eduardo chaves - um esboço de filosofia analítica da educaçã

125
Eduardo Chaves Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos Cópia para uso pessoal) 1 * Observação importante : O texto foi complementado com passagens de “A filosofia da Educação e a Análise de Conceitos Educacionais”, do mesmo autor, disponível em http://www.cfh.ufsc.br/~wfil/chaves.htm . Para fins didáticos, integramos o segundo texto ao primeiro, eliminando as repetições e mudando alguns tópicos de lugar. Nenhuma modificação, porém, foi feita nos textos propriamente ditos. Prof. Bráulio T P Matos. SUMÁRIO Capítulo I Introdução, p. 2-4. Capítulo II A Natureza e a Tarefa da Filosofia, p.4-20. Capítulo III Linguagem, Lógica e Epistemologia, p.20-66. Capítulo IV O Conceito de Educação, p.66-102. Capítulo V Educação, Doutrinação, p.102-109. Capítulo VI Observações Finais, p.109-113. Notas e bibliografia p. 113-125. * * * Um esboço de filosofia analítica da educação * [Texto CLARAMENTE em elaboração] Eduardo O. C. Chaves Disponível em http://www.chaves.com.br/TEXTSELF/PHILOS/esboco.htm

Upload: terabytelcd

Post on 16-Feb-2015

84 views

Category:

Documents


9 download

TRANSCRIPT

Page 1: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

1

* Observação importante: O texto foi complementado com passagens de “A filosofia da

Educação e a Análise de Conceitos Educacionais”, do mesmo autor, disponível em

http://www.cfh.ufsc.br/~wfil/chaves.htm . Para fins didáticos, integramos o segundo texto ao

primeiro, eliminando as repetições e mudando alguns tópicos de lugar. Nenhuma modificação,

porém, foi feita nos textos propriamente ditos. Prof. Bráulio T P Matos.

SUMÁRIO

Capítulo I – Introdução, p. 2-4.

Capítulo II – A Natureza e a Tarefa da Filosofia, p.4-20.

Capítulo III – Linguagem, Lógica e Epistemologia, p.20-66.

Capítulo IV – O Conceito de Educação, p.66-102.

Capítulo V – Educação, Doutrinação, p.102-109.

Capítulo VI – Observações Finais, p.109-113.

Notas e bibliografia – p. 113-125.

* * *

Um esboço de filosofia

analítica da educação * [Texto CLARAMENTE em elaboração]

Eduardo O. C. Chaves Disponível em http://www.chaves.com.br/TEXTSELF/PHILOS/esboco.htm

Page 2: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

2

Capítulo I – Introdução

1. Objetivo Geral do Livro

George F. Kneller, em seu livro Introdução à Filosofia da Educação, corretamente

observa que “se refletirmos sobre o significado da educação para a vida humana, teremos

de, mais tarde ou mais cedo, considerar filosoficamente a educação”. A razão de ser dessa

observação é óbvia, mas principalmente nesta época de meios cada vez mais aperfeiçoados

e fins cada vez mais confusos, é conveniente reiterá-la:

“Para educarmos os homens de um modo sensato e esclarecido, convém saber no

que queremos que eles se tornem quando os educamos. E para sabê-lo é necessário

indagar para que vivem os homens - ou seja, investigar qual pode ser a finalidade

da vida e o que ele deve ser. Portanto, devemos também inquirir sobre a natureza

do mundo e os limites que este fixa para o que o homem pode saber e fazer. A

natureza humana, a boa vida, e o lugar do homem no esquema das coisas estão

entre os tópicos perenes da filosofia”.

No mesmo sentido, afirma M. V. C. Jeffreys, em A Educação: Sua Natureza e Seu

Propósito:

“Se pretendermos viver de maneira inteligente, teremos necessidade de uma

teoria não apenas para este ou aquele empreendimento em particular, ou para

uma determinada espécie de atividade, mas para a existência como um todo.

Carecemos, caso nos seja permitido utilizar uma expressão antiquada, de uma

filosofia de vida.... O que acreditamos em relação à natureza, propósito e

métodos de educação é inseparável do que acreditamos com relação à vida em

geral - isto é, caso haja coerência e integridade em nosso modo de pensar. É, por

conseguinte, impossível propor uma teoria de educação sem declarar, implícita

ou explicitamente, nossa filosofia de vida geral e pessoal”.

Se isto é verdade, então a conclusão (tirada por Frans de Hovre) é que “as grandes

batalhas pedagógicas se travam fora... do campo da pegagogia propriamente dita”.

O objetivo geral deste livro é despertar nos leitores a percepção da necessidade de

elucidar e avaliar suas convicções e pressuposições básicas - sobre a vida, mas,

especialmente, sobre a educação - e orientá-los numa reflexão filosófica sobre as questões

colocadas por Kneller e Jeffreys.

Contudo, para que possamos refletir filosoficamente sobre a educação, como bem

nos lembra Kneller, temos que entender o que seja refletir filosoficamente, em geral. O

Page 3: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

3

que é filosofar? Como a filosofia se distingue da ciência e de outros empreendimentos

intelectuais que se propõem a refletir, em muitos casos, sobre as mesmas questões que são

objeto de reflexão da filosofia?

Por conseguinte, o livro começa com uma breve introdução à filosofia para, logo

em seguida, entrar na discussão do que é a educação. Todo o livro, na verdade, é uma

longa discussão do conceito de educação. Nele discutem-se as semelhanças e diferenças

entre a educação e outros processos que podem lhe parecer afins, como, por exemplo,

socialização, doutrinação, lavagem cerebral, ou mesmo treinamento. Também analisa-se o

papel do ensino e da aprendizagem na educação. Investiga-se, a seguir, a relação

porventura existente entre a educação e grandes temas com ela relacionados (como, por

exemplo, conhecimento, cultura e valores). E conclui-se com uma discussão do papel das

instituições (em especial da escola) na educação.

2. Objetivos Específicos do Livro

Em termos mais específicos, são os seguintes os objetivos do livro.

1. Levar o leitor a refletir sobre o lugar, a natureza e a tarefa da filosofia dentro do quadro

intelectual contemporâneo e a entender a natureza específica da reflexão filosófica

(Capítulo 1).

2. Levar o leitor a perceber a importância da epistemologia e da lógica na reflexão

filosófica, a necessidade de pensar com clareza e correção e de distinguir entre

conhecimento e mera crença ou opinião, conhecimento e ideologia (Capítulo 2).

3. Levar o leitor a compreender a importância da investigação do conceito de educação e a

tomar conhecimento de algumas das principais tentativas de conceituar a educação

(Capítulo 3).

4. Levar o leitor a compreender a relação existente entre educação e normas sociais e

valores culturais, de modo que venha a ser capaz de distinguir entre educação e

socialização e aculturação (Capítulo 4).

5. Levar o leitor a refletir sobre a relação existente entre educação e doutrinação, com o

intuito de determinar o que caracteriza um processo como educacional ou doutrinacional

(Capítulo 5).

Page 4: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

4

6. Levar o leitor a investigar o processo de ensino e de aprendizagem com o intuito de

caracterizá-los tão precisamente quanto possível, individualmente, em seu relacionamento

um com o outro e em seu relacionamento com o conceito de educação (Capítulo 6).

7. Levar o leitor a refletir sobre conceitos como “atitude (ou postura) crítica”,

“mentalidade aberta”, “autonomia intelectual”, “criatividade”, “originalidade”,

“potencialidades invidividuais”, “igualdade de oportunidades”, etc. e a verificar se, e até

que ponto, esses conceitos estão relacionados com o conceito de educação (Capítulo 7).

8. Levar o leitor a pensar sobre a educação em seus aspectos formais e informais,

discutindo quais seriam os objetivos educacionais que poderiam ser alcançados dentro da

instituição escolar, principalmente numa sociedade informatizada e com sobrecarga de

informação (Capítulo 8).

Capítulo II – A Natureza e a Tarefa da Filosofia

Filosofar é estreitamente relacionado com pensar. A filosofia é uma forma de

reflexão. Mas outras atividades intelectuais também envolvem pensar, também são formas

de reflexão: as ciências, psicologia, a religião, e até mesmo o senso comum. Como é que o

pensar e o refletir da filosofia se distinguem dessas outras formas de pensar e refletir?

1. Uma Primeira Aproximação

O cientista natural pensa e reflete sobre algum aspecto da realidade chamada

natural. O físico encara essa realidade do ponto de vista físico; o químico, do ponto de

vista químico.

O cientista biológico pensa e reflete sobre a realidade viva, orgânica, isto é, sobre

animais, plantas e outros organismos.

O cientista social pensa e reflete sobre a realidade social, sobre aqueles aspectos da

realidade que são criados ou modificados pelo ser humano.

Para todos esses cientistas, o objeto de sua reflexão é, de certa forma, algum

aspecto da realidade que lhe é dado pela percepção (observação, experimento). É verdade

que em cada uma dessas ciências pensa-se e reflete-se sobre entidades e processos que não

são visíveis, enquanto tais. Mesmo nesses casos, postula-se, porém, que essas entidades e

esses processos têm conseqüências observáveis.

O psicólogo (a menos que ele seja behaviorista) pensa e reflete sobre a realidade

psíquica: processos e eventos mentais, idéias, crenças, sensações, emoções, etc. O objeto

sobre o qual o psicólogo não behaviorista pensa e reflete não é visível. Se ele reflete sobre

idéias, crenças, sensações, emoções, etc. de terceiros, ele só o faz de modo indireto,

Page 5: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

5

baseado principalmente em declarações feitas por essas pessoas. Se ele reflete sobre suas

próprias idéias, crenças, sensações, emoções, etc. ele o faz usando um processo de

instrospecção, não de observação. Neste caso, não necessita, portanto, nem de

observações, nem de declarações. Ele tem um acesso direto e imediato às suas próprias

idéias, crenças, sensações, emoções, etc.

O psicólogo behaviorista, tentando fazer da psicologia uma ciência natural, reflete

apenas sobre o comportamento, que, naturalmente, é observável, mensurável, etc. - embora

as causas do comportamento, ou, se se prefere, as razões que levam as pessoas a se

comportar de uma ou de outra maneira, não sejam necessariamente visíveis e mensuráveis.

O teólogo, de certo modo como o psicólogo, reflete sobre uma realidade que

supostamente transcende a dimensão empírica, e à qual, portanto, não se tem acesso direto

através da percepção. Teólogos têm discutido muito como é que se tem acesso a essa

realidade que supostamente jaz além do mundo empírico. Alguns têm afirmado que é

através da realidade empírica que chegamos ao conhecimento da realidade que jaz além

dela. Outros têm afirmado que só temos conhecimento dessa realidade trans-empírica

quando ela se revela a nós.

E o filósofo, pensa e reflete sobre o quê? Qual o objeto da filosofia?

Paremos por um momento para refletir sobre o que vimos pensando ou refletindo

nos parágrafos anteriores. Certamente não vimos refletindo sobre a realidade física,

biológica ou social. Também não vimos refletindo sobre as coisas que são objeto de

reflexão de psicólogos (behavioristas ou não) e teólogos. Na verdade, o objeto de nossa

reflexão, nos parágrafos anteriores, tem sido a reflexão que cientistas e outros intelectuais

(como teólogos) fazem. Não estivemos, portando, refletindo sobre a realidade,

propriamente dita. Estivemos, isso sim, refletindo sobre como as pessoas refletem sobre a

realidade.

O que isso quer dizer é que existe um tipo de reflexão, que poderíamos chamar de

primeira ordem, que tem como objeto a realidade, propriamente dita, e que existe um outro

tipo de reflexão, que poderíamos chamar de segunda ordem, que tem como objeto a

reflexão de primeira ordem. É com esta reflexão de segunda ordem que a filosofia se

identifica. Nada nos impede de dizer que a reflexão do filósofo é, portanto, uma

metarreflexão.

Como a reflexão se exprime através da linguagem, poderíamos dizer que a filosofia

é um metadiscurso (ou um discurso de segunda ordem) sobre os vários discursos de

primeira ordem - discurso científico, discurso ético, discurso estético, discurso religioso,

discurso político, discurso jurídico, discurso pedagógico, ou mesmo discurso do senso

comum.

Na verdade, nada impede que exista reflexão de terceira, quarta, ou qualquer outra

ordem - embora a questão fique cada vez mais complicada, à medida que se distancia da

realidade, propriamente dita. Existe, hoje, sacramentada inclusive com periódicos,

Page 6: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

6

associações, etc., uma área de atividade intelectual chamada de metafilosofia - que nada

mais é do que um discurso de terceira ordem sobre a filosofia.

2. O Filosofar Ilustrado

Para muitos a filosofia exerce, no âmbito das ciências humanas e das humanidades,

função semelhante à que a matemática exerce no seio das ciências exatas, sendo, como ela,

igualmente temida.

Esse receio diante da filosofia é freqüentemente induzido pelos próprios filósofos.

Ao ler as obras de alguns deles, fica-se com a nítida impressão de que foram escritas mais

para impressionar e intimidar do que para esclarecer e ensinar.

Os escritos de certos filósofos existencialistas, por exemplo, são tão cifrados em

linguagem hermética que se tornam literalmente incompreensíveis para quem não fez deles

sua especialidade. Cheios de neologismos, com termos velhos em sentidos totalmente

novos, repletos de hifens onde nenhum era exigido ou esperado, contendo elaborados

discursos sobre o “nada”, como se o nada fosse algo extremamente complexo e obscuro,

esses escritos dão a impressão de que seus autores desejaram esconder o pensamento atrás

da linguagem, ao invés de revelá-lo através dela.

Mas não são apenas os existencialistas que usam técnicas lingüisticas intimidatórias

do não-iniciado. Os filósofos analíticos neo-positivistas, que tanto professam aderir à

clareza, usam e abusam de notações lógicas, dando a impressão de que textos de filosofia

mais se assemelham a tratados de matemática pura do que a algo que uma pessoa leiga

inteligente possa ler, entender e apreciar.

Mas a filosofia não foi sempre obscura e formalística. Nem é preciso que o seja,

para ser profunda, rigorosa, e útil.

Para constatar que a filosofia nem sempre foi difícil de entender, basta ler os

diálogos platônicos protagonizados por Sócrates. Obras primas de clareza, os diálogos

socráticos mostram como a filosofia, sem perda de profundidade e de rigor, pode tornar-se

compreensível para pessoas comuns inteligentes e interessadas, mesmo que não cultas, no

sentido tradicional do termo. Sócrates dialogava até com escravos. Seus diálogos precisam

permanecer, quanto ao estilo, como um dos modelos da atividade filósofica.

Outro modelo a ser seguido e imitado, quanto ao estilo filosófico, é David Hume,

filósofo escocês do século XVIII. Depois de escrever, em sua juventude, uma obra muito

profunda e bastante complexa, que não causou nenhum impacto imediato sobre seus

contemporâneos, Hume concluiu que, se é desejável que filosofia influencie os leigos, é

para estes que ele deveria escrever. Para alcançar esse objetivo, resolveu mudar de estilo:

abandonou a filosofia mais hermética, voltada quase que exclusivamente para outros

filósofos, e, sem abrir mão do rigor lógico, adotou um estilo mais leve, literário, irônico,

acessível ao leigo cuja atenção desejava obter. Hume soube tornar a leitura da filosofia

Page 7: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

7

agradável. É freqüentemente difícil lê-lo sem um leve sorriso, causado pelo humor fino,

pelo “wit”, pela alfinetada bem dada. O estilo de Hume deve permanecer como outro

modelo da atividade filosófica.

Tendo revelado meus modelos estilísticos, não hesito ao afirmar com todas as letras

que pretendo fazer com que o leitor, mesmo aquele que mais a receia, venha a gostar da

filosofia ao terminar de ler este livro. Não há nenhuma razão porque o útil não possa ser

também agradável. É parte dos mitos de nossa cultura que o útil deve ser difícil, tedioso,

inacessível. Contudo, a verdade é bem outra. Filosofar é algo importante - talvez nada

exista de mais importante - e, no entanto, algo extremamente prazeroso e agradável.

A vida não examinada, dizia Sócrates, não é digna de ser vivida. Filosofar é

examinar a vida que vivemos, é refletir sobre os porquês de viver dessa e não daquela

forma, de fazer isso e não aquilo, de apreciar essa obra de arte e não aquela, de acreditar

nesse e não naquele enunciado.

Mas se filosofar é isso, então todos filosofamos, pelo menos de vez em quando.

Quando alguém nos afirma alguma coisa, e queremos saber com base no quê faz

aquela afirmação, tentando averiguar se a pessoa realmente tem conhecimento do que diz,

ou se o que está dizendo não passa de mera opinião sua, estamos nos envolvendo com a

questão dos fundamentos dos enunciados que ouvimos ou fazemos, com o problema da

distinção entre conhecimento e mera opinião, entre saber e meramente acreditar. Essa

questão e esse problema fazem parte da filosofia desde os seus primórdios. Há mais de um

diálogo socrático que discorre sobre esse assunto.

Quando vemos certas obras supostamente de arte e nos perguntamos o que é que há

de artístico nelas, estamos dando vazão a um sentimento filosófico - é verdade, existem

sentimentos filosóficos! - que se revolta contra a tendência de considerar pedaços de ferro

aparentemente torcidos a esmo, ou pedaços de jornal cobertos de borrões e mal dispostos

numa tela, como arte. Se procurarmos verbalizar e explicitar esse sentimento, estaremos

filosofando.

Quando ouvimos certos ruídos no rádio e protestamos, afirmando que aquilo não é

música, não importa o que pensem nossos filhos, estamos lidando com questões

filosóficas. Música é arte, e nem todo barulho é música, mesmo que gravado em disco e

reproduzido através de tecnologia a laser.

Quando, de um lado, lemos relatos de comunidades ou grupos sociais que

praticavam rotineiramente o canibalismo, ou o sacrifício humano, ou que deixavam que

bebês do sexo feminino morressem à míngua, e, de outro lado, lemos certos filósofos

relativistas afirmar que o certo e o errado, do ponto de vista moral, são relativos, e que o

que é moralmente errado, de nosso ponto de vista, pode ser moralmente certo em outro

contexto, sentimos (a menos que estejamos já contaminados pelo virus relativista) um

certo mal-estar filosófico - que também existe! Esse mal-estar nos leva a indagar se é

realmente possível que haja justificativa moral para práticas como essas. Não seriam essas

ações moralmente condenáveis em qualquer contexto espaço-temporal, mesmo que as

Page 8: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

8

pessoas, a comunidade ou o grupo social que as realizam as considerem moralmente

corretas, quiçá obrigatórias? Essas indagações são filosóficas.

Quando, ao bater os olhos no rosto do cônjuge, ou do namorado ou namorada,

percebemos que algo não vai bem, e perguntamos qual o problema, estamos fazendo

inferências complexas acerca de seu estado de espírito a partir de seu comportamento. A

questão da medida em que isso é justificável é uma questão filosófica, que psicólogos

behavioristas fariam bem em considerar com mais seriedade.

Quando louvamos ou criticamos as escolas por darem muita ou pouca ênfase à

tradição cultural, aos “grandes livros do mundo ocidental”, ou por estarem

demasiadamente preocupadas com a profissionalização, ou com o vestibular, em

detrimento de uma formação mais ampla do aluno, em prejuizo do desenvolvimento do

seu pensamento crítico, de sua criatividade, de sua sensibilidade artística, estamos

definindo a educação e priorizando objetivos para ela, pelo menos em sua modalidade

escolar, e estamos mais uma vez filosofando.

Quando optamos por uma carreira ou uma profissão menos rentável do ponto de

vista financeiro, mas que nos traz satisfação pessoal, estamos agindo em função de valores

cujo exame é uma das tarefas centrais da filosofia. Estamos, em condições como essa,

fazendo uma declaração pública de nossa filosofia, através de nossas ações, de nossas

escolhas, de nossas decisões.

Quando escolhemos anestesiar a mente e destruir o corpo com drogas, também

estamos fazendo uma declaração pública de nossa filosofia: estamos dizendo que não vale

a pena viver, ou pelo menos que não vale a pena viver alerta e conscientemente.

E assim por diante.

Esses exemplos, recolhidos daqui e dali, nos mostram que todos filosofamos, em

algum momento ou outro, com maior ou menor rigor, com mais ou menos consciência do

fato. A questão não é se vamos filosofar ou não, mas com que grau de consciência e rigor

vamos fazê-lo.

Apesar de ilustrarem vários aspectos da atividade filosófica, esses exemplos não

fornecem, contudo, uma caracterização completa da filosofia, muito menos a definem.

Vou, nas seções seguintes, abordar a questão da definição da filosofia de maneira mais

sistemática.

Mas é bom ressaltar, antes disso, que ao leigo pode parecer incrível que filósofos

profissionais não tenham conseguido chegar a um acordo a respeito do que seja a filosofia,

isto é, acerca de seu próprio objeto de estudo. Esta, porém, é a pura verdade. Isso se dá

porque a questão da natureza e da tarefa da filosofia já é, ela própria, um problema

filosófico: é impossível definir, de fora da filosofia, sua natureza e sua tarefa. Como toda

questão filosófica, a questão relativa ao objeto e ao método da filosofia já comporta uma

variedade de respostas. A “primeira aproximação” de uma definição da filosofia que

ofereci, na primeira seção deste capítulo, não é universalmente aceita - muito pelo

contrário.

Page 9: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

9

Qualquer iniciante poderá perceber que filósofos, em geral, são bem mais hábeis

em fazer perguntas do que competentes para respondê-las com clareza. No entanto,

tentam, desesperadamente, lidar com todas as perguntas e indagações, suas ou dos outros,

e eventualmente propõem respostas para elas. Por isso, para cada pergunta, ainda que

aparentemente, simples, fornecem uma série enorme de respostas, quase sempre

incompatíveis. Como qualquer questão filosófica, a pergunta “O que é a filosofia?” tem

recebido uma variedade de respostas.

A alguns pode parecer que essa proliferação de respostas seja indicativa do próprio

fracasso da filosofia. Outros vêem nessa situação a grande riqueza do pensamento

humano, que, para cada problema que lhe é proposto, é capaz de imaginar uma variedade

de soluções, todas elas, em maior ou menor grau, dignas de consideração, e muitas delas

contribuindo, de uma maneira ou de outra (mesmo que por contraste), para uma

compreensão mais ampla e profunda dos problemas com que se depara o ser humano.

Concordo com os que pensam assim. Embora muitos problemas filosóficos

milenares não tenham (ainda?) sido solucionados, nossa compreensão deles, hoje, não é

idêntica à dos filósofos que os formularam pela primeira vez: é bem mais profunda e

ampla, e isso em virtude das várias respostas que já lhes foram sugeridas.

Esse fato indica que há progresso na filosofia, apesar de esse progresso não poder

ser medido quantitativamente, em referência ao número de problemas solucionados, sendo

somente constatado através de uma visão qualitativa, que leva em conta o aprofundamento

e a ampliação de nossa compreensão desses problemas.

Não é, portanto, impróprio oferecer (mais) uma definição da filosofia, se essa

sugestão de definição não é feita dogmaticamente, como se fosse a única possível, ou

mesmo a única razoável. É forçoso reconhecer que outras definições de filosofia existem

que também são plausíveis e razoáveis, e é possível que, ao invés de se contraporem à que

vou sugerir, como alternativas, justaponham-se a ela, como maneiras complementares de

ver a filosofia.

Mas antes de discutir em mais detalhe minha definição de filosofia, vou examinar

outras propostas de definição que não considero muito adequadas.

3. Algumas Tentativas de Definição

A palavra “filosofia” freqüentemente causa um sentimento de apreensão ao leigo.

Este geralmente crê que a filosofia lide com aspectos misteriosos da realidade - aspectos

que a ciência não consegue elucidar - ou que trate de questões altamente abstratas que

nada têm que ver com a vida diária. O leigo geralmente pensa que a filosofia lide com

idéias que apenas mentes muito brilhantes conseguem entender. Essa apreensão faz com

que ele geralmente feche sua mente para a filosofia. A palavra lhe lembra lúgubres

Page 10: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

10

edifícios medievais onde pessoas que não tinham algo mais útil para fazer exercitavam

seus intelectos - geralmente em latim, língua ideal para dar brilho ao intelecto.

A) O Entendimento do Senso Comum

Antes de passar a uma análise mais aprofundada de alguns desses problemas, talvez

seja oportuno observar que o termo “filosofia” é freqüentemente usado em um sentido não

técnico. Dizemos que um certo treinador de futebol tem uma filosofia desse esporte que

difere da filosofia de um outro treinador. Em reuniões e seminários às vezes ouvimos falar

da filosofia que deve conduzir os trabalhos, e assim por diante. Nesses contextos o termo

está sendo empregado de forma não-técnica, significando nada mais do que os princípios

básicos que regem uma determinada prática ou atividade. Neste sentido, a filosofia de um

treinador de futebol pode ser reforçar o meio do campo, atacar pelas pontas em diagonal

ou chegando até à linha de fundo, etc.

Esse entendimento não-técnico da filosofia não nos ajuda muito a entender o que

ela é.

B) A Definição Etimológica

A definição etimológica de filosofia também não ajuda muito a remover a

apreensão a que fiz referência. Etimologicamente, “filosofia” significa amor à sabedoria. O

vocábulo é oriundo de duas palavras gregas, sophia, sabedoria, e philos, uma das palavras

gregas para amor (ao lado de eros e agape, por exemplo). “Amor à sabedoria” - mas o que

será, realmente, sabedoria? O termo nos lembra os sábios - os Reis Magos do Oriente,

Confúcio - ou então está associado, no original em grego, a sofisma, argumento especioso,

aparentemente válido, mas na realidade inconclusivo, geralmente não apresentado em boa

fé. Essas associações, de um lado, não ajudam esclarecer o que seja a filosofia, e, de outro,

parecem confirmar as suspeitas de muitas pessoas de que filósofos nada mais são do que

especialistas na arte de manipular termos e enunciados com finalidades talvez não muito

claras ou mesmo confessáveis.

Apelar para a etimologia, portanto, embora freqüentemente útil, não nos ajuda, no

caso. Uma das razões pelas quais o expediente não nos ajuda aqui é que o significado

etimológico do termo “filosofia” é tão obscuro quanto é desconhecido o sentido do termo

na língua materna, se não for mais obscuro. Uma outra razão, talvez a principal, é que

conceitos e termos têm sua própria história, e nem sempre o significado original de uma

palavra tem muita relação com os seus significados atuais. No nosso caso, definir filosofia

etimologicamente como “amor à sabedoria”, além de parecer indicar que estamos tentanto

Page 11: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

11

explicar o obscuro pelo ainda mais obscuro , não leva em conta desenvolvimentos

filosóficos mais recentes.

Além disso, a expressão “amor à sabedoria” é por demais ampla e vaga. Ela talvez

possa caracterizar também o que seja a ciência (embora de maneira igualmente vaga). Na

verdade, nos tempos antigos não havia muita distinção entre filosofia e ciência. Uma

definição tão ampla e vaga não corresponde às concepções mais técnicas e precisas da

filosofia que são necessárias no mundo atual.

Talvez se disséssemos que filosofia é “amor ao conhecimento” as coisas ficassem

um pouco mais fáceis, pois a maior parte das pessoas tem uma certa idéia do que seja

conhecimento: todos estamos acostumados a ouvir falar em conhecimento científico, por

exemplo. Contudo, assim que começamos a analisá-la, constatamos que a noção de

conhecimento também não é muito clara, nem muito precisa. Além disso, falar em “amor

conhecimento” parece nos levar mais na direção da ciência do que da filosofia. Afinal de

contas, é a ciência, não a filosofia, a responsável pela explosão de conhecimento hoje

existente e pelas grandes conquistas tecnológicas da nossa civilização. Ou pelo menos

assim parece. Dado o prestígio do conhecimento científico e da tecnologia, em nossos

dias, a carga horária de disciplinas científicas e técnicas vem sendo aumentada em nossos

currículos - ao mesmo tempo que deles virtualmente se elimina a filosofia. Assim sendo,

nem mesmo a reconceituação da filosofia como “amor ao conhecimento” nos ajuda muito

a entender o que ela seja. Tentemos encontrar uma definição mais precisa.

Amor à verdade?

C) Uma Definição Moderna (Richard Rorty)

É interessante notar que algumas definições de filosofia propostas por filósofos

parecem corroborar a suspeita de que a filosofia é algo bastante obscuro, abstrato e mesmo

indeterminado e confuso, habitando uma terra de ninguém entre os domínios da ciência,

das artes e da teologia. Isso é claramente visível em uma definição discutida por Richard

Rorty e em uma proposta por Bertrand Russell, que vou analisar nesta e na seguinte sub-

seção.

Richard Rorty analisa, em um livro por ele editado, The Linguistic Turn: Recent

Essays in Philosophical Method , uma caracterização de filosofia, que, a bem da verdade,

ele mesmo considera inadequada. Nessa conceituação, “a filosofia é a disciplina em que se

busca conhecimento mas só se obtém opinião”. A filosofia, portanto, aspira ao

conhecimento, diferentemente da arte, que não busca conhecimento. Diferentemente da

ciência, porém, que busca, mas também encontra, o conhecimento, a filosofia busca o

conhecimento mas só encontra a opinião.

Page 12: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

12

Essa proposta de definição tem o mérito de distinguir, de alguma forma, a filosofia,

de um lado, da ciência e, de outro, da arte - algo que qualquer definição séria deve fazer.

Mas ela já começa estipulando que a filosofia é uma atividade em que não há

conhecimento - algo que parece uma concessão de derrota antes mesmo da batalha.

Além do mais, a definição sugerida não esclarece se a filosofia busca conhecimento

com método semelhante ao da ciência. Se o método da filosofia é idêntico ao da ciência,

por que é que a filosofia não chega ao conhecimento ao qual aspira? Seria porque a

filosofia tem um objeto diferente do da ciência, objeto este que torna o método, neste caso,

improdutivo de conhecimento? Se é este o caso, qual seria esse objeto? Se o método da

filosofia não é semelhante ao da ciência, qual seria esse método?

Bertrand Russell, ao discutir essa questão, muito antes de Rorty, já abordava essas

questões, como veremos a seguir.

D) Outra Definição (Bertrand Russell)

Na Introdução ao seu livro A History of Western Philosophy, Russell propõe a

seguinte conceituação de filosofia, na qual esta é contrastada como a ciência, de um lado, e

a teologia, de outro:

“A 'filosofia', no meu entender, é algo intermediário entre a teologia e a ciência.

Semelhantemente à teologia, a filosofia consiste de especulações sobre assuntos,

com respeito aos quais não foi ainda possível obter conhecimento definido. Mas

semelhantemente à ciência, a filosofia apela à razão humana, e não a uma

autoridade, seja essa a autoridade da tradição ou da revelação. Todo conhecimento

definido, é a tese que defendo, pertence à ciência; todo dogma a respeito daquilo

que jaz além do conhecimento definido pertence à teologia. Mas entre a teologia e

a ciência há uma terra de ninguém que está aberta a ataques de ambos os lados:

essa terra de ninguém é a filosofia”.

A primeira impressão que se tem ao ler essa caractrerização da filosofia é que o

problema é, na verdade, mais sério do que parecia ser! Russell não nos ajuda muito e

parece nada mais dizer do que o que já sabíamos, ou seja, que a filosofia lida com questões

vagas e indefinidas, que ela habita uma terra de ninguém (e, portanto, de todo o mundo),

afirmando que em relação a essas questões não se deve esperar alcançar “conhecimento

definido”, que só se encontra na ciência. Russell afirma que a teologia e a filosofia têm o

mesmo objeto de estudo, diferindo apenas na maneira de abordá-lo, o método da filosofia

tendo maior afinidade com o científico do que com o teológico (supondo que haja um

método teológico).

Embora não concorde com a proposta de definição de Russell, ela é útil como ajuda

na clarificação de nossas idéias sobre o que seja a filosofia, pois chama nossa atenção para

Page 13: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

13

alguns pontos que precisam ser considerados em qualquer tentativa séria de definir a

filosofia.

A) É interessante que Russell afirma que “a 'filosofia', no meu entender, é...”. Isso indica

que Russell encara sua definição como algo pessoal: essa é a sua maneira de ver a

filosofia. Em nenhum lugar no parágrafo ele afirma ou mesmo sugere que a sua seja a

única maneira correta de encarar a filosofia, ou mesmo que seja a melhor maneira. Dito em

outras palavras, isso parece significar que não se deve ter a pretensão de propor a

verdadeira e correta definição de filosofia: quando muito, pode-se aspirar a formular uma

maneira de encarar a filosofia, uma proposta de definição, uma definição estipulativa.

B) As observações de Russell sugerem a necessidade de demarcar, tão claramente quanto

possível, as linhas divisórias que separam a filosofia de outras atividades intelectuais que,

pelo menos tradicionalmente, têm estado bem chegadas a ela, como a teologia e a ciência.

A constatação dessa necessidade é importante. A sugestão de Russell, porém, é bastante

questionável. Ele sugere que a filosofia se distingue da teologia em relação ao método e da

ciência em relação ao objeto de estudo, e que se assemelha àquela no tocante ao objeto de

estudo e a esta no tocante ao método. Embora Russell esteja levantando questões

interessantes aqui, é necessário que as coisas sejam mais bem esclarecidas. Por exemplo:

será que o objeto da filosofia é realmente afim ao da teologia? Creio que não. E o método

da filosofia, em que se distingue do método científico ? Além disso, até que ponto o

método depende do conteúdo?

C) A razão de Russell para assumir a posição aqui externada está no seguinte comentário

que faz à sua proposta de definição:

“Quase todas as questões de maior interesse para mentes especulativas são tais

que a ciência não pode respondê-las. Por outro lado, as respostas confiantes do

teólogo não são mais tão convincentes como pareciam em séculos anteriores....

[Segue uma lista de perguntas caracteristicamente filosóficas]... A essas

perguntas nenhuma resposta pode ser encontrada em um laboratório. As

teologias têm pretendido dar-lhes respostas, excessivamente precisas. Mas

exatamente a precisão dessas respostas as torna suspeitas à mente moderna. O

estudo dessas questões, mesmo que não se chegue a uma resposta, é o negócio

da filosofia.... A ciência nos diz o que podemos conhecer, mas o que podemos

conhecer é pouco. Se nos esquecermos de quanto não conhecemos, tornar-nos-

emos insensíveis a muitas coisas da maior importância. A teologia, por outro

lado, induz a crença dogmática de que temos conhecimento quando de fato só

temos ignorância, e, ao fazer isso, produz um certo tipo de impertinente

insolência para com o universo. Incerteza, na presença de vívidos temores e

esperanças, é algo doloroso, mas é tudo que temos, se desejamos viver sem o

apoio de contos de fadas confortantes. Não é bom nem esquecer as perguntas

Page 14: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

14

que a filosofia faz, nem nos convencer de que encontramos respostas

indubitáveis a ela. Ensinar como viver sem certeza, sem, contudo, ser

paralizado pela hesitação, talvez seja a principal coisa que a filosofia possa, em

nosso tempo, ainda fazer para aqueles que a estudam”.

Essas palavras são belas, e posso endossá-las, até certo ponto. Elas nos explicam

porque Russell foi levado a definir a filosofia como o fez. Ele quer que a filosofia procure

responder às perguntas às quais a teologia tem tentado dar respostas - por isso diz que o

objeto da filosofia é afim ao da teologia. Mas ele quer que a filosofia faça isso usando

métodos semelhantes aos da ciência, e ele está convicto de que esses métodos não vão

fornecer respostas indubitáveis.

D) Russell sugere que, no que diz respeito ao método, a filosofia, como a ciência, “apela à

razão humana”, utiliza o método racional. Os termos “razão”, “racional”, etc. andam muito

desgastados, ultimamente. O que é que caracteriza o apelo à razão, o método racional?

Russell não nos esclarece - pelo menos no contexto da definição de filosofia.

Vamos ter que explorar um pouco mais o assunto.

4. A Filosofia Analítica

Passo agora a elaborar um pouco mais o que entendo por filosofia. Nesta seção

apresentarei uma caracterização geral, não muito técnica. Nas seguintes procurarei tornar

minha definição mais específica e precisa, mesmo às custas de alguma repetição (que é

intencional, pois ajuda na compreensão do conceito).

De maneira geral, a filosofia é a reflexão que o ser humano exerce, através da

análise e da crítica, sobre o significado e os fundamentos de conceitos, crenças, convicções

e pressuposições básicas, aceitos por ele próprio ou por outros seres humanos.

Essa caracterização geral da filosofia deixa entrever que a atividade filosófica é

uma atividade reflexiva de segunda ordem. Com isso quero dizer que a reflexão filosófica

pressupõe outros tipos de atividade reflexiva, como a ciência, a ética, a estética, a política,

a história, a religião, etc., e mesmo o chamado senso comum.

Passo a dar alguns exemplos.

O objeto de reflexão do cientista natural é, em linhas gerais, a natureza; o do

historiador é a história; e assim por diante. Essas atividades de reflexão são de primeira

ordem: concentram-se em diferentes aspectos da realidade, ou (como diriam os filósofos

clássicos) do “ser”. Elas partem, naturalmente, de certas pressuposições (por exemplo, de

que os fenômenos do mundo natural estão causalmente relacionados, de que é possível ter

conhecimento de eventos que não são mais objetos de nossa possível percepção, como é o

caso de eventos históricos, etc.), e resultam em certas crenças e convicções (como, por

exemplo, uma teoria acerca da natureza da matéria, ou uma hipótese a respeito das causas

Page 15: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

15

de um certo conjunto de eventos históricos, como a Revolução Francesa ou Guerra Civil

Americana).

O filósofo, enquanto tal, não reflete sobre as mesmas coisas que são objeto de

reflexão por parte do cientista natural e do historiador - se o fizesse, estaria deixando de

ser filósofo e passando a ser cientista natural ou historiador (algo, por sinal, perfeitamente

possível e até bastante comum). Ele reflete sobre as reflexões do cientista natural e do

historiador, buscando trazer à tona (se necessário for), elucidar, e criticamente examinar os

conceitos e as pressuposições básicas destes, procurando entender seus modos de

argumentação e inferência, etc.

Em poucas palavras, a filosofia é reflexão sobre a reflexão, é o pensamento

pensando sobre si próprio. Para dar um tom mais contemporâneo a esta caracterização,

poderíamos dizer que, dado que a reflexão e o pensamento se expressam através da

linguagem, através do discurso humano, em suas várias manifestações, a filosofia é

discurso sobre o discurso: o filósofo reflete, não sobre a natureza ou a história (para

continuar com nossos exemplos anteriores), mas sim sobre o que os cientistas naturais ou

historiadores dizem acerca da natureza e da história.

Por isso é que chamamos a atividade filosófica de uma reflexão de segunda ordem:

ela se exerce sobre outras reflexões, que constituem, portanto, o objeto da filosofia.

É desnecessário enfatizar que o próprio cientista natural, ou o historiador, pode

refletir sobre aquilo que está dizendo acerca da natureza, ou da história. Quando assim

reflete, porém, está realizando reflexão de segunda ordem - está, portanto, nessas ocasiões,

filosofando, e não fazendo ciência, ou história.

É desnecessário, também, frisar que a filosofia não se preocupa somente com o

discurso científico e histórico, como poderiam sugerir nossos exemplos. O filósofo reflete

sobre qualquer tipo de reflexão de primeira ordem: reflexão moral, reflexão estética,

reflexão política, reflexão religiosa, etc., e também sobre as reflexões do senso comum.

Por isso, há muitas “filosofias de...”: filosofia da ciência (que pode ser ainda mais

especializada, havendo a filosofia das ciências naturais, das ciências biológicas, das

ciências humanas), filosofia da história, filosofia da religião, filosofia da arte, filosofia do

direito, e assim por diante. Inclui-se aí, naturalmente, também a filosofia da educação.

É necessário, porém, demarcar a reflexão filosófica de outras reflexões que são

feitas sobre a ciência, a história, a religião, etc. O sociólogo, ou o psicólogo, pode refletir,

por exemplo, sobre a atividade do cientista e sobre ela fazer e responder perguntas que

sejam estritamente sociológicas, ou psicológicas, e não filosóficas. A sociologia da ciência

não faz as mesmas perguntas sobre a atividade do cientista que são feitas pela filosofia da

ciência. Tampouco a psicologia da ciência.

Se, porém, há outros tipos de reflexão, além da filosófica, que se exercem sobre as

várias atividades intelectuais, o que é que caracteriza as perguntas distintamente

filosóficas? A resposta de certa forma já esta contida no que foi dito: a filosofia busca

Page 16: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

16

elucidar e examinar criticamente conceitos, pressuposições básicas, modos de

argumentação e inferência, etc. existentes dentro de uma dada área de atividade intelectual.

Um psicólogo, por exemplo, pode fazer vários tipos de perguntas acerca da

atividade científica: Como é que, do ponto de vista psicológico, alguém chega a descobrir

ou formular uma lei ou uma teoria? Quais os mecanismos psicológicos que estão

envolvidos na criatividade e inventividade científicas? É a criatividade científica diferente,

do ponto de vista psicológico, da criatividade artística? De mesma maneira um sociólogo

pode indagar acerca da medida em que teorias científicas são condicionadas pelo meio

ambiente em que aparecem, a respeito do papel da ciência e do cientista na sociedade, etc.

As perguntas que o filósofo que reflete sobre a ciência faz, porém, são do seguinte

tipo: O que se entende por ciência? Quais são os critérios de cientificidade? O que

diferencia teorias científicas de outros tipos de teoria (digamos, teorias metafísicas e

especulativas)? O que leva cientistas a considerar uma teoria melhor do que a outra,

quando ambas se propõem a explicar os mesmos fenômenos? Qual a relação entre teoria e

observação? Existe verdade na ciência ou apenas probabilidade? O que é um fato? O alvo

da ciência é produzir teorias altamente prováveis ou, ao contrário, teorias pouco prováveis,

mas de alto poder explicativo e preditivo? Existe objetividade e racionalidade na ciência?

Se não, por quê? Se sim, em que sentido e em que medida? E assim por diante.

Pode-se ver, imediatamente, que virtualmente todas essas perguntas filosóficas

poderiam ser resumidas na seguinte questão: em que sentido e em que medida se pode

falar em conhecimento científico? Essas perguntas são todas epistêmicas (episteme é o

termo grego que se traduz por “conhecimento”): buscam analisar e elucidar a noção de

conhecimento científico e os conceitos e premissas que constituem os fundamentos desse

conhecimento.

Perguntas semelhantes podem ser feitas em relação a qualquer atividade intelectual.

É isso que faz com que a epistemologia, a teoria do conhecimento, ou seja, aquela área da

filosofia que investiga a natureza, o escopo (ou a abrangência) e os limites do

conhecimento humano, em geral, seja de suma importância no estudo da filosofia.

5. O Objeto e o Método da Filosofia Analítica

A esse tipo de caracterização da filosofia que acabo de fornecer tem sido dado o

rótulo de “Filosofia Analítica”. Mas a Filosofia Analítica é bem mais complexa do que

pode deixar transparecer essa breve análise. Por isso, procurarei elucidar um pouco mais, e

de forma um pouco mais técnica e cuidadosa, nesta seção e nas seguintes, o que entendo

por Filosofia Analítica.

O que se chama hoje de Analítica Filosofia é um movimento histórico que tem pelo

menos duas vertentes. De um lado, o chamado Positivismo Lógico (ou Neo-Positivismo).

Page 17: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

17

De outro, a chamada Filosofia Lingüística (que não deve ser confundido com Filosofia da

Linguagem ou Filosofia da Lingüística).

Tanto o Positivismo Lógico como a Filosofia Lingüística têm antecendentes

importantes. O primeiro foi antecedido pelo Atomismo Lógico de Bertrand Russell e pela

filosofia do jovem Ludwig Wittgenstein, representada pelo Tractatus Logico-

Philosophicus. A Filosofia Lingüística tem como seu antecedente mais importante G. E.

Moore, com sua ênfase na análise do senso comum e da linguagem do dia a dia. Às vezes

esses antecedentes do Positivismo Lógico e da Filosofia Lingüística são incluídos como

parte integrante da Filosofia Analítica, sendo caracterizados como a fase da “Análise

Clássica”.

Os principais representantes do Positivismo Lógico se situaram, inicialmente, no

continente europeu, fazendo parte do chamado Círculo de Viena. Com a guerra, visto que

muitos eram judeus, mudaram-se para os Estados Unidos ou para a Inglaterra. Os nomes

mais expressivos do grupo são Moritz Schlick, Rudolf Carnap, Hans Reichenbach. No

início, Karl Popper teve alguma ligação com o Círculo de Viena, mas posteriormente dele

se afastou. Na Inglaterra, o principal representante do Positivismo Lógico foi Alfred Jules

Ayer.

A Filosofia Lingüística nasceu como um fenômeno tipicamente inglês, mas logo se

espalhou pelo mundo inteiro. Seus principais representantes são Ludwig Wittgenstein, em

sua obra mais madura, e J. L. Austin. O primeiro liderou a chamada corrente

cambridgeana, o segundo a corrente oxfordiana da Filosofia Analítica.

Alguns analistas (principalmente brasileiros) incluem Karl Popper como uma

terceira vertente da Filosofia Analítica, ou então simplesmente o rotulam de positivista

lógico ou de filósofo lingüístico. A inclusão é injustificada e não leva em conta o fato de

que Popper deliberadamente se separou tanto dos positivistas lógicos como dos filósofos

lingüísticos, insistentemente criticando-os. Popper também recusou toda e qualquer

tentativa de considerá-lo como uma terceira vertente da Filosofia Analítica. Contudo, o

argumento mais importante contra sua inclusão na Filosofia Analítica está no conteúdo de

suas posições, que só um leitor desatento ou superficial identificaria com as principais

teses da Filosofia Analítica.

Isto posto, é importante observar que a Filosofia Analítica, incluindo os

antecendentes mencionados, e abrangendo tanto o Positivismo Lógico como a Filosofia

Lingüística, não é o que se poderia chamar de uma “escola filosófica”. Ela é muito mais

um “movimento”, cujos participantes exibem certas características que lhe dão, por assim

dizer, o ar de pertencerem à mesma família, mas que não defendem, necessariamente, um

conjunto de teses filosóficas comuns a todos - a não ser uma idéia geral sobre o objeto da

filosofia e uma forma de ver o seu método.

No que segue apresentarei minha versão da Filosofia Analítica. Provavelmente,

nenhum dos filósofos considerados como pertencentes ao movimento aceitaria essa minha

Page 18: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

18

formulação, tal e qual, embora muitos pudessem endossar as teses a seguir expostas, com

algumas modificações ou qualificações.

Voltando à noção de “semelhanças de família”, os dois principais traços que os

filósofos analíticos exibem são as seguintes:

O objeto da filosofia é a linguagem

O método da filosofia é a análise lógica

A) O Objeto da Filosofia

Quase todos os filósofos analíticos concordariam com a afirmação de que o objeto

da filosofia é a linguagem, o discurso que se faz sobre a realidade, não a realidade não-

lingüística.

Entretanto, uns - os Positivistas Lógicos - afirmariam que o objeto da filosofia não

é a linguagem, tout court, mas apenas a linguagem da ciência; outros - os Filósofos

Lingüísticos - não incluiriam essa limitação, e afirmariam que a filosofia deve se

preocupar com a linguagem de qualquer disciplina ou atividade intelectual, como, por

exemplo, com a linguagem da religião, da política, da arte, e mesmo do sentido comum

quotidiano.

Todos eles, porém, possivelmente concordariam que filosofia, discorrendo não

sobre a realidade não-lingüística, mas sobre o discurso que se faz sobre a realidade, não

pode se situar no mesmo nível lógico do discurso que pretende analisar, mas deve dele se

distanciar, situando-se em um nível lógico superior. A filosofia, portanto, se caracteriza,

para esses filósofos, como uma atividade lingüística de segunda ordem. É isso que a

distingue da ciência e (para os filósofos lingüísticos) das outras disciplinas que ela estuda.

As ciências naturais estudam a natureza, que é uma realidade não-lingüística. O

discurso que as ciências naturais fazem sobre a natureza é um discurso de primeira ordem,

pois seu objeto é a natureza, não um outro discurso. A teologia também estuda - ou pelo

menos assim parece - uma realidade não-lingüística (digamos Deus, a relação do mundo e

do homem com Deus, a realidade supra-sensível, etc., em suma, aqueles fenômenos tidos

como constituintes da religião). O discurso teológico, nessa ótica, também seria um

discurso de primeira ordem.

A filosofia, não discorrendo sobre a natureza ou sobre Deus e o mundo supra-

sensível, mas, sim, sobre o discurso que a ciência e a teologia fazem acerca dessas

realidades, coloca-se em um nível de discurso logicamente superior.

O problema surge quando a filosofia pretende discorrer sobre atividades que

investigam uma realidade que já é, pelo menos em parte, lingüística. O objeto das ciências

humanas, não importa como seja definido em detalhe, inclui manifestações lingüísticas de

Page 19: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

19

vários tipos. Seria o discurso das ciências humanas um discurso de segunda ordem, por ter

como objeto realidades lingüísticas? Ou então tomemos a própria ciência da lingüística.

Seu objeto indubitavelmente é a linguagem. Será o discurso da lingüística um discurso de

segunda ordem? E se o for, a análise filosófica do discurso da lingüística seria de terceira

ordem?

B) O Método da Filosofia

É aqui que a discussão do objeto da filosofia leva à discussão de seu método. Na

forma em que os filósofos analíticos vêem a questão, a lingüística estuda a linguagem

como se esta fosse um fato natural. Sabemos que a linguagem é um fato cultural, não

natural. Mas o discurso que a lingüística faz sobre seu objeto o toma como dado, como se

fosse natural, não se caracterizando, dessa ótica, como um discurso de ordem lógica

superior. A filosofia, porém, estuda a linguagem não como se esta fosse um fato natural,

que é dado, mas do ponto de vista de sua estrutura lógica.

Para ilustrar, tomemos como exemplo uma questão muito discutida por Bertrand

Russell. A afirmação “O atual rei da França é careca” seria, do ponto de vista do lingüista -

pelo menos do lingüista não muito chegado a questões filosóficas - uma afirmação

totalmente regular e trivial. A oração é correta, do ponto de vista sintático, a grafia das

palavras não contém desvios da norma aceita, e, portanto, o enunciado não apresenta

maior interesse. Para o filósofo, porém, esse é um enunciado altamente problemático.

Comecemos por perguntar se o enunciado, dada a melhor evidência hoje disponível, é

verdadeiro ou falso. Verdadeiro não pode ser, porque a França atualmente não tem rei. Se

dissermos, porém, que o enunciado é falso, poderia parecer que estamos afirmando (ou

pelo menos pressupondo) que a França tem atualmente um rei, mas que ele não é careca

(i.e., que ele tem cabelo). Ora, isso também não é verdade. Logo, o enunciado não parece

ser nem verdadeiro nem falso. Mas segundo um princípio básico da lógica, o princípio do

terceiro excluído, um enunciado ou é verdadeiro ou é falso - tertium non datur.

Como sair do impasse? Só através de um análise lógica (e não meramente

lingüística) do enunciado. Uma análise lógica do enunciado demonstraria que ele, apesar

de parecer ser um enunciado simples, é, na realidade, um enunciado composto, constituído

por dois enunciados distintos: o primeiro é um enunciado existencial, que afirma que a

França atualmente tem um rei; o segundo é um enunciado condicional, que afirma que, se

alguém é atualmente rei da França, esse alguém é careca. Feita essa análise, verifica-se que

o primeiro enunciado é falso e que o segundo é verdadeiro (pelas regras do cálculo

proposicional ou sentencial, segundo as quais um enunciado condicional só é falso se seu

antecedente for verdadeiro e o conseqüente falso, o que não é o caso aqui).

Page 20: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

20

Isso posto, temos uma primeira aproximação do que seja a filosofia, do ponto de

vista da Filosofia Analítica: a filosofia é a análise lógica da linguagem, ou, se se preferir,

do discurso.

O Positivismo Lógico, por aceitar também certas teses metafísicas (como, por

exemplo, de que só existe significação cognitiva - isto é, verdade e conhecimento - no

discurso científico) conclui que a tarefa da filosofia se esgota na análise lógica da

linguagem da ciência, do discurso científico. Tudo o mais não passa de poesia (num

sentido deliberadamente pejorativo) - algo que pode ser bonito, mas que é cognitivamente

sem sentido, isto é, não pode ser nem verdadeiro nem falso.

A Filosofia Lingüística, pretendendo livrar-se das teses metafísicas do Positivismo

Lógico, e, assim, tornar-se menos rígida e mais tolerante, admite que é tarefa legítima da

filosofia fazer a análise lógica de várias outras linguagens, como por exemplo, da

linguagem da religião, da política, da arte, da moralidade, etc. - ou seja, da linguagem de

qualquer outra disciplina ou atividade intelectual. Podemos até dizer que ela absorveu o

Positivismo Lógico como um de seus casos particulares, despindo-o de suas pretenções

exclusivistas e metafísicas e deixando-lhe a tarefa de analisar do discurso científico (pelo

menos no caso das ciências naturais).

6. A Ferramenta Lógica e seus Pressupostos

[Observação importante: Seção sobre LINGUAGEM, LÓGICA e EPISTEMOLOGIA –

Bráulio T P Matos]

Embora o termo “lógica” possa ser usado em outros sentidos, quando o utilizamos,

no contexto da Filosofia Analítica, ele se refere exclusivamente à relação de enunciados

uns com os outros. Não faz nenhum sentido, nesse contexto, falar em “lógica dos fatos”. A

lógica se ocupa apenas de enunciados e suas relações, não dos fatos.

De igual maneira, quando se fala, nesse mesmo contexto, de contradição, é a

contradição entre enunciados que se refere, não fazendo sentido falar em contradição na

realidade ou nos fatos. O pressuposto básico aqui é que dois enunciados podem se

contradizer, mas não dois fatos. Se dois fatos acontecem, ou aconteceram, eles não

envolvem uma contradição, nem sequer a nível dos enunciadcos que eventualmente os

descrevam.

É aqui que entra a noção de verdade.

A verdade, em um sentido puramente lógico, é a outra face da contradição. Um

enunciado da forma “a e não-a”, ou “a é não-a”, é uma contradição, e, portanto,

necessariamente falso. Se eu afirmo, por exemplo, “A bola é de couro e a bola não é de

couro”, ou “Um homem solteiro é um homem não-solteiro”, eu afirmo algo que é

necessariamente falso. Não é preciso fazer nenhuma investigação empírica da realidade

Page 21: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

21

para determinar que esses enunciados são falsos: sua própria forma determina isso. Por

outro lado, um enunciado da forma “a e a”, ou “a é a”, é uma tautologia, e, portanto,

necessariamente verdadeiro. Se afirmo “A bola de couro é a bola de couro'“, ou “Um

homem solteiro é um homem solteiro” (ou, quem sabe, “um homem solteiro é um homem

não-casado” ), eu afirmo algo que é necessariamente verdadeiro. Não é preciso fazer

nenhuma investigação empírica da realidade para determinar que esses enunciados são

verdadeiros: sua própria forma determina isso.

Em um sentido semântico, ou extra-lógico, porém, falamos em verdade quando há

alguma forma de correspondência entre um enunciado e o(s) fato(s) que ele descreve. Aqui

saímos do nível puramente lógico da relação de um enunciado com outro(s) para investigar

a “relação” entre um enunciado e a realidade não-lingüística, entre um enunciado e os

fatos. Nesse sentido extra-lógico, o enunciado “a bola é de couro” é verdadeiro se, e

somente se, a bola for realmente de couro, isto é, se for um fato que a bola (a que se refere

o enunciado) é de couro. Normalmente é esse o sentido que temos em mente quando

falamos em verdade.

Note-se que em nenhum dos dois sentidos do termo “verdade” é admissível falar

em “verdade dos fatos”, a não ser em um sentido derivado e quase metafórico. Fatos são

estados de coisas que existem. Há estados de coisas que não existem, exceto como objeto

de nossa imaginação: são estados de coisas fictícios, não fatos fictícios. De fatos, não faz

sentido dizer que sejam verdadeiros, muito menos que sejam falsos. Não faz sentido falar

em fato verdadeiro - a expressão, se usarmos “verdadeiro” em um sentido derivado, como

sinônimo de “real”, seria um pleonasmo injustificado - nem muito menos em fato falso - a

expressão, se usarmos “falso” em um sentido derivado, como sinônimo de “irreal”, seria

paradoxal, contraditória mesmo. Verdadeiro ou falso é o enunciado que pretende descrever

um estado de coisas. O enunciado é verdadeiro se o estado de coisas descrito existe, isto é,

se o estado de coisas é um fato, e falso se o estado de coisas descrito não existe, isto é, se o

estado de coisas não é um fato, mas é apenas, digamos, imaginado.

O exemplo do penúltimo parágrafo levanta uma outra questão que é preciso

esclarecer. Em relação ao enunciado “a bola é de couro”, dissemos que, se a bola a que ele

se refere for, digamos, de borracha, ou de pano, o enunciado é falso. Se, porém, a bola a

que se refere o enunciado for realmente de couro, o enunciado é verdadeiro. Isso parece

indicar que o enunciado “a bola é de couro” pode ser falso em alguns contextos - quando

se referir a bolas de borracha ou de pano, por exemplo - e verdadeiro em outros - quando

se referir a bolas realmente de couro.

Dessa constatação alguns podem ser tentados a concluir que um enunciado pode ser

verdadeiro e falso ao mesmo tempo, ou que a verdade é relativa, ou alguma coisa do

gênero. Essa conclusão não se justifica.

Quando usamos um enunciado como “A bola é de couro” o fazemos de forma

elíptica, omitindo uma série de especificações que são indispensáveis para a determinação

de sua verdade ou falsidade mas que são perfeitamente dispensáveis no contexto, porque

Page 22: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

22

facilmente subentendidas pelos ouvintes ou leitores do enunciado. Assim, quando eu estou

segurando uma bola nas mãos, e não há outra bola na proximidade, e afirmo “A bola é de

couro”, esse enunciado na verdade é uma elipse do enunciado “A bola [que eu, Eduardo

Chaves, estou, no momento, 10:44 h do dia 12/2/91, segurando em minhas mãos] é de

couro”. O enunciado, assim qualificado, é verdadeiro ou falso, nunca as duas coisas, e é

verdadeiro ou falso de forma absoluta e não relativa. Se a bola for realmente de couro, o

enunciado (adequadamente caracterizado) é verdadeiro, de forma absoluta, e o será per

secula seculorum. Se a bola não for de couro, será falso - também de forma absoluta e para

sempre.

A mesma questão pode ser ilustrada com outro enunciado: “Hoje está chovendo”.

Algumas pessoas, com inclinações sofísticas, poderiam ser tentadas a afirmar que esse

enunciado é verdadeiro e falso, ou que sua verdade é relativa. Diriam que se “hoje” se

refere a 14/10/90, e o local é Gramado, RS, o enunciado é verdadeiro, mas que se hoje se

refere a 12/2/91, e o local é Campinas, SP, o enunciado é falso. A mesma coisa que disse

no parágrafo anterior deve ser repetida aqui. “Hoje está chovendo” é uma forma elíptica,

de conveniência. O enunciado completo seria algo como “Hoje, 12/2/91, no campus da

UNICAMP em Campinas, ao meio dia, está chovendo”. Nesta forma, o enunciado é ou

verdadeiro ou falso, nunca os dois. E sua verdade ou falsidade não é relativa a nenhum

contexto: só depende de estar ou não chovendo no campus da UNICAMP em Campinas,

ao meio dia de 12/2/91. Na realidade, o enunciado é falso porque estou escrevendo isso ao

meio dia de 12/2/91 no campus da UNICAMP e olhando pela janela constato que não está

chovendo - pelo contrário há um lindo sol lá fora.

7. Tipos de Enunciados

Enunciados podem ser classificados de várias maneiras. Eles podem ser singulares

ou gerais, empíricos ou não-empíricos, descritivos ou prescritivos, etc. Esses vários tipos

não são mutuamente exclusivos. É possível que um enunciado seja geral, empírico e

descritivo. Hipóteses científicas geralmente têm essas características.

É oportuno observar que, quando falo em enunciado , refiro-me a algo que pode ser

verdadeiro ou falso. Todos os tipos de enunciados que acabo de mencionar podem ser

verdadeiros ou falsos. Uma ordem ou um pedido não podem ser verdadeiros ou falsos.

A) Enunciados Singulares e Gerais

Até aqui limitei-me a usar enunciados relativamente simples e a falar de coisas

singulares, não de classes de coisas: uma bola, um dia de chuva.

Page 23: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

23

Se eu fizer a afirmação “existe uma bola de couro de tigre de Bengala”, que é uma

afirmação singular, existencial, basta que se encontre uma bola de couro de tigre de

Bengala em algum lugar do mundo para que a verdade de minha afirmação seja

comprovada, ou para que minha afirmação seja verificada. Falsificar essa afirmação,

porém, é muito difícil. Se procurarmos a tal bola pelo mundo inteiro e não a encontrarmos,

não é tão simples dizer que falsificamos a afirmação: eu posso sempre alegar que não

procuramos direito, e que em algum lugar, ainda não examinado, existe uma bola de couro

de tigre de Bengala.

Esse exemplo serve de advertência para o seguinte: quando fazemos afirmações

singulares, especialmente existenciais, é relativamente fácil comprovar a veracidade da

afirmação e muito difícil comprovar sua falsidade.

Se eu, porém, disser “todas as bolas são redondas”, estou fazendo uma afirmação

não sobre uma coisa singular, mas sobre toda uma classe de coisas. Minha afirmação,

neste caso, será falsificada se encontrarmos uma bola que não seja redonda - e basta uma

para que seja comprovada a falsidade da afirmação. (A afirmação “todas as bolas são

redondas” pode ser considerada, por alguns, como verdade lógica, ou tautologia, porque o

Aurélio define “bola” como “qualquer corpo esférico” e define “redondo” como algo “que

tem a forma perfeita, ou quase perfeita, de uma esfera”. Estou usando o termo “bola”,

porém, em um sentido que abrange as bolas de futebol americano ou de rugby, que não

têm a forma perfeita de uma esfera).

Concedendo que basta uma bola que não seja redonda para falsificar a afirmação de

que todas as bolas são redondas, podemos agora perguntar quantas bolas teremos que

examinar para poder concluir, com total justificação, que todas as bolas são redondas?

Todas, não é verdade? Nada menos do que todas - e todas é muito, porque “todas” inclui

bolas de outros países, bolas que já deixaram de existir, bolas que vão ainda ser fabricadas

ou tipos de bola que vão ainda ser inventadas, etc..

Esse exemplo serve de advertência para o seguinte: quando fazemos afirmações

gerais, é relativamente fácil comprovar a falsidade da afirmação e muito difícil comprovar

sua veracidade.

As chamadas teorias e leis científicas são constituídas de enunciados gerais. Por

isso, embora seja, em princípio, relativamente fácil refutá-las, é muito complicado

confirmar sua veracidade.

B) Enunciados Empíricos e Não-empíricos

Até aqui também tenho utilizado enunciados descritivos de estados de coisas

facilmente observáveis: ser um bola de couro ou não, estar ou não chovendo.

Mas suponhamos que eu comece a fazer afirmações sobre coisas e seres que

supostamente não são observáveis, como intenções, motivos ou razões de um

Page 24: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

24

comportamento, sensações de angústia, a alma, Deus. No tocante a enunciados sobre essas

coisas e seres, é difícil imaginar como é que eles podem ser verificados ou falsificados.

Como é que esses enunciados se situam em relação a enunciados acerca de prótons e

nêutrons - que também são, admitidamente, de verificação e falsificação complicada? A

filosofia da psicologia e da religião (ou, melhor dizendo, da teologia) deve esclarecer essas

questões.

C) Enunciados Descritivos e Prescritivos

Mas até aqui tenho utilizado enunciados descritivos - de estados de coisas

observáveis ou não.

Suponhamos, porém, que eu diga: “Você não deve castigar seu filho” (enunciado

singular, negativo), ou “Ninguém deve julgar os outros” (enunciado geral, negativo), ou

“Todos devem ajudar os necessitados” (enunciado geral, positivo).

O que esses enunciados têm em comum é o fato de que não descrevem nenhum

estado de coisas: eles prescrevem um determinado comportamento. Se nada descrevem,

parece difícil determinar se esses enunciados “correspondem com a realidade”, e, portanto,

se são verdadeiros.

Mas se parece difícil determinar se enunciados prescritivos são verdadeiros ou

falsos, então a ética e a teoria política estão em posição complicada, visto que (salvo

melhor juizo) esses enunciados parecem desempenhar um papel importante nelas.

D) Enunciados que Envolvem Termos Valorativos

Há uma outra categoria de enunciados que se parecem, em um aspecto, com

enunciados descritivos, e, em outro, com enunciados prescritivos. É a categoria de

enunciados que envolvem termos valorativos: “bom”, “mau”, “certo”, “errado”, “belo”,

“feio”, “lindo”, “horrível”, etc..

Os enunciados que contêm esses termos parecem descritivos. Quando afirmo:

“Esse quadro de Picasso é lindo”, parece que estou descrevendo uma característica do

quadro, sua grande beleza. No entanto, é difícil especificar no que consiste a característica

beleza que eu encontro no quadro. Por isso, alguns têm sugerido que o enunciado não é

descritivo de alguma característica do quadro mas sim de um sentimento de aprovação em

mim, em relação ao quadro. O que o enunciado descreve, afirmam, não é uma

característica objetiva do quadro, mas um sentimento subjetivo em mim. Como, porém,

“de gustibus et coloribus non est disputandum”, outros podem não ter esse sentimento

diante do mesmo quadro. Outros filósofos têm sugerido que o enunciado não descreve

nada, nem no quadro nem em mim, mas somente exprime minha aprovação do quadro,

sendo equivalente a uma interjeição. Ainda outros têm afirmado que o enunciado, embora

Page 25: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

25

descritivo na forma, é prescritivo no conteúdo, sendo equivalente a algo como “Todos

devem [no sentido de “têm o dever de”] admirar esse quadro”. E assim por diante.

O que se disse em relação a enunciados estéticos muitos têm também dito em

relação a julgamentos morais. Tomemos como exemplo o enunciado: “Discriminar [para

não dizer “assassinar”] pessoas com base em sua raça é moralmente errado”. Estou

descrevendo alguma coisa ao afirmar isso? Se estou, a descrição é de alguma característica

objetiva da ação de discriminar alguém com base em sua raça ou de algum sentimento em

mim? Ou será que não estou descrevendo nada, mas apenas exprimindo minha emoção

negativa diante da ação de discriminar pessoas com base em sua raça, ou diante daqueles

que assim discriminam? Ou será que estou prescrevendo alguma coisa (por exemplo, que

ninguém deve discriminar pessoas com base em sua raça)?

Essas questões são essenciais para uma análise correta do discurso moral e do

discurso estético. É função da filosofia esclarecê-las, segundo os filósofos analíticos.

8. Tipos de Filosofia Analítica

A) A Epistemologia é Una

Existe uma corrente, dentro da Filosofia Lingüística, que defende a tese de que há

algo em comum em todos os problemas a que se fez rápida alusão na seção anterior.

Segundo essa corrente, todos os problemas mencionados, no âmbito da filosofia da

ciência, da filosofia da psicologia, da teologia, da arte, da moralidade, são, no fundo,

problemas que giram em torno da seguinte questão: até que ponto é justificável falar em

conhecimento e verdade na ciência, na psicologia, na teologia, na estética, na moralidade?

Se é justificável, esses termos mantêm um mesmo sentido em todas essas

disciplinas, ou será que conhecimento científico é diferente de conhecimento moral, será

que a verdade científica é diferente da verdade religiosa? Na Idade Média havia os que

defendiam a teoria da Verdade Dupla. Segundo essa teoria, algo pode ser verdade na

ciência e não ser verdade na teologia, e vice-versa. Faz isso sentido? É uma tese como essa

defensável?

Mais importante, aqui, do que tentar responder a essas perguntas é reconhecer que

todas as questões levantadas são questões relacionadas ao conhecimento e à verdade: são

questões que poderíamos chamar de epistêmicas. É por isso que a corrente que

mencionamos defende a tese de que os problemas de que a filosofia se ocupa são sempre

epistêmicos, e que os problemas epistemológicos são fundamentalmente os mesmos, não

importando o contexto disciplinar em que sejam levantados. Ser filósofo, segundo essa

corrente, é ser fundamentalmente, epistemólogo, especialista na lógica dos conceitos

epistêmicos.

Page 26: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

26

B) As Epistemologias são Várias

Uma outra corrente nega, porém, que uma epistemologia comum subjaza a todas as

disciplinas. Com base nas idéias expostas por Wittgenstein em sua obra mais recente, essa

corrente defende a tese de que cada disciplina ou atividade intelectual é, como se fosse, um

“jogo de linguagem”. Cada jogo tem suas próprias regras - mas não existe nenhuma regra

comum a todos os jogos. Tudo o que pode existir são certas relações de semelhança

familiar entre um jogo e outro. Damas e xadrez, por exemplo, usam o mesmo tabuleiro,

mas não possuem as mesmas regras. É possível afirmar, por isso, que são mais

semelhantes entre si do que com o jogo de bridge, que usa cartas e não tabuleiro.

Não existe, portanto, segundo essa corrente, uma epistemologia. Se quizermos

chamar de epistemologia o estudo das regras de um determinado jogo, podemos afirmar

que há várias epistemologias, que nada têm em comum umas com as outras. O filósofo não

é, fundamentalmente, epistemólogo: ele é, isto sim, especialista nas regras de um jogo

específico.

Segundo essa corrente, não é legítimo nem, na verdade, possível, criticar um jogo a

partir dos pressupostos e das regras do outro. Da mesma forma que não posso criticar o

jogo de damas porque não segue as regras do xadrez, não posso criticar a religião por não

seguir as regras da ciência. Cada jogo e cada disciplina têm suas regras próprias e só

podem ser criticados de dentro, por assim dizer.

III. Linguagem, Lógica e Epistemologia

“Nenhum educador pode tratar a lógica e a linguagem por cima e ainda

afirmar que está preocupado com a verdade”.

1. Linguagem

“... O aluno [precisa] entender conceitos, proposições e argumentos como

ferramentas para a apreensão da realidade, vindo, assim, a compreendê-los, de

forma muito mais vital e funcional, através dos usos que possuem no

pensamento e na comunicação. A estrutura da linguagem seria então

compreendida não como convenção arbitrária, mas, sim, como uma maneira de

refletir a natureza da realidade como ela realmente é”.

A) Palavras e Conceitos

Mais cedo ou mais tarde nossa atenção é levada a focalizar o problema de

definições. Geralmente falamos em definir um termo, ou uma palavra. Na verdade,

Page 27: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

27

definimos conceitos, que são entidades lógicas, que, por sua vez, são representados por

entidades lingüísticas, ou palavras.

O conceito de cadeira é representado pela palavra “cadeira”, em português, e pela

palavra “chair”, em inglês. Temos, neste caso, um conceito e duas palavras.

Pode ser que um mesmo conceito seja representado por mais de uma palavra de

uma mesma língua, quando as palavras são sinônimos exatos. Às vezes é possível ou

mesmo necessário usar mais de uma palavra, ou seja, toda uma expressão, para exprimir

um conceito. A palavra “homem” e a expressão “ser humano adulto do sexo masculino”

provavelmente exprimem o mesmo conceito. Às vezes uma palavra é inventada para se

referir a um conceito que se torna popular, como é o caso da palavra “balzaquiana”, que

exprime o conceito de mulher de 30 anos, ou de um pouco mais de 30 anos. Por outro

lado, não temos uma palavra para representar o conceito de mulher de mais de quarenta e

cinco anos, descasada, com filhos já criados, e envolvida, agora, principalmente com sua

vida profissional. É necessário usar toda uma expressão para se referir a esse conceito.

Nada impede, porém, de que, por economia ou por alguma outra razão, inventemos uma

palavra para se referir a esse conceito.

Outras vezes, uma só palavra exprime mais de um conceito. A palavra “raça”, por

exemplo, pode exprimir tanto o conceito de um grupo com características étnicas

semelhantes (quando se refere à raça negra, por exemplo) como o conceito de coragem ou

de brio (como quando se diz que um time tem raça). A palavra “homem” é freqüentemente

utilizada (malgrado protestos de feministas) para exprimir os conceitos de espécie humana,

ser humano do sexo masculino e ser humano adulto do sexo masculino.

O conceito, é bom que se esclareça, não define a palavra. A palavra, em si, não é

definida. Ela se refere ao conceito. O conceito, sim, se refere a objetos físicos e é definido.

A definição de um conceito exprime as características essenciais de uma classe de coisas,

características estas que distinguem essas coisas de outras e as identificam. (Na realidade,

apenas palavras que são nomes próprios se referem a objetos e não a conceitos ).

B) Sentenças e Proposições

Sentenças são formadas por palavras e são entidades lingüísticas. Proposições são

formadas por conceitos e são entidades lógicas. Uma proposição tem com a(s) sentença(s)

que a exprime(m) relação semelhante à que prevalece entre um conceito e a(s) palavra(s)

que o representa(m).

Há vários tipos de sentenças. Quando se estuda gramática, geralmente se afirma

que sentenças exprimem orações, e que há orações de diferentes tipos. Embora a questão

dos vários tipos de oração não se identifique, necessariamente, com a questão dos usos da

Page 28: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

28

linguagem, elas são muito semelhantes. No processo da discussão dos usos da linguagem

será esclarecido o conceito de proposições, que é essencial para a lógica.

C) As Funções da Linguagem

Vejamos, agora, alguns dos principais usos da linguagem.

a) Função Descritiva ou Informativa

Para muitos, esse é a função principal da linguagem: descrever a realidade, ou os

fatos, para explicar as coisas, ou os acontecimentos, para comunicar algo a outras pessoas.

Para isso as pessoas fazem declarações, isto é, afirmam ou negam.

É irrelevante, do ponto de vista do uso da linguagem, se aquilo que é descrito ou

declarado é verdadeiro ou falso, se se afirma ou se nega alguma coisa, se aquilo que é

objeto da comunicação é realmente informação, ou, ao contrário, desinformação. Em todos

esses casos, a função e o uso da linguagem é o mesmo.

Exemplos:

“Júlio César foi imperador Romano”

“Buenos Aires é a capital do Brasil”

“Ele não veio trabalhar porque estava doente”

“O preço dos combustíveis subiu novamente ontem”

b) Função Expressiva ou Evocativa

Muitas vezes usamos a linguagem para expressar ou para evocar algum sentimento,

não para declarar alguma coisa.

A linguagem tem função expressiva quando, individualmente, exprimimos nosso

sentimento para nós mesmos, como, por exemplo, para desabafar.

Quando tropeçamos num taco que está solto e dizemos um palavrão, não estamos

querendo declarar a filiação do taco: queremos, isto sim, expressar nossa dor ou irritação.

A linguagem tem função expressiva/evocativa quando se busca não tanto expressar

um sentimento (embora isso possa ocorrer) mas principalmente evocar um sentimento em

outras pessoas.

Quando o “comprador de fazendas”, no conto de Monteiro Lobato, tenta conquistar

a mocinha ingênua do interior observando quão bom é olhar as estrelas do céu quando se

está perto de uma da terra, ele não está literalmente declarando que a moça é uma estrela.

Page 29: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

29

Ele não está nem mesmo, talvez, expressando seus sentimentos: está, muito mais

provavelmente, tentando evocar sentimentos na donzela.

A linguagem poética é, em regra, expressiva, e, portanto, não deve ser tomada

como declarativa, isto é, como exprimindo proposições. Quando o poeta chama a vida de

“um manso lago azul” ele quer expressar determinados sentimentos e, talvez, evocar em

nós sentimentos semelhantes. Ele não está dizendo que, literalmente, a vida é um lago,

manso e azul.

Num caso como esse, não exprimimos uma proposição, que pode ser verdadeira ou

falsa, mas expressamos um sentimento. Sentimentos não são coisas que podem ser

verdadeiras ou falsas: podem ser autênticos ou fingidos, profundos ou superficiais, mas

não verdadeiros ou falsos (exceto em um sentido derivado e figurado).

c) Função Diretiva ou Prescritiva

A linguagem tem, ainda, uma função diretiva quando é utilizada para dar ordens,

fazer pedidos ou perguntas, ou, de alguma forma, dirigir o comportamento de alguém.

Quando a mãe manda o menino lavar as mãos antes de sentar à mesa para jantar, ela não

está, em regra, declarando nada que possa ser considerado verdadeiro ou falso, nem está,

necessariamente, expressando seus sentimentos. Está dando uma ordem.

Da mesma forma com pedidos, que são formas atenuadas de ordem. Dá ordens

quem tem o direito de fazê-lo. Pede quem não tem ou não quer usar o direito de dar

ordens. “Por favor, traga-me um copo de água” é geralmente um pedido, não uma ordem.

Mas o uso da linguagem continua a ser diretivo.

Quando fazemos uma pergunta, esperamos que nos respondam, e, por isso, usamos

a linguagem de forma diretiva. “Que horas são?” não exprime uma proposição, não é algo

que possa ser considerado verdadeiro ou falso.

Às vezes fazemos pedidos através de perguntas: “Será que você poderia me trazer

um copo de água?” parece uma pergunta, mas, na verdade, é um pedido. Às vezes fazemos

o que parece ser uma declaração, mas a intenção é dirigir o comportamento dos outros, e,

portanto, a linguagem está sendo usada de maneira diretiva. Isso acontece quando dizemos

coisas como “Você não imagina o quanto me entristece ver você usando esse tipo de

linguagem”. Se algo assim é dito, e a pessoa a quem se dirigiu a expressão responde,

dizendo: “Falso, eu imagino sim”, cria-se uma situação até hilariante, porque a expressão

original não foi usada como uma sentença declarativa que exprime uma proposição, e, sim,

como um diretivo, na esperança de que a outra pessoa parasse de se comportar daquela

forma.

Quando a linguagem é usada diretivamente seu objetivo é dirigir o comportamento

de outra pessoa, produzir ou evitar uma ação, enfim, obter determinado resultado. Um

diretivo de ação - uma ordem, um pedido - não é algo que pode ser verdadeiro ou falso.

Page 30: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

30

Pode, isto sim, fazer ou não fazer sentido, ser formulado com gentileza ou não, ou coisas

assim.

As funções anteriores da linguagem são, de certa forma, fáceis de entender:

na função descritiva ou informativa a linguagem é usada para descrever algum estado

de coisas ou informar alguma coisa. Aquilo que se exprime, quando a linguagem é

usada descritiva ou informativamente, é algo que pode ser verdadeiro ou falso.

na função expressiva ou evocativa a linguagem é usada para exprimir ou evocar um

sentimento.

Em sua função diretiva ou prescritiva, a linguagem é, por vezes, mais complexa.

Não há dúvida de que, em muitos, talvez na maioria absoluta dos casos, a

linguagem diretiva ou prescritiva é facilmente identificável. Quando digo a alguém “Você

devia descansar um pouco mais”, ou “Você não devia beber tanto”, estou tentando dirigir

seu comportamento.

Também não há dúvida de que, em casos como os dois mencionados no parágrafo

anterior, posso também estar expressando meu sentimento de desaprovação frente ao estilo

de vida da outra pessoa.

Contudo, feitas essas ressalvas, é preciso chamar a atenção para casos especiais.

Imaginemos o seguinte enunciado: “Não devemos fazer aos outros o que não queremos

que eles nos façam”. Dificilmente esse enunciado poderia ser considerado apenas como

um diretivo de comportamento ou como uma expressão de sentimento. Num caso como

esse, parece que o enunciado exprime algo que pode ser verdadeiro ou falso, a saber, um

fato moral (e não natural).

Mas existem fatos morais? Existe verdade ou falsidade na área da moralidade? Eu

penso que sim, mas muitos discordam. Os que discordam hesitam em aceitar que um

enunciado como esse seja descritivo ou informativo, que ele exprima algo que pode ser

verdadeiro ou falso. Preferem identificá-lo como um uso diretivo, ou mesmo expressivo,

da linguagem. Seu sentido, nesse caso, seria o de exortar as pessoas a não fazerem aos

outros aquilo que não querem que os outros lhes façam, ou, então, de expressar, ou de

evocar nas pessoas, sentimentos de desaprovação diante de comportamentos desse tipo.

Por fim, é preciso ressaltar que algumas pessoas muitas vezes usam linguagem

aparentemente descritiva ou informativa para prescrever. Muito do que se diz, no

indicativo, em sentenças aparentemente descritivas, acerca da educação (ou da ciência, ou

de vários outros assuntos), não passa de prescrições disfarçadas. As pessoas que usam esse

estratagema não estão afirmando que a educação realmente é aquilo que dizem: estão, isto

sim, exprimindo seu ponto de vista de que é isso que a educação deve ser, ou deve tornar-

se. Não adianta, portanto, retorquir a elas dizendo que a educação, na realidade, não é o

Page 31: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

31

que afirmam. Elas vão dizer que sabem disso, e que o que estão querendo dizer é que a

educação que existe na realidade está longe de ser a verdadeira educação, que elas estão

defendendo, e que estão, isto sim, propondo (ou prescrevendo) como a educação deve ser.

Procedimentos como esse geram muita confusão.

d) Função Ritual ou Executiva

Em determinados contextos, a linguagem pode ser usada para realizar ou executar

alguma coisa, não necessariamente (ou, pelo menos, não primariamente) para descrever

algo, expressar ou evocar um sentimento, ou dirigir a ação.

Quando, sem querer, esbarro em alguém na rua, e digo “Desculpe-me”, o ato de

dizer essas palavras é idêntico ao ato de pedir desculpas. Dizer essas palavras é, portanto,

realizar um pedido de desculpas.

Da mesma forma, quando uma pessoa promete algo a outra, dizendo “Eu lhe

prometo não mais fazer isso”, o ato de dizer essas palavras é idêntico ao ato de prometer.

Dizer essas palavras é, portanto, prometer não mais fazer seja lá o que for que a pessoa

prometeu não fazer mais.

De igual maneira, quando alguém acusa outra pessoa, dizendo “eu o acuso de ter

roubado meu carro”, o dizer essas palavras é equivalente ao ato de acusar.

Quando o pastor ou o padre diz “Eu te batizo em nome do Pai, do Filho e do

Espírito Santo”, o dizer essas palavras é batizar.

Quando, em um tribunal, uma testemunha jura dizer a verdade, apenas a verdade, e

toda a verdade (ou algo assim), o ato de responder com um “Sim” (ou com “I do”!) à

pergunta do oficial é equivalente ao ato de jurar.

Quando um juiz de paz diz algo como: “Assim, pela autoridade a mim conferida

pelas leis do país, eu os declaro marido e mulher”, ele não está descrevendo algo, nem

expressando ou evocando sentimentos, muito menos dirigindo a conduta. Está, isto sim,

realizando ou executando o ato de casar duas pessoas.

Obviamente, nos três últimos casos, é preciso, para que o uso da linguagem seja

ritual ou executivo, que quem diz as palavras ou expressões esteja credenciado para dizê-

las e as diga no contexto correto - e não, por exemplo, quando está contando um caso ou

representando uma peça.

D) Função e Forma

A linguagem exerce sua função descritiva ou informativa e sua função ritual ou

executiva geralmente através de sentenças declarativas, sua função expressiva ou

evocativa geralmente através de sentenças exclamativas, sua função diretiva ou prescritiva

através de sentenças imperativas ou interrogativas. Por isso, muitos têm sugerido que há,

pelo menos até certo ponto, uma correspondência entre função e forma.

Page 32: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

32

Contudo, essa correspondência é mais aparente do que real.

Sentenças declarativas podem ser usadas para descrever fatos e transmitir

informações, bem como para realizar ou executar determinadas coisas, como se viu, mas

podem também ser usadas para expressar ou evocar sentimentos. A sentença declarativa

“Este filme é horrível”

pode estar expressando - ou tentando evocar, dependendo das circunstâncias - um

sentimento, e não descrevendo algo.

A sentença declarativa

“Eu quero um hambúrguer e uma Coca-Cola”

pode estar sendo usada para dirigir ou prescrever conduta, se usada em uma casa de

lanches.

Por outro lado, uma sentença interrogativa pode ser usada para dirigir a conduta

(“Que horas são, por favor?”) como pode ser usada, ao mesmo tempo, para dirigir conduta

e para expressar sentimentos (“Até quando você vai ficar me amolando com essa

história?”).

A forma gramatical de uma sentença pode servir como um indício de sua função,

mas é preciso tomar cuidado.

E. Proposições

Uma proposição é o conteúdo de uma sentença declarativa quando esta está

desempenhando função descritiva ou informativa. O conteúdo dessas sentenças, ou aquilo

que elas exprimem ou declaram, é chamado de proposição. Por isso é que se disse, atrás,

que a linguagem, quando usada para descrever ou para informar, exprime algo que pode

ser verdadeiro ou falso. Esse “algo” é uma proposição.

Literalmente falando, a sentença é uma entidade lingüística, e a proposição é uma

entidade lógica. É a proposição que pode ser verdadeira ou falsa. A sentença pode ser em

português ou inglês, bem ou mal construída, ter tantas letras. A proposição não: sua

característica básica é ser verdadeira ou falsa.

Várias sentenças declarativas podem exprimir a mesma proposição. “João ama

Maria” e “Maria ama João” são sentenças diferentes, uma na voz ativa, outra na passiva,

Page 33: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

33

mas que exprimem a mesma proposição, a proposição de que João ama Maria. “Está

chovendo” e “It is raining” são sentenças diferentes, uma em português e a outra em

inglês. Ambas exprimem, porém, a mesma proposição, a proposição de que está chovendo.

Por outro lado, a mesma sentença pode exprimir proposições diferentes. “Está

chovendo” é uma sentença que, usada hoje, exprime uma proposição (que pode ser

verdadeira); usada amanhã, exprime outra proposição (que pode ser falsa). “Eu te amo” é

outra sentença que pode exprimir milhares de proposições, dependendo de quem a usa.

Cada pessoa que usa essa sentença, cada vez que a usa, exprime uma proposição diferente

(que pode ser verdadeira ou falsa, dependendo do caso). Uma pessoa pode usar a sentença

“Eu te amo” para exprimir uma proposição verdadeira e, horas depois, usá-la para exprimir

uma outra proposição falsa, se se dirigir a pessoas diferentes ou (difícil, mas não

impossível) se mudar seus sentimentos entrementes.

A lógica lida com argumentos, que são constituídos por proposições. Logo, no que

tange à linguagem, é pela sentenças declarativas que a lógica se interessa.

F) Argumentos

Um argumento é um conjunto de proposições - mas não um conjunto qualquer de

proposições. Num argumento as proposições têm que ter uma certa relação entre si e é

necessário que uma delas seja apresentada como tese, ou conclusão, e as demais como

justificativa da tese, ou premissas para a conclusão. Normalmente argumentos são

utilizados para provar ou desprovar alguma proposição ou para convencer alguém da

verdade ou da falsidade de uma proposição.

Assim sendo, o seguinte conjunto de proposições não é, na realidade, um

argumento:

Todos os metais se dilatam com o calor

Todas os meses há pelo menos quatro domingos

Logo, a UNICAMP é uma boa universidade.

Neste caso, embora todas as proposições sejam (pelo menos à primeira vista)

verdadeiras, e embora elas se disponham numa forma geralmente associada com a de um

argumento (premissa 1, premissa 2, e conclusão, precedida por “logo”), não temos um

argumento porque as proposições não têm a menor relação entre si. Não devemos sequer

afirmar que temos um argumento inválido aqui, porque mesmo num argumento inválido as

premissas e a conclusão precisam ter uma certa relação entre si.

Por outro lado, o seguinte conjunto de proposições é um argumento:

Page 34: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

34

Todos os homens são mortais

Sócrates é homem

Logo, Sócrates é mortal.

Neste caso, temos não só um argumento como um argumento válido. Nele, todas as

premissas são verdadeiras e a conclusão também - ou, pelo menos, parecem sê-lo, à

primeira vista.

E, com argumentos, chegamos à lógica.

2. Lógica

“A lógica, como a anatomia, sempre exercerá atração sobre muitas mentes

simplesmente porque, em um universo onde tanta coisa é incerta, ela produz certeza

de que algumas formas de raciocínio são tão inadmissíveis quanto alguns usos do

corpo”.

a) O Uso da Lógica

Muitas pessoas têm receio da lógica, da mesma forma que têm medo da

matemática. A lógica não tem uma boa reputação, exceto, talvez, entre filósofos (mesmo

assim apenas entre alguns), e, certamente, entre lógicos profissionais.

Contudo, todos nós usamos a lógica. O tempo todo. Usamos a lógica quando

argumentamos, e argumentamos quando tentamos convencer os outros de algo ou quando

tentamos nos defender de alguma acusação que nos é feita. Por isso, argumentos são coisa

que aparece principalmente na vida sentimental.

[Argumento A1]

1. “Você não me ama”, diz ela.

2. “Por quê?”, pergunta ele, surpreso.

3. “Porque, se você me amasse, você não teria me deixado aqui sozinha ontem à noite”,

explica ela.

Situação comum, essa ou alguma parecida. O argumento usado é, no tocante à sua

forma, tão comum, que ela certamente ficaria surpreendida se ele - um filósofo de boa

estirpe - lhe disse, para encerrar a discussão: - “Ah, não me venha com um 'modus tollens'

desses!”

Argumentos como o apresentado por ela são tão comuns que “modus tollens” é o

nome latino dado a argumentos que têm essa forma:

Page 35: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

35

[Forma do Argumento Válido Modus Tollens - Negação do Conseqüente]

Se p, então q (premissa maior)

não-q (premissa menor)

Logo, não-p (conclusão)

Colocando “recheio” na forma do argumento, temos:

[Argumento A2]

4. Se você me amasse (p), você não teria me deixado aqui sozinha ontem à noite (q)

5. Você me deixou aqui sozinha ontem à noite (não-q)

6. Logo, você não me ama (não-p).

Esse argumento, e todos os que possuem a mesma forma, é um argumento válido.

O raciocínio dela é correto. Resta saber se as premissas que ela usa, especialmente a maior

(a primeira), são verdadeiras. Se forem, a conclusão é, necessariamente, verdadeira. Se não

forem, ou se pelo menos uma delas não for, a conclusão não precisa ser verdadeira, mesmo

que o argumento seja válido, como este.

Mas imaginemos uma outra situação. Ela está feliz - e o diálogo é diferente.

[Argumento B1]

7. “Ah, que bom que você me ama”, diz ela.

8. “Por que você está dizendo isso?”, pergunta ele, interessado.

9. “Porque eu lhe disse ontem que, se você me amasse, você não iria àquela festa, e você

não foi”, explica ela.

Ele - o mesmo filósofo de boa estirpe - fica quieto. Por que estragar o bom humor

dela apontando uma falácia em seu raciocínio?

Neste segundo caso, o argumento, parecido com o primeiro, é inválido. O

argumento, reconstruído, é o seguinte:

[Argumento B2]

10. Se você me ama (p), você não vai à festa (q)

11. Você não foi à festa (q)

12. Logo, você me ama (p).

Page 36: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

36

A forma desse argumento é a seguinte:

[Forma da Argumento Inválido (Falácia) de Afirmação do Conseqüente]

Se p, então q (premissa maior)

q (premissa menor)

Logo, p (conclusão)

Todos os argumentos que têm essa forma são inválidos. Mesmo que as premissas

sejam verdadeiras, a conclusão pode ser falsa. Vejamos rapidamente porquê, usando um

argumento semelhante em que as premissas são claramente verdadeiras e a conclusão não

é necessariamente verdadeira. “Quem ama, não trai”, diz o slogan. Construamos um

argumento.

[Argumento B3]

13. Se você me ama (p), você não me trai (q)

14. Você não me trai (q)

15. Logo, você me ama (p).

Este argumento, que tem a mesma forma do anterior, não convence muita gente. As

duas premissas podem ser claramente verdadeiras, e, contudo, a conclusão ser falsa. Você

pode aceitar a premissa que “quem ama, não trai” (“Se você me ama, você não me trai”), e

admitir que você não traiu, sem aceitar a conclusão. Isso porque, por exemplo, você pode

não ter traído porque não acredita que deva trair ninguém, nem mesmo as pessoas que

você detesta. Ou porque você, mesmo não amando, não tem coragem suficiente para trair,

ou a oportunidade de trair.

Para que o argumento anterior se torne válido, é necessário que a premissa maior

seja alterada de “Quem ama, não trai” para “Quem não trai, ama” - premissa altamente

questionável, para dizer o mínimo. Contudo, mesmo com uma premissa altamente

duvidosa, este argumento é formalmente válido, porque, se as premissas forem

verdadeiras, a conclusão, agora, tem que ser verdadeira:

[Argumento C]

16. Se você não me trai (p), você me ama (q)

17. Você não me trai (p)

18. Logo, você me ama (q).

Page 37: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

37

Este argumento, válido, tem a seguinte forma, chamada em latim de “modus

ponens”:

[Forma do Argumento Válido Modus Ponens - Afirmação do Antecendente]

Se p, então q (premissa maior)

p (premissa menor)

Logo, q (conclusão)

Consideremos, agora, este argumento:

[Argumento D]

19. Se você me trai (p), então você não me ama (q)

20. Você não me trai (não-p)

21. Logo, você me ama (não-q)

Este argumento, invalidérrimo, provavelmente não convence ninguém. Sua forma é

a seguinte:

[Forma da Argumento Inválido (Falácia) de Negação do Antecedente]

Se p, então q (premissa maior)

não-p (premissa menor)

Logo, não-q (conclusão)

Por fim, considere estes dois argumentos:

[Argumento E1]

22. Ou você faz o que eu quero (p), ou você não me ama (q)

23. Você não faz o que eu quero (não-p)

24. Logo, você não me ama (q)

[Argumento F1]

25. Ou você faz o que eu quero (p), ou você não me ama (q)

26. Você faz o que eu quero (p)

27. Logo, você me ama (não-q)

Page 38: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

38

O primeiro desses argumentos é válido, o segundo inválido. A forma deles é,

respectivamente:

[Forma do Argumento Disjuntivo - Válido: Negação de um Disjunto]

Ou p, ou q (premissa maior)

Não-p (premissa menor)

Logo, q (conclusão)

[Forma de um Argumento Inválido (Falácia) Parecido com o Disjuntivo: Afirmação

de um Disjunto]

Ou p, ou q (premissa maior)

p (premissa menor)

Logo, não-q (conclusão)

O primeiro desses dois argumentos é válido, o segundo inválido.

É fácil ver porquê.

[Argumento E2]

22. Ou este ar condicionado está quebrado (p), ou está fazendo muito calor lá fora (q)

23. Este ar condicionado não está quebrado (não-p)

24. Logo, está fazendo muito calor lá fora(q)

Neste caso, se as duas premissas são verdadeiras, não há como a conclusão possa

ser falsa.

[Argumento F2]

25. Ou este ar condicionado está quebrado (p), ou está fazendo muito calor lá fora (q)

26. Este ar condicionado está quebrado (p)

27. Logo, não está fazendo muito calor lá fora (não-q)

Neste caso, mesmo que as duas premissas sejam verdadeiras, a conclusão pode ser

falsa. A premissa maior pode ser verdadeira, o ar condicionado pode estar quebrado, e

pode estar fazendo muito calor lá fora.

Page 39: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

39

Bastam esses exemplos para mostrar que todos argumentam, ou que todos têm que

lidar com argumentos quase o tempo todo. Se lidam com argumentos, lidam com a lógica,

quer queiram, quer não. É melhor que o façam de maneira consciente e com conhecimento

de causa. Caso contrário, podem usar, ou (o que pode ser pior) ser persuadidos a aceitar,

argumentos inválidos, vendendo, ou comprando, gato por lebre.

b) A Definição de Lógica

Apesar de usarmos a lógica para tentar convencer e persuadir os outros, a definição

de lógica não faz referência a isso.

A lógica é o estudo de princípios e métodos que permitem distinguir os argumentos

válidos dos inválidos.

Não é correto dizer que a lógica é a ciência que estuda as leis do pensamento ou as

formas de raciocínio. A lógica não se interessa com a questão de como as pessoas pensam

ou raciocinam. Esta é uma questão que pode interessar à “psicológica”, não a lógica. Pode

ser que as pessoas pensem e raciocinem através de processos os mais variados. A lógica

não está interessada no processo, e sim no produto: nos argumentos. Na verdade, ela se

interessa pelos princípios que permitem distinguir argumentos válidos dos inválidos.

Argumentos são constituídos por proposições, e, por isso, a lógica se interessa por

proposições, enquanto componentes básicos de argumentos. Em regra, a lógica não se

interessa pela verdade ou falsidade das proposições que compõem um argumento:

interessa-se, sim, pelas relações que as proposições têm umas com as outras,

especialmente se o conjunto de proposições que formam as premissas de um argumento

implicam (termo técnico, que será discutido adiante) a proposição que é sua conclusão.

c) Verdades e Falsidades Contingentes

Aqui é preciso distinguir dois tipos de verdade e falsidade: verdade e falsidade

contingente e verdade e falsidade necessária. Vejamos cada um desses tipos de verdade e

falsidade por seu turno.

Uma proposição é contingentemente verdadeira quando é verdadeira, mas poderia

ser falsa. Uma proposição é contingentemente falsa quando é falsa, mas poderia ser

verdadeira.

“Este livro foi impresso no Brasil” exprime uma proposição verdadeira, mas não há

nenhuma necessidade nessa verdade: o livro poderia muito bem ter sido impresso em

Portugal, ou em algum outro país, e, neste caso, a proposição seria falsa, sem contradição

alguma. Por isso se diz que essa proposição é contingentemente verdadeira.

Page 40: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

40

“O Maluf ganhou a eleição para governador de São Paulo em 1990” exprime uma

proposição falsa, mas não há nenhuma necessidade nessa falsidade: ele poderia muito bem

ter ganho a eleição, e, neste caso, a proposição seria verdadeira, sem contradição alguma.

Por isso se diz que essa proposição é contingentemente falsa.

d) Verdades e Falsidades Necessárias

Há algumas proposições, porém, que são verdadeiras ou falsas apenas em função de

sua própria forma, ou, então, apenas em função do significado dos termos nelas utilizados.

Diz-se, dessas proposições, que são necessariamente, ou logicamente, verdadeiras ou

falsas. As proposições necessariamente verdadeiras são também chamadas de tautologias,

e as proposições necessariamente falsas de contradições.

Há proposições que são verdades ou falsidades lógicas apenas em função de sua

forma ou da sintaxe das sentenças que as exprimem.

“Ou Brasília é a capital do Brasil ou Brasília não é a capital do Brasil” exprime uma

verdade necessária, ou uma tautologia.

“Brasília é a capital do Brasil e Brasília não é a capital do Brasil” exprime uma falsidade

necessária, ou uma contradição.

Nestes casos, apenas a forma das proposições, ou a sintaxe das sentenças que as

exprimem, já indica a verdade ou falsidade das proposições. É irrelevante que termos, ou

qual o seu significado (exceto no caso dos termos lógicos, como “ou”, “não”, etc.)

Por outro lado, há proposições que são verdades ou falsidades lógicas não em

função de sua forma, ou da sintaxe das sentenças que as exprimem), mas em função do

significado dos conceitos nelas utilizados.

“Se ela é irmã dele, então ela não é homem”

“Alguns triângulos são quadrados”

Nestes casos, apenas a forma das proposições, ou a sintaxe das sentenças que as

exprimem, não indica a verdade ou falsidade das proposições.

A forma da primeira proposição é:

Page 41: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

41

Se p, então q

A forma da segunda proposição é:

Alguns x são y

É perfeitamente possível que proposições que tenham essas formas sejam tanto

verdadeiras como falsas. Para que saibamos se são verdadeiras ou falsas, é necessário

explicitar o significado dos conceitos usados nessas proposições.

Sabemos o conceito de irmã envolve referência ao fato de que a pessoa é do sexo

feminino. Logo, a proposição “Se ela é irmã dele, então ela não é homem” é uma

proposição necessariamente verdadeira, ou uma tautologia, mas não em função da forma

da proposição, e, sim, em função do significado dos conceitos utilizados.

Sabemos o conceito de triângulo envolve referência ao fato de que a figura plana

tem três lados, e, portanto, não pode ser quadrada. Logo, a proposição “Alguns triângulos

são quadrados” é uma proposição necessariamente falsa, ou uma contradição, mas não em

função da forma da proposição, e, sim, em função do significado dos conceitos utilizados.

Quando se afirmou, atrás, que “em regra, a lógica não se interessa pela verdade ou

falsidade das proposições que compõem um argumento”, previu-se a exceção. A exceção

está no fato de que a lógica se interessa por verdades e falsidades necessárias, por

tautologias e contradições. Na realidade, os conceitos, de um lado, de verdade necessária,

ou tautologia, e, de outro lado, de falsidade necessária, ou contradição, são fundamentais

para a lógica, como se verá.

e) Relações entre Proposições

É importante entender a diferença entre proposições contraditórias e contraditórias,

principalmente quando as proposições usam conceitos como “todos”, “nenhum”, e

“alguns”.

i) Proposições Contraditórias

Uma proposição é contraditória a uma outra quando esta nega o que aquela afirma,

ou vice-versa. A proposição p contradiz a proposição não-p, e vice-versa. Assim sendo, a

proposição de que João é advogado é contraditada pela proposição de que João não é

advogado (e não pela proposição de que João é médico, por exemplo).

Page 42: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

42

Proposições contraditórias não podem ser ambas verdadeiras nem podem ser ambas

falsas. Uma delas sendo verdadeira, a outra tem que, necessariamente, ser falsa, e uma

delas sendo falsa, a outra tem que, necessariamente, ser verdadeira.

No que caso de uma proposição que tem a forma “Todo x é y”, sua contraditória é

uma proposição da forma “Algum x não é y” (onde “algum” quer dizer “pelo menos um”).

Se é verdade que todo x é y, então é falso que algum x não é y. Se é falso que todo x é y,

então é verdade que algum x não é y. Por outro lado, se é verdade que algum x não é y,

então é falso que todo x é y. Por outro lado, se é falso que algum x não é y, então nenhum

x não é y, e, logo, é verdade que todo x é y.

No que caso de uma proposição que tem a forma “Nenhum x é y”, sua contraditória

é uma proposição da forma “Algum x é y” (onde “algum” quer dizer “pelo menos um”).

Se é verdade que nenhum x é y, então é falso que algum x é y. Se é falso que nenhum x é

y, então é verdade que algum x é y. Por outro lado, se é verdade que algum x é y, então é

falso que nenhum x é y. Por outro lado, se é falso que algum x é y, então nenhum x é y, e,

logo, é verdade que nenhum x é y.

De igual forma, a contraditória de uma proposição que tem a forma “Algum x é y”

é “Nenhum x é y”, e a contraditória de uma proposição que tem a forma “Algum x não é

y” é “Todo x é y”.

Repetindo, os seguintes pares de proposições são contraditórios:

p não-p

x é y x não é y

Todo x é y Algum x não é y

Nenhum x é y Algum x é y

Se alguém afirma uma proposição do lado esquerdo e eu afirmo a correspondente

proposição do lado direito, eu estou contradizendo essa pessoa, e nós dois não podemos

estar com a verdade: um dos dois está errado.

Assim,

- se alguém afirma “A escola reproduz as relações sociais” e eu afirmo “A escola não

reproduz as relações sociais”, nós dois não podemos estar certos: um de nós está errado.

Page 43: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

43

- se alguém afirma “A educação é o desenvolvimento das potencialidades do indivíduo” e

eu afirmo “A educação não é o desenvolvimento das potencialidades do indivíduo”, nós

dois não podemos estar certos: um de nós está errado.

- se alguém afirma “Toda aprendizagem é auto-aprendizagem” e eu afirmo “Alguma

aprendizagem não é auto-aprendizagem”, nós dois não podemos estar certos: um de nós

está errado.

- se alguém afirma “Nenhum aprendizagem é decorrente do ensino”“ e eu afirmo “Alguma

aprendizagem é decorrente do ensino”, nós dois não podemos estar certos: um de nós está

errado.

No caso de proposições contraditórias, é bom que se repita, ambas não podem ser

verdadeiras nem ambas podem ser falsas. Uma delas sendo verdadeira, a outra tem que,

necessariamente, ser falsa, e uma delas sendo falsa, a outra tem que, necessariamente, ser

verdadeira.

ii) Proposições Contrárias e Sub-Contrárias

As proposições que têm a forma “Todo x é y” e “Nenhum x é y” não são

contraditórias. São contrárias. As duas não podem ser verdadeiras, mas ambas podem ser

falsas (no caso de algum x ser y e de algum x não ser y).

Assim, se alguém diz “Todo homem de negócio é desonesto” e eu afirmo “Nenhum

homem de negócio é desonesto”, nós dois não podemos estar certos: pelo menos um de

nós tem que estar errado. Mais provavelmente os dois estejamos errados.

As proposições que têm a forma “Algum x é y” e “Algum x não é y” não são

contraditórias. São sub-contrárias. As duas não podem ser falsas. Se é falso que algum x é

y, então é verdade que algum x não é y (supondo que exista algum x). Igualmente, se é

falso que algum x não é y, então é verdade que algum x é y (novamente, supondo que

exista algum x). No entanto, é possível que ambas sejam verdadeiras (no caso de algum x

ser y e de algum x não ser y).

Se alguém, porém, afirma, “Algum rico é ladrão” e eu afirmo “Algum rico não é

ladrão”, nós dois podemos estar certos, mas não é possível que nós dois estejamos errados.

Proposições contrárias não podem, ambas, ser verdadeiras, mas podem, ambas, ser

falsas.

Proposições sub-contrárias não podem, ambas, ser falsas, mas podem, ambas, ser

verdadeiras.

No último caso, isto é, quando alguém afirma (por exemplo), “Algum rico é ladrão”

e eu afirmo “Algum rico não é ladrão”, é claro que nós dois podemos estar certos, mas

Page 44: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

44

pode não ser tão claro porque não possível que nós dois estejamos errados. É conveniente

esclarecê-lo um pouco mais. Para tanto, porém, é preciso incluir a noção de proposições

subalternas.

iii) Proposições Subalternas

Duas proposições são subalternas quando elas afirmam, ou negam, a mesma

qualidade ou relação (isto é, elas concordam no que diz respeito à “qualidade”), só que

uma faz a afirmação, ou a negação, universal e a outra faz a afirmação, ou a negação,

particular (isto é, elas diferem na “quantidade”). Assim,

“Todo x é y” e “Algum x é y” são subalternas

“Nenhum x é y” e “Algum x não é y” são subalternas

(Note que “Nenhum x é y” é equivalente a “Todo x não é y”).

As relações que prevalecem entre as subalternas são as seguintes:

Se “Todo x é y” é uma proposição verdadeira, “Algum x é y” também é verdadeira;

Se “Todo x é y” é uma proposição falsa, “Algum x é y” pode ser tanto verdadeira

como falsa;

Se “Algum x é y” é uma proposição verdadeira, “Todo x é y” pode ser tanto

verdadeira como falsa;

Se “Algum x é y” é uma proposição falsa, “Todo x é y” também é falsa;

Se “Nenhum x é y” é uma proposição verdadeira, “Algum x não é y” também é

verdadeira;

Se “Nenhum x é y” é uma proposição falsa, “Algum x não é y” pode ser tanto

verdadeira como falsa;

Se “Algum x não é y” é uma proposição verdadeira, “Nenhum x é y” pode ser tanto

verdadeira como falsa;

Se “Algum x não é y” é uma proposição falsa, “Nenhum x é y” também é falsa.

Ou seja:

Se a proposição universal é verdadeira, a particular correspondente também o é;

Se a proposição universal é falsa, a particular correspondente pode ser tanto

verdadeira como falsa;

Page 45: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

45

Se a proposição particular é verdadeira, a universal correspondente pode ser tanto

verdadeira como falsa;

Se a proposição particular é falsa, a universal correspondente também o é.

Agora estamos em condições de mostrar porque é que, quando alguém afirma (por

exemplo), “Algum rico é ladrão” e eu afirmo “Algum rico não é ladrão”, embora nós dois

possamos estar certos, é impossível que nós dois estejamos errados.

Se é falso que “Algum rico é ladrão”, então é verdade (por ser contraditória) que

“Nenhum rico é ladrão”. Se é verdade que “Nenhum rico é ladrão” (universal, negativa),

então é verdade (por ser subalterna) que “Algum rico não é ladrão” (particular, negativa).

Da mesma forma, se é falso que “Algum rico não é ladrão”, então é verdade (por

ser contraditória) que “Todo rico é ladrão”. Se é verdade que “Todo rico é ladrão”

(universal, afirmativa), então é verdade (por ser subalterna) que “Algum rico é ladrão”

(particular, afirmativa).

Por aí se vê que as proposições “Algum rico é ladrão” e “Algum rico não é ladrão”

não podem, ambas, ser falsas.

iv) O Quadrado de Oposições

Chamemos uma proposição do tipo “Todo x é y” de A (Universal, afirmativa)

Chamemos uma proposição do tipo “Nenhum x é y” de E (Universal, negativa)

Chamemos uma proposição do tipo “Algum x é y” de I (Particular, afirmativa)

Chamemos uma proposição do tipo “Algum x não é y” de O (Particular, negativa).

Se colocarmos essas proposições nos ângulos de um quadrado, prevalecem as

seguintes relações:

A e O são contraditórias

E e I são contraditórias

A e E são contrárias

I e O são sub-contrárias

A e I são subalternas

E e O são subalternas

Façamos agora uma tabela de verdade, onde V = verdadeira e F = falsa:

A

E

I

O

Page 46: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

46

Se A é verdadeira V

F

V

F

Se I é verdadeira V/F

F

V

V/F

Se A é falsa F

V/F

V/F

V

Se I é falsa F

V

F

V

Se E é verdadeira F

V

F

V

Se O é verdadeira F

V/F

V/F

V

Se E é falsa V/F

F

V

V/F

Se O é falsa V

F

V

F

Pode-se notar que as tabelas de verdade para as contraditórias (A e O, de um lado, e

E e I, de outro) são idênticas quando elas têm valor diferente (isto é: as tabelas são

idênticas quando A é verdadeira e O falsa, ou vice-versa, e quando E é verdadeira e I falsa,

ou vice-versa).

f) Casos Especiais e a Questão da Consistência

No dia-a-dia, não é sempre que utilizamos enunciados lingüísticos que possuem

formas claras como as que acabamos de ver. É preciso tomar cuidado com casos em que

não fica tão evidente que ou se as proposições são contraditórias.

Por exemplo: Alguém diz “x é só y” e eu digo “x é z”. Estamos nós nos

contradizendo, ou não? A resposta aqui é afirmativa, porque quando eu afirmo que x é z eu

estou implicitamente negando que x é só y. Logo, nós dois não podemos estar com a

verdade: um de nós tem que estar errado. Isso ocorre porque

Assim, se alguém diz “A escola é só reprodutora das relações sociais” (ou “A

escola apenas reproduz as relações sociais”) e eu digo “A escola é um fator importante de

mudança social”, os dois não podemos estar com a verdade: um de nós está errado.

Imaginemos um outro caso. Alguém diz “p” e eu, ao invés de dizer “não-p”, digo

“p, mas não só p, também q”, ou alguém diz “x é y” e eu digo “x é y, mas não só y,

Page 47: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

47

também z”. Neste caso, estamos nós nos contradizendo, ou não? A resposta aqui é

negativa. Eu estou afirmando mais do que a outra pessoa está afirmando, mas não estou

negando o que ela está afirmando. Assim, nós dois podemos estar certos ou os dois

podemos estar errados.

Assim, se alguém afirma “A escola reproduz as relações sociais” e eu afirmo “A

escola reproduz as relações sociais, sim, mas não faz só isso: ela também contribui para a

ocorrência de mudanças sociais”, nós dois podemos estar certos ou nós dois podemos estar

errados. Estaremos os dois certos se a escola fizer as duas coisas. Estaremos os dois

errados se a escola não reproduzir as relações sociais (pois, neste caso, eu estarei errado

mesmo que a escola contribua para a ocorrência de mudanças sociais, pois afirmei as duas

coisas). Se a escola reproduz as relações sociais, mas não contribui para a ocorrência de

mudanças sociais, só a outra pessoa está certa, eu estarei errado. Por outro lado, se eu

estiver certo, a outra pessoa também estará, porque o que eu afirmei inclui o que ela

afirmou.

Um conceito importante neste contexto é o conceito de consistência. Uma

proposição é consistente com outra quando não a contradiz, quando ambas podem ser

verdadeiras.

Quando dizemos que uma proposição contradiz uma outra, o que estamos dizendo é

que o que é afirmado por uma é negado pela outra, e, portanto, ambas não podem ser

verdadeiras, nem podem ambas ser falsas: uma delas tem que ser verdadeira e a outra

falsa.

(Em um sentido derivado, quando dizemos que uma pessoa contradiz uma outra, o

que estamos dizendo é que o que é afirmado por uma é negado pela outra, e, portanto, as

duas pessoas não podem estar certas, nem podem as duas estar erradas: uma tem que estar

certa e a outra errada).

Quando dizemos que uma proposição é consistente com uma outra, o que estamos

dizendo é que o que é afirmado por uma não é negado pela outra, e, portanto, ambas

podem ser verdadeiras. Nem sempre ambas podem ser falsas, se, por exemplo, as duas

proposições forem sub-contrárias.

(Em um sentido derivado, quando dizemos que a posição de uma pessoa é

consistente com a de uma outra, o que estamos dizendo é que o que é afirmado por uma

não é negado pela outra, e, portanto, as duas pessoas podem estar certas. Nem sempre

ambas podem estar erradas, pela razão mencionada no parágrafo anterior).

Quando dizemos que uma proposição é inconsistente com uma outra, o que

estamos dizendo é que elas não são consistentes, isto é, que é logicamente impossível que

as duas sejam verdadeiras. Inconsistência não é a mesma coisa que contradição.

Proposições contrárias são inconsistentes, mas não são contraditórias. Elas não podem,

ambas, ser verdadeiras, mas ambas podem ser falsas.

Page 48: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

48

(Em um sentido derivado, quando dizemos que a posição de uma pessoa é

inconsistente com a de uma outra, o que estamos dizendo é que o que afirmam não pode,

em ambos os casos, ser verdadeiro. Pelo menos uma delas tem que estar errada - podendo

estar erradas as duas.)

(Toda contradição envolve uma inconsistência, mas nem toda inconsistência

envolve uma contradição).

Vimos, atrás, que a proposição de que João é advogado é contraditada pela

proposição de que João não é advogado, mas não (por exemplo) pela proposição de que

João é médico. Tanto ele pode ser uma coisa, como a outra, como também pode ser as

duas coisas. As proposições de que João é advogado e de que João é médico são

consistentes. É claro, também, que ele pode não ser nenhuma das duas coisas. No caso de

João ser, digamos, (apenas) engenheiro, ambas as proposições são falsas.

Se alguém afirma “x é y” e eu afirmo “x é z”, nossas afirmações não se

contradizem, embora estejamos afirmando coisas diferentes de uma mesma entidade. Em

um caso assim, as duas proposições são consistentes, e, portanto, os dois podemos estar

certos ou estar errados.

Assim, se alguém diz “A escola reproduz as relações sociais” e eu digo “A escola

contribui para a ocorrências de mudanças sociais”, nós dois podemos estar certos ou estar

errados. Pode ser que a escola faça as duas coisas, ou que não faça nenhuma. Ou pode ser

que um esteja errado e ou outro certo, caso a escola faça apenas uma das duas coisas. As

duas afirmações não se contradizem, são consistentes.

Um discurso ou uma pessoa é consistente quando não se contradiz. Um discurso ou

uma pessoa consistente não contém, ou afirma, necessariamente, apenas proposições

verdadeiras. Pode, naturalmente, conter ou afirmar apenas verdades. Também pode,

porém, conter ou afirmar apenas falsidades, ou uma mistura de verdades e falsidades. O

que não conter ou afirmar é contradições.

A realidade não contém objetos e fatos incompatíveis uns com os outros. Não

existem quadrados não-quadrados, objetos duros não-duros, coisas amarelas não-amarelas.

Se a gente não equivocar em termos de conceitos e linguagem, não pode afirmar, sem

contradição, que uma coisa é e não é quadrada, dura, ou amarela. Na realidade não existe

nada que possa ser descrito mediante proposições contraditórias. A realidade é ou não é.

Ponto final. A lógica tem, portanto, fundamento na realidade. Se sempre dissermos a

verdade, não corremos risco de nos contradizer.

Neste contexto, os conceitos de consistência e de coerência vão ser considerados

equivalentes.

g) Os Princípios Básicos da Lógica

Embora a lógica não se interesse pela verdade ou falsidade das proposições que

compõem um argumento, quando a verdade ou falsidade é contingente, ela estipula alguns

Page 49: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

49

princípios básicos que estabelecem as condições básicas em que as noções de verdade e

falsidade devem operar,

Os três princípios básicos da lógica são:

1º) Uma proposição sempre é ou verdadeira ou falsa - não há terceira alternativa

(Princípio do Terceiro Excluído)

2º) Uma proposição nunca é ambas as coisas, verdadeira e falsa (Princípio da Não-

Contradição)

3º) Se uma proposição é verdadeira, ela é verdadeira, sempre; se ela é falsa, ele é falsa,

sempre (Princípio da Identidade)

Esses princípios foram explicitados pela primeira vez por Aristóteles, que é

considerado “o pai da lógica”. É uma questão filosófica interessante a que discute se

Aristóteles inventou ou descobriu a lógica. Para os que afirmam que Aristóteles é o

inventor da lógica, esta é algo convencional que, da mesma forma que foi inventada assim,

poderia ter sido inventada de forma diferente. Para os que afirmam que Aristóteles

descobriu, ou, como prefiro, sistematizou a lógica, esta incorpora princípios básicos (como

os três mencionados) sem os quais é impossível pensar corretamente. Para estes (entre os

quais me incluo), é inconcebível que a lógica (em seus aspectos fundamentais) pudesse ser

diferente.

Vamos brevemente analisar cada um desses princípios. De certa forma eles

parecem até triviais.

1º) O Princípio do Terceiro Excluído

O Princípio do Terceiro Excluído afirma que uma proposição sempre é ou

verdadeira ou falsa - não há terceira alternativa.

É preciso se lembrar, aqui, da definição de proposição. Uma proposição é aquilo

que é expresso por um enunciado lingüístico declarativo que descreve um estado de coisas

ou afirmação de que algo é, ou não é, o caso, ou que algo é, ou não é, assim. O Princípio

do Terceiro Excluído estipula que uma proposição é ou verdadeira ou falsa, sempre, sem

exceção. Tem que ser ou uma ou outra coisa, pois que não há uma outra (terceira)

possibilidade. Por isso é que o princípio se chama “Terceiro Excluído”.

Em um certo sentido isso parece até demasiado óbvio. Contudo, algumas pessoas

têm tentado contestar a verdade desse princípio. Tem-se argumentado que proposições que

se referem a estados de coisas ou eventos futuros não são nem verdadeiras nem falsas,

visto que aquilo a que se referem ainda não ocorreu, e que, portanto, existe uma terceira

possibilidade, além da verdade e da falsidade: a indeterminação.

Page 50: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

50

Esse argumento não se sustenta. O Princípio do Terceiro Excluído não afirma que é

possível determinar, em relação a cada proposição, que ela é uma coisa ou outra,

verdadeira ou falsa, muito menos que é possível determiná-lo agora. Proposições que se

referem a estados de coisas ou eventos futuros são verdadeiras ou falsas, embora no

momento não saibamos se são uma ou outra coisa. Mas que são ou uma ou outra é

inquestionável. Não há proposições que não são nem verdadeiras nem falsas. As

proposições que os críticos chamam de indeterminadas são proposições, verdadeiras ou

falsas, cuja verdade ou falsidade não é possível determinar no momento (como, de resto,

também é freqüentemente o caso com proposições que se referem ao passado ou mesmo

ao presente).

2º) O Princípio da Não-Contradição

O Princípio da Não-Contradição estipula que uma proposição nunca é verdadeira e

falsa, isto é, que ela não pode ser ambas as coisas. Se ela (por impossível) fosse ambas as

coisas, ela seria uma proposição contraditória, e portanto, falsa - necessariamente falsa - e

não verdadeira e falsa. Uma proposição contraditória é necessariamente falsa porque

contradições não existem na realidade (ver adiante).

Muitos têm procurado questionar este princípio com considerações como a de que

faz perfeito sentido dizer, em determinadas circunstâncias, algo como “Está chovendo e

não está chovendo”. Essa proposição, que é uma contradição, é de fato usada, no dia-a-dia,

para se referir a uma condição em que está chovendo, mas em que a chuva não é

suficientemente forte para ser seriamente levada em consideração. Esta é uma forma

original de dizer que a chuva é tão fraca, ou tão intermitente, que não preocupa. Embora

possa ser usada no linguajar comum, uma expressão como essa é, em sentido literal,

necessariamente falsa.

Outros têm questionado o Princípio da Não-Contradição apontando para o fato de

que as coisas mudam, transformam-se, e, portanto, algo que pode ser verdadeiro hoje pode

ser falso amanhã. Afirmam essas pessoas que, por exemplo, a proposição expressa pelo

enunciado “Hoje está chovendo” pode ser verdadeira num dia - em que está realmente

chovendo - e falsa no dia seguinte - quando já parou de chover.

É fácil de contestar esse argumento. “Hoje está chovendo” é uma forma elíptica, de

conveniência. A proposição expressa por ela, se expressa em um enunciado completo, não-

elíptico, seria algo como “Hoje, 30/3/92, no campus da UNICAMP, em Campinas, ao

meio dia, está chovendo”. Nesta forma, a proposição é ou verdadeira ou falsa, nunca os

dois. E sua verdade ou falsidade não é relativa a nenhum contexto: só depende de estar ou

não chovendo no campus da UNICAMP em Campinas, ao meio dia de 30/3/92. O

enunciado “Hoje está chovendo”, se usado no “dia seguinte” (31/3/92), seria a expressão

de uma outra proposição, a saber, a proposição de que “Hoje, 31/3/92, no campus da

Page 51: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

51

UNICAMP, em Campinas, ao meio dia, está chovendo”. Esta proposição também é ou

verdadeira ou falsa, nunca os dois. E sua verdade ou falsidade não é relativa a nenhum

contexto: só depende de estar ou não chovendo no campus da UNICAMP, em Campinas,

ao meio dia de 31/3/92.

Outro exemplo às vezes invocado para justificar a rejeição do Princípio da Não-

Contradição é o de proposições como “Estou vivo e estou morto”, para se referir à

condição humana em que a vida e a morte de certa forma co-existem (segundo se alega).

Há certo sentido em dizer “estou vivo, mas estou morrendo”. Mas não faz nenhum

sentido dizer “estou morto, mas estou vivendo”, porque se alguma coisa vive depois que

eu morri, certamente não sou eu. Minha identidade como pessoa acaba, quando eu morri.

E não há ginástica mental que inverta esse fato (a menos que se creia na imortalidade da

alma, em cuja caso o sentido de “vivo” para a ser outro).

Tanto isso é verdade, que alguém pode dizer (enquanto vivo) “vivo, mas estou

morrendo”, mas não pode dizer (depois de morto) “morro, mas estou vivendo”. Viver é

algo continuado. Morrer é algo instantâneo. Embora poeticamente se possa dizer, mesmo

de um recém-nascido sadio, que ele começa a morrer na hora em que nasce, isso não passa

de poesia, sem rigor científico (ou filosófico).

Além disso, se eu, tanto vivo como morto, tenho uma identidade de vivo-e-morto,

qual a diferença entre estar vivo e estar morto?

O sentido básico desses termos é de que “morto” quer dizer “não-vivo”. Os dois

conceitos (vivo e morto) são contraditórios, portanto. Isso não quer dizer que não haja

coisas vivas e coisas mortas na realidade. Quer dizer apenas que uma coisa não pode ser

viva e morta ao mesmo tempo (a menos que se queira brincar com os conceitos e com a

linguagem e com a lógica). Se estou vivo, não estou morto - e vice-versa. Dizer que estou

vivo-e-morto porque, embora esteja vivo, vou um dia morrer, ou a cada dia fique mais

velho, ou mais perto da morte, é brincadeira - sem muita graça, admitamos.

No caso dos conceitos de vida e morte os limites entre eles são claros e precisos.

Não enterro você porque você esteja caminhando para a morte nem deixo de enterrar

alguém que morreu porque seu corpo continuará a existir de alguma outra forma. Há

conceitos, porém, em que os limites não são tão claros ou precisos. Pegue os conceitos de

juventude e velhice, por exemplo. Não é claro que os conceitos sejam contraditórios.

Velho não quer dizer simplesmente não-jovem. A pessoa pode ser madura, nem jovem

nem velha. E não é claro quando passa de um estágio para o outro. Por isso, não causará

tanta estranheza se alguém disser de alguém que é ao mesmo tempo jovem e velho.

Provavelmente queira dizer que é uma pessoa madura. Mas isso não quer dizer que é

possível haver verdades contraditórias.

Um outro exemplo de tentativa de refutação do Princípio da Não-Contradição é

freqüentemente apresentado por filósofos da educação marxistas. Há marxistas que

afirmam que a escola reproduz (nunca soube bem o quê: geralmente se diz que é a

ideologia dominante, ou as relações sociais, ou algo assim). O contraditório dessa tese é a

Page 52: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

52

tese - de não-marxistas - que a escola não reproduz (o que quer que seja que os marxistas

dizem que ela reproduz). Os primeiros dizem uma coisa que os segundos negam. Aqui há

contradição. Só um pode estar com a verdade. É impossível que os dois estejam certos.

A tese dos que afirmam que a escola reproduz (seja lá o que for que ela reproduza)

NÃO é contraditada pelos que dizem que a escola (TAMBÉM) pode revolucionar. Isto

pelo fato simples de que a escola pode fazer as duas coisas ao mesmo tempo: nada impede

que, em certos aspectos, ela possa reproduzir a ideologia dominante, as relações sociais,

etc., e que, em outros aspectos, ela possa subverter a ideologia dominante, alterar as

relações sociais, etc.

Por isso, é óbvio que a tese de que a escola reproduz e a tese de que ela

revoluciona são complementares, não contraditórias. Ambas podem ser verdadeiras. São

teses parciais, no sentido de que refletem parte da verdade.

O Princípio da Não-Contradição afirma que uma proposição não pode ser

verdadeira e falsa. A milenar aceitação desse princípio é inatacável. Se afirmo que esse

princípio é verdadeiro, e outra pessoa diz que é falso, não é possível que nós dois

estejamos certos, que nós dois tenhamos a verdade. Um dos dois tem que estar errado. A

própria negação do princípio implica, portanto, sua aceitação.

Como já mencionamos, a lógica, incluindo este princípio, tem um fundamento na

realidade. A realidade não contém objetos e fatos incompatíveis uns com os outros. Não

existem quadrados não-quadrados, objetos duros não-duros, coisas amarelas não-amarelas.

Uma coisa é ou não é. Ponto final. Na realidade não existe nada que possa ser descrito

mediante o enunciado de uma contradição. Se a gente não equivocar em termos de

conceitos e linguagem, não pode afirmar que uma coisa é e não é quadrada, ou dura, ou

amarela.

3º) O Princípio da Identidade

Dos três princípios, o Princípio da Identidade é o que parece mais óbvio. As

pessoas até sorriem quando o ouvem pela primeira vez, tão auto-evidente ele parece. No

entanto, ele contém mais do que aparece ao que o contempla pela primeira vez.

Há muitos que afirmam que a teoria de que o sol gira em redor da terra é uma teoria

que era verdadeira na Idade Média, mas falsa hoje. Os que assim afirmam estão negando o

Princípio da Identidade. Se a proposição “O sol gira em redor da terra” é falso, hoje, então

ele sempre foi falso, e os medievais estavam simplesmente errados quando acreditavam

nele.

Aplicam-se, aqui, algumas das considerações feitas na seção anterior sobre a

necessidade de qualificar bem os enunciados que fazemos para que fique claro quais são as

proposições que exprimem.

Page 53: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

53

h) A Forma de um Argumento

Já vimos que argumentos têm uma certa forma ou estrutura. Vejamos um

argumento já mencionado e milenarmente famoso:

Todos os homens são mortais

Sócrates é homem

Logo, Sócrates é mortal.

Este argumento, que é válido e tem premissas verdadeiras (e, conseqüentemente,

conclusão verdadeira) tem a seguinte forma:

Todos os x são y

z é x

Logo, z é y.

Imaginemos, porém, um outro argumento, que tem a mesma forma do argumento

anterior:

Todos os homens são analfabetos

Raquel de Queiroz é homem

Logo, Raquel de Queiroz é analfabeta.

Este argumento, diferentemente do argumento anterior, tem premissas e conclusão

todas falsas. No entanto, tem exatamente a mesma forma ou estrutura do argumento

anterior. Se o argumento anterior é válido (e é), este também é.

Quando dois ou mais argumentos têm a mesma forma, se um deles é válido, todos

os outros também são, e se um deles é inválido, todos os outros também são. Como o

primeiro argumento é válido, e o segundo argumento tem a mesma forma, este (o segundo)

também é válido.

O último exemplo mostra que um argumento pode ser válido apesar de todas as

suas premissas e a sua conclusão serem falsas. Isso é indicativo do fato de que a validade

de um argumento não depende de serem suas premissas e sua conclusão efetivamente

verdadeiras.

Mas se esse é o caso, quando é um argumento válido?

i) Argumentos Válidos e Inválidos

A definição mais comum, se bem que não necessariamente a mais exata, de um

argumento válido é a seguinte:

Page 54: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

54

- Um argumento é válido se, e apenas se, no caso de todas as suas premissas serem

verdadeiras, a sua conclusão tiver que, necessariamente, ser verdadeira (sob pena de

contradição).

Outras maneiras de definir validade são:

- Um argumento é válido se, e apenas se, a proposição formada pela conjunção de suas

premissas e da negação de sua conclusão for uma contradição, isto é, uma proposição

necessariamente falsa.

- Um argumento é válido se, e apenas se, a proposição condicional cujo antecedente é a

conjunção de suas premissas e cujo conseqüente for a sua conclusão for uma tautologia,

isto é, uma proposição necessariamente verdadeira.

Um corolário que podemos tirar dessas definições é que, se um argumento é válido,

suas premissas e e sua conclusão formam um conjunto tautológico de proposições, bem

como suas premissas e a negação de sua conclusão formam um conjunto contraditório de

proposições.

Consideremos os dois argumentos seguintes:

Primeiro:

Se eu ganhar sozinho na Sena, fico milionário

Ganhei sozinho na Sena

Logo, fiquei milionário

Segundo:

Se eu ganhar sozinho na Sena, fico milionário

Não ganhei sozinho na Sena

Logo, não fiquei milionário

Esses dois argumentos são muito parecidos. Sua forma já foi mencionada no início

desta seção. A forma do primeiro é:

Se p, q

p

Logo, q

Page 55: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

55

A forma do segundo é:

Se p, q

não-p

Logo, não-q

O primeiro argumento é válido, porque se as duas premissas forem verdadeiras a

conclusão tem que, necessariamente, ser verdadeira. Se eu afirmar suas premissas e negar

sua conclusão estarei me contradizendo.

O segundo argumento é inválido porque mesmo que as duas premissas sejam

verdadeiras a conclusão pode ser falsa (na hipótese, por exemplo, de eu herdar uma

fortuna enorme de uma tia rica).

Na verdade, o que é válido ou inválido é a forma do argumento. Todos os

argumentos que possuem uma mesma forma compartilham a característica da forma. Se a

forma é válida, todos eles são válidos; se a forma é inválida, todos eles são inválidos.

As principais formas válidas de argumentos são:

Modus Ponens

Se p, q

p

Logo, q

Modus Tollens

Se p, q

não-q

Logo, não-p

Silogismo Hipotético

Se p, q

Se q, r

Logo, se p, r

Silogismo Disjuntivo

Ou p ou q

Não-p

Logo, q

Page 56: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

56

ou

Ou p ou q

Não-q

Logo, p

Simplificação

p e q

Logo, p

ou

p e q

Logo, q

Conjunção

p

q

Logo, p e q

Adição

p

Logo, p ou q

A maior parte dos argumentos não é formulada de forma a agradar quem escreve

livros de lógica. Para analisá-los, é freqüentemente necessário reconstruir o argumento a

partir de premissas espalhadas pelo texto. Não é infreqüente que autores deixem premissas

implícitas, que precisam ser explicitadas.

Eis aqui um artigo de Luís Carlos Lisboa, publicado no Jornal da Tarde de 22/6/76:

“O caçador faz pontaria, dispara, o animal cai. Esta é a culminância de uma longa e

meticulosa preparação - a palavra certa seria premeditação. Um ritual justificado e

racionalizado incansavelmente, desde que a aquisição do 'status' de civilizado

obrigou o homem a justificar-se e a racionalizar seus impulsos mais primitivos. O

caçador obstinado apresenta, em defesa de sua ação, alguns argumentos: caçar é um

esporte, caçar é uma ciência, o caçador ama os animais, a caça é um hábito milenar,

Page 57: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

57

o desequilíbrio ecológico é provocado pelo desmatamento e pelos pesticidas, o

caçador nobre não visa ao lucro, respeita o animal caçado e só abate a caça em vôo

ou na corrida. Acrescenta ainda que caçar é um modo de contribuir para o equilíbrio

ecológico, combatendo o 'excesso de espécies'. Até que ponto isso contém, digamos,

um grão de verdade?

A caça não é esporte, porque nela não há competição. Será, no máximo, um jogo de

cartas marcadas, com um vencedor certo, previamente preparado, contra um

adversário inferiorizado e freqüentemente desprevenido. A arma de fogo e a

armadilha se equiparam, no horror de ferir mortalmente um animal em seu próprio

'habitat'. A alegação de que o caçador ama os animais é humorística, a menos que

seja possível aceitar literalmente a frase pessimista de Oscar Wilde: 'Nós destruímos

aquilo que mais amamos'.

A caça é, de fato, um hábito milenar, e até multimilenar. Onde a única alternativa

para a sobrevivência foi a caça - e isso aconteceu em tempos remotos - ela foi

justificável. Quanto à sua antigüidade, o argumento é frágil. Também a guerra e o

homicídio são milenares, mas nem por isso aceitáveis. O tempo confere

respeitabilidade a algumas coisas, incluídos nelas os seres humanos e os vinhos,

nunca impulsos violentos e predatórios. Estes são sempre sinais de volta à

irracionalidade.

Os pesticidas e o desmatamento 'também' têm contribuído para dizimar espécies,

mas a caça descontrolada - e ela é sempre descontrolada, quer queiram, quer não - é

uma das principais culpadas pela extinção da vida animal na terra. Quanto a falar em

'caçador nobre', em oposição a 'caçador plebeu', certamente há muito que duvidar

dessa pretensa sofisticação. Afinal, Raffles não era menos ladrão porque usava

casaca. No final, todos, nobres e plebeus, matam por prazer e por vaidade,

desequilibram os ecossistemas, roubam a tranqüilidade e a beleza dos bosques e dos

cerrados. O ' wishful thinking' - o acreditar em alguma tolice para ver se ela se

transforma em verdade respeitável - é a arma predileta do caçador que teima em usar

esses argumentos. E sua última alegação é a de que caçar é um modo de manter o

equilíbrio ecológico, pela redução do número de indivíduos de determinada espécie

animal. Como se a natureza não fizesse esse trabalho há milhões de anos e estivesse

à espera da invenção da espingarda para resolver seus problemas.”

Vários argumentos são apresentados neste texto, e a maior parte deles está

incompleta. A conclusão é, sempre, de que a caça é justificada, mas faltam premissas aos

argumentos, geralmente a premissa maior. Não é fácil descobri-las ou reconstituí-las,

porém.

O autor prossegue o artigo refutando os argumentos. “A caça não é esporte, porque

nela não há competição”, afirma ele. Ele reconhece que a caça é um hábito milenar e

admite que poderia até ter sido justificada onde era a única alternativa para a

sobrevivência. Contudo, afirma, “também a guerra e o homicídio comum são milenares,

mas nem por isso são aceitáveis”. E assim por diante. Também as refutações, ou os contra-

argumentos, estão incompletos, e o que fica implícito novamente é, em regra, a premissa

maior.

Page 58: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

58

Alguns argumentos, além disso, são complexos e concatenados. Tomemos o

seguinte exemplo:

Se Deus não existe, então tudo é permitido

Se assassinato não é permitido, então nem tudo é permitido

Assassinato não é permitido

Logo, Deus existe

Este argumento complexo é válido. Na verdade, ele consiste de dois argumentos:

O primeiro argumento tem a forma de um modus ponens (sendo válido, portanto).

A conclusão deste argumento não é explicitada no argumento complexo:

Se assassinato não é permitido, então nem tudo é permitido

Assassinato não é permitido

Logo, nem tudo é permitido

O segundo argumento tem a forma de um modus tollens, e usa a conclusão do

anterior como premissa (embora isso não seja explicitado):

Se Deus não existe, então tudo é permitido

Nem tudo é permitido

Logo, Deus existe

j) Argumentos Válidos e Sólidos

Obviamente, vários dos argumentos utilizados na sub-seção anterior, embora

válidos, podem não conter premissas verdadeiras. Sua conclusão, portanto, pode não ser

verdadeira.

Vimos, atrás, que um argumento é válido se, e apenas se, no caso de todas as suas

premissas serem verdadeiras, a sua conclusão tiver que, necessariamente, ser verdadeira

(sob pena de contradição).

Para que um argumento seja válido, portanto, não é preciso que suas premissas

sejam, de fato, verdadeiras: basta que, se elas forem verdadeiras, a conclusão não possa,

logicamente, ser falsa (a menos que se incorra em uma contradição).

Na verdade, é possível haver quase qualquer combinação de verdade e falsidade

entre as premissas e a conclusão de um argumento válido, exceto uma: as premissas não

podem ser verdadeiras e a conclusão falsa. De resto, as premissas podem ser verdadeiras e

a conclusão verdadeira, as premissas podem ser falsas e a conclusão falsa, as premissas

podem ser falsas e a conclusão verdadeira, sem que a validade do argumento seja

prejudicada.

Page 59: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

59

Deste fato algumas pessoas têm derivado alguns corolários interessantes.

a) Qualquer argumento cuja conclusão é uma tautologia é necessariamente válido, porque

não é possível que suas premissas sejam verdadeiras e sua conclusão falsa (visto que uma

tautologia é uma verdade necessária). Exemplo:

Brasília é a capital do Brasil

Logo, ou minha filha se casa ou minha filha não se casa

b) Qualquer argumento cujas premissas sejam contraditórias também é necessariamente

válido, porque não é possível que suas premissas sejam verdadeiras e sua conclusão falsa

(visto que uma contradição é uma falsidade necessária). Exemplo:

A educação é direito de todos e a educação não é direito de todos

Logo, a minha filha se casa na semana que vem.

Eu prefiro não derivar esses corolários, porque eles dão a impressão de que na

lógica tudo é possível e que, portanto, a lógica não deve ser levada a sério. Minha

justificativa para não derivar esses corolários se encontra na minha conceituação de

argumento. Os exemplos apresentados em contextos como esses não são exemplos de

argumentos, como eu os defini, porque a premissa e a conclusão nada têm que ver uma

com a outra.

O primeiro desses corolários é, na realidade, trivial, porque, se a conclusão é uma

tautologia, não é necessário sequer buscar premissas para justificá-la. No caso do segundo

corolário, há também uma certa frivolidade, porque ninguém, de posse de seus sentidos,

iria fornecer uma contradição como premissa de um argumento.

Isso dito, cabe perguntar de que vale um argumento válido, se suas premissas

podem ser falsas, e, portanto, sua conclusão também pode ser falsa?

A resposta está no seguinte. Um argumento válido transmite a verdade das

premissas para a conclusão (sem atentar para o seu significado).

Da mesma forma que ele transmite a verdade das premissas para a conclusão, um

argumento válido transmite falsidade da conclusão para as premissas. Se o argumento é

válido, e estamos convencidos da falsidade da conclusão, podemos usar este fato para

argumentar que as premissas não todas verdadeiras: pelo menos uma delas tem que ser

falsa.

Argumentos válidos são, portanto, de certa forma, facas de dois gumes. Tanto

podem ser usados para provar que a conclusão é verdadeira (caso as premissas sejam

aceitas como verdadeiras), como pode ser usado para provar que pelo menos uma das

premissas é falsa (caso a conclusão seja aceita como falsa).

Page 60: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

60

Por isso, se queremos realmente convencer ou persuadir através de nossa

argumentação, precisamos nos preocupar não só com a validade de nossos argumentos -

que é algo formal - mas, também, com a verdade das proposições que constituem esses

argumentos.

Um argumento válido que tem todas as premissas verdadeiras, e, portanto, a

conclusão verdadeira, é chamado de um argumento sólido (ou, como preferem alguns, um

argumento cogente).

Devemos, portanto, procurar usar argumentos sólidos, e não argumentos que são

válidos, do ponto de vista da forma, mas que possuem premissas questionáveis.

k) Falácias

Argumentos válidos que possuem premissas falsas não são falácias. Na verdade,

nem todos argumentos inválidos são falácias. Uma falácia é um argumento inválido que

tem a aparência de um argumento válido, e que, portanto, engana. Há argumentos

inválidos que são tão patentemente inválidos que ninguém é persuadido por eles. Estes não

são falácias. Para que um argumento inválido seja uma falácia, é preciso que sua

invalidade não seja óbvia: ele precisa ter a aparência de validade. Como um argumento

inválido, porque tem uma falha de forma, pode ter qualquer combinação de verdade e

falsidade entre as premissas e a conclusão, ele é, por vezes, persuasivo - principalmente

quando sua conclusão é verdadeira.

É verdade que esta conceituação de falácia inclui um elemento subjetivo. A única

maneira de escapar desse elemento subjetivo, porém, seria redefinir o conceito de falácia,

tornando-o idêntico ao conceito de argumento inválido. Mas não há o que justifique a

existência de dois nomes para um mesmo conceito, neste caso. Logo, é preferível

continuar com o conceito subjetivo.

O conceito subjetivo também permite falar em falácias informais, além das falácias

formais. Falácias informais são impropriedades de argumentação, mas a impropriedade,

neste caso, não se encontra na forma do argumento, mas no seu conteúdo informacional.

As chamadas falácias informais podem ser divididas em Falácias de Relevância, de

Ambigüidade e de Presunção.

Alguns exemplos de falácias informais são os seguintes:

a) Falácias de Relevância

Uma falácia de relevância ocorre sempre que as premissas são logicamente

irrelevantes em relação à conclusão, e, portanto, são incapazes de demonstrar que a

conclusão é verdadeira. Para ter uma certa persuasão, essas falácias apelam para alguma

relevância ou conexão psicológica (não lógica) entre as premissas e a conclusão.

Page 61: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

61

ARGUMENTUM AD BACULUM (Argumento que Apela à Força ou ao Poder)

(Pai ao filho):

Vou lhe dizer porque você não deve ir à festa: porque se você for, corto-lhe a mesada!

(Dono de rede de televisão ao Diretor da Divisão de Jornalismo):

A melhor coisa a fazer é não dar importância, no noticiário, ao envolvimento dos bicheiros

nesses crimes, porque caso contrário podemos perder a chance de assinar o contrato para

transmissão exclusiva do Carnaval.

Muitos lógicos têm sustentado que, em casos como estes, embora possa haver

abuso de poder, não há falácia. Há, apenas, ameaças e chantagens (que, é triste dizer, são

bastante comuns no dia-a-dia), e não argumentos reais.

ARGUMENTUM AD HOMINEM (Argumento que se Dirige ao Homem)

Os escritos de Nitzsche não têm nada de aproveitável: o homem era neurótico.

b) Falácias de Ambigüidade

Uma falácia de ambigüidade ocorre sempre que uma palavra é usada com um

sentido nas premissas e com outro sentido na conclusão, ou com sentidos diferentes nas

premissas (pressupondo-se, naturalmente, que haja mais de uma).

Exemplo:

João disse que é louco por Maria

Pessoas loucas devem receber tratamento psicológico

Logo, João deve receber tratamento psicológico.

Talvez até precise, dependendo das circunstâncias, mas este argumento só leva a

essa conclusão porque a palavra “louco” está sendo usada para se referir a um conceito

numa premissa e a um conceito diferente na outra.

No livro Alice no País do Espelho há muitos exemplos (intencionais) desse tipo de

falácia. Um deles, representado por um diálogo entre duas pessoas que usam o termo

“ninguém” em sentidos diferentes, pode ser traduzido de maneira livre da seguinte forma:

- Ninguém deve andar mais devagar do que você!

Page 62: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

62

- Discordo, senhor. Na verdade, ninguém anda mais rápido do que eu.

- De jeito algum. Se ninguém andasse mais rápido do que você, ele já estaria, aqui antes de

você!

l) Lógica e Retórica: Argumentos, Convicção e Persuasão

Um argumento cogente ou sólido deveria convencer a todos, pois é válido e suas

premissas são verdadeiras. Sua conclusão, portanto, segue das premissas. Contudo, nem

sempre isso acontece.

Em primeiro lugar, muitas pessoas podem não admitir que o argumento é cogente

ou sólido. Podem admitir a verdade de suas premissas e negar sua validade. Ou podem

admitir sua validade e negar a verdade de uma ou mais de suas premissas.

Em segundo lugar, algumas pessoas podem estar certas da validade de um

argumento e estar absolutamente convictas de que a conclusão é inaceitável, ou falsa.

Neste caso, podem usar o mesmo argumento para mostrar que pelo menos uma de suas

premissas tem que ser falsa.

Um argumento inválido (falácia), ou um argumento válido com premissas falsas,

não deveria convencer ninguém. No entanto, muitas pessoas são persuadidas por

argumentos desse tipo.

A questão da validade ou não de um argumento é inteiramente lógica.

A questão da cogência ou solidez de um argumento é ao mesmo tempo lógica

(porque depende da sua validade) e epistemológica (porque depende de suas premissas

serem verdadeiras).

A questão da força persuasiva de um argumento é uma questão psicológica, ou

psicossocial.

“Um homem pode ser persuadido por um argumento abominável, da mesma forma

que pode não ser convencido por um que deve ser aceito. Quando se trata de

persuasão, sempre está envolvida uma segunda pessoa; e é, por assim dizer,

problema daquela pessoa se ela é persuadida ou não. Por outro lado, se um

argumento de fato se constitui numa prova, ou não, não é questão que se decide por

consenso. Pode haver prova que ninguém reconhece como tal, da mesma forma que é

possível descobrir uma falácia em um argumento até então universalmente

considerado válido.... O efeito de confundir a noção de prova com a noção de

persuasão, quando se fala de provar alguma coisa para alguém, é a sugestão de que

nenhuma prova pode ser válida, muito menos reconhecida como válida, a menos que

seja possível persuadir todas as pessoas de sua validade.... Esta falácia, em particular,

envolve uma mudança de assunto, de uma questão original se o que foi dito é

verdadeiro ou sustentado por boas razões, para a questão bastante diferente, e aqui

irrelevante, se todo o mundo pode ser convencido de que isto é assim.”

Page 63: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

63

O discurso retórico é diretivo; o discurso lógico é descritivo ?

Perelman:

“O método correto implica não confundir, no início, os aspectos do raciocínio

relativos à verdade e os aspectos relativos à adesão, mas, sim, estudá-los

separadamente, mesmo que venhamos, posteriormente, nos preocupar com eventuais

correspondências entre eles. Apenas assim teremos condições de desenvolver uma

teoria da argumentação que tenha impacto filosófico”.

3. Epistemologia

“... E possível dizer que há um mundo e que há verdade; mas não é possível dizer

que o mundo é somente isso ou aquilo ou que a verdade é isso ou aquilo. A relação

do homem com a verdade, não importa o que digam muitos, é sempre de se esticar

para tentar alcançá-la, de aspirar a aquilo que está presente, mas que não está plena e

claramente identificado. É possível ter experiência tanto do mundo quanto da

verdade, e, contudo, reconhecer que essa experiência não é plena nem mesmo

totalmente adequada. É possível tratar mal a ambos - de fato, quem não o faz? Mas

ainda isso é melhor do que ser mal tratado pela visão de mundo e de verdade de uma

outra pessoa, que os enxerga, ao mundo e à verdade, como finitos e transferíveis”.

Vamos, nesta seção, esclarecer a definição de alguns conceitos básicos.

1. Segundo vimos na seção anterior, os três princípios básicos da lógica são:

A. Uma proposição é ou verdadeira ou falsa - não há terceira alternativa (Princípio do

Terceiro Excluído)

B. Uma proposição nunca é ambas as coisas, verdadeira e falsa (Princípio da Não-

Contradição)

C. Se uma proposição é verdadeira, ela é verdadeira, sempre; se ela é falsa, ele é falsa,

sempre (Princípio da Identidade)

2. Entrando agora na epistemologia, que lida não com as proposições em si, e sua relação

umas com as outras, mas com nossa relação com essas proposições, é preciso esclarecer

que, Diante de uma dada proposição (chamêmo-la de p), é possível assumir uma, e não

mais de uma, dentre três, e não mais de três, atitudes:

Page 64: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

64

A. Aceitar p (acreditar em p, crer em p, considerar p verdadeira)

B. Rejeitar p (não acreditar em p, não crer em p, considerar p falsa)

C. Nem aceitar nem rejeitar p, suspendendo o julgamento (nem acreditar em p nem não

acreditar em p, não se comprometer nem com a verdade nem com a falsidade de p)

3. Em qualquer caso, uma dessas atitudes será mais racional do que as outras. A

racionalidade, aqui, é uma função da evidência disponível.

4. É possível que a atitude mais racional venha a se mostrar errada. É possível que uma

pessoa X corretamente conclua que a evidência disponível num dado momento dê

sustentação a p, (e, conseqüentemente, X aceita p) e que, depois, descubra novas

evidências que mostrem que p é falso. Se X é uma pessoa racional, X, nesta hipótese,

muda de atitude, e passa a rejeitar p.

5. Uma pessoa racional pode suspender julgamento quando há alguma evidência a apontar

tanto para verdade como para a falsidade de p. Se não considerar que a evidência permite

determinar se p é verdadeiro ou falso, uma pessoa racional suspende seu julgamento em

relação a p, até que a evidência a convença da verdade ou falsidade de p.

6. É preciso distinguir esse caso daquele em que é feita uma afirmação gratuita, ou seja,

em que alguém afirma algo sem ter a menor evidência para o que afirmou. Neste caso,

uma pessoa racional não precisa suspender julgamento, podendo simplesmente rejeitar a

afirmação feita, por gratuidade. Este é o caso especialmente quando a afirmação é de que

algo existe, pois é logicamente impossível provar que algo não existe. Neste caso, o ônus

da prova recai sobre quem faz a afirmação de que algo existe. Se ele não apresenta

evidência em favor de sua afirmação, ninguém precisa aceitá-la, nem é racional suspender

o juízo, somente porque ele a fez a afirmação, gratuitamente.

7. É preciso distinguir o fato de que alguém fez uma afirmação do conteúdo que ele

afirmou. Assim sendo, eu posso aceitar o fato de que o Presidente Collor afirmou que a

inflação vai baixar (porque tenho evidência de que ele afirmou isso, tendo-o visto fazê-lo

na TV) e ao mesmo tempo rejeitar a proposição “A inflação vai baixar”. Trata-se de duas

proposições.

A primeira proposição é:

A. “O Presidente Collor disse que a inflação vai baixar”

Page 65: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

65

A segunda proposição é:

B. “A inflação vai baixar”

A primeira proposição pode ser verdadeira mesmo que a segunda seja falsa. A primeira

proposição diz respeito ao que o Presidente Collor disse. A segunda diz respeito ao que de

fato vai acontecer com a inflação. (Problema dos nativos que sempre mentem).

8. Quando alguém faz, com sinceridade, afirmações sobre suas próprias crenças, é

virtualmente impossível refutar essas afirmações. Se alguém diz, sinceramente (i.e., sem

estar brincando ou representando uma peça), que acredita que a capital do Brasil é Buenos

Aires, é virtualmente impossível provar que ele não acredita, embora possa ser fácil provar

que Buenos Aires não é a capital do Brasil. É preciso distinguir, aqui também, duas

afirmações:

A. “Acredito que Buenos Aires é a capital do Brasil”

B. “Buenos Aires é a capital do Brasil”

A primeira proposição é sobre a pessoa que o fez, sobre o que ela acredita ou deixa de

acreditar. Ele se refere a eventos na mente da pessoa.

A segunda proposição é sobre que cidade é a capital do Brasil. Ela se refere a fatos não-

mentais e objetivos.

9. Por isso, é muito difícil refutar afirmações que são feitas, não sobre a realidade, mas

sobre impressões mentais que as pessoas afirmam ter da realidade. Se alguém afirma que

determinada superfície lhe parece áspera, ele não está fazendo uma afirmação sobre a

superfície, mas, sim, sobre suas sensações mentais. Sua afirmação pode ser verdadeira

mesmo que a superfície seja bem lisa. X pode parecer lindo a Y mesmo quando X é

bastante feio. Aqui estamos lidando com o problema da aparência e da realidade.

10. É possível definir conhecimento como algo que se passa na mente das pessoas (algo

mental e subjetivo) ou como algo que independe do mental (algo objetivo). No primeiro

caso, conhecimento será visto como uma forma de crença. No segundo, não.

Um exercício interessante que mostra nossa dificuldade em explicitar as razões para

aceitar, ou deixar de aceitar, enunciados que circulam no dia a dia é oseguinte:

Page 66: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

66

Responda às seguintes perguntas acerca de cada uma das vinte proposições abaixo:

Você considera a proposição falsa ou verdadeira?

Quais as razões que você tem para assim considerá-la?

1. A terra é redonda, com um pequeno achatamento nos polos

2. Neste momento eu [quem estiver lendo isto] estou pensando sobre como responder

a estas perguntas

3. Um dia tem 24 horas

4. Não devemos julgar os outros, para que não sejamos julgados

5. Todos os morcegos são vivíparos

6. Os povos antigos eram, em sua maioria, bárbaros

7. Se Pedro é pai, então ele tem pelo menos um(a) filho(a)

8. O enunciado de nº 8 nesta folha é falso

9. A virtude, que é sempre o melhor caminho, está no centro

10. Deus, um ser todo-poderoso, onisciente e infinitamente bondoso, existe

11. Através de um dado ponto exterior a uma linha reta pode ser traçada uma, e apenas

uma, linha paralela a essa linha

12. Eu [quem estiver lendo isto] acredito que é o sol que gira ao redor da terra, e não

vice-versa

13. Em 25/1/1554 foi fundada a cidade de São Paulo

14. Fadas, duendes, essas coisas não existem

15. Se sofro nesta vida, é porque em encarnação anterior fiz coisas que hoje estão

sendo punidas

16. O Prof. Eduardo geralmente vem dar aulas de óculos

17. A terra e os demais planetas do sistema solar giram ao redor do sol

18. A probabilidade de se tirar um seis numa jogada de dados é 1/6

19. A UNICAMP é mais marketing do que qualquer outra coisa

20. Sócrates nunca existiu: foi uma invenção de Platão

Page 67: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

67

IV. O Conceito de Educação

1. O Conceito de Educação

[Observação importante: Conceitos “correntes”, particularmente na sociologia

durkheimiana – Prof. Bráulio T P Matos]

A. Émile Durkheim

Sociólogo francês, nascido em 1858, morreu em 1917. Suas principais obras sobre

a educação são Éducation et Sociologie e L'Éducation Morale, ambas publicadas

postumamente por Paul Fauconnet, discípulo de Durkheim: a primeira em 1922 e a

segunda em 1925.

B. A Definição de Educação

Émile Durkheim, o grande sociólogo francês, assim define a educação:

“A educação é a ação exercida, pelas gerações adultas, sobre as gerações que não se

encontrem ainda preparadas para a vida social; tem por objeto suscitar e desenvolver,

na criança, certo número de estados físicos, intelectuais e morais, reclamados pela

sociedade política, no seu conjunto, e pelo meio especial a que a criança,

particularmente, se destine”.

Paul Fauconnet, em um artigo onde discute a obra pedagógica de Durkheim,

resume essa definição da seguinte forma: “Educação é a socialização da criança”.

Durkheim mesmo diz que “a educação consiste numa socialização metódica das novas

gerações”. De certo ângulo, essa maneira de resumir o que Durkheim entende por

educação não faz injustiça ao que ele pensa, se bem que não seja totalmente apropriada.

Educar é, para Durkheim, e para outros que, neste ponto, concordam com ele, socializar,

metódica e sistematicamente, a criança.

C. O Ponto de Partida: a Primazia do Social

Page 68: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

68

O ponto de partida de Durkheim é o social. Para ele, nas palavras de Nicholas S.

Timasheff, “a realidade da sociedade precede a vida individual”. Timasheff explica que,

para Durkheim,

“os fatos sociais são irredutíveis aos fatos individuais.... A sociedade não é apenas

uma soma de indivíduos, mas um sistema formado pela associação dos indivíduos -

uma realidade específica (e emergente) que tem caraterísticas próprias.

Conseqüentemente - conclui Durkheim - sempre que se explica um fenômeno social

como produto direto de processos psicológicos, a explicação é falsa.... As

explicações de fatos sociais em termos psicológicos falham na apuração do

fundamental efeito coercitivo que os fenômenos sociais reais exercem sobre a vida

do homem.... A fonte de toda obrigação social se acha fora do indivíduo.... Dado que

a vida coletiva não decorre da vida individual, Durkheim acredita que 'a causa

determinante de um fato social devia ser procurada entre os fatos sociais que o

precedem e não entre os estados da consciência individual”.

D. A Sociedade e a Criação do Ser Humano

A afirmação de que “a realidade da sociedade precede a vida individual” pode ser

difícil de entender. Uma forma de esclarecê-la, em termos não-técnicos, é chamando a

atenção para o fato de que, sem o efeito civilizatório e benéfico da sociedade, a criança não

se torna, verdadeiramente, uma pessoa humana. Se a criança for criada no meio de lobos

(por exemplo), tornar-se-á um “menino lobo”. Se, no entanto, sofrer a ação socializante e

educativa das gerações mais velhas, e desenvolver “certo número de estados físicos,

intelectuais e morais, reclamados pela sociedade política”, a criança pode se tornar um ser

humano. É a sociedade que molda a criança (como se esta fosse uma “massinha” de

moldar), que lhe dá a forma de ser humano. Durkheim considera a criança um ser tão

maleável que chega a aproximar a ação educativa à ação hipnótica.

Dentro dessa visão, que dá primazia ao social, tudo aquilo que é caracteristicamente

humano é visto como produto da sociedade. Durheim diz: “Na verdade, o homem não é

humano senão porque vive em sociedade”. Nas palavras de Frans de Hovre, crítico dessa

concepção, segundo ela “o homem absolutamente não nasce homem; torna-se homem

unicamente pelo contacto com outros homens”. Conseqüentemente, “o homem é um ser

social não porque é homem, mas é homem porque é um ser social”. Ou, como prefere

Everett K. Wilson, “o homo sapiens se deriva do homo gregarius”.

Afirma Durkheim, justificando sua afirmação:

“A civilização é devida à cooperação de homens associados e de gerações

sucessivas; é, pois, obra essencialmente social. É a Sociedade que a fez, que a guarda

e a transmite aos indivíduos. É dela que a recebemos. Ora, a civilização é o conjunto

de todos os bens aos quais damos o maior preço; é o conjunto dos mais altos valores

Page 69: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

69

humanos. Pois a Sociedade é a um tempo a fonte e a guardiã da civilização;

apresenta-se-nos como uma realidade infinitamente mais rica, mais alta que a nossa,

uma realidade donde nos vem tudo quanto vale a nossos olhos e que, contudo, nos

excede de todos os lados.... O homem não é homem senão na medida que é

civilizado. Ora, a civilização vem da Sociedade”. (Colocar itálicos)

Paul Natorp chega até a afirmar que o indivíduo “não passa de abstração”. Mas

Durkheim prefere dizer que há, em cada um de nós, dois seres, o “ser individual” e o “ser

social”. O primeiro é “constituído de todos os estados mentais que não se relacionam

senão conosco mesmo e com os acontecimentos de nossa vida pessoal”. O segundo é “um

sistema de idéias, sentimentos e hábitos, que exprimem em nós, não a nossa

individualidade, mas o grupo ou os grupos diferentes de que fazemos parte”. O fim da

educação, conclui ele, é constituir o ser social em cada um de nós, substituir o ser

individual pelo ser social, “superpor ao ser que somos ao nascer, individual e associal, um

ser inteiramente novo”.

“Na realidade, [o] ser social não nasce com o homem, não se apresenta na

constituição humana primitiva, como também não resulta de nenhum

desenvolvimento espontâneo. Espontaneamente, o homem não se submeteria à

autoridade política; não respeitaria a disciplina moral, não se devotaria, não se

sacrificaria. Não há nada em nossa natureza congênita que nos predisponha a tornar-

nos, necessariamente, servidores de... emblemas simbólicos da sociedade, que nos

leve... a nos privarmos em seu proveito ou em sua honra.... Exclusão feita de vagas e

incertas tendências sociais atribuídas à hereditariedade, ao entrar na vida a criança

não traz mais do que a sua natureza de indivíduo. A sociedade se encontra, a cada

nova gefração, como que em face de uma tabula rasa, sobre a qual é preciso construir

quase tudo de novo. É preciso que, pelos meios mais rápidos, ela agregue ao ser

egoísta e associal, que acaba de nascer, uma natureza capaz de vida moral e social.

Eis aí a obra da educação. Basta enunciá-la, dessa forma, para que percebamos toda a

grandeza que encerra. A educação não se limita a desenvolver o organismo, no

sentido indicado pela natureza, ou a tornar tangíveis os elementos ainda não

revelados, embora à procura de oportunidade para isso. Ela cria no homem um ser

novo”.

Esta tarefa de “criar no homem um ser novo” não é, como se vê, natural, nem muito

menos fácil. Ela não se faz sem autoridade e coerção. A criança, quando nasce, é um ser

egoísta, individualista, associal. A tarefa de transformá-la em uma pessoa civilizada (no

sentido durkheimiano) é penosa e não se executa sem grande esforço, pois que vai de

encontro ao egoísmo natural da criança. A criança não consegue, por si só, vencer esse

egoísmo e tornar-se um ser social. Ela precisa ser coagida a fazê-lo, e essa coação só pode

vir de fora, sendo decorrente do sentimento de dever, que lhe é inculcado. “O sentimento

do dever... é... o estimulante capital do esforço para a criança, e mesmo para o adulto”.

Mas a criança não aprende o dever a não ser através dos adultos, principalmente através de

Page 70: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

70

seus pais e mestres. É preciso, portanto, que o mestre seja “o dever personificado”. Para

isso, é preciso que tenha autoridade moral, “porque, pela autoridade, que nele se encarna, é

que o dever é o dever”.

“A liberdade”, afirma Durkheim, “é filha da autoridade bem-compreendida”. Na

verdade, a criança só se torna livre quando ela faz, não o que deseja, mas o que deve: “Ser

livre não é fazer o que se queira; é ser-se senhor de si, saber agir pela razão, praticando o

dever. Ora, é justamente com o objetivo de dotar a criança desse domínio de si mesma que

a autoridade do mestre deve ser empregada”. Conseqüentemente, o objetivo central da

educação moral da criança é fazer com que esta aceite - mais do que aceite, deseje - os

deveres impostos pela sociedade.

E. Algumas Distinções

Mas entremos em maiores detalhes no pensamento durkheimiano acerca da

educação. Para Durkheim, é preciso distinguir a educação, que é uma ação exercida pelas

gerações adultas sobre as gerações mais novas, de (pelo menos) dois outros tipos de

influência que agem sobre o ser humano, em geral, e sobre a criança, em particular.

É preciso, em primeiro lugar, afirma Durkheim, distinguir a educação da influência

que fatores naturais (como “o clima, o solo, a posição geográfica”) exercem sobre os seres

humanos. Ele critica John Stuart Mill por haver englobado, em sua definição de educação,

“fatos inteiramente diversos, que não devem estar reunidos num mesmo vocábulo, sem

perigo de confusão”. Para Durkheim, “a influência das coisas sobre os homens, já pelos

processos, já pelos resultados, é diversa daquela que provém dos próprios homens”.

É preciso, em segundo lugar, segundo Durkheim, distinguir a educação da

influência que fatores institucionais (como “leis, formas de governo, artes industriais”)

exercem sobre os seres humanos. Embora importante, essa influência não deve ser

caracterizada como educação.

É preciso, em terceiro lugar, segundo Durkheim, distinguir a educação (como

conceituada por ele) também da ação que os membros de uma mesma geração exercem

uns sobre os outros. Esta ação “difere da que os adultos exercem sobre as crianças e

adolescentes”. É apenas esta que pode ser caracterizada como educação.

Embora Durkheim não deixe isso explícito, é preciso também distinguir a educação

do processo de amadurecimento natural do ser humano. Para ele,

“para que haja educação faz-se mister que haja, em face de uma geração de adultos,

uma geração de indivíduos jovens, crianças e adolescentes, e que uma ação seja

exercida pela primeira sobre a segunda”.

Para Durkheim, além se não ser admissível considerar como educação qualquer

processo que decorre do amadurecimento natural do ser humano, também não faz sentido

Page 71: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

71

falar em auto-educação, imaginar a possibilidade de que o ser humano possa educar a si

mesmo. Educação, para ele, envolve dois elementos, uma geração de adultos, que educa, e

uma geração de jovens, que é educada. (E não pairem dúvidas sobre quem educa quem

nesse processo...).

Feitas essas distinções, é preciso indagar, esclarece Durkheim, no que,

precisamente, consiste essa influência que as gerações adultas exercem sobre as gerações

mais novas e que é chamada de educação. Ele constata que respostas as mais diversas têm

sido dadas a essa pergunta. Embora diversas, afirma ele, essas respostas “podem reduzir-se

a dois tipos principais”.

O primeiro tipo de resposta (que Durkheim critica) engloba aqueles pensadores que

“partem do postulado de que há uma educação ideal, perfeita, apropriada a todos os

homens, indistintamente; é essa educação universal e única que o teorista se esforça por

definir”.

O segundo tipo de resposta (que Durkheim endossa) engloba aqueles pensadores

que reconhecem “ser preciso considerar os sistemas educativos que ora existem, ou

tenham existido, compará-los e apreender deles os caracteres comuns. O conjunto desses

caracteres constituirá a definição que procuramos”.

F. Os Partidários da “Educação Ideal”

Entre os primeiros pensadores Durkheim destaca Kant e Mill.

Afirma Durkheim que, segundo Kant, “o fim da educação é desenvolver, em cada

indivíduo, toda a perfeição de que ele seja capaz”. Esta conceituação da educação é

semelhante à daqueles que caracterizam a educação como sendo “o desenvolvimento das

potencialidades do indivíduo”. O que se quer dizer com “perfeição” (ou com

“potencialidades”, poderíamos acrescentar) neste contexto. Normalmente, o que se quer

dizer é que o fim da educação “é o desenvolvimento harmônico de todas as faculdades

humanas”, que educar é “levar ao mais alto grau possível todos os poderes que estão em

nós, realizá-los tão completamente como possível, sem que uns prejudiquem os outros”.

Se este é o fim da educação, argumenta Durkheim, ele é um fim não totalmente

realizável: “Se, até certo ponto, o desenvolvimento harmônico é necessário e desejável,

não é menos verdade que ele não é integralmente realizável”. É virtualmente impossível

desenvolver, harmonicamente, todos os nossos “poderes” (ou todas as nossas

“potencialidades”), se estamos, freqüentemente, diante da necessidade de nos dedicar a

tarefas específicas e especializadas. Não podemos, portanto, nos dedicar, todos nós, a um

“mesmo gênero de vida”. Além de não podermos, não devemos, porque

“temos, segunda nossas aptidões, diferentes funções a preencher, e será preciso que

nos coloquemos em harmonia com o trabalho que nos incumbe. Nem todos somos

feitos para refletir; e será preciso que haja sempre homens de sensibilidade e homens

de ação. Inversamente, há necessidade de homens que tenham, como ideal de vida, o

Page 72: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

72

exercício e a cultura do pensamento. Ora, o pensamento não pode ser desenvolvido

senão isolado do movimento, senão quando o indivíduo se curve sobre so mesmo,

desviando-se da ação exterior. Daí uma primeira diferenciação, que não ocorre sem

ruptura de equilíbrio. Por sua vez, a ação, como o pensamento, é suscetível de tomar

uma multidão de formas diversas e especializadas”.

É preciso ressaltar aqui que Durkheim, como muitos antes dele, especialmente

Platão , parece ter uma visão totalmente estática da sociedade: os indivíduos têm que se

adaptar ao trabalho que lhes incumbe. É por isso que sua definição de educação, citada

atrás, conclui dizendo que a criança precisa desenvolver “certo número de estados físicos,

intelectuais e morais, reclamados... pelo meio especial a que a criança, particularmente, se

destine”. As crianças se destinam a “meios” especiais , onde cada uma fará o trabalho que

lhes incumbe. É o indivíduo tendo que se ajustar à sociedade, não a sociedade tendo que se

ajustar aos interesses e desejos do indivíduo.

O outro pensador que Durkheim escolhe para ilustrar o modelo de “educação ideal”

(vis-à-vis o modelo por ele preconizado de “educação real” ) é John Stuart Mill. Afirma

Durkheim que, segundo Mill, o fim da educação é “fazer do indivíduo um instrumento de

felicidade para si mesmo e para seus semelhantes”. Mas isso também não funciona, afirma

Durkheim, “porque a felicidade é coisa essencialmente subjetiva, que cada um aprecia a

seu modo”. Dizer que o fim da educação é a felicidade do indivíduo é não dizer nada,

porque a felicidade é diferentes coisas para diferentes indivíduos. Essa definição, portanto,

como a anterior, deixa indeterminado o fim da educação, e, conseqüentemente, a própria

educação, “que fica entregue ao arbítrio individual”.

Herbert Spencer procurou contornar esse problema, tentando definir a felicidade de

forma objetiva. Para ele, “a felicidade completa é a vida completa”. Mas o que se entende

por “vida”, pergunta Durkheim. Estamos apenas empurrando o problema mais para trás. A

sugestão de Spencer até faria sentido, afirma Durkheim, se por “vida” se entendesse

apenas a vida física, material. Neste caso talvez fosse possível estipular algumas condições

objetivas, relativas “às necessidades vitais imediatas”, que nos permitissem definir “certo

equilíbrio entre o organismo e o meio”. Mas a vida não se exaure na vida física e o ser

humano quer mais do que o funcionamento normal de seu organismo:

“Um espírito cultivado preferirá não viver a renunciar aos prazeres da inteligência.

Mesmo do ponto de vista material,tudo o que for além do estritamente necessário

escapa a toda e qualquer determinação. O padrão de vida mínimo, abaixo do qual não

consentiríamos em descer, varia infinitamente, segundo as condições, o meio e o

tempo. O que, ontem, achávamos suficiente, hoje nos parece abaixo da dignidade

humana; e tudo faz crer que nossas exigências serão sempre crescentes”.

Todas essas tentativas de definir uma “educação ideal” pecam, segundo Durkheim,

porque são a-históricas, desconhecem o fato de que, em algumas épocas (especialmente na

Page 73: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

73

antigüidade), acreditava-se que o indivíduo devia se subordinar cegamente à sociedade, em

outras (como hoje) acredita-se que ele deve ser autônomo; que em determinadas épocas e

locais procurava-se formar espíritos refinados e sutis, dedicados à especulação (Atenas),

em outras, homens de ação e apaixonados pela glória militar (Roma), em outras, homens

piedosos (Idade Média), em outras, homens leigos mas literários (Renascença), em outras,

cientistas (hoje).

Os defensores da “educação ideal” se defenderão, reconhece Durkheim, dizendo

que se a “educação real” acabou por se tornar todas essas coisas, isso só se deu “pelo

desconhecimento do que deveria ser”. Partindo da convicção de que existe uma “sociedade

ideal”, os defensores da “educação ideal” acreditam essa educação seja “apropriada a

todos os homens, indistintamente” , e, portanto, afirmarão que os indivíduos, em cada

época e local, “organizam a sociedade voluntariamente, para realizar fins determinados”, e

que, se a organização não é a mesma em todas as épocas e todos os locais, isso se deve ao

fato de que as pessoas se enganam e erram, tanto em relação aos fins quanto em relação

aos meios da educação. O fato de que nossos antepassados erraram, concluirão eles, não

nos obriga a ser solidários com seus erros. Devemos encarar o que a educação deve ser,

usando o que ela tem sido apenas para não repetir os erros do passado.

Este contra-argumento Durkheim considera “insubsistente”, pela seguinte razão:

“Se a educação romana tivesse tido o caráter de individualismo comparável ao nosso,

a cidade romana não se teria podido manter; a civilização latina não teria podido

constituir-se nem, por conseqüência, a civilização moderna, que dela deriva, em

grande parte. As sociedades cristãs da Idade Média não teriam podido viver se

tivessem dado ao livre exame o papel de que hoje ele desfruta. Importa, pois, para

esclarecimento do problema, atender a necessidades inelutáveis de que não se pode

fazer abstração. De que serviria imaginar uma educação que levasse à morte a

sociedade que a praticasse?”

Note-se a preocupação de que a educação não pode, e não deve, subverter a

estrutura da sociedade em que é praticada. A educação, para Durkheim, é uma instituição

da sociedade, que precisa estar integrada com outras instituições dessa sociedade. O maior

erro dos partidários da “educação ideal” está no fato de que eles não vêem, nos sistemas

educativos,

“um conjunto de atividades e de instituições, lentamente organizadas no tempo,

solidárias com todas as outras instituições sociais, que a educação reflete, instituições

essas, por conseqüência, que não podem ser mudadas à vontade, mas só com a

estrutura mesma da sociedade”.

Na verdade, afirma Durkheim,

Page 74: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

74

“cada sociedade, considerada em um momento determinado de seu desenvolvimento,

possui um sistema de educação que se impõe aos indivíduos de modo geralmente

irresistível. É uma ilusão acreditar que podemos educar nossos filhos como

queremos. Há costumes com relação aos quais somos obrigados a nos conformar; se

os desrespeitarmos, muito gravemente, eles se vingarão em nossos filhos.... Há, pois,

a cada momento, um tipo regulador de educacão, do qual não nos podemos separar

sem vivas resistências, e que restringem as veleidades dos dissidentes”.

Mais adiante Durkheim explicita:

“Não há ninguém que possa fazer com que uma sociedade tenha, num momento

dado, outro sistema de educação senão aquele que está implícito em sua estrutura”.

Durkheim explica, em outro trecho, porquê:

“Quando se estuda historicamente a maneira pela qual se formaram e se

desenvolveram os sistemas de educação, percebe-se que eles dependem da religião,

da organização política, do grau de desenvolvimento das ciências, do estado das

indústrias, etc. Separados de todas essas causas históricas, tornam-se

incompreensíveis. Como, então, poderá um indivíduo pretender reconstruir, pelo

esforço único de sua reflexão, aquilo que não é obra do pensamento individual? Ele

não se encontra em face de uma tabula rasa, sobre a qual poderia edificar o que

quisesse, mas diante de realidades que não podem ser criadas, destruídas ou

transformadas à vontade”.

O caráter bastante conservador do pensamento de Durkheim é um pouco atenuado

quando ele continua, imediatamente após a passagem citada no parágrafo anterior

“Não se pode agir sobre elas [as realidades que não podem ser criadas, destruídas ou

transformadas à vontade] senão na medida em que aprendemos a conhecê-las, em

que sabemos qual é a sua natureza e quais as condições de que dependem; e não

poderemos chegar a conhecê-las, se não nos pusermos a estudá-las, pela observa'vão,

como o físico estuda a matéria inanimada, e o biologista, os corpos vivos”.

Parece claro que, para Durkheim, a sociedade pode ser mudada, mas que isso não

será feito através da educação. Só pode mudar a sociedade quem conhece suas estruturas, e

para que alguém conheça as estruturas da sociedade é necessário que seja educado. Só a

pessoa educada pode vir a mudar a sociedade. Logo, a sociedade não será mudada através

da educação. A educação é, essencialmente, conservadora. Só muda quando muda a

sociedade em cujo serviço se encontra. Afirma Durkheim:

“A educação não passa de imagem e reflexo da sociedae. Ela a imita e a reproduz em

ponto pequeno; não a cria; não é com individualidades isoladas que se refaz a

Page 75: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

75

constituição moral dos povos. A educação não pode reformar-se a nãop ser que a

própria sociedade se reforme”. (Falta itálicos)

Não é possível, pois, segundo Durkheim, fixar, a priori, fins para a educação, como

se a educação ocorresse em condições ideais, desvinculadas da história e do mundo real. É

por isso que Durkheim contrapõe aos que defendem uma noção de “educação ideal” a

noção, por assim dizer, de “educação real”. É “preciso considerar os sistemas educativos

que ora existem, ou tenham existido, compará-los e apreender deles os caracteres comuns.

O conjunto desses caracteres constituirá a definição que procuramos”.

G. Durkheim: o Partidário da “Educação Real”

Vimos atrás que, para Durkheim, é necessário, para que haja educação, que uma

ação seja exercida pelas gerações adultas sobre as gerações mais jovens , e que ele

começou a discutir a questão da natureza dessa ação analisando o ponto de vista (que ele

rejeita) dos partidários da “educação ideal”. Vejamos, agora, como Durkheim vê a

questão, a partir da ótica da “educação real”, já introduzida em sua crítica dos partidários

da “educação ideal”, e que representa a sua posição.

Durkheim se propõe responder à questão da natureza da ação que as gerações mais

velhas exercem sobre as mais novas, ação essa que constitui o cerne da educação,

discutindo o sentido em que se pode dizer que a educação é una (ou igualitária) e o sentido

em que se pode dizer que a educação é múltipla (ou diferenciada).

À primeira vista pode parecer que as várias atividades que são chamadas de

educacionais dentro de uma sociedade pouco, ou mesmo nada, têm em comum. Aquilo

que chamamos de educação parece ser algo totalmente diferenciado, mesmo no seio de

uma mesma sociedade.

“Em certo sentido, há tantas espécies de educação, em determinada sociedade,

quantos meios diversos nela existirem. É ela formada de castas? A educação varia de

uma casta para outra.... Ainda hoje não vemos que a educação varia com as classes

sociais e com as regiões? A da cidade não é a do campo, a do burguês não é a do

operário.... Ainda que a consciência moral de nosso tempo tivesse recebido, acerca

desse ponto, a satisfação que ela espera, ainda assim a educação não se tornaria mais

uniforme e igualitária”.

Isto, segundo Durkheim, não só é assim como deve ser assim.

“E, dado mesmo que a vida de cada criança não fosse, em grandew parte,

predeterminada pela hereditariedade, a diversidade moral das profissões não deixaria

de acarretar, como conseqüência, grande diversidade pedagógica”.

Page 76: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

76

Cada profissão acaba se constituindo em um meio social sui generis, com seus usos

e costumes, suas idéias e suas formas de ver as coisas.

“E, como a criança deve ser preparada em vista de certa função, a que será chamada

a preencher, a educação não pode ser a mesma, desde certa idade, para todo e

qualquer indivíduo. Eis porque vemos, em todos os países civilizados, a tendência

que ela manifesta para ser, cada vez mais, diversificada e especializada; e esse

especialização, dia a dia, se torna mais precoce”.

É por isso que Durkheim afirma, em sua definição de educação no “meio especial”

a que a criança se destina.

Para encontrar uma educação homogênea seria preciso, segundo Durkheim,

procurar entre sociedades pré-históricas, em que não existisse nenhuma diferenciação, mas

nem lá a encontraríamos, porque este tipo de sociedade não passa de “um momento

imaginário na história da humanidade”.

Mas a educação é também una, segundo Durkheim, ou não poderia chamar-se por

um só nome. Esses sistemas educacionais diferenciados, “onde sejam observados, não

divergem uns dos outros, senão a partir de certo ponto”. Repousam, todos eles, em uma

“base comum”:

“Não há povo em que não exista certo número de idéias, sentimentos e práticas que a

educação deve inculcar a todas as crianças, indistintamente, seja qual for a categoria

social a que pertençam.... No decurso da história, constituiu-se todo um conjunto de

idéias acerca da natureza humana, sobre a importância respectiva de nossas diversas

faculdades, sobre o direito e sobre o dever, a sociedade, o indivíduo, o progresso, a

ciência, a arte, etc., idéias essas que são a base mesma do espírito nacional; toda e

qualquer educação, a do rico e a do pobre, a que conduz às carreiras liberais, como a

que prepara para as funções industriais, tem por objeto fixar essas idéias na

consciência dos educandos. Resulta desses fatos que cada sociedade faz do homem

certo ideal, tanto do ponto de vista intelectual, quanto do físico e moral, que esse

ideal é, até certo ponto, o mesmo para todos os cidadãos; que a partir desse ponto ele

se diferencia, porém, segundo os meios particulares que toda sociedade encerra em

sua complexidade”.

A função dessa base comum é suscitar, na criança, “um certo número de estados

físicos e mentais” considerados como indispensáveis para todos os membros da sociedade,

num nível geral, e para todos os membros do grupo social específico a que pertença a

criança, num nível mais específico. “A sociedade, em seu conjunto, e cada meio social, em

particular, determinam este ideal, a ser realizado”. Sem a homogeneidade fornecida por

essa base comum, nenhuma sociedade conseguiria subsistir.

“A educação a perpetua e reforça, fixando de antemão na alma da criança certas

similitudes essenciais, reclamadas pela vida coletiva.... A educação não é, pois, para

Page 77: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

77

a sociedade, senão o meio pelo qual ela prepara, no íntimo das crianças, as condições

essenciais da própria existência”.

Se, numa sociedade específica, o sistema de diferenciação social não for muito

acentuado, a educação terá uma feição mais igualitária; se, numa outra sociedade, o

trabalho for altamente especializado, a educação dará ênfase à diversidade de aptidões

profissionais; se outra sociedade se vir constantemente ameaçada por sociedades vizinhas,

sua educação terá ênfases nacionalistas e mesmo militaristas; e assim por diante.

[Observação importante: inserimos aqui parte do capítulo I e o capítulo II do

segundo esboço – Prof. Bráulio T P Matos]

2. Filosofia da Educação

Mas falemos agora em filosofia da educação. A filosofia analítica da educação,

seguindo a caracterização apresentada nos parágrafos anteriores, não discorre sobre o

fenômeno da educação, como tal, mas sim sobre o que tem sido dito acerca desse

fenômeno (por exemplo, por sociólogos da educação, psicólogos da educação, ou por

qualquer pessoa que reflita sobre a educação). Não resta a menor dúvida de que uma das

primeiras e mais importantes tarefas da filosofia da educação, a partir da caracterização da

tarefa da filosofia sugerida acima, é a análise e clarificação do conceito de "educação".

Fala-se muito em educação. "Educação é direito de todos", "educação é investimento", "a

educação é o caminho do desenvolvimento", etc. Mas o que realmente será essa educação,

em que tanto se fala? Será que todos os que falam sobre a educação usam o termo no

mesmo sentido, com idêntico significado? Dificilmente. É a educação transmissão de

conhecimentos? É a educação preparação para a cidadania democrática responsável? É a

educação o desenvolvimento das potencialidades do indivíduo? É a educação

adestramento para o exercício de uma profissão? As várias respostas, em sua maioria

conflitantes, dadas a essas perguntas são indicativas da adoção de conceitos de educação

diferentes, muitas vezes incompatíveis, por parte dos que se preocupam em responder a

elas. Este fato, por si só, já aponta para a necessidade de uma reflexão sistemática e

profunda sobre o que seja a educação, isto é, sobre o conceito de educação.

Assim que se começa a fazer isso, porém, percebe-se que a tarefa de clarificação e

elucidação do conceito de educação é extremamente complexa e difícil. Ela envolve não só

o esclarecimento das relações existentes ou não entre educação e conhecimento, educação

e democracia, educação e as chamadas potencialidades do indivíduo, educação e

profissionalização, etc. Envolve, também, o esclarecimento das relações que porventura

possam existir entre o processo educacional e outros processos que, à primeira vista,

Page 78: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

78

parecem ser seus parentes chegados: doutrinação, socialização, aculturação, treinamento,

condicionamento, etc. Uma análise que tenha por objetivo o esclarecimento do sentido

dessas noções, dos critérios de sua aplicação, das suas implicações, e da sua relação entre

si e com outros conceitos educacionais é tarefa da filosofia da educação e é condição

necessária para a elucidação do conceito de educação.

Mas há ainda uma outra família de conceitos que se relaciona estreitamente com a

educação: a dos conceitos de ensino e aprendizagem. Qual a relação existente entre

educação e ensino, entre educação e aprendizagem, e entre ensino e aprendizagem?

Façamos uma lista de possíveis perguntas a serem feitas acerca do relacionamento dessas

noções:

Pode haver educação sem que haja ensino?

Pode haver educação sem que haja aprendizagem?

Pode haver ensino sem que haja educação?

Pode haver aprendizagem sem que haja educação?

Pode haver aprendizagem sem que haja ensino?

Pode haver ensino sem que haja aprendizagem? (3)

Tem se criticado muito uma visão da educação que coloca muita ênfase no ensino

(e, conseqüentemente, no professor). O importante, afirma-se, não é o ensino, e sim a

aprendizagem. Os mais exagerados chegam quase a afirmar: "Morte ao ensino! Viva a

aprendizagem!" Outros fazem uso de certos slogans meio obscuros: "Toda aprendizagem é

auto-aprendizagem". Incidentalmente, faz-se muito uso, em livros e discursos sobre a

educação, de slogans cujo sentido nem sempre é muito claro. Um outro slogan muito

usado, nesse contexto, é o seguinte: "Não há ensino sem aprendizagem". Parece claro que,

para poder julgar quanto à verdade ou à falsidade dessas afirmações, é indispensável que

os conceitos de ensino e aprendizagem tenham sentidos claros e específicos - o que,

infelizmente, não acontece com muita frequência. É necessário, portanto, que o sentido

desses conceitos seja esclarecido e que sua relação com o conceito de educação seja

elucidada, e a filosofia da educação pode ser de grande valia nessa tarefa.

Para terminar essa primeira parte, que tem por finalidade caracterizar a filosofia da

educação, dentro da perspectiva mais geral de uma visão da filosofia que foi explicitada

nos primeiros parágrafos, deve-se fazer menção de um outro conjunto de problemas

relacionado, de alguma forma, com os já mencionados, mas que, por razão de espaço, não

será explicitamente discutido: a questão da relação entre educação e valores. Este

problema tem vários aspectos. Um deles é o seguinte: é tarefa da educação transmitir

valores? Muitos já observaram que, seja ou não tarefa da educação transmitir valores, ela

de fato os transmite, pelo menos de maneira implícita. Outros afirmam que, embora seja

tarefa da educação transmitir valores, a educação moral, como às vezes é chamada a

transmissão de valores através da educação, não é tarefa da educação escolar, isto é, da

educação que se realiza no âmbito de uma instituição chamada escola, e sim da educação

Page 79: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

79

que tem lugar no contexto da família, ou talvez, se for o caso, da igreja. Esta resposta

levanta, em um contexto específico, o problema mais amplo da relação entre educação e

escola. Para muitos, quando alguém está falando em educação está, automaticamente,

falando em escolas, e vice-versa. Mas a educação certamente parece ser algo que

transcende os limites da escola, e hoje em dia fala-se muito em "educação sem escolas".

Os proponentes do ponto de vista que mencionamos acima acreditam que pelo menos uma

parte da educação, aquela que diz respeito à transmissão de valores, deve ser levada a

efeito fora da escola. Todos esses problemas são complexos, e embora a filosofia da

educação não tenha respostas prontas para eles, ela pode contribuir muito para sua solução

satisfatória, ajudando na elucidação e clarificação dos principais conceitos envolvidos

nesse conjunto de problemas.

Antes de passarmos para a segunda parte deste trabalho, duas pequenas

observações. A primeira é um lembrete de que os problemas aqui mencionados como

sendo do âmbito da filosofia da educação de maneira alguma esgotam as questões a que

um filósofo da educação, como tal, pode se dirigir, mesmo que ele seja partidário da

conceituação de filosofia e filosofia da educação aqui proposta. Há uma série de outros

problemas, a que não se fez referência, que estão, legitimamente, dentro da província da

filosofia da educação como aqui conceituada. No que foi esboçado acima e no que será

discutido abaixo temos apenas uma amostra de como alguns conceitos educacionais

podem ser analisados filosoficamente.

Em segundo lugar, não se pode esquecer que a caracterização da filosofia da

educação aqui apresentada é uma caracterização possível, que é sugerida a partir de uma

conceituação analítica da filosofia, a qual não é, de maneira alguma, a única possível.

Muitos filósofos discordam da orientação sugerida aqui e apresentam, conseqüentemente,

uma visão diferente da natureza e tarefa da filosofia da educação. Em muitos dos casos a

visão por eles sugerida apenas complementa (e não substitui) a apresentada no presente

trabalho. Em outros casos é bem possível que as concepções sejam mutuamente

exclusivas. Nos últimos parágrafos faremos menção do nosso ponto de vista acerca da

relação entre a filosofia da educação e a teoria da educação, segundo o qual muita coisa

que foi e é apresentada como filosofia da educação deve ser colocada no âmbito da teoria

da educação. Contudo, é apenas no contexto de discussões acadêmicas acerca do conceito

de filosofia da educação que faz alguma diferença designar posições acerca da educação

como pertencentes à teoria, e não à filosofia da educação.

Embora a lógica talvez pudesse recomendar que começássemos com o conceito de

educação, quer nos parecer que, do ponto de vista didático, seja mais recomendável que a

discussão desses conceitos educacionais básicos seja iniciada pelos conceitos de ensino e

aprendizagem, pois o leitor, provavelmente, estará mais familiarizado com eles do que

com o mais difuso e abstrato conceito de educação.

Page 80: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

80

3. Conceitos de Ensino e Aprendizagem

Comecemos nossa discussão dos conceitos de ensino e aprendizagem fazendo a

seguinte pergunta: pode haver ensino sem que haja aprendizagem?

1. Pode Haver Ensino sem que Haja Aprendizagem?

Suponhamos uma situação em que um professor universitário apresente, em

detalhes, os aspectos mais difíceis e complicados da teoria da relatividade de Einstein a

grupo de crianças de sete anos. Suponhamos que o professor em questão seja profundo

conhecedor do assunto e faça uma brilhante exposição, utilizando meios audiovisuais ou

quaisquer outros recursos que a didática moderna possa recomendar. Apesar de tudo isso,

as crianças nada aprendem daquilo que ele apresentou. Podemos nós dizer que, embora as

crianças nada tenham aprendido acerca da teoria da relatividade de Einstein, o professor

esteve ensinando durante sua apresentação? A resposta afirmativa, neste caso claramente

extremo e exagerado, parece pouco plausível. Mas suponhamos - uma suposição, agora,

não tão absurda - que a audiência desse professor fosse composta, não de crianças de sete

anos, mas de universitários no último ano do curso de física, e que o resultado fosse o

mesmo: os alunos nada aprenderam acerca da teoria da relatividade de Einstein através da

exposição. Podemos nós dizer que, embora o professor tivesse estado a ensinar a teoria da

relatividade, os alunos não a aprenderam? A resposta afirmativa, aqui, parece bem mais

plausível. Mas qual é, realmente, a diferença entre a primeira e a segunda situação? Vamos

colocar esta questão, por enquanto, entre parênteses, para analisar algumas respostas que

têm sido dadas à pergunta com que iniciamos este parágrafo: pode haver ensino sem que

haja aprendizagem?

Muitas pessoas dão uma resposta negativa a esta pergunta, afirmando que não há

ensino sem aprendizagem. Este é um dos slogans que freqüentemente aparecem na

literatura educacional. Correndo o risco de caracterizar algumas posições altamente

complexas de uma maneira um pouco simplista, poderíamos dizer que, em relação às duas

situações que imaginamos no parágrafo anterior, os que afirmam que não há ensino sem

aprendizagem podem se dividir em dois grupos: de um lado estariam os que afirmam que

naquelas situações não houve ensino, visto não ter havido aprendizagem. Do outro lado,

porém, estariam aqueles que, quando confrontados com situações desse tipo, levantam a

seguinte questão: Será que não houve mesmo aprendizagem? Ainda supondo que os

alunos, tanto em um como no outro caso, nada tenham aprendido acerca da teoria da

relatividade de Einstein, argumentam, será que eles não aprenderam alguma coisa através

da exposição do professor? Eles poderão ter aprendido, por exemplo, no caso das crianças

de sete anos, que, embora o professor estivesse falando o tempo todo, ninguém estava

entendendo nada, que as aulas com a professora regular são muito mais divertidas, que o

retro-projetor utilizado pelo professor é um "negócio bacana", etc.. No caso dos

Page 81: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

81

universitários, eles poderão ter aprendido que o professor devia desconhecer o nível da

classe para dar uma aula dessas, que o curso que eles fizeram não deve ter sido muito bom,

se não os capacitou a entender uma apresentação sobre a teoria da relatividade de Einstein,

etc. Em poucas palavras: os alunos, em um como no outro caso, devem ter aprendido

alguma coisa, e, conseqüentemente, houve ensino nas situações imaginadas - este o

argumento.

A dificuldade com essa sugestão é óbvia: embora possa ter havido aprendizagem

nas situações imaginadas, o que os alunos aprenderam não foi aquilo que o professor lhes

estava expondo! Poderiam, talvez, ter aprendido as mesmas coisas, se a exposição

houvesse sido sobre a química de Lavoisier, ou sobre as peças de Sheakespeare, ou sobre a

filosofia de Kant. Isto, por si só, já indica que algo não está muito certo e que há

necessidade de que algumas coisas sejam esclarecidas e colocadas em seus devidos

lugares. Vamos, de uma maneira muito simples e elementar, tentar esclarecer alguns

desses problemas.

Se prestarmos atenção a algo muito simples, como a regência do verbo ensinar,

poderemos começar a esclarecer a situação. Quem ensina, ensina alguma coisa a alguém.

A situação de ensino é uma situação que envolve três componentes básicos: alguém que

ensina (digamos, o professor ), alguém que é ensinado (digamos, o aluno), e algo que o

primeiro ensina ao segundo (digamos, o conteúdo). Não faz sentido dizer que fulano

esteve ensinando sicrano a tarde toda sem mencionar (ou sugerir) o que estava sendo

ensinado (se frações ordinárias, andar de bicicleta, amarrar os sapatos, atitude de

tolerância, etc.) (4). Também não faz sentido dizer que beltrano esteve ensinando História

do Brasil nas duas últimas horas, sem mencionar (ou indicar) a quem ele estava ensinando

História do Brasil (se a seus filhos, se aos alunos da quarta série, etc.).

Nos dois casos que imaginamos, o professor universitário estava expondo a um

grupo de alunos um certo conteúdo, a saber, a teoria de relatividade de Einstein. Este

conteúdo os alunos, por hipótese, não aprenderam. Que eles tenham aprendido outras

coisas, as quais ele, claramente, por hipótese, não estava interessado em transmitir-lhes,

parece irrelevante à questão: pode haver ensino sem que haja aprendizagem? (5) Por isso,

vamos deixar de lado o "segundo grupo" dos que afirmam que não há ensino sem

aprendizagem e discutir a posição do "primeiro grupo", ou seja, daqueles que afirmam que,

visto não ter havido aprendizagem (da teoria da relatividade, naturalmente) nos casos em

questão, não houve ensino.

Será que esta afirmação é verdadeira? Cremos que não. É importante notar que a

afirmação cuja veracidade aqui vai ser colocada em dúvida é uma afirmação composta,

que diz (pelo menos) duas coisas: em primeiro lugar, afirma que não houve ensino; em

segundo lugar, afirma que não houve ensino porque não houve aprendizagem. Afirmar

simplesmente "não houve ensino" é constatar algo; afirmar, porém, "não houve ensino

porque não houve aprendizagem" é, além de constatar algo, oferecer uma explicação: é

Page 82: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

82

indicar a razão (ou a causa) em virtude da qual não houve ensino. A afirmação cuja

veracidade vamos questionar é a composta, que inclui a explicação da constatação. Isto

pode parecer meio complicado, mas no fundo é simples, como, esperamos, se vai ver.

Se é verdade que não há ensino sem aprendizagem, então não existe uma distinção

entre ensino bem sucedido e ensino mal sucedido. Todo ensino é, por definição, bem

sucedido, isto é, resulta, necessariamente, em aprendizagem. Dizer, portanto, que fulano

ensinou raiz quadrada a sicrano e sicrano aprendeu raiz quadrada é ser redundante, é

incorrer em pleonasmo, é dizer a mesma coisa duas vezes. Dizer, por outro lado, que

fulano ensinou raiz quadrada a sicrano e sicrano não aprendeu raiz quadrada é incorrer em

autocontradição, é afirmar e negar a mesma coisa, ao mesmo tempo, porque se fulano

ensinou, então sicrano (necessariamente) aprendeu, e se sicrano não aprendeu, então

fulano (necessariamente) não ensinou. Ora, tudo isso nos parece absurdo (6). Parece-nos

perfeitamente possível afirmar que, embora fulano tivesse ensinado raiz quadrada a

sicrano durante a tarde toda, sicrano não aprendeu raiz quadrada. Em outras palavras, a

distinção entre ensino bem sucedido (que resulta em aprendizagem) e ensino mal sucedido

(que não resulta em aprendizagem) parece inteiramente legitima. Ora, se esta distinção é

legítima, então não é verdade que não há ensino sem aprendizagem (ou que todo ensino

resulta em aprendizagem).

Mas parece haver um certo vínculo conceitual entre ensino e aprendizagem.

Dificilmente diríamos que uma pessoa está ensinando algo a alguém se esta pessoa não

tem a menor intenção de que este alguém aprenda o que está sendo ensinado. Talvez o que

o slogan esteja querendo dizer é que se não houver, por parte de quem apresenta um certo

conteúdo, a intenção de que alguém aprenda aquilo que ele está expondo, então não há

ensino. Esta afirmação parece ser aceitável. Ela apresenta uma dificuldade, porém: a noção

de intenção. Como é que se determina que uma pessoa tem, ou não tem, a intenção de que

alguém aprenda o que ela está expondo? Esta é uma dificuldade séria, porque esta questão

é virtualmente equivalente à seguinte pergunta: Como é que se determina que uma pessoa

está, ou não está, ensinando? (7)

2. Parêntese: A Questão da Intenção

Imaginemos que alguém esteja levando aos lábios um copo contendo um líqüido

vermelho. O que é que esta pessoa está fazendo? A esta pergunta pode-se responder,

obviamente, com uma descrição dos movimentos físicos da pessoa em questão: ela está

levando aos lábios um copo que contém um líqüido vermelho. Mas esta resposta é pouco

informativa. Para se oferecer uma resposta que seja mais informativa, porém, é necessário

que se faça menção da intenção (ou do propósito) que a pessoa tem a levar aos lábios o

copo com o líqüido. A pessoa pode estar meramente saciando a sua sede com um bom

vinho. Ou pode estar se embebedando. Ou pode estar se suicidando com um líqüido

venenoso. Ou pode estar comungando. Ou, ainda, pode estar fazendo um número de coisas

Page 83: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

83

que não vem ao caso enumerar. Sua intenção ao tomar o líqüido é que vai determinar o

que esta pessoa esta realmente fazendo. É bom ressaltar que a questão da intenção é

sumamente importante. Se se descobre que a pessoa em pauta tinha meramente a intenção

de saciar sua sede, mas que alguém (sem ela saber) despejou veneno no líqüido, causando

sua morte, nós não diríamos que ela se suicidou, e sim que foi assassinada. Se sua intenção

era saciar a sede, mas, por puro engano, bebeu um líqüido venenoso ao invés do vinho que

pensava estar bebendo, nós não diríamos que houve suicídio, e sim um lamentável

acidente, que veio a ser fatal, se, naturalmente, em conseqüência disso, a pessoa veio a

falecer. Estas distinções são importantes, principalmente em contextos jurídicos. Em nosso

caso, porém, elas não parecem nos ajudar muito na determinação da intenção da pessoa

que levou aos lábios o copo com o líqüido vermelho. De que maneira poderíamos

determinar sua intenção?

Deve ser dito claramente que não há maneiras seguras e infalíveis de determinar a

intenção de alguém. Intenções não são coisas direta e imediatamente observáveis, como o

são movimentos físicos - pelo menos no caso de outras pessoas. (A situação parece

bastante diferente quando se trata de nossas próprias intenções: a elas temos acesso direto

e imediato, se bem que não através da observação.) Contudo, uma intenção pode, muitas

vezes, ser indiretamente determinada através do contexto em que certos movimentos

físicos são realizados, com ajuda do nosso conhecimento (mesmo que elementar) acerca

do desenvolvimento e comportamento das pessoas. Se, no nosso caso, a pessoa estava

levando o copo aos lábios dentro de uma igreja, na presença de um sacerdote, etc., é

bastante plausível que sua intenção era comungar - pelo que sabemos do comportamento

"normal" das pessoas, dificilmente ela estaria tentando se embebedar ou cometer suicídio

ali. Se a pessoa, porém, estava levando o copo aos lábios em um clube noturno, onde

esteve a dançar, tem o semblante alegre e descontraído, é bem possível que sua intenção

fosse meramente saciar a sede - dificilmente estaria comungando ali, por exemplo. E assim

por diante. Quando estamos na posição de observadores, procurando descobrir a intenção

de alguém, precisamos analisar o contexto e, com base em nosso conhecimento acerca do

comportamento "normal" das pessoas, aventar uma hipótese, que terá maior ou menor

probabilidade de ser correta, dependendo das circunstâncias. Em alguns casos pode ser

impossível determinar a intenção de alguém. Em outros pode ser até razoavelmente fácil

(o que não exclui a possibilidade de erro). No nosso caso, não há dados que permitam

determinar qual das hipóteses é mais provável, ou mesmo se alguma delas tem certa

possibilidade, pois só oferecemos a descrição de um movimento físico: o de levar aos

lábios um copo com líqüido vermelho - não descrevemos o contexto. Mas em grande parte

dos casos há uma indicação do contexto, da situação, que nos permite inferir qual a

intenção do agente ao realizar certos movimentos.

Voltemos agora à afirmação que fizemos acima de que se não houver, por parte de

quem apresenta um certo conteúdo, a intenção de que alguém aprenda aquilo que está se

expondo, então não há ensino. O problema que esta afirmação enfrenta, dissemos, está

Page 84: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

84

relacionado com a dificuldade em determinar a intenção de alguém, a partir dos

movimentos físicos que realiza. Esta dificuldade, contudo, não é intransponível, como

acabamos de ver, e é compartilhada por todas as situações em que atribuímos intenções a

outras pessoas, algo que fazemos em grande freqüência. Constantemente atribuímos

intenções aos outros (8) e, embora muitas vezes erremos ao fazê-lo, com surpreendente

freqüência acertamos.

Estamos agora em condições de responder à pergunta que formulamos no primeiro

parágrafo desta segunda parte: Qual é realmente a diferença entre a primeira e a segunda

situação que imaginamos naquele parágrafo? Por que é que no primeiro caso parece

plausível dizer que o professor não estava ensinando, e que no segundo parece bem mais

plausível dizer que o professor estava ensinando, embora em ambos os casos os alunos

nada hajam aprendido? No primeiro caso, os fatos da situação - o contexto - mais nosso

conhecimento de que crianças "normais" de sete anos têm condições de aprender nos

indicam que o professor dificilmente poderia ter a intenção de que as crianças

aprendessem os aspectos mais complicados da teoria da relatividade de Einstein. Por

bizarro que possa parecer, é bem mais plausível imaginar que o professor estivesse

ensaiando uma aula ou conferência, e que a presença das crianças fosse puramente

acidental ou ornamental. No segundo caso, porém, a situação é alterada. A audiência é

composta de alunos no último ano do Curso de Física. Baseados nesse fato, e em nosso

conhecimento (ou na suposição razoável) de que alunos no último ano do Curso de Física

têm, em geral, condições de entender a teoria da relatividade de Einstein, torna-se bem

mais plausível atribuir ao professor a intenção de que os alunos aprendessem o que ele

estava expondo, ou seja, a intenção de ensinar. Em um caso, portanto, é plausível afirmar

que o professor não estava ensinando, e no outro é plausível afirmar que estava. Em

nenhum dos dois casos, porém, houve aprendizagem. A plausibilidade das afirmações

acima não se deve, portanto, ao fato de os alunos não haverem ou haverem aprendido o

que lhes era exposto. Deve-se, isto sim, ao fato de que em um caso não faz sentido atribuir

ao professor a intenção de que seus alunos viessem a aprender o que expunha, e no outro

faz.

Foi por isso que ressaltamos acima que não iríamos discutir a afirmação simples de

que não houve ensino naquelas situações e sim a afirmação composta de que não houve

ensino porque não houve aprendizagem. Embora as situações sejam, exceto pela

audiência, idênticas, estamos propensos a acreditar que no primeiro não houve ensino e

que no segundo pode ter havido (9). Mas não estamos propensos a acreditar que este seja o

caso porque na primeira situação não tenha havido e na segunda tenha havido

aprendizagem, pois, por hipótese, não houve aprendizagem em nenhuma delas. Baseamo-

nos no fato de que no primeiro não é plausível atribuir ao professor a intenção de causar

(ou produzir, ou ocasionar, ou ensejar) a aprendizagem dos alunos, enquanto no segundo é.

Page 85: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

85

3. Parêntese: O Conceito de Ensino

Em relação ao conceito de ensino, podemos resumir as nossas conclusões e sugerir

algumas de suas implicações:

Primeira: O conceito de ensino faz referência a uma situação ou atividade triádica, isto é,

de três componentes, quais sejam, aquele que ensina, aquele a quem se ensina, e aquilo

que se ensina. Esta conclusão sugere que não é muito apropriado dizer que alguém ensinou

a si próprio alguma coisa, sendo, portanto, um auto-didata (o termo "didata" provém do

verbo grego didaskein, que quer dizer, exatamente, "ensinar"). Quando dizemos que uma

pessoa esta ensinando algo a uma outra pessoa, pressupomos que a primeira saiba (ou

domine) o que está ensinando e que a segunda não saiba (ou domine) o que está sendo

ensinado. Se há, porém, apenas uma pessoa em jogo, mais um certo conteúdo, ou esta

pessoa já sabe (ou domina) este conteúdo, em cujo caso não precisa ensiná-lo a si própria,

ou esta pessoa não sabe (ou domina) o conteúdo em questão, em cujo caso não tem

condições de ensiná-lo a si própria. Designar certas pessoas como auto-didatas parece,

portanto, bastante descabido. Isso não quer dizer, porém, que alguém não possa aprender

por si próprio um certo conteúdo, sem que alguma outra pessoa necessariamente lho

ensine. Neste caso, porém, a pessoa que vem aprender um dado conteúdo por si própria

não é um auto-didata, mas sim um auto-aprendiz.

Segunda: Para que uma atividade se caracterize como uma atividade de ensino não é

necessário que aquele a quem se ensina aprenda o que está sendo ensinado; basta que o

que ensina tenha a intenção de que aquele a quem ele ensina aprenda o que está sendo

ensinado. Esta segunda conclusão é rica em implicações. Em primeiro lugar, ela implica a

existência de ensino sem aprendizagem (o que poderíamos chamar de ensino mal

sucedido). Em segundo lugar, ela sugere que coisas realmente não ensinam, porque não

podem ter a intenção de produzir a aprendizagem. Isto, por sua vez, significa que não é

muito correto dizer: "A natureza me ensinou", ou "a vida me ensinou", etc. Significa,

também, que é só com muito cuidado que podemos falar em ensino através de máquinas

(máquinas de ensinar, computadores, por exemplo), ou mesmo através de livros. Um

computador (ou um livro) só ensina na medida em que a pessoa que o programou (ou

escreveu) teve a intenção de que alguém aprendesse através dele.

Terceira: A intenção de produzir a aprendizagem, isto é, a intenção de ensinar, só pode ser

constatada mediante análise do contexto em que certas atividades são desenvolvidas. Se

esta análise tornar razoável a atribuição da intenção em pauta, podemos concluir que pode

estar havendo ensino (10); caso contrário, seremos forçados a admitir que não esteja. Esse

exame do contexto é, portanto, extremamente importante. A presente conclusão, quando

vista à luz das precedentes, tem pelo menos três implicações bastante significativas. Em

primeiro lugar, desde que ensinar é sempre ensinar alguma coisa, algum conteúdo, a

alguém, quem quer que seja que pretenda estar ensinando tem a obrigação de indicar, de

Page 86: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

86

maneira clara e inequívoca, exatamente o que é que ele tenciona que seus alunos

aprendam. Se o conteúdo a ser aprendido não é claramente indicado, a pessoa que o expõe

pode estar fazendo uma variedade de coisas (um discurso, uma pregação, etc.), mas

dificilmente estará ensinando, pois se torna bastante problemático atribuir-lhe a intenção

de que os alunos aprendam algo que não é especificado. Em segundo lugar, é necessário

que as atividades desenvolvidas por quem pretende estar ensinando estejam relacionadas,

de alguma maneira, com o conteúdo a ser aprendido. Isto significa que, embora as

atividades que possam ser consideradas atividades de ensino, em geral, sejam virtualmente

ilimitadas, as atividades que podem ser considerada de ensino de um conteúdo específico

são limitadas pela natureza do conteúdo em questão. Se as atividades desenvolvidas não

têm relação com esse conteúdo, torna-se difícil atribuir ao suposto ensinante a intenção de

que seus alunos aprendam o conteúdo que lhes está sendo proposto. Em terceiro lugar,

desde que ensinar é sempre ensinar alguma coisa a alguém, é necessário que quem

pretende estar ensinando conheça e leve em consideração a condição de seus alunos (sua

idade, seu desenvolvimento, seu nível intelectual, etc.) para não apresentar-lhes conteúdos

para os quais não estão preparados e que não têm condições de aprender e para não

desenvolver atividades inadequadas à condição desses alunos. Torna-se bastante

problemático atribuir a alguém a intenção de que seus alunos aprendam um certo conteúdo

se esse conteúdo, por exemplo, está acima da capacidade desses, ou se as atividades

escolhidas como meios para alcançar esse objetivo não podem ser desenvolvidas ou

acompanhadas pelos alunos.

Com essas conclusões chegamos, porém, ao segundo tópico a ser discutido nesta

parte do trabalho. Até agora discutimos a possibilidade de haver ensino sem

aprendizagem. Discutamos agora a questão inversa: pode haver aprendizagem sem ensino?

4. Pode Haver Aprendizagem sem que Haja Ensino?

A resposta a essa pergunta parece ser bem mais fácil do que a resposta à questão

anterior. Parece óbvio que pode haver aprendizagem sem ensino. Atrás já aludimos ao fato

de que é possível que, durante uma aula ou exposição, alguém aprenda coisas que o

professor não está querendo lhe ensinar (isto é, coisas que o professor não tem a intenção

de que ele venha a aprender), como, por exemplo, que o assunto da exposição é

terrivelmente maçante. Este seria um exemplo de aprendizagem sem ensino. Acabamos de

sugerir que o chamado auto-didata é, na realidade, um auto-aprendiz, alguém que aprende

um certo conteúdo sozinho, e não alguém que o ensina a si mesmo. Sugerimos, também,

que não é muito correto dizer que a natureza e a vida ensinam. Nestes casos, também,

parece ser muito mais correto dizer que certas pessoas aprendem determinadas coisas por

si próprias. Estes seriam exemplos de aprendizagem sem ensino. Parece claro, portanto,

que pode haver aprendizagem sem ensino.

Page 87: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

87

Mas consideremos a posição de alguém que argumente da seguinte maneira (11).

Concordo não ser muito correto dizer que a natureza e a vida ensinem coisas às pessoas; é

muito mais correto dizer que as pessoas aprendem sozinhas - se bem que através de seu

contato com a natureza ou através de sua experiência da vida. Mas - continua o argumento

- esta situação não é diferente da do aluno na sala de aula: o aluno, na sala de aula, também

aprende, na realidade, sozinho - se bem que, muitas vezes, através de seu contacto com o

professor. A sua aprendizagem, prossegue o argumentante, não é o produto, ou o

resultado, ou a conseqüência do ensino do professor: há muitos fatores que incidem sobre

ela, como, por exemplo, a motivação do aluno, suas condições de saúde e alimentação, o

clima sócio-emocional na sala de aula, as condições do meio ambiente (a temperatura da

sala, etc.), e assim por diante. Um dos fatores mais importantes a incidir sobre a

aprendizagem é a experiência anterior do aluno com conteúdos semelhantes aos que agora

se pretende que ele aprenda, a bagagem de experiência e conhecimento que ele traz

consigo. É somente na medida em que estes fatores incidem de maneira favorável sobre o

aluno que ele vem a aprender, continua o argumentante, e conclui: A aprendizagem do

aluno é sempre uma auto-aprendizagem: se ele está doente, ou sub-nutrido, ou não tem

motivação, ele não aprende, por melhor que seja o professor. Ao professor cabe, portanto,

simplesmente facilitar a aprendizagem, remover os obstáculos a ela, criar-lhe condições

propícias. A aprendizagem, porém, é sempre um ato do aluno e nunca a conseqüência de

um ato do professor, a saber, do ato de ensinar. Toda aprendizagem, portanto, diz o slogan,

é auto-aprendizagem. Aqui termina o argumento.

Várias observações podem ser feitas aos que assim argumentam. Em primeiro

lugar, os que assumem essa posição respondem afirmativamente à pergunta: Pode haver

aprendizagem sem que haja ensino? É verdade que vão mais longe, afirmando que a

aprendizagem, em hipótese alguma, pode ser entendida como uma conseqüência do

ensino. Em segundo lugar, precisa ser dito que grande parte das afirmações feitas pelos

que defendem essa posição é perfeitamente aceitável - por exemplo, o que se diz acerca

dos vários fatores que incidem sobre a aprendizagem. É este fato que faz com que a

posição em pauta pareça ter uma certa plausibilidade inicial. O que precisa ser esclarecido

- e esta é uma terceira observação - é o papel do ensino, e, conseqüentemente, do

professor, no processo de aprendizagem.

Estamos entrando, aqui, porém, em uma área perigosa para o filósofo, pois esta

última questão parece levantar um problema de natureza empírica acerca do qual somente

um psicólogo poderia nos dar informações. Um filósofo que se preocupa essencialmente

com questões conceituais faria bem, poderia parecer, em não se intrometer nesta área. Para

esclarecer nosso objetivo, portanto, é necessário que indiquemos claramente em que

sentido um filósofo pode contribuir para a solução desse problema. Vimos atrás que o

conceito de ensino inclui uma referência ao conceito de aprendizagem (mais precisamente,

faz referência à intenção de produzir a aprendizagem). O que queremos examinar aqui é se

o conceito de aprendizagem exclui a possibilidade de que a aprendizagem seja vista como

Page 88: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

88

o produto, o resultado, ou a conseqüência do ensino, pelo menos em alguns casos. Já

admitimos a possibilidade de que a aprendizagem ocorra sem ensino. Queremos, agora,

examinar a suposta impossibilidade de que ela aconteça em decorrência do ensino, como

efeito ou conseqüência deste (12). Se esta impossibilidade for real, isto é, se o conceito de

aprendizagem logicamente exclui a possibilidade de que a aprendizagem seja vista como

(em alguns casos) uma decorrência do ensino, então o ensino, como uma atividade que é

desenvolvida com a intenção de que dela resulta a aprendizagem, é um empreendimento

fútil. Não caberá mais ao professor ensinar - restar-lhe-á apenas a tarefa de detectar

obstáculos e empecilhos à aprendizagem (como falta de motivação, desnutrição, etc.) e de

procurar encontrar maneiras de remover esses obstáculos e empecilhos, tornando-se,

portanto, caso venha a ser bem sucedido, um facilitador da aprendizagem. Diga-se de

passagem que essa tarefa não é pequena, nem fácil, e muito menos indigna. Todo professor

sensível se dedica a ela. Acontece, porém, que muitos professores acreditam que, além da

tarefa de detectar obstáculos e empecilhos à aprendizagem e de procurar encontrar

maneiras de removê-los, cabe-lhes a tarefa de ensinar, ou seja, de desenvolver certos tipos

de atividade que deverão resultar na aprendizagem, por parte dos alunos, de certos

conteúdos. Ora, essa tarefa só é realizável se a impossibilidade a que nos referimos não for

real.

Para elucidar essas questões que, embora conceituais, têm muitas implicações

práticas, é necessário levar em conta o que psicólogos afirmam acerca da natureza da

aprendizagem. Mas nossa investigação não é equivalente a uma investigação psicológica,

de natureza empírica.

Há um certo sentido em que é verdade que toda aprendizagem á auto-

aprendizagem, que é o seguinte: ninguém pode aprender por mim. Se eu quero vir a saber

(ou dominar) um certo conteúdo, sou eu e ninguém mais que tenho que aprender esse

conteúdo. Alguém pode me explicar em detalhe o conteúdo a ser aprendido, pode discuti-

lo comigo, esclarecer minhas dúvidas, estabelecer paralelos entre esse conteúdo e outros

que já conheço (ou domino), etc., mas a aprendizagem, em última instância, é minha. Sou

eu que tenho que assimilar, compreender, dominar o que deve ser aprendido. Se é só isso

que se quer dizer quando se afirma que toda aprendizagem é auto-aprendizagem, então o

slogan é perfeitamente aceitável.

Mas muita gente quer dizer mais com o slogan. Quer dizer que o professor não

deve interferir no processo de aprendizagem do aluno (a não ser para remover obstáculos a

essa aprendizagem) e que este deve descobrir por si só aquilo que deve aprender. O melhor

que o professor pode fazer, em uma linha de ação positiva, talvez seja criar condições

propícias para que o aluno descubra, ele próprio, o conteúdo a ser aprendido. Interpretado

dessa maneira, o slogan já não nos parece tão aceitável. Em primeiro lugar, essa

aprendizagem por descoberta parece inteiramente apropriada em contextos nos quais a

pessoa está aprendendo sozinha, sem o auxílio do professor, ou em contextos nos quais

aquilo que deve ser aprendido ainda não foi descoberto por ninguém, sendo, portanto,

Page 89: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

89

desconhecido. Em segundo lugar, não nos parece que jamais tenha sido provado que, no

que diz respeito a conteúdos já conhecidos, já descobertos por alguém, a melhor maneira

de aprender esses conteúdos seja trilhar o caminho seguido por quem originalmente os

descobriu. Em outras palavras, parece ser bem possível, por exemplo, que a melhor

maneira de aprender um dado conteúdo já conhecido seja seguir o caminho inverso

daquele percorrido por quem descobriu esse conteúdo (reverse engineering). Ou algum

outro caminho, talvez. Essas questões precisam ser investigadas empiricamente. Não há

garantias conceituais para a suposição de que no caso de verdades já conhecidas - estamos

falando agora de conteúdos cognitivos - a melhor maneira de aprendê-los seja redescobri-

las. Por um lado, o processo de descobrimento (ou redescobrimento) é altamente

demorado, e muitas vezes não é bem sucedido. Por outro lado, não há a menor garantia de

que, se cada geração precisar redescobrir as verdades já descobertas por prévias gerações,

se vá chegar muito além do ponto ao qual as gerações prévias chegaram. Isto nos mostra

que, em relação a certos conteúdos, é bem possível que a melhor maneira de ocasionar

uma aprendizagem rápida e fácil seja através do ensino.

Ora, se isto é possível - note-se que não estamos dizendo que seja o caso - então

não é (logicamente) impossível que a aprendizagem aconteça em decorrência do ensino,

como efeito ou conseqüência do ato de ensinar.

4. Pode haver ensino sem que haja educação? Pode haver aprendizagem sem que

haja educação?

Para respondermos a essas perguntas é necessário que investiguemos o conceito de

educação.

Uma investigação exaustiva, que descreva e analise os vários conceitos de

educação existentes em nossa cultura, ou em outras culturas, distantes de nós no tempo ou

no espaço, não é possível dentro do escopo do presente trabalho. Os conceitos são tantos, e

tão variados, que somente poderíamos discuti-los com algum proveito dentro de um livro

dedicado especialmente ao assunto. A alternativa que nos resta é a de propor uma

caracterização do conceito de educação que seja suficientemente ampla, que faça sentido e

seja justificável. A partir dessa caracterização tentaremos responder às perguntas

formuladas no parágrafo anterior, bem como às suas correlatas: Pode haver educação sem

que haja ensino? Pode haver educação sem que haja aprendizagem?

Entendemos por “educação” p processo através do qual indivíduos adquirem

domínio e compreensão de certos conteúdos considerados valiosos.

Vamos esclarecer o sentido dos principais termos dessa proposta de definição, pois

sem esse esclarecimento a proposta fica muito vaga.

Page 90: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

90

CONTEÚDOS: Como vimos na seção anterior, o termo “conteúdo” tem sentido bastante

amplo, podendo designar coisas as mais variadas. Quando falamos em conteúdos, no

contexto educacional, temos em mente não só conteúdos estritamente intelectuais ou

cognitivos, mas todo e qualquer tipo de habilidade, cognitiva ou não, atitudes, etc. Note-se,

porém, que na nossa proposta de definição o termos “conteúdos” está qualificado (falamos

em “certos conteúdos considerados valiosos”), fato que já é indicativo de uma certa

restrição no tocante aos conteúdos que podem ser objeto do processo educacional. Mas

falaremos sobre isto mais adiante. Aqui é suficiente indicar que quando falamos de

conteúdos estamos nos referindo a coisas tão diferentes umas das outras como geometria

euclideana, teoria da relatividade, habilidade de extrair a raiz quadrada ou calcular a área

do círculo, habilidade de amarrar os sapatos, de mexer as orelhas sem mover outros

músculos da face, atitude positiva para com a vida, a morte, para com os outros, etc.

ADQUIRIR DOMÍNIO: Estamos usando a expressão “adquirir domínio” como

basicamente equivalente ao termo “aprender”. Adquirir domínio de um dado conteúdo é,

portanto, aprendê-lo, no sentido mais amplo do termo. Neste sentido, alguém adquiriu

domínio de calcular a área de um círculo quando aprendeu e é capaz de (“sabe”) calcular a

área de qualquer círculo que lhe seja apresentado.

ADQUIRIR COMPREENSÃO: Em nossa proposta de definição dissemos que a

educação é o processo através do qual indivíduos adquirem domínio e compreensão de

certos conteúdos considerados valiosos. Nossa intenção ao acrescentar “e compreensão”

não foi a de simplesmente dar maior ênfase. Cremos que algo diferente e muito importante

foi acrescentado à definição com a inclusão dessas duas palavras. Para que um processo

seja caracterizado como educacional não basta que através dele indivíduos venham a

dominar certos conteúdos: é necessário que esse domínio envolva uma compreensão dos

conteúdos em questão. Uma coisa é saber que a fórmula para calcular a área de um círculo

é pi*r ao quadrado e mesmo ser capaz de aplicá-la. Outra coisa é compreender porque é

que se utiliza essa fórmula para calcular a área de um círculo. Uma coisa é saber que não

se deve tirar a vida de uma outra pessoa. Outra coisa é compreender porque é que não se

deve fazer isso. Uma coisa é assimilar, pura e simplesmente, os valores de uma dada

cultura. Outra coisa é aceitá-los, criteriosamente, após exame que leve à compreensão de

sua razão de ser. Quando falamos em educação não estamos falando simplesmente em

socialização ou aculturação, por exemplo. O processo de assimilação de normas sociais e

de valores culturais pode ou não ser educacional: se essas normas e esses valores são

simplesmente incorporados pelo indivíduo, ou inculcados nele, sem que ele compreenda

sua razão de ser, o processo é de mera socialização ou aculturação, não havendo educação.

Para que haja educação é necessário que o indivíduo, além de dominar certos conteúdos,

que no caso são normas sociais e valores culturais, venha a compreendê-los, venha a

Page 91: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

91

entender sua razão de ser, venha a aceitá-los somente após investigação criteriosa que

abranja não só as normas e os valores em questão, mas também possíveis alternativas.

CONTEÚDOS CONSIDERADOS VALIOSOS: Esta expressão talvez seja a mais

problemática na proposta de definição feita por nós. O domínio, mesmo com compreensão,

de certos conteúdos não é parte integrante de um processo educacional se os conteúdos em

questão são considerados perniciosos ou sem valor algum. O domínio da habilidade de

mexer as orelhas sem mover outros músculos da face não é, em nossa cultura, parte

integrante do processo de educação dos indivíduos. O valor dessa habilidade é considerado

virtualmente nulo. O desenvolvimento de uma atitude positiva, de aceitação, de relações

sexuais entre irmãos também não é, em nossa cultura, parte integrante do processo de

educação dos indivíduos, pois essa atitude é vista como perniciosa. Há, portanto, uma

importante restrição no tocante aos conteúdos que podem ser objeto do processo

educacional, como mencionamos atrás, e essa restrição diz respeito ao valor que se atribui

a esses conteúdos, em determinados contextos. Essa introdução de um elemento valorativo

na definição de educação limita os conteúdos que podem ser parte integrante do processo

educacional. AO mesmo tempo que faz isso, essa referência ao valor dos conteúdos coloca

a educação dentro da problemática maior do chamado relativismo, pois o que é tido como

valioso em uma dada cultura pode não ser assim considerado em outra, e vice-versa. Foi

por isso que tivemos o cuidado de dizer “conteúdos considerados valiosos”, e não

simplesmente “conteúdos valiosos”, pois ao optar pela segunda possibilidade estaríamos

nos comprometendo com um dos lados de uma controvérsia que está longe de ser

resolvida. É perfeitamente concebível que a habilidade de mexer as orelhas sem mover

outros músculos da face seja considerada valiosa em algumas culturas, como é claramente

possível que o desenvolvimento de uma atitude positiva para com o incesto entre irmãos

seja considerado valioso em outras culturas. Se isso é verdade, então o domínio daquela

habilidade e o desenvolvimento desta atitude seriam parte integrante do processo

educacional nessas culturas, do mesmo modo que não o são na nossa. É possível, para citar

outro exemplo, que o desenvolvimento de uma atitude crítica para com as opiniões de

outras pessoas, incluindo-se aí os mais velhos, ou aqueles em posição de autoridade, seja

considerado algo indesejável em algumas culturas e algo altamente valioso em outras. Se

este for o caso, o desenvolvimento dessa atitude não será parte integrante do processo

educacional nas primeiras culturas e o será nas outras. E assim por diante. Não nos

compete aqui discutir a questão da objetividade ou não dos valores, embora este seja um

tópico fascinante. Também não entraremos na complicada questão que é colocada pela

coexistência de valores conflitantes dentro de uma mesma cultura (concebendo-se o termo

“cultura” aqui em um sentido bastante amplo): em caso de conflito, deverão ter prioridade

e prevalecer os valores de quem? Os dos pais do educando? Os dos professores? Os dos

governantes? Os da igreja? Ou os do próprio educando?

Page 92: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

92

Tendo em mente essa caracterização do conceito de educação, retomemos as

perguntas formulados no início desta seção: Pode haver ensino sem que haja educação?

Pode haver aprendizagem sem que haja educação? Parece óbvio que, se a educação é o

processo através do qual indivíduos adquirem domínio e compreensão de certos conteúdos

considerados valiosos, naturalmente pode haver ensino e aprendizagem sem que haja

educação, ou seja, ensino e aprendizagem não-educacionais. Basta que as condições

estipuladas na caracterização do conceito de educação não sejam cumpridas, para que o

ensino e a aprendizagem deixem de cumprir função educacional.

Já observamos atrás que o domínio de habilidades às quais não se atribui valor, ou

o desenvolvimento de atitudes consideradas perniciosas, em um dado contexto, não são

partes integrantes do processo educacional, dentro daquele contexto. Em uma cultura

semelhante à nossa, por exemplo, o fato de um indivíduo aprender a mexer as orelhas sem

mover outros músculos da face, ou de desenvolver um atitude de aceitação ou tolerância

para com relações sexuais entre irmãos, não é visto como uma contribuição para o seu

processo educacional. Conseqüentemente, se alguém ensina a uma outra pessoa aquela

habilidade ou esta atitude, esse ensino estará se realizando fora do contexto educacional,

pois esses conteúdos não são considerados valiosos em nossa cultura. Igualmente, ensinar

a alguém a arte (ou técnica) de arrombar cofres fortes, ou de bater carteiras, ou de mentir

com perfeição, não é contribuir para sua educação, em um contexto cultural em que esses

conteúdos não são considerados valiosos, como, queremos crer, seja aquele em que

vivemos.

Pode haver, portanto, ensino e aprendizagem sem que haja educação, quando os

conteúdos ensinados e aprendidos não são considerados valiosos.

Contudo, mesmo o ensino e a aprendizagem de conteúdos considerados valiosos

podem ser não-educacionais se, por exemplo, levam ao domínio sem compreensão (no

sentido ilustrado) desses conteúdos. Alguém que aceita normas sociais e valores culturais

sem examinar e compreender sua razão de ser, sem dúvida aprendeu um certo conteúdo

(possivelmente até através do ensino), mas o fez sem compreensão: a aprendizagem, neste

caso, foi não-educacional, e se a aprendizagem foi decorrência de um ensino que estava

interessado apenas na aceitação das normas e dos valores, e não na sua compreensão, o

ensino também foi não-educacional (tendo sido, possivelmente, doutrinacional). O

chamado condicionamento, na medida em que produz um certo tipo de comportamento

que não é acompanhado de compreensão, não pode ter lugar dentro de um processo

educacional.

Quer nos parecer, pois, que não resta a menor dúvida de que o ensino e a

aprendizagem podem ser não-educacionais, ou porque os conteúdos ensinados e/ou

aprendidos não são considerados valiosos ou porque levam ao domínio sem compreensão.

É por isso que se pode criticar o ensino que insiste na mera memorização ou a

aprendizagem puramente mecânica, automática, não-significativa. O ensino e a

Page 93: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

93

aprendizagem, nesses casos, não estão contribuindo para a educação do indivíduo, mesmo

que os conteúdos ensinados e aprendidos sejam considerados valiosos, porque não estão

levando o indivíduo a compreender esses conteúdos.

Da mesma maneira, perece-nos bastante impróprio falar em educação de animais,

por exemplo, embora não reste dúvida de que animais possam aprender, freqüentemente

em decorrência de atividades de ensino. Muitos animais são perfeitamente capazes de

dominar habilidades às vezes bastante complexas. É difícil imaginar, porém, que esse

domínio seja acompanhado de compreensão (no sentido visto). Não o sendo, é impróprio

afirmar que foram educados: parecer ser bem mais correto dizer que foram meramente

treinados, ou talvez, condicionados.

De igual maneira, o ensino e a aprendizagem de conteúdos que consistam de

enunciados falsos, ou de enunciados que a melhor evidência disponível indique terem

pouca probabilidade de serem verdadeiros (e, conseqüentemente, grande probabilidade de

serem falsos), ou, talvez, de enunciados acerca dos quais a evidência, favorável ou

contrária, seja inconclusiva, não devem ser parte integrante do processo educacional, pois

quer nos parecer que em nossa cultura não seja considerado valioso um conteúdo que

consista de enunciados falsos, ou contrários à melhor evidência disponível, ou acerca dos

quais a evidência seja inconclusiva. O ensino de conteúdos deste tipo parece bem mais

próximo da doutrinação do que da educação. Devemos ressaltar, para evitar mal-

entendidos, que ensinar que um dado enunciado, ou conjunto de enunciados, é falso ou

não-evidenciado é afirmar algo verdadeiro, se os enunciados em questão forem realmente

falsos ou não-evidenciados, e se constitui, portanto, em uma atividade que pode,

legitimamente, ser parte integrante do processo educacional. O que não pode ser visto

como educacional é o ensino (e a aprendizagem) de enunciados falsos ou não-

evidenciados como sendo verdadeiros ou evidenciados.

A esta altura vários problemas muito interessantes poderiam ser levantados, como

elementos para futuras reflexões.

Primeiro: Ensinar (em geral, incluindo-se ensinar em contextos não-educacionais) é

desenvolver certas atividades com a intenção de que os alunos aprendam um dado

conteúdo x. Ensinar (em contextos, agora, estritamente educacionais) é desenvolver certas

atividades com a intenção de que os alunos aprendam e compreendam um dado conteúdo

x. Não há garantias de que as atividades desenvolvidas no ensino não-educacional e no

ensino educacional de um mesmo conteúdo x sejam, necessariamente, as mesmas - muito

pelo contrário.

Segundo: Ensinar, como visto, é sempre ensinar um certo conteúdo. Mas é perfeitamente

possível que o conteúdo a ser ensinado, em um dado momento, seja o próprio ato de

ensinar, ou a própria arte (ou habilidade) de ensinar. Neste caso, o próprio ensino seria o

conteúdo do ensino.

Page 94: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

94

Terceiro: O ensino que leva à aprendizagem sem compreensão e a aprendizagem não

acompanhada de compreensão são, como acabamos de ver, não-educacionais. O elemento

que os torna educacionais é a compreensão. A seguinte pergunta, portanto, é bastante

importante e pertinente: É possível ensinar a compreensão como conteúdo, isto é, ensinar

aos alunos a arte ou habilidade de compreender qualquer conteúdo que estejam

aprendendo, ou tenham aprendido, ou que venham a aprender? Queremos crer que sim,

embora este não seja o lugar de justificar esta resposta. Quer nos parecer, porém, que

aqueles que afirmam que a função primordial da educação é fazer com que indivíduos

aprendam a pensar estejam, na realidade, querendo dizer que a função primordial da

educação é fazer com que indivíduos aprendam certos conteúdos com compreensão, de

maneira crítica, etc., e não de modo puramente mecânico, não significativo.

Quarto: Quando o conteúdo do ensino é o próprio ensino (a arte ou habilidade de ensinar),

também este conteúdo pode ser ensinado de maneira não-educacional e de maneira

educacional, isto é, com a intenção de que os alunos meramente o dominem ou com a

intenção de que os alunos o dominem e compreendam. Quer nos parecer que quem

aprende ou domina com compreensão este conteúdo (a arte ou habilidade de ensinar) terá

melhores condições, caso venha, eventualmente, a ensinar outros conteúdos, de fazê-lo de

maneira educacional, isto é, de modo que seus alunos venham a aprender e compreender

esses outros conteúdos.

Quinto: Quem aprende com compreensão um conteúdo qualquer (diferente do ato ou da

habilidade de ensinar) geralmente tem melhores condições de ensinar aquele conteúdo, ou

mesmo de ensinar a ensinar aquele conteúdo, do que alguém que só se preocupa com

ensinar o ato ou a habilidade de ensinar (em geral). (parágrafo acrescentado).

Todas essas questões são altamente complexas, mas muito interessantes,

merecendo estudo e reflexão. Dadas as limitações de tempo e espaço, não podemos

investigá-las mais detalhadamente no presente trabalho. Somos da opinião de que o

esquema conceitual aqui apresentado, além de permitir que essas questões sejam

levantadas, sugere algumas maneiras de abordá-las, que poderão ser desenvolvidas em

outros trabalhos.

Acabamos de ver, pois, que pode haver ensino e aprendizagem que não são

educacionais. Pode haver educação, porém, sem que haja ensino e sem que haja

aprendizagem? Vamos discutir esta questão em partes, examinando, primeiro, se pode

haver educação sem que haja aprendizagem, e, segundo, se pode haver educação sem que

haja ensino.

Nossa proposta de definição de educação e nossa caracterização do termo

“aprendizagem” nos mostram que há um vínculo conceitual entre educação e

aprendizagem. Todo processo educacional implica, por definição, a aprendizagem de

algum conteúdo, ou seja, envolve, necessariamente, alguma forma de aprendizagem.

Habilidades que decorrem de processos puramente fisiológicos ou de amadurecimento não

Page 95: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

95

podem ser parte integrante do processo educacional porque não envolvem domínio,

aprendizagem. A capacidade de fazer com que os intestinos funcionem, por exemplo, e a

capacidades de gerar filhos, não são aprendidas: são decorrentes de processos puramente

fisiológicos e de amadurecimento. Conseqüentemente, o seu desenvolvimento não pode

ser visto como parte integrante do processo de educação de uma criança ou de um jovem.

A habilidade de controlar os intestinos e de manter sob controle a capacidade reprodutora,

de modo a permitir que esta se manifeste apenas em certas situações e sob certas

condições, é, porém, decorrente de um processo de aprendizagem, e, conseqüentemente, o

seu desenvolvimento pode se constituir em um dos objetivos específicos do processo de

educação de indivíduos.

Não nos parece fazer o menor sentido dizer que um certo tipo de atividade contribui

para a educação de um indivíduo se, em decorrência dessa atividade, o indivíduo nada vai

aprender. A educação é o processo através do qual indivíduos aprendem e compreendem

certos conteúdos considerados valiosos. Não é possível, pois, que haja educação sem que

haja aprendizagem.

A situação é diferente no que diz respeito à relação entre ensino e educação. Vimos,

atrás, que pode haver aprendizagem sem que haja ensino. A educação está conceitualmente

vinculada à aprendizagem, e esta pode ocorrer sem que haja ensino. Deste argumento não

decorre, porém, aparências ao contrário, que a educação possa ocorrer sem que haja

ensino, pois não é o caso que, necessariamente, toda aprendizagem seja conceitualmente

ligada à educação, sendo possível que apenas seja ligada à educação a aprendizagem

decorrente do ensino. Contudo, prima facie não há razão para negar que esteja se educando

o indivíduo que aprende por si próprio (o auto-aprendiz), e vem a compreender (no sentido

dado ao termo por nós), conteúdos considerados valiosos. A menos, portanto, que se

apresente um argumento convincente para mostrar que a educação não pode ocorrer sem o

ensino, devemos concluir que possa.

É bem possível, porém, como ressaltamos na seção anterior, que a aprendizagem de

certos tipos de conteúdo se realize mais fácil e rapidamente através do ensino. Se este

realmente for o caso - e, como dissemos, não nos parece que o contrário tenha sido jamais

provado - então a educação pode e deve se utilizar do ensino. Mas não há, neste caso, um

vínculo conceitual entre educação e ensino, como acontece no caso de educação e

aprendizagem. No caso de educação e ensino o vínculo é puramente acidental. Desde que

o ensino pode ser uma das maneiras de alguém chegar à aprendizagem de certos

conteúdos, podendo mesmo ser, no caso de alguns conteúdos, a maneira mais eficiente, a

educação pode se utilizar do ensino. Mas não é necessário, do ponto de vista lógico, que o

faça. Conseqüentemente, pode haver educação sem que haja ensino.

Page 96: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

96

5. Educação formal e informal

Antes de passarmos à discussão do conceito de doutrinação, parece-nos oportuno

acrescentar alguns comentários finais sobre o conceito de educação.

O primeiro desses comentários diz respeito à distinção entre educação formal e

educação informal. Há, pelo menos, duas maneiras de entender essa distinção. De um lado,

pode-se afirmar que educação formal é aquela ministrada em instituições especialmente

criadas e organizadas com o objetivo de educar, a saber, escolas, e que educação informal

é aquela que se realiza através de outras instituições, cuja finalidade precípua e principal

talvez não seja a de educar, a saber, o lar, a igreja, a empresa, centros comunitários, etc.

Não resta a menor dúvida de que pessoas educam-se, e são educadas, sem jamais

freqüentar uma escola. Neste sentido, a chamada “educação sem escolas” não só sempre

foi possível como sempre ocorreu e ainda ocorre em larga escala, e o apelo no sentido de

que a educação, hoje em dia, se torna mais informal seria uma convocação de outras

instituições (além da escola) a um maior envolvimento com o processo educacional,

muitas vezes relegado, nos dias atuais, por razões várias, quase que exclusivamente à

escola.

Acontece, porém, que a educação informal, neste sentido do termo, freqüentemente

é bastante “formal” (em um sentido um pouco diferente do termo), ocorrendo de maneira

bastante semelhante à utilizada nas escolas. Igrejas criam “Escolas Dominicais”, “Classes

de Catecismo”, etc., as empresas e centros comunitários oferecem e ministram “Cursos”,

etc., onde há professores, alunos, ensino, salas de aula, em uma réplica quase perfeita do

que acontece na escola propriamente dita. A aprendizagem é promovida principalmente

através do ensino, o qual, muitas vezes, assume feições altamente tradicionais. Neste

sentido dos termos, portanto, não há muito que distinga educação formal de educação

informal, além do fato de que a primeira ocorre em instituições criadas com a finalidade

quase única de educar e a segunda em instituições que têm outros objetivos além do

objetivo de educar, objetivos esses que se sobrepõem às suas tarefas educacionais.

Passemos, pois, à segunda maneira de entender a distinção entre educação formal e

educação informal. Vimos, há alguns parágrafos, que a educação, embora implique,

necessariamente, a aprendizagem, não implica, com igual necessidade, o ensino. Como o

ensino é, segundo nossa análise, uma atividade intencional, a educação que se realiza

através de atividades de ensino também é intencional, seja ela realizada na escola ou em

outras instituições. Acabamos de mencionar o fato de que essas instituições não-escolares

que se ocupam da educação muitas vezes o fazem de modo a imitar o que acontece na

escola. Isto nos sugere uma outra maneira de entender a distinção em questão. Educação

formal seria aquela que se realiza através de atividades de ensino, e que se caracteriza,

portanto, por ser intencional, ou melhor ainda, por ter a intenção de produzir a

aprendizagem de conteúdos considerados valiosos. Educação informal, do outro lado, seria

aquela que se realiza não-intencionalmente (ou, pelo menos, sem a intenção de produzir a

Page 97: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

97

aprendizagem de conteúdos considerados valiosos), quando, em decorrência de atividades

ou processos desenvolvidos sem a intenção de produzir a aprendizagem de algum

conteúdo considerado valioso, pessoas vêm a aprender e compreender certos conteúdos

considerados valiosos - às vezes considerados de altíssimo valor. Estas atividades e estes

processos podem ocorrer fora da escola, em outras instituições, ou de maneira inteiramente

não institucionalizada, como também pode ocorrer dentro da própria escola. Em

decorrência do modo pelo qual uma escola é organizada e administrada, ou da maneira

pela qual professores e funcionários se comportam em relação uns aos outros e aos alunos,

pessoas podem vir a aprender e compreender conteúdos considerados de grande valor, sem

que houvesse, a qualquer momento, a intenção de que alguém aprendesse alguma coisa em

conseqüência disto (o que não quer dizer que a forma de organização e administração da

escola, ou o comportamento de seus professores e funcionários, seja não-intencional);

freqüentemente é intencional, mas a intenção não é a de produzir a aprendizagem de

conteúdos considerados valiosos). Freqüentemente o exemplo de um professor é mais

educacional do que os conteúdos que ele ensina, pois seus alunos podem aprender mais

conteúdos valiosos (ou conteúdos mais valiosos) em decorrência da observação de suas

atitudes e de seu comportamento do que em conseqüência de seu ensino. E embora o

professor possa se comportar de uma ou outra maneira com a intenção de que seus alunos

aprendam algo valioso em função de seu comportamento, o professor, freqüentemente, não

tem esta intenção ao se comportar como o faz (o que, novamente, não quer dizer que seu

comportamento não é intencional; pode sê-lo, mas em função de outras intenções). Pais

freqüentemente procurar educar seus filhos, e grande parte das vezes tentam fazê-lo

através do ensino (via de regra verbal). As atitudes, o comportamento dos pais, porém,

podem ensejar a aprendizagem e compreensão de conteúdos muito valiosos,

principalmente na área da moralidade, sem que os pais tenham a intenção de que seus

filhos aprendam alguma coisa em decorrência da maneira pela qual se comportam. E assim

por diante.

Cremos que, com esses exemplos, tenha ficado claro o segundo modo de entender a

distinção entre edução formal e educação informal.

O segundo comentário que gostaríamos de fazer se relaciona com algumas das

questões que levantamos, ao final da primeira seção, acerca das relações que porventura

possam existir entre educação o conhecimento, educação e democracia, educação e

profissionalização, etc. No início da presente seção, quando procuramos caracterizar o

conceito de educação, afirmamos que iríamos propor uma conceituação de educação que

fosse suficientemente ampla. Com esta expressão quisemos dizer que uma conceituação de

educação, para ser viável, deveria ser suficientemente ampla para permitir que conceitos

de educação mais específicos, que enfatizassem aspectos diferentes do processo

educacional, pudessem encontrar guarida debaixo dessa conceituação mais ampla.

Vejamos como isto pode acontecer.

Page 98: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

98

Nossa conceituação de educação é, basicamente, uma conceituação formal. Com

isto queremos dizer que qualquer visão substantiva da educação, que se preocupe em

definir objetivos educacionais em um sentido mais específico - poderíamos dizer que o

objetivo educacional mais geral está contido na conceituação de educação, a saber, fazer

com que indivíduos adquiram domínio e compreensão de conteúdos considerados valiosos

- cabe, muito bem, debaixo de nossa conceituação.

Analisemos, por exemplo, de início, a questão da chamada educação humanística

versus a chamada educação técnico-profissionalizante. Certamente neste questão tem

havido radicais de ambos os lados. De um lado há aqueles que enfatizam a conexão entre

educação e conhecimento, concebendo a noção de conhecimento de modo a incluir nela

quase que tão somente os pontos de vista e temas que, de certa maneira, sobreviveram o

teste de durabilidade e que, portanto, se mostraram “perenes” - há uma escola de teoria

educacional chamada “perenialismo” - e de modo a excluir da noção de conhecimento, e,

conseqüentemente, de sua visão da educação, tudo aquilo que se refere mais diretamente

ao preparo para o exercício de uma profissão técnica. Este preparo é considerado como

mero treinamento ou adestramento em certas técnicas e habilidades e não deveria merecer

o honroso privilégio de ser considerado parte integrante do processo educacional, sendo

batizado com vários nomes diferentes, como “processo de qualificação de mão-de-obra

especializada”, “processo de formação de recursos humanos para as áreas técnicas”, etc.

Do outro lado há aqueles, freqüentemente não menos radicais, que enfatizam a conexão

entre educação e vida, concebendo a noção de vida de modo a realçar suas ligações com o

trabalho, e a deixar de lado suas ligações com o lazer. Educar, afirmam, é preparar para a

vida, para o exercício de uma profissão. Tudo o mais é “ornamento”, “adorno”,

“perfumaria”, menos educação. Dentre os que assumem esta posição há os que enfatizam o

trabalho como forma de auto-realização individual, há os que procuram realçar o papel do

trabalho como fator de desenvolvimento econômico, etc. Concordam, porém, em que o

objetivo educacional básico é a preparação do indivíduo para a vida ativa do trabalho. (De

certa maneira, as velhas discussões medievais acerca das vantagens e desvantagens da vida

contemplativa e da vida ativa se repetem, com outras roupagens).

Não vamos tentar resolver essa controvérsia. Somente vamos procurar situá-la

dentro de nossa conceituação de educação. Ao conceituar a educação, e ao explicitar

aquela conceituação, observamos que os conteúdos (no sentido visto) que podem ser parte

integrante do processo educacional são conteúdos considerados valiosos dentro de um

dado contexto sócio-cultural. Mencionamos, também, sem discutir o fato, que se

considerarmos o termo “cultura” em um sentido amplo (como quando se fala em “cultura

brasileira”), valores conflitantes podem co-existir dentro de uma mesma cultura.

Imaginemos, agora, para efeito de argumentação, uma cultura cujos valores sejam bastante

coerentes, na qual o trabalho, seja como forma de realização pessoal, seja como fator

básico de desenvolvimento econômico, seja o valor preponderante. Nesta cultura, a

preparação para o trabalho, a formação profissional, será, quer nos parecer, o elemento

Page 99: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

99

predominante no processo educacional, outros ingredientes que possam não parecer

diretamente profissionalizantes só sendo permitidos, dentro do processo educacional, na

medida em que, mesmo de maneira indireta, venham a contribuir para o bom desempenho

profissional. Estamos, sem dúvida, simplificando as coisas aqui, não fazendo várias

distinções básicas e deixando de lado os aspectos complexos que envolvem processos

educacionais concretos (e não imaginários), apenas para esclarecer alguns aspectos da

questão e mostrar a abrangência de nossa conceituação de educação. Em um contexto

sócio-econômico como o que acabamos de imaginar, ninguém, mesmo que não concorde

com a hierarquia de valores predominante naquele contexto, pode condenar a educação por

ser estritamente profissionalizante: ela estará se ocupando dos conteúdos considerados

valiosos naquele contexto. Se nossos valores não coincidem com os dessa cultura que

imaginamos, devemos criticar e combater os valores dessa cultura, e não condenar o seu

sistema educacional por incorporá-los. Em uma cultura cujos valores sejam

diametricamente opostos aos da cultura que acabamos de imaginar, o processo educacional

terá conteúdos basicamente diferentes no que diz respeito ao seu teor, mas ainda assim

conteúdos considerados valiosos naquele contexto.

O que acabamos de dizer aplica-se, a nosso ver, mutatis mutandis, à relação entre

educação e democracia. Em um contexto sócio-cultural em que a democracia é um valor

básico, e o exercício da cidadania democrática é tido como algo valioso, o processo

educacional vai ser visto como (pelo menos em parte) preparação para o exercício da

cidadania democrática, fato que levará, sem dúvida, o sistema educacional a apresentar

certas características que poderia não apresentar em outros contextos, onde diferentes

fossem os valores. Naturalmente, a democracia, enquanto valor, é plenamente compatível

com outros valores, e um processo educacional que prepara o indivíduo para o exercício da

cidadania democrática pode também prepará-lo para o exercício de uma profissão, para a

apreciação das artes, para o gozo dos momentos de lazer, etc.

Voltamos a enfatizar: se não concordamos com os valores de uma determinada

cultura, devemos criticar e combater esses valores, e não condenar o seu sistema

educacional por incorporá-los.

(NOTA: A questão é como mudar valores sem atuar na educação?)

Isto nos traz ao nosso terceiro comentário, que está estreitamente ligado ao que

acabamos de dizer, e que diz respeito ao que poderíamos chamar de relacionamento entre

educação e sociedade. Observamos atrás que, se concebermos o termo “cultura” em um

sentido amplo, podem co-existir, dentro de uma mesma cultura, valores conflitantes. A

maior parte do mundo vive em sociedades de classes, e as várias classes sociais,

inevitavelmente, têm valores diferentes. Em uma sociedade pluralista, onde valores se

chocam, onde os conteúdos considerados valiosos por uns e por outros não se identificam,

que foram deverá tomar o sistema educacional?

Page 100: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

100

Uma solução que se tem dado a este problema é o da criação de vários sub-sistemas

educacionais, cada um deles enfatizando um certo conjunto de valores. Esta solução

pareceria democrática, pois permitiria que cada qual escolhesse o sub-sistema em que iria

ingressar, ou para o qual enviaria seus filhos, dependendo de seus próprios valores e

daqueles que cada um dos sub-sistemas enfatizasse. Na prática sabemos que esta solução

não tem sido muito democrática. Na verdade, os que propõem um sistema educacional

único (a “escola única”) têm reivindicado, igualmente, a democraticidade de sua proposta

e combatido a falta de democraticidade da solução que esboçamos, observando que esta

solução leva, invariavelmente, à existência de um sub-sistema educacional para os “nossos

filhos” e de outro(s) sub-sistema(s) para “os filhos dos outros”, visto que o acesso a um e a

outro sub-sistema não é, por razões predominantes econômicas, franqueado, de igual

maneira, a todos.

Outra solução, mais em moda no brasil de hoje, preconiza a existência de um

sistema educacional único que gradativamente se diferencia em sub-sistemas e que permite

mobilidade horizontal (entre os sub-sistemas) e vertical (entre os sub-sistemas de um nível

e os de outro nível).

Não vamos entrar aqui nos méritos ou deméritos dessas soluções nem mencionar

outras que têm sido propostas. Esta não é nossa intenção. Estamos simplesmente

procurando ilustrar o fato de que dentro de uma mesma cultura pode haver valores

conflitantes, fato este que faz com que o sistema educacional enfrente sérios problemas e

dificuldades para levar em conta esta divergência e conflitância de valores, e,

conseqüentemente, de conteúdos considerados valiosos e de concepções de quais devam

ser os objetivos educacionais específicos a serem promovidos.

Problema mais sério e grave é trazido à tona por aqueles que apontam ao fato de

que sistemas e sub-sistemas educacionais são organizados e administrados por uma ínfima

parcela da população, invariavelmente da chamada classe dominante, e refletem, em

decorrência disso, os interesses e os valores dessa classe (que, porque dominante, está

desejosa de manter o status quo, de perpetuar seus privilégios, e que, conseqüentemente,

vê a tarefa da educação como sendo, de um lado, preparar uma elite para vir a ser os

futuros “donos do poder”, e, de outro lado, preparar o restante da população para se

conformar com a condição de dominados) e não daqueles a quem esses sistemas e sub-

sistemas se destinam. Não nos cabe aqui analisar esta questão, pois nosso propósito é

mostrar que mesmo esse ponto de vista acerca da educação se enquadra dentro de nossa

conceituação, pois nela, deliberadamente, não incluímos nenhuma indicação acerca de

quem considera valiosos os conteúdos do processo educacional, apontando, inclusive, para

o problema que surge em decorrência da co-existência de valores conflitantes dentro de

uma mesma cultura. Deixamos, portanto, espaço para aqueles que conceituam a educação

em termos do que ela é, bem como para aqueles que a conceituam em termos do que ela

deve ser.

Page 101: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

101

Cumpre-nos relembrar, porém, que incluímos, em nossa conceituação de educação,

a exigência de que o processo, para que seja educacional, deva levar ao domínio e à

compreensão de conteúdos considerados valiosos, e observamos que um processo que leva

ao domínio, sem compreensão, sem crítica, sem investigação da razão de ser, de certos

conteúdos, não pode ser visto como educacional. Este é um lembrete que qualifica o que

dissemos no final do parágrafo anterior, porque muito embora possamos falar em educação

em termos do que ela é, não devemos nos esquecer de que a educação como ela é

freqüentemente não é educação, mas, sim, como veremos, doutrinação.

A exigência de que um processo, para ser educacional, deva levar ao domínio e

compreensão de conteúdos considerados valiosos coloca o processo educacional diante

daquilo que consideramos sua maior dificuldade, e, por isso mesmo, seu maior desafio: de

que maneira podem indivíduos vir a adquirir domínio de certos conteúdos considerados

valiosos e, ao mesmo tempo, adquirir suficiente compreensão desses conteúdos de modo a

assumir diante deles uma postura crítica e aberta, que os leve a um exame criterioso desses

conteúdos e das alternativas a eles, exame esse de que pode, inclusive, resultar sua

rejeição?

Naquela cultura que imaginamos atrás, na qual o valor preponderante era o

trabalho, o desafio educacional maior seria o de encontrar uma maneira de promover a

educação profissional que cumprisse o objetivo de preparar para o trabalho e para uma

profissão, e, ao mesmo tempo, possibilitasse ao aluno assumir uma postura crítica diante

do próprio tipo de educação que estava recebendo. O dilema educacional por excelência é,

portanto, o do auto-questionamento da educação. É somente na medida em que a educação

leva o indivíduo a questionar sua própria educação que está recebendo que ela está se

desincumbindo de sua tarefa. Processos que levam ao mero domínio e à mera aceitação de

conteúdos, mesmo daqueles unanimemente considerados valiosos, não são educacionais

por não levarem os indivíduos à compreensão desses conteúdos, compreensão esta que

inevitavelmente envolve o seu questionamento. É aqui que estabelecemos o contacto com

a seção seguinte de nosso trabalho, onde discutiremos o problema da doutrinação.

Mas antes disso, em um último comentário, este acerca do ponto de vista, bastante

difundido, que conceitua a educação como o desenvolvimento das potencialidades do

indivíduo. A dificuldade básica dessa conceituação diz respeito à noção de

potencialidades. Em relação a qualquer indivíduo, quer nos parecer que seja impossível

dizer, a priori, quais sejam as suas potencialidades. A noção de potencialidades, a nossa

ver, quando aplicada a seres humanos, é uma daquelas noções que só têm sentido

retrospectivamente. Baseando-nos naquilo que um dando indivíduo se torna, podemos

afirmar que tinha potencialidade de tornar-se aquilo (pois doutra forma não se teria

tornado). Só sabemos, portanto, quais as potencialidades de alguém a posteriori, depois

que essas potencialidades já foram “atualizadas”, isto é, depois de este alguém ter se

tornado aquilo para que tinha potencialidade.

Page 102: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

102

Contudo, mesmo que fosse possível descobrir a priori quais as potencialidades dos

indivíduos, nada nos garante que todas as suas potencialidades devessem, igualmente, ser

desenvolvidas. Pode ser que algumas potencialidades (como, possivelmente, a

potencialidade para comportamento agressivo e destrutivo) não devessem ser

desenvolvidas. E ao decidirmos quais potencialidades deveriam e quais não deveriam ser

desenvolvidas cairíamos no domínio dos “conteúdos considerados valiosos”.

Portanto, essa difundida conceituação de educação caracteriza o processo

educacional como algo impossível (por não ser possível identificar a priori quais as

potencialidades de alguém), ou, então, cai dentro de nossa conceituação (se se admite a

possibilidade de identificar potencialidades a priori, cai-se na necessidade de discriminar

entre as potencialidades que devem e as que não devem ser desenvolvidas, entre as

potencialidades cujo desenvolvimento é considerado valioso e aquelas cujo

desenvolvimento não é assim visto).

Cremos, nesta seção de nosso trabalho, ter dado respostas a algumas das perguntas

formuladas no final de nossa primeira seção acerca do relacionamento existente entre o

conceito de educação e os conceitos de ensino e aprendizagem, bem como entre educação

e valores, educação e cultura, etc. Nossas respostas, reconhecidamente em forma de

esboço, são, na verdade, bastante pessoais. É possível e provável que muitos discordem

delas. Cremos, contudo, que elas fazem sentido, são justificáveis, e nos ajudam a “colocar

a cabeça em ordem” em relação a essas noções. Dada a importância que atribuímos ao

conceito de doutrinação, resolvemos dedicar a este conceito uma seção em separado, pois

quer nos parecer que a análise desse conceito nos ajuda a compreender melhor, por

contraste, o conceito de educação.

V. Educação e Doutrinação

[Observação importante: inserimos aqui a versão do segundo esboço. Embora o texto seja

o mesmo, a divisão em tópicos do segundo esboço é melhor – Prof. Bráulio T P Matos].

Há muita controvérsia, hoje em dia, em relação ao conceito de doutrinação. Não

vamos, aqui, tentar solucionar todas as disputas e divergências: vamos apenas nos situar

dentro da controvérsia, apresentando e defendendo um conceito de doutrinação e

mostrando como o conceito de doutrinação, por nós caracterizado, se relaciona com os

conceitos de educação, ensino e aprendizagem.

Antes, algumas considerações gerais.

1. Considerações Gerais

Quando, na seção anterior, procuramos conceituar a educação, afirmamos que os

conteúdos que podem ser objeto de educação são (desde que considerados valiosos) os

Page 103: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

103

mais amplos possíveis, não restringindo, de maneira alguma, esses conteúdos à esfera

intelectual e cognitiva. Quando falamos em doutrinação, porém, parece haver uma grande

limitação no tocante aos conteúdos que podem ser doutrinados, a saber: apenas crrnças, ou

pontos de vista, ou convicções, ou ideologias, ou, talvez, teorias, podem ser doutrinados.

Não parece fazer o menor sentido afirmar que alguém foi doutrinado, a menos que

conteúdo dessa doutrinação seja alguma coisa do tipo que acabamos de mencionar. Parece-

nos absurdo dizer que alguém foi doutrinado a adotar uma atitude passiva diante da

violência, por exemplo, ou a tomar banho diariamente, ou qualquer coisa desse tipo.

Alguém pode ter sido condicionado a adotar uma atitude passiva diante da violência, ou a

banhar-se diariamente, mas condicionamento e doutrinação não são a mesma coisa.

Condicionamento tem que haver com comportamento, atitudes, hábitos. Doutrinação tem

que haver com crenças, pontos de vista, etc. Alguém pode, portanto, ser doutrinado na

crença de que se deva tomar uma atitude passiva diante da violência -- mas isto já é outra

coisa: estamos lidando, agora, com crenças e não com atitudes. (Não há, por exemplo,

garantias de que quem acredite que se deva tomar uma atitude passiva diante da violência

venha a assumir esta atitude quando confrontado com a violência: há sempre a

possibilidade de que haja incoerência entre o pensamento e comportamento de uma

pessoa, e já os gregos nos alertavam acerca da "akrasia", ou fraqueza da vontade).

Parece haver pouca dúvida, portanto, de que os conteúdos que podem ser

doutrinados são sempre conteúdos intelectuais e cognitivos do tipo mencionado (crenças,

etc.), excluindo-se da esfera da doutrinação mesmo conteúdos intelectuais e cognitivos de

outros tipos (como, por exemplo, habilidades intelectuais).

Uma segunda consideração geral que devemos fazer acerca do conceito de

doutrinação é a de que, muito embora a educação possa ocorrer, como vimos, sem ensino,

e mesmo de modo não-intencional, a doutrinação é sempre intencional, ocorrendo sempre

em situações de ensino. Vimos, também, que a educação tem um vínculo conceitual com a

aprendizagem -- não faz sentido dizer que houve educação se não houve nenhuma

aprendizagem -- e que o ensino tem um vínculo conceitual com a intenção de produzir a

aprendizagem. Desde que a doutrnação tem, a nosso ver, um vínculo conceitual com o

ensino, a doutrinação também tem um vínculo conceitual com a intenção de produzir a

aprendizagem.

Mas por que é que afirmamos que a doutrinação só pode ocorrer em situações de

ensino? A resposta a esta pergunta nos parece óbvia e simples. Ao passo que faz bastante

sentido dizer que alguém educou-se, isto é, aprendeu certos conteúdos considerados

valiosos de maneira a realmente compreendê-los, não nos parece fazer o menor sentido

afirmar que alguém doutrinou-se: sempre afirmamos que alguém foi doutrinado.

Isto posto, devemos abordar a seguinte questão: tendo em vista as conclusões

alcançadas atrás, de que a educação pode ocorrer, e freqüentemente ocorre, através do

ensino, será que o único aspecto a distinguir a educação da doutrinação é que esta é um

caso específico daquela? Em outras palavras, será que a doutrinação nada mais é do que a

Page 104: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

104

educação, quando esta ocorre através do ensino e se ocupa de conteúdos intelectuais e

cognitivos do tipo mencionado (crenças, etc.)? A resposta a esta questão deve ser, a nosso

ver, enfaticamente negativa. Mas se este é o caso, o que realmente distingue a doutrinação

da educação?

Em duas ocasiões, em nossa seção anterior, aludimos, de passagem, à doutrinação.

Pare melhor entendermos esse conceito, relembramos aqui essas passagens: "Alguém que

aceita normas sociais e valores culturais sem examinar e compreender sua razão de ser,

sem dúvida aprendeu um certo conteúdo (possivelmente até através do ensino), mas o fez

sem compreensão: a aprendizagem, neste caso,foi não-educacional, e se a aprendizagem

foi decorrência de um ensino que estava interessado apenas na aceitação das normas e dos

valores, e não na sua compreensão, o ensino também foi não-educacional (tendo sido,

possivelmente, doutrinacional). Na segunda passagem observamos: "... O ensino e

aprendizagem de conteúdos que consistam de enunciados falsos, ou de enunciados que a

melhor evidência disponível indique terem pouca probabilidade de serem verdadeiros (e,

conseqüentemente, grande probabilidade de serem falsos), ou, talvez, dse enunciados

acerca dos quais a evidência, favorávle ou contrária, seja inconclusiva, não devem ser

parte integrante do processo educacional, pois quer nos parecer que em nossa cultura não

seja considerado valioso um conteúdo que consista de enunciados falsos, ou contrários à

melhor evidência disponível, ou accerca dos quais a ewvidência seja inconclusiva. O

ensino de conteúdos deste tipo parece bem mais próximo da doutrinação do que da

educação".

O que nos sugerem estas observações feitas atrás? A primeira nos sugere que o tipo

de aprendizagem associado com a doutrinação, ou que resulta da doutrinação, é o da

aprendizagem não acompanhada por compreensão, da aprendizagem não-significativa,

meramente passiva -- o indivíduo, no caso, meramente aceita, sem examinar e

compreender sua razão de ser, certos conteúdos intelectuais e cognitivos (normas sociais e

valores culturais). O que a segunda passagem nos sugere é que a intenção de quem

doutrina está muito mais voltada para a aceitação dos conteúdos que ele está ensinando do

que para um exame criterioso dos fundamentos epistemológicos desses conteúdos, exame

este indispensável para sua compreensão. Em outras palavras, quem doutrina está muito

mais interessado em que seus alunos simplesmente aceitam (acreditem em) certos pontos

de vista do que em que eles venham a examinar os fundamentos desses pontos de vistra, e,

conseqüentemente, a compreendê-los, no sentido visto.

É aqui que aquilo que a segunda passagem nos sugere se liga com o que a primeira

nos sugeriu, a saber, que a aprendizagem que se associa com a doutrinação, diferentemente

daquela que se associa com a educação, é a aprendizagem não acompanhada por

compreensão, e isto em função da intenção daquele que ensina de que exatamente isto

ocorra.

Page 105: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

105

2. O Conceito de Doutrinação

Feitas essas colocações, estamos em condições de conceituar, mais precisamente, a

doutrinação: doutrinação é o processo através do qual uma pessoa ensina a outra certos

conteúdos intelectuais e cognitivos (crenças, etc.), com a intenção de que esses conteúdos

sejam meramente aprendidos (isto é, aprendsidos mas não compreendidos), ou seja, com a

intenção de que estes conteúdos sejam aceitos não obstante a evidência, sem um exame

criterioso de seus fundamentos epistemológicos, de sua razão de ser -- em suma, sem a

compreensão que é condição sine qua non da educação.

Baseando-nos neste conceituação de doutrinação, podemos agora procurar

esclarecer alguns dos aspectos mais controvertidos desse conceiuto, bem como seu

relacionamento com o conceito de educação.

Vamos começar com a questão do relacionamento entre educação e doutrinação.

A) Os Conteúdos como Critério de Doutrinação

Desde que, como acabamos de observar, doutrinação tem que haver apenas com

conteúdos intelectuais e cognitivos de um certo tipo (crenças, etc.), vamos comparar

educação e doutrinação no que dizem respeito a esses conteúdos, deixando fora de nossa

análise outros conteúdos (habilidades intelectuais e cognitivas, atitudes, comportamentos,

etc.) de que se ocupa a educação mas que não são objeto da doutrinação. Também

deixaremos de lado, nessa comparação, a educação informal (no segundo sentido visto)

para nos determos na educação que se realiza através do ensino, pois, como constatamos, a

doutrinação se realiza somente através do ensino.

Tomemos, pois, como ponto de referência, um certo conteúdo intelectual e

cognitivo: digamos, uma doutrina política, ou uma teoria científica. Vamos supor, para

efeito de argumentação, que este conteúdo seja considerado valioso no contexto em que se

realiza seu ensino (14). Se este é o caso, o conteúdo em questão pode ser ensinado de

maneira educacional bem como de maneira não-educacional. Se a intenção de quem ensina

é a de que os alunos aprendam e compreendam este conteúdo, o ensino estará sendo

educacional. Se a intenção é a de que os alunos meramente aprendam (i.e., aceitem,

acreditem em) o conteúdo em questão, o ensino está sendo não-educacional, ou, segundo

nossa conceituação, doutrinacional.

B) A Intenção como Critério de Doutrinação

O que distingue a educação da doutrinação, portanto, é basicamente a intenção da

pessoa que ensina, e é a intenção que se torna o critério básico e fundamental que nos

permite diferenciar entre um ensino educacional e um ensino doutrinacional. É verdade

que vimos que apenas certos conteúdos podem ser doutrinados (conteúdos intelectuais e

Page 106: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

106

cognitivos de um certo tipo, a saber, crenças, pontos de vista, etc.). Mas isto não quer dizer

que mesmo estes conteúdos não possam ser ensinados de dois modos diferentes,

educacionalmente e doutrinacionalmente. Além disso, mesmo conteúdos considerados

valiosso podem ser doutrinados, como veremos, sendo, talvez, exatamente quando se trata

de conteúdos considerados como altamente valiosos que há o maior risco de doutrinação.

Portanto, o conteúdo não é o critério básico e fundamental que nos permite diferenciar

entre educação e doutrinação. O mesmo conteúdo poderá ser ensinado de um ou de outro

modo, educacionalmente ou doutrinacionalmente.

Isto quer dizer que não há conteúdos que estejam inevitavelmente fadados a serem

objeto de doutrinação, como sugerem alguns, embora alguns conteúdos sejam, talvez, mais

preferidos por doutrinadores do que outros. Com esta tomada de posição nos contrapomos

àqueles que afirmam que em áreas coimo religião, moralidade, e política não há como

evitar a doutrinação e que em áreas como a física e a astronomia não faz sentido falar-se

em doutrinação, pois os que assim afirmam privilegiam o conteúdo como critério básico e

fundamental de diferenciação entre educação e doutrinação. Dada nossa conceituação de

educação ew doutrinação, tanto podem a religião, a moralidade e a política serem

ensinadas de maneira educacional, como podem a física e a astronomia serem ensinadas de

modo doutrinacional, como bem mostram algumas pesquisas recentes na área da história e

sociologia da ciência.

C) Os Métodos como Critério de Doutrinação

Nem é tampouco o método de ensino, como sugerem outros, o critério básico e

fundamental de diferenciação entre doutrinação e educação, embora seja de es esperar que

aquele que ensina com a itenção de que seus alunos aprendam e compreendam os

conteúdos ensinados e aquele que ensina coma itenção de que seus alunos meramente

aceitem os conteúdos ensinados venham a se valer de métodos de ensino diferentes. O

primeiro possivelmente utilizará métodos que envolvam a livre discussão de idéias, a

análise séria de alternativas, e, principalmente, um exame crítico e rigoroso dos

fundamentos epistemológicos do conteúdo em questão; na verdade, poderíamos afirmar

que ele se preocupará muito mais em fazer que seus alunos considerem a evidência e, à luz

da evidência, tirem suas próprias conclusões, do que em fazer com que seus alunos

simplesmente aceitem o conteúdo: seu intuito não é persuadir seus alunos a aceitarem o

conteúdo, mas levá-los a compreendê-lo, e, em função dessa compreensão, aceitá-lo ou

rejeitá-lo. O segundo, mesmo que se refira à evidência, aos fundamentos epistemológicos

do conteúdo em pauta, subordinará a análise da evidência à sua intenção de fazer com que

os alunos aceitem o conteúdo; é de se esperar, portanto, que esta evidência, se não

inteiramente suprimida, seja distorcida, que evidência contrária não seja apresentada, ou,

sendo apresentada, não seja analisada com justiça e isenção de ânimos e preconceitos.

Page 107: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

107

D) As Conseqüências como Critério de Doutrinação

Também não é em função das conseqüências do ensino que podemos dizer se o

ensino foi educacional ou doutrinacioanl, como sugerem ainda outros, embora neste caso

também seja de esperar que as conseqüências do ensino educacional e do ensino

doutrinacional sejam diferentes. Em condições normais, é de se esperar que o ensino

educacional resulte em aprendizagem acompanhada de compreensão, e que o ensino

doutrinacional resulte na mera aceitação (sem compreensão) dos conteúdos ensinados. É

de se esperar, conseqüentemente, que, em decorrência de um ensino educacional, o aluno

venha a ter uma metne mais aberta e flexível, que se preocupe com a análise e o exame da

evidência, condicionando sua aceitação ou não dos conteúdos ensinados a este exame da

evidência, como é de se esperar, também, que em decorrência de um ensino

doutrinacional, o aluno venha a ter uma mente mais fechada, uma atitude mais dogmática

e menos crítica, um apego mais emocional do que evidencial às suas convicções, pois lhe

foi ensinado preocupar-se mais com certas crenças, ou doutrinas, ou teorias, do que com a

análise crítica, isenta de preconceitos, da evidência. É de se esperar que o aluno doutrinado

acabe por assumir a seguinte atitude: "É nisto que acredito: vamos ver agora se encontro

alguma evidência para fundamentar minhas crenças". Com esta atitude, é possível que suas

razões para aceitar suas crenças não passem de racionalizações.

Não podemos nos esquecer, porém, de que tanto o ensino realizado de maneira

educacional, quanto o realizado de maneira doutrinacional, podem ser mal sucedidos, em

cujo caso as conseqüências que deles poderiam advir não seriam aquelas que,

normalmente, se esperariam.

Podemos concluir, pois, que, a nível das intenções, a educação é um processo que

tem por objetivo a abertura de mentes, a amplicação de horizontes, o incentivo à livre

opção dos alunos, após análise e exame críticos da evidência, dos fundamentos

epistemológicos, enquanto a doutrinação é um processo que tem por objetivo a

transmissão e mera aceitação de crenças, etc., o fechamento de mentes, a redução de

horizontes, a limitação de opções (freqüentemente a uma só), o "desprivilegiamento" da

evidência em favor da crença, a persuasão e não o incentivo ao livre exame.

Aquele que ensina de maneira educacional colca-se na posição de quem,

humildemente, está em incessante busca da verdade, através do estudo e do exame da

evidência. O que ensina de maneira doutrinacional colca-se na posição do orgulhoso

possuidor da verdade. Desde que, na busca da verdade, não se pode negligenciar nenhum

aspecto da evidência que possa ser relevante, a educação é tolerante, pois mesmo as

críticas e a evidência negativa -- diríamos mesmo, principalmente estas -- podem

contribuir para que nos aproximemos da verdade. Na medida, porém, em que a verdade já

é considerada uma possessão, não há mais porque buscá-la, porque tolerar pontos de vista

alternativos e conflitantes, pois na medida em que estes divergem da "verdade" só podem

Page 108: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

108

ser errôneos ou falsos, e quem os propõe só pode ser ignorante ou mal-itencionado. Daí a

conexão, já mostrada por muitos, entre a crença na posse da verdade e a intolerância,

mesmo a repressão, de pontos de vista divergentes, que ocorre quando há doutrinação.

Poderíamos mesmo dizer, fazendo paralelo a uma importante corrente de filosofia

de ciência e de filosofia política, que a educação se preocupa muito mais em dar ao

indivíduo condições de não ser facilemente persuadido, de evitar o erro, a falsidade, e,

assim, aproximar-se, cada vez mais, da verdade, enquanto a doutrinação se preocupa muito

mais com a persuasão, com a transmissão de crenças que se supõem verdadeiras (ou,

mesmo, em alguns casos piores de doutrinação, crenças em que o próprio doutrinador não

acredita, mas que, por algum motivo, deseja incutir em seus alunos).

3. Observações Específicas

Isto posto, podemos fazer algumas observações específicas em relação aos aspectos

mais controversos do problema da doutrinação.

A) Doutrinação de Conteúdos Verdadeiros

Em primeiro lugar, o que acabamos de ver nos permite afirmar que é inteiramente

possível que haja doutrinação mesmo de conteúdos verdadeiros.

B) Doutrinação de Conteúdos Valiosos

Em segundo lugar, temos que admitir que pode haver doutrinação mesmo quando

os conteúdos são considerados valiosos e todos aprovam o que está acontecendo. Na

verdade, é em situações assim que a doutrinação se torna mais fácil e mais provável, pois

ninguém questiona o valor e a veracidade daquilo que está sendo ensinado. É muito mais

fácil doutrinar alguém na ideologia capitalista nos Estados Unidos do que em um país

radicalmetne socialista, onde argumentos contra a ideologia capitalista provavelmente

serão muito mais abundantes e comuns; e vice-versa.

C) Doutrinação Não Intencional?

Em terceiro lugar, devemos concluir que não há doutrinação não-intencional. A

questão, porém, é mais complexa aqui. Desde que, como vimos, a intenção de alguém (que

não nós mesmos) só pode ser determinada pela análise de suas ações em um dado

contexto, é possível atribuir a alguém a intenção de doutrinar mesmo que esta pessoa não

admita esta intenção. Também no caso de alguém que não tem conhecimento de evidência

contrária àquilo que está ensinando, a situação é complexa. Podemos atribuir-lhe a

intenção de doutrinar, se ele tem condições de obter acesso a esta evidência e não se

Page 109: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

109

preocupa em fazê-lo. Teríamos maiores reservas em atribuir-lhe esta intenção se não

houvesse maneiras viáveis de ele obter acesso a esta evidência. Isto significa que

professores de conteúdos intelectuais e cognitivos do tipo visto (crenças, etc.) correm

grande risco de doutrinarem (ao inves de educarem) se não estiverem constantemente

atualizados acerca dos desenvolvimentos nas áreas que ensinam. Como vimos atrás, o

professor que ensina conteúdos falsos como sendo verdadeiros, ou conteúdos que a melhor

evidência disponível indique terem pouca probabilidade de serem verdadeiros como sendo,

de fato, verdadeiros, etc., estará, muito provavelmente, doutrinando, a menos que esteja

em condições tais que o acesso a esta evidência lhe seja totalmente impossível. Não

importa que ele acredite que os conteúdos que ensina sejam verdadeiros. Esta é uma

questão subjetiva. A questão importante é a do relacionamento entre o conteúdo e a

evidência, entre os conteúdos e os seus fundamentos epistemológicos -- questão esta que,

apesar das controvérsias atuais na área da epistemologia e da filosofia da ciência, nos

parece ser objetiva.

D) A Doutrinação de Crianças Pequenas

Em quarto lugar, devemos abordar, ainda que brevemente, a complicada questão

que se coloca em relação a crianças em tenra idade, que ainda não atingiram a chamada

"idade da razão". Será que, no que diz respeito a estas crianças, só nos resta a alternativa

de doutrinação, visto não serem elas capazes, segundo se crê, de compreensão, no sentido

visto, de ewxame de evidência, de opção livre e consciente?

Em relação a este problema devemos distinguir (pelo menos) dois aspectos. O

primeiro é que exigir que crianças pequenas se comportem de determinada maneira, ou

que adotem determinadas atitudes, não é, segundo nossa caracterização, doutriná-las,

porque os conteúdos aqui não são conteúdos intelectuais e cognitivos do tipo passível de

doutrinação (crenças, etc.), mas comportamentos e atitudes. A doutrinação poderá ocorrer

no momento em que se procura fazer com que as crianças aceitem certas justificativas para

o comportamento e as atitudes que lhes estão sendo exigidos. O segundo aspecto é que

mesmo a crianças que ainda não atingiram a maturidade mental e intelectual necessária

para compreender a razão de ser de certos comportamentos e atitudes que lhes são

exigidos podem ser oferecidas as razões dessas exigências, as alternativas, etc., de maneira

bastante aberta e flexível. Haverá doutrinação se a intenção for a de que as crianças

aceitam estas justificativas (ou qualquer outro conteúdo do tipo passível de doutrinação)

passivamente, sem discussão, a despeito de qualquer outro tipo de consideração, ou

argumentação, ou evidência.

E) Doutrinação e o Dilema da Educação

Em quinto lugar, a possibilidade de doutrinação faz com que aqueles que se

preocupam com a educação, de seus filhos ou de seus alunos, se confrontem com um sério

Page 110: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

110

dilema, semelhante ao grande desafio a que fizemos menção no final da seção anterior.

Este dilema, embora possa aparecer em qualquer área, aparece mais freqüentemente

naquelas áreas em que a evidência parece ser mais inconcludente mas em que, por ironia

do destino, se encontram algumas das questões mais básicas e importantes com que tem

que se defrontar o ser humano: a moralidade, a política, e a religião. Por um lado,

acreditamos (por exemplo) ser necessário apresentar a nossos filhos e alunos o ponto de

vista moral, o lado moral das coisas, para que venham a ser seres morais. Do outro lado,

acreditamos que temos de evitar a doutrinação, se queremos realmente educar nossos

filhos e alunos, isto é, se queremos que sejam iundivíduos livres para pensar e escolher,

liberdade esta que é pré-condição para que eles venham a ser seres morais. É diante desete

dilema que os educadores terão que procurar as melhores maneiras de prosseguir, sabendo,

de antemão, que a tarefa é difícilima e que muitos, antes deles, optaram, ou por não

procurar oferecer nenhum ensino nessas áreas, ou, então, pela doutrinação como única

outra alternativa viável. [E o exemplo?] É em confronto com este dilema que muitos têm

optado pela alternativa da chamada "educação negativa", que não é nem educação nem

negativa, devendo, talvez, ser descrita como "não educação neutra", por pardoxal que esta

expressão também pareça: afirmam que o ensino da moralidade, da política, e da religião

não deve ser ministrado até que a criança atinja maturidade suficiente para analisar a

evidência e tirar suas próprias conlusões. Outros têm se desesperado e concluído que a

única outra alternativa, apesar dos pesares, é doutrinar -- estes são os doutrinadores contra

sua própria vontade. Tanto os defensores da "educação negativa" como os que, contra a

vontade, optam pela doutrinação, não vêem uma terceira alternativa, não vêem uma

solução realmente educacional para o problema. Embora não afirmemos que esta solução

seja fácil de alcançar, cremos que desenvolvimentos recentes, principalmente no campo da

educação moral, têm nos indicado o caminho a seguir na direção de uma educação moral

viável e digna do nome. Mas ainda há muito por fazer nesta área.

F) Porque a Doutrinação é Censurável e Indesejável

Em sexto e último lugar, gostaríamos de observar que, de tudo o que foi dito acerca

da doutrinação, fica claro porque a doutrinação é indesejável e moralmente censurável.

Quem doutrina não respeita a liberdade de pensamento e de escolha de seus alunos,

procurando incutir crenças em suas mentes e não lhes dando condições de analisar e

examinar a evidência, decidindo, então, por si próprios; quem doutrina desrespeita os

cânones de racionalidade e objetividade, tratando questões abertas como se fossem

fechadas, questões incertas como se fossem certas, enunciados falsos ou não demonstrados

como verdadeiros como se fossem verdades acima de qualquer suspeita. É verdade que

esta tomada de posição contra à doutrinação já implica, ao mesmo tempo, um

comprometimento com certos valores e ideais básicos, como o da liberdade de pensamento

e de escolha dos alunos (e de qualquer pessoa), o da racionalidade, etc. É importante que

Page 111: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

111

se reconheça isto para que não se incorra no erro de pensar que a adoção desses valores e

ideais não precisa ser defensável, e, mais que isto, defendida, através da argumentação.

Argumentos contra a adoção desses valores e ideais precisam ser cuidadosamente

analisados para que, ao propor a tese da indesejabilidade e falta de apoio moral da

doutrinação, não o façamos de modo a imitar os doutrinadores, isto é, tratando como

fechada uma questão que é realmente aberta. Cremos não ser esta a ocasião de fazer esta

defesa dos valores e ideais da liberdade de pensamento e escolha, nem da racionalidade.

Mas isto não significa que estes valores e ideais não precisem ser defendidos.

Com estas observações concluímos esta seção sobre doutrinação. Cremos que a

análise desse conceito, além de valiosa em si mesma, nos ajuda a compreender melhor, por

contraste, o que seja a educação. Uma análise mais completa deveria incluir um exame das

semelhanças e diferenças existentes entre doutrinação, treinamento, condicionamento,

lavagem cerebral, etc. Há importantes diferenças, bem como semelhanças, entre estes

conceitos. Isto, porém, precisará ficar para um outro trabalho.

VI. Observações Finais: Filosofia da Educação e Teoria Educacional

Cremos ter dado respostas a algumas das perguntas formuladas no final de nossa primeira

seção acerca do relacionamento existente entre o conceito de educação e os conceitos de

ensino e aprendizagem, bem como entre educação e valores, educação e cultura, etc.

Nossas respostas, reconhecidamente em forma de esboço, são, na verdade, bastante

pessoais. É possível e provável que muitos discordem delas. Cremos, contudo, que elas

fazem sentido, são justificáveis, e nos ajudam a "colocar a cabeça em ordem" em relação a

essas noções. Dada a importância que atribuímos ao conceito de doutrinação, resolvemos

dedicar a este conceito uma seção em separado, pois quer nos parecer que a análise desse

conceito nos ajuda a compreender melhor, por contraste, o conceito de educação.

A muitos pode parecer que o tipo de investigação que caracterizamos na primeira

seção deste trabalho e ilustramos nas outras quatro, embora de alguma utilidade e de

algum interesse, não seja de grande importância. Mais importante do que a tarefa

"clarificatória" que a filosofia pode desenvolver, diriam, é sua tarefa "normativa", à qual

ela não se deve furtar: a filosofia deve contribuir - continuariam - para que as grandes e

pequenas decisões que diariamente precisam ser tomadas na área da educação sejam

tomadas de maneira a evidenciar sabedoria, e não apenas clareza de pensamento. À

filosofia da educação competiria, pois, segundo muitos, investigar a questão dos objetivos

específicos da educação, propondo metas a serem atingidas e valores a serem promovidos.

Concordamos, em grande parte, com o espírito dessas observações. Achamos que

clareza em nossos conceitos e acerca de nossas pressuposições básicas não é tudo, não é

condição suficiente para a sabedoria de nossas decisões, dos alvos que propomos, a nós

mesmos e aos outros, dos valores que adotamos e que desejamos que os outros também

Page 112: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

112

cultivem. Contudo, estamos certos de que esta clareza seja condição necessária para esta

sabedoria. Embora alguém possa ter clareza quanto às suas concepções, sem ser sábio,

ninguém consegue ser sábio sem antes adquirir clareza acerca das convicções mantidas por

ele próprio e por outros.

Quer nos parecer, portanto, que a tarefa do educador, e quiça do filósofo da

educação, não termine com a análise e clarificação dos conceitos educacionais básicos e

das pressuposições que sustentam a atividade educacional. A tarefa clarificatória da

filosofia é apenas um preâmbulo à tarefa mais normativa de examinar, questionar, e propor

objetivos e valores. O filósofo, porém, não detém o monopólio destas últimas questões. No

que diz respeito aos objetivos e valores que devem nortear a vida, e, conseqüentemente, o

processo educacional, o filósofo, como qualquer outra pessoa, estará sempre buscando,

procurando, pois na área de valores e objetivos de vida não há peritos e profissionais: cada

um, em última instância, tem que escolher os seus valores básicos e os objetivos que

deverão nortear sua vida. Não há como abrir mao dessa tarefa solicitando a um filósofo

(ou a seja lá quem for) que faça isto por nós, sem abrirmos mão de nossa autonomia, e, em

última instância, de nós mesmos.

À filosofia da educação como aqui caracterizada deve, portanto, seguir uma teoria

da educação que tenha como principal tarefa o exame dos princípios básicos, objetivos,

valores, etc., que prevalecem em nossa cultura e que norteiam, atualmente, a educação em

nosso país, a reflexão crítica sobre eles e sobre a realidade social, econômica e cultural que

envolve o processo educacional, e, se necessário for (e quase sempre o é), a proposta de

novos princípios básicos, objetivos e valores para a nossa cultura e para a nossa educação.

À teoria da educação compete, portanto, a tarefa normativa a que fizemos referência, e

para se desincumbir desta tarefa a teoria da educação deve recorrer não só à filosofia da

educação, mas também à sociologia da educação, à psicologia da educação, à economia da

educação, à medicina preventiva e social, etc. - ou, para encurtar, a qualquer ramo do saber

que possa contribuir alguma coisa, nunca se esquecendo de incluir na mistura uma boa

dose de bom senso.

Para muitos, o que acabamos de caracterizar como sendo a tarefa da teoria da

educação nada mais é do que a real tarefa da filosofia da educação. Não temos o menor

interesse em discutir rótulos, pois a discussão seria meramente acadêmica. Quer nos

parecer, porém, que a bem da clareza, seja recomendável e de bom alvitre estabelecer uma

distinção entre a filosofia da educação e a teoria educacional, pelas seguintes razões.

(a) A filosofia da educação, como aqui caracterizada, é uma atividade reflexiva de segunda

ordem, que tem como objeto as reflexões de primeira ordem feitas sobre os vários aspectos

do processo educacional; a teoria educacional é uma atividade reflexiva de primeira

ordem, no nosso entender, que tem por objeto básico a realidade educacional e não

reflexões que tenham sido feitas sobre esta realidade; estas reflexões servirão de subsídios

ao teórico da educação para que este elabore suas próprias conclusões, mas ele tem,

Page 113: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

113

basicamente, que "debruçar-se sobre a realidade educacional", para entendê-la, explicá-la,

criticá-la e propor sua reformulação.

(b) Na medida em que a teoria educacional tem que se valer das contribuições das várias

ciências que estudam a educação, ela extrapola os domínios da filosofia e,

conseqüentemente, da filosofia da educação. A filosofia da educação, como aqui

concebida, deveria ser vista, como observamos, como um prolegomenon, um prâmbulo à

teoria educacional, cuja tarefa principal seria fornecer ao teórico da educação os

instrumentos conceituais básicos para a sua teoria.

(c) A teoria educacional, embora possa (e talvez deva) ser considerada científica, tem uma

finalidade que vai além da mera explicação e interpretação da realidade educacional: ela

procura orientar e guiar a prática educacional. É por isso que a teoria da educação, além de

estudar e examinar a realidade educacional, tem a função de criticar esta realidade e de

propor novas direções a seguir. A teoria da educação, para usar uma expressão que se

torna comum, não tem como tarefa simplesmente constatar qual é a realidade educacional:

ela vai além e contesta esta realidade, não em função de um espírito puramente negativista,

mas em função de uma proposta de realidade diferente. E esta proposta envolve,

inevitavelmente, valores diferentes. Portanto, a teoria educacional, em sua tarefa de

orientar e guiar a prática educacional, envolve, necessariamente, um ingrediente de

valores.

O presente trabalho, dentro de seus limites, procurou, entre outras coisas,

apresentar os rudimentos de um preâmbulo à teoria educacional, fazendo, no processo, um

primeiro ensaio em direção a uma demarcação entre filosofia da educação e teoria

educacional.

NOTAS (primeiro esboço)

[No processo de conversão do texto de formato Microsoft Word para HTML as referências

se perderam, tanto no texto como aqui. Eu as estou reconstruindo. Os leitores me

desculpem. Aqui cada parágrafo é uma nota.]

op.cit. (Zahar Editores, 1972), p.11.

op.cit. (Editora Cultrix e Editora da Universidade de São Paulo, 1975), p.18. Este tema, embora

válido em geral, é muito enfatizado por filósofos e educadores católicos. Cf. Leonardo van Acker,

“Frans de Hovre: O Homem e a Obra”, e Jacques Maritain, “Prefácio (da Edição Francesa”, ambos

em Filosofia Pedagógica, de Frans de Hovre (Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1969), pp.xvi

Page 114: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

114

e xxii, respectivamente. Esse livro é tradução brasileira do livro Essai de Philosophie Pédagogique

(Librairie Albert Dewit, Bruxelles, 1927), que, por sua vez, é tradução do livro Paedagogische

Wijsbegeerte, originalmente escrito em flamengo, em 1924. A tradução brasileira é de Luiz Damasco

Penna e J. B. Damasco Penna. Naturalmente, esse ponto de vista aparece em todos os lugares no livro

de Frans de Hovre, especialmente na Introdução (pp.xxix-xl).

Frans de Hovre, op.cit., p.xxxi. Cf. o Prefácio de Jaques Maritain, já mencionado, p.xxiii.

A razão pela qual persisto em dizer “reralidade, propriamente dita” é que a reflexão que se faz sobre a

realidade é, em sentido importante, mas expandido, do termo “realidade”, também parte da realidade.

Citar Bertrand Russell e outros sobre fazer perguntas e respondê-las

Cf. Christopher J. Lucas, What is Philosophy of Education? (The Macmillan Company, New York,

London, 1969), p.10: “Pessoas filosoficamente não-sofisticadas freqüentemente falam sobre a

necessidade de ter 'uma filosofia' de vida, de educação, de criação de crianças, ou - mirabile dictu - de

cozinhar, costurar, cultivar a terra, ad nauseam. 'Filosofia' vem a significar, neste caso, qualquer

coisa, e, portanto, nada, embora possa ser vagamente identificada com algo como 'teorias' ou 'razões'

ou 'objetivos gerais'“.

Há uma frase latina para isso: obscurus per obscurius ou obscurum obscurior [Rorty, Linguistic Turn,

p.359]).

Rorty, Linguistic Turn, p.2

Ele critica essa definição por não fazer ela justiça “ao carácter progressivo da filosofia”, isto é, ao

fato de que existe progresso na filosofia, algo que aparentemente não existiria se ela consistisse

apenas de opinião. Cf. Op.cit., p.2.

É por essa razão, como mostrei na nota anterior, que Rorty, que propôs essa definição, para efeitos de

discussão do problema, finalmente a rejeita.

Betrand Russell, A History of Western Philosophy (Simon and Schuster, New York, 1945, 1967),

p.xiii. Cf. Schofield, p.1.

Cf. Scheffler, LE, 5.

Na verdade, na frase que antecede a definição proposta, Russell afirma: “'Filosofia' é uma palavra que

tem sido usada de várias maneiras, algumas mais amplas, outras mais restritas. Proponho usá-la em

sentido bastante amplo, que agora tentarei explicar” (op.cit., p.xiii)

Cf. Popper, Prefácio à LSD

Russell, op.cit., pp.xiii-xiv.

Para usar a expressão quase que chula empregada por alguns filósofos americanos, a filosofia é “talk

about talk”, conversa sobre conversa. Ou, para os que não se opõem à mistura do sofisticado com o

corriqueiro, “metatalk”, metaconversa.

Isto mostra que a reflexão filosófica é, de certa maneira, parasítica: ela precisa de outros tipos de

reflexão para existir. Esta constatação, por sua vez, significa que, se todas as pessoas do mundo,

exceto os filósofos, fossem mudas, e, portanto, incapazes de comunicar suas reflexões, os filósofos

Page 115: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

115

teriam, obrigatoriamente, que refletir (filosoficamente) somente suas próprias reflexões (não-

filosóficas), ou então deixar de filosofar, a menos que algum filósofo engenhoso concluísse que a

tarefa da filosofia, então, devesse ser refletir sobre o silêncio...

É conveniente frisar que a expressão “logicamente superior” não envolve nenhuma conotação

valorativa, querendo simplesmente dizer que o discurso filosófico tem como objeto o discurso de

primeira ordem, sendo, portanto, um metadiscurso.

Bertrand Russell, (Theory of Descriptions)

No primeiro caso (“Um homem solteiro é um homem solteiro”) a tautologia se determina por

métodos puramente sintáticos. No segundo caso (“Um homem solteiro é um homem não-casado”) a

tautologia só se determina por métodos semânticos, sendo necessário estabelecer que “solteiro” e

“não-casado” são termos sinônimos, ou, pelo menos, que o termo “não-casado” inclui o termo

“solteiro” em seu significado.

Alguns autores preferem usar o termo “proposição”.

Procuraremos, no decorrer do trabalho, dar uma resposta a cada uma dessas perguntas. Elas serão

respondidas, porém, em ordem inversa à de sua formulação aqui.

Ralph Harper, “Significance of Existence and Recognition for Education”, em Modern Philosophies

and Education, editado por Nelson B. Henry (University of Chicago Press, Chicago, 1955), pp.235-

236. Este livro é a primeira parte do Qüinquagésimo-Quarto Anuário da National Society for the

Study of Education.

John Wild, “Education and Human Society: A Realistic View”, em Modern Philosophies and

Education, editado por Nelson B. Henry (University of Chicago Press, Chicago, 1955), p.17. Este

livro é a primeira parte do Qüinquagésimo-Quarto Anuário da National Society for the Study of

Education.

Pode-se, de certa maneira, dizer que o conceito exprime o “significado” de uma palavra.

O'Connor, Intro Fil Ed, p.53

Popper tem procurado mostrar que a linguagem tem uma função argumentativa, que se distingue das

outras. Cf.

Ralph Harper, op.cit., p.236.

Note que q é um enunciado negativo: “Você não teria me deixado aqui sozinha ontem à noite”. Sua

negação, portanto, é um enunciado afirmativo (“Você me deixou aqui sozinha ontem à noite”).

Note que q é um enunciado negativo: “Você não me ama”. Sua negação, portanto, é um enunciado

afirmativo (“Você me ama”).

Purtill, xx

Nem todas as tautologias são tão óbvias. A seguinte proposição é uma tautologia, embora não

evidente à primeira vista: “Se João foi a última pessoa a sair da sala e a última pessoa a sair da sala

foi quem deixou a luz acesa, então João deixou a luz acesa”. Cf. David Mitchell, An Introduction to

Logic, p.3.

Page 116: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

116

Descartes coloca este princípio da seguinte forma: “Todas as vezes que dois homens fazem

julgamentos contrários sobre a mesma coisa, é certo que um dos dois se engana”. Règles pour la

Direction de l'Esprit. Cp. Perelman, p.2.

Lógicos profissionais podem tentar argumentar que existem várias lógicas: a lógica clássica, ou

silogística, a lógica matemática, a lógica modal, etc. Todas essas lógicas são, no entanto, variações da

mesma lógica fundamental.

Richard Taylor, Metafísica

O artigo se intitula simplesmente “Não”. Minha atenção foi chamada para este artigo, que é excelente

material ilustrativo para livro ou curso de lógica, pelo meu colega, Prof. Ezequiel Theodoro da Silva.

Tem se afirmado, com verdade, que um argumento válido preserva a verdade, sem atentar para o

significado, e que uma interpretação correta preserva o significado sem atentar para a verdade. Cf.

Lipman, A Filosofia vai à Escola, p.48. Quando interpretamos um texto corretamente, preservamos o

seu significado, mesmo que consideremos aquilo que o texto afirma falso ou mesmo absurdo.

Antony Flew, An Introduction to Western Philosophy (Thames and Hudson, London, 1971), pp.21-

23.

M H L Gimeno: “A função da linguagem é a de provocar uma ação ou pelo menos uma disposição à

ação. É bem por isso que a argumentação, ao contrário da demonstração, não separa a razão da

vontade, nem a teoria da prática. Perelman: “A perspectiva da argumentação não permite, como o faz

a da demonstração, separar inteiramente o pensamento da ação, e compreende-se que o exercício da

argumentação seja, tanto favorecido como prejudicado, e freqüentemente regulamentado, por aqueles

que detêm, dentro da sociedade, o poder ou a autoridade” (Le Champ de l'Argumentation, p.25).

Perelman, Traité de l'Argumentation, p.5

Ralph Harper, op.cit., p.233.

Da primeira há tradução brasileira de Lourenço Filho, com o título Educação e Sociologia (Edições

Melhoramentos, São Paulo, 10ª edição, 1975). A tradução inclui um estudo introdutório de Paul

Fauconnet, chamado “A Obra Pedagógica de Durkheim”.

Émile Durkheim, Educação e Sociologia, p.41; Cf. Paul Fauconnet, “A Obra Pedagógica de

Durkheim”, em Émile Durkheim, Educação e Sociologia, op.cit., pp.9-31, neste caso na p.10. Embora

seja a mesma passagem, ela não está traduzida de maneira idêntica nos dois lugares. Na p.10 a

tradução é a seguinte: “A educação é a ação exercida pelas gerações adultas sobre aquelas ainda não

amadurecidas para a vida social. Tem por objeto suscitar e desenvolver, na criança, certo número de

estados físicos, intelectuais e morais, reclamados pela sociedade política no seu conjunto e pelo meio

especial a que a criança particularmente se destine”.

Paul Fauconnet, “A Obra Pedagógica de Durkheim”, op.cit., p.10.

Durkheim, Educação e Sociologia, op.cit., p.41.

A frase é de Nicholas S. Timasheff, em Sociological Theory: Its Nature and Growth (Random House,

New York, 1967), tradução brasileira de Antonio Bulhões e Marco Aurélio M. de Mattos, com o

título Teoria Sociológica (Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1979), p.154 da edição brasileira.

Page 117: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

117

Nicholas S. Timasheff, op.cit., p.140 (primeira frase) e pp.150-151. Na citação das pp.150-151 omiti

algumas frases e inverti a ordem de outras. Timasheff não identifica a fonte de sua citação de

Durkheim. A abordagem Durkheimiana, de que o social tem uma realidade própria, que não se reduz

aos fatos individuais, é geralmente chamada de “realismo sociológico” (Cf. Timasheff, p.140). Cf.

Frans de Hovre, op.cit., p.81.

Esse tema é elaborado por Glenn Langford, em Philosophy and Education: An Introduction (***).

Afirma ele, às pp.59-60: “Se os seres humanos não formassem sociedades ou grupos sociais, não

haveria educação”. Na verdade, Langford vai mais longe e afirma que, se os seres humanos não

formassem sociedades, eles não se tornariam pessoas humanas, seriam apenas mais uma espécie

animal. “Um bebê tem que aprender a se tornar uma pessoa. Ninguém nasce um menino americano

típico, ou um estivador do Merseyside. Estas são coisas que que o ser humano tem que aprender,

coisas em que ele se torna [através da educação].... Seres humanos, na verdade, têm que aprender a se

tornar pessoas e somente podem fazer isso se lhes for dada a oportunidade de fazê-lo. Um bebê

humano criado por lobos se torna algo mais parecido com um lobo do que com uma pessoa humana,

e um chimpanzé criado na casa de um psicólogo se torna, dentro dos limites que lhe impõe sua

capacidade de aprender, quase uma criança humana”.

Acredito que foi B. F. Skinner que um dia disse que conseguiria fazer o que quisesse com qualquer

criança, mesmo tornar um de dois gêmeos um filantropo e outro um criminoso. *** J. Cohn,

colocando-se na mesma linha de pensamento, afirma que “educação é a influência deliberada e

consciente exercida sobre o ser maleável e inculto, com o propósito de formá-lo”. Cf. J. Cohn, apud

Gustavo F. G. Cirigliano, Análisis Fenomenológico de la Educación (Universidad Nacional del

Litoral, Paraná [Argentina], 1962), tradução brasileira de Isaida Bezerra Tisott, Fenomenologia da

Educação (Editora Vozes, Petrópolis, 1974), p.51. George Reisman oferece, hoje, uma versão dessa

postura teórica, se bem que apenas parcial, visto que enfatiza a transmissão da “substância intelectual

da civilização”, deixando de lado os componentes físic e moral da educação: “Educação é o processo

formal de transmitir a substância intelectual da civilização de uma geração para a seguinte, e, assim,

fazer com que as mentes não cultivadas das crianças se transformem nas mentes de adultos

civilizados.” Cf. George Reisman, Education and the Racist Road to Barbarism (Second Renaissance

Books, Oceanside, 1990), p.8. Os que defendem esse ponto de vista afirmam que o termo “educar”

vem do latim “educare”. Dizem John D. Redden e Francis A. Ryan, autores católicos: “Deriva-se a

palavra 'educação' do latim educare, que significa criar, nutrir, acompanhar”. Cf. John D. Redden e

Francis A. Ryan, Philosophy of Education (The Bruce Publishing Company, Milwaukee, 1942,

1951), traduzido para o português por Nair Fortes Abu-Merhy (Livraria Agir Editora, Rio de Janeiro,

1967), p.29. (Referências à edição brasileira). Em nota de rodapé afirmam: “O termo 'educação'

deriva-se do verbo latino educare e não de educere (dirigir, trazer para frente ou para fora), como

comumente se supõe”.

Cf. Durkheim, Educação e Sociologia, op.cit., pp.52-53: “Ora, essas duas condições [que são obtidas

durante a sugestão hipnótica] se exigem nas relações que o educador mantenha com a criança

submetida à sua influência: 1) A criança fica, por condição natural, em estado de passividade

perfeitamente comparável àquele qm que o hipnotizado é artificialmente colocado.... Por isso a

criança é facilmente sugestionável. Pela mesma razão, torna-se muito acessível ao contágio do

exemplo, muito propensa à imitação. 2) O ascendente que o mestre naturalmente possui sobre o

discípulo, em razão da superioridade da experiência e cultura, dar-lhe-á o poder necessário à eficácia

de sua atividade. Esta comparação demonstra como o educador deve ser prudente. Bem se conhece o

poder da sugestão hipnótica; se a ação educativa tem eficácia similar, pode-se esperar muito da

educação, uma vez que saibamos utilizá-la”. Cf., neste contexto, René Hubert, Histoire de la

Pedagogie (Presses Universitaires de France, Paris, 1949), tradução brasileira de Luiz Damasco

Page 118: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

118

Penna e J. B. Damasco Penna sob o título História da Pedagogia (Companhia Editora Nacional, São

Paulo, 1967), p.305.

Durkheim, Educação e Sociologia, op.cit., p.45.

Frans de Hovre, Essai de Philosophie Pédagogique (Librairie Albert Dewit, Bruxelles, 1927),

tradução brasileira de Luiz Damasco Penna e J. B. Damasco Penna sob o título Filosofia Pedagógica

(Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1969), p.80. Embora o livro tenha originalmente sido

escrito em flamengo, em 1924, a tradução para o português foi feita a partir da edição francesa,

publicada na Bélgica, em 1927.

Everett K. Wilson, Introdução à nova edição da tradução americana de L'Éducation Morale (Librairie

Félix Alcan, Paris, 1925), publicada com o título Moral Education: A Study in the Theory and

Application of the Sociology of Education (Macmillan Publishing Company, 1973; edição original da

tradução, pela mesma editora, 1961), p.xxv.

Émile Durkheim, “La Determination du Fait Moral”, em Bulletin de la Societé Française de

Philosophie, 1906., p.130, citado apud Frans de Hovre, op.cit., pp.127-128. Durkheim tem sido

acusado de idolatrar a sociedade, de promover a “sociolatria” e o “misticismo social”, por dizer,

nesse mesmo artigo, coisas como: “Não vejo na divindade senão ao Sociedade transfigurada e julgada

simbolicamente”.

Em sua Pedagogia Social, apud Frans de Hovre, op.cit., p.82. E F. Müller-Lyer chega a afirmar: “Se o

homem fosse um indivíduo, aprenderíamos a conhecê-lo pelo exame científico do indivíduo. Mas é

um ser social, membro de uma comunidade da qual recebe a maneira de pensar, as idéias, os valores

de vida, da qual, como ser intelectual, é inteiramente dependente, e sem a qual seria um idiota mudo.

O que pensa no cérebro do homem não é o homem, é a comunidade” (em seu O Desenvolvimento da

Humanidade - Uma Sociologia Sistemática: O Sentido da Vida, apud Frans de Hovre, op.cit., p.83).

*** (Crítica: quem inventou a linguagem? Comunidade não pensa).

Durkheim, Educação e Sociologia, op.cit., pp.41-42.

Durkheim, Educação e Sociologia, op.cit., p.54.

Durkheim, Educação e Sociologia, op.cit., p.42.

“Não podemos elevar-nos acima de nós mesmos senão por esforço mais ou menos penoso”.

Durkheim, Educação e Sociologia, op.cit., p.54.

Durkheim, Educação e Sociologia, op.cit., p.54. Cf. também Émile Durkheim, “Éducation”, verbete

do Nouveau Dictionnaire de Pédagogie, p.536b, citado apud René Hubert, op.cit., p.305.

Durkheim, Educação e Sociologia, op.cit., p.54.

Émile Durkheim, Educação e Sociologia, op.cit., p.56. Cf. passagem idêntica em Émile Durkheim,

“Éducation”, verbete do Nouveau Dictionnaire de Pédagogie, p.536b, citado apud René Hubert,

op.cit., p.306. Cf. também uma expressiva passagem de Paul de Lagarde, que disse “Livre não é

aquele que pode fazer o que quer, mas aquele que pode tornar-se quem ele deve ser”, citada (duas

vezes) por Helmult Thielicke, em Der Einzelne und der Apparat: Die Freiheit des Menschen im

technischen Zeitalter (Furche-Verlag, Hamburg, 1964), pp.20,52.

Page 119: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

119

Uma boa introdução à concepção de “educação moral” de Durkheim é a Introdução de Everett K.

Wilson à nova edição da tradução americana de L'Éducation Morale, op.cit.. “Agir moralmente é agir

em termos do interesse coletivo” pode ser considerado o “slogan” que resume o pensamento

durkheimiano. Cf. p.xii.

Durkheim, Educação e Sociologia, op.cit., p.33.

Durkheim, Educação e Sociologia, op.cit., p.33.

Durkheim, Educação e Sociologia, op.cit., p.33.

Durkheim, Educação e Sociologia, op.cit., p.38.

Durkheim, Educação e Sociologia, op.cit., p.33.

Durkheim, Educação e Sociologia, op.cit., p.35.

Durkheim, Educação e Sociologia, op.cit., p.38.

Durkheim, Educação e Sociologia, op.cit., p.34.

Durkheim, Educação e Sociologia, op.cit., p.34.

Durkheim, Educação e Sociologia, op.cit., p.34.

Eis um resumo da posição de Platão que faz T. W. Moore, em Educational Theory: An Introduction

(Routleddge & Kegan Paul, London, 1974), pp.27-28: “A conclusão de Platão, resumidamente, é que

o estado justo é aquele em que as várias ordens sociais que o compõem, os camponeses e os artesãos,

os soldados, os governantes, são organizados de forma hierárquica, os que governam governando a

cidade, os soldados guardando-a, e os restantes provendo-a de serviços econômicos, cada classe

social e cada indivíduo realizando o papel social apropriado a ela e a ele.... Se os soldados ou os

trabalhadores tentarem usurpar a tarefa dos que governam, o estado fica desordenado, dando lugar a

formas imperfeitas de organização social, a timocracia, no primeiro caso, a democracia, no segundo”.

O elemento hierárquico não é proeminente em Durkheim, mas o caráter estático da diferenciação,

sim.

O livro de Theodore Abel, The Foundation of Sociological Theory (Random House, New York,

1970), tradução brasileira de Christiano Monteiro Oiticica, com o título Os Fundamentos da Teoria

Socilógica (Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1972), tem uma seção com o seguinte título: “O Conceito

de Durkheim de Meio Social” (pp.42-45 da edição brasileira). Resume ele esse conceito: “Durkheim

concebe o coletivo social como um 'meio'... no qual... os indivíduos sentem e agem. Um meio social,

naturalmente, contém pessoas. As pessoas não são significativas como corpos físicos, contudo, mas

como pessoas em variadas relações umas com as outras. Um meio social é algo com que nos

defrontamos. É um local em que se espera que ocorram certas ações sob certas circunstâncias. Essas

expectativas são os concomitantes das relações existentes e dos deveres e direitos que envolvem”

(p.43). O meio social, sendo algo “com que nos confrontamos”, não é visto por Durkheim como uma

criação de indivíduos, que estes podem mudar quando o desejarem. É por isso que Timasheff afirma

que, “para Durkheim, a realidade da sociedade precede a vida individual” (passagem já citada; cf.

Timasheff, op.cit., p.154) e “os fatos sociais não são o produto das vontades humanas individuais”

(cf. Timasheff, op.cit., p.142). Na verdade, Durkheim chega, em algumas obras, como em seu

trabalho sobre o suicídio (Le Suicide: Étude Sociologique, 1897) a um realismo sociológico extremo,

falando (como observa Timasheff) “de correntes suicidas como tendências coletivas que dominam

Page 120: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

120

indivíduos e, por assim dizer, os agarram (ou antes, alguns deles, os mais suscetíveis) em sua

passagem. Assim, interpreta às vezes o ato do suicídio como produto dessas correntes”; cf.

Timasheff, op.cit., pp.146-147. Cf. também Frans de Hovre, op.cit., p.129.

Tanto quanto me consta, Durkheim não usou a expressão “educação real” para se referir à posição,

defendida por ele, que contrapõe a educação, histórica e socialmente considerada, ao que ele chama

de “educação ideal”. Como, porém, o termo para parece resumir bem sua posição, resolvi usá-lo.

Durkheim, Educação e Sociologia, op.cit., p.34.

Durkheim, Educação e Sociologia, op.cit., p.34.

Durkheim, Educação e Sociologia, op.cit., p.35.

Durkheim, Educação e Sociologia, op.cit., p.35.

Durkheim, Educação e Sociologia, op.cit., p.35.

Durkheim, Educação e Sociologia, op.cit., pp.35,36.

Durkheim, Educação e Sociologia, op.cit., p.36.

Durkheim, Educação e Sociologia, op.cit., p.36.

Durkheim, Educação e Sociologia, op.cit., p.36.

Durkheim, Educação e Sociologia, op.cit., pp.36-37.

Durkheim, Educação e Sociologia, op.cit., p.60.

Durkheim, Educação e Sociologia, op.cit., p.37.

Durkheim, Educação e Sociologia, op.cit., p.37.

Émile Durkheim, Le Suicide: Étude Sociologique, p.427, citado apud Frans de Hovre, op.cit., p. 130.

Durkheim, Educação e Sociologia, op.cit., p.38.

Cf. Durkheim, Educação e Sociologia, op.cit., p.38.

Durkheim, Educação e Sociologia, op.cit., p.39.

Durkheim, Educação e Sociologia, op.cit., p.39.

Durkheim, Educação e Sociologia, op.cit., p.39.

Durkheim, Educação e Sociologia, op.cit., p.39.

Durkheim, Educação e Sociologia, op.cit., p.39.

Durkheim, Educação e Sociologia, op.cit., p.40.

Page 121: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

121

Durkheim, Educação e Sociologia, op.cit., p.40.

Durkheim, Educação e Sociologia, op.cit., p.40.

Cf. Durkheim, Educação e Sociologia, op.cit., p.40.

Ao discutir o conceito de educação não nos será possível responder a todas as questões levantadas no

início deste trabalho, como, por exemplo, acerca da relação entre educação e conhecimento, educação

e democracia, educação e as chamadas potencialidades do indivíduo, educação e profissionalização,

etc. Isto terá que ficar para um outro trabalho.

Cf. William H. Kilpatrick, Philosophy of Education (The Macmillan Comnpany, New York, 1951),

tradução para o espanhol de Maria Noemi Acuña e Rosa A. de Lio, Filosofia de la Educación

(Editorial Nova, Buenos Aires, 1957), p.116 (da edição em espanhol): “O termo 'doutrinação'

significa, literalmente, implantação de doutrinas. Quando tal implantação sobre uma base não-crítica

era a prática comum da escola e, na verdade, um de seus propósitos principais, doutrinar e ensinar

chegaram a ser formas diversas de descrever o mesmo processo. A palavra 'doutrinação' não tinha

então uma implicação detratora, e até bem pouco tempo este era seu significado reconhecido....

Porém, com o desenvolvimento da democracia e a chegada das mudanças rápidas que hoje

acontecem, sentiu-se, cada vez mais, que a educação não poderia contentar-se com a introdução do

conhecimento sem crítica, mas que, ao contrário, deveria desenvolver o pensamento responsável por

parte de todos como preparação necessária para uma vida e uma cidadania democrática e um futuro

não prognosticável”.

Cf. William H. Kilpatrick, op.cit., p.119, onde ele critica aqueles que defendem o ponto de vista de

que, embora outros tipos de doutrinação sejam criticáveis, a doutrinação da própria democracia é

justificável: “Diante de tal posicionamento, a contestação deve estar de acordo com os fatos

mencionados mas questionar a conclusão. Ensinar a democracia de forma não-democrática é de certo

modo fomentar sua aceitação não-crítica - e esta é uma forma exquisita de promover a democracia.

Doutrinar a crença na democracia, sem incluir as razões para a democracia e sem formar a capacidade

de pensar criticamente sobre ela, é formar partidários com olhos vendados. Tais pessoas não

conheceriam o porquê de suas práticas ou dogmas e em conseqüência não se poderia ter confiança de

que aplicariam suas doutrinas inteligentemente.... Em uma palavra, tal doutrinação faria dogmáticos

cegos que seriam totalmente incapazes de levar adiante o processo democrático em uma civilização

em mudança. Por esse caminho se chega é ao fanatismo”. (Não sei se é problema da tradução, mas o

uso de termos como “dogmas” e “doutrinas” no texto pode gerar confusão).

Cf. William H. Kilpatrick, op.cit., p.116, onde ele afirma que “os mestres com demasiada freqüência

se têm interesssado mais pela matéria que ensinam ou pela causa que representam do que pela

personalidade humana”. Alguns parágrafos adiante (pp.116-117) afirma: “Quando os pais e mestres

se aproveitem da ignorância e da docilidade das crianças para inculcar nelas, prescindindo do

julgamento delas, seus próprios pontos de vista sobre assuntos em que opiniões competentes diferem,

eles estão escravizando as crianças a quem eles assim ensinam. A democracia e o devido respeito

para com a personalidade das crianças devem rechaçar esta escravização como uma exploração

partidarista do direito que o indivíduo tem de ser educado para realizar seu próprio pensamento e para

tomar suas próprias decisões”. Logo em seguida (p.117) ele cita Rafael Demos, que afirmou que “a

doutrinação é a pior das tiranias, porque é uma tirania sobre a mente humana”. Cita também Bronson

Alett, que disse que “o verdadeiro mestre defende os seus alunos contra a sua própria influência

pessoal”. Na página seguinte (p.118) ele cita, com aprovação, esta passagem, retirada de um

documento da National Education Association: “Se qualquer professor, pela forma que ensina,

intencionalmente ou por descuido, permite que alguma predisposição ou algum preconceito seu, ou

Page 122: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

122

até mesmo que a expressão inadequada de um ponto de vista justificado, venha a se tornar obstáculo

para o processo de estudo imparcial por parte daqueles que estão sob sua direção, está, através deste

fato, prejudicando esses estudantes e, neste fato, manifestando sua incompetência para ensinar”.

Cf. William H. Kilpatrick, op.cit., p.116, onde critica aqueles que “crêem que é justo que pais e

mestres inculquem suas próprias doutrinas nos jóvens sob seus cuidados de modo que essas doutrinas

se fixem de tal modo que seja impossível posterior debate e revisão”.

A necessidade dessa suposição se faz sentir em função do fato de na doutrinação não existir a

limitação de que os conteúdos sejam considerados valiosos: eles podem, mas não precisam, ser

considerados valiosos.

© Copyright by Eduardo Chaves - Last revised: May 02, 2004

NOTAS (segundo esboço)

1. Dada a finalidade precípua do presente tabalho, a saber, introduzir o leitor a uma certa visão da

natureza e tarefa da filosofia da educação, preferimos não atravancar o texto com citações, ou

referências a autores, vivos ou mortos. Se este trabalho possui alguns méritos, certamente a

originalidade nas idéias apresentadas não será um deles. Um exame, ainda que rápido, das poucas

obras incluídas na sugestão de leituras complementares comprovará isto. Os defensores e proponentes

das várias posições analisadas e discutidas no corpo do trabalho poderão ser identificados por qualquer

um que esteja familiariazido com a literatura educacional.

2. Isto mostra que a reflexão filosófica é, de certa maneira, parasítica: ela precisa de outros tipos de

reflexão para existir. Esta constatação, por sua vez, significa que, se todas as pessoas do mundo, exceto

os filósofos, fossem mudas, e, portanto, incapazes de comunicar suas reflexões, os filósofos teriam,

obrigatoriamente, que refletir (filosoficamente) somente suas próprias reflexões (não-filosóficas), ou

então deixar de filosofar, a menos que algum filósofo engenhoso concluísse que a tarefa da filosofia,

então, devesse ser refletir sobre o silêncio...

3. Procuraremos, no decorrer do trabalho, dar uma resposta a cada uma dessas perguntas. Elas serão

respondidas, porém, em ordem inversa à de sua formulação aqui.

4. É importante ressaltar que quando se fala em conteúdo não se tem em mente apenas conteúdos

estritamente intelectuais ou cognitivos. Na terceira parte do trabalho a noção de conteúdo será discutida

mais detalhadamente, ainda que de maneira breve.

5. Parece irrelevante a esta questão, mas certamente é relevante à questão correlata, a saber: Pode haver

aprendizagem sem que haja ensino?

6. Uma outra decorrência estranha e até divertida desse ponto de vista é a seguinte: somente poderemos

afirmar que alguém esteve realmente ensinando depois de testar seus alunos para verificar se de fato

aprenderam o que se ensinou. Mas a que momento se faz esta verificação da aprendizagem? Logo após

a aula? No dia seguinte? Uma semana depois? Ao final do semestre? E o que dizer quando alguns

alunos aprendem mas outros não: houve ensino ou não, nesse caso? E o que acontece quando os alunos

Page 123: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

123

aprendem, mas retêm o que aprenderam apenas por um período relativamente curto? Diremos, então,

que o professor havia aparentemente ensinado, mas que após algum tempo se verificou que de fato não

ensinou? Um outro problema, agora de natureza prática, e somente para levar as conseqüências ao

absurdo: Quando uma instituição contrata alguém para ensinar, deve esperar até após os exames finais

dos seus alunos para determinar se o indivíduo cumpriu com suas obrigações contratuais (isto é, para

verificar se ele de fato ensinou), e só então (em caso positivo) pagar o seu salário? É verdade que neste

nosso Brasil há algumas instituições de ensino que somente renovam o contrato de um professor se ele

aprovar os seus alunos (tenham eles aprendido ou não). Talvez a estas instituições se deva sugerir a

adoção do ponto de vista em discussão: só renovar o contrato do professor se ele realmente ensinou,

isto é, se seus alunos de fato aprenderam...

7. Não dizemos, simplesmente, que as duas perguntas são idênticas, porque estamos procurando

mostrar que a intenção de produzir a aprendizagem é condição necessária para o ensino, e não que seja

condição necessária e suficiente. Pode haver outras condições igualmente necessárias, o que faz com

que a presença da intenção em questão não implique, necessariamente, a existência de ensino.

8. Uma ação de verdade, parece ser constituída de movimentos físicos mais intenções. Quando alguém

pisca ou tosse, involuntariamente (isto é, não intencionalmente), não está realizando uma ação, embora

esteja realizando certos movimentos físicos. Se a a piscada ou a tosse forem intencionais, porém, a

situação muda de figura. A pessoa que pisca para chamar a atenção de alguém, ou que tosse para

advertir alguém de algum perigo, está realizando uma ação.

9. Não dizemos que no segundo "houve" ensino, mas, isto sim, que "pode ter havido", em virtude

daquilo que observamos na Nota nº 7: estamos procurando mostrar que a presença da intenção de

produzir a aprendizagem é condição necessária para a existência de ensino, mas não que seja também

condição suficiente. Se o fosse, estaríamos inclinados a dizer que houve ensino no segundo caso, e não,

simplesmente, que pode ter havido. No primeiro caso, porém, estamos propensos a admitir que não

houve ensino (e, não meramente, que pode não ter havido), porque dificilmente se poderá constatar a

presença da condição necessária em pauta naquela situação.

10. Vida a Nota anterior, bem como a Nota nº 7, para a explicação da expressão "pode estar havendo

ensino".

11. O argumento a ser apresentado no presente parágrafo é freqüentemente utilizado por pessoas que se

opõem ao ponto de vista que vamos defender. Embora haja muitos pontos aceitáveis nesse argumento,

nós, obviamente, não o endossamos, na íntegra, como se verá nos parágrafos seguintes.

12. Em outras palavras, vamos examinar a suposta necessidade lógica (isto é, decorrente do próprio

conceito de aprendizagem) de que toda aprendizagem seja auto-aprendizagem.

13. Ao discutir o conceito de educação não nos será possível responder a todas as questões levantadas

no início deste trabalho, como, por exemplo, acerca da relação entre educação e conhecimento,

educação e democracia, educação e as chamadas potencialidades do indivíduo, educação e

profissionalização, etc. Isto terá que ficar para um outro trabalho.

14. A necessidade dessa suposição se faz sentir em função do fato de na doutrinação não existir a

limitação de que os conteúdos sejam considerados valiosos: eles podem, mas não precisam, ser

considerados valiosos.

© Copyright by Eduardo Chaves

* * *

Page 124: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

124

Bibliografia Básica

Os trabalhos a seguir, todos eles em português e constantes da Biblioteca da

Faculdade de Educação, em muitos casos em várias cópias, deverão ser usados ao longo

do semestre. Não é obrigatório lê-los todos nem ler tudo em cada um. Mas o aluno deve

procurá-los, olhar seu conteúdo, e ler o que é relacionado aos assuntos que serão

discutidos ou sobre os quais deverá fazer seu trabalho. É desnecessário enfatizar que o

aluno não deve se limitar a esses livros. Vamos refletir sobre o que é a educação e sobre o

que se diz acerca da educação. Logo, qualquer livro sobre a educação pode ser de

utilidade, mesmo que seja para ser criticado.

1. Eduardo O. C. Chaves, “A Filosofia da Educação e a Análise de Conceitos

Educacionais”, em Introdução Teórica e Prática às Ciências da Educação, org. por Antonio

Muniz de Rezende (Editora Vozes, Petrópolis, 1977)

2. Matthew Lipman, A Filosofia Vai à Escola (Sumus Editorial, São Paulo, 1990)

3. P. H. Hirst e R. S. Peters, A Lógica da Educação (Zahar Editores, Rio de Janeiro,

1972)

4. I. A. Snook, Doutrinação e Educação (Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1974)

5. Israel Scheffler, A Linguagem da Educação (Editora da USP e Saraiva Editores, São

Paulo, 1974)

6. Ivan Ilich, Sociedade sem Escolas (Editora Vozes, Petrópolis, 1977)

7. Olivier Reboul, A Doutrinação (Editora da USP e Companhia Editora Nacional, São

Paulo, 1980)

8. Olivier Reboul, O Slogan (Editora Cultrix, São Paulo, s/d)

9. Olivier Reboul, Filosofia da Educação (Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1974)

10. D. J. O'Connor, Introdução à Filosofia da Educação (Editora Atlas, São Paulo, 1978)

11. Howard Ozmon, Filosofia da Educação: Um Diálogo (Zahar Editores, Rio de

Janeiro, 1975)

12. Reginald D. Archambault, Educação e Análise Filosófica (Edição Saraiva, São Paulo,

1979)

Page 125: Eduardo Chaves - Um esboço de filosofia analítica da educaçã

Eduardo Chaves – Esboço de filosofia analítica da educação (Prof. Bráulio Matos – Cópia para uso pessoal)

125

13. George F. Kneller, Introdução à Filosofia da Educação (Zahar Editores, Rio de

janeiro, 1972)

14. Cipriano Carlos Luchesi, Filosofia da Educação (Cortez Editora, São Paulo, 1990)

15. Michael Apple, Ideologia e Currículo (Brasiliense, São Paulo, 1982)

16. Lucien Brunelle, A Não-Diretividade (Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1978)

17. M. V. C. Jeffreys, A Educação: sua Natureza e seu Propósito (Editora da USP e

Editora Cultrix, São Paulo, 1975).

18. Émile Durkheim, Educação e Sociologia (Edições Melhoramentos, São Paulo, s/d)

19. Everett Reimer, A Escola Está Morta (Livraria Francisco Alves Editora, Rio de

Janeiro, 1975)

20. Lucien Morin, Os Charlatães da Nova Pedagogia (Publicações Europa-América,

Mem Martins [Portugal], 1976)

21. Ivan Illich et alii, A Escola e a Repressão de Nossos Filhos (Publicações Europa-

América, Mem Martins [Portugal], 1976)

* * *