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  • R e l a t R i o

    Violncia contra os poVos indgenas no Brasil

    DaDos De 2010

    Conselho Indigenista Missionrio

  • RelatRio

    Violncia contra os poVos indgenas no Brasil

    DaDos De 2010

    A P O I O

    ISSN 1984-7645

  • PRESIDENTEDom Erwin Krutler

    ENDEREoSDS - Ed. Venncio III, sala 309-314

    CEP 70.393-902 - Braslia-DFTel: (61) 2106-1650Fax: (61) 2106-1651www.cimi.org.br

    Relatrio Violncia contra os povos indgenas no Brasil Dados de 2010

    ISSN 1984-7645

    CooRDENao Da PESquISaLcia Helena Rangel Doutora em antropologia PuC-SP

    PESquISa E LEVaNTamENTo DE DaDoSRegionais do Cimi e Setor de documentao do Cimi

    oRgaNIzao DaS TaBELaS DE DaDoSEduardo Holanda, Leda Bosi, marline Dassoler Buzatto e marluce ngelo da Silva

    REVISo DaS TaBELaS DE DaDoSLcia Helena Rangel e Setor de Comunicao do Cimi

    SELEo DE ImagENSaida Cruz

    EDIoSetor de Comunicao do Cimi

    REVISoLeda Bosi e Cleymenne Cerqueira

    DIagRamaoLicurgo S. Botelho

    CapaFotomontagem menino guarani Kaiow durante retomada da Terra Indgena Kurusu amb,

    no mato grosso do Sul - Foto: Egon Heck/Arquivo Cimi menino da comunidade Itay Ka aguyrusu (mS), que aguarda demarcao de sua terra tradicional acampada beira de estrada - Foto: Egon Heck/arquivo Cimi

    Este relatrio uma publicao do Conselho Indigenista missionrio (Cimi),

    organismo vinculado Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

  • Com este relatrio o Conselho indigenista Missionrio quer mais uma vez afirmar seu

    compromisso com os povos indgenas no Brasil, na defesa de sua dignidade e de seus direitos

    inalienveis e sagradosDom Erwin Krutler

  • em 2010, o governo ignorou constantemente os povos indgenas, seus apelos, seus protestos, seus projetos de vida. atropelou os seus direitos e tem falhado na proteo de suas

    comunidades. Belo Monte, alicerada na ilegalidade, na fora e na negao de dilogo com as populaes atingidas, talvez o

    mais emblemtico, mas apenas um entre tantos casos.

    Foto: Eden Magalhes/Arquivo Cimi

    O rio Xingu, ameaado pela hidreltrica de Belo Monte, fonte de vida para diversas populaes tradicionais

  • 5Conselho Indigenista missionrio - Cimi

    sU M R I o

    as cruzes permanecem erguidas, mas a utopia do Bem Viver persiste ............................................................ 7Dom Erwin Krutler Bispo da Prelazia do Xingu (PA) e Presidente do Cimi

    apresentaoa quem responsabilizar pelas violaes dos direitos indgenas no Brasil? ...................................................... 9

    Roberto Antonio Liebgott Vice-Presidente do Cimi

    introduotudo continua igual? ............................................................................................................................................. 13

    Lcia Helena Rangel Antroploga / PUC/SP

    artigosresponsabilidade penal e situao carcerria indgena no Brasil: Uma realidade a ser desvelada .............. 16

    Rosane Lacerda Doutoranda em Direito pela UnB e pesquisadora em Direito Indgena

    considerao sobre o oramento indigenista federal ....................................................................................... 21Ricardo Verdum Antroplogo, assessor de Polticas Pblicas no INESC

    iirsa e pac: ameaas e conflitos para as terras indgenas na amaznia brasileira ..................................... 23Guilherme Carvalho Educador, membro do Programa Urbano da FASE Amaznia

    captulo i Violncia contra o patrimnioOmisso e morosidade na regularizao de terras .................................................................................... 39Conflitos relativos a direitos territoriais ..................................................................................................... 53Invases possessrias, explorao ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimnio ............... 55

    captulo ii Violncia contra a pessoa praticada por particulares e agentes do poder pblicoAssassinatos ................................................................................................................................................ 63Tentativa de assassinato ............................................................................................................................. 73Homicdio culposo ..................................................................................................................................... 76Ameaa de morte ....................................................................................................................................... 79Ameaas vrias ........................................................................................................................................... 80Leses Corporais Dolosas ........................................................................................................................... 82Abuso de poder .......................................................................................................................................... 85Racismo e discriminao tnico cultural ................................................................................................... 86Violncia Sexual .......................................................................................................................................... 89

    captulo iii Violncias provocadas por omisso do poder pblicoSuicdio e tentativa de suicdio .................................................................................................................. 93Desassistncia na rea de sade ................................................................................................................. 97Morte por desassistncia sade ............................................................................................................. 107Mortalidade infantil ................................................................................................................................. 110Disseminao de bebida alcolica e outras drogas .................................................................................. 113Desassistncia na rea de educao escolar indgena .............................................................................. 115Desassistncia geral .................................................................................................................................. 119

    captulo iV Violncia contra povos indgenas isolados e de pouco contatoA situao desesperadora dos Povos Isolados ......................................................................................... 127Grupos indgenas isolados no Acre: Ameaados por grandes projetos ................................................... 129Povos indgenas isolados no Amazonas ................................................................................................... 131Os AwGuaj em situao de isolamento no Maranho ........................................................................................................... 133Grupos Indgenas Isolados no Mato Grosso ............................................................................................ 135Grupos indgenas isolados no Par........................................................................................................... 137Povos indgenas isolados em Rondnia: ameaados pelos grandes projetos .......................................... 139Av-Canoeiro em situao de Risco e Isolamento no Tocantins ............................................................. 141

    captulo iV Violncia contra povos indgenas isolados e de pouco contatoCrnicas de Violncia Povos vitimados pela ditadura .......................................................................... 145

    ANEXO Tabelas resumo da violncia contra os povos indgenas Dados de 2010 ............................... 149

  • ... Mas a utopia do Bem Viver persiste

    as violncias contra os povos indgenas, denunciadas por este relatrio, no so acidentes, ocorrncias imprevistas a lamentar. So fruto de uma ideologia diametralmente

    oposta ao projeto de vida dos indgenasFoto: Egon Heck

  • 7Conselho Indigenista missionrio - Cimi

    as cruzes permanecem erguidas

    T ambm em 2010, o governo no se importou com a causa indgena. Pelo contrrio. Ignorou constantemente os povos indgenas, seus apelos, seus protestos, seus projetos de vida. Atropelou os seus direitos e tem falhado na proteo de suas comunidades. Belo Monte, alicerada na ilegalidade, na fora e na negao de dilogo com as populaes atingidas, talvez o mais emblemtico, mas apenas um entre tantos casos.

    As violncias contra os povos indgenas, denunciadas por este relatrio, no so acidentes, ocorrncias imprevistas a lamentar. So fruto de uma ideologia diametralmente oposta ao projeto de vida dos indgenas. A ideologia do desenvolvimento a qualquer preo, da expanso contnua, da maximizao do lucro, j , por natureza, predatria e violenta.

    No so apenas grileiros e fazendeiros que invadem as terras indgenas, no so s os garimpeiros e madeireiros que roubam ou destroem as riquezas naturais. A destruio e o saque so programados tambm em nvel federal. O projeto desenvolvimentista, sintetizado no Programa de Acelerao do Crescimento (PAC), invade, ocupa e destri implacavelmente as terras, as comunidades e as vidas indgenas.

    As cruzes permanecem erguidas pelo pas afora. Esto presentes em cada esquina, ao longo das estradas, beira de cada rio, lago ou igarap de nosso Brasil. E nelas esto pregados os indgenas, violentados e assassinados, expulsos ou fraudados de suas terras ancestrais, reduzidos a prias da sociedade, enxotados como animais, tratados como vagabundos de beira de estrada, ou ento confinados em verdadeiros currais humanos, sem mnimas condies de sobrevivncia fsica e muito menos cultural. Apesar de terem seus direitos ancorados na Constituio Federal continuam a ser considerados suprfluos, descartveis (cfr. DAp 65), porque no se enquadram num sistema que faz do lucro a sua nica mola mestra. Gritam por socorro porque so ameaados por projetos desenvolvimentistas que ludibriam o povo com as falsas promessas de um plano que, na verdade, acelera a destruio da Amaznia e de outros biomas e faz crescer os bolses da misria!

    Polticos dizem que essas cruzes, em que os ndios esto pendurados, so o preo a pagar pelo desenvolvimento. Falam de sacrifcios necessrios para conseguir o progresso. Contanto que no atinjam as suas famlias, mas apenas algumas centenas de ndios ou ribeirinhos! Sinto nuseas e uma profunda indignao quando ouo indagaes como: Quem so os ndios? Gente sem sobrenome! ou Voc acha certo impedir o crescimento econmico por causa de meia duzia de ndios? Quanto desprezo, quanta discriminao! a instituio de um novo apartheid, uma premeditada violao da Magna Carta do Brasil!

    Infelizmente, a agresso e destruio vo muito alm de bens tangveis e atingem mem-rias, histrias de vida, tradies, maneiras de ser, cosmovises, ritos e mitos, culturas, povos.

    Qual a razo de toda essa investida contra os indgenas? Na realidade, os povos indgenas oferecem uma outra proposta de vida, radicalmente contrria quimera do desenvolvimento capitalista, individualista e depredador. O verdadeiro Bem Viver que os indgenas propem se alicera na convivncia em um mundo justo, fraterno, solidrio, baseado no respeito natureza, Me Terra, ao outro, diversidade. No essa a utopia do Reino de Deus, o sonho de Jesus?

    Com este relatrio o Conselho Indigenista Missionrio (Cimi) quer mais uma vez afirmar seu compromisso com os povos indgenas no Brasil, na defesa de sua dignidade e de seus direitos inalienveis e sagrados.

    Dom Erwin KrutlerBispo da Prelazia do Xingu e Presidente do Cimi

  • a falta de uma ao eficaz e efetiva do estado possibilitou, ao longo dos anos, assassinatos, espancamentos, ameaas de morte, invaso e depredao das terras

    As comunidades do povo Guarani so hoje as mais afetadas pela inexistncia de polticas pblicas voltadas aos povos indgenas

    Foto: Damjan Prelovsek

  • 9Conselho Indigenista missionrio - Cimi

    a pR e se nta o

    E sta a pergunta que se faz necessria depois de mais um ano em que se praticou e at se patrocinou centenas de aes que violaram os direitos indgenas no Brasil. Neste contexto, devemos indagar: de quem so as responsabilidades? Quem as assumir, findado um governo de oito anos, sendo que neste perodo as violncias contra os povos indgenas se intensificaram de forma constante e assustadora?

    Ao avaliarmos os dois mandatos do ex-presidente da Repblica, Luiz Incio Lula da Silva, no que se refere poltica indigenista, se chega concluso de que ela foi extrema-mente negativa e desencadeou trgicas consequncias para povos e comunidades.

    A partir da anlise dos dados coletados pelo Cimi, acerca da realidade indgena, se conclui que, em relao s demarcaes de terras, depois de oito anos o resultado foi quase que incuo. Ou seja, o presidente no cumpriu o compromisso assumido (mesmo antes de eleito) de que demarcaria todas as terras indgenas.

    Em termos comparativos (ver quadro abaixo), em seus dois mandatos, o ex-presidente Lula perdeu at mesmo para o governo Collor/Itamar que durou quatro anos e foi caracte-rizado por intensas crises poltica e econmica, passando por um perodo de transio do regime ditatorial para a democracia e no qual os militares ainda exerciam grande influncia e faziam sistemtica oposio aos direitos indgenas.

    O governo do presidente Lula tambm foi omisso quanto estruturao de uma poltica indigenista que respeitasse os preceitos constitucionais, as realidades de cada povo e as diferenas tnicas e culturais. No campo da sade, demorou em decidir pela criao de uma Secretaria de Ateno Especial Sade Indgena, mantendo por quase todo o perodo de seu mandato uma poltica neoliberal de terceirizao imposta na poca de FHC. E somente houve um esboo de mudana de poltica depois que o Poder Judicirio determinou ser responsabilidade da Unio a gesto e execuo das aes e servios a serem prestados para toda a populao indgena. Enquanto o governo se omitia, a mortalidade infantil, ocasionada pela desnutrio, pelas doenas respiratrias e infectocontagiosas, seguiu avassaladora, como no caso do povo Xavante que, em 2010, perdeu 60 de suas crianas, das 200 nascidas.

    O rgo indigenista, a Funai, esteve como que paralisado, voltado exclusivamente para a sua estrutura administrativa e burocrtica. Apenas no final de mandato de Lula o governo props, sem dilogo e debate com os povos indgenas, uma reestruturao do rgo indigenista. Tal reestruturao, alis, ao invs de trazer benefcios emperrou ainda mais os procedimentos demarcatrios e gerou protestos e violncias.

    A poltica indigenista do governo Lula produziu efeitos nefastos que podem ser sentidos em diferentes mbitos da vida indgena. Na medida em que as terras no foram demarcadas, os segmentos que fazem oposio aos direitos indgenas passaram a se arti-cular mais intensamente em diferentes flancos dos poderes pblicos e, ao mesmo tempo, estabeleceram uma insistente perseguio s lideranas que lutam pela defesa dos direitos indgenas, promoveram ataques s comunidades, criminalizaram as lutas e, o que ainda mais grave, a falta de uma ao eficaz e efetiva do Estado possibilitou, ao longo dos anos, assassinatos, espancamentos, ameaas de morte, invaso e depredao das terras.

    a quem responsabilizar pelas violaes dos direitos indgenas no Brasil?

    As comunidades do povo Guarani so hoje as mais afetadas pela inexistncia de polticas pblicas voltadas aos povos indgenas

  • 10 Violncia contra os povos indgenas no Brasil Dados de 2010

    Os dados estatsticos que o Cimi apresenta acerca da questo indgena demonstram o quo desastrosa tem sido a poltica indigenista nos ltimos anos. Tal afirmao pode ser feita porque nunca antes na histria deste pas se usou tantos dados estatsticos para projetar positivamente as aes e polticas governamentais. Os dados de demarcaes de terras e de violncias praticadas contra os povos indgenas falam por si e demonstram os rumos assumidos pelo governo do presidente Lula.

    demarcaes de terras: comparao com os dois governos anteriores

    GovernoNmero de terras

    HomologadasN. de Hectares

    Fernando Collor de Mello / Itamar Franco(Perodo: 1990-1994)

    130 31.913.228

    Fernando Henrique Cardoso(Perodo: 1994-2002)

    145 36.061.504

    Luiz Incio Lula da Silva(Perodo: 2003-2010)

    79 14.339.582

    assassinatos de indgenas: governo luiz incio lula da silvaNo tocante violncia, o quadro tambm estarrecedor. O nmero de assassinatos

    cresceu assustadoramente nos oito anos de gesto do ex-presidente Lula:

    ano 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 total

    N. de Assassinatos 42 37 43 58 92 60 60 60 452

    Diversas terras indgenas, como as do povo Av-Guaj, no Maranho, sofrem impactos da minerao

    Foto

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    Cim

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  • 11Conselho Indigenista missionrio - Cimi

    o governo escolheu como aliados aqueles setores da poltica e da economia que

    historicamente se colocaram como

    inimigos dos povos indgenas, inimigos de qualquer grupo

    humano que lute por justia social, por

    direitos e igualdade de condies de trabalho,

    emprego, educao, e de respeito s leis e a

    natureza

    Faz-se necessrio, ainda, informar que as causas geradoras da grande maioria das violncias esto vinculadas s escolhas polticas do governo, suas opes desenvolvi-mentistas e as suas ambies de poder e busca de hegemonia. O governo escolheu como aliados aqueles setores da poltica e da economia que historicamente se colocaram como inimigos dos povos indgenas, inimigos de qualquer grupo humano que lute por justia social, por direitos e igualdade de condies de trabalho, emprego, educao, e de respeito s leis e natureza.

    O governo se estruturou para garantir aos seus financiadores vultosos recursos atravs do Programa de Acelerao do Crescimento (PAC), utilizando para isso de um banco pblico, o BNDES que empresta recursos do Tesouro Nacional para empreendimentos de viabilidade econmica no mnimo duvidosa, como o caso da usina hidreltrica de Belo Monte.

    Os segmentos econmicos acima referidos ainda foram beneficiados com aes violentas do Estado brasileiro contra comunidades indgenas em vrias localidades do pas, como no caso dos ataques da Polcia Federal contra o povo Tupinamb, no estado da Bahia. Nem mesmo a lder indgena Glicria Tupinamb e seu beb de trs meses, esca-param da ao da Polcia Federal. Estes, depois de serem recepcionados pelo presidente da Repblica, em Braslia, foram presos quando retornavam sua terra. Glicria e outras lideranas Tupinamb foram encarceradas, acusadas de formao de quadrilha. Naquele contexto, nenhuma ao foi efetivamente tomada pelo governo para reverter esta situao.

    No Brasil da era Lula, os povos que lutam pelo direito a terra foram tratados como invasores e criminalizados por esbulho possessrio e os seus lderes, que retomam suas terras, so criminalizados como formadores de quadrilha.

    Com sua omisso, o governo permitiu que fazendeiros no Mato Grosso do Sul atacassem acampamentos indgenas dos Terena e Guarani-Kaiow, povos que reivindicam a demarcao de suas terras. A Funai e o Ministrio da Justia se mostraram negligentes e tolerantes com estas prticas ao longo dos ltimos anos. Tanto assim que as terras indgenas naquele estado da federao no so demarcadas. O governo federal fez opo preferencial pelos usineiros e pelos criadores de boi em Mato Grosso do Sul. Como costuma declarar um lder indgena Guarani-Kaiow, naquela regio um boi no pasto tem mais valor que um ser humano. Um p de soja vale mais que uma criana indgena.

    No estado do Par o Governo Federal proporciona o espetculo da ilegalidade. Empurra goela abaixo a hidreltrica de Belo Monte. Apesar de todos os questionamentos jurdicos, das contestaes sobre os impactos irreversveis sobre o meio ambiente e sobre as populaes ribeirinhas e indgenas, o empreendimento vem sendo avalizado pelo Ministrio de Minas e Energia, Casa Civil, Funai, Ibama e Secretria Geral da Presidncia da Repblica.

    Nas demais regies do Brasil as escolhas do governo no so diferentes. Os investi-mentos econmicos e polticos so nas grandes obras que beneficiam empreiteiras, agentes do agronegcio e do monocultivo da cana-de-acar e da soja transgnica. Os povos ind-genas e os quilombolas, que de muitas formas so tidos como entraves ao desenvolvimento, so os que mais sofrem os impactos de um desenvolvimento cada vez mais predatrio.

    No entender do Cimi e pelos dados estatsticos h um grande responsvel pelas violaes dos direitos indgenas no Brasil: O Governo Federal.

    Roberto Antonio LiebgottVice-Presidente do Cimi

  • os registros aqui reproduzidos, entretanto, no esgotam todas as ocorrncias acontecidas, mas indicam a tendncia e as caractersticas dos ataques e ameaas que pesam sobre essa populao

    Com a falta de polticas pblicas, diversos indgenas so empurrados para a cidade, onde levam uma vida de extrema pobreza

    Foto: Arquivo Cimi

  • 13Conselho Indigenista missionrio - Cimi

    I nt Ro D U o

    Lucia Helena RangelAntroploga / PUC SP

    A resposta para o ttulo acima positiva. Sim, tudo continua igual em relao violncia praticada contra os povos indgenas no Brasil. Algumas ocorrncias aumentam, outras diminuem ou permanecem iguais, mas o cenrio o mesmo e os fatores de violncia mantm-se, reproduzindo os mesmos problemas.

    O presente relatrio anual da violncia, e de violao de direitos, contra os povos indgenas no Brasil foi elaborado a partir de dados publicados nas fontes de imprensa escrita e virtual, das mais diferentes cidades, em todas as regies do pas. A outra fonte, da maior importncia, so as fichas preenchidas pelos missionrios do Cimi, que trabalham junto aos povos e comunidades nos 11 Regionais que compem a instituio. Alm disso, as informaes provm de relatrios policiais e do Ministrio Pblico. Todas essas fontes, sustentadas pelas denncias de lideranas e comunidades indgenas, permitem compor o quadro da violncia, abrangendo todo o territrio nacional. Os registros aqui reproduzidos, entretanto, no esgotam todas as ocorrncias acontecidas, mas indicam a tendncia e as caractersticas dos ataques e ameaas que pesam sobre essa populao.

    Por trs anos o nmero de assassinatos de indgenas sessenta. Mais uma vez, mais da metade ocorreu no Mato Grosso do Sul, por meio de facadas e tiros, envolvendo brigas pessoais, espancamentos e perseguies. Ao que tudo indica, os tiros so disparados por agentes de segurana, incumbidos de desalojar comunidades e executar indivduos. O estado do Mato Grosso do Sul um dos locais mais violentos do Brasil e cenrio da maior violncia cometida contra indgenas. Alm das mortes, e mais todas as tentativas de assassinatos, todas as ameaas e conflitos de terra que abatem os povos indgenas do MS j nos fez considerar a situao do estado como um verdadeiro genocdio.

    Tambm em relao ao atendimento sade as ocorrncias repetem-se atravs da precariedade na assistncia e da falta de recursos para remoes e para medicamentos. Essas violaes afetam de maneira muito especial as crianas e os idosos. A sade da populao indgena tambm afetada pelas modificaes nos hbitos alimentares, gerando diabetes, hipertenso arterial e obesidade. O consumo de produtos industrializados, ao que tudo indica, a causa mais freqente desses males, alm do sedentarismo, advindo, especialmente, da escassez de recursos naturais em funo das presses ambientais no entorno das reas indgenas, como tambm, da falta de terras que cerceia as atividades produtivas prprias dos povos indgenas.

    A situao escolar, do mesmo modo, evidencia o descaso para com os professores, alunos e escolas indgenas, violando o direito educao diferenciada.

    No captulo das violncias contra o patrimnio indgena foram registrados 49 casos de morosidade na regularizao de terras, dos quais mais da metade esto localizados nos estados da Regio Sul (12 no Paran, 8 no Rio Grande do Sul e 7 em Santa Catarina). As comunidades esperam soluo h mais de uma dcada e, enquanto isso, vivem em acam-pamentos em beira de estradas ou sofrem presses nas pequenas reas j declaradas. Os vizinhos desmatam, jogam o gado nas roas indgenas, impedem a circulao de pessoas e

    tudo continua igual?

  • 14 Violncia contra os povos indgenas no Brasil Dados de 2010

    Mais uma vez preciso reafirmar que o pano de fundo das violncias cometidas contra os povos indgenas, bem como a violao de seus direitos, o desrespeito demarcao de suas terras

    os polticos e os fazendeiros continuam a declarar-se contra a demarcao das terras indgenas.

    Dos 33 casos de invases possessrias e explo-rao de recursos naturais, duas situaes devem ser evidenciadas: Mato Grosso e Maranho.

    Em Mato Grosso arrasta-se o problema na T.I. Mariwatsede onde foram identificadas 68 fazendas localizadas dentro da rea indgena. A explorao ilegal de madeira, neste estado, atinge cerca de 100 reas indgenas e 20 unidades de conservao.

    No momento em que as discusses sobre mudanas no Cdigo Florestal foram desencadeadas, o satlite Deter, do INPE, detectou um aumento anormal de derrubada da floresta (473% de crescimento entre os meses de abril e maio de 2011 FSP, 19/04/2011 C13). No perodo de agosto de 2010 a abril de 2011 o crescimento do desmatamento na Amaznia foi de 27%, sendo que no estado do Mato Grosso o ndice de crescimento chegou a 47%, ultrapassando a rea desmatada no Par que sempre foi maior do que nos outros estados da Regio Amaznica (no perodo 2010-2011 a rea derrubada no Par atingiu 580 km, enquanto no Mato Grosso chegou a 733 km - FSP, 19/08/2011 C13).

    O Ministrio do Meio Ambiente declarou no possuir elementos para vincular esse aumento s discusses sobre a reforma do Cdigo Florestal, no entanto, a coincidncia mostra--se evidente, especialmente porque a reforma acena com anistia para crimes de derrubada de floresta. A exploso mato-grossense foi acompanhada pelo aumento da rea derrubada em outros estados da Amaznia: em Rondnia o aumento foi de 62%, no Amazonas, 84% e no Maranho 45%, sendo a rea atingida em cada estado: Rondnia 238 km, Amazonas 160 km, Maranho 78 km.

    As ocorrncias registradas nesse relatrio, referentes ao Maranho, demonstram a persistncia na retirada ilegal de madeira das terras indgenas, o que ocorre h anos sem que nenhuma providncia efetiva de fiscalizao tenha sido tomada. As lideranas indgenas tm denunciado os fatos e solicitado recursos para fiscalizao sem, no entanto, serem atendidas. Os episdios envolvem seis terras indgenas invadidas por madeireiras que montam acam-pamentos no interior das reas, constroem estradas clandestinas e implantam serrarias em povoados localizados dentro das reas. Um sobrevo realizado pela Greenpeace na T.I. Caru documentou as graves propores da degradao ambiental provocada pelas madeireiras, o que molesta e constitui grande ameaa para as comunidades Aw-Guaj e Guajajara.

    Ainda na Regio Amaznica foram registradas ocorrncias de garimpo ilegal e explo-rao de outros recursos naturais em terras indgenas de Rondnia e Roraima.

    Outras ocorrncias danosas ao meio ambiente, consequentemente, s comunidades, foram registradas em vrias regies do pas. As construes de hidroeltricas desconsideram a presena indgena e ameaam, at mesmo, povos isolados como em Rondnia (UHE Santo Antnio e UHE Jirau) e no Par (UHE Belo Monte), motivando denncias, aes civis e populares.

    A extenso das consequncias e conflitos resultantes das grandes obras de infra-estrutura pode ser avaliada atravs da situao vivenciada pelo povo Truk/PE, dado que o canal de transposio do Rio So Francisco foi construdo dentro de seu territrio tradicional: presena militar, desmatamento, perda de flora e fauna; consequncias sociais, tais como, aumento do consumo de bebidas alcolicas e outras drogas, da prostituio, do desemprego, do endividamento e, sobretudo, da desorganizao da produo agrcola.

    Foto

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    Sem ter terra para plantar e viver, e at mesmo o que comer, muitos vivem da mendicncia

  • 15Conselho Indigenista missionrio - Cimi

    Por tudo isso a concluso desse relatrio sobre

    o ano de 2010 : tudo continua

    igual. Mas a esperana a

    ltima que morre; assim tem sido

    para os povos indgenas no

    Brasil

    Grandes obras, agronegcio, monocultura extensiva, so fatores que afetam a integri-dade territorial e ambiental das reas indgenas, assim como a reproduo biolgica da fauna e da flora e, principalmente, dos indivduos submetidos contaminao por agrotxicos, guas poludas e pulmes cheios de fuligem.

    Ser esse o preo a pagar pelo progresso? Os empreendimentos que representam o desenvolvimento espelham as contradies da sociedade brasileira empenhada no rumo da acelerao do crescimento e na maximizao da propriedade privada. Ocorre que nesse processo no h respeito pelos modos de vida que se diferenciam do padro hegemnico. H uma reao muito forte contra a defesa dos povos indgenas, quilombolas, pescadores, extrativistas e outros, cujas vidas esto baseadas em usos da territorialidade com base no aproveitamento dos recursos naturais, cujas tcnicas de produo e modos de adaptao requerem o tratamento da terra no como meio de produo, mas como lcus da reproduo social, onde imbricam a materialidade, a espiritualidade e a transcendncia.

    As reaes contrrias demarcao de terras indgenas e ampliao de terras pequenas carecem de conhecimento antropolgico e sociolgico, implicando em ignorncia a respeito das variaes das formas de sociabilidade prprias dos povos indgenas e outros povos tradicionais. O conjunto dessas variaes compe a diversidade cultural, que gera hbitos e costumes, expresses artsticas e religiosas que povoam nosso pas, inclusive nos centros urbanos. Quando a ONU aprovou a declarao universal da diversidade cultural, tomou-a como patrimnio da humanidade, afirmando que a diversidade cultural est para a sociedade assim como, a biodiversidade est para a natureza.

    No sistema social brasileiro parece no haver lugar para a diversidade, h um desres-peito atvico pelas diferenas. No s porque o sistema hegemnico tem sede de terras e guas, mas, talvez, sobretudo, porque se construiu sob a gide da violncia. Demonstra isso, o racismo que ainda impera contra indgenas: so frases emitidas por transeuntes nas ruas das cidades dirigidas s mulheres indgenas que vendem artesanato, so as negaes de benefcios, so manifestaes contra direitos tal como disse o secretrio do meio Ambiente de Niteri/RJ: ndio em Niteri, s o Araribia.

    Os ambientes urbanos so os mais propcios para as expresses de racismo. Alm de atrapalharem no campo, os indgenas que migram para as cidades estorvam porque reivindicam direitos fora do seu lugar.

    De acordo com o IBGE quase 85% da populao brasileira vive em cidades, sendo que a ltima dcada registra alto crescimento das cidades de porte mdio. A populao indgena no ficou de fora do processo migratrio e, nas cidades, enfrenta a precariedade das condi-es habitacionais, educacionais, de assistncia sade e conquista de emprego. O modo de vida urbano, implacvel com todos os pobres, demanda a execuo de polticas sociais e de infra-estrutura urbana que no so realizadas pelos poderes pblicos. A populao indgena que vive nas cidades bastante numerosa; de acordo com o Censo Demogrfico de 2000, realizado pelo IBGE, 52% da populao auto-declarada indgena vivia em cidades. Nas cidades que abrigam um contingente numeroso de populao indgena os problemas tornam-se mais visveis, pois tem sido praticamente uma regra que as famlias indgenas localizam-se em bairros pobres, perifricos, cheios dos mais graves problemas urbanos. Uma poltica especfica para os indgenas nas cidades seria necessria, mas as autoridades competentes relutam em cri-las ou, at mesmo, em aceitar sua presena nos ambientes urbanos.

    Mais uma vez preciso reafirmar que o pano de fundo das violncias cometidas contra os povos indgenas, bem como a violao de seus direitos, o desrespeito demarcao de suas terras. Morosidade na regularizao de terras, no reconhecimento das comunidades que pleiteiam espaos, impossibilidade de aumento territorial, comunidades sem terra, reas super povoadas, populaes confinadas so, entre outras, as principais fontes de conflitos, mortes e desesperanas. Por tudo isso a concluso desse relatrio sobre o ano de 2010 : tudo continua igual. Mas a esperana a ltima que morre; assim tem sido para os povos indgenas no Brasil.

  • 16 Violncia contra os povos indgenas no Brasil Dados de 2010

    o discurso da irresponsabilidade penal indgena, contudo, no resiste a uma aferio minimamente criteriosa

    Foto: Arquivo Comunidade Serra do Padeiro

    Braadeira usada pela PF para algemar o cacique Babau, do povo Tupinamb (BA), durante ao noturna, ilegal e violenta

  • 17Conselho Indigenista missionrio - Cimi

    a Rt I g o

    Rosane LacerdaProfessora de Direito Pblico da universidade Federal de gois

    U m dos mitos que povoa o imaginrio da sociedade em geral e o senso comum dos profissionais da rea jurdica no Brasil o de que os indgenas seriam penalmente irresponsveis. Trata-se de um discurso fartamente veiculado nos meios de comu-nicao social, de modo muito semelhante quele em que se diz que neste pas ningum vai para a cadeia. O mito da irresponsabilidade penal dos indgenas tem funcionado, ao longo do tempo, como um manto que torna invisvel o movimento crescente de criminali-zao dos indgenas e o aumento de sua presena em meio populao carcerria do pas. Mais recentemente, tem sido utilizado como estratgia de sensibilizao para a aprovao do Projeto de Lei (PL) n. 1057/2007, que busca criminalizar os indgenas envolvidos em prticas supostamente reiteradas e sistemticas de infanticdio.

    O discurso da irresponsabilidade penal indgena, contudo, no resiste a uma aferio minimamente criteriosa. Dois fatos principais colocam-no por terra: primeiro, a prpria legislao; segundo, os dados estatsticos da realidade penal e carcerria em que se encon-tram as comunidades indgenas no pas.

    ndios e responsabilidade penalNo que se refere legislao penal brasileira, o fato que a mesma nunca previu a

    inimputabilidade indgena. O que o Cdigo prev, com redao dada pela Lei n. 7.209, de 11.7.1984, a inimputabilidade de qualquer pessoa em caso de doena mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado:

    Art. 26 - isento de pena o agente que, por doena mental ou desenvolvi-mento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ao ou da omisso, inteiramente incapaz de entender o carter ilcito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.

    Prev tambm o Cdigo Penal, no pargrafo nico do mesmo dispositivo, hipteses de reduo de pena em virtude de perturbao de sade mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado:

    Pargrafo nico - A pena pode ser reduzida de um a dois teros, se o agente, em virtude de perturbao de sade mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado no era inteiramente capaz de entender o carter ilcito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.

    No h, portanto, nenhuma meno na lei penal brasileira inimputabilidade nem semi-imputabilidade como consequncia da identidade indgena do indivduo, mas, sim, como decorrncia de uma situao de perturbao de sade mental ou de desenvolvi-mento mental incompleto ou retardado em um indivduo qualquer.

    Responsabilidade penal e situao carcerria dos indgenas no Brasil

    Uma realidade a ser desvelada

    Braadeira usada pela PF para algemar o cacique Babau, do povo Tupinamb (BA), durante ao noturna, ilegal e violenta

  • 18 Violncia contra os povos indgenas no Brasil Dados de 2010

    aos ndios e s comunidades indgenas se estende a proteo das leis do Pas, nos mesmos termos em que se aplicam aos demais brasileiros...

    O que com o passar do tempo veio a relacionar indgena e inimputabilidade foi o acmulo de uma posio doutrinria e jurisprudencial tendente a interpretar os atos praticados pelos indgenas (quando considerados em nosso meio como infracionais), como resultado de um desenvolvimento mental incompleto ou retardado, fruto de uma formao cultural tida como inferior ou incivilizada.

    O prprio Estatuto do ndio, Lei 6.001, de 19 de dezembro de 1973, ainda em vigor, declara de modo expresso, em seu art. 56, a possibilidade de condenao penal de indgenas por motivo da prtica de crime. Passveis de condenao por infrao penal, os indgenas podem ser indiciados em inqurito policial, penalmente processados, e podem, caso condenados, serem obrigados ao cumprimento das penalidades legalmente previstas. Deste modo v-se que no h, como se afirma existir, a figura da inimputabi-lidade indgena como uma previso legal. A possibilidade de condenao de indgenas no campo criminal , repetimos, dada pela prpria lei indigenista brasileira.

    Ao afirmar tal possibilidade de condenao, o art. 56 do Estatuto do ndio toma por base o princpio da isonomia, prevista no pargrafo nico do seu art. 1.. Afirma-se ali que aos ndios e s comunidades indgenas se estende a proteo das leis do Pas, nos mesmos termos em que se aplicam aos demais brasileiros.... Contudo, tambm em respeito ao princpio isonmico, o mesmo dispositivo afirma a necessidade de respeito s diferenas: resguardados os usos, costumes e tradies indgenas, bem como as condies peculiares reconhecidas nesta Lei (Lei 6.001/73, art. 1., Pargrafo nico).

    O princpio da igualdade com respeito diferena faz com que o Estatuto do ndio, ao mesmo tempo em que preveja a possibilidade de condenao dos indgenas, determine a obrigatoriedade da utilizao de medidas diferenciadas em relao penalidade a ser determinada e ao modo de seu cumprimento. Assim, determina que:

    Art. 56. No caso de condenao de ndio por infrao penal, a pena dever ser atenuada e na sua aplicao o Juiz atender tambm ao grau de inte-grao do silvcola.

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    Em campanha difamatria, grupos religiosos radicais acusam o povo Suruwaha (AM) de praticar infanticdio

  • 19Conselho Indigenista missionrio - Cimi

    Segundo dados do DePeN, rgo do Ministrio

    da Justia, havia em dezembro de

    2010 um total de 748 indgenas

    internos no sistema penitencirio, sendo

    destes 56 mulheres e 692 homens

    Pargrafo nico. As penas de recluso e de deteno sero cumpridas, se possvel, em regime especial de semiliberdade, no local de funcionamento do rgo federal de assistncia aos ndios mais prximos da habitao do condenado.

    No se pode deixar de observar que estas consideraes foram expressas num instrumento normativo gestado e posto em vigor em plena fase de recrudescimento do regime de exceo, ou seja, nos chamados anos de chumbo do Regime Militar de 1964. Mesmo ali o Estatuto do ndio j manifestava a sua preocupao no sentido de que o princpio do direito igualdade viesse acompanhado do respeito diferena. E neste sentido demonstrava tambm a tolerncia para com as formas punitivas das prprias comunidades indgenas em relao aos delitos praticados por seus membros:

    Art. 57. Ser tolerada a aplicao, pelos grupos tribais, de acordo com as instituies prprias, de sanes penais ou disciplinares contra os seus membros, desde que no revistam carter cruel ou infamante, proibida em qualquer caso a pena de morte.

    Hoje, ao se tomar por base os preceitos da Constituio Federal de 1988, este respeito diferena assume a dimenso do reconhecimento da alteridade, no momento em que o texto constitucional expressa que so reconhecidos aos ndios as suas formas de orga-nizao social, costumes, lnguas e tradies (CF/88, art. 231, caput). A imputabilidade penal mantida, mas a determinao da pena aplicvel dever levar em considerao tais reconhecimentos.

    Sendo fato a previso de imputabilidade dos indgenas acusados da prtica de atos delituosos, fica evidente que aos mesmos se aplicam as disposies do Cdigo Penal Brasileiro relativamente aos crimes contra a vida e, de modo particular, quanto ao crime de Infanticdio, definido este como o ato de matar, sob a influncia do estado puerperal, o prprio filho, durante o parto ou logo aps, e que resulta em pena de deteno, de dois a seis anos (CPB, art. 123). Assim, em razo do princpio da isonomia, as penas relativas ao crime de infanticdio previstas no Cdigo Penal Brasileiro se aplicam aos indgenas, tanto quanto se aplicam aos no indgenas.

    A nica ressalva est em que aos indgenas, em caso de condenao, a lei indigenista prev, em nome do princpio do respeito diferena, a necessria atenuao da pena, e o cumprimento em regime especial de semiliberdade no local de funcionamento do rgo indigenista mais prximo da habitao do condenado (Lei 6.001/73, art. 56 e par. nico). Uma ressalva que, a rigor, no difere muito das propostas contemporneas em relao ao uso de penas alternativas, como decorrncia das preocupaes crescentes com a reconhecida falncia do sistema prisional no Brasil e em outros pases.

    populao carcerria indgenaEm segundo lugar, o discurso da suposta inimputabilidade no resiste minimamente

    aos dados da realidade ftica, na medida em que estes demonstram que os indgenas so um grupo social cada vez mais presente na populao carcerria do pas.

    Segundo dados do Departamento Penitencirio Nacional (DEPEN), rgo do Minis-trio de Estado da Justia, havia em dezembro de 2010 um total de 748 indgenas internos no sistema penitencirio, sendo destes 56 mulheres e 692 homens. Em dezembro do ano anterior o sistema computava um total de 521 indgenas internos, divididos entre 35 mulheres e 486 homens. A tabela a seguir resume os dados do Sistema Integrado de Informao Penitenciria (InfoPen) de onde extramos dados relativos aos indgenas internos no sistema penitencirio brasileiro desde dezembro de 2005, perodo em que comearam a ser coletados os dados pelo sistema:

  • 20 Violncia contra os povos indgenas no Brasil Dados de 2010

    tabela i indgenas internos no sistema penitencirio Brasileiro dezembro de 2005 a dezembro de 2010

    internos / ano 2005 2006 2007 2008 2009 2010

    Mulheres indgenas 15 68 31 36 35 56

    Homens indgenas 264 534 508 475 486 692

    total 279 602 539 511 521 748

    Tabela: Rosane Lacerda. Fonte: InfoPen-Estatstica. Tabelas diversas.

    Em relao distribuio destes internos por Unidade da Federao, os dados do InfoPen nos permitem montar o seguinte quadro referente ao ms de dezembro de 2010:

    tabela ii indgenas internos no sistema penitencirio Brasileiro em dezembro de 2010, por Unidade da Federao:

    UF ac al aM ap Ba ce dF es go Ma Mg Ms Mt

    Mulheres 00 00 02 05 03 18 00 00 00 00 00 03 00

    Homens 06 14 16 24 17 51 00 26 01 08 00 96 11

    total 06 14 18 29 20 69 00 26 01 08 00 99 11

    UF pa pB pe pi pr rJ rn ro rr rs sc se sp to

    Mulheres 02 00 02 00 00 00 00 00 11 07 01 00 02 00

    Homens 143 00 58 05 01 00 00 12 41 111 25 00 26 00

    total 145 00 60 05 01 00 00 12 52 118 26 00 28 00Tabela: Rosane Lacerda. Fonte: InfoPen-Estatstica. Tabelas diversas.

    Pode-se perceber que dentre as 27 Unidades da Federao, apenas no Distrito Federal e em mais seis Estados (Minas Gerais, Paraba, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Sergipe e Tocantins) no haviam registros de condenados indgenas internos no sistema prisional quela data, variando os demais 20 estados entre 01 (um) interno (Gois e Paran) e 145 indgenas internos (Par)1.

    onde est o infanticdio?A quantificao da populao carcerria indgena no sistema penal, alm de demons-

    trar a falcia do discurso da inimputabilidade indgena no Brasil, pode tambm nos oferecer pistas sobre o suposto impacto das ocorrncias de infanticdio entre os indgenas. Se esta , como afirmam os defensores do Projeto de Lei 1057/2007, uma prtica cotidiana, siste-mtica, disseminada, culturalmente dada, e sendo os indgenas penalmente responsveis pelos seus atos, ento seria razovel supor que tal prtica se refletisse de algum modo nas estatsticas relativas populao carcerria.

    1 de se observar, contudo, que conforme o prprio DEPEN os dados sistematizados e disponibilizados pelo rgo no espelham a totalidade dos nmeros, havendo lacunas sobre algumas informaes no disponibilizadas pelos setores responsveis, dado que nem todas as unidades prisionais efetivamente enviam informaes completas ao sistema (Vide BRaSIL, ministrio da Justia, Departamento Penitencirio Nacional. Dados Consolidados 2008/2009, p.3). Isto significa que a populao carcerria indgena pode ser numericamente maior que a atualmente apresentada pelo InfoPen. alm disso de se considerar tambm o fato de que os nmeros aqui apresentados referem-se apenas populao carcerria do sistema penitencirio, ficando excluda aquela ainda aguardando julgamento nas cadeias pblicas.

  • 21Conselho Indigenista missionrio - Cimi

    entre 2008 e 2009, no h qualquer referncia,

    por menos significativa que

    seja, a condenaes pelo crime de infanticdio

    No mbito da tipificao penal dos internos do sistema prisional como um todo, relativamente a indgenas e a no-indgenas, o InfoPen fornece um perfil dos tipos penais cometidos, no constando ali qualquer referncia ao crime de Infanticdio (CPB, Art. 123). Tal no significa que no tenha havido condenaes pela prtica, mas mais provvel que a sua incidncia tenha sido to insignificantemente baixa em relao ao cmputo geral dos demais tipos praticados, que o seu percentual no tenha sido considerado em termos estatsticos.

    Os dados consolidados do DEPEN sobre o sistema penitencirio nacional fornecem um recorte do perfil dos tipos penais em relao ao gnero. Nos dados relativos aos anos de 2008 e 2009 encontramos a seguinte situao em relao s internas do sistema penal:

    tabela iii - percentuais dos tipos penais, por gnero

    tipos penais praticados pela populao carcerria feminina(em percentuais)

    ano de 2008

    ano de 2009

    Entorpecentes 59% 59%

    Furto 11% 9%

    Roubo 11% 11%

    Homicdio 7% 7%

    Outros 5% 6%

    Latrocnio 2% 2%

    Estatuto do Desarmamento 2% 2%

    Estelionato 1% 2%

    Receptao 1% 1%

    Crimes contra os costumes 1% 1%

    total: 100% 100%Tabela: Rosane Lacerda. Fonte: DEPEN - Dados Consolidados.

    Novamente aqui no h qualquer referncia prtica do Infanticdio. legtimo supor, porm, que o tipo possa estar embutido na categoria outros, que perfaz um universo de 05% a 6% dos casos. Considerando que este outros pode se dividir numa infinidade de tipos diferenciados cuja incidncia seja inferior a 1%, podemos supor que o tipo Infanticdio eventualmente a presente represente de fato um percentual extremamente baixo. O que se percebe, sem sombra de dvida, que no mbito da populao carcerria feminina em geral, formada tanto por mulheres no-indgenas quanto por mulheres indgenas, no h qualquer referncia, por menos significativa que seja, a condenaes pelo crime de Infanticdio.

    condies de vida no sistema carcerrioA presena indgena crescente em meio populao carcerria do pas levanta,

    dentre diversas preocupaes, aquelas relativas aos efeitos deletrios do encarceramento tanto para os indivduos apenados quanto para as comunidades s quais pertencem. Se para a populao indgena o encarceramento e o afastamento de seus referenciais scio--culturais j considerado como preocupante, mais ainda quando se considera a gravidade da situao do sistema carcerrio nacional.

    Em agosto de 2007 uma Comisso Parlamentar de Inqurito (CPI) no mbito da Cmara Federal foi criada tendo em vista o quadro de:

    Rebelies, motins freqentes com destruio de unidades prisionais; violncia entre encarcerados, com corpos mutilados e cenas exibidas pela mdia; bitos

  • 22 Violncia contra os povos indgenas no Brasil Dados de 2010

    no explicados no interior dos estabelecimentos; denncias de torturas e maus--tratos; presas vtimas de abusos sexuais; crianas encarceradas; corrupo de agentes pblicos; superlotao; reincidncia elevada; organizaes criminosas controlando a massa carcerria, infernizando a sociedade civil e encurralando governos; custos elevados de manuteno de presos; falta de assistncia jur-dica e descumprimento da Lei de Execuo Penal...2

    Embora inexistam estudos especficos, sabe-se que a populao carcerria indgena no Brasil sofre das mesmas mazelas da populao carcerria em geral no pas, decorrentes de um sistema colapsado, marcado pela superpopulao e pelas condies desumanas e degradantes de vida. Um quadro que torna praticamente inexistentes as chances de rein-tegrao social. A respeito vale destacar o Relatrio da Visita de Inspeo de Conselheiros do Conselho Nacional de Poltica Criminal e Penitenciria ao Mato Grosso do Sul, realizada em maro de 2010. Afirma o relatrio que, naquele estado,

    A situao do contingente indgena encarcerado tambm preocupa. Necessria nesse aspecto uma assistncia mais ampla e efetiva da FUNAI. A assistncia jurdica populao indgena encarcerada tambm tema que necessita de apreo, seja por parte da FUNAI ou da Defensoria Pblica do Estado.3

    O relatrio de inspeo acabou por incluir, em suas recomendaes, a Assistncia mais ampla e efetiva ao contingente indgena encarcerado4.

    2 Relatrio Final da CPI do Sistema Carcerrio. Braslia: Cmara Federal, 2008; p.30.3 RoIg, Rodrigo Duque Estrada e JoRDo, milton. Relatrio da Visita de Inspeo ao Estado do Mato

    Grosso do Sul. Braslia: ministrio da Justia. Conselho Nacional de Poltica Criminal e Penitenciria. maro de 2010; p.30.

    4 RoIg, Rodrigo Duque Estrada e JoRDo, milton. Ob. Cit., p.34.

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    No rol das violaes de direitos, diversos episdios envolvendo agentes da segurana pblica nacional

  • 23Conselho Indigenista missionrio - Cimi

    o discurso da inimputabilidade dos indgenas no

    Brasil tanto juridicamente

    equivocado quanto social e

    politicamente perverso

    RefeRncIas BIBlIogRfIcas

    BRASIL. CMARA DOS DEPUTADOS. comisso parlamentar de inqurito do sistema carcerrio. relatrio final apro-vado. Braslia DF, junho de 2008. Disponvel em: . Acesso em abril de 2011.

    BRASIL. PRESIDNCIA DA REPBLICA. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurdicos. lei n. 6.001, de 19 de dezembro de 1973. dispe sobre o estatuto do ndio. Disponvel em: . Acesso em abril de 2011.

    BRASIL. PRESIDNCIA DA REPBLICA. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurdicos. decreto-lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. cdigo penal. Com as alteraes dadas pela Lei n 7.209, de 11.7.1984 e posteriores. Disponvel em: . Acesso em: abril de 2011.

    BRASIL. MINISTRIO DA JUSTIA. Departamento Penitencirio Nacional. Sistema Integrado de Informaes Penitencirias InfoPen. Formulrio categoria e indicadores preenchidos. todas UFs. Referncia: 12/2005 a 12/2010. Disponvel em: http://portal.mj.gov.br/services/DocumentManagement/FileDownload.EZTSvc.asp?DocumentID={3BC29926-7CDA-4485-815E-CE140647DC9E}&ServiceInstUID={4AB01622-7C49-420B-9F76-15A4137F1CCD}.Acesso em abril de 2011.

    ROIG, Rodrigo Duque Estrada e JORDO, Milton. Relatrio da Visita de Inspeo ao Estado do Mato Grosso do Sul. Braslia: Ministrio da Justia. Conselho Nacional de Poltica Criminal e Penitenciria. Maro de 2010; Disponvel em: . Acesso em abril de 2011.

    Apesar dos nmeros do InfoPen aqui apontados, o fato que a realidade carcerria indgena continua imensamente desconhecida, no havendo dados relativos ao perfil dos indgenas submetidos ao sistema prisional em termos de faixa etria, grupo lingustico, tempo de contato com a sociedade envolvente no-indgena, acesso a intrprete durante a instruo processual e a execuo penal, condies de desenvolvimento da defesa judicial (Funai? Defensoria Pblica? Advogado particular?), acesso a visitas familiares, etc. Desconhece-se tambm os efeitos das medidas restritivas de liberdade em relao sade fsica dos indgenas, tendo em vista sua vulnerabilidade s doenas infecto-contagiosas e mudana de hbitos alimentares, bem como sua sade mental, em razo da estranheza de um ambiente de ausncia de liberdade. Alm disso, so tambm desconhecidas as condies de acomodao no ambiente carcerrio, em especial em relao populao feminina, o que envolve, por exemplo, situaes possveis de gravidez, parto e confinamento de crianas em fase de lactao.

    conclusesO discurso da inimputabilidade dos indgenas no Brasil tanto juridicamente equi-

    vocado quanto social e politicamente perverso. Desconectado de qualquer base legal, tem servido perpetuao de discursos racistas que vem as prticas indgenas como fruto de uma ausncia de capacidade mental. Sob este discurso esconde-se uma realidade crescente de processos criminais contra indgenas e a sua incluso na populao peniten-ciria, cujo sistema reconhecidamente cruel e falido. urgente que se d visibilidade a esta realidade, no apenas para torn-la conhecida, mas principalmente para que seja radicalmente modificada.

  • 24 Violncia contra os povos indgenas no Brasil Dados de 2010

    em 2010 a Funasa deixou de investir na estruturao de unidades de sade para atendimento da populao indgena cerca de R$ 19,357 milhes

    Foto: Arquivo Cimi

    Na teoria, a reproduo dos seus modos de vida est garantida aos povos indgenas, mas na prtica isso no acontece

  • 25Conselho Indigenista missionrio - Cimi

    a Rt I g o

    Ricardo VerdumAntroplogo, assessor de polticas pblicas no Instituto de Estudos Socioeconmicos

    E ste texto pretende ser um breve informe da execuo do Oramento Indigenista do Governo Federal em 2010, inscrito no Plano Plurianual (PPA) 2008-2011. Alm da dotao oramentria e dos crditos adicionais que, anualmente, o governo federal disponibiliza ao rgo indigenista via Lei Oramentria Anual (LOA), Funai atri-buda legalmente a responsabilidade de administrar a renda obtida do Patrimnio Indgena. Pela prestao deste servio aos povos indgenas a Funai incorpora ao seu patrimnio o chamado dzimo, ou seja: a dcima parte ou o equivalente a 10% da renda lquida anual obtida do Patrimnio Indgena. Mas como no faz parte da nossa tarefa apresentar aqui uma completa descrio da composio desse processo, que foge aos nossos interesses neste momento, voltemos ao assunto principal do texto.

    os programas e as aes do oramento indigenista No PPA 2004-2007 os projetos e aes do governo federal destinadas especifica-

    mente aos povos indgenas estiveram concentrados em dois programas: (a) Identidade tnica e Patrimnio Cultural dos Povos Indgenas e (b) Proteo de Terras Indgenas, Gesto Territorial e Etnodesenvolvimento.

    O primeiro agrupou as aes dos setores sade indgena (Fundao Nacional de Sade), educao escolar indgena (Ministrio da Educao e Fundao Nacional do ndio) e as de carter assistencial (Fundao Nacional do ndio e Ministrio do Desenvolvimento Agrrio). No ano de 2005 foi includa nesse programa a ao Realizao dos Jogos dos Povos Indgenas, sob a responsabilidade do Ministrio dos Esportes. No perodo 2006/2007 esse programa contou com trinta aes, sendo vinte implementadas pela Funai/MJ.

    No segundo programa foram reunidas as aes de regularizao fundiria e proteo das terras e territrios indgenas (Fundao Nacional do ndio), as voltadas para a promoo da gesto sustentvel dos territrios e recursos naturais ai existentes e aquelas que se destinavam gerao de alternativas econmicas para as comunidades locais (Fundao Nacional do ndio e Ministrio do Meio Ambiente). Esse programa teve no perodo 2006/2007 doze aes, nove implementadas pela Funai/MJ.

    No PPA 2008-2011 as aes desses dois programas foram agrupadas no programa Proteo e Promoo dos Povos Indgenas; como no anterior, coube a Funai a responsa-bilidade por articular e coordenar a poltica indigenista e o conjunto das aes contidas nesse Programa. 1

    O novo PPA orientado por dez objetivos estratgicos, mas somente em um nico objetivo estratgico so mencionados explicitamente os povos indgenas, o que se destina a fortalecer a democracia, com igualdade de gnero, raa e etnia, e a cidadania com

    1 Ver Plano Plurianual 2008-2011: Projeto de Lei. Brasil: Secretaria de Planejamento e Investimentos Estratgicos / Ministrio do Planejamento. Braslia, 2007.

    Considerao sobre o oramento indigenista federal

    Na teoria, a reproduo dos seus modos de vida est garantida aos povos indgenas, mas na prtica isso no acontece

  • 26 Violncia contra os povos indgenas no Brasil Dados de 2010

    transparncia, dilogo social e garantia dos direitos humanos. Nos demais nove objetivos estratgicos os direitos dos povos indgenas esto formalmente ausentes. Esse o caso do objetivo de implantar uma infraestrutura eficiente e integradora do territrio nacional, ao qual esto vinculados 42 programas e onde esto concentradas as aes que mais tm impacto nos territrios e nas populaes locais. Em nenhum momento feita referncia a necessidade de respeito s territorialidades indgenas e sua autonomia no tocante aos processos decisrios, numa visvel afronta ao disposto na Constituio Federal de 1988, na Conveno 169 da Organizao Internacional do Trabalho (OIT) e na Declarao sobre os Direitos dos Povos Indgenas (2007). Ao contrrio, afirmado que como parte do Programa de Acelerao do Crescimento (PAC) sero implementadas medidas destinadas a agilizar e facilitar a implantao de investimentos (pblicos e privados) em infraestrutura.

    Embora no PPA 2008/2011 seja mencionado, explicitamente, que os povos ind-genas so beneficirios de aes em sete programas, somente em trs h um oramento especfico, so eles: Educao para a Diversidade Cultural; Saneamento Rural; e Proteo e Promoo dos Povos Indgenas.

    O programa Proteo e Promoo dos Povos Indgenas to ambicioso quanto genrico no jogo de palavras, a comear pelo objetivo: garantir aos povos indgenas a manuteno ou recuperao das condies objetivas de reproduo de seus modos de vida e proporcionar-lhes oportunidades de superao das assimetrias observadas em relao sociedade brasileira em geral. Considerando a estrutura social e econmica brasileira e a onda desenvolvimentista que inunda o pas, acrescidas da assimetria poltica que caracte-riza a relao dos agentes pblicos e privados responsveis pela definio das prioridades governamentais com os povos indgenas, pequena a nossa expectativa em relao a que possam ser evitados, de forma eficaz e efetiva, os impactos globais decorrentes das

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    Enquanto nas bases falta quase tudo, inclusive meios de transporte, a Funasa deixou de investir R$ 19.357 milhes em 2010

  • 27Conselho Indigenista missionrio - Cimi

    estima-se que o PaC ter impacto em 182

    terras indgenas, atingindo ao

    menos 108 povos

    inmeras obras de infraestrutura previstas no Programa de Acelerao do Crescimento (PAC-2). Estima-se que o PAC ter impacto em 182 Terras Indgenas, atingindo ao menos 108 povos. O caso Belo Monte ilustrativo dessa estrutura e conjuntura particulares, onde o problema colonial continua se impondo nossa ateno, tanto quanto a categoria de colonialismo interno.

    A seguir apresentamos um quadro resumido da despesa dos quatro ministrios com dotao oramentria no programa Proteo e Promoo dos Povos Indgenas. Os nmeros a apresentados dizem respeito somente s chamadas aes finalsticas, aquelas que proporcionam um bem ou um servio diretamente aos indgenas2. possvel verificar que no perodo 2008-2010 foi gasto pelo governo federal nos quatro ministrios cerca de R$ 1,955 bilho. Esse valor equivale a aproximadamente 90,49% do que foi autorizado pelo Congresso Nacional para ser gasto nos trs anos, o que significa dizer que aproximadamente R$ 205,5 milhes deixaram de ser gastos, retornando ao Tesouro Nacional.

    programa promoo e proteo dos povos indgenas: o gasto em 2008-2010 3

    MiNiStRio / aNo 2008 2009 2010 total

    Ministrio da Sade/FUNASA 356.363.214 393.112.987 346.883.629 1.096.359.830

    Ministrio da Justia/FUNAI 257.433.952 287.436.279 310.528.110 855.398.341

    Ministrio do Meio Ambiente 1.524.240 824.403 174.905 2.523.548

    Ministrio dos Esportes 95.778 1.055.775 81.036 1.232.589

    total 615.417.184 682.429.444 657.667.680 1.955.514.308

    No caso do Ministrio da Sade/Funasa no est includo nos valores acima o recurso da ao de Saneamento bsico em aldeias indgenas, que integra o programa Saneamento Bsico. No perodo de 2008-2010 o governo federal orou para essa ao um investimento total (em valores corrigidos) de R$ 179,506 milhes, mas gastou cerca de R$ 156,349 milhes. A diferena total, R$ 23,157 milhes, retornou ao Tesouro Nacional. No lanamento do PPA 2008-2011 foi anunciada para o perodo a meta de 1.346 aldeias indgenas com cobertura de abastecimento de gua.

    Em 2010 a Funasa deixou de investir na estruturao de unidades de sade para atendimento da populao indgena cerca de R$ 19,357 milhes; tambm R$ 27,139 milhes previstos para serem utilizados na promoo, vigilncia, proteo e recuperao da sade indgena, e mais R$ 987,8 mil que se destinavam a ao de vigilncia e segurana alimentar e nutricional dos povos indgenas. Todo esse recurso retornou ao Tesouro Nacional, alimen-tando a meta de supervit do pas.

    Em decorrncia da crescente perda de legitimidade e confiana que se abateu sobre a Funasa, decorrncia das inumerveis denncias comprovadas de corrupo e do mau uso dos recursos financeiros destinados a ateno primria sade indgena, situao a que se somaram presses desencadeadas pelos povos indgenas nos diferentes nveis (local, distrital e federal), exigindo a criao de uma Secretaria Especial de Sade Indgena (SESAI) no mbito do Ministrio da Sade, o governo federal publicou o Decreto n 7.336, de 19 de outubro de 2010. Segundo o que estabelece o decreto, o Ministrio da Sade e a prpria Funasa teriam 180 dias para fazer a transio gradual do sistema, a fim de evitar prejuzos ao atendimento da populao. No dia 19 de abril de 2011, o governo federal publicou decreto prorrogando a transio at 31 de dezembro de 2011.

    2 No inclui, por exemplo, as destinadas ao pagamento de salrio e benefcios sociais dos funcionrios.3 Valores corrigidos para fevereiro de 2010 pelo IPCa.

  • 28 Violncia contra os povos indgenas no Brasil Dados de 2010

    ainda que os discursos oficiais recentes estejam

    repletos de palavras como promoo,

    participao, autonomia,

    transparncia e outras do gnero,

    na prtica isso ainda no ocorre nem

    estimulado

    reconhecimento e garantia territorial A Agenda Social dos Povos Indgenas (2008-2010) lanada pelo presidente Lula da

    Silva em setembro de 2007, havia previsto demarcar 127 Terras Indgenas. Segundo dados levantados junto a Funai, foram emitidos nesse perodo apenas 13 decretos homologatrios do Presidente da Repblica e somente 29 Terras Indgenas obtiveram portaria declaratria do Ministro da Justia. Ou seja, os nmeros ficaram bastante aqum da meta estabelecida e formalmente anunciado, em 2007, pelo presidente Lula da Silva.

    Em 2010, na ao de Demarcao e regularizao de terras indgenas, foram gastos apenas 47,51% dos R$ 25 milhes orados e a ao de Fiscalizao de Terras Indgenas no contou nesse ano com qualquer recurso financeiro. Em 2010 houve apenas trs (3) homo-logaes e somente dez (10) Terras Indgenas tiveram a portaria declaratria publicada.

    Mulheres indgenasNo PPA 2008-2011 as mulheres indgenas no contaram com uma ao oramen-

    tria especfica. Por outro lado, foi criada ainda em 2007 uma coordenao especfica de mulheres indgenas no mbito da Funai, que contou com recursos suficientes para realizar entre setembro de 2008 e agosto de 2010 treze seminrios-oficinas regionais com o tema A violncia familiar e domstica no contexto indgena e a aplicabilidade da Lei Maria da Penha.

    comunidades isoladasAlm da ao de Localizao e proteo de povos indgenas isolados ou de recente

    contato implementada pela Funai, que em 2010 contou com um oramento aprovado de R$ 2 milhes, dos quais foram gastos 90,24%, o Comando da Aeronutica teve disponvel nesse ano um oramento de R$ 1,5 milhes para a ao de Assistncia s comunidades indgenas isoladas em regies da Fronteira Norte (Calha Norte).

    contribuio ao instituto indigenista interamericanoNos anos de 2009 e 2010 foi prevista nas respectivas Leis Oramentrias uma contri-

    buio financeira do governo brasileiro, via Ministrio das Relaes Exteriores (MRE), ao Instituto Indigenista Interamericano (III), organizao vinculada a Organizao dos Estados Americanos (OEA). Essa contribuio foi prevista no programa Gesto da Participao em Organismos Internacionais com os seguintes valores: R$ 161.739 em 2009; e R$ 192.951 em 2010. Para ambos os anos consta que o recurso no foi repassado ao Instituto. 4

    outras aes Considerados grupo vulnervel e/ ou segmento prioritrio de polticas de proteo e

    incluso social, os povos indgenas se beneficiaram de outro conjunto de polticas e aes do governo federal. O Ministrio das Minas e Energia (MME), por exemplo, informa que o Programa Luz para Todos j beneficiou ao total cerca de 24,4 mil famlias indgenas.

    Como parte da Agenda Social dos Povos Indgenas, lanada pelo presidente Lula da Silva em setembro de 2007, o Ministrio da Cultura (MinC) estimulou e apoiou a criao de pontos de cultura em aldeias nos territrios indgenas reconhecidos e demarcados pelo

    4 O Instituto Indigenista Interamericano foi constitudo em 1940, passou a operar efetivamente em 1948 e se converteu numa agncia especializada da OEA em 1953. Entre seus objetivos est conhecer a realidade da comunidade indgena em seus diversos contextos culturais e ecolgicos no Continente, para promover seu desenvolvimento socioeconmico integral (Anurio Indigenista, 1962, vol. XXII: 5). No Brasil, a Conveno sobre o Instituto Indigenista Interamericano foi aprovada pelo Congresso Nacional em 17 de julho de 1953 (Decreto Legislativo n 55) e sancionado pelo presidente Getlio Vargas em 19 de agosto de 1954.

  • 29Conselho Indigenista missionrio - Cimi

    Estado. Tambm foram beneficiadas associaes de indgenas que vivem em centros urbanos. A Agenda estabeleceu como meta para o perodo 2008-2010 implantar 150 pontos de cultura em Terras Indgena. O MinC tambm criou um sistema de premiao, o Prmio Culturas Indgenas, voltado a valorizao e revitalizao de prticas e expresses culturais dos povos indgenas. Criado pelo MinC em 2006, at dezembro de 2010 foram premiadas 276 comunidades e organizaes indgenas.

    A Secretaria de Direitos Humanos (SDH/PR) em parceria com a Funai incluiu os indgenas na agenda social de registro civil de nascimento e documen-tao bsica (Registro Geral, Cadastro Pessoa Fsica e Carteira de Trabalho e Previdncia Social) como parte da poltica de incluso social dos indgenas a partir da documentao civil.

    Os indgenas tambm foram includos como beneficirios da principal ao de transferncia mone-tria condicionada (TMC) no pas, o Programa Bolsa Famlia (PBF), iniciado no ano de 2003 e pea-chave na agenda de combate pobreza do governo federal. Em janeiro de 2011 havia 84.796 famlias indgenas atendidas pelo Programa, sendo 20 mil cadastradas em 2010. Cerca de 48.600 famlias indgenas de 18 estados eram beneficiadas com cestas de alimentos.

    Segundo o Ministrio do Desenvolvimento Social (MDS) j soma 339 o nmero de Centros de Referncia de Assistncia Social (CRAS) que atendem indgenas no pas.

    Tambm foi estabelecido como objetivo promover a criao de territrios da cida-dania em terras indgenas, comeando pelos territrios indgenas no Alto Rio Negro e Vale do Javari, no estado do Amazonas, e Raposa Serra do Sol, em Roraima.

    No obstante esse conjunto de aes, o I Inqurito Nacional de Sade dos Povos Indgenas, realizado em 2008-2009 pela Funasa com recursos do Banco Mundial e execu-tado pela Associao Brasileira de Ps-Graduao em Sade (Abrasco), com objetivo de descrever a situao alimentar e nutricional e seus fatores determinantes em crianas ind-genas menores de 5 anos e em mulheres indgenas de 14 a 49 anos no Brasil, mostrou um quadro nada promissor em praticamente todas as regies do pas. Os dados e avaliaes ali contidas colocam em cheque a necessidade de redirecionar e adequar vrias dessas polticas e aes, assim como os Programas de Aquisio de Alimentos (PAA) e o Nacional de Alimentao Escolar (PNAE).

    comentrio finalO ano de 2011 o ltimo ano do PPA 2008-2011 e o ano de elaborao do PPA 2012-

    2015. Infelizmente ainda no vemos no interior do movimento indgena organizado ser dado ao assunto a importncia que merece. compreensivo que assim seja, um assunto complexo, do qual os povos indgenas foram sempre excludos, que demanda certa dedi-cao e especializao etc. Por outro lado, ainda que os discursos oficiais recentes estejam repletos de palavras como promoo, participao, autonomia, transparncia e outras do gnero, na prtica isso ainda no ocorre nem estimulado quando o assunto planejar, decidir e controlar o oramento pblico.

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    Em 2010, indgenas realizaram inmeras manifestaes por melhorias na rea da sade

  • o processo de consulta aos povos indgenas precisa ser realizado desde o incio da elaborao dos projetos e no somente ao final, quando os estudos esto prontos e as presses so grandes para que

    as licenas sejam dadas no menor espao de tempoFoto: Jos Rosha/Arquivo Cimi

    As hidreltricas de Santo Antnio e Jirau, em Rondnia, integram o PAC

  • 31Conselho Indigenista missionrio - Cimi

    a Rt I g o

    Guilherme CarvalhoEducador, membro do Programa Urbano da FASE Amaznia

    A maior parte da Amaznia est localizada no Brasil. No entanto, a Amaznia se estende tambm para o territrio de outros pases, so eles: Bolvia, Colmbia, Peru, Venezuela, Guiana, Suriname e Equador. Alm deles, a Amaznia abarca ainda reas da Guiana Francesa que no um pas, mas uma colnia da Frana. Nessa imensa regio conhecida como Pan-Amaznia vivem cerca de 1 milho e 600 mil indgenas de 370 povos diferentes, numa populao total de 33 milhes de habitantes. Contudo, apesar desses nmeros impressionantes, a Pan-Amaznia e a Amaznia brasileira, em particular vista por empresas e a maior parte dos governos e polticos como um grande vazio populacional, atrasada economicamente e que, portanto, precisa ser ocupada e explorada.

    Esse discurso no novo. No Brasil, ele serviu no passado para justificar a ocupao desenfreada da Amaznia, que muito prejuzo trouxe aos povos indgenas. Um dos exemplos mais gritantes dessa violncia foi o que aconteceu com os indgenas do estado de Rondnia por conta do asfaltamento da rodovia BR-364, que tiveram suas terras invadidas por pessoas e empresas que vieram de outras regies do pas, e mesmo do exterior; lideranas foram assassinadas e muitas comunidades foram foradas a se mudar para outras reas; reas que no ofereciam boas condies para garantir sua sobrevivncia. Alm disso, muitos indgenas foram morar nas periferias das cidades, vivendo em condies muito ruins e sofrendo todo tipo de discriminao. Tudo isso porque os governos da poca diziam que era necessrio garantir a segurana nacional contra uma suposta invaso estrangeira. Ou seja, diziam defender a Amaznia ao mesmo tempo em que entregavam enorme quanti-dade de terras para pessoas e empresas que, como dissemos, no eram somente do Brasil.

    Hoje, como no passado, o discurso do vazio populacional e do atraso econmico utilizado para justificar a entrega de grandes reas ricas em recursos naturais a grupos polticos e econmicos poderosos. Porm, agora, alm da segurana nacional dito tambm que o Brasil precisa produzir e vender mais para outros pases, a fim de atender o exagerado consumo das suas populaes. Ou seja, que o Brasil precisa se tornar um forte competidor para assim poder vender cada vez mais mercadorias, mesmo que isto leve destruio da Amaznia.

    Brasil, Bolvia, Equador, Peru, Colmbia, Venezuela, Guiana e Suriname (que so os pases pan-amaznicos) mais a Argentina, Paraguai, Uruguai e Chile se uniram e elaboraram um grande projeto chamado por eles de Iniciativa para a Integrao da Infra-estrutura Regional Sul-Americana, cuja sigla IIRSA.

    iiRSa e PaC: ameaas e conflitos para as terras indgenas na amaznia brasileira*

    * Esse texto foi publicado originalmente no livro IIRSA, Energia e Minerao Ameaas e Conflitos para as Terras Indgenas na Amaznia Brasileira, Leroy, J. P. e malerba J. (orgs.), Fase, Rio de Janeiro, 2010

  • 32 Violncia contra os povos indgenas no Brasil Dados de 2010

    essa infraestrutura toda visa garantir o acesso, o uso e o controle dos recursos naturais da regio s grandes empresas do Brasil e do exterior

    em que consiste a iirsa? A idia executar um conjunto de grandes obras de infra-estrutura em todos os

    pases da Amrica do Sul, a fim de garantir a explorao de seus recursos naturais e a livre circulao das mercadorias: madeira, minrios, peixes, gua e muitos outros. So hidrel-tricas, linhas de transmisso, portos, aeroportos, estradas, hidrovias, pontes, gasodutos, ferrovias, postos de fronteira e sistemas de comunicao (internet, TV digital, telefonia e outras). A inteno possibilitar a explorao dos recursos naturais e sua exportao para outros pases no menor espao de tempo possvel e por um preo baixo que os torne atraentes no mercado internacional.

    Os governos dizem que a IIRSA visa tornar esses pases capazes de competir em melhores condies com os de outros continentes e, dessa maneira, conseguir exportar mais produtos por preos mais baixos. Entretanto, esses mesmos governos dizem que h alguns obstculos que precisam ser superados para garantir esse objetivo. Entre os obst-culos esto a Amaznia e a Cordilheira dos Andes uma cadeia de altas montanhas que atravessa os territrios de pases como a Bolvia, Colmbia, Equador e Chile. E porque essas reas so consideradas obstculos? Por que, segundo governos, empresas, polticos, meios de comunicao e bancos elas dificultam a explorao e exportao dos recursos naturais da Pan-Amaznia, bem como a integrao entre os pases sul-americanos.

    Essas dificuldades seriam provocadas, de um lado, por conta da grande extenso territorial da Amrica do Sul da Pan-Amaznia, em particular , da densa floresta, da grande quantidade de rios que no so navegveis pelas embarcaes de maior porte, alm das montanhas existentes. Seriam, portanto, obstculos naturais que, segundo os defensores da IIRSA, podem ser facilmente superados atravs da abertura de estradas e de tneis; construo e/ou ampliao de ferrovias, portos, aeroportos e pontes; trans-formao de rios em hidrovias para facilitar a navegao de imensos navios utilizados no comrcio internacional de mercadorias. De outro lado, os obstculos tambm dizem respeito existncia de Terras Indgenas e de Remanescentes de Quilombos, de Florestas e Parques Nacionais, de Reservas Extrativistas, Reservas Biolgicas e outras reas protegidas. De acordo com os grupos interessados em explorar intensivamente as riquezas naturais dessa parte do continente americano, tais reas impedem o desenvolvimento da regio e a ao da iniciativa privada. Da porque vrios governos, polticos, mdia, juzes e empre-srios se posicionarem contrrios a novas demarcaes ou a criao de reas protegidas, defendendo, inclusive, a reviso daquelas j regularizadas.

    primeira vista a abertura e o asfaltamento de estradas podem parecer interes-santes para os povos indgenas porque h grande dificuldade de locomoo na Amaznia, principalmente no inverno, perodo em que diversas comunidades ficam inteiramente isoladas por conta da distncia e da precariedade das vias de acesso. Ocorre, porm, que, na verdade, essa infra-estrutura toda visa fundamentalmente garantir o acesso, o uso e o

    No incio da dcada de 1980 o governo federal contraiu um grande emprstimo do Banco Mundial (BIRD), aproximadamente 500 milhes de dlares, para asfaltar a BR-364 entre Cuiab e Mato Grosso. Essa era a principal obra do Programa Integrado de Desenvolvimento do Noroeste do Brasil, mais conhecido como POLONOROESTE. A execuo da obra provocou tantos problemas que o repasse do financiamento chegou a ser paralisado. Houve muita denncia internacional de violao de direitos dos povos indgenas, por conta da violncia cometida contra eles (expulso de suas terras, assassinatos, roubo de madeira, desmatamento e outros). Isto sem falar no aumento de pequenas e medias cidades sem qualquer infra-estrutura adequada grande quantidade de pessoas que migraram para Rondnia. A terra foi concentrada nas mos de grileiros (fazendeiros e empresas). E tudo isso contou com o apoio decisivo dos governos federal, estadual e municipais.

  • 33Conselho Indigenista missionrio - Cimi

    essas obras no visam beneficiar os povos indgenas, os ribeirinhos, os

    quilombolas ou os extrativistas. Pelo

    contrrio, essas obras tendem a

    provocar e agravar inmeros problemas

    enfrentados por povos de diferentes

    etnias

    controle dos recursos naturais da regio inclusive aqueles localizados nas terras indgenas s grandes empresas do Brasil e do exterior. Este realmente o grande objetivo da IIRSA. Essas obras no visam beneficiar os povos indgenas, os ribeirinhos, os quilombolas ou os extrativistas. Pelo contrrio, essas obras tendem a provocar e agravar inmeros problemas enfrentados por povos de diferentes etnias. Uma minoria de empresas e de pessoas que ser verdadeiramente beneficiada, at mesmo nas grandes, mdias e pequenas cidades da Amaznia.

    A tabela abaixo apenas para exemplificar como est estruturado o setor expor-tador na nossa regio, tomando como referncia o Par. Ela mostra as empresas que mais exportaram em janeiro deste ano. possvel perceber, de um lado, a concentrao existente no setor e, de outro, o tipo de mercadoria exportada celulose, minrio, madeira e produtos agropecurios, como carne e soja. So esses setores os que sero ainda mais beneficiados com os grandes projetos de infra-estrutura previstos para serem executados na Amaznia.

    eXportaes Brasileiras par

    principais eMpresas eXportadorasJaneiro de 2010

    em milhes de dlares (Us$ FoB)

    participao no total das exportaes

    brasileiras (%)

    Vale S/A 341.681.380 52,04

    Alunorte Alumina do Norte do Brasil S.A. 92.049.015 14,02

    Albras Alumnio Brasileiro S.A. 26.568.002 4,05

    Minerao Buritirama S.A. 18.179.980 2,77

    Kaiapos Fabril e Exportadora Ltda 16.491.360 2,51

    Jari Celulose S/A 16.039.313 2,44

    Sidepar Siderrgica do Par S.A. 12.435.800 1,89

    Companhia Siderurgica do Par Cosipar 11.245.800 1,71

    Minerva S.A. 10.951.341 1,67

    Minerao Rio do Norte S.A. 9.979.899 1,52

    Agroexport Ltda 9.001.956 1,37

    Cadam S.A. 6.718.725 1,02

    Rio Capim Caulim S.A. 6.629.274 1,01

    Vale Manganes S.A. 6.130.520 0,93

    Bertin S.A. 6.018.777 0,92

    Para Pigmentos S.A. 5.410.265 0,82

    Dow Corning Metais do Par Ind. e Comrcio 4.796.050 0,73

    Reinarda Minerao Ltda 4.561.144 0,69

    Usipar Usina Siderrgica do Par 3.420.000 0,52

    Sidenorte Siderurgia Ltda 3.072.763 0,47

    Fonte: Ministrio do Desenvolvimento, Indstria e Comrcio Exterior1

    1 40 empresas que atuam no Par foram responsveis por 96,14% das exportaes do pas em janeiro de 2010.

  • 34 Violncia contra os povos indgenas no Brasil Dados de 2010

    Se na Amrica do Sul h a IIRSA, no Brasil h o Programa de Acelerao do Cres-cimento, cuja sigla PAC, executado integralmente pelo governo brasileiro com o apoio de governos estaduais e municipais da nossa regio, e que conta com muitos recursos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico e Social, o BNDES. O objetivo do PAC muito semelhante ao da IIRSA, que de integrar a Amaznia s outras regies do pas, tambm objetivando garantir o acesso de grandes empresas aos recursos naturais exis-tentes na regio, atravs da construo de estradas, hidrovias, da garantia de energia para as atividades produtivas eletrointensivas, isto , que necessitam de muita energia como as aciarias e as mineradoras cada vez mais presentes na regio.

    Na verdade tanto a IIRSA quanto o PAC reproduzem os mesmos problemas de outras iniciativas do passado:

    a) enxergam a Amaznia como um estoque de recursos que precisam ser explorados a qualquer custo, j que tudo aqui compreendido apenas como mercadorias que podem ser comercializadas;

    b) defendem a idia de que a Amaznia um vazio populacional e uma regio atrasada que precisa ser ligada a outras com economias mais fortes e dinmicas;

    c) no valorizam a importncia dos povos indgenas, quilombolas, ribeirinhos e extrativistas para a preservao da floresta, e que isto beneficia populaes de outras regies do Brasil e mesmo de outros pases.

    Uma parte considervel das obras previstas pela IIRSA e pelo PAC ser construda dentro de Terras Indgenas, ou causar enormes impactos sobre elas. A tendncia que os povos indgenas, como os Munduruku, vivam novamente srios problemas j enfrentados por muitas etnias no passado.

    Lembremos tambm o que aconteceu com a Terra Indgena Waimiri-Atroari, no Estado do Amazonas. A construo da hidreltrica de Balbina inundou cerca de 2 mil e 300 quilmetros quadrados de rea, obrigando os membros desse povo a se mudarem

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    Uma parte considervel das obras previstas pela iiRSa e pelo PaC ser construda dentro de terras indgenas, ou causar enormes impactos sobre elas

    Povos indgenas resistem a empreendimentos governamentais que impactam suas terras

  • 35Conselho Indigenista missionrio - Cimi

    para outros locais. Ao final, a energia gerada no somente no compensou o investimento, um desperdcio financeiro, como tambm se tornou um dos maiores desastres social e ambiental na Amaznia.

    Os Waimiri-Atroari tambm sofreram problemas srios com a abertura da rodovia BR-174, que liga Manaus a Boa Vista. As doenas e os conflitos com os no-ndios quase causaram a extino desse povo, que chegou a ter somente 374 membros compondo a comunidade.

    Obras como o asfaltamento de grandes rodovias na Amaznia no trar qualquer benefcio aos habitantes que vivem na regio se no houver a regularizao das Terras Indgenas, se no houver aes enrgicas por parte do poder pblico para impedir aes de grupos criminosos, que realizam a venda ilegal de madeira e a grilagem de terras, por exemplo, e sem que haja um plano bem elaborado de desenvolvimento que conte com a participao de todos os interessados, inclusive os povos indgenas, para garantir que sejam executadas atividades que no destruam o meio ambiente e que, ao mesmo tempo, melhorem a qualidade de vida de ndios e de no-ndios.

    preciso garantir a vidaPara garantir a execuo de todas as obras previstas pela IIRSA e o PAC, os governos

    e seus aliados descumprem a legislao ambiental. Os casos das hidreltricas Santo Antonio e Jirau, no rio Madeira, em Rondnia; e de Belo Monte, no rio Xingu, no Par, so os exem-plos mais recentes. No caso de Belo Monte, no foram realizadas audincias pblicas nas comunidades indgenas, tal como define a lei, mas somente nas sedes dos municpios de Altamira, Vitria do Xingu e Senador Jos Porfrio, alm de Belm, comprometendo, dessa maneira, todo o processo de debate sobre os estudos de impacto ambiental. Por outro lado, busca-se at mesmo mudar a Constituio a fim de que as mineradoras e madeireiras, entre outras, possam entrar nas Terras Indgenas com maior facilidade, ou ainda que hidreltricas e demais empreendimentos possam ser construdos nessas reas.

    Os indgenas no so empecilhos ao desenvolvimento econmico e melhoria da qualidade de vida de no-ndios. Parece evidente que no destruindo a floresta, poluindo a gua e o ar e contribuindo para o aquecimento global da forma como est ocorrendo hoje que se superar a pobreza e a excluso social. Portanto, se a pobreza e a misria so intensas e se as desigualdades no interior de cada pas e entre os pases tm aumentado, isto demonstra que o problema est no prprio modelo de desenvolvimento capitalista, profundamente injusto, e no porque h terras destinadas aos povos indgenas. Afirmar o contrrio demonstrar preconceito contra os indgenas.

    As Terras Indgenas esto sob forte presso de poderosos interesses econmicos e polticos. Esta situao coloca em risco a sobrevivncia de diversos povos. Nesse sentido, quaisquer iniciativas que causem impactos sobre elas, sejam diretos ou indiretos, precisam ser detalhadamente debatidas com todas as comunidades, sendo que o poder pblico tem que garantir obrigatoriamente o acesso s informaes sobre os projetos e estas devem ser de fcil compreenso aos indgenas. Na verdade, o processo de consulta aos povos indgenas precisa ser realizado desde o incio da elaborao dos projetos e no somente ao final, quando os estudos esto prontos e as presses so grandes para que as licenas sejam dadas no menor espao de tempo.

    Os povos indgenas e suas lideranas precisam estar atentos s movimentaes dos governos e seus aliados que buscam garantir a execuo dos grandes projetos de infraes-trutura na Amaznia, pois o momento de ateno e de se preparar para as disputas que inevitavelmente acontecero. Questionar as intenes e as propostas dos defensores da IIRSA e do PAC um passo necessrio para que os indgenas definam com maior segurana as suas formas de resistncia, bem como as suas demandas.

    os povos indgenas e suas lideranas precisam

    estar atentos s movimentaes

    dos governos e seus aliados que buscam garantir

    a execuo dos grandes projetos de

    infraestrutura na amaznia

  • Omisso e morosidade na regularizao de terras ........................................................................................... 39

    Conflitos relativos a direitos territoriais ................................................ 53

    Invases possessrias, explorao ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimnio .......................................................................... 55

    Captulo IViolncia Contra o Patrimnio

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    Captulo IViolncia contra o Patrimnio

    Violncia contra os povos indgenas no Brasil - Dados 2010

    E ste captulo trata das violncias cometidas contra o patrimnio indgena que abrange bens familiares, tais como casas e roas, e bens comunitrios, tais como escolas, postos de sade e, sobretudo, terra. inclui tambm recursos naturais encontrados nas terras indgenas, dos quais os povos tm o usufruto exclusivo, como madeira, caa, peixe, gua, frutas e matrias primas. o patrimnio indgena inclui igualmente bens imateriais, tais como o direito autoral de imagem, e o direito intelectual, como conhecimentos tradicionais de medicina e outros saberes.

    Por vrios motivos, o foco principal do patrimnio indgena a terra. Primeiro, por causa da estreita ligao cultural, social, econmica e espiritual que as comunidades indgenas possuem com a terra, o que constitui a base da sobrevivncia material e cultural. Em segundo lugar, percebe-se que os povos que tm a prpria terra ancestral demarcada, homologada e regularizada, sofrem muito menos violncias e precariedade do que povos ou comunidades que no usufruem deste direito.

    Comunidade Kaingang do Carazinho (RS) espera h vrias dcadas a demarcao de sua terra tradicional, acampada beira da estrada

    Foto

    : Cim

    i Sul

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    Captulo IViolncia contra o Patrimnio

    Conselho Indigenista Missionrio - Cimi

    Omisso e morosidade na regularizao de terras

    no ano de 2010 foram registrados 49 casos de omisso e morosidade na regularizao das terras indgenas, sendo que, em 2009, foram registrados 34 casos. Existem registros nos estados de alagoas (1), amazonas (1), cear (2), Gois (1), maranho (2), mato Grosso (6), mato Grosso do Sul (3), Par (2), Paran (12), Pernambuco (1), rio Grande do Sul (8), roraima (1), Santa catarina (7) e So Paulo (2).

    como nos anos anteriores, tambm em 2010 percebe-se que todos os prazos de regularizao das terras indgenas foram descumpridos pelos rgos responsveis. a regu-larizao um procedimento administrativo de vrias etapas, com prazos determinados, definido pelo Decreto n 1.775/96.

    alm de ferir o direito constitucional das comunidades indgenas a ter suas terras tradicionais demarcadas, essa morosidade as deixam vulnerveis, pois percebe-se que terras que continuam sem regularizao final, mesmo as registradas e declaradas, so mais expostas a invases, ocupaes, desmatamento e explorao ilegal de recursos naturais.

    Exemplos desta vulnerabilidade so a intensificao de conflitos, inclusive violentos, entre indgenas e no--indgenas, como na terra indgena aw do povo aw-Guaj (ma) e a terra Panambi, do povo Guarani Kaiow (mS). o desmatamento nas terras do povo chiquitano (mt), Portal do Encantado, lago Grande e alto tarauac, como na terra Batelo, do povo Kayab (mt) e a terra Pacaj do povo asurini (Pa). outras terras reconhecidas como indgenas continuam ocupadas por grandes lavouras, como a terra ikpeng, do povo ikpeng (m