14 - situação dos detentos indígenas no estado de mato grosso do sul

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antropologia

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  • Tellus, ano 8, n. 14, p. 215-222, abr. 2008Campo Grande - MS

    Situao dos detentos indgenas noEstado de Mato Grosso do Sul

    Andra Flores

    O projeto intitulado Situao dos detentos indgenas noEstado de Mato Grosso do Sul foi realizado pelo Centro deTrabalho Indigenista (CTI) e Universidade Catlica Dom Bosco(UCDB) com recursos da Unio Europia (UE). O objetivo detal pesquisa foi fazer um levantamento de processos criminais,em andamento ou findos, em que os rus fossem indgenasdetentos. A anlise teve por objeto 103 processos. Aps o estudoprocessual, as equipes procederam ao levantamento de camponas comunidades indgenas dos envolvidos, bem como, visitasaos estabelecimentos prisionais para entrevistas com detentos ecom alguns profissionais que atuaram nos processos ou prises.

    Resultados obtidos:

    Natureza da deteno:

    - No informado = 04 %- Priso em flagrante = 63%- Priso preventiva = 28%- Proveniente de sentena condenatria =03%- Priso temporria =01%- Outro = 01%

    Lugar do crime:

    - Comunidade do detento = 78%- Em outra comunidade = 06%- Na cidade = 10%- Outro local = 05%- No informado = 01%

    Coordenadora do projeto;doutora em Direito das

    Relaes Sociais, pela PUC-SP, professora da graduao

    e da ps-graduao daUCDB. A equipe

    interdisciplinar que realizoua pesquisa de campo foi

    constituda por AndraFlores, Antnio Jac Brand,Ieda Marques, Lamartine dos

    Santos Ribeiro, LeviMarques, Maucir Pauletti e

    Ndia [email protected]

  • Andra FLORES. Situao dos detentos indgenas no Estado de...216

    Se foi reconhecido como indgena no processo

    - Sim = 97%- No = 3%

    Se aparece como indgena pelo rgo responsvel pela priso

    - Sim = 97%- No =3%

    Comentrio: Nos processos que analisamos, h, desde a fase policial, oapontamento do autor do fato como indgena, mas isto porque os crimesgeralmente so praticados dentro da aldeia. Sendo assim, a prpria auto-ridade indgena conduz o suposto autor do fato at a Delegacia de Polcia.Mas necessrio ressaltar que, nos documentos preenchidos nasdelegacias, como, por exemplo, a ficha de vida pregressa no h cam-po para o preenchimento desta informao.

    Testemunhas

    - No indgenas = 4%- Indgenas = 96%

    Vtima

    - Mesma etnia = 55%- Etnias distintas = 4%- No indgenas = 16%- No informado = 25%

    Obs.: h processos em que no h uma vtima (ex.: trfico de drogas)

    Comentrio: Os nmeros acima reforam os dados de que a grandemaioria dos crimes acontecem na aldeia envolvendo familiares e amigos.

    Acompanhamento

    - Defensoria Pblica = 67%- FUNAI = 22%- Advogado particular = 9%- Outro = 2% Conselho Tutelar (adolescente)

    Comentrio: Percebe-se uma deficincia da Funai, pois o Estado contacom poucos procuradores proporcionalmente ao nmero de indgenas.

  • Tellus, ano 7, n. 13, out. 2007 217

    Acompanhado por advogado nos interrogatrios

    - No = 6%- Sim, na fase policial = 6%- Sim, ambas as fases = 10%- Sim, somente fase judicial= 78%

    Comentrio: Em grande parte dos casos, o indgena conduzido at aautoridade policial por chefes da aldeia. Embora conste na maior partedos interrogatrios que o indgena dispensa a presena de advogado, oque se sabe que a eles no oportunizado o acompanhamento de umprofissional.

    Exemplo 1: Relatrio de Processo

    Foro de Dourados3a Vara CriminalCarta de guiaEstuproRu: Arnaldo RibeiroVtima: Daiane Quevedo Moreira

    O ru foi denunciado por ter, no dia 19/4/02, por volta dasduas horas, na Aldeia Amambai, constrangido a vtima, DaianeQuevedo Moreira, de apenas nove anos de idade, a manter conjunocarnal, mediante violncia e grave ameaa.

    No interrogatrio realizado na polcia, quando da priso emflagrante do ru, constou que o interrogando dispensa a presena deAdvogado. No interrogatrio realizado em juzo, constou que Temadvogado na pessoa do Dr. Luiz Cesar de Azambuja Martins, que dever serintimado para apresentar defesa prvia no prazo legal. Portanto, o ru nofoi acompanhado em nenhum dos momentos em que foi ouvido.

    A defesa tcnica do acusado pugnou pela nulidade do interro-gatrio do ru, mas o juiz, Dr. Albino Coimbra Neto, no acatou apreliminar alegando que os fatos narrados na denncia foram com-provados mediante outras provas, visto que o acusado negou a auto-ria dos fatos, argumentando que: sob qualquer ngulo no se depreendeprejuzo defesa pela inobservncia formalidade legal de ter sido colhido odepoimento do ru (indgena) sem a presena de curador.

    O ru foi condenado irrecorrivelmente a oito anos e nove mesesde recluso em regime fechado, mas atualmente encontra-se cumprin-do a pena em regime semi-aberto.

  • Andra FLORES. Situao dos detentos indgenas no Estado de...218

    H controvrsias quanto autoria do crime?

    - Ru confessou = 23%- Ru confessou somente na fase policial = 35%- Ru confessou somente em juzo = 6%- Ru confessou em ambas as fases = 31%- Ru negou a autoria = 5%

    Comentrios: Em razo de no haver acompanhamento de um advogadoou Procurador da Funai na fase policial, o indgena confessa em seuinterrogatrio, mas instrudo por um profissional na fase judicial mudaa verso, apresentando novos fatos.

    Situao Processual:

    - Condenado, em livramento condicional = 4%- Condenado, cumprindo pena no fechado = 45%- Condenado, cumprindo pena no aberto = 6%- Condenado, cumprindo pena no semi-aberto = 12%- Processado e preso provisoriamente = 8%- Processado e solto = 10%- Preso e aguardando jri = 15%

    Comentrio: Tendo em vista que a maioria dos crimes praticados soconsiderados hediondos, o regime de cumprimento que se impe o fe-chado.

    Crimes/Tipificaes

    Trfico de Drogas (art. 12 da Lei 6.368/76 ou art. 33 da lei 11.343/06) = 11%Porte de arma (art. 14 da Lei 10.826/03) = 1%Homicdio (art. 121) = 37%Homicdio tentado (art. 121 c.c art. 14, II) = 3%Leso corporal (art. 129) = 4%Ameaa (art. 147) = 1%Furto (art. 155) = 3%Roubo (art. 157) = 6%Ocultao de cadver (art. 211) = 2%Estupro (Art. 213) = 16%Atentado violento ao pudor (art. 214) = 7%Crime sexual por presuno de violncia (Art. 213 ou Art.214 c.cart. 224) = 4%

  • Tellus, ano 7, n. 13, out. 2007 219

    Crime sexual com aumento de pena por ser parente da vtima (Art. 213ou Art. 214 c.c Art. 226) = 04% (Somatria dos crimes sexuais = 31%)Falso testemunho (art. 344) = 1%

    Comentrio: Destacam-se os crimes sexuais e homicdios. Em entrevistascom pessoas da comunidade tivemos a informao de que outros crimestambm so praticados nas aldeias, mas tais delitos so resolvidos inter-namente usando-se o poder de polcia dos chefes de aldeia. Destaca-seum caso especfico em que se demonstra a atuao da autoridadeindgena.

    Exemplo 2: Relatrio de Processo

    Foro de Ponta PorVara CriminalTentativa de HomicdioRu: Osvaldo RibeiroVtima: Leia da Silva

    O ru foi denunciado por tentativa de homicdio simples, porter na data de 30 de outubro de 2006, na Aldeia Marangatu, provocadoleses na sua esposa.

    O Delegado de Polcia representa pela decretao da priso pre-ventiva do autor do fato, o que foi deferido pelo juiz. Diante das in-meras e reiteradas agresses que o ru praticou contra sua esposa, oConselho Disciplinar e Representante da Comunidade Local assim semanifestou: Vem por este levar ao conhecimento do Sr. Delegado da PoliciaCivil de Antonio Joo-MS que a partir de hoje entregamos em suas mos, ouseja, para que seja punido nas leis do brancos o indgena OSVALDO RIBEIROa qual j foi autuado por furtos por duas vezes e por espancar a sua cnjuge,mas que conforme as nossas culturas toleraramos por trs vezes, mas agoraque ele voltou a espancar a sua esposa, cuja ela a recm ganhou nen pois nstememos que se continuar com ele correremos o risco dele acaba matando a mee a criana. Pois sabemos muito bem que agora existe a lei Maria Penha lei queprotege as nossas mulheres e assim esperamos que o acusado seja enquadradonesta lei. Esperamos assim contarmos com a sua ajuda.

    No recebimento da denncia o juiz determinou que fosse notifi-cado o Procurador da Funai para o acompanhamento do acusado,mas diante da ausncia deste no interrogatrio, foi acompanhado noato pela Defensoria Pblica. O processo est em andamento, na fasede instruo, o ru se encontra preso.

  • Andra FLORES. Situao dos detentos indgenas no Estado de...220

    H evidncias de bebidas alcolicas

    - No = 42%- Autor alcoolizado = 21%- Vitima alcoolizado = 1%- Autor e vtima alcoolizados = 36%

    Comentrio: Percebe-se a grande influncia do uso de bebidas alcolicasna prtica dos crimes que acontecem em festas ou dentro de casa e en-volvem pessoas da mesma famlia ou amigos.

    Presena de intrprete ou outro meio eficaz p/ compreenso. (art.12 da 169 (...) Medidas devero ser tomadas para garantir que osmembros desses povos possam compreender e se fazerem compre-ender em processos legais, proporcionando-lhes, se necessrio,intrpretes ou outros meios eficazes)

    - Sim = 22%- No = 78%

    Comentrio: Cumpre ressaltar que, em parte dos processos, constata-mos a presena de um intrprete, mas tal pessoa tratava-se do prprioindgena que havia conduzido o indgena infrator at a autoridade p-blica. Portanto, tratava-se de um intrprete parcial que poderia influirna interpretao dos fatos. Tambm vlido apontar que em alguns ca-sos a figura do intrprete dispensada sob o argumento de que o indge-na fala a lngua portuguesa. Ocorre que falar a lngua portuguesa nosignifica que o indgena consiga numa situao de estresse como uminterrogatrio entender e se fazer entender. Destaca-se abaixo o relatrioproduzido na anlise de um processo em especial:

    Exemplo 3: Relatrio de Processo

    Foro de BataguassuVara nicaGuia de RecolhimentoHomicdio qualificadoR: Rosalina VasquesVtima: Iolanda Vasques

    A r foi denunciada por ter, no dia 29 de novembro de 2002, porvolta das 21 horas, na Aldeia Amamba, desferido contra a vtima

  • Tellus, ano 7, n. 13, out. 2007 221

    Iolanda Vasques, sua irm, um golpe de faco que atingiu seu pesco-o, causando-lhe a morte.

    Interessante ressaltar que a r foi ouvida na polcia sem a pre-sena de intrprete. Ao ser interrogada em juzo, a juza, Dra. LucianeBunasso de Oliveira, percebeu que a acusada no fala portugus, afir-mando: no foi possvel compreender o que esta dizia, tendo afirmado quefala guarani, motivo pelo qual redesignou a audincia para que fossenomeado um intrprete. Posteriormente, foi ouvida em juzo na pre-sena de um intrprete. Na sentena de pronncia, o juiz, Dr. ThiagoNagasawa Tanaka, alega que a r fala bem a lngua portuguesa, oque demonstra a sua integrao a nossa cultura, baseando-se nodepoimento de uma testemunha. Na sesso do Tribunal do Jri a r foiouvida tambm atravs de intrprete.

    Ao ser pedida a progresso para o regime semi-aberto, a CTC(Comisso Tcnica de Classificao) deu parecer favorvel levandoem considerao o fato de ser indgena: Diante da problemtica culturalque envolve o povo indgena, acredita-se que o retorno sua aldeia torna-se asada mais vivel avaliada, j que l residem seus familiares e poder retomaratividade produtiva. Todavia, a orientao profissional torna-se necessria,para que a reintegrao social possa ocorrer de forma mais facilitada.

    A r foi condenada a 13 anos e oito meses de recluso em regimefechado. A defesa foi patrocinada pelo Procurador da Funai, Dr. LuizCesar Azambuja. Atualmente cumpre pena em regime semi-aberto.

    Preferncia ao no encarceramento aparece na definio da pena .(art. 10 da 169 - Dever-se- dar preferncia a tipos de punio queno o encarceramento)

    - Sim = 1%- No = 99%

    Comentrio: O que se percebeu da anlise do material colhido um gran-de desconhecimento por parte dos operadores do direito quanto s nor-mas da Conveno 169 da OIT. Em apenas uma sentena o juiz fixouregime de semi-liberdade para que o indgena cumprisse a pena, pres-tando servio num Posto da Funai.

    Se levou em conta as formas de punir que acontecem na comunida-de, (art. 9 da 169 - Desde que compatveis com o sistema jurdiconacional e com os direitos humanos internacionais reconhecidos, de-vero ser respeitadas as medidas a que tradicionalmente recorremesses povos para punir delitos cometidos por seus membros. Nessescasos, autoridades e tribunais solicitados a se pronunciarem sobrequestes penais devero levar em conta os costumes desses povos)

  • Andra FLORES. Situao dos detentos indgenas no Estado de...222

    - Sim =1%- No = 99%- Alguns processos ainda no foram concludos, motivo pelo qual

    no tem sentena.

    Comentrio: O que se percebeu da anlise do material colhido um gran-de desconhecimento por parte dos operadores do direito quanto s nor-mas da Conveno 169 da OIT. Sendo assim, muitas vezes, a defesasequer pleiteia que esta seja aplicada e o processo no colhe tais informa-es para que posteriormente o juiz as possa levar em considerao nomomento da aplicao da pena.

    Houve solicitao de percia?

    - No = 67%- Sim, sendo:

    Psicolgica = 17%Psiquitrica = 4%Antropolgica = 12%

    Comentrio: Em grande parte dos processos analisados no h solicitaode percia. Em alguns, embora a defesa tenha pleiteado, o juiz entendeuser desnecessria a realizao dos exames, por entender ser evidente odito aculturamento do indgena.

    Recebido em 11 de fevereiro de 2008.Aprovado para publicao em 18 de fevereiro de 2008.