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GLÓRIA FERREIRA, Debate crítico?! 31 DOSSIÊ GLÓRIA FERREIRA Debate crítico?! RESUMO O artigo interroga os novos nexos entre os fatos artísticos e as descrições, avaliações e interpretações críticas na atual e reconhecida situação de crise da crítica de arte em um contexto de crescente e ativa progressão de teorias textualizadas pelos artistas, constitutivas do devir da obra. Discute a hipótese da inscrição da crítica como um dos dados do conceito estourado de “obra” de arte, emprestando sentidos provisórios – permanente acontecimento, cujos critérios estão sempre em questão. PALAVRAS-CHAVE Crítica de arte; Autonomia; Textos de artistas.

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  • GLRIA FERREIRA, Debate crtico?! 3 1

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    GLRIA FERREIRA

    Debate crtico?!

    RESUMOO artigo interroga os novos nexos entre os fatosartsticos e as descries, avaliaes einterpretaes crticas na atual e reconhecidasituao de crise da crtica de arte em umcontexto de crescente e ativa progresso deteorias textualizadas pelos artistas, constitutivasdo devir da obra. Discute a hiptese dainscrio da crtica como um dos dados doconceito estourado de obra de arte,emprestando sentidos provisrios permanenteacontecimento, cujos critrios esto sempre emquesto.

    PALAVRAS-CHAVECrtica de arte; Autonomia; Textos de artistas.

  • REVISTA PORTO ARTE: PORTO ALEGRE, V. 16, N 27, NOVEMBRO/20093 2

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    DEBATE CRTICO?!1

    Recentemente, na Semana de Artes Plsticas de Recife (o SPA de 2006), jovenscomo Clarissa Diniz, ainda indecisos quanto definio de suas atividades, entre acrtica e a produo artstica, desenvolveram o que denominaram Crtica de imerso% um exerccio terico/potico da atividade crtica. Visando anular o distanciamentocrtico em relao ao objeto de anlise, seus textos foram escritos no calor dosacontecimentos do SPA. Apresentaram-se como uma das atividades artsticas da semanade arte lanando o fanzine Tatu ttulo que toma emprestado o apelido do bichinhoque sobrevive custa das bolhas de ar derivadas de sua ao de revolver a terra. Aimerso buscada e criao de possveis bolhas de ar tinha como fundamento o apeloao corpo para ver se, como dizem no editorial Glub, glub, glub, esgotando-o,chegamos perto de esgotar tambm nossas prvias formataes de pensamento, abrindoespao para um discurso mais verdadeiro e autntico. Esses cerca de 15 crticos/artistas fazem parte do coletivo Branco do olho,2 nomeao escolhida por evocar oaforismo S a esclertica nos une. Ou, como dizem, o que temos em comum: obranco do olho.

    Sem nos atermos anlise propriamente de seus textos, suas proposies e atuaocontribuem, creio, para interrogarmos as vigentes condies do exerccio da atividadecrtica sua propalada crise com o declnio do julgamento e de suas novas relaes coma produo artstica, em um contexto de crescente presena dos artistas nas esferasterica, crtica e curatorial.

    A inteno de esgotar as prvias formataes de pensamento, no que diz respeitoao discurso crtico, correlata, creio, existncia de numerosos grupos e coletivos deartistas cujo ponto de aglutinao no se restringe a questes de linguagem artstica. Asestratgias diversificadas que os unem apontam o deslocamento da produo artsticado campo estritamente especfico de suas linguagens para o ambiente ampliado dasrelaes com o mundo. Como assinala Ricardo Basbaum, est em curso um perodo deinveno de estruturas de pertencimento e narrativas legitimadoras.3 Ou ainda, segundoMoeglin Delcroix, por no seguir a quimera moderna de uma natureza a priori da arte, aarte contempornea, ao ampliar suas possibilidades de ao, mostrou que sua essncia a plasticidade, sem limite, de fazer e refazer: Mas porque, afirma, a arte pode sertudo (e no qualquer coisa, como dizem os maus espritos) que se coloca a questo doque ela deve ser.4

    Este texto resulta da confernciaproferida no mbito do SeminrioPensar a arte hoje: perspectivas cr-ticas, do Centro de Pesquisa em ArteBrasileira do Departamento de Ar-tes Plsticas da ECA-USP e CentroUniversitrio Maria Antonia, reali-zado neste ltimo em 15 de dezem-bro de 2006.

    1

    O coletivo Branco do Olho, ativodesde 2004, em Recife, compostopelos artistas Augusto Japi, Br-bara Collier, Bruno Alves, BrunoMonteiro, Bruno Vieira, Bruno Vilela,Eduardo Romero, Gileno, JooManoel Feliciano, Luciana Padilha,Rmulo, Srgio Vasconcelos, TatianaMoes, Tereza Neuma e Xanxa. Ver:h t tp : / /br.groups .yahoo . com/group/brancodoolho/.

    2

    BASBAUM, 2001. Reed. in FERREIRA,2006.

    3

    MOEGLIN-DELCROIX, 2003.4

  • GLRIA FERREIRA, Debate crtico?! 3 3

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    Ver: SCHAEFFER, 1997.5

    quoi bon la critique?, escrevia Baudelaire na abertura de seu Salon de 1846.Vasto e terrvel ponto-de-interrogao, como enunciava o poeta, que mantm aatualidade, para que, enfim, serve a crtica diante das transformaes de suas ambiesestticas, suas modalidades de atuao e inscrio social, e de sua reconhecida situaode crise?

    Interrogao sem fim, revelada no permanente questionamento dos critrios efunes que pautam a atividade crtica nas relaes estabelecidas com a histria da artee com a prpria arte nos diferentes contextos histricos. Qual o papel dos enunciadoscrticos quando a prpria arte se apresenta interrogando o que ela deve ser? Emboradeliberadamente no respondida, o editorial do fanzine Tatu lana a questo: sermesmo que a crtica de arte, por exemplo, tem de fato se abstido de um discurso de tommoralista para se ater a um texto mais cmplice, ainda que no-a-crtico?.

    Uma hiptese de trabalho considerar que a profunda mutao das condies dacrtica decorre, em particular, da subverso da idia de autonomia da arte, cujaformulao est intrinsecamente relacionada ao surgimento da crtica de arte comodisciplina, no sculo 18. Contexto de constituio de um campo prprio da arte comodisciplina especfica dotada de uma teoria, em que se conjugam a valorizao daoriginalidade, a crescente intelectualizao do artista, o fortalecimento das exposiespblicas, com os Sales, o surgimento das colees privadas e dos museus, tendo porfundamento a valorizao da obra como elemento autnomo. A caracterizao daespecificidade do signo pictrico, por Lessing, com sua clebre demarcao das artesdo espao e das artes do tempo, bem como a afirmao do conceito de gnio % queproduz modelos %, introduz a valorao da inveno fundada na singularidade subjetivado artista, cuja marca est na diferenciao interna ao campo das outras obras, bemcomo do quadro da tradio e dos cnones estabelecidos, e no na emulao dosgrandes mestres ou inscrio em uma categoria estilstica.5 A crescente aterritorialidadeda obra de arte, com a perda de sua pregnncia no quadro funcional, destina-a contemplao essencialmente esttica.

    Essas questes estaro no centro da crise da representao e das sucessivastransformaes de linguagem introduzidas pela arte moderna e que postulam oquestionamento da autonomia da arte. Se a crtica jamais se viu isenta do embate com osartistas, a crescente e ativa progresso de teorias textualizadas pelos artistas,constitutivas do devir da obra e, por isso, diferentes das narrativas literrias, pois no asprecedem, introduz outro nvel de articulao com o enunciado crtico. Em estreitarelao com os textos tericos, indicando a tomada ativa da palavra pelo artista naformulao dos destinos da arte, os manifestos visam comunicao direta com ogrande pblico, recusando aos crticos o direito de se imiscuir nas questes doscriadores, a no ser como participante do mesmo combate de ideias e proposiesestticas. Exclusivamente concebido por artistas, o Almanaque do cavaleiro azul (Blaue

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    I Reiter), publicado em 1912, por Franz Marc e Kandinsky, ressalta o carter problemticoda crtica no potica diante da alta responsabilidade dos artistas com a teoria da artemoderna: Est claro que o prprio artista o primeiro a dever se pronunciar sobre asquestes artsticas. Esse corpus terico que envolve a arte moderna estabelece umarelao entre teoria e prxis na qual o pensamento plstico se desenvolve em incessantedialtica entre a prtica artstica e o pensamento terico. Parafraseando o clssico utpictura poesis, W. J. T. Mitchel assinala a constituio, pelos artistas, de uma ut picturatheoria, que acompanha e fundamenta a arte moderna.6

    Problemticas que adquirem radicalidade com a produo artstica do ps-guerra,marcada, desde seu incio, pelo questionamento das fronteiras entre as artes e, assim, daesfera autnoma da arte. Prxis que evidencia uma nova articulao entre os camposverbal e visual. Em particular, a partir dos anos 60, novas relaes com a crtica soestabelecidas pela presena do artista nessa esfera, tornando sua escrita inseparvel dainterpretao e avaliao do prprio trabalho. Com a crescente participao dos artistasem outras funes, que extrapolam a produo de obras de arte, novas relaes soigualmente estabelecidas com o sistema de arte em geral e, assim, com a histria, acrtica e a teoria da arte. Contexto em que a existncia do objeto de arte torna-seincerta, e a contemplao entra em crise. Presenciamos um deslocamento na autoridadedo julgamento de gosto, tido, no sentido kantiano, como puramente subjetivo, indiferente existncia do objeto.

    Um dos aspectos constitutivos da produo artstica contempornea, sobretudo apartir dos anos 60/70, a relevncia do lugar de apresentao ou inscrio do trabalho como atestam as diversas acepes e conceituaes do site specific ou in situ, ou dainstalao, interveno etc. A exposio, como assinala Jean-Marc Poinsot, no mais seapresenta como uma segunda linguagem, veiculando um signo que a precede, mas colocaem questo a hierarquia, os limites e o estatuto dos signos.7 O trabalho pode, porexemplo, assumir diferentes formalizaes ao ser composto e recomposto a partirdessas situaes. No se trata da desmaterializao da arte, como formula Lucy Lippard,mas de mltiplas possibilidades de formalizao. Operaes artsticas em que o entorno,o contexto, e mesmo os materiais se tornam constitutivos da obra como rede designificaes.

    Segundo Jean-Luc Nancy,

    ...os artistas, hoje, esto em geral muito preocupados com seu papelna sociedade, seu papel no comum ou como se quiser chamar. Aponto de freqentemente a dimenso de uma colocao em comum no sentido de uma colocao diante de todos, de uma exposio daqual a prpria obra espera sua eficcia (em vez de haver primeiro aobra e depois sua exibio) ser mais importante do que, digamos, a

    MITCHELL, 1990.6

    POINSOT, 2005. Tr. br. In:Arte&Ensaios, n 12, dezembro2005.

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    Iconformao da obra. J no se diz, alis, a obra, fala-se emtrabalho de um(a) artista: privilegia-se o momento da atividade, datransformao, e dessa atividade faz parte, intrinsecamente, apublicao, se posso usar a palavra nesse sentido do trabalho.8

    A busca de um endereamento pblico no cerceado pelos cnones e hierarquiasacadmicos, com diferentes matizes, tem seus antecedentes no sculo XIX e inerentes constituio da arte moderna. So referncias as exposies individuais de Coubert ede Manet, mas tambm as diversas lutas para criao de sales dos recusados, dosindependentes, como o clebre Salo de 1917, em que Duchamp apresenta sua Fontana.

    Mais prxima de ns, a exposio como obra, como experincia na durao, emque se contaminam diferentes disciplinas e categorias, desloca os enfoques e a apreensoda arte com o questionamento radical da esttica da forma e da visibilidade, acarretamutaes nas prerrogativas do vocabulrio plstico e da recepo. Longe de assegurarao sujeito perceptivo um saber unitrio, nessa nova sntese, o espectador passa a serparte da obra e nela ter parte.9

    A radicalizao da interpenetrao das artes no mais ser buscada como relaosinestsica entre as diferentes sensaes, mas como sntese entre o tempo e o espao tempo real e espao literal. No se trata, assim, de um fim historicamente previsvel deuma fuso entre as artes, como almejado pelas vanguardas histricas, mas de umquestionamento das hierarquias e limites da arte e da prpria obra de arte. Instaura-seum movimento de expanso com obras sintticas, compositivas, com termos econcepes distintas: ambientes, interfaces entre as artes, no caso de Cage, happenings,eventos, pices, no caso do pr-Fluxus e Fluxus, arte total, intermedia, multimedia,mixed media, performance, body art, intervenes, instalaes, interferncias etc., indicandoo questionamento da arte enquanto prtica social sublimatria. Talvez a resida a grandediferena da ideia de antiarte, que supe ainda um pensamento da essncia da arte e,assim, do fim da arte, quer seja como busca de solues para os problemas formaisinternos, em relao a seus antecedentes histricos, ou a busca de um grau zero da arte.A partir do ps-guerra, sobretudo o fim infinito a partir dos limites em que o conceitode arte questionado e ampliado, tornando-se indissocivel do contexto em que seapresenta.

    A presena do artista em carne e osso, para usar uma expresso de JacquesSato,10 na performance, na arte corporal, mas tambm no recurso a uma mitologiaindividual, indica o questionamento das modalidades de objetivao e legitimao daarte na era do eclipse11 e crise da obra. Essa implicao do artista em pessoa, naobra, ocupa um lugar antes destinado, historicamente, a um representante, ummandatrio: a obra de arte. A implicao do espectador na obra, digamos, tambm empessoa, muda o prprio conceito de obra.

    NANCY, 2001.8

    Essa talvez seja a razo do grandechoque revelado por Michael Friedem Arte e objetividade: a supos-ta teatralidade do minimalismoanunciava, segundo ele, a degene-rescncia da arte, porque, ao seapresentar, o objeto minimalista fazaparecerem o tempo e o espaocomo matria da experincia. Ver:FRIED, 1967. Tr. br. in: Arte&Ensaios,n. 9, dezembro 2002.

    9

    SATO, 1996.10

    Ver: KLEIN, 1970.11

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    I Nesse grande movimento de questionamento das convenes artsticas e da reduoda experincia artstica a seu valor de troca, associam-se o engajamento corporal eexistencial do artista enquanto garantia da autenticidade de suas proposies; sua inserono terreno da crtica, tambm como garantia das intenes, dos projetos e de suainterpretao; e, ainda, a exposio/interveno/performance etc. como materializaodo trabalho, decorrente de tomadas de atitude a priori e de projetos. Na medida em queconcepo e apresentao tendem a coincidir, so explicitadas as situaes prticas ediscursivas em que os trabalhos so concebidos, tendo como horizonte a permanenteinterrogao sobre a destinao e inscrio da arte no mundo. Sem a pretenso a umdesenvolvimento linear, o questionamento dos critrios institucionais, extremamentepresente nos anos 70, guarda estreitas relaes com a atual instaurao de distintoscircuitos de arte, com espaos ou fluxos de circulao da produo gerenciados porcoletivos de artistas ou de trabalhos artsticos construdos a partir da participaocoletiva, ocorrendo em circuitos tradicionais ou independentes. O investimento fsico ematerial no espao, negando qualquer pretenso a uma arte pura e autnoma, temcomo corolrio, como as outras modalidades de formalizao da produo artstica,efmeras ou no, sua inscrio na imagem sua constituio e circulao enquantoimagem. A funo de fazer ver na ausncia do visvel, um dos deveres do salonier, crescentemente delegada reproduo fotogrfica. Com esses dispositivos dereproduo se estabelecem, contudo, diferentes trocas e transcries, tornando-osconstitutivos da rede de significaes do trabalho, como uma das suas situaes devisibilidade ou como veculo e suporte para sua prpria constituio.

    A prxis artstica, tendo como fundamento a interrogao sobre a destinao einscrio da arte no mundo, no se desvincula do debate crtico. Questo anunciadapor diversos textos de artista, como a clebre Resposta a Clement Greenberg, na qualBarnett Newman questiona o dogma ideolgico que embasa a interpretao do crticosobre seu trabalho e o de Gottlieb, Rothko, Clifford Still. Segundo Newman, foiprecisamente em defesa dessa ideia que invadi algumas vezes os domnios da crtica.12

    Outro posicionamento exemplar nesse enfrentamento com a crtica (e no menos clebre,pelo menos no contexto brasileiro) o happening da crtica, como ficou conhecida ainterpelao pblica de Nelson Leirner ao jri do Salo de Arte Moderna do DistritoFederal de 1967, sobre os critrios que levaram aceitao de sua obra Porco (umporco empalhado dentro de um engradado e atado a um presunto % que logo foiroubado pelo pblico).13 Se essa ao se inscreve na crtica ao sistema de arte, que pautaa produo do artista e, naquele contexto, a do Grupo Rex, ela guarda a singularidade deinverter o habitual questionamento das prerrogativas da crtica: trata-se dos critriosde aceitao e no os de recusa de um trabalho. Alm disso, cabe assinalar que oscrticos que participaram do jri do Salo eram reconhecidamente comprometidoscom a arte contempornea, como Mrio Pedrosa, Frederico de Morais. Em sua resposta

    NEWMAN, 1997. Embora convidadopor Greenberg para responder a seuscomentrios em Review of AdolphGottlieb, publicado no The Nation,6 de dezembro de 1947, o texto deNewman foi recusado pela revistasob a alegao de ser excessivamen-te especializado para seus leitores,sendo publicado apenas em 1969, emThomas Hess, Barnett Newman.

    12

    LEIRNER, 1967.13

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    Iao artista, Pedrosa, argumenta que o Jri tinha toda autoridade para aceitar o trabalhono Salo,

    uma vez que o porco empalhado havia de ser para ele conseqnciade todo um comportamento esttico e moral do artista. Na Arte ps-moderna, a idia, a atitude por trs do artista decisiva.14

    Ainda nesse texto, parafraseando a palavra de ordem trotskista, Pedrosa afirmaque o crtico vive, pois, em revoluo permanente. Em textos anteriores ele j enfatizaraa inevitabilidade de novos critrios crticos em face das mudanas de valores norteadoresda produo artstica,15 anunciando, assim, a incontornvel relao entre a ideia, aatitude e a obra.

    No contexto atual de diluio dos limites entre as artes e os gneros, de cdigosinditos e marcados pela diversidade de temas, tcnicas e matrias, essa relao tendea radicalizar-se com o eclipse da obra como dado autnomo, auto referencial, e comsua disseminao em todo o campo social. Processo que traz em si a interrogao sobreo conceito e as finalidades da arte, questes presentes na prpria externalidade dalinguagem artstica, e no mais por trs do artista, como anunciara Pedrosa. Da,talvez, a dificuldade de situar e avaliar criticamente a produo atual, sem descartar,contudo, o julgamento e a necessria mediao crtica entre o carter singular dasprodues e seu sentido coletivo: a presena do artista na esfera da crtica indica umaoutra relao com a avaliao judicativa.

    A mediao crtica do curador, agente que se afirma nos anos 60, participa de umquadro de redefinies de categorias artsticas, estticas e histricas e, assim, entre oconhecer e o julgar, funcionando, segundo Harald Szeemann, como um mediador deintenes. O trabalho curatorial combina, na esfera da visualidade, um frgil campo deassociaes entre as obras e o discurso, produzindo, como diz Cocchiarale, questes,quase sempre extra-estticas, temticas, que emprestem sentido, ainda que provisrio, disperso aparente em que nos encontramos.16

    Com a expanso, em termos mundiais, do meio de arte e a prevalncia do contextode apresentao, quer seja nas aes coletivas, exposies individuais ou temticas, hum sensvel deslocamento da circulao da crtica dos meios de comunicao para oscatlogos, livros monogrficos e revistas especializadas. Nas dcadas de 1950, 1960 emesmo nos anos 70, a crtica era exercida, essencialmente, em jornais % os quais, porquestes inerentes aos sistemas produtivos dos meios de comunicao, j no maispossuem igual significao social.

    Em recente entrevista com o artista Carlos Zilio para a revista Artes&Ensaios,perguntei-lhe sobre as mudanas, e se mudanas havia, de sua atitude em relao

    PEDROSA, 1968. Reed. in: AracyAmaral (Org.) Mrio Pedrosa: mun-do, homem, arte em crise. So Pau-lo: Perspectiva, 1975 e in: GlriaFerreira (Org.). op. cit.

    14

    PEDROSA, 1966. Reed. in: AracyAmaral (Org.) Mrio Pedrosa: mun-do, homem, arte em crise. So Pau-lo: Perspectiva, 1975 e in: GlriaFerreira (Org.). op. cit.

    15

    COCCHIARALE, 1997. Reed. in: Gl-ria Ferreira (org.). op. cit.

    16

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    I crtica, tendo em vista seu texto publicado na revista Malastres, em outubro de 1975, emque ele afirma:

    Se, tradicionalmente, o artista encontrava na mudez ou nosubjetivismo a melhor forma para situar o seu trabalho, deixando aocrtico a tarefa de conceitu-lo, hoje esta posio no encontra maissustentao. Uma atitude de ao substitui globalmente a decontemplao.17

    Esse texto fazia parte da proposta da Malasartes de convidar, a cada nmero, umartista para apresentar sua exposio, visual e conceitualmente, como contribuio transformao da leitura de arte vigente no pas. Zilio assinala, ainda, que sua exposiono pretendia ser o resultado da disposio de trabalhos nas paredes de uma sala: Elaobedece a um projeto de interveno crtica no circuito de arte e a partir deste ponto que o espectador deve procurar realizar sua leitura.

    Voltando questo para Arte&Ensaios, Zilio menciona sua relativa desvinculaode uma certa relao poltica no interior do sistema da arte e a passagem a umarelao com a crtica mais permeada pela amizade etc. do que uma relao que apontassepara uma crtica de juzo.

    O dado histrico a ser destacado o fato de na poca esse texto ter sido comentado,na crtica sua exposio, por Frederico Morais em O Globo, Roberto Pontual no Jornaldo Brasil, Jayme Mauricio na ltima Hora, e Ronaldo Brito no Opinio. Em entrevista aRonaldo Brito, por exemplo, Zilio se refere mudana de comportamento do artistarelacionada a seu estatuto social: uma dessas formas era a sua falta de viso crtica eraciocnio discursivo.18

    Ora, essa recepo crtica inimaginvel nos dias de hoje dada a forte diminuiode colunas de crticos nos jornais. O que indica mutaes na prpria crtica, mudanasdos meios, mas tambm do posicionamento do artista, com outra inscrio/invasonos domnios da crtica.

    As mutaes dos espaos de veiculao do discurso crtico so decorrentes, emltima instncia, das transformaes das relaes produtivas do sistema de arte. Dacrtica nos jornais voltada para ampla audincia, e com amplo poder, ou, mais prximode ns, acusao de Parania ou mistificao, de Monteiro Lobato em relao aAnita Malfatti, ou, ainda, crtica/divulgao, aos catlogos dirigidos sobretudo aopblico especializado, o prprio estatuto da crtica, sua relao com a produoartstica e com a histria da arte, que se tem transformado.

    Um dos sintomas apontados para a perda da importncia do discurso crtico essa acentuada restrio dos espaos regularmente a ele dedicados na imprensa dirigidaao grande pblico, hoje substitudos pelo jornalismo cultural, e a inflao das assessorias

    ZILIO, 1975.17

    Esses textos foram reeditados nocatlogo Carlos Zilio Arte e Poltica1966-1976. Rio de Janeiro: MAM,1997.

    18

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    Ide imprensa. Como afirma Rainer Rochlitz, mais do que a crtica literria oucinematogrfica, a crtica de arte um gnero ameaado, pelo fato de se tertransformado em promoo e de o pblico ter-se reduzido aos atores do mundo daarte:

    em nome do consenso implcito desse mundo que o crtico seexprime, e no em nome do grande pblico nem para esclarec-lo. o ponto de vista do artista que o crtico chamado a adotar, e no o doespectador surpreso ou decepcionado, conquistado ou revoltado.19

    Snia Saltzstein alerta igualmente para a perda do universo pblico e universalistada crtica e seu vnculo mais imediato s demandas profissionais, setorizadas ecorporativas, do universo contemporneo de arte.20

    Questes que, alm de ressaltarem a crise da crtica de arte, lanam interrogaessobre seus possveis papis hoje. De seus propsitos no s de informar, mas tambmde orientar o gosto do pblico em geral e do prprio artista, aos crticos militantes,sobretudo a partir do sculo XIX, contribuindo para a aceitao das obras inovadoras,ou ainda aos curadores atuais, presenciam-se certamente profundas transformaes dacrtica.

    Fundamental, no entanto, que nesse processo sejam levados em conta a crescenteintelectualizao do artista (no necessariamente de teor acadmico) e o questionamento,pelo vis conceitual, das bases morfolgicas e estilsticas da arte, da valorizao daforma como princpio interno, enfim, da obra de arte como objeto auto referencial eautnomo. A interrogao sobre o devir da arte como enunciao potica desloca ofazer artstico da produo de objetos para a constituio de uma rede de significaes,em que se agenciam dispositivos visuais e discursivos. Situao que exige da atividadecrtica no a renncia ao julgamento, mas a constituio de um espao de confronto deideias e disseminao de sentido em face das transformaes da arte, de seus novosprocessos e materializaes, talvez como diz Thierry de Duve, como testemunha.21

    Em um contexto em que a histria da arte ocidental, escrita a partir dos centroshegemnicos e com pretenses ao universalismo, se v questionada pelas produes erepresentaes extra ocidentais e pela desconfiana em relao a discursos totalizantese homogneos, os campos de interveno da crtica tornam-se ampliados e incertos. E,como signos de recepo, no deixam de nos interrogar sobre o universo de tessiturasentre o texto e a imagem que perpassa a histria da arte.

    Se as condies de percepo e apreciao do trabalho de arte so indissociveisdos discursos, convenes e regras implcitas ou explcitas que as regem, a pluralidadede pontos de vista e a singularidade de situaes abordadas em diferentes modalidadesde circulao da crtica estabelecem novos nexos entre os fatos artsticos e as descries,avaliaes e interpretaes. Uma hiptese a ser aventada a da inscrio da crtica

    ROCHLITZ, 2002.19

    SALSTEIN, 2003. Reed. In: FERREIRA,2006.

    20

    Ver: DUVE, 1995; DUVE et al., 1998;e OSRIO, 2005.

    21

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    I como um dos dados do conceito estourado de obra de arte, como colocutor,emprestando sentidos provisrios de sua relao com o coletivo. Crtica comopermanente acontecimento, cujos critrios esto sempre em questo. Ou talvez, comodizem os jovens crticos do branco do olho, exercida at com o corpo em busca deesgotar prvias formataes sem perder, contudo, a pretenso universalidade. Masuma universalidade que j se d em contexto de fragmentao do sujeito e, como afirmaValry, da inerente multiplicidade de acessos oferecida pela obras de arte.

    REFERNCIASBASBAUM, R. O artista como curador. In: Panorama da arte brasileira. So Paulo: MAM, 2001.COCCHIARALE, F. Crtica: a palavra em crise. In: Panorama da arte brasileira, So Paulo: MAM, 1997. reed.in: Glria Ferreira (org.). op. cit.DUVE, T. Du nom au nous. Paris: Dis Voir, 1995.DUVE, T.; FERREIRA, G.; CARON, M. Reinterpretar a modernidade. Entrevista de Thierry De Duve a GlriaFerreira e Muriel Caron. Arte&Ensaios, n 5, dezembro 1998.FERREIRA, G. (Org.). Crtica de arte no Brasil: Temticas contemporneas. Rio de Janeiro: Funarte, 2006.FRIED, M. Art and objecthood. Artforum, 1967.KLEIN, R. La forme et linteligible. Paris: Gallimard, 1970.LEIRNER, N. Qual o critrio? In: Jornal da Tarde, 27 de dezembro de 1967.MITCHELL, W. J. T. Ut Pictura Theoria: la peinture abstraite et la rpression du langage. Les Cahiers duMuse national dart moderne, n. 33, outono 1990.MOEGLIN-DELCROIX, A. Linspiration philosophique de lart contemporain. Revue desthtique,n. 43. Paris:Editions Jean-Paul Michel, 2003.NANCY, Jean-LuC. Jean-Luc Nancy/Chantal Pontbriand, uma conversa. Arte&Ensaios, n. 8, dezembro2001.NEWMAN, B. Resposta a Clement Greenberg. In: FERREIRA, G.; COTRIM, C. (Orgs.), Clement Greenberge o debate crtico. Rio de Janeiro: Funarte/Jorge Zahar Editor, 1997.OSRIO, L. C. Razes da crtica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.PEDROSA, M. Arte ambiental, arte ps-moderna, Hlio Oiticica. Correio da Manh, 26 junho 1966.Do porco empalhado aos critrios da crtica. In: Correio da Manh, Rio de Janeiro, 11 fev. 1968.POINSOT, Jean-Marc. Quand luvre a lieu. In: Parachute, maro-abril, 1987,ROCHLITZ, R. Feu la critique. Essais sur lart et la littrature. Bruxelas: La Lettre vole, 2002.SALSTEIN, S. Transformaes na esfera da crtica. Ars, v. 1, n.1, 2003. reed. in: G. Ferreira, (Org.). op. cit.

  • GLRIA FERREIRA, Debate crtico?! 4 1

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    GLRIA FERREIRADoutora em Histria da Arte pela Sorbonne. Professora colaboradora EBA/UFRJ, crtica de arte e curadora independente. Entresuas curadorias: Arte como Questo Anos 70, 2007; Luciano Fabro, 1997; Hlio Oiticica e Lygia Clark, 1986. Organizou diversoslivros, como Crtica de arte no Brasil: Temticas Contemporneas (Funarte, 2006); e como coorganizadora as coletneas ClementGreenberg e o debate crtico, 1997, e Escritos de artistas 1960/1970, 2006. Dirige a coleo Arte +, publicada pela Jorge ZaharEditor.