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50
1 “130 anos pós-abolição: vivências negras no espaço urbano” LOGO IBDU + FOTO CAPA

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1

“130 anos pós-abolição: vivências negras no espaço urbano”

LOGO IBDU + FOTO CAPA

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Diretoria Executiva | G

estão 2016-2017 Presidente: D

aniela Cam

pos Libório V

ice-Presidente: Betânia de Moraes A

lfonsin Tesoureira: Vanessa K

oetz

Diretora A

dministrativa: Ligia M

aria Silva Melo de C

asimiro

Diretor A

dministrativo: A

lex Ferreira Magalhães

Secretário Executivo: Henrique Botelho Frota

Organização e edição:

Jéssica Tavares Cerqueira

Projeto Gráfico e diagram

ação: M

ariana Boaventura

Fotos: M

ariana Prudêncio

IN59 Instituto Brasileiro de D

ireito Urbanístico - IBD

U 130 anos pós-abolição: vivências negras no espaço urbano

São Paulo: IBDU

, 2017.

98 p. ISBN

978-85-68957-08-0

1. Direito à C

idade 2. Gênero 3. D

iversidade 4. Sociedade 5. Brasil I. Título II. Instituto Brasileiro de D

ireito Urbanístico III. Fundação Ford Brasil

CD

D 349 + 305

CD

U 305-055.2

Attribution-N

onCom

mercial-ShareA

like 4.0 International (CC

BY-N

C-SA

4.0)

ww

w.ibdu.org.br

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67

Ap

rese

nta

ção

O projeto editorial “D

ireito à Cidade: N

ovos Olhares”, nasceu em

meados de

março de 2017, m

otivado por uma necessidade de conectar lutas e trajetórias a

partir das vozes de pessoas engajadas contra as opressões. Seus primeiros frutos

foram voltados à discussão de gênero e cidade, tendo apresentado grande recep-

tividade. Quase dez m

eses depois, percebemos que o projeto ganhou propor-

ções, parceiros e colaboradores da mesm

a grandeza da necessidade de discutir a pauta de opressões relacionada ao debate da vida na urbe. O

u seja, gigante. Foram

aproximadam

ente 50 autoras e autores que se mobilizaram

entre os quatro volum

es publicados, expressando uma enorm

e diversidade de temas e

lutas. O olhar desses grandes ativistas por cidades m

ais justas nos guiou adiante no com

promisso ético com

a construção de políticas públicas interseccionais, que devem

ter como responsabilidade e razão de existir a construção de condi-

ções reais para que a população negra, as mulheres, as LG

BT+, os povos indíge-nas, quilom

bolas e toda a população oprimida possam

exercer a sua humanida-

de livremente.

Para compreender m

elhor as consequências da radicalização do mal, utili-

zada pela branquitude1 contra os povos negros no am

biente urbano brasileiro, ousam

os reunir neste quarto livro vozes que ecoam duras verdades com

muita

sabedoria. São reais porta-vozes da resistência de um Brasil que, 130 anos após

a abolição, não nos permitiu que o título deste volum

e fosse outro. Lembrar as

vergonhosas estruturas que pavimentaram

a produção do espaço urbano ainda não nos perm

ite pensar nas formas de efetivação do direito à cidade, m

as no im

pacto da sua violação em nossas vidas.

O cam

inho da luta pela vida e pelo bem viver não é só um

caminho sem

volta, com

o também

é o caminho possível.

Pelos nossos ancestrais e pelos que estão por vir.

Boa Leitura!A

organização.

1 Mal radical - C

onceito utlizado por Achille M

bembe em

“A C

rítica da Razão” (2013) para

tratar de marcadores negativos com

o instrumento de desum

anização dos sujeitos.

Apresentação | 6

1. Mulheres N

egras e a Cidade: U

m debate a partir do pensam

ento de Patrícia H

ill Collins | 10

Win

nie

de C

am

pos B

uen

o

2. Mão Preta | 17

Th

ata

Alv

es –

ou

Th

ayan

ed

dy

Alv

es

3. Dois Rios: A

circulação dos negros na Cidade do Rio de Janeiro | 24

Dan

iella

Mon

teir

o

4. A resistência negra em

São Paulo | 29 Jo

selic

io Ju

nio

r

5. Batalhas de MC

’s e direito à cidade: a efervescência do Hip H

op no grande A

BC Paulista | 40

Elb

er P

erg

en

tino A

lmeid

a

6. O direito à cidade não existe para m

ulheres e negros | 48 L

ucia

na A

raú

jo

7. Pela População Negra do Entorno do D

F: Quem

se sente responsável? R

eflexões sobre problemática ausência de Políticas de Públicas para o

DF e Entorno | 56

Wen

dy

Silv

a d

e A

nd

rad

e 8. C

orpo negro e gordo bóia no mar | 68

Lu

cas V

iníc

ius F

errazza S

ilva

9. Pelo Direito de sobreviver a cidade | 78

Letíc

ia C

arvalh

o

10. A autonom

ia seletiva da cidade de São Paulo | 81 Brunatta ou Bruna Tam

ires

11. O C

entro e a Territorialidade Negra na C

apital Paulista | 88 E

lky

Araú

jo

12. Fotografia | 94N

an

á P

ru

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SUM

ÁRIO

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1011

1W

innie de Cam

pos Bueno - Iyalorixa do Ile Aye O

risha Yemanja,

Bacharel em D

ireito pela Universidade Federal de Pelotas/RS. M

es-tranda em

Direito Público pela U

niversidade do Vale Rio dos Sinos/RS

MU

LHER

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RA

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HILL C

OLLIN

S

O espaço urbano apresenta um

a relação intrínseca com a questão racial. O

acesso à cidade, as ocupações urbanas, os territórios são vivenciados de m

a-neira distinta por pessoas negras. A

análise que faço neste artigo, portanto, im

plica na utilização da interseccionalidade como um

a ferramenta reflexi-

va para problematizar a questão do D

ireito à cidade para mulheres negras.

Com

preendo a interseccionalidade na perspectiva apontada pela Dra.Patrícia

Hill C

ollins, socióloga afro-estadunidense, reconhecida internacionalmente

pelo trabalho desenvolvido frente às questões pertinentes ao pensamento de

mulheres negras

2. No últim

o período Hill C

ollins têm se dedicado a pensar a

interseccionalidade como um

campo potente de form

ulação teórica crítica e, nesse sentido, tam

bém tem

apontado a interseccionalidade como um

campo

de conhecimento capaz de articular transform

ações sociais que promovam

m

udanças significativas nas instituições, o que consubstancia o arco desse ensaio que é refletir sobre a m

arginalização das mulheres negras no contexto

urbano a partir das inequidades ocasionadas pelo racismo patriarcal 3.

2 As form

ulações teóricas de Patrícia Hill C

ollins tem por foco investigativo o exam

e social crítico das questões de raça, gênero, sexualidade, classe social e nacionalidade. Sua obra m

ais reconhecida é o aclam

ado Bla

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olitic

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pow

erm

en

t

(Routledge), publicado pela prim

eira vez em 1990. A

pesquisadora tem publicado diversos

trabalhos em revistas acadêm

icas internacionalmente reconhecidas. Foi a prim

eira mulher

negra estadunidense a ocupar a presidência da Am

erican Sociological Association. Seus at-

uais interesses de pesquisa incluem: epistem

ologias da interseccionalidade; epistemologias

do conhecimento em

ancipatório, como a teoria crítica racial e pesquisas sobre os efeitos das

inequidades sociais na juventude negra norte-americana.

3 Utilizo o conceito de racism

o patriarcal a partir da articulação de Cleusa A

parecida da Silva, coordenadora da A

ssociação de Mulheres N

egras Brasileira (AM

NB), para ela, em

entrevista para o C

FEMEA

: “: A form

ulação do conceito racismo patriarcal busca traduzir a vivência e a

experiência histórica da exclusão centrada no sexismo e no racism

o vigentes desde o sistema

colonial escravista. O conceito busca qualificar e am

pliar conhecimento sobre a singularidade

de ser mulher, ser negra, ser trabalhadora e pobre no Brasil, isto é, de vivenciar no cotidia-

no vários eixos de subordinação, que vulnerabilizam sua existência, cujos resultados são as

desvantagens com im

pacto estrutural para as mulheres negras, na vida e no m

undo do tra-

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1213

O histórico de ocupação do espaço urbano por m

ulheres no Brasil se dá a partir das m

ulheres negras escravizadas. Os estudos sobre escravidão apon-

tam que essas m

ulheres eram colocadas para trabalhar nas ruas, visando

o lucro de seus proprietários, em pequenos com

ércios como quitandeiras e

lavadeiras, designadas como escravas de ganho. A

s mulheres negras livres

ou forras, também

ocupavam as ruas das cidades executando serviços, desta

forma organizavam

seus orçamentos dom

ésticos e garantiam o sustento de

suas famílias. 4 O

u seja, o trabalho no âmbito externo sem

pre esteve presente na vida das m

ulheres negras. A vivência e a experiência com

as lógicas do urbano com

põe a trajetória das mulheres negras no contexto das cidades.

Esse brevíssimo apanhado histórico, perm

ite evidenciar que a maneira

com que os espaços públicos e privados vão ser contextualizados na vida

das mulheres negras é distinto da m

aneira com que essa vivência se dará

para outros grupos. Nessa perspectiva interseccional, portanto, observam

os que raça, classe e gênero vão configurar com

o os espaços urbanos são per-cebidos. N

o que diz respeito às mulheres negras, entretanto, esse históri-

co de presença constante no espaço urbano não significa necessariamente

uma apropriação plena de hum

anização e cidadania para essas mulheres

por consequência da hierarquização racial que segue vigente nas estrutu-ras políticas e sociais do território brasileiro que desum

anizam e m

itigam o

acesso à direitos. A perm

anência dessas lógicas mantém

as mulheres negras

nos estratos mais vulneráveis da sociedade, ocupando os piores índices de

escolaridade, assistência social, saúde e empregabilidade. O

deslocamento

dessas mulheres no espaço urbano está im

bricado com um

a percepção natu-ralizada das m

esmas enquanto m

ultas, empregas dom

ésticas, amas de leite

e mães pretas

5. O

conceito de imagens controladoras, cunhado por Patrícia H

ill Collins

balho. No m

undo do trabalho, o conceito racismo patriarcal dialoga com

a divisão sexual e ra-cial, pois é neste m

undo que as mulheres negras vivenciam

as maiores desvantagens e sofrem

m

últiplas formas de violações de direitos e violências oriundas das doutrinas ideológicas do

sexismo, do racism

o e do capitalismo, pois ocupam

as funções mais desvalorizadas e m

enos rem

uneradas”4 SO

ARES, C

ecília Moreira. A

s ganhadeiras: mulher e resistência negra em

Salvador no século XIX. A

fro-Ásia, n. 17, 2017.

5 GO

NZA

LEZ, Lélia. Racismo e sexism

o na cultura brasileira. Luiz Antonio Silva, M

ovimen-

tos sociais, urbanos, mem

órias étnicas e outros estudos, Brasília, AN

POC

S, 1983.

é um m

arco teórico relevante para compreender com

o a construção de este-reótipos a respeito das m

ulheres negras se constitui como um

a forte ferra-m

enta de controle social e marginalização dessas m

ulheres tanto no contexto urbano quanto no contexto rural. C

onsiderando o escopo desta publicação irei m

e debruçar nas imagens que tem

mais pertinência com

as experiências urbanas.

Para Hill C

ollins imagens controladoras são estereótipos socialm

ente construídos sobre m

ulheres negras, os quais operam com

o parte de uma

ideologia de dominação racial. Esses estereótipos adquirem

um significado

específico para a comunidade de m

ulheres negras, uma vez que o estabeleci-

mento de valores sociais é um

a ferramenta de poder m

anipulada pelos gru-pos sociais hegem

ônicos essas imagens acabam

fixando as mulheres negras

em locais subalternizados na estrutura sócio econôm

ica. Desafiar constan-

temente essas im

agens de controle tem sido central na agenda de lutas dos

movim

entos de mulheres negras. Esses estereótipos tam

bém operam

nos significados de apropriação do espaço urbano para as m

ulheres negras e, ao estabelecerem

significados, pautados em seus próprios pontos de vistas,

a comunidade de m

ulheres negras rompe com

a lógica de objetificação da negritude com

o o “outro”. Essa lógica, faz com que se tenha um

campo onde

é possível desarticular as imagens que justificam

as ideologias de classe, raça e gênero. 6

O controle social estabelecido a partir dessas im

agens consubstancia o que Sueli C

arneiro7 denom

ina enquanto “subalternização do gênero segun-do a raça”, onde:

As im

agen

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cepção

6 CO

LLINS, Patricia H

ill. Mam

mies, m

atriarchs, and other controlling images. na, 1999.

7 CA

RNEIRO

, Sueli. A m

ulher negra na sociedade brasileira “o papel do movim

ento femi-

nista na luta anti-racista”. História do negro no Brasil. Brasília: Fundação C

ultural Palmares,

p. 1-21, 2004.

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1415

de m

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tampouco a condição biológica m

asculina se mostra sufi

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No que pese o apontam

ento para as consequências dessa subalternização para os hom

ens negros, o pouco espaço para desenvolver essas linhas e o escopo deste ensaio lim

ita a análise a maneira com

que essa subalterniza-ção vai influenciar na m

udança de paradigma da ocupação da cidade pe-

las mulheres negras no pós-abolição. O

professor Alecsandro R

atts discorre sobre essa questão com

profundidade, apontando a maneira com

que raça e gênero foram

determinantes na ocupação do espacial do território urba-

no brasileiro. A partir dos estudos de G

ilberto Freyre e Roberto da M

atta , R

atts demonstra com

o a transformação de senzalas em

favelas vão obedecer um

a lógica instituída a partir dos corpos de mulheres negras, que através do

olhar do outro (o branco), orienta inclusive o espaçamento urbanístico das

residências brasileiras das classes abastadas. O quarto de em

pregada, por exem

plo, e a situação de abjeção em relação aos corpos das trabalhadoras

domésticas negras possibilita observar com

o essas marcas estão relacionadas

com a constituição do espaço urbano brasileiro.

Em m

omento posterior, as lógicas do racism

o e dos estereótipos sobre m

ulheres negras vai influenciar sobremaneira as form

as com que estas vão

transitar nas cidades. É preciso dizer que no caso dessas mulheres, a chefia

das famílias é um

contínuo. As im

agens controladoras sobre elas, portanto, constituía-se enquanto um

obstáculo para o acesso pleno à cidade. Dessa

forma, essas m

ulheres vão, através dos tempos, articulando estratégias de

ressignificação de espaços urbanos precários para o lazer, a moradia e o m

í-nim

o de assistência social. Contudo, conform

e esses espaços vão adquirindo potências criativas e econôm

icas, operam novas form

as de exclusão e elimi-

nação dessas mulheres das conform

ações socioespaciais das quais elas mes-

mas foram

formuladoras. O

s processos de gentrificação nas grandes cidades, especialm

ente aquelas de cunho turístico, é um indício dessa afirm

ação. Ca-

sos como a Pedra do Sal, no Rio de Janeiro.

Outra aspecto fundam

ental no que diz respeito ao desenho das cidades é a form

a com que as inequidades sociais tam

bém se apresentam

dentro de um

a lógica onde mulheres negras apresentarão m

aiores dificuldades de apropriação das cidades. D

e acordo com a arquiteta e urbanista Joice Berth,

em entrevista para a Revista Trip, a lógica de urbanização propositalm

ente em

purra para as margens os corpos que a sociedade e que as lógicas racistas

e sexistas consideram indesejáveis, a form

a com que a periferização das m

u-lheres negras vai se estabelecendo ao decorrer dos anos m

uda, mas as con-

sequências são as mesm

as. Outrossim

, há um higienism

o que justifica um

desenho urbano onde mulheres negras não só são excluídas com

o também

sentem

-se constantemente indesejadas. Joice alerta tam

bém para o fato que

a própria arquitetura pode transmitir linguagens que favorecem

a violência e o assédio. H

á também

um apagam

ento das contribuições das mulheres

negras nas estruturas da cidade, o qual dificulta as interações sociais e ejeta essas m

ulheres do espaço urbano. Dessa form

a, a cidade deixa de ser vivida por m

ulheres negras, constituindo-se enquanto um espaço hostil, onde as

ruas, avenidas e vielas se configuram apenas com

o locais de passagem para

o cumprim

ento das extenuantes múltiplas jornadas exigidas para a sobrevi-

vência da comunidade de m

ulheres negras.D

ado esse diagnóstico é fundamental repensar a organização do espaço

urbano de uma form

a em que as im

agens controladoras do racismo patriar-

cal, bem com

o outros instrumentos de perpetuação das lógicas de expulsão

das mulheres negras do tecido social urbano, deem

espaço para a configu-ração de um

espaço urbano democrático. O

fortalecimento de iniciativas en-

gendradas dentro das comunidades negras, com

o os espaços de socialização colaborativos, os projetos de reorganização das favelas, as estratégias de com

partilhamento da cidade, com

o jardins coletivos, hortos comunitários

e a propagação de diálogos sobre urbanismo que se deem

a partir de uma

perspectiva interseccional podem fazer a diferença na form

a com que m

u-lheres negras experienciam

as cidades na atualidade. O reconhecim

ento do protagonism

o das mulheres negras na história de ocupação do espaço urba-

no também

é uma práxis que auxilia na alteração do com

plexo estabelecido pelas im

agens controladoras a cerca dessas mulheres, um

a vez que ao par-tilhar as experiências e vivências da com

unidade de mulheres negras com

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1617

o espaço urbano a partir dos pontos de vistas formulados por elas m

esmas

se possibilita a construção de um novo paradigm

a sobre a cidade, um em

que essas m

ulheres possam se reconhecer e se ver para além

de estereótipos desum

anizantes, que limitam

a posse da cidadania e, consequentemente, de

vivências positivas e capazes de potencializar a emancipação da negritude a

partir de uma convivência m

enos violenta e segregada com o espaço público.

Foto 02

Thata Alves – ou Thayaneddy A

lves é escritora, precursora do Sarau da Ponte Pra C

á publicou em 2

016, de m

aneira independente, pelo selo A

cademia Periférica de Letras o prim

eiro livro autoral de poesia m

arginal intitulado “Em Reticências”.

É mãe dos gêm

eos Bryan e Brenno. Thata Alves tam

bém é m

em-

bro do coletivo Sarau das Pretas, onde atua com poesia, m

úsica e resgate da ancestralidade há 1

ano. Além

disso participa e propõe espaços de discussão realizando trabalhos em

parceria com os co

-letivos Praçarau, Fala G

uerreira, Casa de C

ultura Candearte, onde

realiza a produção cultural e a comunicação da casa e C

antinho de Integração de Todas as A

rtes (CITA

).

2

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2021

o P

reta

Tijolo postoPor ordem

de um arquiteto,

Mas o teto

ele não sabe levantar.Edifício enorm

eque de longe se enxerguequem

ergue?M

ão preta!Escudo de pretoN

a linha de frente dos paláciosRicaços curtem

a festaA

desritmada dança e a segurança, quem

faz?M

ão PretaQ

uitutes, sobremesas, m

anjaresQ

uem é que fazes?

Mão Preta...

Experimenta por dona Bia na cozinha

não conseguiriaM

esmo sendo nutricionista

Especialista na cozinhaM

ão PretaO

anel com pedra de diam

antePro evento de debutante de sua filhaquem

que extraíra?M

ão PretaN

o minério seu im

périoN

ada seriaSe lá na m

ina, na grutaA

luta para remover a pedra

na caverna escuraescura tam

bém a sua pele

Mão Preta

Quem

que te leva em segurança,

Que pega as suas crianças,

Os filhos dos Bittencourt

Aqueles capeta

Seus caminhos quem

conduz?M

ão Preta!A

engrenagem dos trilhos,

O alpiste dos seus passarinhos,

O depósito do seu cheque,

O paletó na lavanderia do seu chefe,

O eletricista do abajur do seu escritório,

Quem

que cava a cova do seu velório?C

ontabiliza!Se por um

dia a mão preta, parasse

Se afasta-se dos serviços(R

isos)Porque a gente m

ovimenta esse lugar

Vivem

os um crim

e socialE na m

oralV

ocê não paga o meu salário, a m

ovimentação do m

onetárioÉ o m

eu suor a percorrerque faz pagarA

casa grande entrará em choque

Quando em

seus estoquesnão tiver m

ais Mão Preta

Pra poder cuidar.

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2223

foto 03D

aniella Monteiro

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2425

Jéssica RuizM

ulher, lésbica, militante LG

BT e de direitos humanos, m

arxista e biólo-ga m

arinha

Daniella M

onteiro

3D

ois R

ios: A

circula

ção d

os n

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ros n

a C

ida

de d

o R

io

de Ja

neiro

A C

idade que vivemos é, essencialm

ente a que produzimos. A

Cidade

que temos acesso é, essencialm

ente a que podemos consum

ir. No Brasil, his-

toricamente negros e negras sem

pre ocuparam o espaço público, com

o fa-zedores da C

idade. Do trabalho braçal, que construiu, e ainda constrói, até

as tecnologias utilizadas. Os povos Banto e Yorubá trouxeram

consigo, não apenas m

ão de obra a ser escravizada, como técnicas de alvenaria, tecela-

gem, pesca e m

etalurgia. No entanto, a form

ação das Cidades Brasileiras é o

processo histórico de exclusão de negros e negras.É necessário retom

armos o pós-abolição, quando as teorias eugenistas

ainda apontavam negros com

o geneticamente inferiores. A

o passo que a for-m

ulação do Pensamento Social Brasileiro, difundiu o m

ito da Dem

ocracia Racial. Existia a construção de um

a nova sociedade, desvinculada do status de colônia, que fortalecia a independência do Brasil. E nesta, não cabiam

os negros. A

mestiçagem

, prova do convívio pacífico entre as raças, tinha o propósito o branqueam

ento da população. As pesquisas desenvolvidas por

Antropólogos e G

eneticistas nos Museus e A

cademia, estim

a que no século XXI teríam

os uma população 97%

Branca; 3% Indígena e sem

negros. N

ão existiam políticas públicas de integração do negro na sociedade bra-

sileira. Foi negado o acesso a terra, ao trabalho formal da época e nenhum

a política de reparação ou indenização. Eram

quase 200 mil descendentes de

africanos que não poderiam ser brasileiros. Para a nova e próspera nação, os

negros eram um

problema e não pessoas com

problema para serem

integra-dos.N

o Rio, paralelo diversas obras de infraestrutura e urbanização do início de século XX, destoava da crescente ocupação dos m

orros da Cidade. C

om

os casarões sendo demolidos, dando espaço a grandes avenidas. A

pagando vestígios coloniais, a C

idade crescia e se dividia. De um

lado a Cidade que

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2627

não existia nos mapas, sem

planejamento urbano e saneam

ento. Do outro, a

Cidade planejada, a C

apital do País, centro político e econômico.

As favelas foram

se desenvolvendo a partir do Centro da cidade, Provi-

dência e Santo Antônio, local que foi dem

olido diversos casarões, diversas fam

ílias despejadas que não foram realocadas. M

as autorizadas em cons-

truir suas casas nos morros, sem

subsídios. E foram se desenvolvendo por

toda a zona sul, para que os trabalhadores morassem

perto do seu emprego,

mas não perto suficiente das elites. O

Morro da Babilônia, M

orro dos Ca-

britos, Morro do Pasm

ado, Santa Marta e C

antagalo. Com

a expansão da linha férrea, que na sua construção deslocava trabalhadores para o Subúrbio e Baixada Flum

inense. Morros com

o a Mangueira, Jacaré, Tuiuti, Salgueiro

e Turano. Em

bora com toda a política eugenista do início do século XX, a m

ão de obra negra nunca deixou de ser necessária. E a separação territorial, apenas garantiu um

a periferia de direitos para uma parte invisível da C

idade. As

Favelas do Rio, sempre integraram

a dinâmica da C

idade, sem realm

ente fazer parte dela. Para a negrada sair da favela, sem

pre houve uma roleta

invisível. Se a mão de obra que constrói a cidade é negra, a sua arquitetura

é branca. Os espaços de poder são brancos. O

s prédios históricos do Centro

do Rio, como o Biblioteca N

acional, a Câm

ara Municipal ou a Igreja da C

an-delária são de períodos da arquitetura datados e oriundos da Europa. Suas pinturas internas, contam

a formação de Sociedade pautada pelo escravis-

mo, exterm

ínio dos povos originários e soberania da moralidade europeia.

Na C

âmara dos Vereadores por exem

plo, as pinturas no plenário são jus-tam

ente das missões jesuítas aos povos indígenas. A

Igreja da Candelária,

mesm

o de costa, é o ponto de fuga¹ da principal via da Cidade, num

a região que concentra 40%

dos empregos da região m

etropolitana. Enquanto peças das religiões afro brasileiras foram

quebradas e roubadas de seus templos,

sendo escondidos em depósitos da polícia com

o “artefatos de Magia N

egra”. A

preendidos até os dias de hoje.Se olham

os para a Cidade do Rio e vem

os marcas do período C

olonial, m

as não vemos as m

arcas da escravidão. É por que os negros foram m

argi-nalizados e apagados do processo de produção deste espaço. O

espaço pú-blico guarda a m

emória coletiva. A

Cidade que tem

os acesso as ruas e esco-

las tem nom

e de nobres e escravistas. Embora a praça se cham

e Tiradentes, a estátua central é de D

. Pedro I. O M

useu do Negro, segue sendo o depósito

de uma igreja católica.

Produzimos um

a Cidade que m

ascara os vestígios negros e higieniza a sua circulação. Em

bora o Futebol seja um esporte popular no país, os Está-

dios viraram arenas que o trabalhador assalariado não consegue pagar. O

Sam

ba, que nasce nas favelas e toma as ruas no C

arnaval, desfila na Sapucaí para a Elite. A

festa mais im

portante da Cidade não é para os favelados e su-

burbanos que produzem o desfile nos barracões. Se o M

etrô para acontecer na Zona Sul, precisa da autorização dos m

oradores. Durante o ciclo de m

e-gaeventos foram

removidas pela prefeitura m

ais de 4 mil fam

ílias de modo

compulsório.

Negar o D

ireito a Cidade é negar D

ireitos. O direito de fazer e refazer a

cidade é, sobretudo, coletivo. Pois depende de um exercício de poder coleti-

vo. O D

ireito à Cidade não é um

princípio da nossa Sociedade. A peneira dos

Direitos Sociais depende de que território estam

os falando. Se entendemos

a educação como um

direito básico, com a base de 200 dias letivos pautados

pela LDB, por que tem

os escolas na Cidade de D

eus, Jacarezinho, Rocinha, C

omplexo do A

lemão e M

aré que chegaram a ficar 15 dias sem

aula neste ano? N

as manchetes, as Favelas só aparecem

como territórios em

guerra, dom

inado pelo controle do tráfico.A

narrativa de guerra, legitima a violência do Estado, m

arcando o corpo negro com

o matável e a favela com

o território inimigo da C

idade. Não exis-

te plano de habitação, urbanização ou mobilidade nas favelas. M

as existe plano de invasão. A

polícia é a fração do poder público que pensa a favela. Estuda seus becos e vielas. Policias especiais com

o a BOPE, tem

até plano de invasão pelas encostas. M

as até os dias de hoje, os Correios não conhecem

suficientem

ente bem os m

esmos becos e vielas para fazer entregas de corres-

pondência. O

Ciclo de m

egaeventos promoveu profundas reform

as estruturais na C

idade. Foram gastos m

ais de 66 bilhões em obras. M

as nenhuma delas en-

volveu o Saneamento básico das favelas, onde a coleta de lixo é precária, o

esgoto a céu aberto e a água da torneira dificilmente é potável. D

ados da própria Secretaria M

unicipal de saúde apontam alastram

ento de epidemias,

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2829

vermes e contam

inação é 7 vezes maior para m

oradores de favela. O

perações como Verão Legal, que torna jovens negros suspeitos apenas

por estarem indo a Praia sem

dinheiro. É o poder de consumo lim

itando os espaços de circulação. Em

uma C

idade que a passagem custa em

média 1h

de trabalhoEntender a cisão da dinâm

ica entre a Favela e a Cidade, é entender com

o o racism

o perpetuou a Casa G

rande x Senzala, mesm

o após a Abolição. Em

um

a Cidade densa com

o o Rio de Janeiro, a experiência urbana não é única, m

as para negros e negras, nossos corpos serão controlados e vigiados, crimi-

nalizando nossa experimentação da C

idade. Lutar por um

a Cidade de D

ireitos é assumir que o problem

a do negro no Brasil, ainda é a luta pelo direito de existir. Precisam

os nos debruçar em

Políticas Públicas de urbanização, revitalização e mobilidade que priorize o

bem viver do povo negro.

¹ Ponto de Fuga: É o ponto localizado na linha do horizonte, para onde todas as linhas paralelas convergem

, quando vistas em perspectiva.

Bib

liog

rafi

a:

IV D

ossie Megaeventos e D

ireitos Hum

anos no Rio de Janeiro. 2016

HO

BSBAW

N, Eric John. A

Era Do C

apital 1848-1875; traduçãoLuciano C

osta Neto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2º ed. 1979.

foto 04

Joselicio Junior - Conhecido com

o Juninho é Jornalista, Pós Gradua-

do em M

ídia Informação e C

ultura pelo CELA

CC

- ECA

-SP, militante

da entidade do movim

ento negro Círculo Palm

arino, atualmente

Presidente Estadual do PSOL - SP

4

Page 16: “130 anos pós-abolição: vivências negras no espaço urbano” … · 14 15 subalter-de e su-mas-culina, tal como instituída pela cultura hegemônica subalternização o subalterniza-pe-discorre

3031

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3233

A R

ESISTÊNC

IA N

EGR

A EM

SÃO

PAU

LO

A elite cafeeira paulista apresentou um

projeto muito explícito na virada

do século XIX para o XX de transformar São Paulo num

a capital europeia tanto do ponto de vista arquitetônico e urbanístico com

o no mercado de

trabalho com estím

ulo ao fluxo imigratório para a substituição da m

ão de obra negra por italianos, principalm

ente. Os Barões organizaram

os bairros de C

ampos Elíseos, H

igienópolis e Avenida Paulista para se abrigarem

em

grandes casarões. A

população negra, no pós abolição, se concentrou em casas coletivas

e com baixa infraestrutura na região da Barra Funda, Bexiga e V

árzea do C

armo, espaços de resistência quilom

bola urbana, base para formação de

núcleos culturais que ficaram bastante conhecidos posteriorm

ente como a

formação das irm

andades, cordões carnavalescos e posteriormente, escolas

de samba. N

o entanto, com a expansão do projeto higienista e desenvolvi-

mentista esses territórios tam

bém passam

a sofrer intervenções para expul-sar os “indesejáveis”.

Isso fica muito nítido no relato, em

1919, do Washington Luiz, ex- Secre-

tário da Justiça e da Segurança Pública, então Prefeito de São Paulo e depois presidente da república, sobre a V

árzea do Carm

o, hoje Parque Dom

Pedro:“É

aí q

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epressões d

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idade,

en

con

trava a

mais

farta

colh

eita

”.

O relato de W

ashington Luiz nos permite fazer um

paralelo direto entre o projeto de urbanização da V

árzea do Carm

o em 1919, com

o atual Projeto N

ova Luz. Em am

bos, o objetivo é o mesm

o: fazer uma lim

peza racial/social, para abrir cam

inho para o “desenvolvimento”. A

ntes, um dos argum

entos era o uso abusivo do álcool, os(as) negros(as) associados à crim

inalidade, va-gabundagem

, ou seja, uma vergonha para cidade e um

país moderno. H

oje o problem

a está ligado aos usuários de crack que representam o antagonism

o da cidade vendida por João D

ória em seu vídeo triunfal apresentado em

suas viagens ao exterior: é necessário extirpar essa gente que atrapalha a cidade dos negócios, a cidade m

oderna.A

recente polêmica envolvendo a “Ração H

umana” proposta por D

ória com

o a solução mágica para acabar com

fome na cidade de São Paulo, até

mesm

o do país, é mais um

capítulo da lógica elitista e desumanizadora, com

depoim

entos do tipo “pobre não tem hábito alim

entar, pobre tem fom

e”.Se de um

lado a elite paulistana se pautou pela exclusão da população ne-gra, a m

esma buscou as m

ais variadas formas de sobrevivência econôm

ica, social e cultural. Já citam

os acima as casas coletivas, os cordões, m

as tam-

bém podem

os citar nos anos 10, 20 e 30 a organização da Imprensa N

egra, dos C

lubes Negros e posteriorm

ente da Frente Negra Brasileira, que o foi o

primeiro grande m

ovimento social negro no pós abolição, essas ferram

entas foram

fundamentais para trabalhar a autoestim

a, inserção no mercado de

trabalho e construção de moradias populares.

Com

a repressão da ditadura do Estado Novo houve um

refluxo das ar-ticulações da com

unidade negra se concentrando mais em

atividade recrea-tivas com

o os bailes. Os bailes vão se transform

ando ao longo do anos e se tornam

um grande fenôm

eno social de construção de identidade, tendo o seu auge no final dos anos 70 e início dos anos 80.

Os m

ovimentos por direitos civis, e principalm

ente a cultura e musicali-

dade estadunidense, tiveram um

grande peso na formação do m

ovimento

black em São Paulo com

a formação do m

ovimento hip hop.

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3435

A cultura hip hop foi um

vetor muito im

portante de organização, articu-lação, ocupação dos espaços públicos e até m

esmo de denúncia das m

azelas sociais que as periferias estavam

passando. A ocupação do centro da cidade

para as batalhas de dança, a marcação das paredes com

o grafite, passando pela organização das posses e chegando na potência e autenticidade da m

ú-sica rap, o hip hop representou um

grito de uma juventude, de um

a geração que saia da ditadura m

ilitar mas que ainda sentia as m

arcas do militarism

o na repressão policial, na violência brutal nas quebradas, a ausência do sanea-m

ento, da escola, do posto de saúde, o transporte precário. Essa geração, form

ada por jovens, na grande maioria, negros e m

orado-res de bairros periféricos, exposta diariam

ente às tensões sociais provoca-das pelas profundas desigualdades sociais e vítim

a direta da violência do Estado, produziu com

o resposta ao descaso das autoridades, um discurso

contundente que escancarou um cotidiano m

assacrante e evidenciou as ma-

zelas sociais, além de ter explicitado os conflitos raciais e colocado em

xeque a ordem

social, produzindo assim um

verdadeiro grito por uma sociedade

mais justa.

60%

dos jo

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negros. A

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(Racio

nais

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’s. C

apítu

lo 4

Versíc

ulo

5. S

obreviv

en

do n

o in

fer-

no. 1

998)

O surgim

ento do grupo Racionais M

C’s (1988) foi um

marco, pois in-

fluenciou uma geração de jovens da periferia, construiu um

a identidade de resistência e de contestação do sistem

a que oprime as com

unidades cotidia-nam

ente e explicitou as desigualdades de classe por meio da sim

bologia dos m

anos e dos playboys8.

A partir de então, vários outros grupos com

eçaram a ganhar projeção e a

Cultura H

ip Hop foi se ram

ificando pelo Brasil, se consolidando como um

m

ovimento vivo de organização, reflexão e contestação. A

apropriação das tecnologias tam

bém foi im

portante, pois permitiu o avanço da C

ultura de 8 M

anos é como os jovens de periferia se identificam

e se relacionam e os playboys, ou sim

-plesm

ente boys, é como eles denom

inam os jovens de classe m

édia e da elite.

forma independente, o que proporcionou a construção de um

circuito para-lelo à indústria cultural.

Nos anos 2000, novas articulações com

eçam a surgir. A

lém da m

úsica, a literatura com

eça a ganhar força, emergem

as primeiras publicações de

literatura marginal que posteriorm

ente ganhariam o nom

e de literatura pe-riférica. O

rganizam-se saraus realizados em

bares, associações, grupos de teatro, dança, m

úsica, coletivos literários, formando um

verdadeiro circuito cultural periférico.

Cham

a a atenção nesse movim

ento, a apropriação de termos com

o “sa-raus”.Term

os esses que, costumeiram

ente eram restritos a círculos elitizados

da cultura, transformando assim

, em cultura popular. A

lém disso, há um

processo de disputa da hegem

onia, com o centro, na construção de um

a nar-rativa em

que o termo periférico, além

de representar uma distância geográ-

fica, é também

uma afirm

ação de identidade, de estilo de vida, de resistên-cia, de hum

anização das periferias e de contraposição à cultura hegemônica

do centro.A

humanização se evidencia, quando pessoas da com

unidade começam

a se apropriar desses espaços e passam

a enxergar na poesia, na música, ou

em outras expressões culturais, um

instrumento para falar do seu cotidiano,

contestar a opressão de gênero sofrida no seu dia a dia, a violência policial, o transporte precário, a ausência de um

a educação de qualidade, os conflitos raciais. Em

seu manifesto da antropofagia periférica, Sérgio Vaz, fundador

da Cooperifa, afirm

a que: “A periferia nos une pelo am

or, pela dor e pela cor” 9.

A partir disso, tam

bém há um

estímulo à leitura, a necessidade de apro-

fundar o conhecimento, de conhecer m

ais a sua própria cultura. Esses ele-m

entos agregados, passam a construir um

a identidade, um pertencim

ento que desloca a visão de m

undo desses ativistas. D

os b

ecos e

vie

las h

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iros. A

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rte

e c

ultu

ra, e

un

iversid

ade p

ara a

div

ersid

ade. A

gogôs e

tam

borin

s

9 Disponível em

: http://colecionadordepedras1.blogspot.com.br/2010/08/m

anifesto-da-an-tropofagia-periferica.htm

l

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3637

acom

pan

hados d

e v

ion

os, s

ó d

epois

da a

ula

10.

No contexto m

ais recente, surgiram novas m

anifestações que trazem ca-

racterísticas bastante interessantes como os Slam

. Encontros de batalhas de poesias que acontecem

, na grande maioria das vezes, em

espaços públicos abertos, resgatando as ocupações feitas pelo m

ovimento hip hop nos anos 80,

aglutinando muitos jovens com

discursos muito afiados sobre o racism

o, as questões de gênero, a luta LG

BT, as profundas desigualdades sociais. Inter-preto esse m

ovimento com

o herdeiro direto do rap e da literatura periférica.O

utra expressão importante da cultura negra, tam

bém herdeira dos bai-

les black dos anos 70, mais que se desenvolveu m

ais nos morros do R

io de Janeiro e ganhou força em

São Paulo recentemente é o Funk. C

om um

a varia-ção enorm

e de estilos, uma batida forte e envolvente que arrasta m

ultidões, é um

movim

ento importante que traz as suas contradições e polêm

icas, mais

que não pode ser ignorada e interpretada como um

a expressão de uma ju-

ventude periférica.Juntando as irm

andades, os cordões, as escolas de samba, os clubes ne-

gros, a imprensa negra, os bailes, o hip hop, os saraus periféricos, os slam

, os fluxos de funk, as com

unidades de samba, os terreiros de candom

blé e um

banda, o que todos possuem em

comum

? Prim

eiro, mostram

a importância das expressões culturais com

o uma es-

tratégia de organização e resistência da comunidade negra, form

ando uma

identidade, reciprocidade e até mesm

o humanização, e relação de pertenci-

mento com

algo, dentro de uma sociedade racista. O

utro aspecto é a relação com

a cidade, seja no centro ou na periferia as ocupações dos espaços são sem

pre conflituosas, contando principalmente, com

a dura repressão do Es-tado.

Os conflitos evidenciam

a potência dessas manifestações culturais, pois

fogem da lógica, contrariam

o status quo e aquilo que não é possível enqua-drar, assim

ilar, cooptar e institucionalizar, causando ímpetos de repressão.

Não por acaso, as m

anifestações culturais negras são as mais reprim

idas.Este fato está associado há um

projeto de poder, construído pela elite brasileira que não quer se ver em

risco, com a possibilidade da organização dos de-

baixo. Na cidade dos negócios, o direito a cidade é restrito e controlado, não

10 Idem.

cabe ocupação de praças, avenidas, etc. Neste sentido, para os que acreditam

em

um m

udança radical da sociedade brasileira, não podem ignorar a im

-portância e a necessidade da organização dos debaixo, tendo a cultura com

um

potente instrumento de construção de ideias e valores civilizatórios.

Refe

rên

cias

DO

MIN

GU

ES, Petrônio José. Um

a história não contada: negro, racismo e

branqueamento em

São Paulo no pós-abolição. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2004.

RZEA D

O C

ARM

O LA

VAD

EIRAS, C

AIPIRA

S E “PRETOS V

ÉIOS”

– http://w

ww

.energiaesaneamento.org.br/m

edia/28677/santos_carlos_jose_ferreira_varzea_do_carm

o_lavadeiras_caipiras_e_pretos_veios.pdfD

ocumentário M

il Trutas, Mil Tretas – R

acionais Mc’s – https://w

ww

.youtube.com

/watch?v=slw

alSi03g8Blog

Colecionador

de Pedras

http://colecionadordepedras1.blogspot.com

.br/2010/08/manifesto-da-antropofagia-periferica.htm

l

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3839

Foto 05

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4041

Gilson Santiago M

acedo JúniorÉ graduando em

Direito pela U

niversidade Estadual do Sudoeste da Bah-ia. M

embro do Instituto Brasileiro de D

ireito Urbanístico. Integrante do N

ú-cleo de A

ssessoria Jurídica Alternativa.

discriminação. O

direito à cidade para todos e todas é um

a condição subjetiva inserida em um

contexto social, econôm

ico e territorial de relações e interesses difu-sos, coletivos, conflitantes ou não, direito que reclam

a o reconhecim

ento da diversidade como protagonista na

conquista do bem com

um.

Segundo dados do governo federal 3, as mulheres

brasileiras são responsáveis pelo sustento de 37,3% das

famílias, possuem

expectativa de vida de 77 (setenta e sete) anos de idade, equivalendo a 51,4%

da população brasileira atual. Q

uando se indica um percentual de m

u-lheres responsáveis pelo sustento de suas fam

ílias, eclo-de m

ais uma questão, a da presença fem

inina no espaço urbano deslocando-se para o trabalho, para além

dos usos tradicionais.

A m

ulher é, no Brasil, em núm

eros, maioria. É a ci-

dadã que mais ocupa os espaços, produzindo ou não,

circulando, habitando, interferindo, voluntaria ou invo-luntariam

ente, por meio de sua presença na construção

e manutenção da sociedade brasileira. Entre os eleitores,

as mulheres tam

bém são m

aioria, com o Tribunal Supe-

rior Eleitoral, em 2014, registrando 77.459.424 eleitoras

em face de 68.247.598 eleitores do sexo m

asculino4. N

a perspectiva da dem

ocracia, pelo método quantitativo de

participação, a explicação para a ausência das mulhe-

res nos espaços políticos, partilhando do debate sobre a cidade e o que ela deve e pode ofertar, não se sustenta, fragilizando assim

a possibilidade de um futuro estável,

a presença da mulher era ignorada e, portanto, desconsi-

derada no tocante às escolhas sobre que forma e função

os espaços públicos teriam e com

o seriam acessados.

Sendo a cidade o espaço de convivência humana que

promete o desenvolvim

ento social e econômico, o aces-

so ao lazer, à habitação, serviços, trabalho e circulação livre, seria natural que todos os segm

entos sociais fizes-sem

parte da sua concepção, garantindo assim m

aior atendim

ento às demandas individuais e coletivas que se

apresentam. Infelizm

ente não é o que se apresenta, pois som

ente seria possível tal realização se os agrupamen-

tos humanos que se reúnem

nas cidades estivessem cal-

cados em bases solidárias de prom

oção da justiça social, com

igualdade de oportunidades para todos e todas. O

ra, se a luta para alcançar um patam

ar mais equilibra-

do de condições de vida2 – na cidade e no cam

po - tem

sido um dos grandes desafios brasileiros, o que requer

permitir a participação dem

ocrática na discussão sobre as intervenções e políticas públicas feitas em

e para tais sítios, que dirá garantir que, especialm

ente, a mulher te-

nha voz ativa e decisiva nesse processo de produção do espaço urbano.

Ao falar da presença da m

ulher no âmbito das deci-

sões sobre o uso e a ocupação que se deve dar à cidade, não se destaca tal im

perativo tão somente relacionado

à segurança e integridade física e psicológica feminina,

mas da im

portância de tal questão para o fortalecimen-

to do Estado democrático garantidor da igualdade sem

O dia 8 de m

arço representa uma im

portante data de reflexão para o debate internacional que envolve a m

ulher, seus direitos e seu papel no dia-a-dia da socie-dade urbana, m

arcada historicamente pelo em

podera-m

ento masculino.

As cidades e as m

ulheres no século XXI têm um

a relação sim

biótica que necessita ser reconhecida for-m

almente pela sociedade, pelo poder público e político,

pelo poder econômico. Para tanto, é preciso falar e es-

crever sobre as cidades e as mulheres, seja no Brasil ou

fora dele. zSendo a cidade a projeção da sociedade em

um de-

terminado espaço

1, analisar como a urbe dialoga com

a presença fem

inina é de fundamental im

portância tendo em

vista que o desempenho das inúm

eras funções, mãe,

companheira, profissional, em

diferentes áreas, solicita da cidade a m

obilidade e a acessibilidade, envolvendo o livre transitar da m

ulher, inclusive para o trabalho, a possibilidade de acessar serviços públicos e privados, lazer e cultura sem

cerceamento, m

uitas das vezes pro-vocado pelo receio à sua integridade física. Para que a cidade seja funcional à m

ulher é preciso que ela perceba a presença fem

inina, o que envolve permitir sua parti-

cipação nos espaços decisórios sobre o desenho, o uso e ocupação da cidade.

As cidades têm

uma significativa relação com

o uso e a ocupação que o m

undo masculino faz delas. Foram

idealizadas e erguidas dentro dessa perspectiva, em

que

Elber Pergentino Alm

eida - Bacharel em C

iências e Hum

anidades pela U

FABC

5B

ATA

LHA

S DE M

C’S E D

IREITO

À C

IDA

DE: A

EFERV

ES-

CÊN

CIA

DO

HIP

HO

P N

O G

RA

ND

E AB

C PA

ULISTA

O G

rande ABC

é lembrado por ter sido o palco de grandes lutas da clas-

se trabalhadora que alteraram profundam

ente a História do país. A

maior

concentração operária brasileira com m

ontadoras multinacionais localizadas

nesta e empregando um

a leva enorme de m

igrantes nordestinos é centro de algum

as das contradições mais profundas do Brasil.

Por ser um dos principais palcos de ação e dissem

inação do capital in-ternacional no país, esta região foi profundam

ente afetada pela crise eco-nôm

ica internacional iniciada ao final de 2007 e é uma das que m

ais sofre o im

pacto da crise político-econômica aprofundada no país nos últim

os anos. A

s demissões nas m

ontadoras e autopeças criou um grande contingente de

desempregados e um

a juventude sem perspectiva de futuro no m

ercado de trabalho da região.

Além

do desemprego, o déficit habitacional, o transporte público de pés-

sima qualidade e as filas na saúde são problem

as agudos. Não por acaso

o MTST realizou um

a ocupação no dia 01/09/2017 que em um

a semana já

apresentou 6 mil m

oradores.N

este meio, nasce um

movim

ento crescente de ocupação de praças da cidade, protagonizado por jovens de periferia, em

sua maioria negros, m

ui-tos desem

pregados ou trabalhadores de serviços precarizados, desassistidos pelas políticas públicas governam

entais. O m

ovimento H

ip Hop, com

o des-taque das batalhas de M

C’s.

O q

ue sã

o a

s ba

talh

as?

As batalhas de M

C’s são eventos em

que um M

C enfrenta o outro no im

-proviso. O

s organizadores das batalhas ligam as caixas e colocam

um beat de

rap, em cim

a deste beat os desafiantes soltam rim

as e ao final de cada round

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4243

a plateia decide quem foi m

elhor gritando ou levantando as mãos. A

ssim,

realizam-se elim

inatórias até uma final da qual sai o vencedor da edição da

batalha. Este tipo de evento possui circuitos regionais e um nacional, que

mobilizam

milhares pelo país prom

ovendo a cultura da rinha de MC

’s.A

s batalhas remetem

à raiz do Hip H

op, em que as brigas de gangue de

Nova Iorque com

eçaram a ser substituídas pelas batalhas de break dance e

de rimas. Isso possibilitou um

a inversão da lógica de enfrentamento, trans-

formando os com

bates mortais em

arte, o que elevou a auto-estima de m

i-lhões de m

oradores dos guettos do mundo todo nas últim

as décadas.A

lgumas contam

com o público de algum

as dezenas, outras com cente-

nas e em algum

as ocasiões milhares. A

batalha de rap com m

aior público do grande A

BC Paulista é a Batalha da M

atrix, que conta com um

a média de 500

pessoas por edição. A m

ais antiga da região é a Batalha da Central no centro

de Diadem

a, que já possui mais de 5 anos.

As batalhas iniciaram

nas regiões centrais das cidades, como é o caso das

duas citadas acima e de outras: Batalha da G

aleria em São C

aetano, Batalha das Pistas em

Mauá, Batalha da Palavra em

Santo André , Batalha C

landesti-na em

Ribeirão Pires etc. O período de surgim

ento e estabelecimento destas

batalhas foi o mesm

o da explosão das manifestações contra o aum

ento da tarifa que cobriram

o país em 2013, dem

onstrando que sua existência, cons-cientem

ente ou não, está ligada com a dem

anda popular pelo direito ao uso da cidade.

Tal direito é negado ao conjunto da população trabalhadora e pobre, o que ficou claro na reação policial e governam

ental às manifestações daquele

ano. Direito duas vezes negado quando o sujeito que o reivindica é o povo

negro da periferia. As batalhas de M

C’s são frequentadas m

ajoritariamente

por este público, devido à tradição do Hip H

op em basear boa parte de seu

ideal na luta contra o racismo.

No Brasil, nós possuím

os uma polícia notadam

ente racista, que mata

mais negros do que brancos, enquadra preferencialm

ente indivíduos suspei-tos “da cor padrão” e tem

em seu histórico repressão à resistência do povo

negro. Os governos de todos os níveis tam

bém reproduzem

um racism

o que está arraigado em

nossa sociedade, ao não promover políticas públicas que

compensem

séculos de escravidão e de políticas racistas como a do em

bra-

quecimento, além

de criarem novas com

o as UPP’s no Rio de Janeiro.

Não é diferente quando o assunto é cultura. M

uitos conhecem a história

da perseguição governamental que vem

desde o Brasil colônia a manifes-

tações culturais negras, como a capoeira e as religiões de m

atriz africana. Tam

bém ficou recentem

ente revelada a espionagem e sabotagem

promovida

pela ditadura militar a eventos com

o os Bailes Soul cariocas na década de 70, que reuniam

milhares de negros e fortaleciam

a identidade desta maioria

vítima do racism

o. Não podia ser diferente com

as rodas de rima do m

ovi-m

ento Hip H

op.A

lém do racism

o institucionalizado, há também

outra tendência da nova configuração do capital: o em

preendedorismo urbano, ou em

preendimen-

tismo urbano, com

o aponta o geógrafo britânico David H

arvey. Com

a nova configuração do capital transnacional e o estabelecim

ento de grandes fundos financeiros altam

ente voláteis em busca de quantias de lucros rápidas e cada

vez maiores, a tendência por m

ercantilizar o espaço urbano se tornou maior,

com o surgim

ento das “cidades negócio” e do gerenciamento urbano.

Neste sentido, os prefeitos são vistos com

o gestores de um negócio – a

própria cidade - em busca de novos investim

entos para este. Assim

, praças, parques, vias, com

plexos, arranjos produtivos, áreas de preservação etc., são vistos com

o mercadorias.

Com

essa tendência se fortalecendo a cidade passa a estar cada vez mais

acessível apenas para aqueles que podem pagar por ela, com

espaços cada vez m

ais privatizados e transporte público a preços exorbitantes. Neste ideal

de cidade, não cabe um tipo de evento que inverte a lógica ao colocar popu-

lação pobre no espaço público, podem exercer sua cultura sem

o pagamento

de taxas.Repressão às batalhas no grande A

BC paulista

Desde seu surgim

ento as batalhas de MC

’s do ABC

sofrem repressão

constante. Alguns casos ficaram

famosos, com

o a repressão ocorrida no iní-cio de 2016 na Batalha da M

atrix, que dispersou o evento a partir da ação da PM

, repercutindo na grande imprensa e fazendo o governo m

unicipal da época, até então do Partido dos Trabalhadores, a recuar.

Na

segunda m

etade daquele

mesm

o ano,

com

o agravam

en-to

da crise

social e

a disparada

no índice

de desem

pregos, dem

is-

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4445

sões em m

assa, desmantelam

ento da saúde e educação públicas etc., houve

um

disparo no

crescimento

do m

ovimento

das batalhas

de M

C’s.

No

Grande A

BC

Paulista, surgiram

dezenas

de batalhas

nes-te período, desta vez a m

aior parte localizada na periferia, coincidência? C

ertamente não. A

pós anos de existência, as batalhas de MC

’s localizadas no centro criaram

um público da qual saíram

indivíduos mais ativos, m

uitos criando grupos de rap, tornando-se beatm

akers etc. Outros, passaram

a pro-m

over suas próprias batalhas em seus próprios bairros.

Além

disso, com o agravam

ento da crise social a juventude, principal-m

ente a negra da periferia, passou a demandar cada vez m

ais espaços gra-tuitos para expressão cultural. E a gratuidade aqui inclui a im

possibilidade de m

uitos pagarem o transporte público, que em

uma cidade com

o São Ber-nardo possui um

a passagem de R$4,20, o que só é driblado com

as populares “m

ultas”, cada vez mais com

plicadas de serem realizadas graças ao investi-

mento feito pelas prefeituras e em

presas de transporte no controle do fluxo de passageiros, com

o objetivo de maxim

izar os lucros destas últimas.

Há quase 30 batalhas de M

C’s só nesta região, com

o podemos observar

no mapa disponível em

: https://goo.gl/M

jsV2g

Com

o fortalecimento destes eventos, e outros com

o os da cultura Sound-sistem

, prefeituras e câmaras de vereadores, aliados à im

prensa local, visam

criar condições para seu estancamento. U

ma delas é o fortalecim

ento das G

uardas Civis M

unicipais, em especial de suas “tropas de elite”, com

o a RO

MU

de São Bernardo do Cam

po, com arm

amentos equiparáveis a alguns

batalhões de Polícia Militar.

Outros tipos de m

edidas são os projetos de lei que visam crim

inalizar eventos de rua, a partir da câm

ara de vereadores. Um

exemplo é o Projeto

de Lei nº38/2013 de São Bernardo do Cam

po, que cita o Funk como objeto de

criminalização, m

as que em verdade ataca todo tipo de evento independente

de rua. Outra política que visa controlar o uso desses espaços é o program

a Praça Parque da atual prefeitura, que coloca cercas e portões nestes locais.

Todo esse conjunto de políticas visa fechar o cerco contra as batalhas de M

C’s e outros eventos de rua. N

este ano, ocorreram diversas ações policiais

contras as batalhas das cidades do grande ABC

DM

RR, o que passou a ser

investigado pelo Conselho Estadual de D

efesa dos Direitos da Pessoa H

u-m

ana (Condepe). Podem

os encontrar na internet inúmeros vídeos com

re-gistros destas ações policiais, incluindo agentes sem

identificação na farda, agressões físicas, dispersão de pessoas da praça m

esmo após fim

do evento e desligam

ento da caixa de som etc.

Mesm

o assim, a resistência desta juventude continua, com

a denúncia persistência dos diversos casos de abuso das autoridades. A

s batalhas de M

C’s no G

rande ABC

Paulista e no Brasil já mostraram

serem um

fenômeno

que veio para ficar.

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4647

foto 06

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4849

Luciana Araújo

Luciana Araújo é jornalista form

ada pela Universidade do Estado

do Rio de Janeiro (U

ERJ), com

formação extensiva em

gênero, sexuali-dade, políticas e perform

atividade pela FFLCH

/USP, atua na M

archa das M

ulheres Negras em

São Paulo.

Luciana Araújo é jornalista form

ada pela Universidade do Es-

tado do Rio de Janeiro (UERJ), com

formação extensiva em

gênero, sexualidade, políticas e performatividade pela FFLC

H/

USP, atua na M

archa das Mulheres N

egras em São Paulo.

6O

DIR

EITO À

CID

AD

E NÃ

O EX

ISTE PAR

A M

ULH

ERES E

NEG

RO

S

Convidada pelo IBD

U para escrever sobre a necessidade de encarar o de-

bate sobre o direito à cidade sob uma perspectiva de gênero e raça (à qual

acrescento também

a imprescindível e indissociável perspectiva de classe) a

primeira questão que m

e veio à cabeça é que são tantos os temas que essa

discussão envolve que teria que sacrificar alguns para acomodar o artigo no

espaço oferecido.Enfrentam

ento à violência sexista e do Estado contra o povo preto e pe-riférico, que fez subir 54%

a taxa de assassinatos de mulheres negras entre

2003 e 2013 e mata um

jovem negro a cada 23 m

inutos11.

Acesso à saúde integral e coletiva, num

a perspectiva de prevenção e não som

ente medicalizadora e “curativa”, especialm

ente às políticas específicas para a população negra, m

ulheres e LGBTQ

I+ (lésbicas, gays, bissexuais, tra-vestis, transgêneros, queers, intersexuais e toda a diversidade sexual e de identidade de gêneros existente).

Proteção à infância e adolescência e assistência às famílias de crianças e

jovens em situação de conflito com

a legislação, com políticas que assegurem

atendim

ento sem apartar as fam

ílias. G

arantia do direito à moradia num

a cidade que tem um

déficit habitacio-nal de 6 m

ilhões de moradias – m

ais da metade desse núm

ero em função da

alta proibitiva dos aluguéis impulsionada pela bolha im

obiliária especulati-va – e m

ais de 6 milhões de im

óveis vazios12, incluindo im

óveis de proprie-dade da U

nião, estados e municípios.

11 Dados do M

apa da Violência 2015 consultados em

20/10/2017 <http://ww

w.brasil.gov.br/

defesa-e-seguranca/2015/11/mulheres-negras-sao-m

ais-assassinadas-com-violencia-no-bra-

sil> e da CPI do Senado sobre o A

ssassinato de Jovens <https://ww

w12.senado.leg.br/noti-

cias/arquivos/2016/06/08/veja-a-integra-do-relatorio-da-cpi-do-assassinato-de-jovens>.12 D

ados da Fundação João Pinheiro disponíveis na publicação DÉFIC

IT HA

BITAC

ION

-A

L NO

BRASIL 2015, consultados em

20/10/2017 <http://ww

w.fjp.m

g.gov.br/index.php/docm

an/cei/723-estatisticas-informacoes-3-deficit-habitacional-16-08-2017versao-site/file> e

do Censo 2010, conform

e publicado pelo Portal Brasil e consultado também

em 20/10/2017

<http://ww

w.brasil.gov.br/governo/2010/12/num

ero-de-casas-vazias-supera-deficit-habita-cional-do-pais-indica-censo-2010>.

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5051

Vagas em creches para as quase 80%

das crianças de 0 a 3 anos não atendi-das no direito constitucional à educação infantil 13 e políticas que com

batam

de fato a evasão escolar que bateu em 11%

no ensino médio

14 (cujas causas são a im

posição da necessidade de contribuir no sustento das famílias, falta

de transporte, de um adulto que leve as crianças à escola, distância, falta de

professores, metodologias arcaicas de ensino e o racism

o institucional que desqualifica, prejulga e afasta as crianças e jovens negras e negros do am

-biente escolar).

Direito ao deslocam

ento nas cidades, hoje cerceado pelas altas tarifas e péssim

a qualidade dos transportes – considerados os trajetos das linhas, quantidade de veículos inversam

ente proporcional à superlotação e a ‘cultu-ra’ de violência sexista que propicia os assédios e condições de m

anutenção do sistem

a. Saneam

ento básico para a metade da população brasileira que não tem

acesso à coleta de esgoto

15. Políticas públicas de garantia dos direitos sexuais e reprodutivos para as vítim

as de violência obstétrica e que evitem a m

or-talidade m

aterna causada em sua m

aior parte no Brasil por desassistência. A

cesso a benefícios sociais (o nome inscrito na seguridade social brasilei-

ra já é em si um

a negação de direito) que efetivamente possibilitem

o susten-to das m

ulheres cujos filhos foram afetados pela síndrom

e congênita do zika vírus na epidem

ia dos últimos dois anos, cujo “fim

” foi decretado sem que

elas tivessem assegurado o tratam

ento multidisciplinar exigido pela condi-

ção de saúde das crianças, acesso a programas de planejam

ento familiar que

não se resumam

à esterilização forçada, contraceptivos de longa duração, etc.

13 Dado do relatório produzido pela fundação A

brinq, “Desafios na Infância e na A

dolescên-cia no brasil: A

nálise Situacional nos 26 Estados Brasileiros e no Distrito Federal”, de 2012,

consultado em 20/10/2017 em

<https://ww

w.pastoraldacrianca.org.br/a-insercao-das-crian-

cas-na-creche/a-situacao-das-creches-no-brasil>.14 D

ado do Censo Escolar 2014/2015 produzido pelo Instituto N

acional de Estudos e Pesquisas Educacionais A

nísio Teixeira (Inep)/Ministério da Educação (M

EC) publicados

pelo portal G1/Educação consultado em

20/10/2017 <https://g1.globo.com/educacao/noticia/

abandono-no-ensino-medio-alcanca-11-do-total-de-alunos-apontam

-dados-do-censo-escolar.ghtm

l>.15 D

ado do Sistema N

acional de Informações sobre Saneam

ento (SNIS)/M

inistério das C

idades divulgados pelo portal G1, consultado em

20/10/2017 em <https://g1.globo.com

/econom

ia/noticia/saneamento-m

elhora-mas-m

etade-dos-brasileiros-segue-sem-esgo-

to-no-pais.ghtml>.

Importante lem

brar que 80% dessas m

ulheres são negras e a maioria ab-

soluta vive nos estados do Nordeste do país.

Atendim

ento garantido àquelas que necessitam de abortam

ento previsto em

lei e descriminalização da prática a fim

de não impor a m

aternidade num

país em que um

a mulher é estuprada a cada 11 m

inutos16, sendo que m

ais da m

etade delas são negras17.

Além

do fato óbvio para quem quer fazer seriam

ente o debate de que preservativos e m

étodos contraceptivos falham – além

de constantemente

faltarem no SU

S. Enquanto esta realidade não mudar, dificilm

ente reverte-rem

os o fato de que 1 em cada 5 crianças nascidas no país é filho de m

ães adolescentes

18.A

lista é cansativa. Mas avaliados os dados globais tem

-se uma m

edida estatística de com

o o direito à cidade é uma falácia para a m

aioria feminina

e negra no Brasil de 2017. Somados aos problem

as estruturais o desemprego

que afeta quase 13 milhões de brasileiras e brasileiros fruto da crise econô-

mica em

curso e o fato de que outros 40 milhões vivem

de bico no mercado

por informal com

pletam o quadro que penaliza m

ajoritariamente m

ulheres negras e pobres.

Ao contrário, o que o Estado brasileiro oferece é a precarização am

pliada das condições de trabalho por m

eio da Lei 13.429/2017 (e trabalho terceiriza-do em

situação precária e sem direitos tam

bém é um

a questão de mulheres

e em sua m

aioria negras), da reforma trabalhista e da am

eaça de mudanças

na regulamentação da previdência e da seguridade social. A

lém do congela-

mento por 20 anos do orçam

ento do SUS quando 7 em

cada 10 usuários são negras e negros.

Na m

ais rica capital do país, cujo prefeito tomou posse já lançando-se

pré-candidato à Presidência, a política de enfrentamento à violência contra

16 Dado do Fórum

Brasileiro de Segurança Pública divulgado em 2016.

17 De acordo com

a Nota Técnica do IPEA

(Instituto de Pesquisa Econômica A

plicada) – Estupro no Brasil: um

a radiografia segundo os dados da Saúde, consultada em 20/10/2017

em <http://w

ww

.ipea.gov.br/portal/images/stories/PD

Fs/nota_tecnica/140327_notatecnicadi-est11.pdf>18 http://m

.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/02/1862231-um

a-em-cada-cinco-criancas-nasci-

das-no-pais-e-filha-de-adolescente.shtml

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5253

a mulher teve o orçam

ento reduzido19 e a secretaria responsável extinta. A

s crianças foram

proibidas de repetirem refeições nas escolas. A

mais recente

invenção do gestor é a distribuição de um com

posto ultraprocessado e lio-filizado produzido com

alimentos vencidos ou às vésperas do vencim

ento com

isenção fiscal para a empresa distribuidora e “nebulosas transações”

denunciadas por vereadores e ativistas de direitos humanos. O

grafite e os grafiteiros foram

criminalizados – m

ais uma preocupação para as m

ães ne-gras que não dorm

em enquanto os filhos não chegam

na cidade cuja PM

estadual é uma das que m

ais matam

no mundo. U

suários de substâncias psicoativas – um

terço dos quais são mulheres que chegaram

à Cracolândia

fugindo de violências domésticas, abusos sexuais intrafam

iliares e abando-no – passaram

a ser enxotados de forma desum

ana. E já está em m

archa o plano de colocar a cidade à venda beneficiando a especulação im

obiliária e destituindo ainda m

ais a população de direitos. A

nalisar globalmente essa realidade – e pensar ainda que para além

dos problem

as listados acima há as dificuldades vividas por m

ulheres quilom-

bolas, ribeirinhas e indígenas – pode contribuir um pouco para que aqueles

que discutem um

projeto alternativo de país e a efetividade do conceito de N

ação no país que só assegurou o direito ao voto para sua maioria popula-

cional em 1985 com

preendam porque há índices m

enores de mobilização

que os necessários para enfrentar a realidade de retrocessos que assola o país. O

u ainda para contribuir na explicação do crescimento do ‘m

ercado da fé’ no pós redem

ocratização do país, comandado cada vez m

ais por ex-poentes de fundam

entalismos religiosos que cavalgam

o processo de crise política, social, econôm

ica e institucional em curso e se apresentam

como

“alternativas”.Para a m

aioria da população brasileira a cidadania é um conceito m

uito distante. Especialm

ente a ‘cidadania’ que teve como pilar estruturante na

Constituição de 1988 o acesso ao m

ercado de trabalho formal.

Ou os setores progressistas da sociedade brasileira com

preendem a es-

truturalidade do racismo no Brasil, sua relação indissociável da condição de

gênero e centralidade para qualquer projeto que emancipe a classe que vive

do trabalho, ou será impossível constituir um

projeto que encante a maio-

19 https://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/gestao-doria-corta-verba-de-atendim

ento-a-mul-

heres-vitimas-de-violencia-dom

estica.ghtml

ria do povo que luta cotidianamente para sobreviver neste solo nada gentil.

Garantir um

projeto de acesso pleno e efetivo à cidade – com direito sociais,

ambientais, de lazer e interação com

a natureza.

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5455

Foto 07

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5657

Wendy Silva de A

ndrade, bacharela em C

iência Política pela Univer-

sidade de Brasília, mestranda em

Gestão Pública pela U

niversidade Estadual de G

oiás; também

mem

bro da Ubuntu: Frente N

egra de C

iência Política da UnB, atua na form

ação política em busca da

reorientação dos povos em D

iáspora africana, com base na filoso

-fia U

buntu e recuperação da autonomia, ascensão e autoestim

a da população negra.

7Pela

Pop

ula

ção N

eg

ra d

o En

torn

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o D

F: Qu

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se

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cia d

e P

olítica

s de P

úb

licas p

ara

o D

F e En

tor-

no.O D

istrito Federal e o Entorno compõem

uma das três Regiões de Inte-

gradas de Desenvolvim

ento (RID

E) do país e também

configuram entre as

14 Regiões Metropolitanas do país. Por m

eio de legislação, há determinações

para seus mem

bros para que haja de fato essa integração para alcançar o D

esenvolvimento.

A A

MB é form

ada pelos municípios goianos de Á

guas Lindas de Goiás,

Alexânia, C

idade Ocidental, C

ristalina, Formosa, Luziânia, N

ovo Gam

a, Padre Bernardo, Planaltina, Santo A

ntônio do Descoberto e Valparaíso de

Goiás. Estes m

unicípios guardam intensa relação econôm

ica e social com

o Distrito Federal e a C

apital Federal. Tal relação também

existe em função

da criação da Capital Federal que atraiu pessoas de diversas regiões do país

em busca de um

a vida melhor no D

istrito Federal à época de sua expansão habitacional ocorrida em

meados de 1999-2003.

A ausência de política habitacional estim

ulou a vinda dessas pessoas que, outrora eram

indesejadas pelos idealizadores da Capital que tinha com

o pre-visão populacional apenas 500 m

il habitantes. Hoje, com

cerca 3 milhões de

habitantes, o Distrito Federal não abarca a dem

anda populacional que cha-m

ou para si. As populações passaram

a ocupar e habitar as regiões de seu Entorno, o qual é o nom

e reconhecido para a região.Tidas com

o cidades dormitório, as cidades da Á

rea Metropolitana de Bra-

sília (AM

B) são menos desenvolvidas econom

icamente e sua população, usa

significativamente os serviços públicos do D

F, haja vista a precarização dos m

unicípios. Um

reflexo desse baixo desenvolvimento é o alto índice de vio-

lência e baixo índice educacional da AM

B.D

entre as regiões metropolitanas existentes, esta é a que apresenta m

aior

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5859

desigualdade entre o município-pólo e a periferia. O

PIB dos da periferia corresponde apenas a 6,5%

contra 93,5% do D

F (Codeplan, 2009 apud A

ze-vedo &

Alves, 2012, pp.91).

A tam

bém R

egião Integrada de Desenvolvim

ento Econômico (R

IDE) pos-

sui alguns impasses que postulam

que a não pode ser considerada uma re-

gião metropolitana, os quais são os critérios de diversificação de funções que

ela não possui, e pela sua acumulação de capital em

apenas um ponto do

território da RIDE, no caso Brasília|D

F. N

a região metropolitana em

questão, há a concentração espacial da po-pulação, atividades econôm

icas, produção e consumo de m

assa. As funções

de capital que desencadearam as dem

ais funções de forma a tornar a A

MB

uma m

etrópole. Em sua especificidade as funções centrais não se espalham

pelo território, suas atividades não se desconcentram

, ficam restritas à cida-

de-pólo e Capital Federal, Brasília; e a gestão desse território, RID

E-DF|En-

torno, deixou de criar mecanism

os que estimulem

esta desconcentração. As

funções polarizadoras não estão voltadas a um m

ercado contínuo e não há com

promisso com

uma área de m

ercado local ou regional, assim tam

bém,

a dinâmica im

obiliária residencial de supervalorização e especulação no D

istrito Federal formou a periferia (FER

REIR

A, Ignez C

osta Barbosa (1999) apud A

zevedo & A

lves, 2012, pp.91). A R

IDE é m

ecanismo institucional cria-

do no âmbito do governo federal com

o objetivo de promover m

aior gover-nabilidade e m

elhora dos índices de desenvolvimento.

Porém, desde a sua criação, é perceptível a ação pouco efetiva dos entes

municipais, estaduais e federais m

embros das RID

E para reverter a situação e índices de desenvolvim

ento. Do perfil populacional dos habitantes do ter-

ritório em questão, não há diferença com

a situação do país; o maior índice

de violência incide sobre a população jovem e negra. O

adendo é que, dos m

unicípios entes da RIDE, três estão entre os 100 m

ais desiguais e violen-tos do país. U

ma ação conjunta deve ser dada para que haja um

a estrutura adm

inistrativa de maior autonom

ia que amplie a participação social e dos

prefeitos dos municípios. Esta subárea da RID

E deve encontrar um desenho

institucional que a pactue territorialmente, além

de mecanism

os como os já

citados, bem com

o mecanism

o financeiro de forma com

patível com a dinâ-

mica e problem

ática que se coloque de forma contundente para desafiar a

atual institucionalidade e a pactuação federativa vigente (Azevedo &

Alves,

2012, pp. 95).A

ssim, à luz de G

uerreiro Ramos e A

chille Mbem

be, pretende-se argu-m

entar como o Estado se torna negligente por falta de políticas públicas

mais incidentes e com

o essa violência é normalizada na sociedade.

Em G

uerreiro Ram

os, é afirmada que há na sociedade um

a “patologia do ‘branco’ brasileiro”, o qual atribui toda a situação de problem

ática racial ao negro. O

que dialoga com A

chille Mbem

be que acrescenta que ao racismo é

aliado para a normalização do estigm

a e desqualificação do Negro sem

uma

justificativa objetiva.A

temática racial que é transversal à econom

ia. O cerne de raça e classe se

dá mutuam

ente. Porém, a lógica racista não é apenas um

a “questão social”. Logo, é necessário analisar o racism

o vigente para além disso. Pois, a igual-

dade de classes não leva ao desaparecimento do m

esmo (M

bembe, pp. 72).

Assim

, revela-se imprescindível entender o funcionam

ento das estruturas que corroboram

para manutenção desse sistem

a, bem com

o de seus aliados; com

vista a tentar, quiçá, superar a existência do mesm

o. O processo racial

tem reflexos na sociedade brasileira, com

sua negação da cor; no sistema de

securitização, com o biopoder no com

bate aos corpos negros; e na população negra, com

sua estigmatização.

Dos autores escolhidos para a argum

entação até aqui levantada, traz-se A

chille Mbem

be (2014) que discorre sobre a ideia de Negro criada pelo O

ci-dente e o processo dos povos em

diáspora até os dias de hoje. O autor dá

conta do processo de subjugação do Negro, a busca do m

esmo por identi-

dade e a sua posterior frustração ao passo que lhe é negada a liberdade de ter a própria essência. D

e forma que fica atado ao perfil excludente que dele

criaram. O

que pode refletir na situação da população da AM

B, a qual tem

maioria negra associado ao passado baby boom

que hoje está refletido na alta taxa dem

ográfica de jovens, porém em

grande parte sob alto grau de vulnerabilidade social.

Patologia do “branco” e enclausuramento do N

egro Guerreiro Ram

os (1982) atribui essa narrativa depreciativa e m

entirosa sobre os negros como

uma patologia do “branco” brasileiro, e não m

ais, como um

problema dos

negros que recorrentemente se discursava. O

“branco” postula informações

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6061

mal form

uladas verbalmente sobre o negro que, m

esmo inadequadas e en-

ganosas, um dia foram

consideradas ciências no âmbito da A

ntropologia e Sociologia (R

amos, 1982, pp. 215).

Somado a isso, a estética do “branco”, critério dom

inante na sociedade brasileira reflete-se em

um com

portamento de superioridade que justificava

a relação servil (Ram

os, 1982, pp. 216). Ram

os não se utilizou da literatura brasileira produzida sobre relações raciais, um

a vez que essas mais confun-

dem do que explicam

. A respeito da patologia social é convencionado que a

mesm

a equivale a um desequilíbrio da sociedade com

o estado natural em

perturbação. A m

esma é um

a extensão do biológico (Novicow

apud Ram

os, 1982, pp. 217).

Segundo Durkheim

(1950), citado por Ram

os, o estado o que é conside-rado norm

alidade é relativo a uma dada fase da sociedade. A

depender do m

omento algum

ato pode ser dado como norm

al ou anormal. (R

amos, 1982,

pp. 218 – 219). A exem

plo, justamente a questão racial, que é processo oriun-

do de uma época em

que havia justificativa, explicação e aceitação para do-m

inação e subjugação dos negros. À época essa justificativa era dada com

o o norm

al dentro da sociedade. Há controvérsias se não é assim

até os dias atuais, m

as nas leis vigentes nos dia de hoje, a igualdade é princípio e o anor-m

al passa a ser o racismo que outrora não era crim

e, mas um

a regra.Para perpetuar seu poder, a m

inoria colonizadora promoveu sua dom

i-nação por m

eio de valores estéticos e costumes. D

e forma que garantiu o

poder em sólidos pilares com

duração garantida (Ram

os, 1982, pp. 219). Para M

bembe (2014), essa dom

inação estética também

pode chegar à eugenia ge-nética de m

elhoramento que exclui os fenótipos negros. O

pensamento de

raça também

passou a colonizar a questão do genoma. Por m

eio de pesqui-sas para atribuir a origem

de doenças a certas raças, ou mesm

o nos discursos de sobre escolhas reprodutivas onde há a seleção de em

briões, sem im

pedi-m

entos de haver um futuro em

que se faça um controle de ‘qualidade’ para

impedir o nascim

ento das raças “indesejáveis” (Mbem

be, 2014, pp. 45-46).Ram

os ainda determina que essa patologia do “branco” se revela na de-

claração de cor das pessoas. Que, as que tem

pigmentação m

ais clara se auto avaliam

contra sua condição étnica objetiva. Esse desequilíbrio é o que o au-tor considera de patológico no país (R

amos,

1982, pp. 221).A

exemplo, a estatística oficial do IBG

E, em 1940, ao recensear a popula-

ção entre “branca”, “preta” e “amarela” ou um

traço (-) notou uma grande

inclusão de pardos entre os brancos e uma m

enor fração de pretos entre os pardos. Logo, um

a tendência ao clareamento (R

amos, 1982, pp. 221).

Revela-se um

desejo fictício de superioridade. Tanto o é que há protesto quando identificados enquanto negros, ao ponto de exibirem

sua “brancu-ra” com

origens enobrecedoras para “proclamar anéis, decoração da casa,

constituição do nome, estilo linguístico”; ao ponto de quererem

descobrir suas origens europeia e ignorarem

a origem africana (R

amos, 1982, pp. 226).

O desajustam

ento do “branco” é tamanho que o m

esmo não gosta da afir-

mação de que o Brasil é de m

estiços. O ideal de brancura acaba por enfraque-

cer a integração social dos elementos que constituem

a sociedade europeia (R

amos, 1982, pp. 230-231).

Era perceptível a crueldade, má fé e intenção “cism

o genética” a respeito dos negros no Brasil. U

ma vez que im

putaram processos sem

elhantes aos aplicados aos judeus. U

ma estratégia para m

inar nas pessoas negras o senti-m

ento de insegurança (Ram

os, 1982, pp. 231).Essa idealização da brancura reflete-se na baixa integração social de seus

elementos, onde, segundo o autor, é tem

porário e não será obstáculo ao pro-cesso social. Pelo m

étodo indutivo, o autor conclui que o “problema do ne-

gro” se revela uma patologia social do branco que, enquanto m

inoria letrada que criou o problem

a. Logo, é preciso reexaminar as condições raciais no

Brasil a partir de uma posição étnica autêntica. Esta é possível a partir do

país e suas pautas de evolução sem im

itar as práticas de sociólogos de outros países (R

amos, 1982, pp. 235-236).

Depreende-se de R

amos (1982) e M

bembe (2014) a existência da questão

biopolítica neste e a biológica naquele. Da biológica, Springer (apud R

amos,

pp. 220), também

tratou o tema da patologia social com

o uma enferm

idade que foge à norm

a. A m

esma pode presidir a estrutura dos superorganism

os. Q

uanto a biopolítica, explica-se ser o “de controlo das pessoas e a tomada de

poder sobre um corpo biológico m

últiplo em m

ovimento”, sendo ela conse-

quência das transformações do m

odo de produção capitalista, sistema que

outrora teve sua existência apoiada na superioridade racial (Mbem

be, 2014,

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6263

pp. 46). Do enclausuram

ento do Negro, ou sua estigm

atização, foi feito o uso de pseudojustificações de estereótipos e dom

esticações psicológicas (Ra-

mos, 1982, pp. 220). Esse enclausuram

ento significa uma form

a de curiosi-dade com

efabulação que incide sobre os outros, a ponto de transpor o que é acreditável ou inacreditável. Logo, essas classificações eram

construídas com

preconceitos ingênuos e sensualistas com sim

ples qualificações que podiam

ser boas ou ruins (Mbem

be, 2014, pp. 38-39).A

s qualificações ruins eram atribuídas ao N

egro, o qual era representado com

o uma figura pré-hum

ana incapaz de superar a sua animalidade. Tais

qualificações, aliadas ao imperialism

o, são captadas e apreendidas pelo pen-sam

ento ocidental, de forma que aos poucos foi desligando qualquer possi-

bilidade de conhecer profundamente do que se falava (M

bembe, 2014, pp.

39).

Refl

exo n

a so

cied

ad

e d

a ‘b

ran

qu

itud

e’ n

o B

rasil

Para Ramos, é evidente que há um

a perturbação psicológica do brasilei-ro em

sua autoavaliação estética. Um

a vez que, o próprio IBGE declara e,

nota que o número apurado de “brancos excede sensivelm

ente o que o que constaria de um

a classificação realizada conforme critério objetivo” (R

amos,

1982, pp. 221). A cor escura ocupa o pólo negativo. O

padrão branco de es-tética social se desenvolveu quando o oposto deveria ter ocorrido. A

s mino-

rias “brancas” tentam esconder as origens raciais. Tornam

-se mais brancos e

querem se tornar se aproxim

ar da estética europeia (Ram

os, 1982, pp. 226).A

Europa, por sua vez, se inscreveu, ao longo do séc. XVII, num

a posição de com

ando com relação ao resto do m

undo. O horizonte espacial europeu

se alarga justamente por este deter o controle sobre a im

aginação cultural e histórica (M

bembe, 2014, pp. 37). À

época também

surgiam discursos sobre

a natureza, forma e especificidades dos seres vivos e com

os seres humanos

a regra também

foi aplicada. Populações foram classificadas em

termos de

espécies, gêneros ou raças numa linhagem

vertical (Mbem

be, 2014, pp. 37).Em

paradoxo, as pessoas e as culturas também

começam

a ter suas indi-vidualidades encerradas em

si. Cada com

unidade passava também

a ser um

corpo coletivo e único, cuja

história tinha uma base única e os únicos resultados possíveis eram

a li-berdade ou a escravatura. A

ssim, junto a esse advento das classificações dos

seres, passa-se a indicar no que um se difere do outro (M

bembe, 2014, pp.

38). A raça não existe do ponto de vista antropológico ou genético. Porém

, é um

a ficção útil para desviar a atenção de outras lutas mais verossím

eis ou-trora. Postulou- se a existência de um

a superioridade racial onde o ocidente se colocou com

o o lugar onde havia direitos e humanidade. A

penas no oci-dente se deu a concepção de cidadão com

direitos civis e privados para seu pleno desenvolvim

ento. A concepção de que eram

civilizados, a crença da não hum

anidade das pessoas que viviam em

África, fez criar fábulas e cren-

ças imaginárias no erudito e no popular. A

o passo que até os estudos mais

objetivos para conhecer o outro, estavam recheados de narrativas que faziam

o N

egro ser visto como brutal (M

bembe, 2014, pp. 25). C

om relação à beleza,

o mesm

o se sucede. Cada raça se considera com

o a mais bela e se orgulha do

que a distingue de outras raças. Quando um

a raça se vê obrigada a ter outra com

o superior e mais desenvolvida, o am

or à própria raça desaparece e à própria beleza tam

bém (R

amos, 1982, pp. 219).

Refl

exo n

o Siste

ma

de Se

gu

ran

ça d

o Esta

do

A questão social é processo oriundo de um

a época em que havia a justifi-

cativa de dominação e subjugação dos negros. À

época essa justificativa era dada com

o o normal dentro da sociedade. O

nde também

convergem M

bem-

be e Foucault sobre os corpos Negros a serem

combatidos, cuja presença

é tida como o norm

al e desejável dentro da esfera e estrutura do Estado. A

ssim, o conceito de raça foi útil para dar nom

e aos que não eram euro-

peus. O que o autor diz que cham

amos de ‘estado de raça’ diz respeito a

um estado de degradação da essência dessas hum

anidades não-europeias que eram

tidas como m

enores. Há a ideia de fóssil apresentada por Foucault

((2000)) citado por Mbem

be, em que seu significado condiz com

“aquilo que deixa substituir as sem

elhanças através de todos os desvios que a natureza percorreu”. E tam

bém a ideia de m

onstro, que “narra, como em

caricatura a gênese das diferenças” (Foucault, A

s palavras e as Coisas, (2000), p.216 apud

Mbem

be, pp. 39-40). Na classificação das classes, espécies e gêneros o N

egro

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6465

na sua obscuridade representa a sintetização destas significações. Logo, ele não existe enquanto N

egro, uma vez que sua figura é produzida e reprodu-

zida. Sua figura é produzida enquanto um corpo de exploração com

vínculo de subm

issão, onde era colocado nas plantações para obtenção do máxim

o de rendim

ento (Mbem

be, pp. 39 -40).Raça e racism

o se revelam no trabalho que este tem

em relegar a um

rosto hum

ano para segundo plano e cobri-lo com um

véu. No lugar de rosto, um

a fantasia, um

simulacro. Essa atribuição é produzida e institucionalizada, a

indiferença e o abandono justificados. O O

utro é violado, ocultado e con-denado à m

orte de maneira aceitável (M

bembe, pp. 64- 74). Em

Foucault, raça e racism

o “é a condição de aceitabilidade da condenação à morte num

a sociedade de norm

alização”. “A função assassina do Estado só pode ser ga-

rantida, funcionando o Estado no modo de biopoder, através do racism

o. ” (Foucault, (2006) pp.227-8, apud M

bembe, pp. 64-74). O

que condiz com

a postura do Estado de abandono da região objeto da questão de violência em

ergente, e a ausência de ações para a melhoria da RID

E.A

quele o qual a raça é atribuída é passivo de tê-la presa em sua silhueta,

de modo a

desconsiderar sua essência, fazendo com que, segundo Fanon ([1952]2008),

“uma das razões para desgostar da sua vida será habitar essa separação

como se fosse o seu verdadeiro ser, odiando aquilo que é, para tentar ser

aquilo que não é” (Fanon apud Mbem

be, pp.11;25).

CO

NSID

ERA

ÇÕ

ES FINA

IS

A tem

ática abordada pode ser utilizada para entender melhor a interação

de raça e racismo, principalm

ente no âmbito da C

iência Política, Ciências

Sociais, Com

unicação e Jornalismo. Á

reas as quais podem corroborar ou

combater os discursos que por hora influenciam

para a manutenção de um

sistem

a racista que se reflete nos moldes institucionais do Estado.

Ao passo que essas inovações podem

exercer controle e vigilância, tam-

bém pode exercer opressão extensiva e tam

bém deixar à própria sorte o espa-

ço que poderia ter sua presença para além da vigilância e opressão. O

poder público do Estado tende apenas à vigilância, e deixa à parte o que lhe seria

obrigação de fornecimento aos ditos ‘cidadãos’. Q

ue, em sua m

aioria negros, não têm

espaço ou estrutura para exercer a plena liberdade cidadania, uma

vez que são apenas corpos tidos como inim

igos do Estado que precisam ser

combatidos. A

tendência do negro é de se desvencilhar do corpo por não ter sua identidade reconhecida pelos ditam

es sociais do biopoder, é reflexo do racism

o que incide permanentem

ente com inovações tecnológicas.

BIB

LIOG

RA

FIA

Atlas do D

esenvolvimento H

umano no Brasil , acessado em

06/07/17, às 17h;A

ZEVED

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6869

Lucas Ferrazza é Cozinheiro e Produtor C

ultural. Atualm

ente cursa

Tecnólogo em G

astronomia pelo IFSC

, em Florianópolis, sua cidade

natal. Em suas lutas, está a constante resistência do corpo negro,

gordo e gay.

8C

OR

PO

NEG

RO

E GO

RD

O B

ÓIA

NO

MA

R

Moreno? M

oreno, claro. Foi dessa forma que m

e enxerguei e me identi-

fiquei durante muito tem

po na minha vida. Q

uando pequeno, filho de mãe

solo, nascido em Florianópolis-SC

, logo cedo eu ouvi de pessoas do meu

convívio e família que “esse aí não tem

pai”, que “o pai dele é negão”, que “você não precisa conhecer seu pai”. A

o mesm

o tempo em

que me tratavam

dessa form

a, parte dessas pessoas eram aquelas que ajudavam

minha m

ãe com

o que podiam para que eu tivesse um

a infância com com

ida, escola e m

oradia. Lembro de nos verões, a cor da m

inha pele ser sempre um

a ques-tão pautada por m

inha família. O

uvia-os falando da inveja da minha pele ao

mesm

o tempo que ouvia conselhos para “não fazer serviço de preto”. A

pele clara e o cabelo liso sem

pre foram fatores que privilegiaram

minha inserção

no ambiente fam

iliar, no ponto em que este am

biente parece responder a um

comportam

ento de nossa sociedade quando, sabendo quem é negro, o reco-

nhece como o tal apenas quando lhe é conveniente.

Quando m

inha cor começou a ser de fato um

a questão para mim

, lembro

de chegar à conclusão, junto de minha m

ãe, que eu era pardo. Ou então, m

o-reno. N

egro era uma palavra que nunca deixaram

se aproximar de m

im. E

o que era ser pardo? E porque minha m

ãe é branca e eu sou pardo? Quando

eu me deparei com

esses tipos de questões, lembrei-m

e da única foto do meu

pai que minha m

ãe havia me m

ostrado quando eu tinha sete anos. Lembro

que a foto ficava dentro de um envelope, dentro de um

a lata, no fundo do arm

ário. E a foto era de uma expressão m

uito séria. Era um tabu para m

im.

Recordo-me de ter sonhos constantes com

meu pai m

esmo sem

conhecê-lo, a expressão daquela foto nunca saiu da m

inha cabeça. Eu andava na rua e sem

pre ficava olhando para homens negros, im

aginando como seria o m

eu pai. A

té porque, pelo que ouvia, essa era a única certeza que eu tinha dele: m

eu pai é preto.

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7071

Somente aos treze anos m

inha mãe m

e contou como e quando a história

dela se cruzou com a do m

eu pai. Ela tem um

irmão que estava preso em

um

presídio em Florianópolis, na m

esma época que m

eu pai também

estava pre-so. Eles se conheceram

dentro do ambiente penitenciário e quando m

eu pai foi solto, eles se relacionaram

, tendo como consequência a gravidez. M

eu pai não quis assum

ir e sugeriu que ela abortasse. Minha m

ãe escolheu assumir a

gravidez sozinha. E quando digo sozinha, não ignoro todas as ajudas e amor

que a nossa família sem

pre nos deu, mas digo sozinha, assum

indo o papel de M

ãe, e exclusivamente M

ãe, sofrendo todos os preconceitos por ser mãe

solo, colocando um filho hom

em no m

undo. M

inha mãe sem

pre foi muito verdadeira com

igo e escolheu os mom

entos que julgou achar m

ais adequado para que eu soubesse sobre minha origem

por parte de pai. N

o entanto, o meu contexto social foi im

pregnado de atitu-des que sem

pre me distanciaram

disso. Convivi durante m

uito tempo com

pessoas que eram

contra eu conhecer meu pai. Eu cheguei a concordar com

isso ao m

esmo tem

po em que não com

preendia nada. Ao m

esmo tem

po em

que eu “me identificava” com

o moreno e pardo, cresci com

o mundo falando

que eu não deveria nunca ser como m

eu pai: negro. C

om 16 anos fui m

orar e estudar no Rio de Janeiro e foi com essa idade

que conheci meu pai, quando ele foi m

e visitar na escola. Nos abraçam

os, conversam

os e foi mais leve do que eu pensava que seria. E é m

uito estranho você reconhecer a sua face e o seu corpo em

outra pessoa, aquele que falaram

pra você nunca ser igual. De todos os filhos, eu sou o m

ais parecido fisica-m

ente com ele. E esse detalhe fez abrir um

grande vazio dentro de mim

. Esse vazio era o m

otivo de eu ser moreno, claro. N

ão. Esse vazio era o motivo do

meu pai ser negro e grande parte das pessoas quererem

negar essa realidade para m

im: um

a criança que é negra, de pele clara, e cresceu dentro de um

contexto social branco, que a vida inteira me considerou com

o moreno para

que eu fosse inserido e aceito num am

biente em que eu era a exceção, por ra-

zões de embranquecim

ento e por não assumirem

que dentro de sua família

havia uma pessoa preta.

O processo de em

branquecimento em

que vivi interferiu muito no m

eu convívio com

pessoas negras, estive sempre condicionado a ter am

igos bran-cos durante toda a infância e adolescência. D

e volta a Florianópolis, com 18

anos, entrei na Universidade do Estado de Santa C

atarina e no meu segundo

ano cursando Teatro, fui convidado por uma professora para assum

ir uma

bolsa de um projeto de extensão que ajudava na pesquisa e produção do

“Coletivo N

EGA

- Negras Experim

entações Grupo de A

rtes”. Fiz parte do coletivo por alguns m

eses e logo depois abandonei a universidade por uma

não identificação com o curso. A

o entrar no Coletivo m

e questionava a res-peito dos m

otivos pelos quais a bolsa foi oferecida a mim

e este processo de questionam

ento foi muito im

portante para meu reconhecim

ento enquanto pessoa negra. N

o Coletivo, acim

a de compreender com

o o racismo sem

pre esteve presente dentro da m

inha vida, conviver com outras pessoas pretas

foi crucial para eu entender quem eu sou no m

undo. D

epois de largar a universidade, fui morar em

São Paulo. Este foi um pe-

ríodo muito im

portante, onde, morando longe do m

eu contexto social, tive um

a série de gatilhos em relação aos preconceitos vividos até então, prin-

cipalmente situações fam

iliares que foram apagadas e revividas posterior-

mente. Foi nessa fase que eu convivi, de fato, com

pessoas pretas que foram

fundamentais para o m

eu processo de reconhecimento. D

iferentemente de

Florianópolis, em São Paulo, além

de conviver, eu enxergava diariamente

muito m

ais pessoas negras. E conviver com e enxergar outras pessoas ne-

gras, sem dúvida, fortalece-nos e encoraja-nos a nos ver de um

a maneira

mais sincera. N

ão à toa nós, pretos e pretas, fomos histórica e sistem

atica-m

ente induzidos a não conviver com os nossos para que nossa luta seja sem

-pre enfraquecida enquanto grupo, por um

a sociedade não nos aceita fortes e constantem

ente planeja o nosso extermínio.

Após m

e entender verdadeiramente com

o uma pessoa preta instantanea-

mente com

ecei o processo de identificação como um

a pessoa gorda, da mes-

ma form

a, dolorida, através de gatilhos e traumas e coisas que a gente vai

engavetando e uma hora ressurge. A

nteriormente, além

de moreno, nunca

me tratavam

como um

a pessoa gorda. Eu era sempre aquela pessoa que os

amigos falavam

“mas eu não te vejo com

o gordo”. E foi nos meus relaciona-

mentos com

outros homens que eu m

e deparei com a não aceitação do m

eu corpo com

o ele era. Era comum

sair com m

eus amigos para festas e não con-

seguir me aproxim

ar de pessoas que me despertavam

interesse. Era comum

m

e olharem com

cara de nojo, bem com

o sempre foi com

um ficar com

alguns

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homens gays que pediam

para que tudo acontecesse no privado. Foi muito

comum

marcar encontros com

caras que eu não conhecia e me perguntarem

: “M

oreno claro ou escuro?”, ou então ser convidado a me retirar da casa de

algumas pessoas com

o argumento de: “D

esculpa, mas não vai rolar. Eu não

gosto de gordinhos”; “Não rola cara, você não m

e avisou que você era as-sim

”. Eu deveria, então, com

unicar a todas as pessoas que eu sou gordo, gay e preto?

Sempre m

e escondi atrás de roupas escuras, com m

angas e que não mar-

cassem m

inhas coxas, minha bunda e m

eus peitos. Não conseguia andar na

rua sem cam

iseta e suportar olhares e piadas sobre ser um hom

em que tinha

peitos ou que tinha dobras na barriga e uma bunda grande. E m

esmo assim

, o m

undo sempre m

e obrigou a deixar claro para todos o que eu sou. Na esco-

la, colegas já me tiraram

a camiseta a força no vestiário para que eu m

ostrasse m

inha barriga e eles pudessem rir da m

inha cara. E pessoas agem dessa for-

ma porque outras pessoas perm

item que elas façam

isso. Tem gente que acha

feio andar com gente gorda, quem

dirá sentir amor e se relacionar por um

a pessoa gorda e preta. A

paixão é seletiva, sim. Som

os motivos de piadas por

ser quem som

os. E, sofremos por achar que som

os estranhos e que o nosso corpo está errado e que precisa ser m

udado. E esse sofrimento aum

enta cada dia m

ais entre os jovens, principalmente entre os jovens negros. Em

nossa sociedade, m

eu corpo não é um corpo desejado, está longe de ser bem

visto, é um

corpo que fede, que não transa, que não combina basicam

ente com

nada – eu fui ensinado a pensar isso tudo de mim

porque pessoas pensam

isso de mim

. Essa é a sociedade que se diz avançar no combate do racism

o, gordofobia e hom

ofobia, mas que não aceita um

corpo negro, gordo e gay. Ser gordo é um

a coisa de louco, parece que você é o sinônimo da ansieda-

de. Se alimentar na frente de outras pessoas então, é um

verdadeiro desgaste. A

sensação é de que você tá fazendo a coisa errada o tempo todo. Te olham

com

o se você comesse apenas por ansiedade e nunca por necessidade. Te

questionam m

uito mais o que e porquê você está com

endo. Nós, pessoas

gordas, convivemos diariam

ente com pessoas que reclam

am de estarem

com

o nós somos. A

gente se retrai muito e não se sente livre nem

mesm

o para expor as nossas angústias ao m

undo. Culpam

o-nos diariamente por

uma série de im

posições que colocam na nossa cabeça. E saím

os de casa com

medo de com

o vão nos reparar. A gente escolhe aquela roupa que faz

as pessoas nos olharem m

enos, mas ainda assim

bufam no ônibus quando

sentamos ao lado. A

cham que som

os sujos e fedidos porque suamos m

ais. M

uitos fetichizam nosso corpo por m

era diversão, para depois falar que estam

os exagerando.Faz seis m

eses que eu voltei a morar em

Florianópolis. Sou cozinheiro e estudo G

astronomia no Instituto Federal de Santa C

atarina. Voltei para a ci-

dade pelo motivo de estudo e hoje reencontro aqui todas as feridas que esses

processos causaram dentro de m

im, só que agora, fazendo sentido.

Historicam

ente, Florianópolis, tem um

a trajetória baseada na ideologia do em

branquecimento que, anos depois da abolição da escravatura, a partir

da década de 20, através de reformas “urbanísticas e sanitárias”, expulsou

para os morros toda a população negra que vivia em

cortiços no centro da cidade. A

maior parte da população negra ainda resiste nos m

orros. A m

aior parte dos terreiros, estão no m

orro. E todas essas comunidades do m

aciço dos m

orros sempre foram

(e ainda são) esquecidas pelo governo. Dem

orou setenta anos para ter água encanada nos m

orros depois da criação do primei-

ro reservatório de água da cidade, que, ironicamente, ficava em

cima de um

dos m

orros principais da mesm

a. Temos áreas nos m

orros em que ainda não

possuem coleta de lixo. A

maior parte das pessoas negras na cidade ocupam

em

pregos de baixa renda. A m

ão-de-obra do centro histórico da cidade é preta. O

mercado público da cidade era um

ponto de encontro e convivência negra e agora, depois de um

a reforma, tornou-se um

ambiente voltado para

a classe média branca. E esse ritm

o continua da mesm

a forma, só que para

pior. O

Estado aplica a cultura de marginalização dos m

orros e regiões perifé-ricas pregando o esquecim

ento (e negando a existência) da população pre-ta, enquanto dificulta os acessos básicos a saúde e educação. M

ais do que isso, o Estado trabalha todos os dias para colocar em

prática o extermínio

da população preta. De acordo com

o Atlas da V

iolência 2017, a cada 100 pessoa m

ortas no Brasil, 71 são negras. Os núm

eros atuais do genocídio de jovens hom

ens negros são comparados a taxas de m

ortalidades em períodos

de guerra. E as pessoas não conseguem falar sobre isso. N

ão falam porque

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não se identificam com

as pessoas que estão morrendo. N

ão falam por que,

de certa forma, com

pactuam com

a ação genocida que o Estado aplica contra o povo preto.

Estar inserido dentro de um am

biente que nega o tempo todo a nossa

existência, condiciona-nos facilmente a im

aginar-nos como um

erro, um es-

torvo. O reconhecim

ento da pessoa preta enquanto o que ela é no mundo

é fundamental para seguir em

busca das feridas que precisam ser curadas.

Sabendo que no contexto da população negra a necessidade de cura é coleti-va. C

urar os nossos para que a gente crie e retome m

ais ambientes que sejam

nossos.

As pessoas pretas que vivem

aqui em Florianópolis são grandes sím

bolos de resistência. Estas pessoas resistem

em um

a das capitais mais conservado-

ras do país. Aqui a intolerância ecoa pela natureza e pelo falso encanto de ser

uma cidade paradisíaca em

que você encontra liberdade. A liberdade aqui é

para turista ver e consumir. O

plano diretor da cidade ignora a localização da população negra e visa estabelecer facilidades voltadas unicam

ente para um

a elite branca. A cidade que é tida com

o um ótim

o destino para o público LG

BT+, registra um aum

ento considerável nos índices de estupros e espan-cam

entos em pessoas lésbicas, gays e transsexuais. A

estrutura do comércio

da cidade está voltada para um público que não gosta de ser gordo. O

go-verno nega a existência e presença da população preta ao m

esmo tem

po que foca na realização de ações e eventos de origem

italiana, açoriana e germâni-

ca, com o argum

ento de preservação da cultura local, dando “visibilidade” para nós pretos apenas no carnaval (m

as que sofre grandes cortes de inves-tim

ento anualmente), com

a participação das escolas de samba, quase todas

oriundas das comunidades do m

aciço dos morros; e no dia 20 de novem

bro, dia da C

onsciência Negra, em

que a cidade parece fazer lembrar da nossa

existência. A

s pessoas te olham estranho quando você é preto e diz que é daqui –

de Florianópolis. As pessoas não te aceitam

, fazem você se questionar sobre

sua existência nesse local, colocando como regra a existência, de fato, só de

pessoas brancas. Eu nasci aqui e já fui embora da cidade duas vezes em

mo-

mentos em

que me senti verdadeiram

ente expulso. Mas, expulso por quem

? O

que eu fiz de errado? Eu apenas nasci aqui. O m

undo ainda não permite

que eu esteja completam

ente satisfeito com o m

eu corpo como ele é e onde

ele está. Essa angústia faz parte de mim

. Mas, o am

or que eu tenho pelo meu

corpo é uma prática que venho tentado retom

ar todos os dias quando con-sigo m

e enxergar. E não é fácil. É um m

isto de não pertencimento com

um

sentimento de esquecim

ento que me coloca num

a posição muito solitária. Eu

nado contra a solidão. No entanto, é dessa form

a que o mundo espera que eu

reaja. O m

undo não quer que estejamos preparados e fortalecidos para isso.

E compreender isso é tam

bém com

preender a necessidade que o meu corpo

tem de resistir a tudo isso. N

ossos corpos precisam resistir a essa invisibili-

dade e mostrar que existim

os. E, se a sociedade quer que eu continue a me

esconder, a sociedade vai ter que aceitar, de uma vez por todas, m

eu corpo preto e gordo boiando no m

ar.

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Letícia Carvalho, 2

0 anos, Pernam

bucana. Ativista fem

inista negra perifé-rica, ilustradora, integrante e fundadora do coletivo Faça A

mor, N

ão Faça C

hapinha e estudante de Pedagogia em educação do cam

po na UFPE

9P

ELO D

IREITO

DE SO

BR

EVIV

ER A

CID

AD

E

Em 2014 ouvi pela prim

eira vez o termo “direito à cidade”, através da

repercussão dos movim

entos pela ocupação do Cais José Estelita em

Recife, cidade vizinha à m

inha, Jaboatão dos Guararapes. N

a época, eu tinha 16 anos e tudo naquele discurso m

e parecia revolucionário. Descobri não só que

era um direito do povo decidir de que m

aneira a cidade deveria funcionar, m

as também

tomar decisões sobre a sua estética.

Acom

panhei de perto e mergulhei naquele m

undo lúdico até que toda a m

agia fosse se rompendo aos poucos. Fui percebendo que, apesar do acesso

ao Cais ser absurdam

ente difícil pra quem vinha da m

inha cidade, os ônibus para Jaboatão voltavam

lotados de pessoas que saiam daqui para brigar pe-

los espaços de lazer em Recife, que por ser capital, é m

uito mais am

parada.Inspirada pelo m

ovimento, decidi fazer o m

esmo por m

inha cidade. Criei

o Ocupe Jaboatão, m

obilizei grupos e página no Facebook, Instagram, entre

diversas ações físicas. Descobri coletivos de Jaboatão, descobri m

inha cidade. M

as as pessoas não se interessaram da m

esma m

aneira, os eventos eram

sempre m

uito esvaziados. Com

ecei a me perguntar por que o O

cupe Estelita que lutava por espaço de lazer num

a cidade cheia de espaços de lazer, onde as pessoas da Região M

etropolitana vão para desfrutar desses espaços por não terem

em suas cidades, ganhou um

a visibilidade e empatia tão grande,

enquanto as lutas de ocupação por moradia eram

menosprezadas. C

omecei

a me perguntar quem

estava à frente daquele movim

ento. Eram pessoas, em

sua m

aioria, homens, brancos de classe de m

édia.Passei a m

ilitar por minha cidade através do m

eu coletivo, o “Faça amor,

não faça chapinha”, meus am

igos e eu criamos o sarau JaboA

rt, entrei no C

oletivo de Mulheres do Jaboatão e conheci os diversos grupos de hip-hop,

compostos por jovens negros periféricos, que são m

arginalizados na cidade e se tornaram

pra mim

, grandes referências de aprendizado e fortalecimento.

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Em dezem

bro de 2016, me reuni com

alguns integrantes desses coleti-vos para planejar algum

a ação de incidência política que despertasse outros jovens. N

o final da reunião, fomos até a praça no centro da cidade treinar

break, já que a Casa da C

ultura onde aconteciam os treinos estava fechada.

Éramos todos jovens e negros, e fom

os observados por um grupo de poli-

ciais militares que faziam

uma blitz

na pista ao lado. Quando o nosso treino

acabou e nos organizamos pra sair, fom

os abordados por aqueles policias, que nos revistaram

fazendo comentários racistas e, após não encontrarem

nada que pudesse nos incrim

inar - eu carregava apenas uma apostila de po-

líticas públicas - os policiais começaram

a nos agredir verbalmente dizendo,

entre outras coisas: “V

ocê acha que entende de leis? Você não entende nada de leis! Eu sou a

lei!”. Respondi dizendo que sabia o quanto aquele procedim

ento era irregular, e então m

ostraram um

pacote de maconha e um

a pequena pedra de crack no bolso e disseram

ter encontrado no chão perto de mim

. Meu nam

orado questionou a acusação e foi agredido no rosto com

um tapa. G

ritei o quanto aquilo era absurdo e crim

inoso e levei também

um tapa no rosto acom

pa-nhado por vários xingam

entos misóginos. D

epois de sermos extrem

amente

humilhados, eles nos liberaram

.A

tos e ações foram feitos enquanto ao m

eu caso. Fomos perseguidos. Fi-

zemos a denúncia e foi arquivada. N

ão houve empatia e com

oção nacional. D

epois de passar por tudo isso me pergunto: com

o debater direito à cidade quando falam

os de pessoas negras, principalmente m

ulheres negras? Com

o lutar pela estética da cidade quando ainda lutam

os para que nossa estética seja aceita e que não seja atrativo para a polícia? C

omo lutar pela construção

de espaços de lazer quando sequer temos o direito de transitar pelos poucos

espaços que temos? C

omo lutar por segurança se sofrem

os violência dos di-tos “agentes de segurança”?

Enquanto os ricos lutam por pistas m

ais largas para seus carros e uma

cidade que atenda à suas expectativas de estética, estamos lutando por pas-

sagem m

ais barata para andarmos em

transportes lotados e perigosos, lutan-do para que a cidade nos reconheça com

o parte dela, estamos lutando para

sobreviver a forma opressora que as cidades estão organizadas.

Bruna Tamires é escritora, desenhista e gestora. D

eu vida à Ma-

lokêarô, por onde ela assina seus escritos, desenhos e Zines. Está sem

pre nas ruas, as vezes em casa. 10

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8485

A A

UTO

NO

MIA

SELETIVA

DA

CID

AD

E DE SÃ

O PA

ULO

Poucas mulheres negras vivem

a liberdade na cidade de São Paulo. Isso por diversos m

otivos, a começar pela passagem

de três e oitenta. A liberdade

na cidade tem a ver com

mobilidade, acesso, possibilidade e segurança, coi-

sas que os governos devem prover e a sociedade precisa acreditar que todas

as pessoas merecem

.V

ocê, leitor ou leitora, não terá aqui a sua inteligência desconsiderada. C

onfio que, com tantas inform

ações já recebidas nesta publicação e em m

ui-tas outras, nós não precisam

os retomar o beabá das estatísticas sobre desi-

gualdades entre negros e brancos, ricos e pobres, homens e m

ulheres, pes-soas e pessoas. Vam

os falar sobre autonomia, a aptidão ou com

petência para cada um

gerir sua vida.São Paulo é um

a cidade solitária e perigosa. Também

é uma cidade que

acolhe como pode todos os seus m

ilhões de habitantes. Ela carrega a ilusão de ser a filha m

ais velha, a locomotiva de país, o arrim

o da família. Ela carre-

ga a brutalidade do concreto, da indústria, da correria que atropela e não vê no m

eio da rua as pessoas estiradas. Ela passa sem saber se estam

os vivas ou m

ortas. Ela não vê, ou não quer ver, seus problemas, e por isso se m

ascara, se esforçando para ser linda no m

eio do lodo e da miséria. Ela só tem

essas ideias porque foi criada num

a autonomia seletiva, que protegeu bandeiran-

tes, massacrou povos nativos, escravizou africanos e form

ou imigrantes eu-

ropeus para o individualismo e a ignorância do m

érito sem m

érito. Vivem

os assim

, numa cidade que deu autonom

ia a partir de uma classificação por

raça, por gênero e por classe.À

s cinco e meia eu m

e preparo para sair às seis e pegar o trem. Preciso

cruzar a cidade, chegar na zona leste, ter a minha aula e depois ir para o m

eu trabalho no centro. Q

uando a vontade é grande, bate sete horas e eu fico um

pouco mais na cidade para m

e divertir com m

inhas amigas. O

mesm

o aos finais de sem

ana, quando saio em busca de lazer, eu viajo pela cidade, m

as

preciso voltar antes que a segurança para mulheres esteja pior que o nor-

mal. E no m

eio de todos estes processos, eu enfrento burocracias e impasses

decorrentes da minha condição de cidadã paulistana negra, jovem

e pobre. N

em todas as pessoas reconhecem

o fato da cidade não ser dividida entre todos de form

a igual. Geralm

ente, é quem sofre que sente. Q

uem não sofre

desconhece, pensa que sabe, mas não sabe de nada. A

experiência de ser uma

jovem negra e de periferia na cidade de São Paulo, por exem

plo, é um caso

que merece atenção quando se trata de lim

itação de autonomias. Isso por três

premissas: o hom

em achar que m

ulher deve ter dono, a sociedade achar que m

ulheres negras não têm fam

ília e o Estado ainda considerar que pessoas negras são m

eio-cidadãs.São m

ilhares de jovens negras que saem de casa todos os dias e enfren-

tam a selva de São Paulo sozinhas. Elas vão de tênis, m

ochila, levam água,

blusa de frio... Todo o kit para sobreviver ao dia a dia e, mesm

o assim, nada

é garantido. Sair de casa já é uma com

plexidade. Em relação aos transportes

-apesar das leis municipais que perm

item que os ônibus façam

paradas fora do ponto no período noturno - não asseguram

nossa segurança na volta para a casa. Sam

pa é uma cidade onde quem

tem, tem

, e quem não tem

dinheiro para pagar seu carro/táxi/uber, que volte pra casa enquanto o m

etrô e trem

estiverem ativos e as ruas não estiverem

vazias.Depois de determ

inado horá-rio, todos os lugares se tornam

mais agressivos para m

ulheres. E para as mu-

lheres negras principalmente, cuja condição hum

ana é mais reduzida pelo

racismo. Ilum

inação urbana, meios de transporte, m

achismo, o caos causado

pela ausência de políticas públicas que considere as desigualdades. É tene-broso viver a rua quando ela determ

ina que o seu corpo é de propriedade de todos. Todos ou ninguém

. Desconsiderado, descartável, objeto.

A questão que fica é: com

o levamos essa onda de restrição de entrada e

saída, de possibilidades, de segurança e dignidade?M

inha sugestão, não imposição, é: vam

os levando de leve para não en-louquecer.

E quem desconhece a nossa realidade, lida com

o para não fazer pataqua-das? Estude, escute e abra cam

inhos. U

m salve para todas as jovens negras vivas nas ruas das grandes cidades.

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discriminação. O

direito à cidade para todos e todas é um

a condição subjetiva inserida em um

contexto social, econôm

ico e territorial de relações e interesses difu-sos, coletivos, conflitantes ou não, direito que reclam

a o reconhecim

ento da diversidade como protagonista na

conquista do bem com

um.

Segundo dados do governo federal 3, as mulheres

brasileiras são responsáveis pelo sustento de 37,3% das

famílias, possuem

expectativa de vida de 77 (setenta e sete) anos de idade, equivalendo a 51,4%

da população brasileira atual. Q

uando se indica um percentual de m

u-lheres responsáveis pelo sustento de suas fam

ílias, eclo-de m

ais uma questão, a da presença fem

inina no espaço urbano deslocando-se para o trabalho, para além

dos usos tradicionais.

A m

ulher é, no Brasil, em núm

eros, maioria. É a ci-

dadã que mais ocupa os espaços, produzindo ou não,

circulando, habitando, interferindo, voluntaria ou invo-luntariam

ente, por meio de sua presença na construção

e manutenção da sociedade brasileira. Entre os eleitores,

as mulheres tam

bém são m

aioria, com o Tribunal Supe-

rior Eleitoral, em 2014, registrando 77.459.424 eleitoras

em face de 68.247.598 eleitores do sexo m

asculino4. N

a perspectiva da dem

ocracia, pelo método quantitativo de

participação, a explicação para a ausência das mulhe-

res nos espaços políticos, partilhando do debate sobre a cidade e o que ela deve e pode ofertar, não se sustenta, fragilizando assim

a possibilidade de um futuro estável,

a presença da mulher era ignorada e, portanto, desconsi-

derada no tocante às escolhas sobre que forma e função

os espaços públicos teriam e com

o seriam acessados.

Sendo a cidade o espaço de convivência humana que

promete o desenvolvim

ento social e econômico, o aces-

so ao lazer, à habitação, serviços, trabalho e circulação livre, seria natural que todos os segm

entos sociais fizes-sem

parte da sua concepção, garantindo assim m

aior atendim

ento às demandas individuais e coletivas que se

apresentam. Infelizm

ente não é o que se apresenta, pois som

ente seria possível tal realização se os agrupamen-

tos humanos que se reúnem

nas cidades estivessem cal-

cados em bases solidárias de prom

oção da justiça social, com

igualdade de oportunidades para todos e todas. O

ra, se a luta para alcançar um patam

ar mais equilibra-

do de condições de vida2 – na cidade e no cam

po - tem

sido um dos grandes desafios brasileiros, o que requer

permitir a participação dem

ocrática na discussão sobre as intervenções e políticas públicas feitas em

e para tais sítios, que dirá garantir que, especialm

ente, a mulher te-

nha voz ativa e decisiva nesse processo de produção do espaço urbano.

Ao falar da presença da m

ulher no âmbito das deci-

sões sobre o uso e a ocupação que se deve dar à cidade, não se destaca tal im

perativo tão somente relacionado

à segurança e integridade física e psicológica feminina,

mas da im

portância de tal questão para o fortalecimen-

to do Estado democrático garantidor da igualdade sem

O dia 8 de m

arço representa uma im

portante data de reflexão para o debate internacional que envolve a m

ulher, seus direitos e seu papel no dia-a-dia da socie-dade urbana, m

arcada historicamente pelo em

podera-m

ento masculino.

As cidades e as m

ulheres no século XXI têm um

a relação sim

biótica que necessita ser reconhecida for-m

almente pela sociedade, pelo poder público e político,

pelo poder econômico. Para tanto, é preciso falar e es-

crever sobre as cidades e as mulheres, seja no Brasil ou

fora dele. zSendo a cidade a projeção da sociedade em

um de-

terminado espaço

1, analisar como a urbe dialoga com

a presença fem

inina é de fundamental im

portância tendo em

vista que o desempenho das inúm

eras funções, mãe,

companheira, profissional, em

diferentes áreas, solicita da cidade a m

obilidade e a acessibilidade, envolvendo o livre transitar da m

ulher, inclusive para o trabalho, a possibilidade de acessar serviços públicos e privados, lazer e cultura sem

cerceamento, m

uitas das vezes pro-vocado pelo receio à sua integridade física. Para que a cidade seja funcional à m

ulher é preciso que ela perceba a presença fem

inina, o que envolve permitir sua parti-

cipação nos espaços decisórios sobre o desenho, o uso e ocupação da cidade.

As cidades têm

uma significativa relação com

o uso e a ocupação que o m

undo masculino faz delas. Foram

idealizadas e erguidas dentro dessa perspectiva, em

que

Elky Araújo - G

raduanda em A

rquitetura e Urbanism

o pela Univer-

sidade São Judas Tadeu.

11O

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LISTA

A área central da cidade de São Paulo dem

onstra aspectos ímpares tra-

tando-se da sua formação. Sua m

orfologia reúne a combinação de variadas

épocas e distintas legislações, o que contribui para a caracterização do seu tecido urbano atual. D

etém de forte infraestrutura, além

de contar com um

a m

ultiplicidade de núcleos comerciais tão antigos quanto vigorosos, serviços

e equipamentos capazes de atrair um

grande número de visitantes à cida-

de. Entretanto o centro já sofreu intensa desvalorização. Por volta de 1950, houve abandono por parte das elites, o que fez com

que deixasse de ser um

local de consumo e de realização atividades culturais das classes m

ais abas-tadas. A

lém de contar com

obras viárias na década de 70, responsáveis pelo recorte em

seu tecido, colaborando para transformação da paisagem

urbana. Som

ente mais tarde, com

início da década de 90 por meio de ações com

o a O

peração Urbana C

entro (Lei 12.349 de 6 de junho de 1997), que visa a m

elhoria e revalorização a fim de atrair investim

entos e reverter o processo de degradação do C

entro, esse quadro tende a mudar. Tem

os então a região central, m

ais especificamente os distritos da Sé, com

o recorte adotado para os estudos e análises a fim

de se obter uma leitura dinâm

ica dessa localidade. Este trabalho parte da busca pela com

preensão da existência de núcleos que possuem

sua composição urbana, econôm

ica e artística entrelaçada ao enredo da população negra na cidade de São Paulo, atendo-se às particula-ridades e m

anifestações culturais à medida que se vivencia as transform

a-ções m

orfológicas do lugar. Diante desse contexto de m

udanças, é possível com

preender a desapropriação e a dispersão como fenôm

enos urbanos que tecem

a dinâmica da cidade. D

esse modo, a realidade faz-se questão a partir

do mom

ento em que se propõe um

a discussão sobre uma região cuja sua

história tem valor significativo e atrelado ao espaço e as transfigurações ter-

ritoriais.

Page 46: “130 anos pós-abolição: vivências negras no espaço urbano” … · 14 15 subalter-de e su-mas-culina, tal como instituída pela cultura hegemônica subalternização o subalterniza-pe-discorre

9091

Posteriormente a A

bolição da escravatura, no comando do prefeito A

ntô-nio da Silva Prado (1899 - 1911), o poder público juntam

ente a elite paulista-na liderou um

a acentuada reorganização territorial na cidade de São Paulo, consequentem

ente a ativa redefinição social e racial que culminou no des-

locamento da população negra rem

anescente da escravidão da área central para zonas m

ais afastadas. Houve um

a espécie de limpeza do C

entro Velho, repelindo os indivíduos que estavam

instalados ali. C

om a redefinição do espaço urbano que ocorreu

com

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un

da. (R

OL

NIK

,

1997, p

. 75).

Percebe-se que ainda hoje essa segregação espacial que envolve a popula-ção negra é dilacerante e gradativa. Tem

os isso quando analisamos a paisa-

gem da cidade de São Paulo e no m

omento em

que consultamos inform

ações oficiais, com

o por exemplo dados do Instituto Brasileiro de G

eografia e Esta-tística, e relacionam

os com a espacialidade urbana. C

om base no IBG

E, hoje tem

os a população negra concentrada nas periferias. Com

o em todo o Brasil,

na metrópole paulista a m

arginalização do contingente negro também

está relacionada a segregação social, com

pondo então as camadas m

ais pobres.Todavia, esse assunto pouco a pouco vem

sendo debatido através de pesqui-sas que tratam

sobre raça e espaço urbano. Não eram

apenas as moradias

que indicavam a presença dos negros por aquelas bandas. Suas m

anifesta-ções culturais deixaram

marcas caracterizando essa territorialidade negra,

como conta a o historiador Petrônio D

omingues no livro “U

ma H

istória Não

Contada – negro, racism

o e branqueamento em

São Paulo no pós-abolição”: “O

s negros eram organizados, tinham

clubes, sociedades beneficentes, grê-m

ios literários, jornais, grupos teatrais, escolas experimentais e artísticas”

20

Dentre as m

aiores formadoras da identidade brasileira, a cultura afro é

elemento recorrente no cotidiano da cidade de São Paulo. Exerce grande in-

fluência cultural através de manifestações e expressões que evidenciam

a 20 D

OM

ING

UES, Petrônio. U

ma H

istória Não C

ontada: Negro, Racism

o e Branqueamento

em São Paulo no Pós-A

bolição. Ed. Senac, 2005

pluralidade da capital. Desse m

odo, julga-se importante tam

bém olhar para

esses elementos que fazem

da cultura afro latente, o que significa a busca do reconhecim

ento de parte expressiva da história e da contribuição da po-pulação negra na cidade, bem

como com

preender o quanto e como suas

manifestações são representativas. Tem

-se um conjunto cultural im

portante m

arcando e enriquecendo a região central da maior cidade do país. A

Aca-

demia Paulista de Letras; Igreja N

ossa Senhora da Achiropita; Igreja N

ossa Senhora da Boa M

orte; Igreja Nossa Senhora do Rosário dos H

omens Pretos;

Igreja Santa Cruz dos Enforcados; Largo São Francisco são exem

plos dessas expressões.

“Um

a história de vida não é feita para ser arquivada ou guardada numa

gaveta como coisa, m

as existe para transformar a cidade onde ela flores-

ceu”. 21

Por fim, não se trata apenas de um

a região administrativa, m

as sim de um

lugar regado a experiências urbanas e form

ação de identidade. Diante disso,

considera-se de extrema im

portância para a comunidade e para a cidade, de-

monstrar a presença e as influências de um

a coletividade negra em espaços

de expressão deste grupo, sua ativa participação ao longo da história e seus reflexos no presente.

REFER

ÊNC

IAS B

IBLIO

GR

ÁFIC

AS

BOSI, Ecléa. O

Tempo V

ivo da Mem

ória: Ensaios de Psicologia Social. São Paulo: A

teliê Editorial, 2003 D

OM

ING

UES, Petrônio. U

ma H

istória Não C

ontada: Negro, Racism

o e Branqueam

ento em São Paulo no Pós-A

bolição. Ed. Senac, 2005. FERNA

N-

DES, Florestan. Brancos e negros em

São Paulo. Global Editora, 1955.

ROLN

IK, Raquel. A

cidade e a Lei: Legislação política urbana e território na cidade de São Paulo. São Paulo: Studio N

obel: Fapesp, 1997, 3º ed. RO

LNIK

, Raquel. Territórios Negros nas C

idades Brasileiras, in Revista de Estudos A

fro-Asiáticos, nº 17, Rio de Janeiro, 1989.

21 BOSI, Ecléa. O

Tempo V

ivo da Mem

ória: Ensaios de Psicologia Social. São Paulo: Ateliê

Editorial, 2003.

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9495

discriminação. O

direito à cidade para todos e todas é um

a condição subjetiva inserida em um

contexto social, econôm

ico e territorial de relações e interesses difu-sos, coletivos, conflitantes ou não, direito que reclam

a o reconhecim

ento da diversidade como protagonista na

conquista do bem com

um.

Segundo dados do governo federal 3, as mulheres

brasileiras são responsáveis pelo sustento de 37,3% das

famílias, possuem

expectativa de vida de 77 (setenta e sete) anos de idade, equivalendo a 51,4%

da população brasileira atual. Q

uando se indica um percentual de m

u-lheres responsáveis pelo sustento de suas fam

ílias, eclo-de m

ais uma questão, a da presença fem

inina no espaço urbano deslocando-se para o trabalho, para além

dos usos tradicionais.

A m

ulher é, no Brasil, em núm

eros, maioria. É a ci-

dadã que mais ocupa os espaços, produzindo ou não,

circulando, habitando, interferindo, voluntaria ou invo-luntariam

ente, por meio de sua presença na construção

e manutenção da sociedade brasileira. Entre os eleitores,

as mulheres tam

bém são m

aioria, com o Tribunal Supe-

rior Eleitoral, em 2014, registrando 77.459.424 eleitoras

em face de 68.247.598 eleitores do sexo m

asculino4. N

a perspectiva da dem

ocracia, pelo método quantitativo de

participação, a explicação para a ausência das mulhe-

res nos espaços políticos, partilhando do debate sobre a cidade e o que ela deve e pode ofertar, não se sustenta, fragilizando assim

a possibilidade de um futuro estável,

a presença da mulher era ignorada e, portanto, desconsi-

derada no tocante às escolhas sobre que forma e função

os espaços públicos teriam e com

o seriam acessados.

Sendo a cidade o espaço de convivência humana que

promete o desenvolvim

ento social e econômico, o aces-

so ao lazer, à habitação, serviços, trabalho e circulação livre, seria natural que todos os segm

entos sociais fizes-sem

parte da sua concepção, garantindo assim m

aior atendim

ento às demandas individuais e coletivas que se

apresentam. Infelizm

ente não é o que se apresenta, pois som

ente seria possível tal realização se os agrupamen-

tos humanos que se reúnem

nas cidades estivessem cal-

cados em bases solidárias de prom

oção da justiça social, com

igualdade de oportunidades para todos e todas. O

ra, se a luta para alcançar um patam

ar mais equilibra-

do de condições de vida2 – na cidade e no cam

po - tem

sido um dos grandes desafios brasileiros, o que requer

permitir a participação dem

ocrática na discussão sobre as intervenções e políticas públicas feitas em

e para tais sítios, que dirá garantir que, especialm

ente, a mulher te-

nha voz ativa e decisiva nesse processo de produção do espaço urbano.

Ao falar da presença da m

ulher no âmbito das deci-

sões sobre o uso e a ocupação que se deve dar à cidade, não se destaca tal im

perativo tão somente relacionado

à segurança e integridade física e psicológica feminina,

mas da im

portância de tal questão para o fortalecimen-

to do Estado democrático garantidor da igualdade sem

O dia 8 de m

arço representa uma im

portante data de reflexão para o debate internacional que envolve a m

ulher, seus direitos e seu papel no dia-a-dia da socie-dade urbana, m

arcada historicamente pelo em

podera-m

ento masculino.

As cidades e as m

ulheres no século XXI têm um

a relação sim

biótica que necessita ser reconhecida for-m

almente pela sociedade, pelo poder público e político,

pelo poder econômico. Para tanto, é preciso falar e es-

crever sobre as cidades e as mulheres, seja no Brasil ou

fora dele. zSendo a cidade a projeção da sociedade em

um de-

terminado espaço

1, analisar como a urbe dialoga com

a presença fem

inina é de fundamental im

portância tendo em

vista que o desempenho das inúm

eras funções, mãe,

companheira, profissional, em

diferentes áreas, solicita da cidade a m

obilidade e a acessibilidade, envolvendo o livre transitar da m

ulher, inclusive para o trabalho, a possibilidade de acessar serviços públicos e privados, lazer e cultura sem

cerceamento, m

uitas das vezes pro-vocado pelo receio à sua integridade física. Para que a cidade seja funcional à m

ulher é preciso que ela perceba a presença fem

inina, o que envolve permitir sua parti-

cipação nos espaços decisórios sobre o desenho, o uso e ocupação da cidade.

As cidades têm

uma significativa relação com

o uso e a ocupação que o m

undo masculino faz delas. Foram

idealizadas e erguidas dentro dessa perspectiva, em

que

Naná Prudencio, fotógrafa e produtora audiovisual, graduada em

A

rtes Visuais e A

udiovisual, pesquisadora do retrato cotidiano negro nas periferias das cidades de São Paulo, Em

bu das Artes e Taboão da

Serra. Naná, já foi dançarina de cultura afrobrasileira, articuladora

em O

NG

s e arte-educadora nas áreas de artes visuais, integrante do coletivo D

icampanaFotoC

oletivo e também

diretora fotógrafa e proprietária na produtora Zalika Produções.

12

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98

REALIZAÇÃO

APOIO