alguns professores tinhammedo antes de entrar na sala. Não era um colégio

violento. Não havia agressões, não havia insultos

mas era obviamente uma provação; como fazê-los

trabalhar, como fazer com que ouçam, como fazer

com que não façam barulho? Esta é a dificuldade,

não é a violencia.Mas numa sala de professores, nunca se fala

disso, todo o mundo parece ser um bom professor.

Mesmo que a gente visse colegas chorando, ou

outros que nunca vinham, que passavam pelo cor-

redor. No final das contas, achei que a descrição queos professores entrevistados faziam na pesquisa era

bastante correta. Realmente, a relação escolar é a

 priori desregulada. Cada vez que se entra na sala,

é preciso reconstruir a relação: com este tipo de

alunos, ela nunca se torna rotina. É cansativa. Cadavez, é preciso lembrar as regras do jogo; cada vez,

é preciso reinteressá-los, cada vez, é preciso amea-

çar, cada vez, é preciso recompensar (...) A gente

tem o sentimento de que os alunos não querem jo-

gar o jogo e é muito difícil porque significa subtemerà prova suas personalidades. Se eu falo de charme,

de sedução, não é por narcisismo, é de fato o que a

gente realmente experimenta. É uma experiência

Espaço Aberto

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Revista Brasileira de Educação 225

muito positiva quando funciona, a gente fica con-

tente; quando não funciona, a gente se desespera.

Eu vivi muito dificilmente este ano, aliás, no Natalqueria parar.

O que este “golpe de estado” mudou funda-mentalmente?

Para mim foi muito negativo porque a gente

se sente reduzido a expedientes. Fiz reinar o terror

durante algumas semanas e depois relaxei. Mas eles

sabiam que todos os meses, eu teria recomeçado. Nofundo eu estava persuadido, como professor univer-

sitário, que a gente podia jogar com a sedução in-

telectual. Falando bem e sabendo mais coisas do que

eles, eu achava que podia seduzí-los intelectualmen-

te. Nenhum efeito. Foi preciso mobilizar muitosregistros, sedução pessoal, ameaças, disciplina, que

eu desconhecia completamente, que nunca havia

usado na minha vida universitária. Mas é uma his-

tória fracamente controlada. Isto significa que a

gente não consegue observar e dar aula ao mesmotempo. A gente dá aula e só faz isso. Depois de al-

guns anos, talvez se tenha experiência suficiente

para ver as coisas e fazê-las ao mesmo tempo mas,

neste ano, me comportei como um iniciante. O “gol-

pe de estado” é um fracasso pedagógico e moral,mas permitiu fixar uma ordem bastante estúpida a

partir da qual a gente pode tentar controlar uma

relação pouco regulada. De fato, no colégio, é pre-

ciso trabalhar na transformação dos adolescentes

em alunos quando eles não têm vontade de se tor-nar alunos.

Podemos fazer outras observações muito ba-

nais sobre a heterogeneidade das classes. Estamos

lidando com alunos extraordinariamente diferentes

em termos de performances escolares. Somos obri-

gados a dar aula a um aluno teórico, um aluno mé-dio que não existe, tendo de certa forma o sentimen-

to de que vamos deixar um pouco de lado os bons

alunos, porque existem, e que vamos deixar de lado

os maus alunos.

Outra coisa que me chamou a atenção, são

alunos que, depois de dois meses, “entraram emgreve”, alunos que nada fizeram. Tiravam zero em

todas as provas, não faziam nada, eram muito gentis

mas tinham decidido que não trabalhariam. É com-

pletamente desesperador: no início eu os puni e nofim não os punia mais, já não adiantava, tê-los-ia

punido todos os dias.

Os alunos são adolescentes completamente to-mados pelos seus problemas de adolescentes e a

comunidade dos alunos é “por natureza” hostil ao

mundo dos adultos, hostil aos professores. Eles po-dem encontrar um professor simpático, eles podem

encontrar um professor interessante, mas de qual-

quer forma, eles não entram completamente no jo-

go. Eles permanecem nos seus problemas de ado-

lescência, de amor, de amizade e o professor ficasempre um pouco frustrado porque, mesmo se os

alunos queiram, individualmente, estabelecer rela-ções com os professores, coletivamente, eles não

querem tê-las.

Eis um pouco do que eu observei e devo dizer

que isto correspondia exatamente ao que diziam osprofessores nas entrevistas individuais ou coletivas.

Eles não exageram. É realmente uma situação em

que a gente tem grandes dificuldades para conquis-

tar os alunos. É um trabalho que se recomeça a cada

dia embora, repito, não se trate de alunos malva-

dos, agressivos, racistas, mas antes alunos fracos emgeral.

O que é que você achou dos programas es-

colares?

É uma das coisas mais espantosas. O progra-

ma é feito para um aluno que não existe. Digamos

mais simplesmente que é feito para um aluno ex-tremamente inteligente. É feito para um aluno cujo

pai e cuja mãe são pelo menos professores de filo-

sofia e de história. É feito para uma turma que tra-

balha incessantemente. O programa é de uma am-

bição considerável e não se pode realizá-lo materi-almente. O programa é também uma grande abs-

tração, até em história e em geografia. Por exem-

plo, não há cronologia, é uma história de sociólo-

gos, não é uma história que conta histórias. Por isto,

fiz como todos os meus colegas, daí a metade doprograma e contei a história, mas nada do que pe-

Espaço Aberto

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226 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

diram que eu fizesse. Até porque as pessoas acham

que os alunos que cumpriram este programa adqui-

riram completamente os dos anos anteriores.

Procura-se então outros meios, mas é muitodemorado. Eu os levei para ver um filme sobre a

Idade Média na televisão: O Nome da Rosa. Assistirao filme levou quatro horas porque era preciso ex-

plicar as palavras: a palavra inquisição, a palavra

ordem religiosa (...) Eu diria que este sentimento deabsurdo da situação pedagógica é reforçado pelo

fato dos programas se dirigirem para alunos abs-

tratos, alunos que não existem, enquanto que, quan-

do eu estava em cinquième (segundo ginasial), com

a mesma idade deles, tinha programas infantis, pro-gramas muitos simples. A gente experimenta um

descompasso entre os programas e os alunos.Isto faz com que o trabalho do professor seja

muito cansativo com o tempo e entretanto, muitos

professores o fazem muito bem, apesar de tudo.

Mas muitos jogam a toalha. Isto significa que elesfingem dar aula para alunos que fingem ouvir. En-

tretanto, os alunos parecem sensíveis ao fato de que

a gente quer vê-los bem sucedidos.

Gostaria de apontar duas outras dificuldades.

A primeira tem a ver com a extrema brutalidade da

seleção. Os conselhos de classe são cansativos por-que na verdade, a gente decide o destino dos alu-

nos em alguns minutos. A segunda coisa é a manu-

tenção de uma ficção sobre os alunos. De certa for-

ma, por estarmos numa sociedade democrática, a

gente considera que todos os alunos têm o mesmovalor, que eles são iguais. Ao mesmo tempo, eles

têm obviamente performances desiguais. Porém, a

gente sempre lhes explica que se eles não obtiverem

bons resultados é porque não trabalham bastante,

e na realidade, isso nem sempre é verdadeiro. É poreles terem dificuldades de outra ordem, porque isto

não interessa para eles (...) Nunca se lhes dá real-

mente os meios de compreender o que lhes aconte-

ce. Só se diz para eles: se você trabalhar mais, terá

melhores resultados. Mas eles sabem que isto nemsempre é verdadeiro; há, então, um tipo de ficção

no julgamento escolar que faz com que nunca se

permita aos alunos suas própria explicações ou que

tomem realmente em mãos as suas próprias dificul-

dades. É o preço de um sistema que é ao mesmo

tempo democrático, quer dizer, um sistema em quetodo mundo é igual e meritocrático, isto é, que or-

dena os valores.

Assim, muitos alunos são extremamente infe-lizes na escola, sentem-se humilhados, magoados.

Eu tenho a imagem de uma relação bastante dura

que é compensada por toda a sua vida juvenil, porsuas brincadeiras, por seus amigos. Mas para mui-

tos alunos, a situação escolar não tem nenhum sen-

tido. E é portanto vivida como uma pura violência,

não uma violência simbólica de classe como diz Bour-

dieu, mas uma violência individual pedagógica, derelacional.

Esta desregulação da relação pedagógica, será

 preciso concebê-la como uma evolução geral da

escola ou antes como um problema de métodos

 pedagógicos?

Não sou pedagogo mas não acredito, como a

maioria dos meus colegas, em uma pedagogia mi-lagrosa. Uma pedagogia não é uma pura ferramenta

na medida em que não há corte entre a pedagogia

e a personalidade. A pedagogia é uma técnica da

operacionalização da personalidade. Quando se pe-de a um professor para mudar o seu método, nãose pede apenas que ele mude de técnica, pede-se para

que ele próprio mude. E, no fundo, a gente vê mui-

to bem o tipo de sabedoria professoral, que não é

um absurdo, quando os professores dizem: “Exis-

tem métodos que me servem e métodos que não meservem.” A gente vê professores que adotam méto-

dos tradicionais que funcionam muito bem e outros

que têm métodos ativos que funcionam. Mas a gen-

te vê também professores que se obrigam a aplicar

métodos que não são os seus e não dá certo. E aliás,os alunos são muito sensíveis a este tipo de adequa-

ção da personalidade do professor e de seu estilo

pedagógico. Temos então interesse em deixar uma

multiplicidade de métodos possíveis.

Para o colégio, o problema é múltiplo. É ob-

viamente preciso que a situação escolar tenha sen-tido para os alunos o que não é exatamente o caso

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Revista Brasileira de Educação 227

nos estabelecimentos populares já que os alunos que

lá estão não são mais os antigos bons alunos oriun-

dos das boas famílias para quem a escola é umacoisa normal. Portanto, a escola não pode mais es-

perar que o sentido da situação escolar venha de

fora, das famílias cujo julgamento os professoresfazem aliás muitas vezes. É preciso portanto rever

a oferta escolar. Seria preciso rever os programas eas ambições de um modo que os alunos não sejam

colocados de entrada em situações de fracasso. Para

falar mais simplesmente, eu acho que eles devem

aprender menos coisas, mas é preciso que eles as

aprendam. Claude Allègre, que dirigiu durante mui-to tempo o ensino superior na França, dizia: é pre-

ciso que os alunos de colégio aprendam poucas coi-

sas mas que aprendam coisas difíceis e que as sai-bam. Precisamos ter tempo para ter certeza que eles

as conheçam pois o que os faz progredir é ter su-perado a dificuldade. Porém, ao invés disso, en-

sina-se cada vez mais coisas sem nunca ter o tem-

po de verificar se são assimiladas. Então, os alunos

são definidos por lacunas. Não se pode manter pro-

gramas feitos para uma pequena elite da burguesia;tanto faz para a elite da burguesia, ela perderá um

pouco de tempo no colégio, isto não é muito grave.

Depois, seria preciso ver, no caso do colégio,o lugar da adolescência pois hoje em dia o colégio

é definido por um tipo de guerra fria entre os ado-

lescentes e a escola. Não acredito de jeito nenhumque a pedagogia consistiria em reconciliar os alu-

nos e os professores, em torná-los amigos. Mas, me

parece que deveria ter regras de vida em grupo par-

tilhadas, isto é, que o mundo do colégio seja um

mundo em que haja uma cidadania escolar. Have-ria em termos de educação para a cidadania, coi-

sas fundamentais a serem feitas, ou seja, verdadei-

ros contratos de vida comum entre os professores

e os alunos mas que suporiam obrigações para es-

tes alunos, obviamente, mas também obrigaçõespara os professores. Por exemplo, os alunos têm o

dever de entregar os trabalhos na data prevista, mas

é preciso que os professores tenham o dever de en-

tregar as correções na data prevista. Por exemplo,

os alunos têm o dever de não xingar os professo-

Espaço Aberto

res: a recíproca também tem de existir. Seria neces-

sário refundar um trabalho educativo sobre o apren-dizado de um tipo de democracia escolar. A pala-

vra democracia quer dizer que as regras de vida em

grupo são regras definidas, aplicadas e recíprocas.

Porém, na realidade, há um regulamento interiornos colégios, que se aplica vagamente (...).

Finalmente, creio que a situação escolar se esva-zia de todo seu sentido nos meios populares já que

os alunos não acreditam mais que os diplomas vão

lhes permitir abandonar sua origem social; muitos

alunos têm a impressão que a escola não serve para

nada. É claro que este problema não se limita so-mente á escola, ele tem sobretudo a ver com a si-

tuação do mercado de trabalho. A gente poderia

imaginar desenvolver aprendizados que pareçammais úteis.

Então, eu acho que há coisas a serem feitas no

colégio, pelo menos coisas que deveriam permitirtornar a relação pedagógica muito menos tensa,

muito menos difícil do que ela é. Hoje em dia, as

dificuldades do sistema se tornam os problemas psi-

cológicos e pessoais dos indivíduos; na medida em

que as contradições do sistema não são administra-

das e explicitadas politicamente, as pessoas as vi-

vem como problemas individuais.

Quando você fala de democracia escolar, de

cidadania escolar, será que você pode falar com

mais precisão sobre estas idéias? Qual é o lugar de

 produção destas regras na medida em que vocêfala de enfraquecimento, de desaparecimento das

instituições?

No colégio, é preciso recriar um quadro nor-

mativo, tenho convicção disto. Mas acredito que

este quadro deva ser criado de um modo democrá-

tico, ou seja, a partir de uma definição dos direitose dos deveres. Porém, hoje em dia na França, aqui-

lo que se chama “retomada nas mãos” é a defini-

ção do poder mas não a definição do direito. E isto

por uma razão extremamente simples, é que esse

quadro normativo deveria envolver tanto alunoscomo professores, é isso que me parece importan-

te. Mas o que os professores pedem muitas vezes,

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228 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

é um quadro disciplinar que os proteja sem obrigá-

los a cooperar. Na França, você sabe isto tanto quan-to eu, cada professor, uma vez na sala, é extrema-

mente autônomo. Os alunos estão diante de rela-

ções estilhaçadas a partir das quais tentam se virar,

agir, mas eles não sob um quadro normativo. É pre-ciso oferecer um quadro, importa dar aos alunos osmeios de criar este quadro.

Atualmente, as diferenças entre os estabeleci-

mentos são muito importantes. A gente vê muito

bem, por exemplo, que certos colégios que deveriam

conviver com a violência não a conhecem, e outros,

a priori protegidos, são violentos. Dito de outraforma, a violência escolar não é só produto da vio-

lência social. Há colégios que puderam criar siste-

mas, que têm a capacidade de criar civilização, eoutros não. Por exemplo, a maioria dos casos de

violência contra professores, são quase sempre res-postas à violência sofrida por alunos, violência real,

violência simbólica, pouco importa. O quadro nor-

mativo cria, quando existe, ao mesmo tempo, um

sistema disciplinar rígido, e um modo de expressão

possível dos alunos. Quando se trata de ordem e

liberdade, ao mesmo tempo, da disciplina e da de-mocracia. Quando é só disciplina, acaba explodindo

ou, então, quando não há disciplina, é a rua queentra no colégio. Mas isto sugere algumas mudan-

ças na gestão do sistema. Já que equipes coerentes

precisam ser construidas, seria necessário que osprofessores sejam cooptados pelas equipes. Como

criar uma vida em comum em um colégio, quando

os professores são nomeados pelo computador, quan-

do eles não escolheram ir para lá? A formação de

um quadro educativo supõe que se mude profun-damente um certo número de regras de funciona-

mento, e a prova que isto é possivel, é que há colé-

gios que o fazem.

O problema na França é que para mudar um

pequeno aspecto do funcionamento, é preciso to-

car no conjunto do sistema. É a tradição centrali-zadora, que já teve grandes virtudes. Sabemos muito

bem que os professores precisariam escolher o seu

estabelecimento, ser cooptados por seu estabeleci-

mento para que haja uma coordenação pedagógi-

ca. Mas mudar o modo de nomeação dos profes-

sores é uma revolução nacional. Porém, como te-mos o sentimento de não poder mudar as regras,

criamos múltiplos dispositivos novos. Muitas vezes,

sou hostil a esses dispositivos novos, eu o digo cla-

ramente. Sou, por exemplo, contra o dispositivo deajuda nos deveres. Sou contra a idéia de que vamosresolver os problemas escolares, escolarizando mais

alunos ainda que não aprendem durante a aula. O

que os alunos não aprenderam durante sete horas

de matemática, não o aprenderão em dez horas. Sou

totalmente hostil ao sistema dos mediadores. Co-loca-se pessoas cuja profissão é falar com as famí-

lias. Não, é preciso que os professores aprendam a

falar com as famílias como elas são e não como elas

deveriam ser, para que as famílias não tenham medode ir ao colégio.

Não se trata de dizer: criemos uma escola ideal,criemos uma escola justa, criemos uma escola de-

mocrática. Trata-se de criar as condições para dar

aulas normalmente o que supõe, efetivamente, um

certo número de mudanças, de programas, de mo-

dos de funcionamento que não são em si conside-

ráveis mas que pedem mudanças de hábitos.

Como é que se pode levar em conta a sociabi-lidade dos alunos? Será que é preciso se inspirar nos

modelos inglês ou americano? Mais convivência,

será possível?

Até um certo ponto, é preciso que o colégio

aceite que haja uma vida adolescente na escola e que

não a considere como desvio. É preciso dar um qua-dro a esta vida adolescente, é preciso que os alunos

façam outras coisas que não seja assistir às aulas no

colégio, mas eles devem fazê-lo num quadro norma-

tivo, com regras que os eduquem. Será que precisa-

mos adotar o modelo inglês ou americano? Aí eutomaria mais cuidado. Quando se compara o siste-

ma escolar francês, tanto em termos de performance

quanto de problemas de conduta, violência (...), no

conjunto o sistema escolar francês funciona melhor.

Além disso, a escola é uma construção histórica longafortemente associada à cultura de uma sociedade,

não é uma tecnologia que se pode importar.

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Revista Brasileira de Educação 229

Não acho que a escola deva se tornar um clu-

be de vida juvenil. Mas é verdade que o sistemaescolar francês, no momento, está extremamente

rígida e precisaria ser agilizado. Mas, eu repito, em

termos de performances globais, é preciso muito

cuidado.

Será que a escola deveria ser socializadora?

Sim, mas ela o é de fato. Ela o é, inclusive quan-

do não funciona. Mas não acredito que ela deva sersocializadora da maneira como muitos entendem na

França hoje em dia: conservadora, volta da moral,

volta da disciplina, volta dos princípios (...) Eu acho

que ela deve ser socializadora de um modo muito

mais democrático, muito mais aberto. O debate não

é entre permissividade e autoridade, eu acho que istoé um falso debate. É preciso ter ao mesmo tempo

autoridade e liberdade.

Nos anos 80, o colégio das Minguettes era um

colégio violento, catastrófico. Chegou um diretor

que disse: Bom vamos fazer duas coisas simultâ-neamente, insisto, simultâneamente. Primeiro, va-

mos estabelecer uma disciplina mecânica, “estúpi-

da”: quem brigar será expulso, quem xingar um

professor será expulso, quem roubar será expulso,

portanto sem negociação. Segundo, e ao mesmotempo, qualquer aluno que brigar, que insultar pro-fessor (...) sabemos que ele apresenta alguma difi-

culdade e ele terá a possibilidade de falar a respei-

to com os adultos. Mas isto não impede que ele seja

expulso, ele seja punido. Os alunos se deram con-

ta de que nem tudo era possível e portanto a taxade violência baixou sendo que eles podiam também

ser ouvidos e ajudados. Por exemplo, o aluno que

xinga o professor é punido, mas ele pode dizer por-

que ele xingou o professor, e o aluno tem a sensa-

ção de que seu problema será levado em conta. Osalunos pedem para que haja um pouco de recipro-

cidade, eles querem aceitar um certo número de coi-

sas já que eles não têm escolha mas é preciso que a

regra seja justa e envolva a todos, pois não faria

sentido se os adultos fizerem o que eles proibem queas crianças façam. Este tipo de atitude supõe mu-

danças consideráveis no sistema, supõe que os di-

retores tenham poder, que este poder seja contro-

lado, supõe que os sindicatos não defendam siste-maticamente todo colega (...).

Como produzir esta mudança? O que o minis-

tério pode fazer?Eu acho que esta mudança supõe menos dire-

trizes ministeriais do que mudanças do modo de

orgranização. Por exemplo, se a gente quiser a au-

tonomia dos estabelecimentos, isto é dos estabele-cimentos capazes de ter políticas, é obviamente pre-

ciso que os professores sejam cooptados num esta-

belecimento. Quando é nomeado por um com-

putador, o professor diz, eu venho, faço o trabalho,

o resto não é problema meu. Isto não requer dire-

trizes, requer regras, requer por exemplo que osprofessores sejam recompensados. Porém, um pro-

fessor tem uma carreira “biológica”, quer dizer que

não recebe mais quando ele trabalha mais ou me-

lhor, ele ganha mais à medida que fica velho. Qualé a consequência deste mecanismo? É que depois de

algum tempo, os professores entendem que seu in-

teresse é se engajar menos. É claro, não digo que é

preciso punir os professores, mas que o professor

que dedica muito tempo organizando uma viagem

para a Inglaterra, que dedica muito tempo para fa-zer teatro, é preciso reconhecer isto e pagá-lo.

São mudanças que não parecem importantes

mas que são consideráveis. Mas as diretrizes que

dizem: é preciso se comportar desta maneira com

os alunos, são ineficazes. Um professor faz o que

quer na sua sala. É portanto necessário encontrarmodos de organização que farão com que o traba-

lho seja coordenado. Diretrizes, os ministérios as

promulgam diariamente, e são tão ótimas que não

têm efeitos reais.

Houve nos últimos anos grandes mudançasna formação dos professores. O que você pensa

sobre elas?

Os IUFM são uma mudança considerável por-

que na França, o sistema era o seguinte: formava-

se pedagogicamente os mestres da escola elementar

e não se formava os professores de colégio. Os pro-

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230 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

fessores do secundário eram apenas definidos pelo

nível de conhecimento, selecionados por concursos.Agora todos seguem uma formação pedagógica nos

IUFM. Não se tem certeza se os IUFM funcionam

sempre bem, mas o princípio de uma formação dos

professores é um bom princípio.

Você pode nos dizer se há questões cruciais no

quadro da formação?

Ao lado da didática, seria necessário um pou-co de psicologia dos adolescentes, um pouco mais

de sociologia. Quanto ao resto, acho que é preciso

uma formação prática, ou seja estágios, que os pro-

fessores sejam guiados, orientados por pessoas que

tenham experiência, por pessoas que ajudem, que

apoiem (...) Porém, a formação é muito mais cen-trada sobre os princípios pedagógicos, sobre uma

ideologia pedagógica. A profissão de docente é uma

prática, ela requer um aprendizado de práticas, de

experiências, de mestres de estágio, de ajuda nosmomentos de dificuldades (...) Mas o ensino na Fran-

ça é muito normativo porque existe uma convicção

muito forte entre os professores: há uma solução

pedagógica para todos os problemas. É preciso pre-

parar as pessoas para todas as dificuldades. Deve-

ria haver cursos sobre a violência porque a gentedeveria aprender a responder a isto como se aprende

a ensinar as matemáticas: é um absurdo. Esta for-

mação deveria ser mais ágil, muito mais longa e

muito menos ideológica.

Você tem uma imagem muito interessante, re-

lativamente harmoniosa, da escola primária que parece ter evoluido no bom sentido.

Em primeiro lugar, os mestres de escola são

claramente melhor formados por uma razão mui-

to simples, é que ensinar a ler para crianças é uma

profissão particular. Eu sei ler e escrever, sou inca-

paz de ensinar crianças a ler. Sendo que se me lar-garem amanhã em uma classe do último ano do

colégio, se fizer um pequeno esforço, posso dar uma

aula de francês, posso dar uma aula de matemáti-

ca, posso dar uma aula de história (...) Não digo que

seria uma boa aula, mas sou intelectualmente ca-

paz de fazê-lo. Há um grande êxito na França, por-

que pouco a pouco os mestres da escola elementaraprenderam a falar tanto para alunos como para

crianças. Durante muito tempo os mestres france-

ses só falaram com alunos. Ao longo dos anos, de-

senvolveu-se uma sensibilidade para a infância, paraa psicologia. A terceira coisa que joga a favor daescola primária tem a ver com o romantismo da

infância. Enquanto é possível se comportar de for-

ma relativamente brutal em relação aos adolescen-

tes, com as crianças é diferente. A presença dos pais

é muito mais forte também. E último lugar,apesarde tudo, a lógica seletiva é muito menos forte na

escola primária, portanto aproveita-se o tempo, as

pessoas são menos obcecada pelo nível, pela per-

formance, peloos exames de fim de ano.São estas razões que me fazem pensar que é

preciso “primarizar” o colégio, já que de qualquerforma todo o mundo tem acesso a ele. É preciso

continuar uma pedagogia da repetição enquanto

que o colégio retomou o modelo do colégio “bur-

guês” da pedagogia de acumulação. Ensina-se um

programa do primeiro ginásio, ele é adquirido, a

partir daí faz-se o programa do segundo, ele é ad-quirido, a partie daí faz-se o do terceiro (...). Na

verdade, sobretudo são lacunas que se acumulam.E quando se fazem testes sobre as performances em

matemática, a gente se dá conta de que a grande

causa de fraqueza em matemática é que as criançasnão entendem o problema. O que significa que eles

não sabem ler o suficiente para entender o problema.

Da mesma forma, é preciso sublinhar a gran-

de qualidade da escola maternal que muito bem

administrou a idéia de uma socialização infantil e

de um pré-aprendizado escolar. Se aprende coisase ainda se permanece na infância. É aliás, eu acho,

a única escola em que se requer os mesmosdiplomas

para ensinar para crianças de dois anos e para crian-

ças de quinze anos. Não se confia crianças de dois

anos a guardas, confia-se elas a gente qualificada,tão qualificada quanto qualquer outro professor.

Diz-se que o aprendizado dos alunos de colé-

 gio tem a ver com seu apêgo aos professores.

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Revista Brasileira de Educação 231

Acho que é verdade por três razões. A primeira

é que, psicologicamente, os alunos de colégio nãoestão em condições de distinguir o interesse pela

disciplina do interesse por aquele que ensina a dis-

ciplina. É preciso uma forte maturidade intelectual

para distinguir o interesse pela disciplina do inte-resse por quem a ensina. A segunda razão é que estaobservação é confirmada pelos alunos cujas notas

variam sensivelmente em função dos professores, e

isto na mesma disciplina. A docimologia confirma

este julgamento. A terceira razão é mais científica.

Um dos colegas de Bordeaux, Georges Felouzis, fezum estudo sobre o efeito professor. Ele testa alunos

no começo do ano, os testa no fim do ano e mede

o aumento de suas performances. Obviamente, o

efeito professor é considerável. Isto significa que háprofessores que ensinam muitas coisas a muitos alu-nos, há professores que ensinam muitas coisas a

alguns alunos, e há professores que não ensinam

nada a nenhum aluno. Quando os alunos dizem

“depende do professor”, este tipo de medida con-

firma sua impressão.

O problema é que não se sabe o que determi-

na o efeito professor. O método pedagógico esco-lhido não faz a diferença. Os homens não são mais

eficientes que as mulheres, os antigos não mais queos novos. Há velhos professores totalmente inefi-

cientes e pessoas que começam eficientes logo na

primeira semana. A ideologia do professor tambémnão tem nenhum efeito. O único elemento que pa-

rece desempenhar um papel é o efeito pigmaleão,

isto é os professores mais eficientes são em geral

aqueles que acreditam que os alunos podem progre-

dir, aqueles que têm confiança nos alunos. Os maiseficientes são também os professores que vêem os

alunos como eles são e não como eles deveriam ser.

Ou seja são os que partem do nível em que os alu-

nos estão e não aqueles que não param de medir a

diferença entre o aluno ideal e o aluno de sua sala.Mas evidentemente, nas atitudes particulares, en-

tram também orientações culturais gerais, interes-

ses sociais, tipos de recrutamento e de formação.

Não são apenas problemas psicológicos.

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Revista Brasileira de Educação 233

Resenhas

DUBET, François. La galère: 

 jeunes en survie . Paris:Fayard, 1987, 503 p.(reedição francesa porÉditions du Seuil em 1993)

isto é, um tipo antigo de

embarcação movida a vela e a remo(normalmente por escravos, o que

deu origem também, em francês ao

significado de galera comoinfortúnio, trabalho forçado,

condenação à pena de remar nestetipo de embarcação). Na gíria

francesa, a palavra deu origem ao

verbo galèrer, significando estar àderiva, viver de forma incerta, em

condições precárias, provavelmente

não tendo claro o rumo e semsuficiente visão de horizonte para ter

projetos.

Para deixar mais claro oconceito, reproduzimos dois trechos

do livro. No primeiro, o autorprocura indicar os contornos do

fenômeno social galère, indicando

que ela “resulta de uma série defatores convergentes, sem que se

possa determinar um modelo rígidode causalidade. Um jovem tem tanto

mais possibilidades de se encontrar

na galère se ele vive no meio

popular, urbano e não tradicional,em conjuntos habitacionais eperiferia, onde freqüentemente se

reúnem estes fatores. A galère não se

desenvolve onde os jovens estãoainda inseridos em redes tradicionais

de solidariedade e onde a referênciaao movimento operário é ainda

forte” (p.58).

No segundo trecho, a galère édefinida como “a expressão, nos

Através da análise da

experiência cotidiana de jovens deperiferias de grandes cidades

francesas, François Dubet faz a

leitura do fim de um mundo populare do esgotamento de um tipo de

sociedade organizada em torno da

classe operária e dos movimentossociais onde ela era protagonista. A

partir da análise das condutas dejovens pobres das grandes cidades, o

autor interpreta os principaisdesafios da sociedade industrial, sua

crise e suas mutações. Tais mutações

deram origem a um sistema socialcom contornos não muito bem

definidos, mas onde nem trabalhonem família são o centro da

socialização e onde há crescenteexclusão e forte crise dosmovimentos coletivos.

O autor é professor da

Universidade de Bordeaux II epesquisador do Centre d’analyse et 

d’intervention sociologique (CADIS),onde realizou estudo sobre

movimento operário, lutas

estudantis, colegiais, políticas sociaisurbanas e políticas destinadas aos

jovens e sobre diversos tipos de

movimentos sociais. Vários destestemas reaparecem neste livro onde, a

partir da experiência de vida dos

atores jovens no contextoconturbado das periferias urbanas,

são analisados o desenvolvimento doindividualismo, as experiências

fragmentadas, a fugacidade das

relações e a forte presença dasubjetividade.

É importante explicar o

conceito central do trabalho: galère.O autor não a define de imediato,

preferindo descrever o seu

protagonista (ou “personagemsociológico”). Assim, indica como

tipo de jovem da galère um rapaz devinte anos, com baixo nível de

escolarização, sem qualificação,

freqüentemente desempregado,realiza pequenos trabalhos para

sobreviver, sem vínculos sociaisestáveis, passa seu dia em longos

períodos de ócio nas ruas ou cafés,

possivelmente filho de pai operário

e/ou imigrante, vive em um conjuntohabitacional de periferia, onde adroga e a delinqüência não estão

ausentes. O cotidiano desse jovem é

expressão de uma experiênciacoletiva e os indivíduos que

correspondem a esta descriçãocertamente se reconhecem na

experiência da galère.

O termo galère tem o mesmosignificado que galera em português,

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234 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

Resenhas

jovens das classes populares, da

decomposição do sistema de ação dasociedade industrial, da ruptura de

um modo de integração populartradicional, do esgotamento de um

ator histórico — o movimento

operário — e, enfim, do bloqueio eda transformação de certas formas

de participação e de mobilidade”(p.167).

Nada parece mais distante do

movimento operário e das lutassociais organizadas do que as

experiências dos jovens de periferias

urbanas. O repertório desocialização e de ação destes inclui

mais apatia, droga, música,violência, e se distancia de elementos

de integração, vivência do conflito,

participação e sistema de ação.Contudo, para Dubet movimento

operário e galère são momentos deum mesmo processo social, sendo

que a segunda é a expressão, no

meio jovem, do fim do movimentooperário e da perda da centralidade

do trabalho e da família como

fatores de socialização. Uma partesignificativa dos jovens da galère é

formado por descendentes degerações de operários militantes dos

anos 1950-60, concentrados nos

bairros dos centros industriais ondea realidade do trabalho fabril e a

presença ativa do partido comunista(por isso eram chamadas banlieues

rouges), ajudavam a atribuir

significado à dominação e àsubalternidade de sua condição

social. Mas o jovens de que fala

Dubet encontraram um mundocompletamente diferente, onde,

ainda que quisessem (e esse não é ocaso), jamais poderiam seguir a

mesma trajetória de trabalho e departicipação que seus pais. Suas

formas de construção de identidade,

expressão social e de reação àdominação e à exclusão tampouco

poderiam ser as mesmas.

La galère: jeunes en survie é

um trabalho sociológico completo,

que dialoga com diversas tradiçõesteóricas e apresenta detalhada

discussão metodológica, ao analisaros resultados de um extenso trabalho

de investigação. Na primeira parte

da obra, consagrada ao quadroanalítico e conceitual, o autor

analisa o fim do mundo da classeoperária organizada, que se havia

desenvolvido no período entre as

duas guerras mundiais, a fratura domundo industrializado, os laços

sociais (regulação e solidariedade)destruídos, o vazio da socialização e

a crise da escola republicana. Em

seguida, são interpretados osresultados da pesquisa realizada com

base na metodologia de intervençãosociológica, desenvolvida pelo grupo

coordenado por Alain Touraine no

CADIS. O método, aplicado a estecaso, consistiu na formação de

diversos grupos formados porjovens, cada grupo sob a

coordenação de dois pesquisadores.

Além de reuniões de discussão entreos jovens, foram realizadas reuniões

em que estes se encontravam com

interlocutores de diversos tipos (pais,educadores, trabalhadores sociais,

políticos, sindicalistas, músicos,animadores culturais, policiais, etc).

Em tais reuniões, o objetivo era

reforçar a capacidade de expressãodos atores e produzir material que

permitisse interpretar os sentidos daação atribuídos por eles. O

fundamento da proposta

metodológica é desenvolver uma

sociologia que vai da ação aosistema.

Foram desenvolvidasatividades com grupos em 4 cidades

francesas (Orly, Sartrouville,Champigny e Clichy) e uma cidade

belga (Seraing, na periferia operária

de Liège). O estudo estabelece umaoposição entre as quatro primeiras e

a última, já que Seraing é a imagemde um meio operário organizado e

integrado, com fortes ligação à

família e ao trabalho, identidadeoperária e identidade comunitária,

enfim é o mundo da classetrabalhadora que a sociologia

classicamente interpretou em termos

de consciência de classe. O grupoformado nesta última cidade

funcionou de certa forma como um“grupo de controle” em relação aos

demais, possibilitando estabelecer

contraponto e comparações.O autor compara o contexto

de socialização e de instituições a

que estão relacionados os jovensnesses diferentes contextos: “apesar

de estarem em um universo ondeestão presentes os serviços sociais, os

jovens de Seraing falam o tempo

todo da família. Ao contrário, namalha mais frouxa da periferia (nas

demais cidades estudadas), os jovensque “galeram” falam sempre das

instituições. Assim a escola, os

serviços sociais, os estágios e osclubes de jovens aparecem como um

segundo conjunto de socialização,

distinto do primeiro, a família” (p.371).

Para os jovens dos bairrosonde a realidade operária sofreuforte transformação, a socialização

não passa mais essencialmente pelomundo do trabalho. Eles vivem de

forma acentuada um vazio de

socialização, não têm mais umaimagem positiva nem do trabalho

nem da luta operária. Por sua vez,nesse contexto, a escola foi,

sobretudo na França, um símbolo do

laço político, de um princípio deunidade face à diversidade da

sociedade, entrou em crise profundae tornou-se incapaz de preencher os

objetivos igualitários que ela

professa. O estudo aponta, ainda,para a importância do Estado

(através das políticas sociais) e osmeios de comunicação de massa na

socialização dos jovens da galère.

A partir do material coletado,

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Revista Brasileira de Educação 235

Resenhas

Dubet analisa a galère como

resultante das transformaçõesligadas ao fim do mundo industrial e

portanto da anomia, da exclusão eda ausência de movimento social.

Como abordagem teórica, propõe,

em lugar da sociologia das condutasmarginais dos jovens, a sociologia

dos movimentos sociais. A galèrenão é vista como mera conduta

anômica ou estigma, tal como as

interpretações sociológicas damarginalidade, notadamente a

Escola de Chicago nos anos 30,sobre a delinqüência juvenil. Bandos

e turmas desapareceram quando os

bairros se tornam heterogêneos equando uma cultura de massa

invadiu o mundo popular. Aexperiência da galère não repousa

sobre nenhum princípio estável. Há

condutas de excesso e dedependência, delinqüência, violência,

droga, ócio e música, mas não hárealmente formação de uma

subcultura marginal. A experiência

cotidiana mobiliza redes frágeis (emlugar de turmas), delinqüência e

trabalhos no setor informal,

revelando relações sociais diluídasfreqüentemente marcadas pela

heteronomia.

A galère é, antes do que umaconduta marginal de jovens pouco

ou mal integrados, uma ação declasse perigosa. Essa parte da

juventude representa uma ameaça

difusa à juventude trabalhadora e àsociedade em seu conjunto. A

expressão “classes perigosas”, criada

por Louis Chevalier, se refere aolumpenproletariado na formação da

sociedade industrial, uma massasocial disforme temida pelos

cidadãos e pelas instituições, sobre aqual o poder realizou uma ampla

empresa de controle e socialização.

Tal como as classes perigosas aolongo do século XIX, a experiência

atual da galère reúne problemasrelacionados ao urbanismo, ao

desemprego, à educação e à

imigração.Nesse contexto é possível

existir ação coletiva? Seria possível

estudar as condutas marginais dosjovens, a galère hoje, como

estratégias de ação, esboços deconflitos ou reivindicações culturais

larvais? esta é a pergunta central do

estudo. a sociologia dos movimentossociais define a sociedade como

sistema de integração e de conflito,contudo a experiência da galère

procede da crise e decomposição de

um sistema de ação, da falta deintegração e de formas de expressão

do conflito. Nela não há a definiçãode um adversário social, nem de um

conflito específico. Por outro lado, a

reflexão teórica sobre osmovimentos sociais sempre se

apoiou sobre movimentos“positivos” com a elaboração de um

projeto social e a busca de

autonomia. Seria possível apoiar-sesobre o quadro teórico da análise

dos movimentos sociais para estudar

um objeto tão distante dele como a galère (caracterizada pela

hetertonomia)? Seria possívelobservar a transformação da galère

em ação autônoma, organizada ou

um movimento social latente?Na galère os jovens estão em

situação de exclusão e

desorganização. Porém, ela não épuro espaço de dependência e de

ausência de ação social. O que nãoexiste é um princípio único e

organizado. Existe heterogeneidade,

ruptura e fragmentação. Há açãofragmentada e dispersa em distintas

lógicas. Dubet identifica três pólosem tornos dos quais estão as

dimensões de ação da galère:

desorganização social, exclusão eraiva. Elas representam três lógicas

ou orientações de ação. Adesorganização é interior e exterior

ao indivíduo. No primeiro caso ela é

desorganização afetiva e identitária.

No segundo, se refere às desordens

na família e no meio social. Aexclusão (não marginalidade) se

manifesta através do desemprego, daprocura de trabalho, da falta de

aceso ao consumo, do estar fora da

escola, da estigmatização e doracismo. Ela se manifesta também na

frustração gerada por uma forteintegração cultural que acompanha a

exclusão social e econômica. A raiva

aparece de forma difusa, sem alvodeterminado, ela é provocada pelo

sentimento de exclusão e deimpotência frente à desorganização.

E revela um sentimento generalizado

de dominação, falta de sentido paraesta dominação, niilismo, ausência

de futuro e de esperança.

Na galère a ação édesorganizada, sem direção,

manifesta por todos os lados poratores pouco integrados, excluídos e

enraivecidos porque a dominação a

que estão submetidos não lhes fazsentido. Sua ação decorre da falta de

regulação, da anomia e da exclusão

e também da ausência demovimentos sociais e consciência de

classe. Diante desse quadro, sepergunta qual seria a capacidade de

ação dos atores da galère, que são

muito frágeis, marginalizados edependentes para serem

considerados como sujeitos de umnovo movimento social. O que os

caracteriza é a recusa do mundo

industrial e operário, o apelo àdignidade e à liberdade e o refúgio

em ilhas de resistência individuais

(atividades expressivas, sobretudomúsica e dança). O que motiva sua

ação é cultural e é nesse âmbito quemanifestam sua vontade de

autodeterminação.

Dubet analisa ainda omovimento de jovens e sua luta

contra o racismo na França dos anos80, em especial a Marcha pela

igualdade e contra o racismo,

realizada em 1983. Depois da

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236 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

Resenhas

François Dubet, professor de

Sociologia na Universidade de

Bordeaux II, após uma trajetória dequase vinte anos (sua primeira

publicação — “Lutte etudiante”, emco-autoria — data de 1978), publica,

com Danilo Martuccelli (pesquisador

no CNRS) os resultados de umapesquisa de campo, por meio da qual

puderam, juntamente com suaequipe, observar e entrevistar alunos

cuja idade escolar corresponde às

séries iniciais do ensino fundamental(“les écoliers”), à segunda fase do

ensino fundamental (“les collégiens”)ao ensino médio (“les lycéens”).

Ambos, pesquisadores na

École des Hautes Études em CiênciasSociais, Paris, debruçaram-se sobre

os dados coletados, buscando

ultrapassar a mera constatação,

descrevendo e objetivandocompreender a experiência que cadaaluno tinha em sua escola.

É importante ressaltar que “À

l’école” como seu subtítulo indica —“Sociologia da experiência escolar”,

significa um amadurecimento das

idéias apresentadas por Dubet emobra anterior — “Sociologia da

Experiência” (Paris, Seuil, 1994).Delimitando seu campo de análise,

ou seja, a escola, os autores arevisitam, partindo de seu interior,da experiência que os alunos

(crianças, adolescentes e jovens)vivenciam por intermédio das

relações com os adultos, seus

professores e pais.

A pesquisa“A fim de melhor analisar os

 processos educativos, os grupos de

 pesquisa foram constituídos, na

maior parte dos casos, porsociólogos, aos quais vieram

associar-se professores-pesquisadoresem Psicologia e em Ciências da

Educação.” (p. 347).

A integração intelectual dasequipes de pesquisa foi assegurada

por grupos de reflexão, que se

reuniam periodicamente, incluindo,além dos profissionais já

mencionados, estudantes queelaboravam suas teses em Sociologia,

em Psicologia e em Ciências da

Educação, como também psicólogosescolares e um orientador

educacional.

A pesquisa desenvolveu-se emdois momentos. Primeiramente, uma

vez escolhidos os estabelecimentos,procedia-se à coleta dos documentos

e à realização de entrevistas

semidiretivas junto aos sujeitos dapesquisa, para se formar, segundo os

autores, uma imagem de cada

situação. Em um segundo momento,as equipes desenvolviam um estudo

em profundidade de cada tipo deatores, mediante um trabalho de

grupo, momento esse considerado,pelos autores, como a parte principalda pesquisa.

Como membro do CADIS

(Centro de Análise e de IntervençãoSociológica), grupo criado por Alain

Touraine, François Dubet utilizamais uma vez, em sua carreira de

pesquisa, o método da “intervenção

sociológica”, visando extrair asdimensões e os mecanismos da

experiência social, levando os atoresnão somente a testemunhar sua

experiência, mas também a

produzirem uma análise de seusproblemas.

Durante quase três anos,

quatorze grupos reuniram-se duasvezes por semana, além de alguns

meio-períodos de trabalho. Os novegrupos de estudantes e cinco de

adultos (incluindo grupos de

grande mobilização nacional,

ocorreu a volta à periferia e ofortalecimento de uma vida

associativa. Na visão do autor são osjovens imigrantes que têm maiores

capacidades de transformar as

lógicas da galère, porque estãoconstantemente desafiados por um

apelo de identidade ao enfrentar oracismo e ao vivenciar a dualidade

do sentimento de não pertencimento

e da vontade de integração. Essesjovens imigrantes conseguem definir-

se melhor ao confrontar-se ou aliar-se a outros atores.

Para que seja possível

encontrar saídas da galère, os atoresdevem encontrar nela dimensões

positivas, pontos de apoio de uma

ação organizada e de um projeto,espaços de resistência e de

autonomia. O que é certo é que nãoé o trabalho o que alavanca a

mobilização, mas sim os problemas

da autonomia e da personalidade, abusca de maior capacidade de

expressão cultural. Nesse sentido,

aparecem com força os aliadosexternos, tais como os animadores

culturais que atuam nesses espaçosurbanos.

Ao final do trabalho, não fica

claro o que o autor espera dasdiferentes instâncias de socialização

em relação aos jovens da galère que

buscam inserção e sentido. Para oleitor, fica ainda o mal estar diante

da ausência de projetos e de saídaspara o problema da exclusão social.

Cristina Almeida Cunha FilgueirasCIEPLAN - Corporación de

Investigación Economica para

America Latina

DUBET, François;MARTUCCELLI, Danilo. A

l’école: sociologie del’expérience scolaire. Paris.Seuil, 1996, 362 p.

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Revista Brasileira de Educação 237

Resenhas

professores, de pais e um de

especialistas da infância e dajuventude) foram compostos visando

diversificar os contextos sociais,incluindo membros dos meios

populares e das classes médias. Cada

grupo de intervenção foi compostopor uma média de dez pessoas que

descreviam, contavam, expunhamsuas escolhas, suas estratégias, suas

emoções a partir daquilo que os unia

e produziam suas reflexões queforam objeto de uma discussão

posterior com os pesquisadores.

Dubet e Martuccelli afirmam:“A principal originalidade desse

método refere-se à construção de umdebate entre os pesquisadores e os

atores”. (1996, 15). Os

pesquisadores propõem análisessociológicas do trabalho do grupo e

pedem aos atores que reajam,reconhecendo-se nas análises

apresentadas ou mesmo recusando-as.

Cabe ressaltar a presença de

um outro material de pesquisa, alémdos grupos de intervenção:

anotações de entrevistas individuaisjunto aos alunos e aos adultos, e de

observações realizadas no decorrerda formação dos grupos.

A obra

O livro está dividido em cincopartes: 1. Escola e Educação; 2. A

escola elementar; 3. No colégio; 4. No

liceu; 5. Educação e Sociologia, alémde uma Introdução, Conclusão, um

Posfácio e um anexo intituladoPesquisa, apresentando alguns detalhes

dos grupos de intervenção e indicandoos componentes e os pesquisadoresresponsáveis por cada grupo.

Na Introdução, os autores

apresentam o problema central dolivro:

“Perguntando sobre o que a

escola fabrica, nós gostaríamos desaber que tipos de ator social e de

sujeito se formam durante longashoras e numerosos anos passados na

escola, entendendo que a escola não

se reduz à sala de aula, que ela éfeita também de mil relações entre

 professores e alunos, que ela é umdos espaços essenciais da vida

infantil e juvenil”. (p. 11).

Preocupados com as mudançaspelas quais passam a escola, na

França, tanto em sua forma como

em sua natureza (novos valores,novas regras, novos objetivos), os

autores preocupam-se em detectarcomo os alunos constroem sua

experiência, na qual estes ‘fabricam’

relações, estratégias e significados,por meio dos quais eles se

constituem a si mesmos.

A sintonia entre teoria emétodo manifesta-se na medida em

que, através da “intervençãosociológica”, a “experiência social”

passa a ser desvendada.

“É necessário apreender aexperiência por meio de um grupo,

 para fazer emergir a especificidade

dos trajetos e das sensibilidades pessoais, evitando o fechamento do

testemunho sobre si mesmo,

 provocado, algumas vezes, pela

relação face a face da entrevistaindividual.” (pp. 14 e 15).

Ainda na Introdução, osautores referem-se ao processo de

formação dos atores:

“Inicialmente, os alunos daescola elementar são dominados por

um princípio de integração, deinteriorização das expectativas dos

adultos. Depois, no colégio — (que

corresponde, no sistema escolar

brasileiro, às séries da segunda etapado ensino fundamental) — elesentram na afirmação de uma

subjetividade que introduz uma certa

tensão com a escola. Enfim, no liceu(que corresponde ao nosso ensino

médio) eles atingem umaracionalidade definida pelas

utilidades escolares, e uma

 possibilidade de “vocação”,construída pelo interesse próprio por

certas disciplinas. (...) A escola não é

somente desigual, ela produztambém diferenças subjetivas

consideráveis, ela sustenta uns eenfraquece outros, uns se formam na

escola, outros fora, apesar dela e

contra ela”. (pp. 17 e 18).A primeira parte, Educação e

escola, é composta de um capítulo

que aborda as mudanças da escolaatual em relação à escola

republicana, mostrando como aEducação não pode mais ser pensada

como uma prática institucional. É

nesse capítulo que os autoresexplicitam a definição de

“experiência escolar”, um dosconceitos-chave de sua obra:

“Experiência escolar será definida

como a maneira pela qual os atores,individuais ou coletivos, combinam

diversas lógicas da ação queestruturam o mundo escolar”. (p. 62).

A segunda parte — “Na escola

elementar” — é composta por três

capítulos, em que os autoresapresentam os fenômenos detectados

e as respectivas análises sobre omundo dos alunos; as relações entre

os pais e a escola, e a experiênciasocial dos professores.

A terceira parte — “No

Colégio” — é estruturada em quatro

capítulos: o primeira aborda aexperiência colegial, incluindo as

expectativas, as estratégias escolares,as diferenças de gênero (rapazes e

moças), bem como as tensões e os

sentimentos vivenciados no interiorda escola. Os dois seguintes

descrevem a experiência colegial emcontextos sociais contrastantes —

um colégio de periferia, popular e

um “bom colégio” de classes médias.O último capítulo aborda a

experiência dos professores.

Na quarta parte — “No liceu”—, os autores apresentam dois

capítulos refletindo, no primeiro,sobre a vida juvenil, as escolhas e

estratégias, o instrumentalismo

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238 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

Resenhas

escolar, as tensões da experiência,

dentre outros temas. No segundocapítulo, encontramos reflexões sobre

alguns dos fenômenos detectados, ouseja; a subjetivação, a alienação e a

resistência à ordem escolar.

A última parte do livro,“Educação e Sociologia”, tem por

objeto, segundo os autores, não a

descrição precisa do campo daSociologia da Educação, mas, sim, a

ordenação de um raciocínio,associando as mutações da escola às

de suas análises. Três grandes

períodos são destacados pelosautores: no interior da Sociologia da

Educação, o “momento fundador”da escola republicana, referente a um

pensamento social que se poderia

qualificar de “ paideia funcionalista”;em seguida, um período marcado

por uma série de críticas, que,segundo os autores, são ainda o

coração da Sociologia da Educação

atual, e cuja teoria da reproduçãopode aparecer como uma síntese

durante os anos setenta. Em seguida,

com a emergência de um sentimentode crise profunda da escola, com o

declínio dos contra-modelosrevolucionários, a Sociologia da

Educação — afirmam os autores —

diversificou-se e freqüentemente fazde si a “especialista” dos problemas

da escola. O último capítulo volta-separa a reflexão de fenômenos

próprios desses três períodos,

partindo da análise do “sistema”, epretendendo penetrar na “caixa

preta” da escola.

“Um tipo de atenuação opera-se. O abandono das ilusões da

 paideia funcionalista e odistanciamento dos encantamentos

da postura crítica traduzem-se na

proliferação de estudos visandotestar a democracia real da escola”

(pp. 320 e 321).

Partindo da análise daexperiência escolar dos atores e de

sua subjetividade, a sociologia da

experiência destaca mecanismos

objetivos que nos informam sobre osistema escolar, seu funcionamento e

suas relações com seu meio ambiente,afirmam os autores (p. 303).

Dentro dessa perspectiva, a

sociologia da experiência escolar éconcebida também como uma

sociologia da escola e, portanto,

torna-se necessário indagar sobre olugar dessa perspectiva no interior

da Sociologia da Educação, tarefaque os autores se propuseram

realizar em seu último capítulo.

Finalizando o livro, Dubet eMartuccelli apresentam uma

conclusão e um posfácio. Na

primeira, eles buscam apresentar osresultados, as possíveis respostas às

indagações que nortearam apesquisa. No posfácio, os autores, ao

se debruçarem sobre a escola na

França, apresentam alguns princípiosde ação possíveis.

“Este livro gostaria de ser ao

mesmo tempo científico e“engajado”. Ele gostaria de dizer

sobre a experiência dos atores da

escola e descrever os mecanismos os

mais sutis. Mas não se podeconsagrar tantos esforços, terencontrado tantos alunos e

 professores, ter conhecido tanto as

alegrias e os sofrimentos e evitartodo julgamento”. (p. 18).

Repassando as análises

desenvolvidas em torno das trêsexperiências escolares — na escola

elementar, no colégio e no liceu —diferentes fenômenos são apontados,

o que reforça a idéia de que“(...) para compreender o quea escola fabrica, não basta estudar os

 programas, os papéis e os métodos

de trabalho, é necessário tambémdetectar a maneira como os alunos

constroem sua experiência, comoeles “fabricam” relações, estratégias,

significações por meio das quais eles

se constituem em si mesmos”. (p. 14).Se na escola elementar se

observou uma continuidade entre a

objetividade das regras e asubjetividade dos alunos,

conformando uma integração, nocolégio, observou-se uma fase de

distância extrema, o inverso do

ocorrido na escola elementar,consolidando-se uma cultura

adolescente, oposta ou paralela àcultura escolar (p. 328). Já no liceu,

constatou-se uma redução das

tensões, em que “a diversificação daexperiência acentua-se e dá lugar a

uma diferenciação crescente dosindivíduos”. (p. 330).

Buscando tornar claras quais

seriam as grandes linhas quedeveriam conduzir a uma mutação

do sistema escolar, os autores

apresentam seu posfácio, destacandoa importância de “... uma mutação

do sistema escolar, capaz de tornar ofuncionamento mais aceitável e mais

harmonioso para os alunos e

 professores”. (p. 337).

Encerrando a obra, Dubet eMartuccelli fazem um apelo à

audácia dos educadores, no sentidode buscarem responder, mediante

uma política educacional, os desafiosque as transformações sociaispropõem, não se fechando em uma

nostalgia paralisante. (p. 346).

Enfim, pelo que foi possívelabordar, nos limites deste texto,

esperamos haver comunicado aimportância desse livro para

profissionais da Educação, bem

como para psicólogos e sociólogosenvolvidos com a escola e

preocupados com o tema daadolescência e de juventude. A

análise da experiência escolar de um

grupo de crianças, adolescentes ejovens trouxe elementos férteis, que

abrem portas a futuras pesquisascom desdobramentos temáticos.

Maria Amélia G. C. GiovanettiUniversidade Federal de Minas Gerais

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Revista Brasileira de Educação 239

Resenhas

SÁNCHEZ-JANKOWSKI, Martín.Islands in the Street : Gangsand American Urban Society.

Berkeley: University of California Press. 1991.

O livro de Jankowski ofereceuma visão clara sobre gangues e sua

situação no interior de uma

sociedade urbana como a dosEstados Unidos. Sua pesquisa é

dinâmica, partindo da vivênciadentro das próprias organizações e

um trabalho de campo paciente,

detalhado e cientificamenteembasado. Através dele pode-se

repensar o sujeito da pesquisa, ojovem das classes desfavorecidas,

desmistificando a imagem que se faz

das gangues, apresentando seuselementos como seres humanos e

não criaturas dignas de pena ou quecausam medo.

Islands in the Street traz uma

profunda análise sociológica einterpretativa dos motivos que levam

os jovens a entrar nas gangues e

porque são por elas aceitos, como seorganiza, como se relacionam com

as comunidades onde vivem, com aforça policial e com os meios de

comunicação. Martín Jankowsky

empregou dez anos e cinco mesesneste projeto de pesquisa e inicia o

prefácio dizendo que o termo“gang” no Webster’s New American

Dictionary tem como um de seus

significados o termo “journey”,

jornada. E compara o período detempo que usou para a pesquisacomo uma longa jornada pelas

comunidades urbanas às quais os

grupos estudados pertenciam.O estudo originou-se de uma

pesquisa feita pelo autor sobre a

atitude política dos jovensmexicanos na década de 70. Naquela

época ele quis comparar osresultados com amostras de porto-

riquenhos em Nova York e Boston.

Ao fazê-lo pode perceber que entre ajuventude pesquisada havia uma

grande quantidade envolvida emgangues em todos os grupos étnicos.

Ocorreu-lhe então que, caso ele

quisesse entender sociologicamenteas comunidades de baixa renda, seria

necessário entender porque ofenômeno das gangues persistia nos

Estados Unidos. por mais de cem

anos. Essas observaçõesencaminharam-no para o

desenvolvimento do projeto depesquisa que o levou a interagir com

esses grupos num extenso período de

tempo.Historicamente o termo

gangue sempre teve uma conotação

negativa. Nos Estados Unidos, desdeo século dezenove havia certos

grupos no oeste sem lei que atuavamroubando diligências, bancos, minas

e ‘saloons’. Eram considerados foras-

da-lei e um problema social,econômico e moral. Estas gangues

entraram para a mitologia dos fora-

da-lei. mas o séc. XX trouxe umanova configuração socioeconômica

com a chegada de milhões detrabalhadores imigrantes. As

dificuldades que surgiram com o

enorme contingente que chegava aopaís, posteriormente agravadas pela

Grande Depressão Econômica,quando o crime organizado instalou-

se e os grupos que o compunham

eram chamados gangues. No entantoaqueles agrupamentos de adultos

diferiam dos grupos compostos por

jovens estudados por Jankowski.Sua pesquisa procura analisar

a gangue como uma organização e ofenômeno da gangue em geral. Para

isso Jankowski acreditou ser

necessário conduzir um estudocomparativo. Dessa forma seria

possível entender o que havia emcomum e o que era particular a cada

gangue. A amostra estudada

consistia em 37 gangues, sendo que

treze estavam situadas em Los

Angeles, vinte na área de Nova Yorke quatro eram de Boston. Dentre as

etnias representadas estavamirlandeses, afro-americanos, porto-

riquenhos, mexicanos, dominicanos,

jamaicanos e centro-americanos. Onúmero de membros da gangue

também variava: as menores tinhamcerca de trinta e quatro membros

sendo que as maiores contavam com

mais de mil. O autor conviveu comesses jovens, suas famílias e

comunidades, participando de suasreuniões e envolvendo-se em

atividades e até em brigas. Apenas

ficou acertado que ele não seenvolveria com drogas e

procedimentos ilegais. Obviamente,foi necessário usar tais recursos para

maior veracidade na coleta de dados.

Houve, também, acolaboração de pessoas que

mantinham contato com gangues em

níveis variados tais como familiares,líderes de comunidades, políticos,

burocráticos do governo, oficiais da

força policial, representantes damídia e pessoas que mantinham

algum tipo de negócio com membrosde gangues. Os métodos usados

envolveram, além da observação

participante, uma reflexão sobre ospadrões de ação de cada grupo, bem

como a análise dos depoimentospessoais dos envolvidos. Uma das

estratégia importantes era obter a

opinião e o ‘feeling’ dos membrosque participavam de uma ação antes,

durante e depois de cada evento. Os

registros foram feitos tanto porescrito como por gravações. O

tempo gasto com cada ganguevariava de acordo com os eventos

que cada uma delas vivenciava, cujaimportância ou relevância eram

avaliadas no momento

imediatamente após serem vividos.Essa flexibilidade, aliada ao

embasamento teórico que Jonkowskiaplicou ao seu trabalho, lhe confere

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240 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

Resenhas

um enfoque abrangente não

encontrado em pesquisas anteriores.Também imprimiu a elas um caráter

interativo que fez com que ospróprios membros das gangues o

considerassem um igual e

esquecessem estar tratando com umacadêmico, fator benéfico para tal

interação. Jankowski acabou sendoaceito como o pesquisador que

estava com eles e isso era um fato

normal. Havia respeito eentendimento mútuo. Ele relata,

também, que, contrariamente às suasexpectativas, as pessoas

entrevistadas que interagiam noutros

níveis com as gangues também semostraram acessíveis. A introdução

do livro relata como se travou todoo contato e seu desenvolvimento,

explicando quais as variáveis

consideradas.O conteúdo estudado

desenvolve-se ao longo de oito

capítulos, numa linguagem leve quenão esquece o rigor científico. No

primeiro capítulo inicia

apresentando uma teria sobregangues, oferecendo uma breve

definição do fenômeno, teorizandosobre quais fatores afetam o

comportamento das gangues

enquanto organizações; porquecertas gangues persistem e

sobrevivem enquanto outrasdeclinam o morrem. Finalmente

examina porque gangues como um

fenômeno têm sido capazes depersistir ao longo do tempo na

sociedade urbana americana.

Os capítulos seguintesapresentam dados de como os

elementos avançados na teoria seaplicam à vida diária. Os cinco

capítulos da parta I enfocam a

dinâmica interna da gangue no seuambiente local. O capítulo 2 começa

a investigação, endereçando aquestão mais fundamental: quem

entra para uma gangue e por que?

Há uma atenção particular dirigida

ao modo como o indivíduo decide

ingressar na gangue e como esta orecruta. O capítulo 3 levanta a

questão que tem intrigado ospesquisadores e o público em geral:

o que acontece numa gangue?

Apontando para este tema produzuma descrição da dinâmica interna

das gangues, tanto como seorganizam, suas funções, quanto e

quais fatores influenciam as

organizações a se comportar dedeterminadas maneiras. O capítulo 4

identifica como a organização semantém e examina tanto o tipo de

atividade econômica em que os

membros da gangue se envolvemquanto os fatores a influenciar o

sucesso ou o fracasso dessaatividade.

A violência da gangue —

tópico que tem ocupado a atençãopública, em parte pelo enfoque dado

pela mídia — é assunto do capítulo

5. Trata-se de uma análise dasociologia da violência das gangues,

um enfoque que busca determinar a

natureza e as causas da violência, ecomo os indivíduos e a organização

como um todo compactua com isso.O capítulo 6, que encerra a

primeira parte, examina a relação

entre as gangues e as suascomunidades locais. A questão

central remete-se ao papel, se há

algum, que a comunidade representana forma em que a gangue opera. As

comunidades vêem as gangues comotão perigosas e destrutivas que

deveriam ser erradicadas? Elas vêem

os participantes como indivíduosincompreendidos, legítimos

membros da comunidade que devemser defendidos dos abusos dos

policiais e do ataque da mídia? Ou

elas simplesmente não pensam nadaa respeito das gangues?

Na parte II, Jankowski vai da

dinâmica interna das gangues seumeio às suas relações com o mundo

fora da comunidade. O capítulo 7

explora quais as maneiras em que a

política e as agências governamentaisafetam o modo como as gangues

operam. A análise então se voltapara uma das questões que causa

maior perplexidade diante da

sociedade americana: por que osistema de justiça criminal não tem

tido capacidade de erradicar ganguesou controlá-las? O capítulo 8 prova

a interação entre as gangues e o

sistema de justiça criminal de formaa entender seu impacto nas

operações das gangues.

O capítulo 9 lida com ocontínuo debate sobre se a mídia tem

ajudado a informar o público sobrea natureza das gangues e o problema

social ligado a elas, ou tem

exagerado sobre o assunto todo.Uma atenção particular é devotada à

análise de como as gangues e a mídiase relacionam e avalia os efeitos

desta última sobre as formas como

as gangues venham a conduzi seusnegócios.

A conclusão faz algumas

colocações finais sobre as ganguesem si e sua natureza dentro da

sociedade americana. Ao fazê-lo, oautor tenta esclarecer os dilemas edificuldades que estas apresentam à

sociedade.

Algumas observações feitaspor Jankowski são particularmente

importantes. Pode-se ressaltar osdiferentes tipos de organização

dentro da gangue, os quais ela

denomina modelo vertical-hierárquico, modelo horizontal-

comissional e por último, o modeloinfluencional. Cada um deles é

estudado de forma a determinar qual

é mais eficiente na manutenção dogrupo, sua organização e atividades.

As tradições étnicas sãoconsideradas na medida que

influenciam comportamentos muito

particulares de cada uma das etnias,especialmente dos grupos irlandeses

e mexicanos.

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Revista Brasileira de Educação 241

Resenhas

Finalmente, examina a questão

da mídia e sua relação com asgangues. A atenção que a TV,

jornais e filmes chamam para asgangues traz vantagens e

desvantagens. Mas é particularmente

prejudicial a visão estereotipadatrazida especialmente por programas

sensacionalistas e filmespreconceituosos, onde aqueles que

não são brancos e pertencem a

população de baixa-renda carregamautomaticamente o estigma da

imoralidade e da corrupção decostumes. Essa colocação, entre

outras, faz do estudo de Martín

Sánchez-Jankowski uma obraindispensável àqueles que se dedicam

à pesquisa nesta área.

Rosely Aparecida Romanelli

Mestranda - Faculdade de Educação,

Universidade de São Paulo

LEVI, Giovanni; SCHMITT, Jean-Claude (Orgs.). História dos 

 Jovens . São Paulo:

Companhia das Letras, 1996.2 v. Tradução de CláudioMarcondes, Nilson Moulin,Paulo Neves, Maria LúciaMachado.

Uma geração não pode sujeitar

às próprias leis as gerações futuras

Artigo 28, Declaração dosDireitos do Homem, 1793

“História dos jovens” é uma

coleção composta a partir dacolaboração de diversos

historiadores europeus do campo dahistória social. Cada colaborador

desenvolveu uma periodização

interna e específica para acompreensão do jovem na sociedade

e tempo referente ao seu tema deestudo. Cada estudo, por fim,

resultou em um capítulo da coleção.

Em outras palavras, apesar dossubtítulos: “Da antigüidade à Era

moderna” (primeiro volume, 8capítulos, 372 páginas) e, “A época

contemporânea” (segundo volume, 9

capítulos, 382 páginas), “Históriados Jovens” não é uma obra de

caráter macro-histórico. Mais ainda,os organizadores incentivaram a

apresentação de modelos

interpretativos múltiplos, o quesegundo eles, evitaria síntese

uniformizadora e até redutiva doproblema. No entanto, essa

organização da obra não deve nos

levar a vê-la como mera coletânea detextos autônomos sobre um mesmo

tema. É possível encontrar ao longoda leitura dos dois volumes certa

unidade de procedimentos de

trabalho privilegiados pelospesquisadores e uma tentativa mais

ou menos constante responder àquestões que serão apresentadas a

seguir.

O título escolhido para a

coleção já sugere o desafio lançado acada participante da coleção:

escrever uma história dos jovens,não da juventude. A preocupação,

neste caso, foi a de descartar as

“imagens fortes” que em nossasociedade conotam o termo

“juventude”. O primeiro objetivo decada estudo foi o de desvendar a

construção social e simbólica que

diferentes sociedades, em diferentesépocas, tecerem dando corpo a idéia

de juventude. Por isso, quase todos

os capítulos se iniciaram por umadefinição do termo específica para o

período estudado. Isso é alcançadoatravés da análise de documentação

jurídica, ou, estudando práticassociais que envolviam os

personagens nesta faixa etária que

delimitamos como juvenil. Osestudos mostram que as idades que

delimitam o fim e o início dajuventude variam com espaço e às

vezes, no mesmo espaço, com o

passar do tempo. É impossível nãonotar que o social se sobrepõe ao

biológico.

Para os organizadores da obra,a juventude pode ser entendida

como um conjunto de problemas quese colocam para um indivíduo entre

uma primeira fase de separação e a

fase final de agregação do processode socialização. Os estudos

descrevem as complexas relaçõessociais concretas que o grupo neste

estágio do processo pode manter

com a comunidade ou sociedademais ampla. Relações, essas, que

podem ser marcadas porsolidariedade e/ou conflito. Lendo os

estudos podemos nos deparar com

circunstâncias de vida dos jovensmuito familiares e outras

absolutamente diversas daquelas queconhecemos. Podemos, ainda,

acompanhar o esforço dos

historiadores para delimitar acondição do grupo de jovens

cobertos pelo corpo documental, já

que, na maioria dos casos, acondição verificada não pode ser

estendida a todo o grupo e paralongos períodos. Afinal, a condição

do jovem que está no campo não é a

mesma daquele que está na cidade;ou, a condição dos jovens que

pertencem a sexo ou classe socialdiversas podem variar

profundamente dentro de uma

mesma sociedade e períododeterminados. Para o leitor, refletir

sobre tais circunstâncias pode

revelar-se um um exercício agradávele útil de desmonte de certos

preconceitos. Pode, também, sugeriroutras categorias ou enfoques para a

pensarmos a temática da juventudenos nossos dias.

Os estudos têm ainda em

comum a preocupação de buscarmodos de pensar, representações ou

imagens que as sociedades ou os

próprios jovens construíram sobre si.

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242 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

Resenhas

Lendo a coleção de uma maneira

não autorizada, percebi que pode serdatada a questão tão atual da

continuidade/descontinuidade entreas gerações. Ao longo dos capítulos

referentes a Grécia clássica até

Reforma protestante, apresentadosno primeiro volume, a preocupação

das sociedades era claramente o depreparar e garantir adesão dos

jovens aos valores e padrões

políticos e sociais vigentes. Nomundo clássico a vida do jovem era

marcada por um conjunto depráticas rituais e formativos

asseguravam assimilação dos

modelos necessários para aperpetuação da vida civil. É também

bastante ritualizada a vida do jovemdas camadas privilegiadas durante a

Idade Média. A juventude inspirava

medo e desconfiança, estavaassociada a fraqueza de espírito e a

desordem. Mas, através do belo epenoso caminho até tornar-se um

cavaleiro, o jovem vinculava-se a

defesa e manutenção das instituições.Os jovens das camadas privilegiadas

na Idade Moderna européia ora

tinham seus destinos conduzidospela manutenção das linhagens e

patrimônio da família. Esse é o casotanto daqueles que tiveram seus

casamentos arranjados, como

daqueles que por decisão paternaforam conduzidos aos conventos.

Quando são descritas as“vagabundagens juvenis noturnas”,

tão freqüentes a partir de 1550 nas

comunas e cidades, elas quase

sempre podem ser entendidas comodesordens vinculadas ecompreendidas pelos adultos, apesar

das constantes medidas repressivas.

Essa regularidade tende a se inverterao acompanharmos a descrição das

relações estabelecidas pelos jovens eadultos ao longo do segundo

volume.

No prefácio, os organizadoresafirmaram que os Estados modernos

“progressivamente sugeriram formas

orgânicas de socialização e controle:desde a escola, em que as idades são

sempre identificadas com maisprecisão, até o exército e o sistema

jurídico” (p. 13). A afirmação que

serviu de epígrafe para essa resenhanão seria concebível um século antes

na Europa, mesmo entre aqueles queviam a rebeldia como um traço

inerente à juventude. Os jovens

começam a ser representados a partirdas rebeliões liberais juvenis do

século XIX como sujeitos naturais,potencialmente livres das dominação

dos padrões da história da sua

época. Sujeitos que, como agentes dahistória, poderiam fazer reascender o

desejo, a natureza, a verdade, numaépoca corrompida. O projeto

jacobino, expresso particularmente

na Convenção de 1792 na França,pretendeu criar através da escola,

uma geração com padrões depensamento e comportamento

revolucionários. Essa crença,

bastante arraigada ao projeto deliberdade e igualdade até os nossos

dias, foi, também, a idéia força do

fascismo e do nazismo, movimentospolíticos autoritários, como

mostrarão os três últimos estudosque compõe o segundo volume. É

muito recente na história ocidental a

instituição de uma “subcultura”própria de uma geração. Foi só a

partir dos anos 50, nos EstadosUnidos que, como mostrou o

capítulo assinado por Luisa

Passerini, conhecemos grupos de

jovens apartados do mundo dosadultos. Foi também neste contextoque os jovens passaram a estruturar

um vocabulário, gosto estético e

musical específicos.A atual constância de notícias

trágicas envolvendo jovens imprensa

brasileira e mundial, têminsistentemente sugerido a idéia de

“crise”. Quando comparada àsinúmeras e diferentes “crises” que

são relatadas ao longo dos dois

volumes da “História dos Jovens”,temos a impressão de que podemos

olhar nossos problemas com maistranqüilidade. Nem sempre as

“crises” têm o caráter apocalíptico

que pretendem os seus divulgadores.Como sugerem os organizadores da

coleção, para compreensão doenígma da juventude em nossa

sociedade, talvez tenhamos que nos

deparar, como fizeram oshistoriadores nestes estudos, com a

nossa sociedade como um todo. Ouseja, com “elementos de

desagregação associados a períodos

de mudanças, os elementos deconflito e as resistências inseridos

nos processos de integração ereprodução social”(p. 12, vol. 1).

Guia de leitura

Volume 1Alain Schanapp defende em

seu capítulo “A imagem dos jovens

na cidade grega” que a continuidade(ou reprodução) da sociedade grega

esteve fundada na paidéia, umsistema de tradições, instituições e

práticas rituais que formavam ofuturo cidadão. Essa paidéia, mostrao relato, foi sendo configurada e

construídas desde a época arcaicaaté o período clássico. O autor

mostra que a idéia de agrupamento

por classe etária, organizaçãopraticada originalmente em Creta foi

mantida ao longo da história dascidades-estado. O autor relata o

funcionamento e o significado da

prática da ginástica, da caça, oserviço militar, a constituição do

companheirismo (solidariedade comos indivíduos da mesma faixa etária)

e as relações rituais entre adultos e

jovens (pederastia-philia), práticasrituais que asseguraram modelos de

bem viver e do estilo necessário paraviver civilmente.

O capítulo “O mundo

romano” assinado por Augusto

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Revista Brasileira de Educação 243

Resenhas

Fraschetti nos mostra a difícil

trajetória de jovem da nobrezaromana até o ingresso definitivo na

vida autônoma. A partir dos 15/16anos os jovens abandonavam em

meio a uma cerimonial doméstico os

emblemas da infância e adotavam a“toga viril”. Desde então, podiam

acompanhar os negócios públicos ejurídicos, mas como “aprendizes”.

Essa aprendizagem deveria durar até

os 28/ 30 anos quando, segundo oslegisladores romanos, terminaria a

adolescência e se iniciaria ajuventude, que se estendia até os 45/ 

50 anos. O autor, através da

descrição de rituais e instituiçõestipicamente romana procura nos

apresentar o conteúdo simbólico quea juventude tinha para os romanos.

Elliott Horowitiz nos

apresentará “Os diversos mundos da juventude judaica na Europa: 1300-

1800”. Seu estudo se desenvolveu

através do estudo de textos defilósofos, poetas e sobretudo, leis e

práticas defendidas pelos rabinos.

Podemos acompanhar o processo deimplantação da educação para os

jovens das comunidades judaicas,que ao longo dos séculos estudados

tendeu a estender sua

compulsoriedade para além dosfilhos das famílias mais abastardas,

como tendeu a ampliar o tempo deduração obrigatória. Trata ainda das

jovens de famílias pobres que se

empregavam como domésticas e dosprocessos de casamento.

Através da literatura européia

do século XI ao XVI, ChristianeMachello-Nizia apresentará a

construção de valores erepresentações que marcaram

profundamente o jovem palaciano

da Idade Média européia: aventura,generosidade, lealdade contratual,

elegância de maneiras e de coração.“Cavalaria e Cortesia” descreve

ainda o processo de adouber

(ordenação do cavaleiro) e as íntimas

ligações do bacharel (aspirante de

cavaleiro) com o seu senhor. Aautora defenderá que a busca do

jovem por um destino heróico, queno plano simbólico era a busca

exemplar da morte, possível

esteticamente bela, estava vinculadoa defesa das instituções e a

sobrevivência do próprio gruposocial dominante. “Uma flor do mal:

os jovens na Itália medieval (séculos

XIII-XV)” assinado por ElisabethCrouset-Pavan apresenta o

conflituoso processo de integração/ marginalização do jovem do sexo

masculino das elites nas cidades-

estado italianas. Apesar dosinúmeros rituais instituídos com o

objetivo de induzir os jovens a partirdos 18 anos, na defesa e participação

política nas cidades, o estudo das

atas das reuniões dos conselhos degoverno deixa transparecer o medo e

a ameaça que este gruporepresentava para a elite governante.

Deve-se ressaltar que esse jovem,

chamado a participar da vidapolítica e social da cidade, vivia

quase sempre uma total dependência

em relação ao pai, não só chefe dafamília, como chefe do negócio da

família. Os grandes pregadores doperíodo, mostra a autora, também

denunciam o perígo da

juventude.Defendiam que, antes dos40 anos “o jovem” estava sujeito à

fragilidade do corpo e da alma,portanto, deveriam ser controlados e

governados. São inúmeros e graves

os conflitos e tentativas de

administrá-los, relatados nesteestudo. O capítulo seguinte, “Osemblemas da juventude: os atributos

e representações dos jovens na

imagem medieval” escrito porMichel Pastoureau, será a último

estudo a tratar desse período. Nelese confirma a posição marginal do

jovem no conjunto das

representações do mundo medieval.Nas miniaturas (imagens inserida

nos livros) produzidas na Europa do

século XIV e XV, os jovens nas rarasvezes que foram representados,

ocupam as margens ou o segundoplano da representação. A cor verde,

geralmente associada à

licenciosidade, desordem,inconstância, doença; e, também, a

esperança e sorte, aparece eratambém a cor mais utilizada na

representação da juventude.

Depois de apresentardocumentos que indicam a

concepção que a época moderna

construiu sobre os jovens, NorbertSchindler em “Os tutores da

desordem: rituais da cultura juvenil nos primórdios da era moderna”

analisa decretos comunais contra os

tumultos noturnos praticados porjovens do sexo masculino, que

tornam-se muitíssimo freqüentes apartir de 1550, período da Reforma.

As “vagabundagens noturnas”

parecem ser fruto da resistência deuma nova moral que tentava se

impor, e poucas vezes, parece ter

sido tratado como um conflitogeracional. O autor vai tentando

acompanhar nos debates dasautoridades comunais o “consenso

tácito” que se estabelecia entre os

jovens e adultos nestes rituais deconfronto.

A partir da segunda metade do

século XVI, na França e na Itália,mais da metade dos homens em

idade adulta não se casa. NaInglaterra, no final do século XVII e

início do XVIII, esse fenômeno

atinge mais de um terço dos homensem idade adulta. As cifras não são

muito diferentes para as mulheres.Renata Ago, em “Jovens nobres na

Era do absolutismo: autoritarismo

 paterno e liberdade” discutiu oresultado das políticas familiares que

instaurou um mundo repleto deconventos, onde eram encerrados

jovens sem nenhuma escolha pessoal

ou vocação. A autora discutiu ainda,

7/16/2019 19-Juventude-Conteporaneidade-Revista-Brasileira-de-Educaçã

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244 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

a concepção pedagógica

renascentista que atribuiu aos pais aresponsabilidade última pela

felicidade e escolhas dos filhos, quenem sempre como ela tentará

mostrar, poderá ser explicada por

uma simples oposição autoritário/ liberal.

Volume 2“Imagens da juventude na era

moderna” assinado por Giovani

Romano é um capítulo curto quetrata dos pintores e pinturas que

retratam os jovens no período

indicado no título.“A guerra tem traços juvenis”

é a frase de abertura do capítulo

escrito por Sabrina Loriga, quedescreve por um lado o processo de

instalação da prestação de serviçomilitar obrigatório na Europa a

partir do século XVIII, do outro

lado o capítulo tenta dar conta deapresentar, como indica o título, “A

experiência militar”. A partir de

1798 na França, a convocaçãoprendia o jovem dos 20 aos 26 anos

para o serviço de defesa da nação.Isso representou um

“envelhecimento” das fileiras dossoldados que podiam começar aservir, já que no século anterior, era

comum o ingresso no exército apartir dos 15, 16 anos. Muitos dos

jovens convocados precisavam

deixar um vínculo de trabalhofamiliar ou mesmo em uma oficina.

A autora relata uma série de formasde resistência à convocação:

casamentos foram antecipados,

doenças foram simuladas e atémutilações foram preferidas à

prestação compulsória do serviçomilitar. E se a maioria dos soldados

eram do sexo masculino, a autora

lembra que, até o início do séculoXIX, a mulher participava

normalmente da vida dosacampamento militares. Para esses

jovens a experiência militar

representou uma aprendizagem que

podia passar pela alfabetização, pela

superação dos regionalismos eintegração na nacionalidade; e, por

fim, por uma concepção maisduradoura no imaginário coletivo de

virilidade e masculinidade. Sintetiza

a autora: entre 1618 a 1763 aFrança combateu durante 73 anos, a

Áustria, 92 anos, as ProvínciasUnidas 62 anos, a Espanha 82, a

Inglaterra apenas 45. Seguiram-se a

essas guerras profissionais outroséculo de guerras revolucionárias.

Lembrar esse contexto basta parajustificar a importância do tema.

Daniel Fabre descreverá a

festa-ritual tradicional que ocorriaem uma aldeia camponesa na

Montanha Negra languedociana.

Seus dados decorrem da observaçãoou da memória dos antigos

moradores da região, o que cobre osanos 60 para cá. Mas a sua questão

é a de operar dentro de uma análise

regressiva. Ou seja, procurar osentido constitutivo da própria

juventude contido neste tipo de

festa-ritual, tradição que remonta aoAntigo Regime, quando elas eram

bastante comum em todas as aldeiase cidades européias. O tradutor

avisa-nos numa nota de rodapé que

o título do original francês tantopode ser traduzido, como ele o fez,

por “Ser jovem na aldeia” como“construir-se jovem na aldeia. Essa

ambigüidade parecer ser a própria

hipótese do autor. Além de nosproporcionar um relato muito

agradável e divertido, o autor

coloca-nos questões muitointeressantes sobre os conflitos e

solidariedades que se estabeleciamtradicionalmente entre as gerações.

E, mais, sobre uma certa pedagogiaque se escondia sob a forma desses

rituais. Em três dias de festa

ocorriam missas, bailes, refeições emcomuns, namoros, farças juvenis que

varavam a madrugada, e até, idas aocemitério ligando a vida dos vivos e

dos mortos, reconstruindo

ritualmente a memória da aldeia e danação.

“A juventude operária: da

oficina à fábrica”, capítulo assinadopor Michelle Perrot, é longo e denso.

A autora trabalhou principalmentesobre dois tipos de fontes primárias:

os relatórios das juntas médicas que

atestam, ao longo do século XIX,não só a dispensa militar e o flagelo

da pobreza e do trabalho precocesobre a saúde dos filhos dos

operários; e, autobiografias de

operários. Em relação ao jovemoperário, temia-se a vagabundagem,

a libertinagem e seu espíritocontestador e, por isso, defendia-se a

necessidade de salvar a juventude.

Para concretizar essasrepresentações, a autora trata das

três imagens emblemáticasproduzidas sobre os jovens operários

na França do século XIX: o

aprendiz, o apache e a grisette.. Aautora mostra as transformações que

a própria delimitação da faixa etária

sofreu no período. O atestado deprimeira comunhão foi, por muito

tempo, o documento exigido dospais para o ingresso da criança no

mundo do trabalho e o casamento,

rito que acontecia entre os 28/25anos para os homens, 26/24 anos

para as mulheres operárias, o marcopara o ingresso na vida adulta. A

instituição do ensino obrigatório e

gratuito na França, em 1882, levou asubstituição do atestado religioso

pelo diploma escolar. A carteira de

registro de trabalho obrigatória paratodos os menores, instituiu, depois

de idas e vindas, os 18 anos comomarco da maioridade. A autora

discute ainda a complexa relaçãofamília-fábrica e jovem. Mostra um

conjunto de tramas que vão

libertando o jovem da opressivacondição de filho-operário de uma

oficina-família, para uma situação defamília patriarcal transmissora de

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Revista Brasileira de Educação 245

um conhecimento profissional, até, a

generalização da individuação doassalariado, tão aspirada pelos

jovens, mas tão cheia deconseqüências sociais e culturais. Há

um destaque especial para a questão

da aprendizagem profissional, para alegislação trabalhista e enfim, para a

condição feminina nas fábricas e/ ouoficinas-ateliês mantidas por damas

de caridade e religiosas.

Como estudar a experiênciados jovens nos colégios e liceus se

raramente esses nos deixaram fontes

escritas? Ou podemos considerarseus trabalhos escolares, produzidos

sob a observação e vigilância dosseveros mestres um documento

confiável? Para escrever “Os jovens

na escola: alunos de colégios e liceusna França e na Europa (fim so

século XVIII ao fim do XIX)” Jean-Claude Caron estudou documentos

deixados por mestres, diretores,

pedagogos e, pelas memórias quepolíticos e romancistas registraram

em suas obras. Para entender a vida

de um estudante nos colégios e liceusno século XIX, é preciso reconstituir,

mostra o autor, rotina violenta queimpunham. Quase sempre o jovem

era um interno que lamentava o

afastamento da família, e, quepassava em média onze horas em

posição sentada em uma postura queteoricamente era silenciosa. O autor

descreveu através dos testemunhos

da época, as péssimas condições dosprédios, a debilidade no preparo dos

professores e dos conteúdos

ministrados. A experiência dosjovem pode ser captada sobretudo,

nas longas e constantes descrições deconflitos entre alunos e seus

professores e administradoresescolares. O principal mérito do

artigo é o de traçar uma cronologia

que delimitará qualitativamente afunção social e política da instituição

escolar na França. O projetojacobino, expresso particularmente

na Convenção de 1792, pretendeu

criar através da escola, uma geraçãocom padrões de pensamento e

comportamento revolucionários. Defato, esse projeto demorou para se

realizar. Para o autor, que concorda

com Ariès, ele só pode serconsiderado totalmente implantado,

na França, na segunda metade doséculo XX. Vale a pena acompanhar

esse penoso processo de

implantação, lendo esse estudo.“Jovens rebeldes e

revolucionários: 1789-1917” escrito

por Sérgio Luzzanatto é um capítuloarrebatador. Extremamente erudito é

mais ainda, provocativo. No séculoXIX, defende o autor, “a juventude

deixou de existir, mas hipertrofiou o

imaginário” Defende ainda que ojacobinismo criou a própria

concepção de geração ao confiar osucesso da Revolução aos jovens e à

sólida formação cívica e nacional

que lhes seria incutida através daescola leiga e gratuita. Descreve

ainda os conflitos criados por um

projeto que depositava nos jovenstoda a esperança mas que permitia a

plena participação política somenteaqueles que ultrapassassem os

quarenta anos. Trata ainda do

drama daqueles que, imbuídos dosética e do heroísmo dos tempos

revolucionários, sobreviveram àrevolução e acabaram amargurados

acusando aqueles que sendo

cronologicamente jovens,partilhavam do velho espírito não

revolucionário. Mas o autor mostra

que se em 1848 a juventude francesademostrava uma profunda

indiferença à participação política, ajuventude de outro países europeus

continuava sacrificando suas vidaspelos projetos dos velhos, e quase

sempre exilados revolucionários. O

autor passará pela criação do “estilobohemien” que marcará a juventude

no período da Comuna, e pelaconsolidação de uma visão

subjetivista e voluntarista de fazer

política que a historiografiasocialista e acadêmica francesa,

divulgou ao analisar a RevoluçãoFrancesa. O autor terminou o artigo

se reportando aos ecos destas

concepções entre os populistasrussos e na trajetória intelectual de

Lenin.

Laura Malvano em “O mitoda juventude transmitido pela

imagem: o fascismo italiano”analisou a vasta documentação

iconográfica encontradas nas bienais

dirigidas pelo Sindicato Fascista dasBelas Artes. Mostra que essa arte

dirigida por ideais políticos foiimpondo símbolos que indicavam

um estilo de vida fascista, o modo de

vida de conceber a vida. Elasubstituiu o “look” juvenil

inconformista composto por caveirascom punhal entre os dentes dos

primeiros anos, por imagens mais

respeitáveis e tranqüilas. A autoraanalisa a força simbólica de imagens

como “Mamma Itália” e de seus

filhos jovens, saudáveis esportistas.Indica a insistência da ideologia

fascista na representação do povocomo um jovem viril e na enfática

propaganda de famílias numerosas,

modelo de família rural imposto atodo conjunto da sociedade. Analisa

ainda as ilustrações dos inúmerosperiódicos que veiculavam idéias

fascistas, criando imagens fortes. Um

exemplo tratado é o balilla, meninofardado que enfrentou um soldado

austríaco. A situação das jovens

também aparece neste estudo,através do mesmo recurso. Essa

exaltação do jovem concreto setransforma numa exaltação do Dulce

considerado, o mais jovem de todosos jovens, símbolo dos símbolos.

Pouco a pouco, a ideologia fascista

vai enveredando para uma apologiadaqueles que têm idéias jovens, e a

sua derrota como lembrará o estudodeixará um entulho mental que

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246 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

pesará sobre as gerações

cronologicamente jovens após aderrota do fascismo.

A partir dos 10 anos o jovem

alemão era convocado a tornar-seum soldado do Reich. De acordo

com o depoimento de Erika Mann,citado por Eric Michaud, pertencer a

juventude na Alemanha nazista

poderia implicar em fazer asaudação hitlerista de 50 a 150 vezes

num só dia. O projeto nazista,colocou em segundo plano a família

e a escola como meios de formação

para os jovens. O Estado assumiuesse papel de maneira direta através

do controle do Partido sobre as HJ,unidades da juventude hitlerista. A

partir de 1932 integrar uma HJ

implicava para o participantepequenos privilégios, e, parece que a

atração que elas exerciam vinhajustamente do fato de propiciar uma

certa liberdade para o jovem, frente

a forte opressão que esses sentiamem relação a família e escola. A

partir de 1935 a passagem pela HJ

tornou-se requisito necessário para oingresso nas universidades e em

certas profissões liberais. O estudoapresenta as características

específicas que revestiam as BDM,

associações similares para as jovens.Mas tese do artigo “Soldados de

uma idéia: os jovens do TerceiroReich” ultrapassa os limites da

apresentação da condição da

população que compreendemoscomo jovem, porque ser jovem, de

acordo com a ideologia nazista era

sobretudo um comportamento. Parapossuir ou manter uma alma jovem

era preciso corresponder aos desejosdo Fürer. Um povo inteiro foi

infantilizado pelo Estado, queretirou toda a responsabilidade dos

indivíduos sobre as suas vidas e

exigiu, no lugar dela, obediênciacega. O estudo insiste no difícil

exercício praticado por cada alemãoque, neste contexto, aderiu ao Fürer.

Era preciso lutar para acabar com “o

que havia de judeu dentro de cadaum”. Corresponder a vontade do

Fürer, obedecer implicava naautoprodução de gestos, trajes,

cantos, slogans, etc.

Aproximadamente 40% dajuventude alemã esteve alheia a

imposição de ingresso nas HJ. Ospoucos jovens que resistiram

abertamente e que no período

preferiram o jazz ou o swing, e asvestimentas inglesas, também foram

alvo de perseguição do Estado que sequis jovem.

“A juventude, metáfora da

mudança social. Dois debates sobreos jovens na Itália fascista e so

Estados Unidos da década de 50”

assinado por Luisa Passerini, tentarámostrar as semelhanças ideológicas

que poderemos encontrar em doiscontexto tão diferentes. O leitor não

encontrará um trabalho comparativo

propriamente dito; acho que assemelhanças, se existem de fato, não

foram devidamente explicitadas

nesta apresentação. A leitura docapítulo vale pela excelente síntese

que a autora faz da condição juvenilem cada um desses dois períodos e

contextos abordados. A autora

defenderá que o fascismo,alimentando-se do problema da

reintegração ex-combatentes com ofim da Primeira Guerra, (não por

acaso, jovens), transformará o

problema político e social emproblema geracional. Após sua

consolidação, o fascismo não mais

defendeu o jovem biológico, mas doespírito jovem: inquieto, belicoso,

arrojado, generoso, característico detodo genuíno “faci”. A autora

analisou também a produçãocinematográfica do período que

representou de alguma forma a

propaganda destes ideais. O estudosobre os jovens norte-americanos no

anos 50 foi organizado em trêsfrentes. A autora apresenta a

constituição da idéia e do campo de

estudos que tenta revelar o que era oadolescente (teenager) e seus

problemas. Ela sintetiza os estudosmais significativos desenvolvidos por

psicólogos, sociólogos e até

jornalistas que deram corpo a atualconcepção de adolescência. Seguindo

as próprias pistas oferecidas por essedebate, a autora descreveu a

experiência do jovem americano no

período. A parte das relações compais e professores esses jovens

criaram uma sub-cultura ondetornaram-se referentes de si

próprios. Isso só foi possível a partir

da generalização e prolongamentoda vida escolar. A high school criou

espaços de convivência que cobriramo dia a dia do jovem de uma

maneira totalmente apartada do

mundo adulto. Neste ítem a autoratratou ainda das diferença que

marcavam os jovens do sexomasculino e feminino nestes

agrupamentos. Por fim, a autora

apresentou uma interessante análiseda produção cinematográfica que,

nos anos 50, teve o jovem e seus

problemas como tema e esse mesmogrupo como público consumidor.

São nestes filmes que se institui pelaprimeira vez na história, uma

estética que diferencia o jovem do

adulto. Produção que apresentará, ojovem como o restaurador de uma

sociedade desordenada e sem rumo,algo bastante similar ao que foi

defendido pelo fascismo italiano em

anos anteriores.

Dirce Spedo Rodrigues

Mestranda - Faculdade de Educação,Universidade de São Paulo

Resenhas

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Revista Brasileira de Educação 247

Resenhas

“Retratos de uma tribo

urbana” é um livro que trata dorock brasileiro, sua história, sua

música e seus shows. Se inscreve

numa tendência que temcaracterizado os estudos sobre a

juventude nos últimos anos,focalizando-a na sua dimensão

cultural, seus valores e

comportamentos. É toda umaabordagem que ressalta a emergência

de culturas juvenis visíveis numamultiplicidade de estilos de vida, de

alguma forma vinculadas à música,

numa expressão típica dacomplexidade crescente do mundo

urbano. Mas diferente de grandeparte dos estudos existentes nesta

área, o trabalho não tem como

objeto grupos determinados oumesmo indivíduos na sua

especificidade. Tematiza o rock eseus shows, buscando ai um retrato

momentâneo do comportamento e

visão de mundo de uma parcelasignificativa da juventude.

O trabalho de Guerreiro,

originalmente uma dissertação demestrado apresentada ao programa

de Antropologia Social da USP,propõe-se a compreender o

fenômeno do rock e resgatar o

universo cultural dos rockers noBrasil. Para isso desenvolve três tipos

de abordagens:

> etnográfica, descrevendo oshow enquanto espaço de

ritualização do rock;

> sócio-antropológica, fazendouma análise interpretativa das

canções e buscando compor o perfilsócio-cultural dos rockers no Brasil;

> histórica, discutindo o lugar

GUERREIRO, Goli. Retratos de 

uma Tribo Urbana : rockbrasileiro. Salvador: CentroEditorial e Didático daUFBA,1994.

do rock no campo da música popular

brasileira a partir dos anos 60.Inicialmente é discutida a

relação do rock com a problemática

da cultura, no caso a efervescênciacultural dos anos 60. É uma forma

de compreender a música como umadimensão presente na história

cultural da humanidade,

acompanhando as transformaçõesdo homem e da sociedade,

expressando, de alguma forma, namelodia e nas letras, a relação do

indivíduo com seu mundo, no seu

tempo. Nesse sentido, o rock e suaexpansão mundial é situado no

contexto dos movimentos juvenis dadécada de 60, definidos como

“contracultura”. Este movimento é

fruto de um conjunto de fatoressócio-culturais, entre eles a criação,

pela cultura de massas, de umasubcultura juvenil, com um mercado

próprio e uma consciência etária. O

campo da arte é o espaçoprivilegiado de representação do

novo ideário, que manifesta-se numa

postura crítica radical à sociedadeindustrial, aos padrões de

comportamento e valores vigentes. Énesse contexto que o rock’n’roll,

expressão da geração “transviada”

dos anos 50, é reelaborado como oprincipal veículo da revolta e

rebeldia da juventude. Uma novaconcepção de música, de estilo de

execução e de letras das canções

selou um vínculo identitário queexpandiu para todo o mundo. Mais

do que um estilo musical, tornou-se

um fenômeno cultural.Em seguida a autora faz uma

caracterização da sociedadecontemporânea, utilizando o marco

teórico de Michel Maffesoli. Para

ele, o universo de valores nasociedade atual constitui uma nova

“episteme”: a da pós-modernidade.Neste novo caldo de cultura, as

relações sociais seriam caracterizadas

por um “neotribalismo”, uma

socialidade baseada na empatia. Dai

a categoria “tribo”: uma forma deagregação social determinado por

ambiências, sentimentos e emoções,reunindo aqueles que pensam e

sentem de maneira coincidente. Não

há um projeto definido, o grupo émovido pelo desejo de estar junto

num presente vivido coletivamente.A vida cotidiana das “tribos” é

caracterizada pela estética — o sentir

em comum; pela ética — o laçocoletivo e pelo costume — o resíduo

que fundamenta o estar junto. É estaa noção que vai orientar a análise

dos rockers.

O primeiro capítulo é umaetnografia do show de rock. O

objeto de análise é o evento coletivo

enquanto um ritual, onde um olharpanorâmico capta os movimentos

dos corpos, os gestos, as relaçõesexistentes, a emoção coletiva que

flui. Para a descrição etnográfica,

Guerrreiro constrói um showhipotético, escolhendo 3 bandas

(Paralamas do Sucesso, Legião

Urbana e Titãs) que, entre outroscritérios, abarcariam o universo de

estilos de rock no Brasil. Buscamostrar que o show é manifestação

de um neotribalismo

contemporâneo, um ritual modernoque conjuga fragmentos de

movimentos arcaicos com a altatecnologia, fazendo dos seus

participantes membros da “tribo”

urbana rocker.Os diferentes momentos do

show, como a chegada ou a saída; a

agregação das pessoas em grupos esua localização pelo espaço, cada um

deles com significados e emoçõespróprias; os rituais coletivos, como

as “olas” ou o acender de isqueiros;

o desejo presente nos olhares eencontros casuais; a experiência tátil

dos corpos se roçando, numa espéciede sexo grupal; a efervescência

manifesta na comunhão emocional

entre público e artista; a emoção

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248 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

Resenhas

partilhada do cantar e dançar juntos.

São aspectos que fazem do show umespetáculo, “a forma como a cultura

de massas se apresenta”. Nestesentido, tem uma dimensão de

negócio capitalista, de investimento

num mercado juvenil que é cada vezmais uma fonte de lucros, numa

configuração produzida pelos meiosde comunicação de massa. A autora

apenas pontua essa dimensão, o que

deixa em suspenso a questãopolêmica, e necessária, sobre o peso

e o significado da indústria culturalna produção de comportamentos e

valores da cultura juvenil.

Guerreiro torna evidente queeste mesmo espetáculo tem uma

dimensão de ritual, agregando

pessoas, permitindo a experiência desentir e experimentar em comum,

fazendo parte de uma massa humanaque se reconhece na mesma música,

que acompanha os mesmos gestos no

mesmo ritmo, e, principalmente, naidolatria ao ídolo comum, visto

como objeto de fascinação e envolto

em aura, como um mito moderno. Éuma catarse de emoções, com um

vitalismo que conjuga efeverscência epaixão, numa intensificação do

desejo, reforçada pelo roçar dos

corpos. O show também traz à tonao imaginário dos ideais comunitários

presentes no rock, numa atualizaçãodos seus valores fundantes.

Em síntese, ao apresentar o

show como espaço ritual, a autoraindica que o rock é mais do que

simplesmente a música, é uma

maneira de ser, ligado a um estilo devida, onde “os rituais dão forma às

suas ideologias, valores e posturas”.A sua existência, conclui, “nos levam

a crer que os novos agrupamentos

humanos ainda encontram paralelocom movimentos arcaicos que a mente

humana insiste em preservar. E talveznem a mais sofisticada tecnologia

que o homem possa alcançar

conseguirá aniquilá-los”.(48)

Ao descrever e analisar os

diferentes momentos do show, aautora chama a atenção para a

complexidade, no plano real esimbólico, de um evento tão presente

no cotidiano da vida dos jovens.

Entre outros aspectos, coloca-nosdiante da controvérsia a respeito da

efetividade ou não da tendência dedesencantamento do mundo presente

na sociedade moderna e o

conseqüente processo dedesritualização, numa atomização

individual no consumo de símbolos.Na sua especificidade, aponta que os

jovens, através ou apesar da

indústria cultural, vêm produzindoespaços e tempos coletivos onde

recriam e atualizam significados,onde experienciam processos rituais.

Resta saber se é significativo o

suficiente a ponto de substituir oucomplementar outros espaços e

tempos coletivos de referência devalores.

Porém, o capítulo apresenta

alguns problemas, relacionados ao

uso da categoria “tribo”. Um deles éa ambigüidade existente na

utilização do termo, ora como umametáfora, ora como uma categoria.

Na pg. 11 afirma ser uma categoria

nativa; na pg. 21 afirma que a noçãoirá ser usada de uma forma mais

descritiva do que como teoriaexplicativa da formação da

sociedade e na pag. 49, ao definir o

rocker, o faz apenas enquantoconsumidor da música rock. Nestas

situações utiliza o termo como

metáfora, dando a entender umagrupamento de iguais, que se

reconhecem na adesão ao rock,unidos numa “cerimônia” ritual.

Mas ao mesmo tempo, na pag. 41,utiliza a noção como uma categoria,

mas sem evidenciar as características

que a constituem, na perspectiva deMaffesoli. A questão, como nos

lembra Magnani (1992), não é autilização do termo em si, que pode

ser tanto uma metáfora quanto uma

categoria, mas sim a sua precisão, detal forma a descrever com maior

clareza o fenômeno que se querestudar, não tomando como dado

exatamente aquilo que é preciso

explicar.E é o que acontece em relação

aos rockers. O leitor não sai

totalmente convencido se estesconstituem-se realmente como uma

“tribo”, e, aqui, tanto no sentidometafórico quanto categorial.

Guerreiro afirma que o show é o

único momento onde se pode falarda existência concreta da tribo

rocker, mais tarde define o rockercomo consumidor de rock. Se assim

é, não há uma vida cotidiana, não há

um envolvimento orgânico de unscom os outros, não há a construção

de uma ética. E fica mesmo aquestão: será que os participantes

dos shows se reconhecem, possuem

um sentimento de pertença comorockers? Qual o grau de adesão do

jovem ao rocker como estilo de vida?

Se o rock foi analisado comoexpressão de um estilo de vida, será

que em nenhum outro momentoaqueles jovens não se agregam em

torno da música? As festas, por

exemplo, não poderiam ser umdesses momentos? Uma outra

questão é saber como os jovenselaboram individualmente essa

experiência, como contribui ou não

como elemento de identidade, alémda auto-definição como rocker. Em

outras palavras, será que ser rocker

não significa algo mais além doestilo musical e seu imaginário? Pode

ser que estas questões estejam alémdos objetivos e da opção

metodológica da autora, que não sepropõe a conhecer especificamente

uma tribo rocker nem o peso que

tem na vida dos jovens que delaparticipam. Mas a falta dos sujeitos

na pesquisa e os sentidos que estesjovens atribuem àquela experiência

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Revista Brasileira de Educação 249

Resenhas

social ali descrita pode ser

responsável por estas lacunas.No capítulo seguinte é

desenvolvida uma análise

interpretativa das canções, buscandotraçar um perfil sócio-cultural dos

rockers. Guerreiro tem comopressuposto de que é possível

alcançar o imaginário dos rockers

através das representações que osprodutores das canções de rock

elaboram para seus consumidores.Dessa forma analisa 105 discos e

1100 canções de 22 cantores e

grupos de rock, utilizando aproposta de análise de conteúdos de

Laurence Bardin. A própria autoraressalta, porém, “que é uma, dentre

múltiplas leituras que poderiam ser

empreendidas a partir de ummaterial tão rico”(104),

principalmente porque a canção éuma mensagem ambígua, que

contém uma pluralidade de

significações. Além do mais, sãomensagens de comunicação oral, em

que o significado depende muito da

performance do cantor e do contextode ocorrência. Não podemos

esquecer também que cada receptorpode atribuir um sentido próprio a

uma canção, sendo arriscado

qualquer generalização. Assim éproblemático poder afirmar que a

interpretação possa expressar operfil de um grupo social tão

heterogêneo. Ao mesmo tempo,

considerando seus limites, não deixade ser um novo veio de análise para

aqueles que se interessam na relação

entre grupo social e música.A autora identifica nas canções

uma grande variedade temática,terminando por agrupá-las em

quatro grandes temas: identidade,

amor e sexo, cotidiano e política. Noseu conjunto é possível, de forma

genérica, captar possíveis elementosconstituintes do imaginário juvenil.

O tema do cotidiano expressa o

tempo e o ritmo da metrópole, com

todas as suas contradições,

correspondendo à perplexidade quea vida urbana tem gerado, onde uma

nova forma de ser e relacionar têminterferido na própria produção dos

sujeitos sociais. O tema do amor e

sexo é o que apresenta o númeromaior de canções, sendo uma grande

inspiração que até então não deumostras de cansaço. O amor aparece

como a força criadora e

transformadora do mundo, capaz defazer coincidir o desejo e o destino.

O outro tema é a política, queaparece principalmente a partir de

1985, quando ocorre uma

“politização” do rock na esteira dacampanha das Diretas-já. As

denúncias, a descrença nos poderesinstituídos, a impotência diante da

realidade são aspectos de um

diagnóstico possível doenvolvimento da juventude com os

problemas nacionais

Um último tema é o daidentidade. Chama a atenção a sua

recorrência, o que demonstra a sua

centralidade para a juventudecontemporânea. As músicas parecem

expressar que não há mais umaidentidade, e sim uma diversidade

delas, fragmentadas, fruto da

heterogeneidade de grupos e valores,da realidade cotidiana descrita

anteriormente. Os conflitosexistenciais estão presentes diante da

incerteza e insegurança da vida, da

busca de sentido. As instituições queeram referência de valores, tais como

a família e a religião são

deslegitimadas como instâncias deorientação. Nessa ebulição, a busca

das próprias verdades aparece comouma saída, junto com a afirmação

do desejo de liberdade individual. Ogrupo aparece como um espaço para

adquirir parâmetros de

comportamento necessários para aconstrução da auto identidade. Em

suma as músicas expressam umconflito fundamental onde, de um

lado, tenta-se a afirmação do ser, do

ego, da liberdade individual. Poroutro lado, quando o ego volta-se

para dentro de si mesmo, mergulhanuma absoluta falta de sentido, num

vazio existencial que torna amarga a

auto definição. A interpretaçãorealizada coincide com análises que

procuram dar conta de uma novasubjetividade que vem surgindo,

fruto das possibilidades e limites

abertas pelo aprofundamento damodernidade, onde, pontua Melucci

(1996), a identidade não é maisconsiderada como uma essência mas

sim uma construção cotidiana,

caracterizada pela ambigüidade entreo auto reconhecimento e o

heteroreconhecimento. Através dasmúsicas, os jovens parecem se

colocar como os arautos de um novo

tempo.O terceiro e último capítulo é

uma leitura da história da música

popular brasileira desde os anos 60,onde é recuperada a presença do

rock no cenário cultural, e

estabelecida as relações entre a MPBe o contexto sócio-político

brasileiro. A autora pontua osmomentos mais significativos dessa

história, começando pela bossa

nova, chegando até o momento daexpansão do rock na década de 80.

Até este período, o estilo erareduzido ao circuito alternativo. A

partir de 1982 aconteceu uma

conjunção de fatores, entre eles, aemergência de uma nova geração

urbana que até então não se

reconhecia na produção musicalexistente. A descoberta deste filão

juvenil levou a indústria fonográficaa investir em novos grupos musicais.

Foi uma resposta industrializada àsexigências reais da época, um dado

significativo que relativiza o poder

da indústria cultural em criar estilos.Foi neste contexto que o rock

explodiu como um estilo musicalnacional, conseguindo articular os

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250 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

Resenhas

códigos da “urbes” e representar um

estilo de vida paradigmático dajuventude urbana. A partir dai

tornou-se “uma forma de expressãocultural que corresponde à sua

própria maneira de ser e de estar no

mundo”, transformando-se no estilodominante ao longo da década.

É importante observar como a

história recuperada por Guerreironos remete à algumas características

da história cultural brasileira quemerecem ser ressaltadas. Uma delas é

a relação da música com o contexto

sócio-político. As canções deprotesto são um exemplo, mas é o

festival da canção de 1968 que éparadigmático na evidência da

relação íntima entre a política e a

expressão cultural, quando ajuventude do período consegue

expressar toda a sua revolta eindignação nas arquibancadas do

Maracanãzinho e nas letras das

músicas, numa forma lúdica dedriblar a censura existente no

período. Outro aspecto que chama a

atenção é a dimensão de ruptura econtinuidade existente na história da

música. A relação entre a rebeldia eo rock é um exemplo, estando

presente desde os anos 50, mas

sempre com uma nova feição, “umanova/velha bandeira”: é a

delinqüência juvenil e o rock’n’roll; éa contracultura e o hippismo e o

rock dos anos 60; é o punk com seu

som pesado, “sujo” e agressivo nosanos 70. E o rock no Brasil, a partir

de meados dos anos 80, depois de

uma fase “adolescente”, querecupera a rebeldia através da crítica

sócio-política, se tornando o grito deguerra nas passeatas do período. A

música “Inútil”, do grupo “Ultraje aRigor” por exemplo, se tornou o

emblema do movimento dos “caras

pintadas”. Um último aspecto aressaltar é a perspectiva de processo

detectada na cultura nacional, nadireção de um amadurecimento e

uma abertura às trocas culturais.

Somos devedores do movimentotropicalista pela experiência

revolucionária de uma fusão denossa herança cultural com o que

havia de mais moderno, numa

reelaboração (ou numaantropofagia, como afirmavam os

próprios tropicalistas) que ampliouas possibilidades de produção

cultural para muito além da

tendência nacionalista, presente nodebate sobre o que era ou não

genuinamente nacional ou mesmoentre o erudito e o popular.

Atualmente o rock não detém

mais a hegemonia no cenáriocultural, havendo até prognósticos

do seu desaparecimento. De

qualquer forma ele continua vivo nainfluência aos diversos ritmos

musicais que coexistem atualmente,cada qual expressando estilos de

vida diversos. É a manifestação da

heterogeneidade cultural presente nomundo contemporâneo, que tem na

tensão entre o particular e o

universal, o local e o global um dosmaiores desafios. De qualquer

forma, a música continuainfluenciando/sendo influenciada

pelos jovens, que parecem sentir

através dela alguma coisa que nãoconseguem explicar nem exprimir:

uma possibilidade de reencontrar osentido. Podemos dizer assim que os

jovens podem ser reconhecidos como

a difícil invenção de maneiras deviver em um mundo novo, em que

certamente nossa palavra parece não

mais os guiar. Diante doestranhamento a que são sujeitos pela

sociedade, que tende a imputar-lhesestereótipos, taxá-los de alienados

ou outras alcunhas, devemos lembrarque esse mundo onde os jovens estão

se construindo e sendo construídos é

o mundo possível que nossa geraçãoconstruiu e vem deixando como

legado. Se há algum desvio, aresponsabilidade é de todos.

Finalizando, podemos dizer

que o trabalho de Guerreiro não élinear, onde o texto sugere mais do

que desvela, toca em questões queficam sem respostas, mas ao mesmo

tempo apresenta reflexões e insights

que instigam. Vem reforçar aimportância da dimensão artística, e

nela, a centralidade da música e suasexpressões, como uma forma

privilegiada de conhecer a juventude

como ator social. Neste sentido olivro é uma contribuição

significativa, principalmente selevarmos em conta a escassa

bibliografia existente com esse

enfoque. Mesmo não tendo ajuventude como objeto da pesquisa,

muito menos a educação como umapreocupação presente, é um trabalho

que deve interessar aos educadores

na medida em que problematiza, quetraz elementos para melhor conhecer

esse setor social tão polêmico quantopouco estudado.

Bibliografia citada

MAGNANI, José Guilherme Cantor.

Tribos urbanas: metáfora oucategoria? In: Cadernos deCampo, Ano II, nº 2. São

Paulo: USP, 1992.MELUCCI, Alberto. Il Gioco dell’io.

Milão: Saggi/Feltrinelli, 1996,

3º ed.

 Juarez Tarcísio Dayrell 

Universidade Federal de Minas Gerais

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Revista Brasileira de Educação 251

Notas de Leitura

Esse livro resultou de umapesquisa coletiva interuniversitária

realizada no decênio compreendido

entre 1982 e 1992 por professoresdas universidades de Bolonha,

Ferrara, Modena e Parma tendo por

título Espaço jovens: pesquisa sobrecentros de agregação juvenis.

A investigação toma comoobjeto de estudo a condição juvenil 

privilegiando a agregação juvenil 

enquanto comportamento sócio-existencial e a oralidade juvenil 

como código de comunicação.

A publicação dos resultados dapesquisa envolveu a contribuição de

doze autores abordando oito temas

distintos distribuídos em doisgrandes blocos temáticos: Parte I -

Fazer-se homens. As grandes etapasdo crescimento; Parte II - Flashes

sobre as problemáticas juvenis.

A primeira parte compreendequatro temas. O primeiro,

denominado O léxico dos  jovens.Reflexões sobre os dados de uma

 pesquisa, se subdivide, por sua vez,

em quatro tópicos: Linguagem como

FRABONNI, Franco;GENOVESI, Giovanni;MAGRI, Primo; VERTECCHI,Benedetto (Orgs.). Giovani 

oggi tra realtà e utopia .Milano: Franco Angeli, 1994.

jogo, de Giovanni Genovesi; Língua

comum, língua padrão, língualiterária, de Alessandra Briganti; O

léxico dos jovens: uma leitura em

chave educativa, de BenedettoVertecchi; e Dicionário do léxico

juvenil, organizado por Maria Fibbi,Giovanni Genovesi e Lorenza

Raponi.

O segundo tema, de autoria deFranco Frabboni, tem por título

Desorientados inquietos

descompromissados. Viagem aoContinente-jovens: em direção a um

 ponto final de nome participação-

 protagonismo. Aqui o autor,lançando mão da metáfora da linha

de ônibus, tece considerações sobre oprocesso através do qual os jovens

chegam a superar suas inseguranças,

intimismos e rebeldias por umcaminho onde destaca a importância

da adminstração pública local e doassociativismo. Propugna, então,

pela articulaçãso desses dois

elementos na formulação de uma

política de juventude tendo por eixodois modelos de agregação juvenil:os centros adolescentes e os centros

juvenis, descrevendo as respectivas

finalidades, sua estrutura econteúdos.

No terceiro tema, Os jovens e

a nova política, Enzo Catarsi analisaas relações entre os jovens e a

política no contexto da longaadolescência, destacando a

importância de um sistema

formativo integrado no qual a escoladesempenha papel central na

educação política dos jovens.

O quarto tema, Os jovens esua imagem, foi construído por

Primo Magri com base numa

exploração razoavelmente detalhadados dados obtidos através de

enquetes realizadas comadoloscentes e jovens. A partir daí

emerge a imagem que os jovens

fazem de si mesmos destacando-se operfil psicológico, a socialização

(família, amizade e amor), a escola e

a cultura, o tempo livre, trabalho eprofissão.

O uso do termo flash na

segunda parte indica que se trata deabordagens sintéticas iluminando

aspectos específicos da condiçãojuvenil. Aqui também são destacados

quatro temas: Paideia, philia e eros.

Reflexões sobre o papel da amizadee do amor na formação dos jovens,

de Anita Gramigna; Jovens

portadores de deficiência em buscado tempo livre, deMaura Gelati;

Grupos juvenis espontâneos eassociativismo juvenil organizado,

de Liliana Dozza; e As trocas juvenisinternacionais, de Massimo Baldacci.

Como destacam os

organizadores na Apresentação dolivro, a pesquisa espaço jovens se

propunha a atingir um tríplice alvo

investigativo, todos eles em

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252 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

GUIMARÃES, Eloisa. Escolas,

Galeras e Narcotráfico . Riode Janeiro: Departamento deEducação, PUC-Rio, 1995(Tese de Doutorado).

Giovani: Aspetti e problemieducativi della condizionegiovanile oggi. Ricerche 

Pedagogiche , n. 116-117,luglio-dicembre 1995.

Trata-se de um número duplo,

de caráter monográfico, da RevistaRicerche Pedagogiche, versando

sobre a problemática juvenil.

O volume reúne, em suas 174páginas, vinte artigos resultantes da

contribuição de dezoito autores

oriundos de nove diferentesuniversidades italianas (Bari,

Bergamo, Bologna, Chieti, Ferrara,Firenze, Padova, Parma e Pisa).

O primeirro artigo, de autoria

predominantemente pedagógico

adotado pelos autores, resultainegável a relevância desse número

duplo da Revista RicerchePedagogiche para os pesquisadores

da educação e para os educadores de

maneira geral.

Dermeval Saviani

Universidade Estadual de Campinas

perspectiva eminentemente

pedagógica.O primeiro alvo, de caráter

hermenêutico, se traduziu numa

contribuição ao esclarecimento docontrovertido tema da identidade e

condição juvenis no contexto atualde uma sociedade complexa e em

transição.

O segundo alvo, de caráterargumentativo, envolveu uma

contribuição no sentido tanto de se

decifrar como de se formularpolíticas culturais voltadas à

participação ativa dos jovens naorganização dos próprios espaços

sociais e existenciais.

O terceiro alvo, de cunhoespecificamente investigativo, se

refere à contribuição trazida pelos

autores, através de cuidadosapesquisa de campo, à “leitura

(quantitativa e qualitativa) da atualprodução oral dos jovens em

situação de agregação e de tempo

livre” (p. 8).

Dermeval Saviani

Universidade Estadual de Campinas

do diretor da Revista, Giovanni

Genovesi, versa sobre a necessidadede clareza do próprio conceito de

jovem. Os demais artigos abordam,todos eles, a questão da juventude

em relação com os temas da família

(Enzo Catarsi), da política (FrancoCambi), escola e trabalho (Primo

Magri), universidade (LucianaBellatalla: os jovens e a universidade;

e Saverio Santamaita: os jovens

graduados), a profissão (AngeloLuppi), os jornais (Anita Gramigna),

o associacionismo (FrancoFrabboni), a educação profissional e

os centros de agregação (Maura

Gelati), a sexualidade (GiovanniGenovesi), a linguagem (Antonio

Santoni Rugiu), a literatura (MarioValeri), poesia (Marco Riguetti),

música (Alessandra Avanzini), os

meios de comunicação de massa(Luciano Galliani), cinema e teatro

(Daniele Seragnoli), esporte(Piergiovanni Genovesi), violência

(Lino Rossi) e tóxico-dependência

(Giovanni Genovesi).

De um modo geral, os artigosse fazem acompanhar de abundantes

referências bibliográficas, o que seconstitui num recurso da maior

utilidade para os leitores

interessados em pesquisar o tema ouaprofundar o conhecimento das

questões a ele relacionadas.

A simples relação dos títulos,como indicado acima, já permite

constatar o leque amplo de situaçõesreferidas à questão dos jovens

abrangido por essa publicação.

Registre-se, ainda, o empenho decada autor em abordar de forma

sintética mas consistente osrespectivos temas.

Em se tratando de um assunto

em si mesmo de naturezaeducacional — de vez que os jovens

são parte integrante, ao mesmo

tempo como sujeto e objeto, doprocesso educativo — e

considerando o enfoque

A tese de Eloisa Guimarãestem por objetivo analisar a inserção

da escola pública nos diferentes

processos sociais que vêm sedesenvolvendo recentemente no

Brasil e, principalmente, no Rio de

 Janeiro.Os processo estudados são

exteriores à escola. São eles: o

narcotráfico, as galeras e os

movimentos juvenis. Destacam-se,neste último aspecto, os movimentosde jovens que se constituem a partir

de ritmos musicais,

predominantemente “funk” e“house”.

Apesar de exteriores à escola,

estes movimentos, e aqui está umadas grandes contribuições desta

pesquisa, exercem sobre a escolauma interferência a tal ponto, que a

transforma, seja em sua organização,seja na sua capacidade de cumprircom suas funções mais gerais que lhe

são atribuídas socialmente.

As análises de EloisaGuimarães são o resultado de

pesquisa etnográfica realizada emduas escolas municipais cariocas,

sendo a primeira localizada na área

central da Tijuca, zona norte do Riode Janeiro, na proximidade dos

Notas de Leitura

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Revista Brasileira de Educação 253

méritos da pesquisa realizada por

Eloisa Guimarães: a sociabilizaçãodo jovem no Rio de Janeiro pelas

galeras, diferenciando-a donarcotráfico.

É comum a sociedade

estigmatizar os membros das galerascomo bandidos e traficantes. A

autora nos mostra sensíveis

diferenças existentes entre os doismovimentos. Existem galeras que

mantém relação com o narcotráficoinclusive funcionando como

formação de mão-de-obra para este.

Outras apenas se dispõem a cumprircertas determinações dos “donos dos

morro”, pois se organizam noterritório dominado pelo

narcotráfico.

O que ressalta Guimarães, éque não é essa base de sua

constituição. Algumas ações das

galeras inclusive, atrapalham otráfico, demandando ações de seus

chefes, tidos ou conhecidos como

“donos do morro” já que searticulam e atuam nas áreas

dominadas pelo tráfico. Porexemplo, a briga entre galeras pode

atrair a presença da polícia e afastaros consumidores de drogas.

Eloisa Guimarães nos aponta

três fatores que se inter-relacionam

para a constituição das galeras: asegregação social imposta aos

grupos de onde elas se originam, arecente história dos movimentos

juvenis em termos mundiais e a

organização do crime existentenesses locais.

A violência é, sem sombra dedúvida, o principal elementoestruturador das galeras. Porém,

diferente do narcotráfico, onde asrelações têm por objetivo expandir

os negócios do tráfico e, por

conseguinte ampliar o lucroimediato, as galeras têm na

organização de seu própriomovimento o foco central de suas

ações.

morros, nos anos de 89 e 90, onde

foi pesquisado o universo do períodonoturno. A outra escola pesquisada

localiza-se em Jacarepaguá, zonaoeste, realizada entre 91 e 92, sendo

o ensino diurno o universo da

pesquisa.

Caracterizando os movimentos

NarcotráficoNos diz a autora que o

narcotráfico, a partir da década

passada tem sofrido significativaexpansão em várias cidades do

mundo.

No Rio de Janeiro a presença eo poder desses grupos se fazem sentir

não só pela ousadia e violência desuas ações, mas também pelo seu

alto poder de organização e

hierarquia interna, além de estaremassociados às estruturas mais amplas

do crime organizado.

O autoritarismo e a violênciadas ações do narcotráfico não se

restringem apenas a seus membros,

mas afetam a toda a população quehabita nas áreas por eles ocupadas.

O poder das armas de fogo é a

garantia do cumprimento de acordosfirmados com e entre os traficantes.

A radicalidade nas estruturasda vida da população é o que

garante, segundo Guimarães, a

expansão e a sobrevivência donarcotráfico no Rio de Janeiro. Com

a população, o narcotráfico mantémduas formas distintas de ação: por

um lado, instituem sistemas próprios

de poder, baseados na força das

armas e interferindo nos maisdiferentes níveis de vida da população;por outro lado, oferecem “serviços”

que, na verdade, deveriam ser

supridos pelo Estado, tais como aproteção contra outros bandidos,

construção de quadra de esportes,assistência hospitalar, medicamentos,

alimentação, entre outros.

As galerasAqui se apresenta mais um dos

Notas de Leitura

Na organização do movimento

o território ocupar lugar dedestaque. A noção de território é

bastante complexa e ultrapassa suadefinição geográfica. Apesar de não

ter sido explorada pela autora em

toda complexidade que apresenta,podemos da tese extrair seu sentido

como sendo um espaço paraelaboração simbólica e construção

da identidade desses jovens. Desarte,

portanto, que as fronteiras nemsempre são visíveis, porém

tacitamente acordadas entre osgrupos e, dentro de seus limites, são

instauradas regras e formas de

comportamentos próprias daquelegrupo. São muito voláteis,

permanecendo em tensão constante,originadas por contínuas “brigas”

pelo seu domínio.

Além da manutenção eexpansão dos territórios, a violência

é utilizada ainda pelas galeras, para

proteção de seus membros, paraimpor respeito às regras, para defesa

da honra que, segundo a autora, é

vista pelos membros das galeras emseu sentido tradicional, ligada à

brutalidade, masculinidade evirilidade.

O conceito de galera, assim

definido, é realmente uma novacontribuição aos estudos da

sociabilidade juvenil no Brasil. Em

termos comparativos se aproximamuito mais do conceito de gangues

norte-americanas, principalmente deLos Angeles1 , que àquele

apresentado por Dubet, sobre as

galeras francesas2

. No casobrasileiro e restringindo-se à questão

da sociabilidade, podemos encontrarsimilares nas torcidas organizadas de

futebol3 .

“Funkeiros” e “Houseanos”Os “funkeiros” são grupos de

jovens que se constituem a partir do

gênero musical “Funk”, além de umestilo próprio de vestimentas e

indumentárias. Apesar de não ser

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254 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

uma regra, normalmente, os

funkeiros são membros das galeras.Os “houseanos” são também

grupos de jovens articulados em

torno da música, neste caso“house”. Apesar de habitarem as

mesmas áreas dos funkeiros,procuram deles distinguirem-se, no

que diz respeito às vestimentas,

padrões de comportamentos e,principalmente, a violência.

Nos jovens pesquisados pela

autora, o “baile” apresenta-se comoprincipal meio de diversão. Outras

formas de lazer são apontadas:perambular pelas ruas com os

amigos, ouvir música, conversar com

os amigos, assistir televisão, jogos derua.

Estes meios de diversão são

hierarquizados pelos jovens e, aautora nos mostra que no topo da

hierarquia, distante das demais, estáo baile.

O baile é o acontecimento

mais esperado e desejado pelos

jovens. Durante a semana, poraqueles que já o freqüentam ou, por

aqueles que ainda não possuem

idade, aguardando ansiosamente odia em que poderão frequentá-lo.

A autora nos mostra, a partirda relação que os jovens mantém

com o baile, que a dança e a música,

aliadas às formas de se vestir e ossistemas de deslocamentos em

grupos aliados” (p.132), sãoindicativos da definição do “modo

de ser” desses jovens.

Para melhor investigar a

relação existente entre funkeiros ehouseanos, a autora nos apresenta o

conceito “Cultura da Evitação”4 ,emprestado de Silva e Milito, pois,

segundo ela, tal conceito permitecompreender os comportamentos e

distanciamentos que se apresentam

nas ruas do Rio de Janeiro, nossegmentos das classes médias em

relação à população maisempobrecida, a fim de estabelecer

fronteiras no que diz respeito aos

movimentos, lugares, condições devida e violência destas populações.

A EscolaFeita essa caracterização dos

movimentos, devemos retornar

àquele que é o objeto da pesquisarealizada por Eloisa Guimarães.

Segundo a autora, esses

movimentos estão presentes naescola levando-a a alterar suas

formas de organização e, o que é

mais grave, impedindo-a deconcretizar suas funções mais gerais

atribuídas pela sociedade.

A escola apresenta-se como umdos espaços sociais do universo

estudado. E, como nos demais, asgaleras e o narcotráfico estendem

sobre ela suas redes de controle.

Ao longo de mais de trintapáginas, a autora relata de modo

extremamente envolvente o “cerco”

e a invasão da escola pelas galeras,suas motivações, além de apresentar

os encaminhamentos efetuados pela

direção da escola.O cerco sobre a escola tem

duas motivações, segundo

Guimarães: ampliar o espaçocontrolado pelo tráfico e como

forma de exercitar os “princípios efazer valer os projetos organizativos

das galeras” (p.40).

Contudo, ressalta a autora, asorigens das brigas não são o

resultados da ação direta dos

traficantes, antes passam pela“intermediação de outras esferas

sociais das formas de organização

dos jovens membros das galeras” (p.79), a partir de onde elas são

desencadeadas, o baileprincipalmente.

Com relação ao narcotráfico, a

escola encontra-se em semelhanteposição que as populações que

residem nas áreas comandadas pelonarcotráfico: ora subjugada, ora

protegida. A diferença é em relação à

escola as ações do narcotráfico são

infinitamente mais discretas. Para os

traficantes, a escola significa aampliação da área física para suas

atividades e dos grupos sociais sobseu controle. Para a escola, a figura

dos “donos do morro”, apresentam-

se ora como protetor, ora mediadorde grupos em conflito ou

sintetizando as duas funções.

É nesse ambiente no qual asescolas pesquisadas estão

mergulhadas negociando suaexistência ou sobrevivência com o

tráfico ou isolando-se da

comunidade que, segundo conclusãoda autora, os padrões mais gerais

que norteiam a organização dainstituição escolar são rompidos. A

escola perde, seu papel, assim

definido por Bourdieu5 , detransmissão da educação letrada e

na inculcação no sujeito dascategorias e dos esquemas

perceptivos que tornam possível o

consenso cultural (p. 6).

Nesse sentido, os jovens sãosociabilizados a partir de processos e

valores exteriores à escola.

Não constróem uma

experiência escolar, antes sãosociabilizados no que a autorachamou de subcultura escolar. Não

são jovens “da” escola, são jovens

das galeras, funkeiros, houseanos,traficantes, bandidinhos, presentes

“na” escola.

A escola torna-se então, umaagenciadora de experiências que

estão muito além das desejadas eatribuídas pela sociedade. Passa a

não mais existir enquanto umaInstituição (no sentido sociológicodo termo), mas como uma

organização tentando sobreviver.

Eis o que a autora nosapresenta como sendo o grande

desafio das escolas de contextossemelhantes aos aqui descritos:

“encontrar formas de relacionamento

e de convivência com os diferentesuniversos contidos em seu interior e

Notas de Leitura

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Revista Brasileira de Educação 255

que se manifestam no meio

circundante, sem abrir mãos de suasfunções mais fundamentais” (p. 13).

Notas

1 JANKOWSKI, B. Les gangs auxÉtats-Unis Bilan desrecherches. Relatório de

Pesquisa, 1992. (mimeo)2 DUBET, F., LAPEYRONNIE, D.

Les quarties d’exil. Paris: Seuil,

1992. cap. 6. La galère.3 TOLEDO, Luiz Henrique de.

Torcidas organizadas de

futebol. São Paulo: EditoresAssociados/ANPOCs, 1996

4

SILVA, Hélio R. S., MILITO,Cláudia. Vozes do meio. Rio de

 Janeiro: Relume-Dumará, 1995.5 BOURDIEU, Pierre. Reprodução

cultural e reprodução social.

In: MICELLI, Sérgio (org.). AEconomia das trocas

simbólicas. São Paulo:

Perspectiva: 1982b

Manoel Rodrigues Portugues

Mestrando - Faculdade de Educação,

Universidade de São Paulo

A tese de doutorado de Maria

Ornélia Marques procura entender

as novas formas de socialização esociabilidade dos jovens das classes

trabalhadoras moradoras daperiferia das grandes cidades

brasileiras e estudantes da escola

noturna, partindo de umacompreensão ampla (das diversas

formas de construção da identidade)

MARQUES, Maria Ornélia daSilveira. Os jovens na escola 

noturna: uma nova presença.São Paulo. Tese (Doutorado)— Faculdade de Educação daUniversidade de São Paulo.

e não mais comparando-os aos

movimentos juvenis da década de60. Para tanto, procurou traçar um

perfil do aluno-trabalhador (dequinta à oitava série) de uma escola

pública de 1º e 2º graus de três

turnos de ensino da periferia deSalvador, por meio da compreensão

da relação desse aluno com a escola,o trabalho, a família, a cultura, o

lazer, sua expectativa, aspirações e

como está sendo construída suaidentidade desses múltiplos espaços.

No decorrer do texto vão

sendo confirmadas as seguinteshipóteses:

1) A escola pública hoje não é

mais freqüentada — como sepensava até então — por adultos-

trabalhadores e sim por jovenstrabalhadores. Os dados mostram

que a grande maioria dos estudantes

do período noturno pesquisado estána faixa de 14 a 24 anos, jovens que

se inserem no mercado de trabalho

não só por uma questão de pobrezamaterial, mas também porque pelo

trabalho passam a ser respeitados e ater autonomia em relação ao adulto,

criam um novo espaço deconvivência, possibilidades de fazernovas amizades, ampliam os

horizontes de conhecimento, podemconsumir os bens culturais que os

identificam enquanto jovens, etc.

Esses jovens que se inserem noprimeiro momento no mercado de

trabalho informal estão sempre

oscilando entre o trabalho e a escola,pois, mantém com o primeiro uma

relação de relativa responsabilidadee autonomia. Porém, tem como

norte o trabalho formal para o qual

a escola será um trampolim.A escolha do período noturno

na maioria das vezes se dá antes

mesmo de se ter um trabalho e ascausas principais são a repetência e o

abandono da escola diurna.

2) O mundo do trabalho não émais uma referência central para

analisar esses jovens-trabalhadores.

A autora argumenta que as analisesque colocaram o trabalho como

referência central da análise dasociedade, seja apontando um

caráter positivo ou negativo na sua

grande maioria tiveram como objetoum trabalhador abstrato. Partindo

sempre de grandes categorias sociais,não levando em consideração o que

há de mais específico no

trabalhador, seus desejos,aspirações, expectativas, suas formas

de socialização e sociabilidade no epelo trabalho, suas relações com a

escola e com a sociedade mais ampla

(família, lazer, saúde, etc.).Além do mais há uma grande

parcela de jovens desempregados ou

subempregados no mercado informalde trabalho o que dificulta uma

analise desses jovens a partir dotrabalho formal.

3) Os jovens procuram a

escola como forma de “melhorar a

vida” e a mesma propicia situaçõesde afirmação de identidade.

Os jovens subvertem a ordem

da escola, ou seja, conseguem

transformá-la em “locus” desociabilidade, onde criam uma redesignificativa de contatos e

aprendizado (de grande peso na

formação de sua identidade) e aindaessa escola representa a possibilidade

de credenciá-lo (via “diploma”) paraum trabalho melhor no futuro —

uma vez que o mercado de trabalho

tem exigido cada vez mais um altograu de escolarização. O conteúdo

das aulas é desprezado, talvezporque esses estejam distantes da

realidade cotidiana do educando.

A autora parte do princípioque a função da escola — formar o

cidadão através da socialização dos

conhecimentos e habilidades básicasque possibilitem a decodificação das

informações e valores transmitidosao educando no seu cotidiano;

habilitá-los para a participação ativa

Notas de Leitura

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e crítica na vida social e política não

está sendo cumprida, pois a chamadademocratização da educação

ocorrida a partir da década de 70acabou por expandir uma caricatura

da escola. A escola recebeu novos

usuários com as velhas estruturas,ou seja, não se adequou à expansão;

criou formas de atendimento quenão deram conta de atender com

qualidade os novos usuários.

Uma vez não cumprindo a suafunção a escola acaba sendo

apropriada pelos alunos que fazem

com que ela cumpra o papel deespaço relativamente barato de

sociabilidade. Os educandos criamuma rede de ligações, amizades,

aprendizado, solidariedade, mas

sempre entre eles, é como se elespudessem ter uma relação nula com

os funcionários, professores,conteúdos programáticos, com as

regras escolares, enfim com tudo que

diz respeito a instituição escolar.

Por fim o texto terminaapontando a necessidade de escola

encontrar novas funções,canalizando a energia do jovem, seu

poder de subverter a ordem escolar,de criar novas experiênciasindependentes das instituições.

Maria Socorro G. TorquatoMestranda - Departamento de

Sociologia, Universidade de São Paulo

Notas de Leitura

NAKANO, Marilena. Jovens: 

vida associativa e subjetividade 

- um estudo dos jovens do 

 Jardim Oratório. (Dissertaçãode Mestrado). Faculdade deEducação da Universidade deSão Paulo, 1995.

Com este trabalho, a autora

procura pensar o processo desocialização de jovens, em um

ambiente que pode ser considerado

difícil dadas as precárias condições

de infra-estrutura e situações

permanentes de violência. Trata-sedo Jovem Oratório, a maior favela de

Mauá, região da Grande São Paulo.

À primeira vista, o local écaracterizado por dois mundo bem

delineados: os atores da urbanizaçãoda favela, composto por três

associações de moradores — a

Sociedade Amigos de Bairro (SAB), aUnião Popular e a Comissão da

Terra, todas com protagonistasdiferentes e perspectivas distintas e o

mundo da violência. Um primeiro

dado instigante está exatamente nofato dos jovens não se engajarem com

afinco no primeiro e na existência derazões que levam alguns poucos a

buscarem o segundo.

O cotidiano do JardimOratório, no entanto, não está

marcado unicamente pelo mundo da

violência e pela ação do movimentode urbanização da favela. Diferente

formas associativas bem particulares

coexistem naquele local, integrandovários jovens. Tais formas

associativas vão além dos limites dafamília e da casa, verificando-se

entre os próprios jovens e entreinstituições interferências recíprocas,visto que a “socialização não é um

processo unilateral... É um processorecíproco, visto que afeta não afeta o

indivíduo socializado, mas também

os socializantes.” (Berger, Peter eBrigite. In: Foracchi, Marialice e

Martins, José de S., 1977).

Partindo da idéia de que ajuventude é sensível à crise social —

exatamente por não estar inserida nomundo adulto — crescer nas

condições de vida proporcionadas

pelo Jardim Oratório sem dúvidanão é algo simples. Para entender

como se dão tais processos, foinecessário enveredar pelas diferentes

formas associativas que esses jovens

se mostraram capazes de produzir:ao se unirem em grupos, eles

compartilham valores, questionando

assim os fundamentos sociais da

compreensão adulta de mundo;processo esse que se dá exatamente

no contato com esse mundo adultos,ou seja, é com os adultos que os

jovens aprendem a ser adultos

(Foracchi, 1972). O problema dapesquisa foi, então, pensar quais as

possibilidades dos jovensdesenvolverem ações e se

constituírem coletivamente como

sujeitos, já que pareceu-nos ser umahipótese inicial da autora a

possibilidade de “ruptura erecuperação do sentido social

através de uma práxis inovadora

“(p.11) por parte desses jovens.Nesse sentido, foram levantados

processos combinados desocialização e dessocialização,

envolvendo jovens e algumas

instituições.A autora estudou a primeira

geração de jovens do Jardim

Oratório, nascida no local entre finsda década de 70, início da de 80, ou

vinda para lá ainda criança. Para

entendê-la, a autora consideraimportante começar por entender

sua infância.“A experiências posteriores

[desses jovens] são sobrepostas às

impressões básicas, formando outrosestratos, e tendem a receber seu

significado do primeiro, quer

apareçam como confirmação, quercomo sua negação e antítese.”

(Abramo, 1994)

Para estudar os vários gruposde jovens a autora fez um recorte

contendo grupos localizados emespaços circunscritos, mediados e

tutelados por instituições como a

Igreja Católica ou a família; gruposmontados a partir de objetivos

específicos como aprender tricô outocar violão e grupos voltados para

“fora”, para a exibição e

representação do local em quevivem, como os rapazes do futebol

ou da escola de samba.

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Revista Brasileira de Educação 257

Notas de Leitura

A autora chama a atenção

sobre a disposição que têm essesgrupos para o lazer, para muito além

de leituras que “deixam de abordaro que isto significa para aqueles que

realizam a atividade, na medida que

o recorte da análise é eminentementeclassista. (...) [Tais espaços dizem]

respeito também a “um campo ondeo jovem pode expressar suas aspirações

e desejos e projetar um outro modo

de vida” (Abramo, 1994).O mesmo cuidado deve ser

tomado com relação às questões

culturais, se tomadas simplesmentecomo “um reflexo do modo de

produção”, pois esse raciocíniotende a remeter para a reflexão

apenas em torno de questões

externas ao Jardim Oratório,dificultando a compreensão de

mundos que lá se constróem.

Finalmente, um últimocuidado especial com relação à

religião e à leitura corrente de ver a

ação da Igreja Católica como apenas“tentativa de manipulação da

população pobre” (p. 84),desconsiderando as múltiplas

possibilidades que tais atividadespodem propiciar.

Os jovens se agrupam para

realizar o que desejam. Amizade e

solidariedade são elementos centraisrealizando diferentes formas

associativas pelo ser e não pelo ter.A dimensão do “ter”, no entanto,

possui importância nesse local: o

consumo acaba sendo um agentenegador da condição de favelado, na

medida em que, na fala deles, vestir-se bem, com roupas da moda, faz

com que eles se pareçam como

qualquer pessoa não-favelada. Assimo jovem acaba oscilando entre um

individualismo expressivo — daordem do ser — e um individualismo

de mercado — marcado pela auto-

definição e pela negação: a de não-favelado (mais ou menos como as

ovelhas da fábula contada por

Nietzsche, que viam o lobo como

mal, e que logo, elas, como “não-lobo”, eram boas).

Outra colaboração importante

do trabalho de Nakano diz respeitoà própria socialização desses jovens e

à mediação do mundo adulto. Se porum lado, a autora reconheceu que é

o contato com adultos que se

aprende a ser adulto, por outroidentifica que jovens e adultos ficam

enclausurados nas malhas de suasrelações. Isso explica o não interesse

dos jovens pelo movimento de

urbanização. Tal fato, somado anaturalização de ser favelado, acaba

por limitar a noção de direitos —que o “movimento produziu e não

foi capaz de ampliar”.

“Essas questões apontam paraa necessidade de uma reflexão sobre

a vida democrática pois indicam que

‘para que (ela) se desenvolva, não épreciso unicamente que seja aberta, é

preciso também que ela se faça

representativa, que os atorespercebam suas experiências

individuais através dos jogoscoletivos’” (Dubet, 1992).

A não incorporação dasubjetividade é explicativa desseprocesso. O ouvir o outro, buscar

entender suas necessidades, parecer

ser o grande diferencial para oenriquecimento de ações sociais mais

profundas, mobilizando maior emais comprometido grupo de

pessoas. O distanciamento em

relação à escola, vista comoestigmatizadora e descomprometida

com os alunos atesta essa máxima.Ao realizar um trabalho arespeito dos processos de

socialização com o jovem e não dojovem — como porta-voz das

demandas que suspostamente fariam

parte do mundo dessas pessoas(Bourdieu, 1986) — a autora abriu o

canal para esse “ouvir”. Toda ariqueza de sua pesquisa partiu dessa

condição.

Referências bibliográficas

ABRAMO, Helena W. Cenas

 juvenis: punks e darks no

espetáculo urbano. São Paulo:Scritta, 1994.

BOURDIEU, Pierre. De quoi parle-t-on quand on parle du ‘probleme

de la jeunesse’?. In: Les jeunes e

les autres: contributionsdesenvolvimento sciences d

l’homme à la questiondesenvolvimento jeunes.

Naucresson: CRIV, 1986.

DUBET, François, LAPEYRONNIE,D. Les quarties déxil. Paris: Seil,

1992.FORACCHI, Marialice M. A

 juventude na sociedade moderna.

São Paulo: Pioneira, 1972.__________, MARTINS, José de S.

Sociologia e Sociedade. Rio de Janeiro: LTC, 1977.

MAGNANI, José G. C. Lazer dos

trabalhadores. In: Revista SãoPaulo em perspectiva. São Paulo:

Fundação SEDA: 2(3), jul/set, 1988.

ZALUAR, Alba. A máquina e arevolta. São Paulo: Brasiliense,

1985.

Pedro Augusto Hercks Menin

Doutorando - Faculdade de Educação,Universidade de São Paulo

TEDRUS, Maria Aparecida. Jovens: trabalho nas ruas eexperiências de sociabilidade.São Paulo, 1996. Dissertação

(Mestrado em Educação) —Faculdade de Educação daUniversidade de São Paulo.

 Jovens: trabalho nas ruas e

experiências de sociabilidade é otítulo de dissertação de mestrado,

apresentada à faculdade de

Educação da USP em fins de 1996por Maria Aparecida Leladini

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258 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

Tedrus. Trata-se de um estudo sobre

os jovens que trabalham ou que, nostermos da autora, têm uma

“ocupação de ganho” ou “lucrativa”nas ruas, através de depoimentos dos

próprios jovens — a ótica, portanto,

não é a do mercado de trabalho ou adas instituições que, de uma forma

ou de outra forma, atuam junto àpopulação juvenil (escola,

organizações de defesas de direitos,

polícia, poder público em geral). Sãoos próprios jovens que descrevem as

suas experiências nas ruas e como sedesenrola sua sociabilidade, esta

entendida pela autora como a

construção de relações significativas.Sem se prender a um conceito

puramente etário (acompanhando os

irmão mais velhos, a autoraencontrou nas ruas cinco crianças,

entre quatro e nove anos de idade),Tedrus propõe-se perceber a

peculiaridade da condição juvenil de

uma categoria determinada dejovens: aqueles que nas ruas

encontram uma ocupação lucrativa.

É nesse mundo da rua, estabelecendoe rompendo relações, sofrendo

pressões as mais diversas, fazendo asescolhas possíveis é que o jovem

constrói sua identidade.

Esses jovens, observa a autora,não se dizem de rua, na rua, ou da

rua. Embora os estudos realizados

na década de 80 já tenham feito adistinção entre aqueles que moram

na rua (descritos como “de rua”) eaqueles que retornam ao convívio

familiar depois de uma jornada de

trabalho (descritos como “na rua” eesses, sim, objeto do estudo em

pauta), os jovens pesquisados não seincluem nessa classificação. Para

eles, “na rua” ou “de rua” são “ou

outros”: “aqueles que roubam”, os“trombadinhas”, “criança jogada

por aí”, “moleque que não têmcasa”.

Trata-se, porque não dizer, de

um primoroso estudo de caso de

natureza qualitativa em que a autora

lançou mão de entrevistasestruturadas e informais, visitas

domiciliares, além da observaçãoparticipante. Foi pesquisado um

grupo de jovens trabalhadores nas

ruas do centro da cidade de SãoBernardo do Campo — este grupo

principal de jovens foi comparado aogrupo que viveu experiência

semelhante na década de 80,

identificado pela autora como“primeira geração”.

Dos 498 entrevistados, apenas

4 são meninas, a grande maioria (43)são negros ou descendentes,

encontram-se na faixa etária entre13 e 17 anos (40) e nasceram em

municípios da Grande São Paulo

(31). A maioria dos jovens do sexomasculino (36) começou a trabalhar

nas ruas entre oito e onze anos comovendedor de sorvete, engraxate e

carregador em feiras-livres,

geralmente em bairros. Foiconstatado um universo de 36

famílias, 26 das quais têm a presença

do casal (17 compostas por pai emãe morando junto, 7 com

padrastos e 2 com madrastas). Emapenas uma família verificou-se a

presença de outros parentes além ou

no lugar do casal e filhos. A médiade filhos por grupo familiar é cinco.

Todos residem em vilas periféricasda área urbana do município ou de

municípios vizinhos, a grande

maioria em núcleos de favela, emcasas de madeira ou de madeira e

alvenaria.

Quase todos os jovenspossuem experiência escolar (apenas

dois irmãos informaram nunca teremido à escola), embora se constate um

quadro de baixa escolaridade e de

defasagem com relação à idade. Dos46 jovens com alguma experiência

escolar, 25 estavam indo às aulaspor ocasião das entrevistas. Por

razões que vão do sentimento de

vergonha ao distanciamento, a

grande maioria dos jovens não leva

ao conhecimento dos professores oseu trabalho nas ruas. Conforme a

autora, “ter estudo” é algoconsiderado importante e desejado

pelos jovens; as críticas não se

endereçam à escola em geral, mas auma escola específica, a determinado

professor, a certo diretor. Estar forada escola ou ser subescolarizado é

algo que deprecia na visão dos

jovens pesquisados. No entanto, aconciliação entre o trabalho nas ruas

e a escola vai se mostrando cada vezmais difícil para esses jovens que têm

que ficar atentos a horários, tarefas

escolares, higiene corporal eassiduidade em um e outro. Em

geral, o abandono da escola nãocostuma acontecer no primeiro ano

de trabalho nas ruas, em que se

verifica o empenho de conciliação,mas sim a partir dos anos seguintes.

O envolvimento com as

drogas, principalmente bebidaalcoólica, cigarro, maconha e crack

ocorre para uma minoria dos jovens,

da mesma forma que a prática deatos delinqüentes como pequenos

furtos.Embora não “decente”, o

trabalho nas ruas é visto como um

meio transitório e honesto para seganhar algum dinheiro, cujo

montante mensal varia entre meio e

dois salários mínimos. Por outrolado, segundo a autora, é frágil a

identificação como “trabalhador derua”: embora importante porque

possibilita colaborar no orçamento

doméstico e garantir o consumoindividual, a ocupação nas ruas não

configura propriamente a identidadedo trabalhador. Esses jovens

afirmam trabalhar nas ruas “para

ajudar em casa” e “porque épreciso”, em reconhecimento à

pobreza do grupo doméstico; partedo ganho é entregue à mãe para

reversão no consumo coletivo da

família e parte pode ser consumida

Notas de Leitura

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Revista Brasileira de Educação 259

individualmente. Tedrus observa que

os jovens pesquisados, apesar doslimites impostos pela condição

econômica, na medida de suaspossibilidades são consumidores de

bens caraterísticos da juventude

urbana, como por exemplo o tênis, oboné, o brinquinho, a camiseta.

Dois caminhos distintos

colocam-se para o jovem que de fatoabandona o trabalho nas ruas,

inicialmente encarado por ele e suafamília como provisório,

circunstancial e reversível: o da

integração, através da inserção nomercado de trabalho legal e que

depende essencialmente da presençade um mediador significativo (a

família, o empregador ou os

educadores de rua), e o dadestruição, que envolve a

marginalidade, a violência e acriminalidade (os mediadores, nesse

caso, seriam aqueles vinculados ao

mundo da delinqüênciaprofissional).

Por outro lado, o ganho diário

e a formação de hábitosincompatíveis com o mundo

integrado (com a inadaptação alugares fechados, chefia, horáriofixo) podem ser considerados como

empecilhos ao movimento dereversão ou de saída das ruas.

Forma-se um terceiro caminho: o da

continuidade do trabalho nas ruasna alternância com um trabalho

legitimado, garantindo o ganhoimediato para a sobrevivência ou em

uma situação de refúgio em função

do perigo de vida que o bairro poderepresentar.

A título de comentário final,

cabe reafirmar que o trabalhorealizado por Tedrus evidencia um

rigor teórico e metodológico dignode nota. Seu grande mérito é

justamente o de demonstrar que os

jovens trabalhadores nas ruas nãoestão isolados nem muito menos

articulados em bandos e gangues

prontos para o ataque. “Na rua você

tem que saber entrar e sair...” são aspalavras de uma jovem que

exprimem muito bem a inserção emuma confraria quando do ingresso e

permanência nas ruas e quando da

saída, a dificuldade em romperrelações e a necessidade de

mediadores significativos.estrategistas, inseridos em pequenas

confrarias que abrem espaço à

solidariedade e à diversão, essesjovens não se caracterizam

exatamente como “trabalhadores”nem como adeptos do “dinheiro

fácil”; são também consumidores e

ao mesmo tempo amigos ecompetidores, livres e submissos,

empreendedores e conformados. Naspalavras da autora “nenhuma dessas

condutas define totalmente aquele que

busca um ganho nas ruas” (p. 125).

Regina Magalhães de Souza

Mestranda - Departamento deSociologia, Universidade de São Paulo

A pesquisa investigou dois

pequenos grupos de alunos doSupletivo Santa Cruz, curso que

funciona em colégio situado na zonaoeste da cidade de São Paulo queatende, no período diurno, uma

clientela de alto poder aquisitivo. Oprimeiro dos dois grupos — três

rapazes e quatro moças — era

composto por alunos com um perfilconsiderado representativo de uma

clientela mais tradicional de ensinode adultos: alunos que ingressaram

nas séries iniciais do supletivo,

FREITAS, Maria Virgínia de. Jovens no ensino supletivo :diversidades de experiência.São Paulo: Faculdade deEducação da USP, 1995.Dissertação (Mestrado emEducação).

jovens negro, mulatos e brancos com

idade entre 20 e 25 anos, na maioriamigrantes, todos trabalhadores. O

segundo grupo — quatro rapazes equatro moças —, considerado

correspondente a um perfil de alunos

que demanda cada vez mais o ensinode adultos, caracterizava-se por ter

ingressado no supletivo a partir da6ª ou 7ª séries, sendo constituído por

adolescentes e jovens entre 17 e 23

anos, brancos, solteiros, morandocom as famílias e delas dependendo

financeiramente.

A pesquisa mostrou como aescola assumia um papel

completamente diferente para cadaum dos dois grupos. Para o primeiro

grupo, a escola era um espaço

desejado, bastante valorizado comoparte de uma etapa da vida

considerada “vitoriosa”, natrajetória de migrantes que se

percebiam como tendo “melhorado

de vida”. Para o segundo grupo,identificado entre seus pares como

“atrasados”, a escola aparecia como

fonte de conflitos, assumindo umsignificado contraditório.

A convivência dos dois gruposera tensa, provocando queixas ecríticas de parte a parte. Os

primeiros reclamavam da desordeme do barulho, considerando que o

outro grupo atrapalhava seu

aproveitamento nas aulas. Ossegundos desprezavam os alunos do

primeiro grupo, considerando-ospouco inteligentes.

Apesar de os dois grupos

possuírem em comum a condição deexcluídos do ensino regular, cada

um vivia essa condição de forma

distinta. Os jovens migrantes viam aescola como meio de acesso à

modernidade e como meio deinclusão na sociedade urbana. Os

adolescentes e jovens do segundo

grupo lidavam com a escola demaneira instrumental e imediatista,

demonstrando pouco interesse em

Notas de Leitura

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260 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

Notas de Leitura

relação ao conhecimento ali

veiculado. A identidade dosprimeiros era marcada pelo mundo

do trabalho; a identidade dossegundos definia-se em campos fora

do trabalho, como na vivência dos

grupos de amigos de rua, no lazer,no consumo e até mesmo na

transgressão.

Esses alunos do segundogrupo, que se auto-afirmavam como

a “turma do mal”, reagiam à escolaantagonicamente, suportando-a

apenas na medida em que a viam

como um espaço de socialização e deexperiência de uma vida juvenil

paralela à vida escolar propriamentedita.

Os dois grupos demonstravam

conferir uma grande importância aopapel do professor. Para os jovens

migrantes, o professor valorizado

era aquele que sabia explicar bem asmatérias, demonstrando paciência e

consideração pelos alunos. Para os

demais, o professor era visto como oprincipal responsável pela qualidade

do relacionamento estabelecido comeles: se o professor “provocava”,

eles “reagiam”; se o professordemonstrava amizade, eles seconsideravam “conquistados”.

Apesar de ter trabalhado com

um pequeno número de alunos, oestudo traz à luz aspectos

significativos da vida escolar dejovens de origens sociais diversas,

colocando questões instigantes para

futuras pesquisas sobre o tema.

Maria Malta CamposPontifícia Universidade Católica deSão Paulo e Fundação Carlos Chagas

VIEIRA, Márcia Núbia Fonseca.Herdeiros de Sísifo. SãoPaulo: PontifíciaUniversidade Católica.Dissertação (Mestrado em

Educação), 1997.

A autora revisita o debate a

respeito das relações entre trabalho eeducação, enfocando-o a partir da

situação do aluno-trabalhador.

Impõe-se uma tarefa árdua, na medidaem que o tema, além de ter sido

bastante explorado, tem suscitadouma série de generalizações que,

continuamente reafirmadas se

transformaram não só em “verdades”mas, também, em senso-comum.

Uma dessas “verdades”

afiança que o bom desempenhoescolar é incompatível com o

exercício simultâneo do trabalho.Esta tese tem contribuído para

respaldar concepções e práticas

sociais relativas às crianças,adolescentes e jovens que, por força

de contingências históricas e

pessoais, têm sido obrigados a fazerexatamente aquilo que a “verdade”

considera negativo, ou seja,trabalhar e estudar, simultaneamente.

Tomando por mote essas

concepções e práticas, a autoraconduziu um estudo com base em

entrevistas realizadas com um pequeno

número de adolescentes do sexomasculino que trabalhavam, à época

da pesquisa, como empacotadores

em um supermercado da cidade deSão Paulo. Tais adolescentes

registravam passagens pela escola emperíodos anteriores mas, naquele

momento, encontravam-se fora dela.Suas mães também foram

entrevistadas, tendo em vista a coleta

das expectativas e reações àsexperiências escolares e de trabalho

dos filhos. O objetivo da investigaçãofoi o de analisar, através das

representações de seus entrevistados,

o processo de inclusão-exclusão naescola e no trabalho.

A análise das entrevistas mostra

que tanto os adolescentes quantosuas mães valorizam igualmente a

escola e o trabalho. Indica que estedesempenha um papel importante na

constituição da identidade desses

jovens, como tais e como trabalhadores.E o aspecto mais interessante é o de

que os depoimentos permitem àautora concluir, pelo menos em

relação ao grupo estudado, que a

exclusão da escola não resultou dainclusão no trabalho. Para ela, tal

exclusão se deve a uma multiplicidadede fatores. Entre estes salienta a

própria escola que, em sua forma de

atuar junto aos alunos origináriosdas famílias pauperizadas, promove,

entre eles, o descrédito quanto às suascapacidades de produzir

intelectualmente, fortalecendo, desse

modo, sua ligação com o trabalhopouco qualificado. Um trabalho no

qual, apesar das condições adversas e

da exploração, os jovens entrevistadosencontraram “possibilidades de

auto-afirmação e de satisfação dealgumas de suas necessidades”.

As conclusões da autora, quer a

respeito do trabalho quer relativas àescola, devem ser olhadas com cautela

na medida em que a pesquisa não

implicou o acompanhamento detalhadodas atividades do trabalho e, menos

ainda, do dia-a-dia das escolasfreqüentadas pelos entrevistados.

Apesar dessa ressalva, o texto

evidencia que a situação do aluno-trabalhador configura realidades

bem mais complexas do que querem

fazer crer as generalizaçõessimplistas. Aponta, em razão disso,

para a necessidade de novaspesquisas que ajudem a desvendá-las.

Celso FerrettiPontifícia Universidade Católica de

São Paulo e Fundação Carlos Chagas

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Revista Brasileira de Educação 261

Resumos/Abstracts

actors as regards the issue of time in

complex societies.

Angelina Teixeira Peralva

O jovem como modelo culturalA autora reconstrói o papel social do

jovem ao longo da história de modoa poder esclarecer o significado que

a juventude assume na atualidade. A

partir daí, procura analisar como onovo significado de juventude

emerge do conjunto de

transformações pelas quais a

sociedade contemporânea estápassando.

Youth as a cultural modelThe author reconstructs the social 

role of youth throughout history so

as to establish the meaning that youth assumes today. From this

 perspective she analyzes how thenew meaning of youth emerges from

the accumulated transformations

through which contemporary society

has passed.

Helena Wendel Abramo

Considerações sobre a tematizaçãosocial da juventude no Brasil

A autora analisa o aparecimento e o

tratamento dado à temáticajuventude no âmbito dos estudos

acadêmicos, na mídia além de parte

de atores políticos e instituições —

governamentais e nãogovernamentais. Distingue dois tipos

de tratamento na tematização dos

jovens nos meios de comunicação: a)cultura e comportamento; b)

problemas sociais. Nos estudosacadêmicos a ênfase recai sobre a

discussão dos sistemas e instituições

presentes na vida do jovem ouestruturas sociais que conformam

situações problemáticas. As ONGs

concentram seus programas parajuventude em dois blocos: 1)

programas de ressocialização; 2)

programas de capacitaçãoprofissional. No campo

governamental, demonstra a timidezdas ações para a população jovem.

Considerations about youth as asocial theme in BrazilThe author analyzes the appearance

of youth as a social theme in

academic studies, in the media aswell as among political and 

institutional actors – both

 governmental and non governmental. Two types of 

treatment are given to this theme inthe media: a) culture and behavior;

b) social problems. The academicstudies emphasize the discussion of 

systems and institutions present in

youngsters’ lives or social structuresthat constitute problematic

situations. NGO’s concentrate their programs for youth in two areas: 1)

Alberto Melucci

Juventude, tempo e movimentos

sociaisAs atuais tendências emergentes no

âmbito da cultura e da ação juvenil

têm que ser entendidas a partir deuma perspectiva macro-sociológica

e, simultaneamente, através daconsideração de experiências

individuais na vida diária. Este

artigo tenta integrar esse dois níveisde análise e propõe que: 1) os

conflitos e movimentos sociais emsociedades complexas mudam do

plano material para o planosimbólico; 2) a experiência do tempoé um problema central; 3) pessoas

jovens e, particularmenteadolescentes, são atores-chave do

ponto de vista sa questão do tempo

em sociedades complexas.

Youth, time and social movementsThe emerging trends in youth culture

and action have to be understood 

both from a macro-sociological 

 perspective and through theconsideration of individual experiences in everyday life. This

article tries to integrate these two

leves of analysis and will argue that:1) conflicts and social movements in

complex societies shift from thematerial to the symbolic; 2) the

experience of time is a core issue, a

core dilemma; 3) young people, and  particulary adolescents, are key

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262 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

 Jerusa Vieira Gomes

Jovens urbanos pobres: anotações

sobre escolaridade e empregoAnalisa a relação entre pobreza,

escolaridade e oportunidades de

emprego. Retoma algumas assertivassobre o assunto, entre elas a estreita

conexão entre pobreza-fracassoescolar-abandono-exclusão social a

partir das quais questiona a validade

dessas proposições. Recoloca doisquestionamentos: Em que medida a

escola é verdadeiramente valorizadapelo jovem pobre e por seu grupo

doméstico? Qual a perspectiva de

valorização do critério escolaridadeno caso dos empregos acessíveis ao

jovem urbano pobre? Para respondera isso, a autora recorre à história

familiar de socialização e, mais

especificamente, à história familiarde escolarização.

Poor urban youth: notes regarding

schooling and employment

The relationship between poverty,schooling and employment 

opportunities are analyzed here.Some affirmations about the issue

are taken up and their validityquestioned, such as the strict connection between poverty-school 

failure-abandon-social exclusion.Two issues are taken up: To what 

extent is the school truly valued by

 poor youth and by their domestic group? What is the perspective of 

 giving importance to the schooling standard when considering 

employment availability for poor

urban youngsters? In order toanswer this the author resorts to

family history of socialization and,more specifically, to family history

of schooling.

 programs to resocialize; 2) programs

for professional qualification.Government agencies have been

timid in developing programs foryoungsters.

Marilia Pontes Sposito

Estudos sobre juventude emeducaçãoExamina a produção de

conhecimento sobre a temática

juventude, apontando questõesadvindas do exame de dissertações e

teses defendidas nos Programas dePós-Graduação em Educação, de

1980 a 1995. Analisa como o campo

de estudos da Educação vemconstruindo teórica e

conceitualmente o tema da juventudecomo objeto de investigação, seus

modos de aproximação com o

fenômeno em questão, seus principaisrecortes e, dentro do possível, suas

relações com os processos históricos

que permitem a visibilidade dessesegmento na sociedade brasileira nos

últimos anos.

Studies about youth in educationThe examination of dissertations and 

theses defended in the Post Graduate

Programs in Education from 1980 to1995 raises issues that are discussed 

in the light of production of knowledge regarding youth themes.

An analysis is made as to how the

field of studies in Education hasbeen theoretically and conceptually

constructing the youth theme as an

object of investigation. It alsoanalyzes its methods in approaching 

the issue at hand, its principal thematic cuts and, wherever

 possible, its relation with historic processes in recent years that give

visibility to this segment of Brazilian

society.

Resumos/Abstracts

Maria Ornélia da Silveira Marques

Escola noturna e jovens

O presente trabalho é resultado depesquisas com jovens de um bairro

da periferia de Salvador que

freqüentam a escola noturna de 1.ograu com o objetivo de tentar

entender as relações que elesestabelecem com a escola, o

trabalho, a família, o lazer e o

consumo e de como essas relaçõesconstroem suas identidades. Através

de novos referenciais, as análisesapontam para novas formas de se

compreender a presença dos jovens

na escola noturna, ao mesmo tempoem que questiona a centralizaçãodo

trabalho nas relações que estesestabelecem com a escola e a

sociedade mais ampla.

Night schools and youthThe study is a result of research withyouth who frequent an elementary

night school in a periphery district of 

Salvador. The objective is to try tounderstand the relations that they

establish with school, work, thefamily, leisure and consumerism and 

how these relations construct theiridentities. By means of newreferentials, the analysis indicates

new forms of understanding the presence of youth in night schools

and, at the same time, questions the

 predominant position of work in therelationship that they establish with

the school and with society at large.

Guy Bajoit, Abraham Franssen

O trabalho, busca de sentido

Analisa a crise e a mutação das

referências culturais entre os jovens apartir das expectativas e atitudes

destes em relação ao trabalho.Privilegia esta dimensão de análise,

uma vez que o modelo cultural da

sociedade industrial se caracterizapela centralidade da ética do

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Revista Brasileira de Educação 263

Resumos/Abstracts

trabalho. Questiona as formas de

desagregação do modelo cultural dotrabalho, bem como a emergência de

novas orientações com relação aotrabalho. Examina as representações

e atitudes dos jovens com relação ao

desemprego. A partir daí, demonstracomo as diferentes experiências e

representações do trabalho e dodesemprego aparecem socialmente

diferenciadas.

Work, in search of meaningThis article analyzes the crisis and mutation of cultural references

among youth from the perspective of 

their expectations and attitudestowards work. The analysis

 privileges this dimension because thecultural model of an industrial 

society is characterized by focusing 

on the work ethic. It questions theforms which dissociate the cultural 

model of work as well as theemerging new guidelines related to

it. It examines youth’s representation

and attitude with regard tounemployment. From that viewpoint 

it demonstrates how different experiences and representations of 

work and unemployment are socially

different.

Heloísa Helena Teixeira de Souza

Martins

O jovem no mercado de trabalho

A partir da análise da crise dotrabalho no mundo, a autora busca

entender como esta crise afeta o

jovem e a sua inserção no mercadode trabalho. Sua análise se

fundamenta no questionamento: queprojetos podem ser elaborados

diante das transformações queocorrem no mundo do trabalho, com

os novos processos e organização do

trabalho, com a introdução de novastecnologias, que provocam

mudanças nas qualificações dostrabalhadores, nas condições de

trabalho e nas relações existentes no

local de trabalho? Dentro dessareflexão aborda, principalmente, a

problemática do jovem brasileirodiante da crise do trabalho e das

alterações no mercado e no mundo

do trabalho.Youth and the labor marketBased on an analysis of the labor

crisis in the world the author

attempts to understand how thiscrisis affects youngsters and their

entrance into the labor market. Theanalysis carries out the basic

discussion: what project can be

elaborated to face up to thetransformations which occur in the

working world; to the new processesand organization of labor; to the

introduction of new technologies; to

the modifications in laborqualification; to working conditions

and to the relations existing in thework place? This reflection discusses

 principally the problem of Brazilian

youngsters faced with the laborcrisis, the changes in the market and 

in the working world.

Antonio Chiesi, Alberto Martinelli

O trabalho como escolha eoportunidade

Através de pesquisas realizadas peloIARD em 1983, 1987 e 1992, os

autores procuram examinar a

relação do jovem italiano com otrabalho, no contexto das mudanças

atuais da sociedade. Analisam os

dados da pesquisa de 1992,procurando mostrar como o próprio

conceito de juventude tem-sealterado. Dentro das mudanças

percebidas, destacam algumascaracterísticas como: o

prolongamento da idade juvenil, o

retardamento da transição para aidade adulta e para o desligamento

dos laços familiares, bem como amudança de percepção concernente

ao trabalho. Procuram demonstrar

como a crise atual tem afetadosobremaneira a inserção do jovem

no mercado de trabalho e a relaçãodesta última com o nível de

instrução, com a escolha

profissional, com as expectativasfuturas desses jovens.

Work as choice and opportunity

The authors examine young Italians’

relation to work within theframework of present changes in

society by means of research carried out by IARD in 1983, 1987 and 

1992. Data of the 1992 survey is

analyzed and shows that the concept of youth has undergone change.

Among the changes perceived someare noteworthy such as: the

 prolonging of the age of youth, the

retarding of the transition toadulthood and the disconnection

from family ties, as well as thechange in perception regarding 

work. An attempt is made to

demonstrate how the present crisishas enormously affected the

insertion of youth in the labor forceand its relation with the degree of 

instruction, with the choice of a

 profession, with the futureexpectations of these youngsters.

Gonzalo Falabella

Juventude temporera: relações

sociais no campo chileno depois dodilúvio

Procura demonstrar a

correspondência entre os jovens daatualidade que trabalham no campo

e o caráter da reestruturação daeconomia chilena. Parte da reflexão

de que a reestruturação da economiaexigiria enorme flexibilidade nas

relações de trabalho, e que esta seria

uma das características dessesjovens, principalmente das mulheres.

O artigo se organiza em torno detrês hipóteses, relacionadas entre si:

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264 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

a) o caráter das transformações

vividas no Chile, particularmente nosetor agro-exportador e o jovem

rural moderno que dali surge; b) otipo de ação estatal e social que se

desenvolvem em vistas das

características deste novopersonagem; c) o perfil particular

destes trabalhadores e a organizaçãoe o movimento social que surgem em

conseqüência deles.

Youth in seasonal employment:social relations in the Chilean ruralarea after the delugeAn attempt is made to relate modern

day youngsters working in the rural area to the nature of the

restructuring of Chilean economy.The reflection points out that the

economy’s restructuring demands

 great flexibility in labor relationsand that this is one of the

characteristics of youngsters,especially women. The article brings

together three interrelated 

hypotheses: a) the nature of thetransformations Chile has

undergone, especially in theexporting agricultural sector, and the

appearance and nature of modern

rural youth; b) the type of state and social action that are developed 

taking into account thecharacteristics of this new person; c)

the particular profile of these

workers as well as the social organization and movement which

appear as a consequence.

Ann Mische

De estudantes a cidadãos: redes de

 jovens e participação políticaA convergência dramática dos “caras

pintadas” nas ruas das principais

cidades brasileiras em agosto de1992 tem gerado interpretações

contraditórias, desde as celebraçõeseufóricas do “renascimento” da

resistência estudantil de três décadas

atrás, até as manipulações cínicas

dos meios de propaganda. Nesteensaio, procuro examinar as

manifestações de 1992 em umaperspectiva histórica, analisando

tanto as mudanças nas relações

sociais, quanto as reformulaçõespolítico-culturais que influíram na

participação dos jovens brasileirosnas últimas três décadas. Para

compreender as transformações

sociais que levaram os jovens daidentidade forte de “estudante” nos

anos 60 à outra identidade, maisabrangente e ambígua, de “cidadão”

nos anos 90, examino as

reconfigurações das redes de família,estudo, trabalho, e sociabilidade dos

jovens brasileiros, junto com asmudanças na estrutura das redes dos

grupos organizados, e as “pontes-

articuladoras” que esses estabelecemcom setores mais amplos. Na

consideração da “cidadania juvenil”,aponto para uma reformulação

teórica da noção de identidade

coletiva — e sua relação com aestrutura ou a posição social —,

questionando as visões estáticas e

pré-deterministas que geralmenteacompanham tais conceitos. Sugiro

que a análise sistemática de “redes”interpessoais e organizacionais,

focalizando a “multivalência” de

discursos e ações, pode abrir novoscaminhos na compreensão de como

a cultura política é reformuladaatravés da ambigüidade conflituosa

das interações sociais.

From students to citizens: youth

networks and political participationThe dramatic convergence of Brazilian young people in protests

that demanded the impeachment of President Collor de Melo has

 produced contradictory

explanations, ranging from euphoriccelebrations of the rebirth of the

1960’s student resistance to thecynical manipulation of the

 propaganda industry. In this article

the 1992 youth demonstrations are

examined in a historical perspective,analyzing changes in both the

relational settings and the cultural-ideological contexts that have

shaped the participation of Brazilian

youth during the past three decades.The new arrangements where

Brazilian youngsters are involved — family, study, work and sociability

as well as the changes in the network

structures of organized groups and their attempts to reach wider social 

sectors – are all explored in order tounderstand the social 

transformations that led youth from

the strong “student” identity of the1960’s to the more universal 

“citizen” identity in the 1990’s. Inconsidering “young citizenship” a

reformulated concept of collective

identity is pointed out – and itsrelation with social structure or

 position – which questions the staticand deterministic visions that 

 generally accompany such concepts.

It is suggested that the systematicanalysis of interpersonal and 

organizational networks, together

with attention to “multivalence” indiscourse and action, could shed new

insight into how political culture isreformulated through the conflicting 

ambiguity of social interactions.

Anne Müxel

Jovens dos anos noventa: à procurade uma política sem “rótulo”

A autora parte de investigaçãorealizada ao longo de cinco anos,com jovens de faixa etária entre 18 e

25 anos para demonstrar quais sãoas percepções dos jovens a respeito

do sistema político atual. De que

maneira se apresentam asrepresentações do sistema político

para a juventude atual: novas oudiferentes? Questiona se os hábitos e

os comportamentos vigentes

Resumos/Abstracts

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Revista Brasileira de Educação 265

estariam sendo substituídos por

exigências e práticas próprias dageração de hoje. Foram realizadas

trinta entrevistas aprofundadas, nasquais os jovens relatam fragmentos

de histórias de vida, a diversidade de

suas trajetórias sociais e familiares eas condições de sua socialização

política, bem como os métodos deestruturação de sua identidade

política. A análise dos dados obtidos

é apresentada no artigo.

Youth in the 90’s: looking forpolitics without a “label”In order to demonstrate the

 perceptions of youth with regard tothe present political system, the

author bases her article on a researchcarried out over five years with

youth in the 18 to 25 age group.

How do the representations of the political system present themselves

to youth today: new or different? It is asked if current habits and 

behaviors are being substituted by

demands and practices that arecommon to this generation. Thirty

detailed interviews were made inwhich youngsters told fragments of 

life stories, the diversity of the course

of their social and family historiesand the conditions of their political 

socialization as well as the methodsused to structure their political 

identity. The analysis of the data is

 presented in the article.

Carlo Buzzi

Transgressão, desvio e drogaAponta o aumento, por parte da

juventude, de uma propensãotransgressiva em relação às normas

morais e legais da sociedade, a partirde dados obtidos na terceira

pesquisa do IARD (realizada em

1992). Realizada com jovensitalianos, a pesquisa visava

apreender como estes jovenspercebiam as normas sociais, através

de uma lista de dezoito

comportamentos. Sobre estescomportamentos, questionava-se: se

os consideravam socialmentecriticável; se, em sua avaliação,

consideravam admissíveis; se lhes

parecia possível colocá-los emprática. Dentro desses

comportamentos examinados, apesquisa mostra a postura do jovem

em relação a assuntos como a

sexualidade, o uso de drogas, aviolência, a economia e a vida

individual.

Transgression, deviation and drugs

An increased predisposition totransgression with regard to moral 

and legal norms of society are pointed out utilizing data obtained 

in the third IARD research (carried 

out in 1992). This research, carried out with Italian youth, sought to

understand how they think about social norms by way of a list of 

eighteen behavior patterns. About 

these, it was asked: if these behaviorswould suffer social criticism; if, in

their appraisal, they would considerthem admissible; if they considered 

them possible to put into practice.

Among the behavior patternsexamined the research shows how

youth positions itself in regard toissues such as sexuality, the use of 

drugs, violence, as well as economic

and individual life.

Martín Sánchez-Jankowski

As gangues e a imprensa: aprodução de um mito nacional

A partir de uma investigação de dozeanos sobre a questão, o autor

procura demonstrar as ganguescomo “organizações”. Enquanto

resposta coletiva a uma situação

econômica de pobreza e isolamento,as gangues elaboram estratégias

racionais de sobrevivência que seaplicam tanto ao aumento de seus

efetivos quanto ao estabelecimento

de relações com o seu ambiente —organizações rivais, polícia, sistema

político, mídia, etc. Para o autor,essas relações formam um sistema de

intercâmbio multiforme que se revela

como sustentáculo da existência dasgangues. Propõe analisar a

contribuição que a mídia traz para apersistência do fenômeno das

gangues urbanas norte-americanas.

Gangs and the press: producing anational mythBased on an investigation of twelve

years about this issue the author tries

to explain gangs as “organizations”.As a collective response to an

economical situation of poverty and isolation, gangs create rational 

strategies for survival, applied both

to increasing their membership and to establishing relations with the

surroundings – rival organizations, police, the political system, mass

media, etc. For the author, these

relations establish multiform systemsof exchange which encourage the

existence of gangs. An analysis of media’s contribution is proposed to

verify how it contributes towards the

 persistence of the phenomenon of North American urban gangs.

Eloisa Guimarães

Juventude(s) e periferia(s) urbanas

Examina uma agremiação juvenil: a“galera” — grupo formado nos

subúrbios cariocas. As galeras estão

relacionadas ao mundo “funk”, sem,contudo, que os universos se

confundam. A expressão designagrupos de jovens da periferia da

cidade, com relativa organizaçãointerna, que se estruturam em torno

de suas áreas de residência e das

quais incorporam os nomes. Analisaa heterogeneidade dos movimentos

juvenis e como isso aparece nas“galeras” estudadas. Aponta, ainda,

Resumos/Abstracts

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266 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

para a intensa fragmentação e

segmentação desses grupos.

Youth and urban peripheryThe article examines a youth

association called “galera” which

emerges in the “carioca” suburbs.

“Galeras” relate to “funk” althoughthey are not quite the same. Theexpression designates groups of 

urban periphery youth with some

internal organization, structured around their residential areas from

which they get their names. Youthmovements are heterogeneous and 

this is where the “galeras” that are

studied appear. The article alsoindicates that these groups are

fragmented and divided.

Luis Henrique de Toledo

Short cuts : histórias de jovens,

futebol e condutas de riscoA partir de sua convivência por um

período de três anos com jovenstorcedores, o autor analisa a

participação de alguns desses jovens

em casos de violência física nos

estádios. A pesquisa se baseia aindaem depoimentos, manchetes deperiódicos, fragmentos de história de

vida sistematizados a partir de

levantamento documental realizadona imprensa escrita. Retoma, ainda

que brevemente, algumas dasexplicações mais correntes sobre

determinadas modalidades e

expressões da violência observadasem grupos juvenis, principalmente

entre torcidas.Short cuts: stories of youngsters,

football and dangerous behaviorsBased on close association with

youngsters from organized cheering  groups over a period of three years,

the author analyzes cases of physical 

violence in stadiums, with the participation of some of them. The

research is also based on testimonies,headlines in periodicals, fragments of 

life stories systematized by means of 

a written press survey. It also briefly goes over some of the more current 

explanations about certain kinds and expressions of violence observed in

youth groups, especially football fan

cheering groups.

Angelina Teixeira Peralva, Marilia

Pontes Sposito

Quando o sociólogo quer saber o

que é ser professor: entrevista comFrançois Dubet

Entrevista realizada pelas Prof.ª Dr.ªMarília Pontes Sposito e Angelina

Teixeira Peralva, da Faculdade de

Educação da USP, com o Prof.François Dubet, da Universidade de

Bourdeaux II quando de sua visitaao Brasil em 1996. Dubet fala de sua

experiência como professor em um

colégio durante o período de umano, aponta as falhas do sistema

escolar e sua opinião sobre como

deve ser a escola hoje.

When a sociologist wants to knowwhat it’s like to be a teacher:

interview with François DubetProfessors Marilia Pontes Sposito

and Angelina Teixeira Peralva of the

School of Education of theUniversity of São Paulo interview

Professor François Dubet of theUniversity of Bordeaux II when he

visited Brazil in 1996. Dubet speaks

of his experience as a professor in aschool during one year, discusses the

shortcomings of the school system

and gives his opinion as to how theschool should be today.

Resumos/Abstracts

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Revista Brasileira de Educação 267

1. A Revista Brasileira de

Educação aceita para publicaçãoartigos relacionados com a

educação, resultantes de estudos

teóricos, pesquisas, reflexões sobrepráticas concretas, discussões

polêmicas, etc. Os textos devem serinéditos, de autores brasileiros e

estrangeiros.

2. Os originais devem serencaminhados à Comissão Editorial

em duas vias impressas, devidamente

formatadas, acompanhadas dedisquete, digitado em um dos

programas de edição de texto em

formato padrão para PC (excetoCarta Certa e Fácil). Entretanto,

diferentemente das vias impressas, otexto que vai no disquete NÃO deve

ser formatado. Isto é: a) Digitar todoo texto numa única fonte (tipo), sem

fontes diferentes para títulos, seções,

etc. b) Não utilizar negrito,sublinhado ou itálico em títulos e

seções. c) Não utilizar caixa alta(tudo em maiúscula) para títulos,

seções ou para ênfase. d) Para ênfaseou destaque, utilizar itálico e NÃO

negrito ou sublinhado. e) Assinalar

os parágrafos com um único toquede tabulação. f) Dar ENTER / RETURN

apenas no final do parágrafo. g)

NÃO utilizar a função de nota derodapé (footnote) ou de nota final

(endnote) do programa deprocessamento de texto. Em vez

disso, simplesmente colocar todas as

notas, numeradas, ao final do texto,

como texto comum. h) Separartítulos de seções, nome do autor, etc.

do texto principal com um duplo

retorno (ENTER / RETURN). i) NÃO

utilizar formatação especial (recuo,

itálico, etc) para citações. Apenassepará-las do texto principal com um

duplo retorno (ENTER / RETURN).

3. Os textos não devemexceder 40 laudas com

aproximadamente 30 linhas

digitadas em espaço 1,5, em fontecorpo 12 pontos (ou 10cpi)). Todas

as matérias devem ser antecedidas do

título em português e inglês e deresumo e abstract, sem ultrapassar

10 linhas, com indicação de pelomenos três palavras-chaves (key

words). O autor deve tambémfornecer dados relativos à instituição

e área em que atua, bem como

indicar endereço paracorrespondência com os leitores. As

referências bibliográficas (videabaixo) devem estar incorporadas no

texto e as notas devem serexplicativas.4. A publicação dos artigos

está condicionada a pareceres ad hocde membros do Conselho Editorial

ou colaboradores. A seleção de

artigos para publicação toma comoreferência a sua contribuição à

educação e à linha editorial daRevista, a originalidade do tema ou

do tratamento dado ao tema, a

consistência e o rigor da abordagem

teórica. Eventuais sugestões demodificações de estrutura ou de

conteúdo por parte da Editoria,

serão elaboradas com consenso doautor.

5. As resenhas não devemultrapassar 10 laudas e as notas de

leitura 2 laudas. A apresentação deve

obedecer ao contido no item 2.6. Os quadros, gráficos,

mapas, etc. devem ser apresentados

em folhas separadas do texto(indicando-se neste os locais em que

devem ser incluídos) devendo ser

numerados e titulados corretamentee apresentar indicação das fontes que

lhes correspondem. Sempre quepossível, deverão ser confeccionados

para sua reprodução direta.7. As notas de pé-de-página,

quando existirem, devem ser de

natureza substantiva. As menções deautores, no correr do texto, devem

subordinar-se à forma (autor, data)ou (Autor, data, página) como nos

exemplos: (Apple, 1989) ou (Apple,1989, p. 95). Diferentes títulos, domesmo autor publicados no mesmo

ano deverão ser diferenciadosadicionando-se uma letra depois da

data. Exemplo: (Gadotti, 1995a),

(Gadotti, 1995b), etc.8. A bibliografia será

apresentada ao final do artigo, emordem alfabética, obedecendo as

seguintes indicações:

Normas para Colaborações

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268 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

a) Tratando-se de livros:

sobrenome do autor (em caixa alta)/ VÍRGULA/Seguido do nome (em

caixa alta e baixa)/VÍRGULA/Data,entre parênteses/PONTO/Título da

obra (em itálico)/DOIS PONTOS (se

houver subtítulo)/Subtítulo (sehouver)/PONTO/Edição de forma

abreviada e se não for a primeira/ PONTO/Local da publicação/ 

ESPAÇO, DOIS PONTOS, ESPAÇO/ 

Nome da editora/PONTO/Nome dotradutor, quando houver/PONTO/.

Exemplo: APPLE, Michael W.,(1989). Educação e poder. 2ª ed.

Porto Alegre: Artes Médicas.

Tradução de Maria CristinaMonteiro.

b) Tratando-se de artigos:sobrenome do autor (em caixa alta)/ 

VÍRGULA/seguido do nome (em

caixa alta e baixa)/VÍRGULA/Data,entre parênteses/PONTO/Título do

artigo/PONTO/Título do periódico(em itálico)/VÍRGULA/Volume do

periódico/VÍRGULA/Número do

periódico/VÍRGULA/Páginascorrespondentes ao artigo/PONTO.

Exemplo: MACHADO, L.R.S.,

(1985). Cidadania trabalho no

ensino de segundo grau. Em Aberto,

v.4, nº 28, p. 35-38.c) Tratando-se de coletâneas:

sobrenome do autor do capítulo (em

caixa alta)/VÍRGULA/seguido donome (em caixa alta e baixa)/ 

VÍRGULA/Data, entre parênteses/ PONTO/Título do capítulo/ 

PONTO/Escrever “In:”/Sobrenome

do organizador (em caixa alta)/ VÍRGULA/Iniciais do nome do

organizador/(SE HOUVER OUTROORGANIZADOR, REPETIR ESTA

OPERAÇÃO SEPARANDO OS

NOMES ATRAVÉS DE VÍRGULA)/ Escrever, quando for o caso,

“(orgs.)” ou “(coord.)”/PONTO/ Título da coletânea (em itálico)/ 

DOIS PONTOS (se houver

subtítulo)/Subtítulo (se houver)/ PONTO/Edição de forma abreviada

e se não for a primeira/PONTO/ Local da publicação/ESPAÇO, DOIS

PONTOS, ESPAÇO/Nome da

editora/PONTO/Nome do tradutor,quando houver/PONTO.

Exemplo: ROMÃO, José E.,(1994). Alfabetizar para libertar. In:

GADOTTI, M., TORRES, C. A.

(orgs.). Educação popular: utopia

Latino-Americana. São Paulo:

Cortez.d) Tratando-se de teses

acadêmicas: sobrenome do autor (em

caixa alta)/VÍRGULA/Seguido donome (em caixa alta e baixa)/ 

VÍRGULA/Data, entre parênteses/ PONTO/Título da obra (em itálico)/ 

DOIS PONTOS (se houver

subtítulo)/Subtítulo (se houver)/ PONTO/Grau acadêmico a que se

refere/PONTO/Instituição onde foiapresentada/VÍRGULA/Tipo de

reprodução/PONTO.

Exemplo: DI GIORGI,Cristiano Amaral Garboggini,

(1992). Utopia da educação popular:o paradigma da educação popular e

a escola pública. Doutoramento em

educação. Faculdade de Educação daUniversidade de São Paulo.

Observação: O envioespontâneo de qualquer colaboração

implica automaticamente a cessãointegral dos direitos autorais à

Revista Brasileira de Educação da

ANPEd. A Revista não se obriga adevolver os originais das

colaborações enviadas.

Normas para Colaborações

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Revista Brasileira de Educação 269

Assinaturas

REVISTA BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO é uma publicação da ANPEd - Associação Nacional de

Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, voltada à divulgação da produção científica, fomentando e fa-

cilitando seu intercâmbio no âmbito nacional e internacional. É uma publicação quadrimestral, distribuída

sob a forma de assinaturas (R$ 33,00/ano) e/ou de números avulsos (R$ 12,00/número). A anuidade dosassociados da ANPEd (R$ 90,00) inclui a assinatura da revista.

Assinale com um X a opção desejada e preencha os campos com as quantidades e valores:

Solicito _____ assinaturas de 3 exemplares/ano x R$ 33,00 cada = R$ __________________

Solicito _____ exemplares avulsos do Nº _____ x R$ 12,00 cada = R$ __________________

Solicito _____ exemplares avulsos do Nº _____ x R$ 12,00 cada = R$ __________________

Solicito _____ exemplares avulsos do Nº _____ x R$ 12,00 cada = R$ __________________

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270 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 Nº 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 Nº 6

Revista Brasileira de Educação

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