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323 © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA José Carlos Pachón Mateos Juán Carlos Pachón Mateos Remy Nelson Albornoz Enrique Indalecio Pachón Mateos Marca-passo no Tratamento da Insuficiência Cardíaca 14 INTRODUÇÃO Com o avanço no tratamento das cardiopatias e conseqüente aumen- to da longevidade, a insuficiência cardíaca vem duplicando sua prevalên- cia a cada década. A OMS estima que existam atualmente cerca de 90 mi- lhões de casos. Nos Estados Unidos, ocorrem aproximadamente 550.000, e no Brasil, cerca de 250.000 casos novos por ano. Cerca de 35% dos ca- sos podem ser beneficiados pela correção de um distúrbio elétrico asso- ciado tal como bradicardia ou bloqueio intraventricular. CONTRIBUIÇÃO DO MARCA-PASSO NO TRATAMENTO DA INSUFICIÊNCIA CARDÍACA Nesta condição o marca-passo cardíaco pode contribuir, associado ao tratamento clínico, corrigindo a freqüência cardíaca (bradi e taquiarrit- mias) e/ou corrigindo o sincronismo entre as diversas câmaras do cora- ção (interatrial, atrioventricular e ventricular). Correção da Freqüência Cardíaca Bradiarritmias O objetivo original do marca-passo é corrigir as bradiarritmias. Neste sentido, considerando que o débito cardíaco é o produto da freqüência

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José Carlos Pachón MateosJuán Carlos Pachón Mateos

Remy Nelson AlbornozEnrique Indalecio Pachón Mateos

Marca-passo no Tratamento da

Insuficiência Cardíaca14

INTRODUÇÃO

Com o avanço no tratamento das cardiopatias e conseqüente aumen-to da longevidade, a insuficiência cardíaca vem duplicando sua prevalên-cia a cada década. A OMS estima que existam atualmente cerca de 90 mi-lhões de casos. Nos Estados Unidos, ocorrem aproximadamente 550.000,e no Brasil, cerca de 250.000 casos novos por ano. Cerca de 35% dos ca-sos podem ser beneficiados pela correção de um distúrbio elétrico asso-ciado tal como bradicardia ou bloqueio intraventricular.

CONTRIBUIÇÃO DO MARCA-PASSO NO TRATAMENTO

DA INSUFICIÊNCIA CARDÍACA

Nesta condição o marca-passo cardíaco pode contribuir, associado aotratamento clínico, corrigindo a freqüência cardíaca (bradi e taquiarrit-mias) e/ou corrigindo o sincronismo entre as diversas câmaras do cora-ção (interatrial, atrioventricular e ventricular).

Correção da Freqüência Cardíaca

Bradiarritmias

O objetivo original do marca-passo é corrigir as bradiarritmias. Nestesentido, considerando que o débito cardíaco é o produto da freqüência

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cardíaca pelo volume sistólico, conclui-se que seu papel é decisivo e fun-damental na manutenção do débito cardíaco. Nos casos em que a insufi-ciência cardíaca é induzida ou agravada por bradicardia a indicação demarca-passo torna-se essencial para o tratamento.

Resposta de Freqüência

Além de corrigir a freqüência cardíaca em repouso, os marca-pas-sos atuais têm importante papel no ajuste da freqüência cardíaca, con-forme as necessidades metabólicas do paciente. Isto é obtido basica-mente com os marca-passos seqüenciais fisiológicos ou através de sis-temas com biossensores. Os marca-passos fisiológicos são atrioventri-culares seqüenciais capazes de seguir a freqüência sinusal. O ajuste dafreqüência cardíaca neste caso segue o padrão natural. Quando não sepode utilizar a função sinusal (incompetência cronotrópica ou fibrila-ção atrial permanente), é necessária a utilização de marca-passos combiossensores — “marca-passos responsivos”. Estes aparelhos são dota-dos de biossensores mecânicos (cristal piezoelétrico, acelerômetro),respiratórios ou de contratilidade cardíaca. Nestes casos o biossensordetecta uma variável não metabólica (movimento corporal) ou metabó-lica (respiração, inotropismo, etc.) — proporcional ao esforço físico eao consumo de oxigênio —, de forma que a freqüência de estimulaçãopode ser aumentada e reduzida conforme as necessidades metabólicasdo paciente. Estes sistemas são importantes no ajuste hemodinâmico doportador de insuficiência cardíaca pelo fato de prevenirem o aumentoexcessivo da pré-carga em decorrência de uma bradicardia absoluta ourelativa (Fig. 14.1).

Taquiarritmias

Ablação do Nó AV

Eventualmente, a insuficiência cardíaca pode ser provocada ou poten-cializada por freqüência cardíaca anormalmente e permanentemente alta.Esta condição pode levar a uma dilatação progressiva das câmaras cardía-cas conhecida como taquicardiomiopatia. É particularmente freqüente nafibrilação atrial crônica com freqüência alta que não responde a tratamen-to clínico. Nesta situação a ablação do nó atrioventricular associada aoimplante de um marca-passo cardíaco tem obtido excelentes resultadosclínicos. Diversos estudos têm mostrado que estes pacientes apresentamsignificativa melhora na qualidade de vida e sobrevida semelhante à dapopulação normal de mesma faixa etária.

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Prevenção de Taquiarritmias

A prevenção de arritmias — notadamente a fibrilação atrial — é im-portante no tratamento da insuficiência cardíaca por melhorar o rendi-mento ventricular e preservar a contribuição atrial. Recentemente, diver-sos trabalhos3-6 têm demonstrado que é possível prevenir episódios de fi-brilação atrial com diversos protocolos automáticos de estimulação inclu-ídos em marca-passos definitivos. Estes sistemas detectam as extra-sístolesdeflagradoras e aumentam a freqüência de estimulação de forma a encur-tar o ciclo cardíaco e reduzir a possibilidade de aparecimento de outrastaquiarritmias (overpace ou overdrive).

Dessincronização e Ressincronização das Câmaras Cardíacas

Sempre que existe um retardo anormal na ativação do coração, o ren-dimento cardíaco é comprometido. Estes retardos ou bloqueios podemocorrer em três níveis: atrial, atrioventricular e ventricular (Fig. 14.2). Osmarca-passos modernos têm recursos para corrigir os bloqueios nestes trêsníveis contribuindo no tratamento da insuficiência cardíaca independentede seu efeito na freqüência cardíaca. Os primeiros marca-passos concebi-dos para ressincronizar as câmaras cardíacas foram os atrioventriculares se-qüenciais, que utilizam dois eletrodos. Recentemente surgiram os sistemasde estimulação multissítio (atrial e ventricular) que utilizam três eletrodospara sincronizar além dos territórios AV os territórios atrial ou ventricular.

Fig. 14.1 — Esquema comparando a resposta de freqüência cardíaca no indivíduo normal,no portador de marca-passo sem resposta de freqüência e no portador de marca-passo com

biossensor.

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Ressincronização Atrioventricular

A estimulação ventricular isolada, sem sincronismo com a atividadeatrial, pode provocar sintomas de palpitações, tonturas, intolerância aosesforços, dispnéia, hipotensão arterial e piora dos sintomas de insuficiên-cia cardíaca. Este quadro é conhecido como “síndrome do marca-passo”.Esta condição, ocasionada pela falta do sincronismo AV fisiológico, podeocorrer na ausência ou na presença de condução retrógrada (ventricu-loatrial). No primeiro caso existe dissociação completa das atividadesventricular e atrial (ver Cap. 14). No segundo caso verifica-se uma ondaP retrógrada após cada QRS estimulado em ventrículo (ver Cap. 14) in-vertendo o padrão fisiológico da mecânica atrioventricular. Nestas con-dições os átrios se contraem em regime de alta pressão, com as valvasAV fechadas favorecendo o refluxo venoso pulmonar e sistêmico, afibrilação atrial e o tromboembolismo. A condução retrógrada podeocorrer pela via normal de condução AV, por feixes anômalos ocultos oupela presença de via beta (via rápida) de uma dupla via nodal. A preven-

Fig. 14.2 — Esquema representativo das dessincronizações atrioventricular (AV), interatrial(AA) e interventricular (VV). A primeira predispõe à “síndrome do marca-passo”, a segunda

favorece o surgimento de fibrilação atrial, e a terceira, quando associada a cardiomiopatiadilatada, predispõe ao surgimento da “síndrome ventricular do marca-passo”14. Tanto a

“síndrome do marca-passo” como a “síndrome ventricular do marca-passo” podem provocarou agravar a insuficiência cardíaca.

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ção e o tratamento desta condição são obtidos pelo uso dos marca-pas-sos atriais (na ausência de BAV) ou seqüenciais atrioventriculares (napresença de BAV), também chamados de marca-passos fisiológicos. Es-tes marca-passos, além de manter uma freqüência cardíaca mínima pro-gramada, garantem o sincronismo atrioventricular, ou seja, relação AV1:1 com intervalo AV normal, em repouso e durante o esforço. O mar-ca-passo unicamente ventricular atualmente é indicado como exceçãonos casos de fibrilação atrial crônica ou quando é impossível o acessoatrial.

A importância do sincronismo AV no tratamento da insuficiência car-díaca tem sido amplamente demonstrada. Na doença do nó sinusal, o es-tudo PASE (“Pacemaker Selection Elderly Trial”), comparando os marca-passos AV fisiológicos com os marca-passos ventriculares, mostrou que osprimeiros reduzem significativamente a incidência de insuficiência car-díaca, de internações hospitalares, de mortalidade, de evolução para fibri-lação atrial e de acidentes vasculares cerebrais.

Respeitar o sincronismo AV não significa somente manter a relação AVem 1:1. É necessário o ajuste correto do intervalo AV. Um intervalo AVmuito curto (pré-excitação) é prejudicial pela tendência de sobreposiçãoentre as contrações atrial e ventricular. Por outro lado, um intervalo AVmuito longo também é indesejável pelo surgimento de refluxo ventrícu-lo atrial depois da contração atrial e antes da contração ventricular (in-suficiência mitral diastólica ou insuficiência mitral do intervalo AV) (Fig.14.3).

Tratamento da Insuficiência Cardíacacom Intervalo AV Curto

Na insuficiência cardíaca, após a contração atrial e devido à alta pres-são diastólica final do ventrículo esquerdo, existe uma tendência ao reflu-xo mitral diastólico. Isto, além de reduzir a pré-carga aumenta a conges-tão pulmonar. Foi demonstrado, nesta situação, que a redução do intervaloAV poderia promover a contração ventricular antes do refluxo mitraldiastólico, aproveitando a “pré-carga máxima efetiva”. Além de melhorara contração obtém-se a redução do refluxo mitral melhorando a pressãode pulso. Desta forma Hochleitener e cols. propuseram o implante de mar-ca-passo AV seqüencial com intervalo AV curto para tratamento da insu-ficiência cardíaca sem bradicardia. Houve um bom resultado no grupoestudado, porém a melhora inicial não se manteve e os achados não fo-ram reproduzidos por outros autores. Desta forma, o implante de marca-passo AV convencional com intervalo AV curto não é aceito como tratamentoda insuficiência cardíaca.

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Por que o MP AV + Intervalo AV Curto Não Funcionouno Tratamento da ICC?

Os fundamentos teóricos desta proposição estavam bem apoiados nafisiopatologia da insuficiência cardíaca. Entretanto, Hochleitner e cols., natentativa de reduzir o intervalo AV, estimulavam o ventrículo com um mar-ca-passo AV convencional (QRS largo). Desta forma, obtinham as vanta-gens do encurtamento do intervalo AV, porém criavam as desvantagens doalargamento do QRS pela estimulação artificial, ou seja, na tentativa desincronizar os territórios atrioventricular dessincronizavam o territórioventricular (Fig. 14.4). Certamente este foi o ponto negativo deste traba-lho, que teve o grande mérito de considerar o marca-passo como alterna-tiva no tratamento da insuficiência cardíaca sem bradicardia. Certamen-te se o trabalho tivesse sido realizado com os modernos marca-passosmultissítio o resultado teria sido muito melhor e reprodutível.

Ressincronização Interatrial

A ativação precoce do átrio esquerdo é tão importante que foi proje-tada pela evolução natural criando e preservando o fascículo de Bachmann

Fig. 14.3 — Quando a pressão diastólica final do ventrículo esquerdo é elevada, podeocorrer regurgitação mitral no final da diástole. Neste caso, a redução do intervalo AV

diminui este fenômeno melhorando o rendimento cardíaco.

Auricchio A., et al. Association between preload and optimal pacing modein CHF patients. Heart Failure Society of America 1998.

Intervalo AV ótimo melhora o sincronismo AV

Sinusal Estimulado

Pressıo aðrtica

Pressıo atrial

PP PP

Regurgita˘ıomitral diastðlica

Sˇstole A e Vsincronizadas

Pr˚-carga mÛximaefetiva

Inˇcio dasˇstole do

VEPressıode VE

A V A V

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o qual ativa o átrio esquerdo precocemente no sentido craniocaudal.Quando existe bloqueio deste fascículo ocorre dificuldade na conduçãointeratrial e retardo na contração atrial esquerda. Este fato tende a sobre-por as contrações do átrio e ventrículo esquerdos predispondo o pacien-te a disfunção hemodinâmica (Fig. 14.5, à esquerda) e a taquiarritmiasatriais com agravamento da insuficiência cardíaca. O tratamento destacondição é realizado com o implante de marca-passo biatrial. Neste caso,a saída atrial é dividida para dois eletrodos. Um estimula o átrio direi-to de forma convencional e outro estimula o átrio esquerdo sendo co-locado através do seio coronário (Fig. 14.5 à direita). O resultado é umaestimulação simultânea dos dois átrios reduzindo drasticamente o tem-po de ativação atrial total. Este tipo de estimulação é utilizado mais fre-qüentemente para prevenir taquiarritmias atriais, principalmente a fibri-lação atrial.

Dessincronização do Miocárdio Ventricular

A estimulação ventricular com QRS largo, apesar de corrigir a freqüên-cia cardíaca, é altamente prejudicial do ponto de vista hemodinâmico. OQRS largo ocasionado por bloqueio completo do ramo esquerdo (ou deforma semelhante por marca-passo no ventrículo direito), promove dis-função sistólica, disfunção diastólica e aumento da regurgitação mitral,.Estes efeitos deletérios se devem à “dessincronização do miocárdio ven-

Fig. 14.4 — Na tentativa de encurtar o intervalo AV Hochleitner e cols. promoveram oalargamento do QRS. Este efeito normalmente é bem tolerado no coração normal porém

provoca ou agrava a insuficiência cardíaca na cardiomiopatia dilatada (síndrome ventriculardo marca-passo14). Desta forma, o marca-passo convencional para tratamento de

insuficiência cardíaca sem bradicardia não está indicado.

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tricular”. Desta forma, não fosse pela correção da freqüência, o marca-passoconvencional seria definitivamente prejudicial na insuficiência cardíaca.

Quando o coração insuficiente e dilatado é ativado com QRS largo, oaumento de pressão pela contração das áreas estimuladas inicialmentetende a ser atenuado pelo relaxamento das áreas que ainda não foram ati-vadas — dessincronização ventricular —, resultando em grande perda deeficiência cardíaca (Fig. 14.6). Este efeito é proporcional à duração doQRS. Trata-se de uma discinesia eletromecânica. Para evitar esta deficiên-cia, a evolução natural criou um sistema de condução intraventricular al-tamente especializado (His-Purkinje e plexos subendocárdicos dePurkinje) com grande velocidade de condução, capaz de ativar todas ascélulas ventriculares num intervalo de tempo muito curto (QRS estreito).Isto previne a discinesia eletromecânica. Além disto, a ativação precocede todas as células vai induzir uma contração sinérgica exatamente nomomento em que a pressão intraventricular é baixa (fim da diástole) au-mentando a eficiência do deslizamento actina-miosina. Estes fatores jus-tificam a alta dp/dt e conseqüentemente a grande eficiência da contraçãocardíaca com QRS estreito ou seja, sincronizada.

“Síndrome do QRS largo” ou “Síndrome Ventriculardo Marca-passo”

Quando ocorre alargamento do QRS num portador de cardiomiopa-tia dilatada, comumente ocorrem sinais e sintomas de insuficiência car-

Fig. 14.5 — O bloqueio interatrial atrasa a ativação do átrio esquerdo causando umacoincidência entre as contrações atrial e ventricular esquerdas, predispondo ao surgimento

de fibrilação atrial. Esta disfunção, freqüente na síndrome braditaquicardia, pode sercorrigida com implante de marca-passo biatrial cujo eletrodo de átrio esquerdo pode ser

implantado pelo seio coronário através de acesso endocárdico, sem toracotomia.

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díaca ou agravamento de uma insuficiência cardíaca preexistente. A estefenômeno denominamos “Síndrome do QRS largo” quando o alargamentose deve a bloqueio de ramo esquerdo espontâneo ou “síndrome ventri-cular do marca-passo” quando se deve a estimulação artificial monofocaldo ventrículo (implante de um marca-passo monofocal em ventrículo oufalha de comando de um eletrodo ventricular num sistema multissítio).

Ressincronização Ventricular

A estimulação simultânea de regiões miocárdicas distantes através doimplante de dois ou mais eletrodos ventriculares pode restabelecer osinergismo contrátil perdido pelo alargamento do QRS. Esta forma de tra-tamento é conhecida como “Estimulação Ventricular Multissítio”.

Estimulação Ventricular Multissítio

Esta estimulação ventricular tem o objetivo de “ressincronizar” o mio-cárdio ventricular. É obtida com marca-passos especiais (“ressincroniza-

Fig. 14.6 — Neste exemplo, o paciente tem fibrilação atrial com QRS estreito. O terceirobatimento marca o início de uma estimulação ventricular com marca-passo provisório numa

freqüência semelhante à do ritmo espontâneo. A estimulação artificial promove importantealargamento do QRS e uma significativa perda de rendimento cardíaco evidente pela

redução da onda de pulso.

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dores”) que apresentam o circuito ventricular com duas saídas conectadasa pelo menos dois eletrodos ventriculares implantados em áreas distan-tes e estimuladas ao mesmo tempo. Os eletrodos podem ser endo ou epi-cárdicos. Dependendo dos pontos estimulados a estimulação multissítiopode ser biventricular, bifocal direita ou trifocal.

Estimulação Biventricular

A estimulação biventricular foi o primeiro tipo de estimulação ventri-cular multissítio, sendo utilizada desde 1994. Na sua aplicação mais fre-qüente, o ventrículo direito é estimulado por um eletrodo endocárdicoimplantado de forma convencional e o ventrículo esquerdo é estimuladopor um eletrodo posicionado no interior de uma veia cardíaca através doseio coronário (Fig. 14.7). Com esta técnica é possível obter-se estimula-ção biventricular por acesso endocárdico, sem toracotomia. A viaepicárdica, entretanto, pode ser utilizada em alguns casos para posiciona-mento do eletrodo no ventrículo esquerdo. A estimulação simultânea dosdois pontos produz um QRS mais estreito que aquele do BCRE obtendo-se a “ressincronização ventricular”.

O estudo MUSTIC (Multisite Stimulation in Cardiomyopathies) foi oprimeiro estudo randomizado controlado para avaliar o efeito da estimu-lação biventricular em pacientes com insuficiência cardíaca e sem indi-cação convencional de marca-passo. Os resultados mostraram um aumen-to de 23% na distância média caminhada, melhora de 32% no escore dequalidade de vida, aumento de 8% na captação de oxigênio e redução de66% no número de hospitalizações ao comparar o ventrículo sincroniza-do pelo marca-passo multissítio com o não sincronizado, durante trêsmeses. Ao serem questionados, 86% dos pacientes preferiram o modo deestimulação biventricular, 4% preferiram não ser estimulados e 10% nãomostraram nenhuma preferência. As diferenças foram todas estatistica-mente significativas.

O estudo multicêntrico MIRACLE (Multicenter InSync RandomizedClinical Evaluation), comparando portadores de insuficiência cardíaca comventrículo sincronizado (estimulado com marca-passo biventricular) comnão-sincronizado (marca-passo inibido — BRE espontâneo) mostrou quehouve redução de uma classe funcional (NYHA) em 69% dos casos con-tra 34% e aumento maior que 50m no teste de caminhada de seis minu-tos em 50% dos casos contra 30%, respectivamente. A duração média doQRS não foi significativamente diferente.

O benefício da estimulação biventricular na função cardíaca está muitobem estabelecido. Entretanto, temos observado e a literatura tem divul-gado casos de morte súbita, principalmente em pacientes que estavam

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respondendo muito bem à estimulação biventricular. Aparentemente, amelhora clínica obtida com a ressincronização não estava sendo acom-panhada de melhora na sobrevida. Este fenômeno levou à realização degrandes estudos utilizando o “ressincronizador-desfibrilador” em porta-dores de insuficiência cardíaca grave. Um dos mais importantes é o“Contak CD Trial” que mostrou redução de 23% na mortalidade total,de 13% nas hospitalizações por insuficiência cardíaca, de 26% na pro-gressão da insuficiência cardíaca e de 9% na necessidade de intervençãoem taquicardia ou fibrilação ventriculares, quando a estimulaçãobiventricular está acionada.

Recentemente foram publicados os resultados do “trial” de maior re-levância a este respeito, o estudo “COMPANION” que randomizou os por-tadores de insuficiência cardíaca em 3 braços: 1. tratamento clínico; 2. tra-tamento clínico + implante de ressincronizador e, 3. tratamento clínico+ implante de ressincronizador-desfibrilador. O estudo foi interrompidoprematuramente porque o braço do ressincronizador mostrou redução de19% e o braço do ressincronizador-desfibrilador mostrou redução de 43%no índice composto de internação hospitalar-mortalidade em relação aotratamento clínico ótimo. Os dados sugerem que a insuficiência cardíacagraus III e IV, devida a cardiomiopatia dilatada irreversível com QRS lar-go, devem ser tratados com implante de ressincronizador-desfibrilador.

Fig. 14.7 — Esquema da estimulação multissítio biventricular. A técnica maisfreqüentemente utilizada é a endocárdica, sendo o eletrodo de ventrículo esquerdo

implantado numa veia cardíaca por cateterismo do seio coronário. Os eletrodos atrial eventricular direitos são implantados conforme a técnica de implante endocárdico

convencional. (Folder da Guidant, Inc.) À direita observa-se uma radiografia PA de um casocom marca-passo biventricular. AD, VD e VE: eletrodos atrial direito, ventricular direito e

ventricular esquerdo, respectivamente.

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Estimulação Ventricular Direita Bifocal

Muitas vezes existe impossibilidade ou dificuldade para a estimulaçãodo ventrículo esquerdo (Tabela 14.1). Nessas condições, a estimulaçãoventricular bifocal direita tem mostrado grande utilidade clínica. Diver-samente à estimulação biventricular — que permite uma ressincroniza-ção transversal — a estimulação ventricular bifocal direita proporcionauma ressincronização longitudinal do coração (Fig. 14.8).

Fundamentos da Estimulação Ventricular Bifocal Direita

No coração muito dilatado com QRS largo, seja por marca-passo car-díaco ou por BCRE, a estimulação monofocal da ponta promove uma “dis-cinesia eletromecânica ponta-base”. O aumento de pressão originado pelacontração apical promove o relaxamento passivo da região basal. Naestimulação ventricular bifocal direita, a ponta e a base do septo interven-tricular são ativadas ao mesmo tempo, reduzindo favoravelmente a “dis-cinesia eletromecânica” da ativação monofocal (Fig. 14.9). Deste modo,pode-se duplicar o número de células que são ativadas antes do aumentoda pressão intraventricular. O resultado é QRS mais estreito e contraçãomais eficaz em decorrência de “ressincronização longitudinal” do miocár-dio. A grande vantagem deste método é a facilidade de acesso e a utiliza-ção de eletrodos convencionais, de baixo custo, todos colocados com atécnica endocárdica tradicional.

Resultados da Estimulação Ventricular Direita Bifocal

A estimulação ventricular direita bifocal foi avaliada no estudo VERBS(Ventricular Endocardial Right Bifocal Stimulation)19. Neste estudo, o mo-

Tabela 14.1Condi˘þes que Podem Impedir a Instala˘ıo ou a Manuten˘ıo de uma Estimula˘ıo

Ventricular Esquerda Adequada, por Via EndocÛrdica

A. Dificuldade de Acesso ou de Estimula˘ıo do Ventrˇculo EsquerdoObstru˘ıo do seio coronÛrio ou de veia cardˇacaAus¸ncia de veia cardˇaca ou posi˘ıo desfavorÛvelDeslocamento de eletrodoAltos limiares de estimula˘ıoEstimula˘ıo fr¸nica

B. Necessidade de Sincroniza˘ıo AdicionalProgressıo de IC em portador de estimula˘ıo biventricular regular

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delo de BCRE foi obtido por estimulação convencional da ponta doventrículo direito. Os resultados mostraram que a estimulação ven-tricular bifocal direita é significativamente superior à estimulaçãoconvencional e à estimulação ventricular monofocal septal em com-parações intrapaciente. A comparação imediata pelo ecocardiogramamostra um aumento médio de 12% na fração de ejeção e de 19% nodébito cardíaco. Ao mesmo tempo, verifica-se redução média de 32%na área de regurgitação mitral e de 12% na área do átrio esquerdo.Além da melhora significativa na função sistólica e na função mitralexiste efeito altamente positivo na função diastólica. Verifica-se au-mento médio de 31% no peak-filling rate (velocidade de enchimen-to/pico) e redução média de 19% na relação E/A e de 18% no tE col.Estes parâmetros denotam melhora na capacidade hemodinâmicaaspirativa do ventrículo. Do ponto de vista eletrocardiográfico, ocor-reu significativo estreitamento do QRS com redução média de 25%em sua duração. A cintilografia mostra que as áreas de ativação tar-dia existentes nas estimulações monofocais convencional e septal sãoclaramente reduzidas pela estimulação bifocal. Além disto, o estudode fase mostra que a estimulação bifocal promove adiantamento e en-curtamento da sístole com aumento na duração da diástole. O estu-do de qualidade de vida feito com o Minnesota Living with HeartFailure Questionnaire, tendo-se randomizado no mesmo paciente os

Fig. 14.8 — À direita, representação esquemática da estimulação multissítio AV bifocaldireita. Um dos grandes objetivos desta estimulação é ativar ao mesmo tempo as regiões

dos fascículos ântero-superior e póstero-inferior do ramo esquerdo do feixe de Hisrecuperando o sincronismo do miocárdio ventricular esquerdo. À direita observam-se as

derivações D2 e D3 comparando-se o QRS largo da estimulação monofocal e oestreitamento subseqüente da estimulação bifocal direita. FAS: fascículo ântero-superior,

RD: porção inicial do ramo direito, FPI: fascículo póstero-inferior, VD: ventrículo direito.

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modos bifocal e convencional, mostrou uma significativa redução da sin-tomatologia (30% em média) com o modo bifocal e retorno dos sintomascom a estimulação convencional.

No estudo VERBS, também tem sido observado que esta nova formade estimulação ventricular é superior do ponto de vista hemodinâmico aobloqueio completo do ramo esquerdo nos portadores de cardiomiopatiadilatada com insuficiência cardíaca.

Estimulação Ventricular Trifocal

Alguns pacientes apresentam miocárdio muito dilatado, de forma quetanto a estimulação biventricular quanto a bifocal podem ser insuficien-tes. Estes casos podem ser tratados com a estimulação biventricular ebifocal ao mesmo tempo, no mesmo paciente. Esta forma de estimulaçãoé denominada “Estimulação Ventricular Trifocal”. Apresenta a vantagemde permitir uma ressincronização “transversal” e “longitudinal” ao mes-mo tempo (Fig. 14.10).

Fig. 14.9 — À esquerda, esquema da estimulação monofocal do miocárdio dilatado (BCREou marca-passo endocárdico convencional). O aumento de pressão decorrente da contração

das áreas inicialmente estimuladas promove a distensão das áreas distantes, ativadastardiamente (discinesia eletromecânica). À direita, esquema da estimulação bifocal direita. A

ativação simultânea de áreas distantes estreita o QRS reduzindo a discinesiaeletromecânica.

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Indicação da Estimulação Ventricular Multissítio

A estimulação ventricular multissítio está indicada nos portadores deinsuficiência cardíaca com as seguintes características:

1. Cardiomiopatia dilatada com FE < 35%;2. Insuficiência cardíaca NYHA ≥ II estabilizada com terapia clínica

ótima pelo menos nos dois últimos meses;3. QRS largo por BCRE ou por marca-passo convencional (≥ 150ms).O procedimento não é recomendado quando existe insuficiência re-

nal grave, expectativa de vida < 6 meses por outra razão, infarto do mio-cárdio há menos de três meses, angina instável, estenose aórtica ou mitral,cardiomiopatia hipertrófica ou amiloidose miocárdica.

Fig. 14.10 — Representação esquemática dos quatro eletrodos sobre uma radiografia detórax em PA de uma portador de estimulação ventricular trifocal. Neste caso foi realizada a

ressincronização atrioventricular, inter e intraventricular. AD: eletrodo de átrio direito, VDbase: eletrodo implantado na região septal da via de saída do ventrículo direito; VD ponta:

eletrodo implantado na ponta do ventrículo direito; VE: eletrodo implantado na paredeposterior do ventrículo esquerdo.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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