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Modos de subjetivação

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    TRANSFORMAES INDGENAS

    os regimes de subjetivao amerndios prova da

    histria

    PROJETO PRONEX

    NUTI

    RIO DE JANEIRO / FLORIANPOLISSETEMBRO DE 2003

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    TRANSFORMAES INDGENAS

    os regimes de subjetivao amerndios prova da

    histria

    PROJETO PRONEX

    La verit est que la diffrence va diffrant, que le changement vachangeant et quen se donnant ainsi pour but eux-mmes, le

    changement et la diffrence attestent leur caractre ncessaire etabsolu; mais il nest ni ne saurait tre prouv que la diffrence et le

    changement augmentent dans le monde ou diminuent.

    Gabriel Tarde

    RIO DE JANEIRO / FLORIANPOLISSETEMBRO DE 2003

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    SUMRIO

    1. METAS E TEMAS ......................................................................................... 5

    1.1. Pano de fundo................................................................................. 71.2. Identidade, relao; alteridade, alterao............................................151.3. Agncia, mudana; estrutura, histria ................................................28

    2. APROPRIAO E ALTERAO ...................................................................... 40

    2.1. Transformaes rituais: a contra-inveno do virtual.............................422.2. Insumos e consumo: dinheiro e mercadoria nas economias indgenas ......442.3. Alm do material e do imaterial: propriedade intelectual........................492.4. Elites e lideranas ...........................................................................51

    3. DIFERENCIAO E MEDIAO ..................................................................... 54

    3.1. Segmentao: constituio de coletivos singulares e plurais ...................543.2. Formas de aparentamento: relaes intra-especficas e interespecficas....573.3. ndios na cidade e cidades indgenas ..................................................593.4. A purificao do ndio e a proliferao dos genricos .............................62

    4. TRADIO E TRADUO............................................................................. 64

    4.1. Tradies e tradicionalismo...............................................................644.2. Misses e converses ......................................................................664.3. Escola e modos de transmisso do conhecimento .................................694.4. Escrita e traduo ...........................................................................71

    5. AS PESQUISAS UMA A UMA ......................................................................... 75

    5.1. Escopo..........................................................................................755.2. Distribuio das pesquisas................................................................79

    5.3. Resumo das pesquisas por regio ......................................................80

    6. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS.................................................................. 99

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    1. Introduo: metas e temas

    Este um projeto de pesquisa em antropologia fundamental. Ele versa sobre a

    dinmica transformacional caracterstica dos coletivos indgenas sul-americanos,

    propondo-se a estudar as atualizaes diferenciais desta dinmica em uma

    variedade de processos sociais concretos. Nossa ambio estender a novos

    objetos as hipteses, conceitos e modelos que temos desenvolvido, em concerto

    com pesquisadores de outras instituies no pas e no exterior, no contexto de uma

    descrio dos regimes sociocsmicos amerndios. Esses instrumentos intelectuais,

    forjados ao longo dos ltimos dez ou doze anos, foram responsveis por avanostericos importantes, que aumentaram significativamente a influncia da etnologia

    americanista, em especial aquela feita no Brasil, dentro do campo antropolgico

    mundial. Esperamos, com o presente programa, vir a consolidar, atualizar e ampliar

    tal presena.

    A eleio dos temas de pesquisa, que vo descritos nos captulos seguintes deste

    projeto, tem por objetivo no apenas testar a fecundidade heurstica dos referidos

    instrumentos na compreenso de novas situaes e novos fenmenos, histrica e

    politicamente pregnantes, como tambm o de refletir sobre certas noes que so

    hoje aceitas como moeda corrente na antropologia. Assim, nosso intento realizar

    uma interveno conceitual sobre as problemticas da identidade, da agnciae

    da mudana, a partir, respectivamente, das idias referentes alterao,

    subjetivao e transformao pressupostas nas prticas indgenas de sentido.

    Trata-se, em outras palavras, de utilizar os conhecimentos j acumulados sobre

    trs dimenses bsicas da economia sociocsmica, ou cosmopraxis, nativa as

    economias da preenso relacional, da subjetivao perspectivista e da metamorfose

    mitopoitica para levar a termo uma crtica etnograficamente motivada de certas

    palavras-de-ordem em circulao no campo disciplinar, palavras essas que nos

    parecem tributrias de uma concepo formalista, taxonomista e individualista

    em suma, modernista da socialidade.

    Os resultados j obtidos pelo presente grupo de pesquisadores, no que concerne a

    essas trs dimenses mencionadas, esto expostos sucintamente ao longo do texto e

    referidos na Bibliografia ao final do projeto. Recordemos apenas, desde j, que a

    economia da preenso relacional, fundamento de uma sofisticada sociologia indgena

    da alteridade, foi analisada por ns em uma srie de trabalhos sobre seus

    esquematismos principais: a afinidade potencial (sistemas de parentesco,

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    classificaes sociopolticas) e a predao canibal (prticas guerreiras e xamnicas,

    doutrinas escatolgicas). A economia da subjetivao associada a esta sociologia foi

    delineada nos estudos sobre a deixiscosmolgica amerndia, em seu duplo aspecto

    epistmico (perspectivismo) e ontolgico (multinaturalismo); esses estudos

    conduziram, inter alia,a uma redefinio em profundidade das noes de natureza

    e cultura no contexto amerndio. O complexo da metamorfose mtico-xamnica, por

    fim, comeou a ser explorado em ensaios sobre a transio do virtual ao atual no

    cosmos indgena (discretizao extensiva do contnuo intensivo mtico, exteriorizao

    e limitao da diferena originria pura), sobre as condies intrapessoais da

    metamorfose interespecfica (conceitos de corpo e de alma, carcatersticas de

    fractalidade e alteridade internas), e sobre os agentes e mecanismos de traduo-

    comutao de perspectivas csmicas (xamanismo, pragmtica ritual). Voltamos a

    essas questes mais abaixo.

    O escopo temtico do projeto inclui objetos abordados nessas pesquisas anteriores,

    como as questes de morfologia social (segmentao e segmentaridade), ou o que

    se convencionou chamar de relaes de parentesco, ou ainda a mitologia, o

    xamanismo, ou as poticas nativas; mas nossa proposta articula organicamente

    esses temas a outros, que foram e so tradicionalmente estudados dentro de

    quadros tericos muito diversos do aqui proposto, como a monetarizao das

    economias indgenas, a emergncia de formas de chefia associadas aos processos

    intertnicos, a migrao selva-cidade, a converso religiosa, a escolarizao, as

    polticas metaculturais da identidade, e assim por diante. Nossa convico

    fundamental que a abordagem desenvolvida no estudo de temas clssicos como

    o parentesco, o ritual ou o xamanismo no s pode, como deve ser aplicada aos

    novos temas do dinheiro e do consumo, da escola e da escrita, da misso e da

    converso, da poltica e da histria, que tero tudo a ganhar conceitualmente com

    tal incorporao. Reciprocamente, essa extenso importante para que possamos

    efetivamente superar, no plano dos resultados e no apenas no dos princpios (o

    que j no seria pouco), vrias dualidades histrica e teoricamente invalidadas,

    como entre outras aquela que divide as relaes sociais constitutivas dos

    coletivos indgenas em internas e externas, ou a que classifica esses coletivos em

    mais ou menos tradicionais e aculturados, ou a que distingue entre relaes

    ecolgicas (natureza) e sociais (cultura), ou ainda aquela que afirma a excluso

    mtua entre as perspectivas da agncia (ou do processo) e da estrutura.

    O movimento de incluso conceitual aqui proposto consequncia de mudanas

    sobrevindas em nosso campo disciplinar nas ltimas dcadas. A seo a seguirdedica-lhes um comentrio.

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    1.1. Pano de fundo

    Os ltimos trinta e cinco anos, ao mesmo tempo em que assistiram a um enorme

    avano quantitativo e qualitativo nos estudos de etnologia indgena, viram tambm

    uma diferenciao da linguagem at ento comum aos etnlogos e aos outros

    cientistas sociais do pas. Ainda que sendo uma consequncia da institucionalizao

    da ps-graduao, da acumulao de conhecimentos e da expanso do contingente

    de pesquisadores, fatores que conduzem especializao, esse afastamento foi

    sobretudo o resultado de uma mudana de horizonte na etnologia brasileira.

    proporo que se comeou a dedicar uma ateno mais detida s instituies e

    organizaes sociais indgenas, que se passaram a adotar protocolos mais rigorosos

    de pesquisa, com o aprendizado das lnguas nativas e estadas mais prolongadas no

    campo, e que o intercmbio acadmico internacional se intensificou, os marcos de

    inscrio do objeto se deslocaram. As conexes histricas e estruturais entre os

    inmeros coletivos autctones, assim como as relaes entre estes e seus anlogos

    morfolgicos de outras partes do mundo, passaram a ocupar um lugar de destaque

    na reflexo etnolgica, reduzindo em muito a hegemonia das abordagens histrico-

    sociolgicas que viam os ndios essencialmente como um captulo, findo ou menor,

    da epopia da nacionalidade, isto , como populaes cujo interesse antropolgico

    se resumia s suas contribuies cultura brasileira ou a seu papel de smbolo,

    passado ou perene, dos processos de sujeio poltico-econmica que se

    exprimiriam de modo mais moderno na dinmica da luta de classes de nosso

    capitalismo autoritrio.

    Se o deslocamento acima mencionado, que comeou no final dos anos 60,

    desembocou em um modo de investigao distante das preocupaes

    caractersticas da ideologia do nation-building e com isso afastou boa parte da

    etnologia das demais cincias sociais, quase sempre entretidas com temas

    brasileiros , contribuiu tambm para um divrcio entre duas linhas de pesquisapresentes na etnologia universitria das dcadas anteriores, e que at ento

    haviam convivido em harmonia, praticadas sucessiva ou simultaneamente pelos

    mesmos pesquisadores: a linha dos estudos preocupados em descrever

    etnograficamente as formas socioculturais nativas, que mais tarde seria rotulada de

    etnologia clssica; e a linha dos estudos de aculturao ou mudana social, mais

    tarde associada noo-emblema de contato intertnico e a seus muitos

    derivados e sucedneos. Essa fratura, que chegou, entre 1975 e 1985

    aproximadamente, a definir algo como linhagens antagonistas os etnlogos dos

    ndios puros ou isolados versus os dos ndios aculturados ou camponeses ,

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    continua em vigor em alguns centros do pas, embora com sua significncia terica

    completamente esvaziada, em vista das mudanas ocorridas a partir dos anos 80,

    tanto na teoria e na prtica antropolgicas como na condio poltica dos povos

    indgenas nos cenrios nacional e internacional, mudanas que dissolveram asoposies entre tradio e mudana, ndios puros e ndios aculturados.

    Mas essa dissoluo no tomou a direo que se poderia imaginar porque o que

    se dissolveu era, justamente, imaginrio. Assim, depois de anos de polmicas

    candentes, em que os partidrios da sociologia do contato insistiam que a

    condio camponesa (com opo de proletarizao) era o devir histrico inexorvel

    e portanto a verdade das sociedades indgenas, e que a descrio destas

    sociedades como entidades socioculturais autnomas derivava de uma postura

    naturalizada e a-histrica, eis que de repente os ndios comeam a reivindicar, e

    terminam por obter, o reconhecimento constitucional de um estatuto diferenciado

    permanente dentro da chamada comunho nacional; eis que eles implementam

    ambiciosos projetos de retradicionalizao marcados por um autonomismo

    culturalista que, por instrumentalista e etnicizante, no menos primordialista

    nem menos naturalizante; eis, por fim, que algumas comunidades rurais situadas

    nas reas mais arquetipicamente camponesas do pas se pem a reassumir sua

    condio indgena, em um processo de transfigurao tnicaque o exato inverso

    daquele anunciado por Darcy Ribeiro (1970) em profecia acreditada, com um

    retoque ou outro, pelas geraes subsequentes de tericos do contato.

    At a dcada de 1970, os sistemas sociais e cosmolgicos da Amrica do Sul

    tropical eram mal conhecidos e pior descritos. Este estado de coisas resultava da

    insuficincia de etnografias confiveis, e da conseqente ausncia de modelos

    analticos adequados compreenso da realidade indgena.1O instrumental terico

    da disciplina havia sido, no essencial, forjado em dilogo com outras provncias

    etnogrficas como a frica e a Austrlia , adequando-se mal descrio dassociedades amerndias.

    Dentre as questes cruciais para a etnologia da regio, encontrava-se a prpria

    definio das unidades sociais relevantes para a anlise sociolgica. Formadas por

    1Para se ter uma idia, at a publicao da monografia de Maybury-Lewis sobre os Xavante(1967), a descrio teoricamente mais sofisticada que se dispunha sobre uma sociedadeindgena situada no Brasil consistia nas duas magistrais teses de Florestan Fernandes sobreos Tupinamb, baseadas em uma etnografia velha de quatro sculos e vazadas em umalinguagem analtica de difcil deglutio nos anos 70. Do ponto de vista descritivo, os tra-balhos de Nimuendaju eram evidentemente um marco, mas justamente por serem anmalosem sua alta qualidade etnogrfica. Sua influncia sobre Lvi-Strauss e mais tarde sobre ogrupo de Maybury-Lewis do conhecimento geral.

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    uma multiplicidade de comunidades locais instveis e fluidas, tecendo relaes

    multifacetadas entre si e inseridos em sistemas abertos, sem fronteiras tnicas

    claramente demarcadas, as socialidades amaznicas resistiam s interpretaes

    situadas no marco funcionalista, que pressupe unidades sociais discretas,totalidades orgnicas internamente articuladas, depositrias de necessidades e

    funes que em ltima instncia visam a autoperpetuao do grupo. Tal

    paradigma aplicava-se mal ao estudo da realidade etnogrfica sul-americana, e

    conduziu a descries pela negativa, pondo em relevo antes as carncias

    sobretudo, a falta de uma morfologia de grupos segmentares capazes de organizar

    a transmisso de bens e direitos do que seus aspectos positivos. A teoria

    fortesiana dos grupos de descendncia unilinear (Fortes 1953, 1969) encontrava

    assim um obstculo de monta no cognatismo amaznico, que estaria situado, porassim dizer, aqum do modelo segmentar de organizao social que dominou o

    imaginrio antropolgico sobre as sociedades primitivas.

    Boa parte do esforo terico na etnologia americanista, entre os anos 70 e meados

    dos 80, concentrou-se na construo de uma linguagem descritiva e de

    instrumentos analticos que pudessem servir caracterizao dos princpios

    organizacionais vigentes na Amrica tropical. Ora, tais princpios no se

    encontravam apenas na sociologia, mas, sobretudo, na cosmologia. Ou antes, eles

    s eram discernveis a partir de uma concepo segundo a qual sociologia e

    cosmologia seriam dimenses inseparveis de uma mesma realidade, e, portanto,

    passveis de uma descrio uniforme. Isso conduziu a um notvel salto quantitativo

    e qualitativo na anlise do que se convencionou chamar sociocosmologiasnativas

    (por exemplo, entre muitas, as etnografias de C. Hugh-Jones 1979, Seeger 1981,

    Albert 1985, Crocker 1985, Viveiros de Castro 1986, e Descola 1986).

    Tal avano foi precedido e possibilitado pela consolidao de uma abordagem

    estruturalista ou mais exatamente, britnico-estruturalista das sociologiasnativas. A obra de Lvi-Strauss est na origem das questes formuladas tanto

    pelos pesquisadores do projeto HarvardBrasil Central (dedicado aos estudos dos

    povos de lngua j-bororo e coordenado por Maybury-Lewis [org. 1979]), como na

    obra inaugural de Peter Rivire sobre os Trio (1969). Maybury-Lewis e Rivire

    foram, ambos, alunos de Rodney Needham, um dos principais divulgadores de Lvi-

    Strauss no cenrio antropolgico britnico. Ainda que de modos diferentes, eles

    trouxeram o pensamento lvi-straussiano, aclimatado tradio britnica, para o

    primeiro plano da etnologia regional. Juntamente com Joanna Overing Kaplan

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    (1975; 1977), Rivire e Maybury-Lewis formularam as questes e definiram o estilo

    que iriam dominar o americanismo nos anos seguintes.

    A introduo do paradigma estruturalista da aliana na Amaznia e adjacncias

    (mais geralmente, nas chamadas terras baixas da Amrica do Sul) implicou,

    sobretudo, um novo procedimento metodolgico, atravs da adoo de uma

    perspectiva resolutamente relacional. Adotou-se o clebre mote lvi-straussiano,

    inspirado na fonologia estrutural, sobre a inverso da dominncia entre termos e

    relaes, como forma de escapar s tentaes substantivistas (Taylor 1985) do

    funcionalismo. Foi justamente esse deslocamento que permitiu pr em primeiro

    plano os espaos de mediao, destacando a complexa dialtica entre exterioridade

    e interioridade, alteridade e identidade, que marca as diversas sociocosmologias da

    regio. Esta talvez tenha sido a contribuio mais efetiva do pensamento estrutural

    compreenso da sociologia amaznica; ela permitiu escapar confuso entre

    local e global entenda-se por isso a assimilao redutora das socialidades

    indgenas s suas instncias locais, aldeias ou estabelecimentos , pondo em foco

    os nexos constitutivos de redes sociais mais amplas. Tais nexos, como j apontara

    Lvi-Strauss muito tempo atrs (1943), eram operados na Amrica do Sul tropical

    pelas categorias de afinidade, em particular aquelas de afinidade simtrica entre

    homens.2

    O estruturalismo permitiu, portanto, mais que abrir algumas janelas na mnada

    local amaznica, transform-la integralmente, por assim dizer, em um sistema de

    janelas, ao deslocar a perspectiva para as interfaces e mediaes entre planos

    sociocsmicos distintos. Certas evidncias empricas, ademais, colocaram em xeque

    o privilgio das instncias locais para a comprenso da forma social amerndia. As

    objees surgiram, em primeiro lugar, a partir de anlises diacrnicas dos mecanis-

    mos de constituio e fragmentao das aldeias, que punham em relevo seu

    carter provisrio e instvel, bem como sua dinmica poltica multifacetada(Overing Kaplan 1975). Em segundo lugar, elas resultaram de uma maior ateno

    aos sistemas regionais e s redes de relaes supralocais. significativo que

    muitas das evidncias contrrias ao entendimento anterior emergiram de estudos

    sobre povos e regies onde esses sistemas ainda esto operantes Alto Rio Negro,

    Jvaro, Yanomami ou onde h informaes histricas sobre como operavam

    Tupinamb, Munduruku. Esses casos privilegiados conduziram a um terceiro

    2Para uma elaborao desse tema, ver Viveiros de Castro (1993b, 1995 e 1998a), Viveirosde Castro & Fausto 1993, e Taylor 1998, entre outros. Sobre a contribuio doestruturalismo ao americanismo, ver Coelho de Souza e Fausto no prelo.

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    movimento: como a maioria dos sistemas locais e regionais se articulavam no

    apenas atravs de relaes de aliana e troca de bens, mas por meio de prticas

    guerreiras, envolvendo canibalismo e captura de trofus (caa de cabeas, p.ex.),

    ps-se a questo terica intrigante como dar conta de sistemas que pareciam seestruturar atravs de uma relao que, aos nossos olhos, era a prpria negao da

    socialidade? Em outras palavras, como pensar a guerra como uma relao positiva,

    sociogentica, e no como fruto de uma decomposio do vnculo social?

    Uma vez que a guerra aparecia, assim, ao lado do idioma da afinidade, como um

    dispositivo crucial na estruturao dos nexos sociais mais amplos dos sistemas

    nativos, ela foi objeto de intenso investimento descritivo (Menget 1985; Albert

    1985; Taylor 1985, 1993a, 2000; Chaumeil 1985; Viveiros de Castro 1986, 1993a,

    1996a; Combs & Saignes 1991; Vilaa 1992; Verswijver 1992; Descola 1993a,

    1993b; Lima 1995; Teixeira-Pinto 1997; Karadimas 1997; Surrals 1999; Fausto

    1997; 1999a, 1999b, 2001a). Ao mesmo tempo, o foco sobre a guerra como

    dispositivo permitiu sua abstrao enquanto prtica emprica e a tematizao da

    predao como uma forma relacional extremamente produtiva em diversos

    contextos da vida nativa.

    O foco analtico recaiu tambm sobre outro dispositivo de articulao entre interior

    e exterior: o xamanismo, instrumento de mediao entre humanos e no-humanosenquanto, ambos, sujeitos dotados de perspectiva. Essa temtica trouxe para o

    primeiro plano as relaes entre os humanos e o mundo natural e sobrenatural,

    conduzindo a uma redefinio dessas categorias, em particular da oposio entre

    natureza e cultura (Descola 1992, 1996; Viveiros de Castro 1996b, 2002a; Lima

    1995, 1999). Trouxe tambm o problema clssico do animismo para o interior da

    teoria estrutural, agora com um novo estatuto, pois no se tratava mais de afirmar,

    contra Lvi-Bruhl, que a atitude analtico-classificatria caracteriza tambm o

    pensamento selvagem (Lvi-Strauss 1962a), mas sim de apontar as diferenasentre duas ontologias: uma fundada na oposio estanque e definitiva entre sujeito

    e objeto, e outra na qual sujeito e objeto so posies relacionais e, portanto,

    intercambiveis (ver Viveiros de Castro 1996a,b; Vilaa 1992, 1996a, 1996b, 1998,

    1999, 2000; Fausto 1999, 2001a, 2002b).

    A maioria dos pesquisadores-doutores do presente projeto iniciou sua participao

    nesse esforo emprico e terico no quadro de um projeto do PPGAS/Museu Nacional

    intitulado Etnografia e Modelos Analticos: Tipos de estrutura Social na Amaznia

    Meridional, coordenado por E. Viveiros de Castro e financiado pela FINEP de 1985 aaproximadamente 1992. Este projeto resultou em um nmero de dissertaes de

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    mestrado e teses de doutorado, seguidas sem interrupo por outras, conduzidas ou

    finalizadas aps o trmino do apoio direto da FINEP. Entre outros, cabe mencionar os

    trabalhos (vrios deles premiados pela ANPOCS ou ABA) de: Coelho de Souza 1992,

    2002; Fausto 1991, 1997; Gonalves 1988, 2001; Gordon 2003; Lasmar 1996,

    2002; Lima 1986, 1995; Silva 1993; Teixeira-Pinto 1989, 1997; Vilaa 1992, 1996b.

    O projeto Etnografia e Modelos Analticos visava a ampliao do corpusetnogrfico

    sul-americano por meio da descrio de sociedades pouco conhecidas da Amaznia,

    dentre as quais os Juruna (Tupi), Wari (Txapakura), Arara (Carib), Parakan (Tupi-

    Guarani), Waimiri-Atroari (Carib) e Mura-Pirah (Mura). A formulao dos problemas

    de pesquisa inspirava-se em etnografias paradigmticas, ento recm-produzidas,

    que definiam um novo horizonte terico-analtico para a etnologia sul-americana, por

    meio da nfase na aliana matrimonial e na afinidade como articuladores de amplos

    sistemas sociocosmolgicos. Os dois principais focos temticos do projeto eram asestruturas de parentesco e os regimes cosmolgicos globais das sociedades

    indgenas. No se tratava, como dissemos, de tomar estas dimenses

    separadamente, mas de inseri-las em uma mesma descrio. A essncia do

    problema era como construir um modelo terico capaz de operar sem a separao

    entre o simblico e o real, permitindo que se descrevessem as redes sociais

    empricas juntamente com o conjunto de relaes cosmolgicas.

    Os resultados tericos do projeto, que se somaram contribuio propriamente

    descritiva e etnogrfica, foram muito significativos. Em primeiro lugar, produziu-seuma nova conceitualizao do parentesco amerndio, que aliava rigor formal

    sensibilidade etnogrfica. Os estudos sobre os sistemas dravidianos amaznicos, que

    levaram a uma reavaliao do papel poltico e simblico da afinidade como categoria-

    chave das sociocosmologias nativas, foram aqui de particular importncia (ver

    Viveiros de Castro 1993b, 1998a, 2001; Viveiros de Castro e Fausto 1993; Silva

    1995; Fausto 1995; Coelho de Souza 1995).

    Em segundo lugar, o projeto produziu uma srie de novas formulaes sobre os

    fenmenos da guerra e do canibalismo, tomados como fatos sociais positivos que

    articulam, emprica e simbolicamente, unidades sociais e categorias cosmolgicas.

    Tais resultados foram elaborados nas teses de Vilaa (1992; 1996b), Lima (1995),

    Teixeira-Pinto (1997) e Fausto (1997), bem como em artigos em livros e revistas

    especializadas (Viveiros de Castro 1996a; Fausto 1992, 1999a, 1999b e 2001a;

    Vilaa 1998, 2000e, 2000b).

    Por fim, o projeto permitiu a elaborao de uma nova teoria sobre a filosofia

    xamnica, conhecida por perspectivismo, com considervel impacto sobre a

    produo internacional, e que abriu novas possibilidades de comparao continental

    (Lima 1996, 1999, 2002; Viveiros de Castro 1996a, 1998b, 2002a; Vilaa 1998,1999, 2000, 2002; Fausto 2002a).

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    Quando o processo de expanso da etnologia americanista j se encontrava

    razoavelmente consolidado, comeou a ser possvel uma retomada do tema da

    mudana e da histria em novas bases, deixando para trs os paradigmas daaculturao ou do contato intertnico. Um dos trabalhos mais importantes neste

    sentido foi a monografia de Peter Gow (1991) sobre os Piro da Amaznia peruana,

    que marcou o fim da distino entre os ndios puros e seus etnlogos puristas, de

    um lado, e os ndios misturados e seus etnlogos radicais, de outro. Escrevendo

    sobre um grupo indgena que parecia um caso terminal de aculturao,

    acamponesamento e sujeio aos poderes estatais, Gow mostrou como s se

    poderia atingir uma compreenso adequada do mundo vivido piro atravs de sua

    insero no panorama construdo pela etnologia dos ndios puros. Lanando modos trabalhos de Overing e de Viveiros de Castro sobre as filosofias sociais

    amaznicas (1991: 27581, 290ss), o autor argumentou que o estado aculturado

    dos Piro era uma transformao histrica e estrutural dos regimes nativos

    tradicionais, e mais que isso, que a transformao, enquanto tal, era um processo

    inerente ao funcionamento destes regimes regimes que sempre tiveram a

    aculturao por origem e fundamento da cultura, e a exterioridade social por plo

    em perptuo movimento de interiorizao.3

    A etnologia dita clssica, assim, incorporou a questo do contato intertnico como

    parte da questo geral, e indgena, da transformao, valendo-se dos

    conhecimentos que viera acumulando desde as dcadas anteriores. Esse

    movimento pode ser observado em trabalhos mais recentes de membros do

    presente projeto, os quais j vm enfrentando a questo por meio de pesquisas

    sobre escola, oralidade e escrita (Franchetto 1994a, 1994b, 2002); missionarismo e

    converso (Vilaa 1997, 2002, 2003; Viveiros de Castro 1993a; Fausto no prelo a);

    novas formas de consumo (Gordon 2003); a implantao citadina de famlias

    indgenas (Lasmar 2002); problemas relativos histria e historicidade (Franchetto

    e Heckenberger 2001, Fausto e Heckenberger no prelo, Fausto 2002a, 2002b); as

    relaes entre mito, histria e etnicidade (Calavia Saz 1995, 2000, 2001).

    Essas contribuies tornaram-se possveis medida em que o tema e o conceito da

    transformao foram liberados da teoria do acamponesamento e de outras

    objetivaes igualmente redutoras, passando a se inscrever no plano mesmo dos

    pressupostos cosmoprticos dos regimes nativos. Recusando-se a tomar o mundo

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    indgena como simples palco de manifestao de uma estrutura de dominao

    algena, como um arbitrrio cultural que apenas particularizaria uma dinmica

    geral de sujeio, a etnologia clssica estendeu sua prpria visada terica de um

    modo que lhe permitiu redefinir os brancos, o estado ou o capitalismo como outrostantos daqueles arbitrrios histricoscom que sempre se houveram e havero os

    sistemas nativos (ver, p.ex., Albert 1988, 1993; Gallois 1993; Gow 2001; S. Hugh-

    Jones 1988; Turner 1991a, 1993; Calavia Saz 1995; Vilaa 1996a; Wright (org.)

    1999; Albert & Ramos (orgs.) 2000).

    No estamos aqui, sublinhe-se, opondo uma Essncia cultural ao Acidente histrico,

    isto , no estamos simplesmente invertendo o determinismo que v na Histria o

    avatar eminente da transcendncia e colocando a Cultura indgena no lugar daquela.

    (No foi para isso que a antropologia fez sua revoluo). Parafraseando Benveniste,

    argumentaramos que tanto a cultura como a histria so arbitrrias a priori, mas

    motivadas (ou seja, necessrias) a posteriori. Trata-se, em suma, de reconhecer que

    o que conta como arbitrrio depende exclusivamente do ponto de vista analtico e

    da hierarquia explicativa que se escolheu adotar. Tudo se resume em saber onde se

    decide fixar o foco, isto , a necessidade no aparelho de dominao colonial, ou

    na cosmopraxis nativa? Questo terico-poltica.

    Em outras palavras, privilegiar a agncia histrica nativa entenda-se, o modo

    pelo qual os dispositivos indgenas de subjetivao digerem o evento em geral nada tem a ver com uma busca de ndios isolados ou de reas preservadas da vida

    social indgena, e menos ainda com uma celebrao da resistncia das culturas

    nativas face aos processos histricos de espoliao e dominao. Parafraseando a

    observao de Lvi-Strauss (1958: 17) sobre o funcionalismo: dizer que no h

    sociedade indgena fora de uma situao de contato com a sociedade nacional um

    trusmo; dizer, porm, que tudonessa sociedade se explica pela situao de contato

    com a sociedade nacional um absurdo. Ora, esse tudo no deve evidentemente

    ser tomado em extenso, isto , como se uma sociedade fra um objeto composto

    de partes. O que estamos dizendo que impossvel que um coletivo humano sejaconstitudo seno pelo que ele prprio constitui. (O que no quer dizer, bem

    entendido, que ele controleo que constitui; tudo o que fazemos no cessa de nos

    escapar, por todos os lados. E no obstante s o que fazemos pode nos escapar.)

    Estamos dizendo, em suma, que o que a histria fez dos povos indgenas

    inseparvel do que estes povos fizeram da histria. Fizeram-na, antes de mais nada,

    sua; e se no a fizeram como lhes aprouve pois ningum o faz , nem por isso

    deixaram de faz-la a seu modo pois ningum pode faz-lo de outro.

    3 Essa idia de uma tradio da transformao na Amaznia indgena foi retomada eaprofundada por Gow em trabalho posterior (Gow 2001).

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    Para que tudo isso fosse possvel, foi necessrio etnologia abrir os sistemas

    nativos, abandonando as imagens conceituais de sociedade e de cultura legadas

    pelo funcionalismo britnico e o culturalismo americano. Embora inspirada na crtica

    estruturalista s concepes totalizantes do objeto vigentes nos paradigmas

    anteriores, semelhante abertura foi acima de tudo o resultado e este um

    detalhe absolutamente fundamental de uma anlise mais fina das premissas

    socioculturais nativas. A nova sociologia indgena que emergiu dos anos 70 teve

    como instrumento e objetivo uma indigenizao da sociologia e foi isto que lhe

    deu seu carter propriamente antropolgico.

    Tal sociologia indgena e entendemos por isso a imagem do nexo social imanente

    s formas e prticas indgenas , como os trabalhos que nosso grupo realizou nadcada de 90 vieram a demonstrar, uma sociologia da relao, daperspectivae

    da metamorfose. As sees seguintes desenvolvem essa afirmao.

    1.2. Identidade, relao; alteridade, alterao

    Os novos temas que tencionamos abordar nesse projeto so, via de regra,

    conceitualizados pela antropologia dentro de um paradigma interpretativo que tem

    a identidade por categoria-mestra. Por isso mesmo, essa noo desempenhar afuno de anti-conceito focal do projeto, isto , ela ser seu principal alvo

    polmico. Entendemos que as ditas teorias relacionais da identidade hoje em voga

    na disciplina em particular aquelas tributrias do texto seminal de Fredrik Barth

    (1969) , so, na verdade e muito pelo contrrio, apenas teorias identitrias da

    relao, escapando da posio substancialista clssica que vieram a deslocar, onde

    a identidade est na origem e no fundamento do vnculo social, apenas para carem

    em uma posio formalista e teleolgica, onde ela a finalidade e razo da relao.

    Em suma, as relaes sociais continuam sendo vistas essencialmente comorelaes de identificao. O fato da identificao ser contrastiva ou relacional no

    muda nada; pois se a identidade suposta ser criada pela relao, resta que a

    relao est postaparaa identidade: a causa final da relao revela-se sua causa

    formal. A diferena admitida em cena na funo exclusiva de parteira do Mesmo.

    Eis como se fecha o crculo vicioso identitrio, e sua langue de bois, sobre a

    conceitualidade antropolgica.

    Pois bem, para diz-lo breve e brusco, acreditamos que o conceito de identidade,

    pelo menos no que concerne antropologia, est teoricamente obsoleto. To

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    obsoleto, alis, como o conceito de sociedade (Ingold [org.] 1996) pelas mesmas

    exatas razes, e a fortiori. Em vista do que nossas pesquisas anteriores nos

    ensinaram sobre as ontologias indgenas, cuidamos que imperativo comear a

    imaginar teoricamente um conceito de relao que no tenha a identidade (a auto-relao) como seu prottipo, sua origem ou sua finalidade. Trata-se, em suma, de

    tentar realizar efetivamenteo desiderato universalmente expresso de uma teoria

    relacional da identidade com a ajuda decisiva das concepes amerndias.

    Apressemo-nos a evocar, para revocar, o falso dilema: estaramos talvez em busca

    de uma teoria antropolgica alternativa da (ou ) identidade em geral (ou em

    universal), ou estaramos nos propondo ao contrrio a reconstituir etnograficamente

    uma teoria indgena particular, um modelo nativo da identidade? A resposta :

    ambas as coisas, e nenhuma delas. Eis porque o dilema se nos afigura sem sentido.Pois trata-se, apenas e sempre, de examinar os efeitostericospossveis de certas

    idias e prticas indgenas (aquelas que se deixam construir como projetando uma

    teoria ou anti-teoria virtual da identidade) sobre certas idias e prticas ocidentais,

    assumidas (ou quase) pela antropologia como matria conceitual universal. Trata-se,

    enfim e simplesmente, nem mais, nem menos, de tentarpr em relaouma certa

    imagem da relao, aquela que se exprime no longo discurso ocidental, ao mesmo

    tempo montono e polifnico, sobre a identidade, com certa outra imagem da

    relao, a imagem indgena cuja forma cannica, como veremos, um discurso

    sobre a alteridade.

    O que estamos sugerindo, na verdade, a incompatibilidade entre duas concepes

    da antropologia, e a necessidade de escolher entre elas. De um lado, temos uma

    imagem do conhecimento antropolgico como resultando da aplicao de conceitos

    extrnsecos ao objeto: sabemos de antemo o que so as relaes sociais, ou a

    cognio, o parentesco, a religio, a poltica etc., e vamos ver como tais entidades se

    realizam neste ou naquele contexto etnogrfico como elas se realizam, claro,

    pelas costas dos interessados. De outro lado, est uma idia do conhecimento

    antropolgico como envolvendo a pressuposio fundamental de que os

    procedimentos que caracterizam a investigao so conceitualmente de mesma

    ordem que os procedimentos investigados. Tal equivalncia no plano dos

    procedimentos, sublinhe-se, supe e produz uma no-equivalncia radical de tudo o

    mais. Pois, se a primeira concepo de antropologia imagina cada cultura ou

    sociedade como encarnando uma soluo especfica de um problema genrico ou

    como preenchendo uma forma universal (o conceito antropolgico) com um contedo

    particular (a representao nativa) , a segunda, ao contrrio, suspeita que os

    problemas eles mesmos so radicalmente diversos; sobretudo, ela parte do princpio

    de que o antroplogo no sabe de antemo quais so eles. O que a antropologia,

    nesse caso, pe em relao so problemas diferentes, no um problema nico

    (natural) e suas diferentes solues (culturais). A arte da antropologia a arte de

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    determinar os problemas postos por cada cultura, no a de achar solues para os

    problemas postos pela nossa (essa foi uma das lies mais importantes que

    aprendemos com Marilyn Strathern [1988]). E exatamente por isso que o

    postulado da continuidade dos procedimentos , para ns, um imperativo categrico

    epistemolgico.

    Qual, afinal, o objeto da nossa disciplina? A sociedade, a cultura, a natureza

    humana? Admitamos, pois se h de comear por algum lugar, que a matria

    privilegiada da antropologia seja a socialidade humana, isto , o que chamamos de

    relaes sociais; e aceitemos a ponderao (de Gell 1998: 4) de que a cultura, por

    exemplo, no tem existncia independente de sua atualizao nessas relaes (o

    mesmo se poderia dizer, alis, da natureza humana: que ela no existe fora da

    matriz relacional). Resta, ponto importante, que tais relaes variam no espao e no

    tempo; e se a cultura no existe fora de sua expresso relacional, ento a variaorelacional tambm variao cultural, ou, dito de outro modo, cultura o nome

    que a antropologia d variao relacional.

    Mas essa variao relacional no nos obrigaria ela a supormos um sujeito, um

    substrato invariante do qual ela se predica? Questo sempre latente, e insistente em

    sua suposta evidncia; questo, sobretudo, mal formulada. Pois o que varia

    crucialmente no o contedo das relaes, mas sua idia mesma: o que conta

    como relao nesta ou naquela cultura. No so as relaes que variam, so as

    variaes que relacionam.E se assim , ento o substrato imaginado das variaes,a natureza humana para passarmos ao terceiro conceito central da tradio

    antropolgica , mudaria completamente de funo, ou melhor, deixaria de ser uma

    substncia e se tornaria uma verdadeira funo. A natureza deixaria de ser uma

    espcie de mximo denominadorcomum das culturas (mximo que um mnimo,

    uma humanitas minima), uma sorte de fundo de semelhana obtido por

    cancelamento das diferenas entre elas. Ela passaria a ser algo como um mnimo

    mltiplo comum das diferenas, ou algo como a integral parcial das diferentes

    configuraes relacionais que chamamos culturas. O mnimo , nesse caso, a

    multiplicidade comum ao humano humanitas multiplex. A dita natureza deixariaassim de ser uma substncia auto-semelhante situada em algum lugar natural

    privilegiado (o crebro, por exemplo), e assumiria ela prpria o estatuto de uma

    relao diferencial, disposta entre os termos que ela naturaliza: tornar-se-ia o

    conjunto de transformaes requeridas para se descreverem as variaes entre as

    diferentes configuraes relacionais conhecidas.

    O objeto da antropologia, assim, seria a variao das relaes sociais. No das

    relaes sociais tomadas como uma provncia ontolgica distinta, mas de todos os

    fenmenos possveis enquanto relaes sociais, enquanto implicam relaes sociais:

    de todas as relaes como sociais. Mas isso de uma perspectiva que no seja

    totalmente dominada pela doutrina ocidental das relaes sociais; uma perspectiva,

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    portanto, pronta a admitir que o tratamento de todas as relaes como sociais pode

    levar a uma reconceituao radical do que seja o social. Digamos ento que a

    antropologia se distinga dos outros discursos sobre a socialidade humana no por

    dispor de uma doutrina particularmente slida sobre a natureza das relaes sociais,

    mas, ao contrrio, por ter apenas uma vaga idia inicial do que seja uma relao.

    Pois seu problema caracterstico consiste menos em determinar quais so as relaes

    sociais que constituem seu objeto, e muito mais em se perguntar o que seu objeto

    constitui como relao social, o que uma relao social nos termos de seu objeto,

    ou melhor, nos termos formulveis pela relao entre o antroplogo e o nativo.4

    Em outras palavras e em suma, a categoria-mestra do presente projeto a idia de

    relao, que define no s nosso problema como nosso mtodo. Entendemos que

    identidade o nome de umadas formas assumidas pelo fato absoluto da relao

    a forma culturalmente privilegiada na tradio ocidental. A forma prototpica da

    relao na tradio amerndia, por seu lado, o que chamamos de alteridade.

    Detalhemos.

    Um modo de definir nosso projeto dizer que seu foco a imaginao conceitual

    das culturas nativas da Amaznia, e que sua abordagem antropolgica, pois

    descreve tal imaginao do ponto de vista das relaes sociais que ela implica. Os

    pargrafos a seguir tentam precisar os termos as palavras e os limites de

    semelhante declarao de intenes, a natureza do experimento intelectual que elaprope, e o campo de problemas em que ela se situa.

    O projeto no trata as relaes sociais como causa ou sujeito da imaginao

    amaznica, menos ainda como seu objeto ou efeito; isto , ele no distingue entre

    sociedade e cultura, e assim no as ordena causalmente. As relaes sociais so

    tomadas como dimenso intrnseca ao exerccio dessa imaginao, o espao

    implcito que ela percorre. Dito de outro modo, elas no so uma ordem

    transcendente ao pensamento, mas seu elemento imanente: nem contexto, nem

    texto, formam a contextura prpria da cosmopraxis indgena.

    Em seguida, tais relaes vo qualificadas de sociais somente em ateno

    preliminar s nossas convenes cosmolgicas, pois o que se tenciona apreender

    o conceito geral de relao imaginado pelo pensamento indgena, e a constituio

    deste pensamento como imaginao relacional. O esquema ou figura de tal conceito

    radica-se, decerto, em uma intuio da socialidade como implicada na prpria

    4Para uma exposio dessa concepo relacionalista do conhecimento antropolgico, veja-seViveiros de Castro 2002b.

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    trama do cosmos; mas por isso mesmo que a expresso relao social , a rigor,

    um pleonasmo, de utilidade apenas temporria. As concepes indgenas sugerem,

    alm disso, uma idia da relao como consistindo em um tipo de dinamismo mais

    que em um tipo de atributo. As relaes so aqui virtualidades relacionantes,relaes que acionam e diferenciam relaes; mais precisamente, elas envolvem a

    existncia de uma diferena de potencial que se atualiza em seus termos, ou

    relaes relacionadas (Simondon 1995). Os termos substncias, propriedades e

    identidades devem ser interpretados como resduos das relaes que os

    constituem, aquilo que surge e sobra quando estas se consumam e se consomem.

    (Mas resta sempre, ponto crucial, uma virtualidade relacional irredutvel nesse

    resduo, algo que ele no pde atualizar. A mquina ritual amerndia depende disso,

    e serve para isso.)

    Uma relao, em particular talvez porque ela no seja uma relao particular

    , funciona como fio condutor de nossa reflexo. Um dos temas centrais do

    projeto, e a isso que nos referamos ao falar na intuio de uma socialidade

    csmica, o sentido da relao dealteridadeno pensamento amerndio. H muito

    que os etnlogos interessados na Amrica tropical vm insistindo sobre a

    importncia da alteridade, em seu duplo aspecto de forma e de processo, na

    economia simblica dos povos dessa regio. Essa importncia foi por vezes

    atribuda a um certo estilo cognitivo panamericano (qui primitivo em geral), que

    privilegiaria as classificaes dualistas e as oposies binrias. Temos que

    semelhante propenso, se o caso realmente de cham-la assim, antes um

    fenmeno derivado, uma repercusso abstrata de algo que pouco tem de cognitivo,

    de classificatrio, ou de simplesmente binrio algo de que os dualismos

    indgenas so o limite inferior ou a verso reduzida, e que lhes imprime um vis

    caracterstico (Lvi-Strauss 1991). As dualidades to frequentes nas cosmologias

    amaznicas formam apenas as margens, incessantemente desfeitas e refeitas,

    entre as quais flui o pensamento nativo. Longe de ser o avatar de um Dois aobcecar a razo indgena, a alteridade est situada, como diria Guimares Rosa, na

    terceira margem desse rio.

    Em outras palavras, a alteridade se inscreve nos pressupostos da imaginao

    indgena como o campo prprio do pensvel. Ela a marca da presena de Outrem

    (Deleuze 1969a; ver abaixo) enquanto relao a priori ou condio geral de

    atualizao dos estados de coisas e corpos que constituem o mundo. Tal condio

    se reflete na cosmopraxis nativa sob a forma de um esquema conceitual virtual,

    que Viveiros de Castro (1996b) e Lima (1996) vieram a chamar deperspectivismo,

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    devido a algumas analogias com as orientaes filosficas assim denominadas.5A

    idia bsica (que no uma idia simples) do perspectivismo, tanto o indgena

    como seu anlogo ocidental, que toda posio de realidade especifica um ponto

    de vista, e que todo ponto de vista especifica um sujeito nessa ordem. No casoindgena, tal especificao em primeiro lugar uma especiao, pois a diferena de

    ponto de vista entre humanos e no-humanos ali uma questo fundamental, e a

    realidade assim posta compreende a realidade reflexiva do sujeito, individual ou

    coletivo, uma vez que toda posio de identidade envolve a perspectiva do Outro

    (Taylor 1993b: 673) como um momento constitutivo. O perspectivismo implica

    portanto a alteridade: a diferena como ponto de vista, o ponto de vista como

    diferena e a diferena comopositiva, nos dois sentidos da palavra.

    Nesse sentido, o perspectivismo amaznico poderia ser descrito como uma

    ontologia relacional, isto , como uma imagem do ser na qual a relao ocupa o

    lugar da substncia enquanto categoria primeira. Uma ontologia relacional,

    ademais, onde a relao primeira o nexo de alteridade, a diferena ou ponto de

    vista implicado em Outrem. No bastaria dizer ento, com Gilbert Simondon (1995:

    30, 126), que a relao tem o estatuto de ser, uma modalidade do ser, uma

    relao no ser. Aqui, o ser que teria o estatuto de relao: a substncia uma

    modalidade da relao, os termos so a relao em seu estado explicado, e a

    relao a diferena ou disparidade entre os termos em que ela se desenvolve.6

    Dissemos acima que h um razovel consenso do discurso americanista no tocante

    importncia do vnculo de alteridade. Como todo consenso, altamente provvel

    que este tambm repouse sobre um mal-entendido, e envolva um processo de

    esvaziamento semntico. Um dos objetivos do presente projeto tentar uma

    tematizao mais rigorosa do estatuto da alteridade na cosmopraxis indgena, tanto

    por via de novas pesquisas empricas de campo como por um esforo de lhe dar

    5 O perspectivismo filosfico a que nos referimos est associado originalmente ao nome deLeibniz, mas se acha tambm presente em pensadores como, entre outros, Nietzsche, Tarde,Whitehead ou Deleuze.6 Formulao que leva adiante uma sugesto do mesmo Simondon, quando recomendavauma apreenso realista das relaes e nominalista dos termos (op.cit.: 82), de modo acompensar o vis inverso de nossa metafisica. A tese de Simondon sobre o processo deindividuao forneceu vrios dos instrumentos utilizados neste projeto. Observe-se que, seo ser uma modalidade da relao e existir habitar uma perspectiva (como sugereWhitehead), o processo de constituio recproco, e mais ainda, reflexivo: cadaperspectiva cada ser ao mesmo tempo constitutivo de suas relaes de seuponto devista, portanto definindo uma relao vetorial, e constitudo pelas suas relaes (Ross1983:6). Em outras palavras, e como foi ponderado mais acima, s podemos serconstitudos pelo que constitumos, mas isso no nos torna menosconstitudos. (Essa idia central para o construtivismo realista de Bruno Latour, por exemplo, e que outra balizaimportante para nosso projeto.)

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    consistncia conceitual, isto , de situ-lo em um campo problemtico bem

    definido.

    Para tanto, faz-se necessrio desenvolver a mtua implicao dos conceitos de

    perspectivismo e de alteridade, e distingui-los inequivocamente de dois falsos

    amigos com os quais costumam ser confundidos. Trata-se de mostrar, de um lado,

    como o perspectivismo indgena (uma ontologia da relao) pouco tem a ver com o

    relativismo moderno (uma epistemologia do relativo), e, de outro, como a

    alteridade amaznica (o Eu e o Outro como efeitos da relao-Outrem) resiste a

    uma traduo no vocabulrio da intersubjetividade (o Eu e o Outro como

    contedos da forma-Sujeito), empregado pelos simpatizantes das abordagens neo-

    fenomenolgica atualmente difundidas na antropologia.7

    A distino entre perspectivismo e relativismo j foi esboada em textos anteriores

    de membros do presente grupo (Lima 1996, Viveiros de Castro 1996b); mas a

    irreduo do regime de alteridade amaznico a um tipo de intersubjetivismo algo

    cuja necessidade s se nos tornou bvia recentemente, obrigando-nos a rever

    algumas formulaes, e mesmo, como logo veremos, o prprio nome dessa relao

    que vamos chamando alteridade. Tal reviso tem consequncias para o conceito

    de perspectivismo, pois permite evitar sua trivializao em uma forma de idealismo

    intersubjetivo ou de construcionismo social. Mas ela se imps, em primeiro lugar,em vista de um melhor entendimento dos dispositivos de subjetivao indgena, e

    de uma imaginao mais precisa das relaes ou melhor, da relao referidas

    pela etnologia americanista pelos nomes de troca e reciprocidade, predao e

    inimizade.

    A reviso se mostrou necessria, acima de tudo, para dissipar qualquer conotao

    de transcendncia que possa alguma vez ter sido dada idia de Outro no mundo

    indgena: que os deuses arawet sejam outros, por exemplo (Viveiros de Castro

    1986), no significa que o Outro arawet seja Deus. A alteridade

    indubitavelmente um dispositivo transcendental da cosmopraxis nativa, mas no

    projeta nenhuma imagem do transcendente; trata-se, ao contrrio, da modalidade

    7Estamos cientes de que mais de um dentre os colaboradores potenciais de nosso projetojuram por algum tipo de credo fenomenolgico. No sofremos de nenhuma antipatia visceralpor tais abordagens, mas no pensamos que elas constituam a melhor sada. O problemacom o dispositivo conceitual da intersubjetividade que ele est seguro de antemo sobre oque (e quem ) um sujeito. Ora, que o nativo estudado pelo antroplogo seja um sujeito,no h a menor dvida; mas o que pode ser um sujeito, eis precisamente o que o nativo

    obriga o antroplogo a pr em dvida. Tal a cogitao especificamente antropolgica; sela permite antropologia assumir completamente a presena virtual de Outrem que sua

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    mesma de imanncia desse pensamento.8Ela a verso amerndia daquilo que Roy

    Wagner, em um contexto melansio, chamou de mundo da humanidade imanente

    (1981: 86-89), onde a cultura da ordem do fato, e a natureza, do feito. Este

    mundo da humanidade imanente, escusado advertir, est nas antpodas dequalquer forma de humanismo, assim como o mundo da alteridade imanente est

    nas antpodas de qualquer forma de altrusmo. H bem mais sujeitos, no mundo

    indgena, que os sujeitos humanos; em certo sentido, h mais humanos nesse

    mundo que os membros da espcie epnima; mas isso s faz tornar as concepes

    nativas de sujeito e de humanidade ainda mais irredutveis, se isso possvel,

    nossa vulgata modernista.

    No se trata, insistimos, de propugnar uma forma de idealismo intersubjetivo, nem

    de fazer valer os direitos supremos da razo comunicacional ou do consenso

    dialgico. Nosso ponto de apoio aqui o conceito de Outremcomo estrutura a priori,

    proposto no conhecido comentrio de Gilles Deleuze ao Vendredide Michel Tournier.9

    Lendo o livro de Tournier como a descrio ficcional de uma experincia metafsica

    o que um mundo sem outrem? , Deleuze procede a uma induo dos efeitos da

    presena desse outrem a partir dos efeitos causados por sua ausncia. Outrem

    aparece, assim, como a condio do campo perceptivo: o mundo fora do alcance da

    percepo atual tem sua possibilidade de existncia garantida pela presena virtual

    de um outrem por quem ele percebido; o invisvel para mim subsiste como real por

    sua visibilidade para outrem.10 Outrem, porm, no ningum, nem sujeito nem

    objeto, mas uma estrutura ou relao, a relao absoluta que determina a ocupao

    das posies relativas de sujeito e de objeto por personagens concretos, bem como

    sua alternncia: outrem designa a mim para o outro Eu e o outro eu para mim.

    Outrem no um elementodo campo perceptivo; oprincpioque o constitui, a ele

    e a seus contedos. Outrem no , portanto, um ponto de vista particular, relativo

    ao sujeito (o ponto de vista do outro em relao ao meu ponto de vista ou vice-

    versa), mas a possibilidade de que haja ponto de vista ou seja, o conceito de

    ponto de vista. Ele oponto de vista que permite que o Eu e o Outro acedam a um

    ponto de vista.

    condio a condio de passagem de um mundo possvel a outro , e que determina asposies derivadas e permutveis de sujeito e de objeto.8 Recordemos a diferena, de origem kantiana, entre o transcendental (cujo antnimo emprico), que remete s condies de possibilidade da experincia, situando-se aqumdesta, e o transcendente (cujo antnimo imanente), que se refere ao que est almdatoda experincia possvel, isto , ao supra-sensvel ou s coisas-em-si.9Publicado em apndice a Logique du sens (Deleuze 1969a: 35072). Ele retomado, emtermos praticamente idnticos, em Quest-ce que la philosophie?(Deleuze & Guattari 1991:2124, 49).10 [O]utrem para mim introduz o signo do no-percebido naquilo que percebo,determinando-me a apreender o que no percebo como perceptvel para outrem (Deleuze1969a: 355).

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    Deleuze prolonga aqui criticamente a famosa anlise de Sartre sobre o olhar,

    afirmando a existncia de uma estrutura anterior reciprocidade de perspectivas do

    regardsartriano. O que essa estrutura? Ela a estrutura do possvel: Outrem a

    expresso de um mundo possvel.Um possvel que existe realmente, mas que no

    existe atualmente fora de sua expresso em outrem. O possvel exprimido est

    envolvido ou implicado no exprimente (que lhe permanece entretanto heterogneo),

    e se acha efetuado na linguagem ou no signo, que a realidade do possvel

    enquanto tal o sentido. O Eu surge ento como explicao desse implicado,

    atualizao desse possvel, ao tomar o lugar que lhe cabe (o de eu) no jogo de

    linguagem. O sujeito assim efeito, no causa; ele o resultado da interiorizao de

    uma relao que lhe exterior ou antes, de uma relao qual ele interior: as

    relaes so originariamente exteriores aos termos, porque os termos so interiores

    s relaes. H vrios sujeitos porque h outrem, e no o contrrio (Deleuze &

    Guattari 1991: 22).

    O conceito de Outrem, em suma, parece-nos fornecer um instrumento interessante

    de traduo do regime de alteridade amaznico; mais interessante, queremos dizer,

    que as hermenuticas intersubjetivas visadas pela antropologia contempornea como

    alternativa aos positivismos disponveis no mercado. Mais adequado tambm, talvez,

    que as interpretaes dialticas da alteridade como trabalho do negativo no sujeito.

    Pois Outrem no , enquanto tal, o Outro, isto , o outro (alter) doSujeito; ele

    um outro (aliud) queo sujeito, uma multiplicidade virtual de onde emergem todo Eu

    e qualquer Outro. Outrem a diferena relacional pura ou molecular, anterior suamolarizao no par opositivo e relativo Eu/Outro. A oposio, como j ensinava

    Tarde, a verso macroscpica, simplificada e normalizada da diferena, no o seu

    modelo; ela o primeiro compromisso entre a diferena e a identidade.

    Aqui se comea a poder perceber, enfim, o que h de equvoco, ou pelo menos de

    impreciso, na noo de alteridade: ela no permite distinguir entre o outro e

    Outrem, o termo alterno ao sujeito e a relao que os altera a ambos. A noo

    sugere, sobretudo, uma extrinsicidade ou transcendncia do Outro face ao Eu, ao

    passo que no regime amerndio, como se depreende mais ou menos claramente daetnografia, a perspectiva do Outro uma determinao imanente dos dispositivos

    de subjetivao nativos: trata-se de uma alteridade interna. Com seu sufixo de

    estado ou de atributo, a forma alteridade sugere ainda uma imagem finalizada

    literalmente, terminada da relao, que a toma a partir de seus termos, como

    relao relacionada e no como relao relacionante: oposio extensiva antes que

    diferena intensiva.11

    11 Se h uma insuficincia importante na metodologia antropolgica que mais fez paraafirmar o primado da relao diferencial o estruturalismo , esta reside em suaconcepo exclusivamente extensivista da diferena; ver as discusses em Lvi-Strauss (org.

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    Seria preciso achar uma outra palavra. O termo que melhor caberia est,

    infelizmente, ocupado h muito tempo, e por um locatrio conceitual que no

    poderia ser mais antagnico ao sentido aqui visado: alienao, que tem a tripla

    vantagem de ser um nome de ao e no de estado, de estar mais prximo do

    aliud latino e no do alter, e de designar uma diferena interna ao sistema da

    subjetividade. Mas intil insistir por a, sob pena de criar toda sorte de mal-

    entendidos. Assim, propomos que se distinga entre a alteridade, oposio extensiva

    entre Eu e no-Eu, e a alterao, diferenciao intensiva caracterstica da

    estrutura-Outrem. A alteridade procede da alterao, a alterao se resolve ou

    desenvolve em alteridade, mas no se confunde com esta: Outrem sempre

    percebido como outro, mas em seu conceito ele a condio de toda percepo,

    para os outros como para ns (Deleuze & Guattari 1991: 24). A alterao est

    para a alteridade como uma relao virtual implicada est para os termos atuais

    em que ela se explica. A alterao no dada; o dado a alteridade: mas a

    alterao aquilo pelo qual o dado se d como alteridade.

    No h alteridade sem alterao. Abstrada da potncia de alterao de que

    procede, a alteridade se congela em uma relao meramente formal, e

    frequentemente degenera em uma taxonomia de oposies diacrticas entre

    posies constitudas. No caso da antropologia amaznica, isso muitas vezes setraduziu em uma sociologia verbal (como um de ns diagnosticou, cf. Calavia

    Saz 1995: 249) de categorias de identidade e de autodesignaes coletivas

    uma timo-sociologia da identificao antes que uma etno-sociologia da alterao

    , e em uma cartografia esttica de crculos de distncia social, quando no em

    anlises cognitivas que reduziam toda diferena a uma classificao, todo

    pensamento a um reconhecimento, todo conceito a um taxon: triunfo do extensivo,

    anulao total das diferenas de intensidade portadas pela alterao.

    Alterao, ento, designaria o processo de atualizao da alteridade que o efeito

    prprio de Outrem como relao a priori. A palavra processo vai entre aspas

    porque no se trata, a rigor, de um processo, ou melhor, no se trata apenas disso:

    o processo de atualizao da alteridade se dobra de um contra-processo involutivo,

    um devir, que contra-inventa ou contra-efetua a alterao por outros caminhos.

    Essas idias de uma contra-inveno do dado (Wagner 1981) ou de uma contra-

    1977), e a retomada anunciada do problema em Viveiros de Castro (2002c). Para uma

    explorao e generalizao do contraste kantiano entre grandezas extensivas e intensivas,ver Deleuze (1969b). A questo da intensi(vi)dade liga-se diretamente problemtica do

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    efetuao do virtual (Deleuze & Guattari 1991) comearam a ser testadas em um

    trabalho recente de Viveiros de Castro (2001, 2002a) sobre a construo do

    parentesco amaznico. Mas seu rendimento mais promissor parece-nos estar na

    formulao de uma teoria sobre a forma e funo dos rituais no mundo amerndio(ver adiante, item 2.1, Transformaes rituais).

    Alterao, enfim, porque essa palavra evoca uma noo capital da metafsica

    amerndia, a de transformao intensiva ou metamorfose, comentada na seo

    seguinte. A real relao entre Eu e Outro, no mundo indgena, no a oposio

    analtica ou a negao dialtica, mas a metamorfose como alterao ontolgica.

    Tenso, preenso, alterao.

    Mas o conceito de Outrem como relao a priori serve-nos aqui, sobretudo, paraformular de modo mais claro a conexo entre duas idias centrais deste projeto, a

    alterao-alteridade e o perspectivismo.

    Uma expresso prototpica de Outrem na tradio ocidental a figura do Amigo. O

    Amigo outrem, mas outrem como momento do Eu. Se me determino como

    amigo do amigo, apenas porque o amigo, na conhecida definio de Aristteles,

    um outro Eu (tica a Nicmaco,1170b6).O Eu est l desde o incio: o amigo a

    condio-Outrem pensada retroprojetivamente sob a forma condicionada do

    sujeito. Como observa F. Wolff (2000: 169), a definio aristotlica implica uma

    teoria segundo a qual toda relao com outrem, e por conseguinte toda forma de

    amizade, encontra seu fundamento na relao do homem consigo mesmo. O

    vnculo social pressupe a auto-relao como origem e modelo.

    Mas o Amigo no funda somente uma antropologia. Dadas as condies histrico-

    polticas de constituio da filosofia grega, o Amigo emerge como indissocivel de

    uma certa relao com a verdade: ele uma condio de possibilidade do

    pensamento em geral, uma presena intrnseca uma categoria viva, um vividotranscendental (Deleuze & Guattari 1991: 9). O Amigo , em suma, o que os

    autores citados chamam de umpersonagem conceitual, o esquematismo de Outrem

    prprio ao conceito. A filosofia exige o Amigo, a philia a relao constitutiva do

    saber.

    Pois bem. O problema que nos interessa, do ponto de vista do pensamento

    indgena, : como funciona a estrutura-Outrem em um mundo onde o Inimigo,

    contnuo e do discreto, a que Lvi-Strauss, como se sabe, deu um valor central em suainterpretao das mitocosmologias indgenas.

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    no o Amigo, que faz as vezes de vivido transcendental ou de protagonista

    conceitual?Onde outrem no concebido como um outro Eu, mas como um eu

    Outro?12 Onde, em suma, no a semelhana que funda a relao, e onde a

    relao consigo mesmo no primeira mas onde a diferena que liga, e onde a relao com o outro que permite a relao consigo mesmo? Esta indagao

    atravessa vrias, talvez todas, as pesquisas reunidas sob os temas Apropriao e

    alterao e Diferenciao e mediao (ver abaixo).

    A questo do perspectivismo j se encontra formulada no problema acima. Se

    Outrem o conceito de ponto de vista, o que um mundo constitudo pelo ponto

    de vista do inimigo(Viveiros de Castro 1992) como determinao transcendental?

    Um mundo onde a inimizade no um mero complemento privativo da amizade,

    nem uma simples facticidade negativa, mas uma estrutura de direito do

    pensamento, e uma positividade? E por fim que relao com o saber, que regime

    de verdade pode-se constituir nesse elemento da diferena ou distncia positivas?

    Concretizando a pergunta, e por exemplo: a figura do xam amerndio

    essencialmente semelhante do mestre da verdade da Grcia pr-poltica, como

    intimam os trabalhos clssicos de Detienne e Vernant? Tratar-se-ia, l como c, da

    mesma enunciao monolgica, do mesmo logos (ou muthos) monrquico que

    afirma a mesma velha participao primitiva, o mesmo embutimento indicial,

    mgico, da linguagem no Ser? Suspeitamos que no, e este um problema que

    ter lugar importante em algumas das pesquisas ligadas ao tema Tradio e

    traduo (ver infra).

    Para poder comear a dizer algo sobre este ltimo ponto, a saber, qual o regime de

    verdade possvel em um mundo da diferena inimiga, preciso percorrer uma

    outra dimenso da cosmopraxis indgena, formulvel igualmente por contraste com

    nossa imaginao identitria da relao. Pois Outrem no se manifestou na tradio

    ocidental apenas na figura grega do Amigo que continua bem viva entre ns,apenas no mais como mediao maiutica (o dilogo antigo conduzia a uma

    essncia transcendente), mas como condio hermenutica (a verdade moderna se

    tornou imanente ao dilogo). Outrem tambm consubstancial a uma outra figura,

    esta um pouco mais recente, um personagem conceitual completamente singular

    Deus. difcil no ver neste personagem a forma por excelncia de Outrem em

    nossa tradio: Deus ao mesmo tempo o grande Outro, garantia da realidade

    12 Esta formulao tomada de Carneiro da Cunha (1978: 93-94), que a utiliza paracaracterizar a diferena entre o companheiro (um outro Eu) e o amigo formal (um eu-Outro) dos Timbira, figuras que so os esquematismos rituais, respectivamente, dasposies de irmo e de cunhado.

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    absoluta (o Dado) face ao solipsismo da conscincia, e o grande Eu, garantia da

    inteligibilidade relativa (o Construdo) do que o sujeito v em torno de si. Com

    efeito, a funo maior de Deus, no que concerne ao destino do pensamento

    moderno, foi a de demarcar a linha fundamental entre o dado e o construdo, ao seinstituir, enquanto Criador, como seu horizonte de indiferenciao.

    verdade que Deus foi saindo aos poucos de nossa cena histrica, mas antes de

    morrer ele tomou duas medidas propriamente providenciais: interiorizou-se no foro

    ntimo dos homens como forma inteligvel do Sujeito (a lei moral), e exteriorizou-se

    em um Objeto sensvel infinito, a natureza como campo total da realidade

    substantiva (o cu estrelado). A Cultura e a Natureza, em suma, os dois mundos

    (Ingold 2000: 1), o subjetivo e o objetivo, em que se dividiu a Sobrenatureza como

    Outrem originrio. Deus, portanto, tambm continuou entre ns, na forma

    duplamente eficaz da ausncia e da diviso.

    Pois bem. Essas consideraes muito ligeiras13 visam apenas introduzir nosso

    segundo problema. Como funciona a relao-Outrem em um mundo radicalmente

    no-monotesta, e que sempre passou ao largo de uma teologia da criao?

    Problema ligeiramente diferente daquele que Deleuze lia em Tournier: no se trata

    aqui de saber o que um mundo sem outrem, mas o que outrem em um mundo

    sem Deus. No, note-se, um mundo criado pela retirada de Deus, como nossomundo moderno, mas um mundo incriado, onde tudo manifesta, por assim dizer, a

    inexistncia de uma divindade transcendente.14Em tal regime de alterao, o que

    garante a realidade para os sujeitos, que percipiente virtual pressuposto para

    assegurar a transio entre os possveis? Onde est Outrem, como se distribuem

    alteram-se e alternam-se as posies do sujeito e do objeto, do dado e do

    construdo, da forma e do fundo? Nesses termos, uma questo premente que se

    pe a de saber o que acontece quando o Deus ocidental entra em cena, isto ,

    quando os dispositivos de catequese e converso introduzem essa forma indita deOutrem em um mundo que se constituiu em e por sua ausncia. Este um dos

    problemas, por suposto, do tema Misses e converses (ver infra, capitulo

    Traduo e tradio).

    13Consideraes em parte inspiradas na histria contada por Latour (1991: 50-53, passim)sobre a Constituio dos modernos, e, pela mesma via, no livro de Funkenstein (1986)sobre as relaes entre teologia e imaginao cientfica na transio para a modernidade.14 Sobre as relaes histricas entre o recuo (ou barramento, cf. Latour) de Deus e aemergncia, nos dois sentidos da palavra, da questo de Outrem na filosofia contempornea,ver as sugestivas indicaes de Szymkowiak (1999: 44-45).

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    Para responder a tais questes, ser preciso rediscutir os termos da oposio

    clssica entre Natureza e Cultura, regio objetiva e regio subjetiva do existente,

    de modo a discernir a diferena propriamente ontolgica da cosmopraxis indgena

    face nossa. Este um tema central para as pesquisas reunidas sob a rubricaFormas de aparentamento: relaes intra-especificas e interespecficas, do

    capitulo 3 do projeto: a disseminao de Outrem pelas dobras do mundo, sua

    manifestao sob a forma de uma infinidade potencial de sujeitos no-humanos, e,

    reciprocamente, a presena do humano como imanncia absoluta. Em outras

    palavras, estaremos discutindo mais uma variante do que Latour (1991) chamou de

    velha matriz antropolgica da humanidade, a matriz que a velha antropologia

    chamava, como se sabe, de animismo. Pode-se dizer que o animismo, para defini-

    lo sucintamente mediante os conceitos de uma tradio que se imaginadesanimista, uma imagem do mundo onde o objeto um caso particular do

    sujeito, isto , onde todo objeto um sujeito em potncia: o cogito indgena no

    tem a forma solipsista do penso, logo existo, mas a forma animista do existe,

    logo pensa. O animismo de que se tratar aqui, entretanto, conhece uma inflexo

    crucial. No mundo amerndio, o Eu um caso particular do Outro, pois ali a relao

    com o outro, o inimigo, funda a relao consigo mesmo. Um animismo, portanto,

    alterado, uma alteridade que se animiza na medida exata em que se inimiza

    alterao. Um inimismo, ento: o perspectivismo indgena, ou o mundo por

    outrem.

    1.3. Agncia, mudana; estrutura, histria

    A extenso do instrumental analtico desenvolvido em nossas pesquisas anteriores

    para o conjunto de temas deste projeto co-dependente de uma interveno

    crtica, etnograficamente motivada, sobre os conceitos de mudana social, de

    agncia e de histria, o quais, tal como geralmente utilizados na antropologia

    contempornea, assentam sobre, ou produzem, um certo nmero de equvocos

    importantes.

    Os povos indgenas das chamadas terras baixas do continente foram por vezes

    concebidos como estando fora do tempo, seja porque teriam permanecido, at a

    conquista europia, congelados no neoltico inferior (quando no no paleoltico),

    seja porque seriam supostamente incapazes de conceitualizar a prpria mudana

    histrica. H pelo menos duas dcadas, antroplogos e historiadores vm criticando

    duramente essa viso, insistindo no apenas sobre o fato de que preciso estudaresses povos na histria, como tambm sobre a necessidade de incorporar a ao

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    indgena nesses estudos. Tal mudana de perspectiva foi um passo fundamental

    para uma reconsiderao da histria colonial e ps-colonial americana, bem como

    das dinmicas sociais contemporneas (ver, entre muitos, Carneiro da Cunha 1992,

    Hill 1988, Salomon & Schwartz 1999).

    Ainda que partilhemos dessa mesma preocupao em tematizar a mudana, a ao

    e a histria dos povos sul-americanos, tendo alis j contribudo nessa direo,15

    nosso caminho diverso daquele da maioria dos autores que procuram aproximar

    etnologia e histria, uma vez que o fazem por meio de uma nfase na segunda

    antes que na primeira. A despeito da contribuio significativa que os estudos etno-

    histricos tm dado compreenso das realidades indgenas do continente, tal

    nfase tende a obscurecer as prticas e concepes indgenas e a projetar os

    modelos ocidentais de ao, conscincia e mudana histricas sobre os esquemas

    cosmoprticos nativos. Essa tendncia no especfica da etnologia regional, antes

    caracterstica da antropologia contempornea como um todo, constituindo a face

    positiva de uma recusa em exotizar o nativo, pecado de que hoje se inculpa

    severamente a antropologia modernista (p.ex. Fabian 1983, Trouillot 1991, Fox

    1991).

    No vemos nessa recusa uma atitude realmente radical. Pelo contrrio, detectamos

    nela uma transformao obsessional (permita-se-nos o trocadilho freudiano) docolonialismo, que, ao rejeitar a diferena como exotismo, pensa elevar moralmente

    outros povos ao conceder-lhes aquilo que a metrpole valoriza em si mesma.

    (Viveiros de Castro 1993c; Fausto & Heckenberger em preparao). No por

    acaso, assim, que hoje se queira atribuir aos povos autctones uma historicidade

    quente e linear, assim como uma poltica fundada na identidade e na ao

    reflexiva de indivduos conscientes de seu passado e portadores de um projeto de

    futuro justamente as qualidades que nossa tradio valoriza. Essa projeo de

    noes ocidentais modernas de tempo e pessoa sobre outros universossocioculturais faz-se acompanhar por outra tendncia contempornea, que consiste

    em converter qualquer forma de pensamento ou prtica que no satisfaa os

    padres morais ou as exigncias de racionalidade da cultura anglo-americana, em

    mera fico da imaginao ocidental (Viveiros de Castro 1993a, 1996c;

    Obeyesekere 1992; Sahlins 1995, 2003; Fausto 2002a). A antropologia

    pretensamente anti-exotista (uma sorte de teoria aplicada da mauvaise conscience

    15Vejam-se, entre outros, Franchetto & Heckenberger 2001, Franchetto 1992, Vilaa 1996a,1996b, Fausto 2000, 2001, no prelo a, no prelo b, no prelo c, Teixeira-Pinto 2000, CalaviaSaz2000, Lasmar 2002, Gordon 2003.

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    europia) responsvel por esta desrealizao reflexiva realiza conceitualmente

    aquilo que o colonialismo pretendeu realizar politicamente: assimilar e identificar.

    Ao tomar a alteridade como mais uma inveno do Ocidente, abre-se o caminho

    para uma pasteurizao generalizada da diferena, e para a consequente reduoda antropologia a um guia prtico de mesmificao conceitual.

    Outros modos, outros mundos. Nosso projeto funda-se, muito ao contrrio, na idia

    de que possvel (e portanto necessrio) relacionar-se com modos diversos de

    pensar a temporalidade, a agncia e a transformao. Relacionarnossa imaginao

    conceitual imaginao indgena exige que se adote uma perspectiva onde a

    relao, como dissemos, seja tanto nosso objeto como nosso instrumento. Em vez

    de identificar e assimilar, em suma, queremos alterar e diferenciar, e isso inclui

    nosso prprio movimento conceitual: a preenso relacional no apenas a

    economia do outro, mas tambm do mtodo de aproximao ao outro.

    Tal convico implica que devemos comear por colocar nossas perguntas no plano

    dos princpios. preciso comear, a rigor, por duvidar: duvidar que os conceitos de

    identidade, agncia, histria e mudana, tal como utlizados pela antropologia de

    hoje, guardem a mais mnima relao com as tradies cosmoprticas que

    tencionamos estudar. Isso no significa que estejamos supondo a existncia de dois

    mundos estanques o nosso e o deles , ou que no reconheamos que umapoltica ocidentalista da identidade parte da vida atual dos povos indgenas. A

    hegemonia do Ocidente universalizou a linguagem da identidade e organizou a

    prtica poltica de muitos povos do mundo segundo sua lgica. Contudo, analisar

    esse fato de uma perspectiva externalista s nos devolver o trivial e o j sabido.

    Da a necessidade de enfrentar o tema a partir de uma compreenso interna das

    ontologias sociais (releve-se-nos, mais uma vez, o pleonasmo) nativas, sem a qual

    estaramos reduzidos, como o est boa parte da antropologia, ao debate estril

    sobre a autenticidade cultural, conceitualidade suspeita da inveno da tradioe s frmulas to sonoras como vazias a respeito da construo da identidade. Se

    a antropologia pretende compreender a indigenizao das tendncias globais (que

    nunca nascem globais), ela precisa lanar-se novamente tarefa de relacionar-se

    com a diferena para reconhecer osprocessos de diferenciaoque provm no do

    centro, mas das assim chamadas periferias (Sahlins 1997a, 1997b). Pois j dizia

    Tarde, la diffrence va diffrant, le changement va changeant.

    Para que possamos realizar a dita interveno etnograficamente motivada sobre os

    conceitos de histria, agncia e mudana, mister precisar o plano terico em que

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    queremos nos mover. Rejeitemos de incio um procedimento corrente, que consiste

    em passar um julgamento to sumrio como grosseiro sobre o estruturalismo lvi-

    straussiano, evocando os lugares-comuns sobre a natureza a-histrica do

    estruturalismo e sobre o privilgio por ele conferido sincronia. O pontonormalmente visado a distino entre sociedades frias e quentes (Lvi-Strauss

    1973[1961], 1962a; ver tambm 1958, 1983). Esta no uma distino a que

    demos muito peso, mas, em vista da freqente incompreenso que a cerca, em

    especial na antropologia anglo-americana, cumpre mostrar que o problema no

    est, justamente, ali.

    Desde 1952, Lvi-Strauss argumentava contra a idia de pudessem existir povos

    sem histria, contestando a viso ento comum de que os caadores-coletores sul-

    americanos representariam um estrato arcaico da ocupao do subcontinente.

    Quando a distino entre sociedades quentes e frias aparece em sua aula inaugural

    no Collge de France, o autor comea por lembrar que, apesar de todas as

    sociedades estarem na histria (o que um trusmo), as assim chamadas

    sociedades primitivas teriam percorrido vias diferentes daquelas que ns

    escolhemos (1973[1961]:39-40). deste reconhecimento de que h diferentes

    maneiras de lidar com a passagem do tempo e conceber a temporalidade, que Lvi-

    Strauss passa distino entre frio e quente, lembrando que se trata antes de

    mais nada de uma distino terica, j que nenhuma sociedade corresponde

    inteiramente a um ou a outro tipo.16Muitos antroplogos tomaram essa concepo

    de que sociedades diferentes possuem diferentes regimes de historicidade como

    mais um exemplo de uma Teoria do Grande Divisor e procuraram mostrar, no caso

    amaznico, que os ndios tambm possuam ou faziam histria, via de regra

    sem se perguntar o que histria, possuir ou fazer poderiam significar em tal

    contexto.

    Esse o intuito, por exemplo, da coletnea Rethinking History and Myth, devotada,nas palavras de seu editor, a desmontar o mito [sic]das sociedades frias (Hill

    1988). O livro revisita a distino entre mito e histria, explorando as maneiras

    pelas quais o contato entre ndios e brancos aparece nas narrativas, nos rituais e

    na oratria (Hill 1988:1). Quase todos os artigos comeam com uma crtica

    distino entre sociedades quentes e frias, mas, ironicamente, terminam por se

    16O mesmo argumento ressurge nO Pensamento Selvagem, onde ele se insere na crtica aohistoricismo humanista-transcendental de Sartre: il est aussi fastidieux quinutile dentasser

    les arguments pour prouver que toute socit est dans lhistoire et quelle change: cestlvidence mme. Mais, en sacharnant sur une dmonstration superflue, on risque de

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    constituir em excelentes exemplos do que Lvi-Strauss tinha em mente ao propor a

    distino. Ao mostrar que as relaes entre brancos e ndios so incorporadas e

    expressas por meio de performances rituais e narrativas, os artigos do livro

    mostram que esses mecanismos culturalmente especficos podem absorver eventose relaes em uma forma que muda para preservar a escala global do mundo vivido

    indgena (Gow 2001). Entendemos que esse justamente o argumento de Lvi-

    Strauss, que se funda no em alguma estabilidade e fixidez almejadas e (menos

    ainda) alcanadas, mas na noo de transformao estrutural, o tipo de

    transformao que perpassa as Mitolgicas e que ele anuncia em sua lio

    inaugural, quando escreve que, em contraste com a histria, ele adota um modle

    plutt de transformationsque de fluxions (1973? [1961]:28).

    A nfase do presente projeto, assim e em suma, no recai sobre a distino entre

    sociedades ou historicidades quentes e frias, mas sobre as potencialidades

    inexploradas do conceito de transformao estrutural, bem como sobre seus

    limites.17 Esse conceito fornece um poderoso instrumento analtico para falar ao

    mesmo tempo de mudana e continuidade, ambos implicados nos processos de

    transformao, sem recorrer a motivos romnticos como essncia, Volkgeist ou

    qualquer noo correlata que suponha uma concepo primordialista e

    substantivista de identidade (Fausto & Heckenberger em preparao). Uma crtica

    produtiva a Lvi-Strauss, capaz de explorar os limites internos do estruturalismo

    (Viveiros de Castro 2002d), deve portanto visar os limites desse modelo de

    transformao antes que atribuir erroneamente teoria lvi-straussiana uma

    impotncia histrica constitutiva. Alguns de ns tm buscado desenvolver

    estratgias para estudar etnograficamente a dinmica transformacional dos

    coletivos (singulares e plurais) indgenas sem separar a anlise da economia

    mitopotica da metamorfose daquilo que se costuma estudar sob o rtulo

    tradicional de mudana social (ver, por exemplo, Vilaa 1999, Fausto 2002a;ver

    tambm o subtema 2.1., bem como a articulao entre os subtemas 3.2 e 3.3).

    mconnatre que les socits humaines ragissent de faons trs diffrentes cettecommune condition (1962a:310).17Desde meados dos anos 80, os trabalhos de nosso grupo vm focalizando os aspectosdinmicos da estrutura e a importncia da transformao, embora no mbito de problemasmais clssicos. Lembremos que nossa contribuio mais tcnica aos estudos dos sistemasde parentesco amerndios inspirava-se na noo de estruturas performativas de Sahlins(1985) e na problemtica estrutural-aliancista do dualismo e do cunhadio (Lvi-Strauss1943, 1958 [1956]), ambas firmemente ancoradas em uma concepo dinmica da estrutura(cf., entre outros, Viveiros de Castro 1986, 1993b, 1998, 2001; Coelho de Souza 2002;Fausto 1991, 1995).

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    Um dos limites internos mais interessantes da problemtica lvi-straussiana de

    transformao, com implicaes para a trplice relao entre ritual, histria e

    mitopoiesis, diz respeito diferena entre as concepes totmica e sacrificial da

    diferenciao. Todos se recordam do contraste multidimensional entre totemismo e

    sacrifcio desenvolvido em O pensamento selvagem.Utilizando alguns dos termos

    de seu autor (Lvi-Strauss 1962b: 295-302), podemos resumi-lo como segue: (1) O

    totemismo postula uma homologia entre duas sries paralelas (natural e cultural),

    estabelecendo uma correlao formal e reversvel entre dois sistemas de diferenas

    globalmente isomrficas; (2) O sacrifcio postula uma s srie, contnua e orientada,

    ao longo da qual se efetua uma mediao real e irreversvel entre dois termos

    polares e no-homlogos (humanos e divindades), cuja contigidade deve ser

    estabelecida por identificaes ou aproximaes sucessivas; (3) Assim, o sacrifcio

    metonmico, o totemismo metafrico; o primeiro um sistema tcnico de operaes,

    o segundo um sistema interpretativo de referncias; o primeiro da ordem da

    parole; o segundo, da langue.

    Pode-se concluir, dessa caracterizao, que o sacrifcio envolve princpios de um tipo

    inteiramente distinto das equivalncias de proporcionalidade manifestas no

    totemismo e nos demais sistemas de transformao analisados em O pensamento

    selvagem e nas Mitolgicas. As transformaes lgicas do totemismo (e do mito)

    estabelecem-se entre termos que vem suas posies recprocas modificadas por

    permutaes, inverses, quiasmas e outras redistribuies combinatrias e

    extensivas o totemismo uma tpica da descontinuidade. As transformaessacrificiais, ao contrrio, manifestam relaes intensivas que modificam a natureza

    dos termos eles prprios, pois fazem passar algo entre eles: a transformao, aqui,

    no permutao dedutiva, mas transmutao indutiva ela lana mo de uma

    energtica do contnuo. Se o objetivo do totemismo assemelhar sries de

    diferenas dadas cada qual por seu lado, o propsito do sacrifcio diferenciar

    semelhanas; mas no no sentido de dessemelhar termos originalmente pensandos

    como semelhantes, mas no de diferenciar internamente plos pressupostos como

    auto-idnticos, ao induzir uma zona ou momento de indiscernibilidade entre eles.

    Recorrendo a uma alegoria matemtica (e leibniziana), diramos que o modelo dastransformaes estruturais do totemismo a anlise combinatria, ao passo que o

    instrumento necessrio para explorar o reino da continuidade (id. 1962a: 296)

    estabelecido pelas metamorfoses intensivas do sacrifcio remeteria, antes, a algo

    como o clculo diferencial. Com efeito, a caracterizao lvi-straussiana do

    totemismo o apreende como um puro sistema de formas, ao passo que a do sacrifcio

    recorre a formulaes que sugerem a presena de algo como um sistema de foras.

    Lvi-Strauss fala, por exemplo, em uma soluo de continuidade entre

    reservatrios, em um dficit de contigidade preenchido automaticamente

    usa aqui toda uma linguagem de vasos comunicantes que evoca irresistivelmente aidia de uma diferena de potencialenvolvida na estrutura do sacrifcio.

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    Duas imagens, em suma, muito diferentes, talvez mesmo incompatveis (id. ibid.:

    295), da diferena. Uma imagem extensiva e uma imagem intensiva: a forma e a

    fora. Acontece que o mtodo estrutural clssico est muito melhor capacitado a dar

    conta da forma que da fora, da combinatria que do diferencial, da langueque daparole, da categorizao que da ao. Conseqentemente talvez devssemos

    dizer, infelizmente , esses aspectos que resistem em maior ou menor medida ao

    mtodo estrutural foram quase sempre vistos por Lvi-Strauss como

    ontologicamente menores, seja porque do testemunho dos limites do pensvel, seja

    porque relevam do assignificante, seja, enfim, porque exprimem as potncias da

    iluso. Assim, por exemplo, o sacrifcio visto como imaginrio e falso, o totemismo

    como objetivo e verdadeiro (id. ibid.: 301-02), juzo que se repete, alis, no

    contraste entre mito e