1a fase hegemônica do big bang

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1A Fase Hegemônica do Big Bang (1970-2000) Embora a ideia de que o Universo está em expansão fosse bem- aceita desde a observação feita por Edwin Hubble, no final da década de 1920, foi somente na segunda metade dos anos 1960 que ela passou a ser entendida como consequência natural de uma grande explosão que teria ocorrido há cerca de poucos bilhões de anos. Dois grandes acontecimentos concorreram para isso, um de natureza observacional e outro de natureza teórica, formal. Em 1964, dois radio astrônomos americanos, Arno Penzias e Robert Wilson, detectaram estranhos sinais bastante regulares que foram interpretados mais tarde como resquícios de uma fase extremamente quente do Universo. Isso foi resultado da observação de uma radiação eletromagnética que os físicos conhecem de suas experiências em laboratórios terrestres — e que não passam de grãos de energia da luz (de frequência de onda não visível), fótons em grande quantidade que se comportam como se estivessem em equilíbrio térmico.* Uma utilização simples da lei de conservação de energia permitiu concluir, a partir da observação, que a temperatura de equilíbrio desse gás de fótons foi maior no passado. Em verdade, entre sua temperatura e o fator de escala ou “raio do Universo” existe uma relação importante: elas são inversamente proporcionais. Isso significa que, quanto maior o volume do espaço, menor a temperatura, e vice-versa. Por outro lado, houve uma evolução formal, consubstanciada em alguns teoremas que, a partir de considerações gerais envolvendo a evolução de processos descritos pela interação gravitacional, levaram à interpretação de que uma singularidade inicial — imediatamente associada ao big bang — seria uma característica típica do Universo. Essas duas descobertas foram cruciais no sentido de criar condições para o estabelecimento e ascensão do modelo explosivo de Universo. Entre os físicos, o impacto desses resultados foi notável. Nas palavras de Steven Weinberg: “Aquilo que a descoberta, em 1965, da radiação cósmica de fundo de 3° Kelvin realizou de mais importante foi nos forçar a considerar seriamente a ideia de que houve efetivamente um começo do Universo.” Em verdade, não foi essa descoberta que induziu os físicos a pensar que teria havido um instante de “criação do Universo”. A verdadeira responsável por isso foi a ideologia que estava além das observações, e que os levou a concluir abruptamente que, se o Universo tivesse sido mais quente no passado, não deveria haver limite superior à sua temperatura. Consequentemente, ela

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1A Fase Hegemnica do Big Bang (1970-2000)Embora a ideia de que o Universo est em expanso fosse bem- aceita desde a observao feita por Edwin Hubble, no final da dcada de 1920, foi somente na segunda metade dos anos 1960 que ela passou a ser entendida como consequncia natural de uma grande exploso que teria ocorrido h cerca de poucos bilhes de anos. Dois grandes acontecimentos concorreram para isso, um de natureza observacional e outro de natureza terica, formal.Em 1964, dois radio astrnomos americanos, Arno Penzias e Robert Wilson, detectaram estranhos sinais bastante regulares que foram interpretados mais tarde como resqucios de uma fase extremamente quente do Universo. Isso foi resultado da observao de uma radiao eletromagntica que os fsicos conhecem de suas experincias em laboratrios terrestres e que no passam de gros de energia da luz (de frequncia de onda no visvel), ftons em grande quantidade que se comportam como se estivessem em equilbrio trmico.* Uma utilizao simples da lei de conservao de energia permitiu concluir, a partir da observao, que a temperatura de equilbrio desse gs de ftons foi maior no passado. Em verdade, entre sua temperatura e o fator de escala ou raio do Universo existe uma relao importante: elas so inversamente proporcionais. Isso significa que, quanto maior o volume do espao, menor a temperatura, e vice-versa.Por outro lado, houve uma evoluo formal, consubstanciada em alguns teoremas que, a partir de consideraes gerais envolvendo a evoluo de processos descritos pela interao gravitacional, levaram interpretao de que uma singularidade inicial imediatamente associada ao big bang seria uma caracterstica tpica do Universo.Essas duas descobertas foram cruciais no sentido de criar condies para o estabelecimento e ascenso do modelo explosivo de Universo. Entre os fsicos, o impacto desses resultados foi notvel. Nas palavras de Steven Weinberg: Aquilo que a descoberta, em 1965, da radiao csmica de fundo de 3 Kelvin realizou de mais importante foi nos forar a considerar seriamente a ideia de que houve efetivamente um comeo do Universo.Em verdade, no foi essa descoberta que induziu os fsicos a pensar que teria havido um instante de criao do Universo. A verdadeira responsvel por isso foi a ideologia que estava alm das observaes, e que os levou a concluir abruptamente que, se o Universo tivesse sido mais quente no passado, no deveria haver limite superior sua temperatura. Consequentemente, ela teria atingido o valor infinito em um tempo separado de ns por um valor finito uns poucos bilhes de anos. Teria havido uma grande exploso inicial dando origem a tudo que existe!Conquistar uma posio de destaque junto comunidade cientfica foi uma tarefa rdua para o modelo big bang. O livro j mencionado de Weinberg serviu e muito para isso. Afinal, uma afirmao to eloquente e peremptria quanto a que citamos, feita por um laureado com o Prmio Nobel, certamente tem grande repercusso entre os fsicos. No exagero afirmar que foram atitudes como a de Weinberg e seus seguidores que permitiram cosmologia penetrar em territrios da cincia dos quais ela era at ento excluda.Para citar dois exemplos, foi a partir de ento que tanto o Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (Cern) quanto o Laboratrio Fermi de Chicago (Fermilab) passaram a integrar a cosmologia entre suas atividades principais de investigao.* Nesse momento, a cosmologia comeou a ser considerada uma rea atraente de pesquisas. Mais importante que isso, havia uma razo de natureza extrnseca para que o cenrio explosivo fosse bem-visto pela comunidade de fsicos destes e de outros centros na Europa e nos Estados Unidos, tambm envolvidos no mesmo objetivo, intimamente relacionado crise das altas energias,** na dcada de 1970. Essa parte da fsica requeria e ainda requer, para seu desenvolvimento, a construo de enormes aceleradores extraordinariamente dispendiosos e cuja construo enfrentava obstculos polticos tanto na Europa quanto nos Estados Unidos.Ora, o cenrio descoberto pelo matemtico russo Alexander Friedmann, que descreve um Universo dinmico, em expanso, como um processo evolutivo, permitiu vislumbrar um territrio novo. Ele foi ento escolhido para substituir, no imaginrio dos fsicos, a ausncia de mquinas de acelerar partculas, impossveis de se construir por razes financeiras.As causas aceitas para essa substituio estavam associadas ao sucesso da cosmologia. Com efeito, o modelo-padro do Universo baseia-se na existncia de uma configurao que descreve seu contedo material como um fluido perfeito em equilbrio ter- modinmico, cuja temperatura T varia com o inverso do fator de escala; isto , quanto menor o volume espacial total do Universo, maior a temperatura.Assim, nos primrdios da atual fase de expanso, o Universo teria passado por temperaturas fantasticamente elevadas, excitando partculas, expondo o comportamento da matria em situaes de altssimas energias bastante semelhantes s que se encontram nos grandes aceleradores de partculas. E, o que era mais conveniente, quase de graa, sem novos custos bastava olhar para o cu. Este se tornou o estopim para que o modelo big bang fosse aceito como uma boa teoria por parte daqueles cientistas que trabalhavam com a fsica das altas energias e depois por toda a comunidade de fsicos.Embora se tenha feito certo esforo para que o big bang passasse a desfrutar de aceitao e, mais que isso, de consagrao como a boa descrio da dinmica do Universo, transpor isso para a sociedade foi bastante mais fcil, e no aconteceu por acaso. O sucesso da ideia fora do crculo cientfico, na sociedade em geral, se deve ao fato de que ela possui vrias caractersticas que foram e ainda so consideradas vantajosas para uma descrio da totalidade. A aceitao da existncia de um momento singular o instante de criao (identificado com a exploso) , por exemplo, est intima- mente relacionada ao imaginrio de vrias sociedades arcaicas.Esse modo de descrever a criao, os momentos iniciais do Universo, tem seu anlogo em diversas religies que identificam em suas cosmogonias o tempo mtico/mgico no qual os deuses se debruaram para alm de suas atividades usuais a fim de em- preender a criao do mundo. Na comunidade judaico-crist, em particular, a ideia de um comeo nico e singular pareceu a muitos incluindo o papa Pio XII* uma descrio cientfica da criao do Universo bastante aceitvel e at desejvel, posto que de fcil adaptao aos ensinamentos de livros religiosos fundamentais, como a Bblia.*Modelos alternativos sustentando a ideia de que o momento de condensao mxima no uma barreira intransponvel e pode ser analisado como resultado da existncia de uma fase anterior s passaram a ser considerados competitivos com o modelo big bang, por parte do establishment, na virada do sculo XXI. Os defensores desses cenrios argumentam que a extenso de durao do Universo no mensurvel, arrastando o que poderamos chamar de momento de criao para o infinito passado.Tanto o modelo big bang quanto os diferentes modelos de Universo eterno produzem dificuldades de compreenso que vo alm da simples questo tcnica. Nas ltimas dcadas, a sociedade parece ter se acostumado a retirar o peso formal do modelo big bang. Isso se deve sua popularizao, graas enorme publicidade que a mdia e alguns cientistas, em livros, jornais e revistas no cientficas, produziram nos ltimos anos. Como a alternativa principal o cenrio do Universo eterno no desfruta ainda dessa popularidade, algumas questes de princpio surgem e no so sublimadas pela mdia, deixando transparecer dificuldades atribudas a este modelo, mas que em verdade so genricas, inerentes a toda e qualquer cosmologia.

Comentrios

a)Energia necessria para a criao da matriaUma das grandes novidades trazidas pela mecnica quntica foi a descoberta de que cada partcula material possui sua simtrica, chamada antimatria. Assim, por exemplo, o eltron, que tem uma unidade elementar de carga eltrica, possui sua antipartcula, chamada antieltron ou psitron.O psitron tambm tem uma unidade elementar de carga eltrica, mas de sinal oposto. Assim, quando um eltron encontra um psitron, eles se aniquilam. A carga eltrica total, ou seja, a soma de cada carga individual, zero e deve permanecer zero depois da aniquilao. O que resulta desse processo? Nada mais que ftons, os gros elementares de luz.De modo anlogo, e inversamente, um fton pode se trans- formar em um par partcula/antipartcula. Se a energia desse fton for igual ou superior soma das energias necessrias para criar um eltron e um psitron, o fton pode gerar um par virtual eltron-psitron.Logo imediatamente a seguir, o par se aniquila pelo processo anterior e gera novamente o fton. O processo pode se repetir em um nmero extremamente grande de vezes. Iremos ver, no captulo referente instabilidade do vazio quntico, como esse processo pode estar na origem da formao do Universo. Diz-se que essa sucesso de criao/destruio de partculas virtual porque ela no produz efetivamente matria pois se trata de uma srie de processos de soma nula.Por outro lado, a gravitao o prprio colapso ou a expanso do Universo capaz de transformar aquela srie de virtualidades em um mecanismo de criao de matria real. possvel, assim, que a matria tenha origem no prprio processo de evoluo do Universo.Essa possibilidade cria uma incmoda e curiosa situao que pode ser resumida do seguinte modo: a matria que gera gravitao formada pelo processo dinmico gerado pela gravitao.

b)Einstein e o big bangH uma interveno, feita pelo criador da cosmologia moderna, que decidi apresentar aqui, pois nela Albert Einstein se posiciona frontalmente contra o big bang por razes que ficaram esquecidas e agora remontam cena. Diz ele em seu livro de 1948, intitulado O significado da relatividade:Em relao questo da singularidade inicial dos modelos cosmolgicos, eu gostaria de dizer o seguinte: a teoria atual da relatividade se baseia na diviso da realidade fsica em um campo mtrico (a gravitao), por um lado, e o campo eletromagntico e a matria, por outro. Na realidade, o espao provavelmente ter carter uniforme, e a teoria atual somente ser valida como um caso limite. Para grandes valores do campo e da densidade de matria, as equaes do campo e at as prprias variveis que intervm nestas equaes no possuem significado real. No possvel, assim, admitir a validade de tais equaes para densidades de campo e de matria muito elevadas. Consequentemente, no se pode concluir dessas equaes [da relatividade geral], ao serem aplicadas ao Universo, que o incio da expanso do Universo se identifique com uma singularidade no sentido matemtico. Tudo que deve- mos reconhecer que as equaes [da relatividade geral] no so aplicveis nessas regies.

2O tomo primordial ou o modelo cosmolgico do big bang

Para realizar o que prometemos antes, e para que nossa descrio no seja demasiadamente longa, vamos comear a anlise pelas grandes linhas de investigao que dominaram o cenrio da cosmologia a partir dos anos 1970.Isso significa que no irei descrever nem comentar alguns dos mais importantes modelos cosmolgicos simples que receberam os nomes de seus criadores, como os de Einstein (1917), De Sitter (1919), Kasner (1923) e Gdel (1949). A nica exceo ser o modelo de Friedmann (1919), por sua enorme atualidade. Isso no significa que os outros possam ser eliminados da anlise cosmolgica. Por exemplo, qualquer estudo consequente sobre a estrutura do tempo e a causalidade no pode ignorar as profundas questes formuladas por Gdel na apresentao de seu modelo cosmolgico. Simplesmente quero limitar o foco de nossa ateno, e para isso devemos restringir o alcance da anlise.*

Modelo cosmolgico-padroAo longo do sculo XX, os cientistas desenvolveram um cenrio- padro baseado na ideia de que o Universo um processo em evoluo e seu volume total aumenta com o passar do tempo. Tal modelo fornece uma descrio bastante boa de sua evoluo desde os tempos recentes at aproximadamente alguns bilhes de anos atrs, e ele foi aceito pela quase totalidade dos cosmlogos. Quanto ao que teria ocorrido quando o Universo estava no momento de mxima condensao, a unanimidade desaparece: o modelo big bang sustenta que o incio, ocorrido h poucos bilhes de anos, foi singular, explosivo; o modelo de Universo eterno advoga que esse incio pode ser prolongado por muito mais tempo. Ambas as des- cries esto baseadas em algumas poucas hipteses essenciais que devemos deixar claras. Vamos resumi-las de modo esquemtico:

1.Existe um tempo csmico global que permite dividir o espao-tempo quadridimensional em termos de uma estrutura identificada com um espao tridimensional (que chamamos simplesmente de espao) e uma dimenso temporal (ou tempo).2.A fora gravitacional, principal responsvel pelos efeitos globais no Universo, descrita pela relatividade geral. Nessa teoria, a gravitao determina a geometria do espao-tempo, e sua intensidade medida pela curvatura dessa geometria.3.A fonte dessa curvatura se identifica a um fluido perfeito, isto , seu contedo material descrito por uma distribuio contnua de energia/matria.4.Em grandes domnios do espao, alm de uma certa escala de distncia de valor bastante elevado, a estrutura do Universo espacialmente homognea e isotrpica. Isso significa que qualquer lugar do Universo possui propriedades iguais. Em particular, em qualquer direo que apontemos nossos telescpios, as mesmas caractersticas sero observadas.

Vamos comentar brevemente cada uma dessas quatro condies que so pr-requisitos de todo modelo cosmolgico, seja ele singular (como o big bang) ou eterno. O Universo, a totalidade do que existe, descrito como uma estrutura em quatro dimenses na qual se impe a separao do espao tridimensional e do tempo unidimensional. Essa diviso do mundo em termos quase newtonianos possvel quando se admite a hiptese de que em nenhum lugar existe um caminho, capaz de ser percorrido por um observador real homem ou mquina , que possa levar ao passado. Tal hiptese funciona como um eficiente instrumento de trabalho e simplifica muito a descrio dos fenmenos, sem acarretar uma restrio muito forte s possveis configuraes do Universo. Na verdade, somente o modelo cosmolgico de Gdel (ver adiante), dentre todos os conhecidos com algum destaque, no preenche esta condio.A segunda condio decorre do status de que a relatividade geral desfruta atualmente. Ela produziu uma descrio da fora gravitacional compatvel com todas as observaes realizadas. bem verdade que at hoje no foi possvel detectar, por observao direta, as ondas gravitacionais uma das previses que a teoria sugere.A terceira hiptese talvez seja um dos pontos mais fracos da lista. No temos evidncia a no ser indireta da totalidade da matria e energia existentes, e, por conseguinte, do modo pelo qual elas podem ser descritas. A ideia de um fluido perfeito, resqucio da era em que a cosmologia carecia de observaes consistentes, constitui uma configurao bastante simples e que pode servir como uma primeira aproximao do verdadeiro contedo material-energtico relevante para a disciplina.Quanto ao quarto item, ele se sustenta a partir da generalizao das observaes locais para todo o Universo, o que consiste em uma aplicao do princpio estendido de Coprnico, segundo o qual no ocupamos lugar especial no Universo. Isso significa que, se observarmos em nossa vizinhana homogeneidade espacial e isotropia, ento essa caracterstica deve ser estendida para todos os demais pontos do Universo.

A questo fundamental da cosmologia

Para completar essa introduo, devemos notar que, ao longo do sculo XX, a cosmologia passou por trs momentos cruciais, que podem ser simbolizados de um modo simples, como se fossem formados pelas respostas dadas a trs questes fundamentais:

1.O Universo esttico ou dinmico?2.A evoluo do Universo estacionria ou varia no uniforme- mente com o tempo?3.Houve um comeo em um tempo finito de nosso passado, ou o Universo eterno?

A primeira questo dominou o cenrio da cosmologia desde o incio da segunda dcada do sculo XX at o final dos anos 1930; a segunda questo passou a ser predominante at a metade dos anos 1960; e, desde ento, vivemos em plena era da terceira das questes principais.O sculo passado nos legou uma histria fascinante sobre a viso que os cientistas produziram e que constituiu um desenvolvi- mento notvel no conhecimento dos aspectos globais da natureza, modificando em profundidade a imagem que a cincia possua do Universo. Passou-se de uma situao em que a totalidade do que existe era identificada com uma configurao imvel, esttica, congelada, para a viso atual, na qual o Universo entendido como um processo evolutivo a que se pode atribuir uma histria No primeiro movimento de construo da cosmologia relati- vista, parecia natural para Einstein aceitar a priori, sem embasa- mento observacional que o Universo no uma estrutura dinmica. Assim, ele criou em 1917 o primeiro modelo cosmolgico, descrito globalmente por uma geometria esttica, independente do tempo. Sem ter sua disposio os meios necessrios para confrontar seus argumentos a priori sobre o Universo com a observao, Einstein chegou a essa geometria, soluo de suas equaes da gravitao, graas a uma argumentao formal, guiada somente pelo preconceito de uma ideologia. A partir da hiptese de ausncia de dependncia temporal na geometria que descreveria o Universo considerado em sua totalidade, sem a possibilidade de confrontar seus argumentos com a observao, Einstein produziu o primeiro modelo cosmolgico do sculo XX.A fora dessa ideologia era to grande que, para poder levar adiante seu projeto de instituir uma cosmologia a partir de suas equaes da relatividade geral, Einstein foi obrigado a modificar sua ento recm-criada teoria da gravitao. Introduziu uma constante universal que possui uma caracterstica etrea, resqucio dos absolutismos csmicos da cincia newtoniana. Foi essa a nica estrutura material que sua imaginao produziu para constituir a fonte dessa geometria inerte e imutvel.Mas aquilo que parece bvio ou natural para uma pessoa ou grupo de pessoas em uma dada poca pode parecer totalmente desqualificado, intil ou desprovido de interesse em outro perodo, em outro contexto. Isso ocorre mesmo quando se trata de uma observao, pois o substrato terico no qual uma observao ganha significado e se insere no corpo formal de conhecimentos aceitos como verdadeiros tambm se submete a essa regra. Com a cosmologia no poderia ser diferente, como logo ficou evidente. A dcada de 1920 foi o perodo principal em que se estabeleceram as bases para o que viria a ser o cenrio-padro da cosmologia, graas principalmente ao trabalho seminal de um cientista russo.

3 O primeiro cosmlogo da evoluo: Alexander FriedmannDificilmente iremos encontrar, na histria da cosmologia moderna, personagem to importante quanto o matemtico e fsico russo Alexander Friedmann (1888-1925). Nos ltimos anos, graas a uma ao internacional liderada principalmente por cientistas originrios de sua cidade natal, So Petersburgo, um congresso internacional que leva seu nome lhe dedicado a cada dois anos.* Alguns comentrios sobre sua descoberta so importantes para situar e evidenciar o impacto de seu trabalho na evoluo da cosmologia desde as primeiras dcadas do sculo passado.No final dos anos 1920, Friedmann submeteu publicao na revista alem Zeitschrift fur Physik uma anlise da questo cosmolgica distinta daquela contida na soluo original proposta pelo fundador da cosmologia moderna. A principal novidade consistia em tratar a questo como um processo dinmico, no qual, contrariamente ao modelo de Einstein, exibia-se uma evoluo do Universo, uma dependncia temporal de suas propriedades mais fundamentais e, em particular, de sua geometria. No entanto, o apriorismo de um Universo esttico a famosa hiptese introduzida por Einstein em seu primeiro modelo cosmolgico mostrou-se to fortemente reacionrio que conseguiu evitar, por mais de um ano, a publicao do trabalho de Friedmann.H uma curiosidade relativa publicao desse artigo seminal da cosmologia moderna que vale um desvio de sua descri- o para nos determos numa questo colateral, pois talvez ela seja til para o leitor conhecer os mecanismos pelos quais uma produo cientfica chega a alcanar a notoriedade. Ns no pene- traremos os bastidores dos modos pelos quais a cincia como atividade social se organiza, se estrutura e adquire uma prtica de ao. Mas faremos um comentrio que permitir ao leitor que tem pouco acesso aos mecanismos de produo e articulao de trabalhos cientficos ter conhecimento dos obstculos que esses trabalhos so obrigados a ultrapassar para conquistar o lugar de destaque que alguns realmente merecem.

O sistema de arbitragemAs revistas cientficas nas quais so publicados os trabalhos originais desenvolvidos nos institutos de pesquisas, laboratrios ou universidades possuem uma caracterstica singular que talvez no seja do conhecimento do leitor no cientista. Ao submeter um artigo que contenha pesquisas originais, capazes de fazer avanar o conhecimento, todo pesquisador sabe que deve obedecer a uma sequncia de procedimentos tpicos convencionais. Dentre eles, o mais singular e especfico consiste no fato de que o editor da revista ir encaminhar o trabalho para um ou mais cientistas que serviro como seus juzes ou rbitros. Tais cientistas que permanecem no anonimato e, o mais das vezes, sem remunerao para exercer essa atividade sero praticamente os responsveis no somente por analisar a qualidade do artigo como tambm por avaliar se ele no se desvia demasiado da linha editorial do peridico. Dito de modo mais simples, so eles que tero maior peso para decidir se o artigo submetido preenche ou no as condies de aceitabilidade que a revista se impe.Esse sistema possui inmeras dificuldades e certamente pode funcionar muitas vezes como fator de manuteno das ideias e conceitos aceitos pela maioria. Mas assim que a totalidade das revistas cientficas funciona. Creio que no difcil imaginar que este sistema eventualmente permite que se pratiquem enormes injustias. Einstein: rbitro, ou do outro lado da produo cientfica.

Einstein: rbitro, ou do outro lado da produo cientficaQuando Friedmann submeteu seu trabalho revista alem Zeitschrift fur Physik, a principal questo, para os editores, se relacionava dificuldade de encontrar um cientista capaz de entender e avaliar a relevncia de seu artigo. Quem escolher para dar um parecer sobre tema to pouco comum entre os fsicos de ento? Quem poderia servir de consultor para um artigo sobre cosmologia numa poca em que o nmero de cientistas interessados na questo se contava nos dedos de uma mo? Quem deveria ser chamado a dar um parecer sobre o artigo de Friedmann que no o prprio Einstein?Aceitando servir como consultor da revista para onde Friedmann enviara seu trabalho intitulado Sobre a curvatura do espao, em um primeiro momento Einstein rejeitou o artigo como se ele fosse destitudo de interesse. Depois de resistir por mais de um ano a uma forte presso de cientistas em especial de fsicos de So Petersburgo que haviam reconhecido no trabalho uma nova viso da cosmologia no interior da teoria da relatividade geral, Einstein aceitou por fim que ele fosse publicado.Insatisfeito com sua mudana de deciso, contudo, ele re- digiu uma nota intitulada Nota acerca do trabalho Sobre a curvatura do espao de A. Friedmann , tambm publicada na revista Zeitschrift fur Physik, em que apontava um erro de clculo no artigo de Friedmann. Literalmente, Einstein dizia naquela pequena nota que o resultado obtido por Friedmann de um Universo cujas propriedades geomtricas dependiam do tempo lhe parecia suspeito (no original, verdarchtig). Finalmente, em momento posterior mas sem mostrar entusiasmo algum pela nova viso cosmolgica , admitiu que o artigo estava correto, e que o erro era seu.O que havia no artigo para induzir um dos grandes cientistas do sculo XX a assumir to infeliz atitude e impedi-lo de aceitar a maravilhosa novidade que Friedmann trazia para o territrio da fsica, a saber, a dinmica do Universo? A reao parece ainda mais chocante quando, ao analisarmos o suposto erro que Einstein atribuiu ao artigo de Friedmann, v-se de imediato que Einstein estava errado. A deciso dessa disputa contra o criador da rela- tividade geral to simples de ser concluda que somos levados a procurar explicao em alguma forma de razo no cientfica. Talvez um mero preconceito, ou a arrogncia, tenha impedido Einstein de reconhecer de imediato a justeza dos clculos de Friedmann.Mas, afinal, de que tratava o artigo? O que poderia ele trazer de to contrrio sua viso de mundo para Einstein lhe devotar tamanha averso? No texto de Friedmann, apresentava-se pela primeira vez uma nova soluo das equaes originais da teoria da relatividade geral. Nela, contrariamente viso esttica do modelo de Einstein, o autor demonstrava a possibilidade de se construir uma cosmologia dinmica, com uma evoluo ideia nova, seminal, cheia de potencialidades na gestao de uma viso aberta do Universo e que ainda hoje domina o cenrio da cosmologia.As caractersticas que esse modelo atribui ao Universo so bastante simples e compem-se de uma srie de simetrias que permitem resolver as intricadas equaes da teoria da relatividade geral contidas nas seguintes hipteses simplificadoras:

1.A curvatura do espao-tempo a medida da intensidade do campo gravitacional, de acordo com a relatividade geral.2.O principal responsvel pela curvatura pode ser descrito como um fluido contnuo de densidade de energia E e presso P.3.Entre E e P existe uma relao simples que se escreve P = s E, onde s uma constante a ser especificada pelo modelo e que s pode assumir valores positivos menores que 1.4.Tanto E quanto P dependem somente do tempo global, isto , o espao tridimensional homogneo: suas propriedades so as mesmas em qualquer ponto.5.O Universo possui uma singularidade inicial em que o volume total do espao zero, e a densidade de energia infinita.6.Embora a fora gravitacional seja somente atrativa, suas partes esto se afastando uniformemente umas das outras. Isso vale para todas as galxias. Assim, cada galxia v todas as demais se afastarem dela.

Esse modelo terico, cujas hipteses, poca, no eram sustentadas por qualquer observao efetiva, resultou num bom cenrio, capaz de descrever as propriedades observadas do Univer- so em grande escala. As observaes de afastamento das galxias feitas por Hubble, em 1929, e a deteco de uma radiao cs- mica de fundo por Penzias e Wilson vieram tornar a geometria que Friedmann descobrira formalmente o cenrio-padro da cosmologia nas ltimas dcadas do sculo XX.

Comentrios

a)Teoria da gravitaoEm 1915, o fsico alemo Albert Einstein produziu uma pequena revoluo conceitual na estrutura da geometria do espao e do tempo, alterando profundamente a teoria da gravitao proposta trs sculos antes por Isaac Newton e, desse modo, retirando da Inglaterra a honra de ter sido o bero do cientista que havia des- vendado o segredo da interao gravitacional. At chegar a esse ponto, a histria bem longa, e minha inteno trat-la apenas como uma pequena introduo para tornar mais clara a questo que estamos analisando aqui.No final da Idade Mdia, graas ao longo trabalho desenvol- vido por grande nmero de astrnomos como Tycho Brahe e Johan Kepler , j se conseguira acumular um nmero sufi- ciente de informaes sobre o mundo supralunar, permitindo o aparecimento de uma fantstica especulao a respeito da existncia de uma fora universal capaz de atuar sobre qualquer forma de matria. Apoiando-se em observaes locais, feitas em nossa vizinhana terrestre, acreditando na hiptese reducionista da unidade do mundo e apossando-se da simplificao formal como instrumento poderoso na elaborao da realidade, no final do sculo XVI os astrnomos estavam preparados para lanar a hiptese da existncia da lei de gravitao universal. Foi o que Isaac Newton fez ao caracterizar a atrao gravitacional como uma fora que se espalharia instantaneamente por todo o espao e seria tanto mais intensa quanto mais prxima do corpo material que a originara.A lei universal da gravitao proposta no sculo XVI permitiu unificar todos os processos de atrao de qualquer corpo material. Assim, toda forma de matria, seja na Terra (como no famoso exem- plo da ma), seja em corpos celestes (como planetas e estrelas),obedece a um nico tipo de fora, a gravitao universal. O efeito dessa fora por exemplo, a atrao exercida por uma estrela como o Sol seria sentido em todo o espao, sendo que sua intensidade diminuiria com o inverso do quadrado da distncia.Essa primeira formalizao da lei universal da gravitao foi certamente um imenso passo na descrio dos fenmenos astronmicos, permitindo melhor classificar e compreender os movimentos de corpos materiais em nossa vizinhana, obtendo enorme sucesso ao exibir as causas de diversas regularidades no cu, e em particular o movimento dos planetas girando ao redor do Sol.Durante quase 300 anos, os fenmenos que os astrnomos observavam nos cus foram bem-descritos por essa lei. No havia qualquer necessidade observacional capaz de diminuir a certeza de sua validade por parte dos astrnomos. Entretanto, razes de natureza terica, advindas de profundas alteraes ocorridas na fsica, nos ltimos anos do sculo XIX e no comeo do XX, pro- duziram um modo novo de descrever a realidade que resultou incompatvel com a formulao newtoniana.A descrio newtoniana ainda poderia ser usada como uma expresso aproximada dos fenmenos gravitacionais para explicar, de modo simples, por que, por exemplo, se eu soltar de minha mo esta caneta com que estou escrevendo este texto, ela cair. Entendemos que isso ocorre graas fora que a Terra exerce sobre a caneta. Entretanto, tal explicao simples deve ser abandonada quando se trata de descrever processos na presena de campos gravitacionais muito intensos.Antes de entrarmos nessa anlise, devemos explicitar uma caracterstica da teoria newtoniana, pois embora no provocasse qualquer dificuldade formal para sua aceitao, ela estava na ori- gem da crtica maior que surgiu quando, na segunda dcada do sculo XX, Einstein produziu uma nova teoria da gravitao. Qual era essa propriedade que passou invisvel aos olhos dos antigos?A descoberta da existncia da atrao universal, que permitiu a compreenso de propriedades regulares observadas no movimento de planetas vizinhos, trazia embutida a ausncia do tempo. A lei newtoniana tratava do movimento e, consequentemente, da passagem do tempo; e, no entanto, ela no apresenta nenhuma referncia ao tempo. Isto , a ao de um corpo sobre outro, essa interao universal que permitia compreender as leis locais de movimento dos planetas, era ela mesma instantnea: no exigia um passar do tempo para exercer sua ao; no precisava de tempo para que sua influncia se fizesse sentir; ela se propagava como se possusse uma velocidade infinita; ou, para ser mais exato, no se propagava.Essa propriedade aparece hoje, aos olhos modernos dos cientistas, como totalmente inadmissvel, pois mesmo os ftons os gros de luz que se movimentam com a maior velocidade possvel exigem tempo para ir de um lugar a outro. Um raio de luz leva alguns minutos para sair do Sol e chegar Terra. E, quanto mais longe, maior seu tempo de percurso. Sabemos mesmo que, como as estrelas possuem um processo evolutivo, tendo um tempo de existncia finito, podemos estar vendo no cu uma estrela que j no existe mais. Sua distncia pode ser to grande que, quando enxergamos a luz por ela emitida, e que demorou tanto tempo para atravessar os espaos siderais, a estrela talvez no exista mais, tendo explodido e dado origem a poeira estelar o que s poder ser observado da Terra em futuro longnquo.No entanto, nos sculos que se seguiram a essa descoberta newtoniana e at o incio do sculo XX, a condio instantnea da ao gravitacional era entendida como uma propriedade na- tural, igual s suas outras caractersticas. O fato de no ser observvel no produzia desconforto de princpio para os cientistas. Em verdade, sequer era possvel formular a questo: o tempo no aparecia como um ingrediente importante no modo newtoniano de descrever a ao gravitacional. Somente sua ao sobre um corpo estava associada a uma variao temporal. O tempo aparecia como uma varivel importante quando se acompanhava o movimento de um corpo sob a fora gravitacional, mas no era mencionado entre as caractersticas dessa fora.Foi somente no final do sculo XIX e incio do sculo XX que a instantaneidade da fora gravitacional comeou a ser entendida como um verdadeiro problema, uma dificuldade associada ao modo newtoniano de descrever esse campo de fora.* Para entendermos essa mudana de atitude, devemos nos referir revoluo feita na fsica, no comeo do sculo XX, por diversos cientistas, dentre os quais podemos citar Henri Poincar, Hendrik Anton Lorentz e Albert Einstein, entre outros. Essa mudana foi sintetizada por Einstein no que chamou de teoria da relatividade especial.**

b)Teoria da relatividade especialDe um modo geral, exceto em uns poucos momentos singulares excepcionais, a atividade cientfica um trabalho coletivo. E no somente nos caminhos pelos quais, a partir de observaes de fenmenos na natureza, se estrutura uma mudana no modo de descrever a realidade, mas no prprio incio da anlise crtica de uma dada descrio formal, capaz de gerar uma mudana de paradigma. O caso da relatividade especial no fugiu a essa regra.No final do sculo XIX, os fsicos haviam conseguido organizar uma descrio da realidade sustentada em dois grandes esquemas conceituais, dois pilares sobre os quais praticamente toda a fsica se erguia: a mecnica e o eletromagnetismo. A mecnica permitia descrever movimentos dos corpos materiais gerados por quaisquer tipos de fora. Alm das foras de contato entre os corpos, o eletromagnetismo constitua, com a gravitao, as duas nicas foras de longo alcance conhecidas.*Havia, entretanto, uma grande diferena na explicao envolvendo o modo pelo qual essas foras poderiam exercer suas aes sobre os diferentes corpos. A gravitao era pensada, desde Newton, como uma fora instantnea, isto , exibindo sua presena nas regies mais longnquas, nos domnios interminveis do Universo, como se possusse uma velocidade infinita para sua ao. A fora eletromagntica parecia totalmente distinta.Michael Faraday e seus contemporneos elaboraram a fantstica noo de campos de fora, que iria constituir o paradigma moderno de toda forma de interao entre dois corpos quaisquer. Esse modo novo, chamado de campo proposto na descrio das foras eletromagnticas, supe a existncia de uma ao contgua no espao e no tempo de tal modo que um movimento contnuo exercido por um agente do campo se propaga a partir de uma fonte geradora de uma fora eletromagntica.Contrariamente gravitacional, a fora eletromagntica no exercida sobre e por qualquer corpo. Para interagir dessa forma, um corpo material deve possuir uma qualidade especial, particular, intrnseca, que se chamou carga eltrica. Esta carga desempenharia um papel anlogo, na fora eletromagntica, quele assumido pela massa, na fora newtoniana gravitacional. Por que alguns corpos possuem carga eltrica e outros no,os fsicos no sabem. Trata-se de uma constatao, da observao continuada e jamais violada de que, para exercer uma fora ele- tromagntica, um corpo deve possuir essa qualidade especial, a carga eltrica. O valor dessa carga vai determinar a intensidade do campo por ela gerada. Quanto maior a carga, maior a intensidade de campo, mais forte a ao eletromagntica. Tudo se passa como se cada corpo carregado produzisse em sua volta um estado de tenso ou campo de foras apto a exercer sua influncia sobre corpos carregados que seria tanto maior quanto mais prximo da carga. Curiosamente, a intensidade do campo eletromagn- tico varia inversamente com a distncia, de modo semelhante interao gravitacional.No final do sculo XIX, ficou claro que um corpo carregado cria em sua volta um estado de tenso que se propaga com velo- cidade finita. Essa velocidade associada ao processo de interao constitua a principal diferena entre o eletromagnetismo e a gravitao. Essas duas vises do mecanismo pelo qual ocorre uma interao so irreconciliveis, e a necessidade de escolher entre um ou outro modo passou a ser o grande problema a ser resolvido.A observao permitiu decidir entre essas duas formulaes formais quando se descobriu que se deveria aceitar a velocidade da luz (no vcuo) como absoluta e mxima para qualquer forma de propagao. A partir desse momento, no era mais possvel considerar que a formulao newtoniana representava a fora gravitacional e sua velocidade de propagao infinita.Alguns anos antes de construir uma nova teoria da gravitao, Einstein realizou um trabalho formidvel de sntese no que chamou de teoria da relatividade especial, envolvendo algumas questes que, no final do sculo XIX, haviam colocado em contradio a mecnica e o eletromagnetismo. Em sua teoria, publicou a frmula que lhe angariou enorme fama, ao afirmar que, embora energia e matria pudessem ter configuraes distintas e mltiplas, elas poderiam ser entendidas de modo unificado. A frmula E = Mc2 permite quantificar a energia mxima possvel de se obter a partir de um corpo material de massa M.*A identificao entre matria e energia permitiu estender a lei de Newton no somente a corpos materiais (uma ma, um planeta), mas tambm a energias (como, por exemplo, a radiao eletromagntica constituda por ftons, os gros elementares da luz). A observao do eclipse solar em Sobral, no Cear, em 29 de maio de 1919, permitiu comprovar que a luz tambm sofre atrao gravitacional. Quando a luz passa na vizinhana de um corpo massivo, como o Sol, por exemplo, ela desviada de sua trajetria. Esse passo, que conduziu mxima generalizao estabelecendo a universalizao da interao gravitacional, permitiu a Einstein pensar a fora gravitacional como nada mais que modificaes produzidas na geometria do espao-tempo quadridimensional com o qual descrevemos a localizao e os movimentos dos corpos.

c)Teoria da relatividade geral (gravitao)O carter universal da fora gravitacional propiciou, no sculo XX, a primeira grande modificao da teoria de Newton, produzida pelo fsico alemo Albert Einstein. Com efeito, podemos constatar que todo corpo atrado por outro corpo qualquer independentemen- te de suas constituies qumicas. No h forma de matria e/ou energia imune ao dessa fora. Tudo que existe sofre a interao gravitacional. Talvez o modo mais contundente de nos referirmos a esse carter universal da gravitao esteja contida na afirmaoCaio, logo existo!.**Isso significa que no h qualquer corpo material ou forma de energia que esteja isenta de interao gravitacional. Toda matria, todo corpo, toda partcula, elementar ou no, toda forma de energia possuem interao gravitacional. Essa propriedade nica, pois a outra fora de longo alcance conhecida a fora eletromagntica no a possui. Com efeito, existem corpos materiais compostos ou elementares como a partcula chamada neutrino que podem passar inclumes por uma regio onde exista um campo eletromagntico sem que sejam de alguma forma influenciados por ele: esses corpos no possuem interao eletromagntica!Foi precisamente o carter universal da fora gravitacional que permitiu pens-la como uma fora completamente distinta de todas as outras conhecidas pelos fsicos. Posto que tudo que existe sente a ao de um campo de fora gravitacional, no se- ria possvel perguntou-se Einstein substituir sua descrio por algum tipo de fenmeno associado natureza do substrato nico que permeia toda a matria e energia, que est em contato ntimo com toda matria e energia existentes, ou seja, o contnuo espao-tempo?Nesse momento Einstein introduziu outro conceito, argumentando que a fora gravitacional poderia ser identificada estrutura da geometria do espao-tempo. Ato seguinte, foi levado a modificar a teoria ento vigente, argumentando que a dinmica newtoniana somente uma teoria aproximada, capaz de descrever campos fracos. A nova dinmica requeria uma relao entre a geometria e o contedo material/energtico existente na regio onde se passa a interao gravitacional.A teoria da relatividade especial, de 1905, foi o ponto culminante de uma longa aventura do pensamento, unificando a descrio da fsica, ao fundir o espao tridimensional ao tempo e formar uma nova unidade chamada estrutura espao-tempo. A geometria desse espao-tempo consiste em uma configurao rgida, imvel, capaz de servir de arena ou pano de fundo para todos os processos fsicos.Na teoria da relatividade geral, em 1915, Einstein deu um enorme passo ao sugerir que a fora gravitacional poderia ser descrita como uma modificao efetiva da geometria do espao- tempo. As equaes dessa teoria relacionam o modo pelo qual dada distribuio de matria ou energia de qualquer forma de- termina a geometria do espao-tempo.

d)Dependncia csmica das leis fsicasExiste uma questo subjacente a toda cincia que pretende estender o domnio de sua aplicao ao Universo. Em geral ela deixada de lado por constituir uma questo de princpio, mas devemos ao menos informar o leitor de sua existncia. Trata-se da extrapola- o das leis fsicas que conduziu ao que se costuma chamar de a questo copernicana.Traduzida para a cosmologia relativista, ela adquiriu uma formulao estabelecida de modo simples pelo fsico ingls sir Paul Dirac: as leis fsicas so universais, vlidas em qualquer lugar do Universo? Devemos considerar verdade absoluta a hiptese de que as leis fsicas so independentes do espao e do tempo? As diferentes formas de matria e energia comportam-se de acordo com as mesmas leis em qualquer lugar do Universo?Sabemos que esse comportamento depende no somente das caractersticas da matria em exame, mas tambm de sua circunstncia que, simplificadamente, identificaremos aqui com sua vizinhana no espao-tempo , daquilo que est em contato com ela. Essa dependncia, no entanto, pode ser incorporada s leis fsicas que garantem o modo como se modifica a interao entre um dado tipo de matria e o meio no qual ela se encontra. Mas no estamos tratando dessa alterao, que bem conhecida dos cientistas desde longa data e pode ser, de um modo ou de outro, incorporada s leis. Tratamos aqui de outra caracterstica, de difcil acesso observacional: a extrapolao das leis fsicas para regies de caractersticas bastante distintas das que esto sob nosso controle observacional. Desse modo, as prprias leis da fsica poderiam depender do espao e do tempo.H uma linha de investigao que pretende encontrar indcios dessa variao na observao de algumas propriedades especiais do Universo. No trataremos de tais propostas neste livro, pois isso nos obrigaria a examinar o que chamei de metacosmologia.*

4Uma pergunta malformuladaDepois da descrio do modelo cosmolgico de Friedmann, que nos permitiu explicar o significado rigoroso do que se costuma chamar big bang, podemos retomar a questo que nos formulamos no incio e repetimos aqui: pode a cincia produzir racionalidade se o Universo for singular? Pode-se construir uma histria causal do Universo se o big bang for identificado com o comeo de tudo? possvel desenvolver uma cincia do Universo se a hiptese de que houve um comeo singular nico para tudo que existe for verdadeira?Estes so os problemas que deveriam estar em foco, no centro de todas as atenes, mas que infelizmente foram deixados de lado. A resposta negativa a todas essas perguntas permite entender por que, no modelo de criao big bang, no possvel desenvolver racionalmente uma cincia completa do Universo. Isso se deve ao fato de que o modelo do tomo primordial exige a identificao de um ponto singular com o momento de criao do Universo: o volume total do espao tridimensional seria, naquele momento, naquele ponto, estritamente zero.Por conseguinte, quantidades fsicas, como densidade total de energia e matria, deixariam de ser observveis, pois assumiriam rigorosamente o valor infinito que no faz parte do resultado de medida alguma que se possa em princpio realizar. Desse modo, no poderamos jamais ter acesso a informao alguma sobre o que estaria na origem daquele momento, nem s suas propriedades internas nem reconhec-las como tais. O Universo teria uma origem que no poderia ser descrita racionalmente. Assim, o programa de descrio racional do mundo encontraria uma barreira intransponvel.Seria desejvel e mesmo mais, indispensvel empreender uma anlise detalhada das razes que levaram grande parte dos cientistas a limitar suas anlises do Universo ao interior de tal fronteira conceitual completamente fechada. No minha inteno, contudo, me ocupar aqui dessa questo.O Departamento de Astrofsica de Oxford vivia uma intensa atividade nos anos 1970, graas principalmente aos esforos e organizao do professor Dennis Sciama. Ele havia adquirido posio de destaque no cenrio internacional por seus estudos sobre a teoria da gravitao, em particular pelas anlises afeitas no interior da relatividade geral, examinando diversos fenmenos tratados pela astrofsica.Entretanto, sua fama maior seria outorgada pela excelncia de seus alunos e colaboradores, um grupo seleto formado por cientistas extremamente competentes e inovadores que revolucionaram o estudo da astronomia no Ocidente, desenvolvendo enormemente a cosmologia e a astrofsica relativista. A lista deles, embora pequena, sem dvida notvel. A maior parte desconhecida do grande pblico, exceto por alguns poucos que, por diferentes razes, ganharam notoriedade internacional para alm do crculo de cientistas, como o matemtico Roger Penrose, o astrofsico Wolfgang Rindler e o fsico Stephen Hawking.Numa noite de janeiro de 1972 fui convidado pelo professor Dennis Sciama ento meu orientador para uma reunio no All Souls College. Essas reunies ocorriam sem periodicidade e uma origem que no poderia ser descrita racionalmente. Assim, o programa de descrio racional do mundo encontraria uma barreira intransponvel.Seria desejvel e mesmo mais, indispensvel empreender uma anlise detalhada das razes que levaram grande parte dos cientistas a limitar suas anlises do Universo ao interior de tal fronteira conceitual completamente fechada. No minha inteno, contudo, me ocupar aqui dessa questo.

Transformando a questo fundamental da cosmologia em uma questo axiomticaO Departamento de Astrofsica de Oxford vivia uma intensa atividade nos anos 1970, graas principalmente aos esforos e organizao do professor Dennis Sciama. Ele havia adquirido posio de destaque no cenrio internacional por seus estudos sobre a teoria da gravitao, em particular pelas anlises afeitas no interior da relatividade geral, examinando diversos fenmenos tratados pela astrofsica.Entretanto, sua fama maior seria outorgada pela excelncia de seus alunos e colaboradores, um grupo seleto formado por cientistas extremamente competentes e inovadores que revolu- cionaram o estudo da astronomia no Ocidente, desenvolvendo enormemente a cosmologia e a astrofsica relativista. A lista deles, embora pequena, sem dvida notvel. A maior parte desconhecida do grande pblico, exceto por alguns poucos que, por diferentes razes, ganharam notoriedade internacional para alm do crculo de cientistas, como o matemtico Roger Penrose, o astrofsico Wolfgang Rindler e o fsico Stephen Hawking.Numa noite de janeiro de 1972 fui convidado pelo professor Dennis Sciama ento meu orientador para uma reunio no All Souls College. Essas reunies ocorriam sem periodicidade e em geral dependiam de alguns detalhes referentes ao seminrio a que assistamos todas as quintas-feiras. Naquele dia, o seminrio fora dado por Roger Penrose, e como nesse perodo ele morava fora de Oxford, havia decidido passar a noite no clube a que os professores tinham acesso no College.A reunio na verdade, nada mais que uma pequena e bastante frugal ceia, em que se servia um vinho quente de qualidade duvidosa tinha a funo explcita de propiciar a continuao dos debates gerados pelo seminrio. Todos ali pareciam concordar com a argumentao bastante elegante, concisa e matematica- mente bem-estruturada com a qual Roger sintetizara resultados a que cientistas deste grupo e de outros haviam chegado. A tnica, em particular, fora posta sobre os teoremas que matemticos, como Penrose e Geroch, e fsicos, como Hawking e Ellis, haviam demonstrado nos ltimos anos. Dennis argumentava, em tom de sntese, que os trabalhos do grupo haviam promovido duas grandes conquistas.Por um lado, haviam posto por terra a argumentao do grupo de fsicos associado ao mais brilhante cientista da Unio Sovitica Lev Landau , liderados pelo seu mais antigo e ntimo colaborador, Evgeni Lifshitz. Este afirmara ter mostrado que a soluo mais geral das equaes que descrevem a gravitao (isto , a teoria da relatividade geral), e que representaria uma situao genrica, no poderia assumir valor infinito, ou seja, no deveria apresentar forma alguma de singularidade do campo gravitacional.Se a afirmao de Lifshitz fosse verdadeira, a soluo mais geral das equaes da teoria da relatividade geral deveria ser regular, bem-comportada, isto , no deveria conter regies onde o campo gravitacional pudesse assumir valores maiores que qual- quer nmero real. Como a intensidade do campo gravitacional, nessa teoria, identificada curvatura do espao-tempo, isso significava que a curvatura deveria ser limitada, seu valor no poderia jamais ser infinito.Por conseguinte, o famoso ponto de singularidade, ou big bang, identificado com o valor zero do volume total do espao tridimensional que permitia associar ao Universo um momento nico de criao, no seria mais que uma particularidade dependente das simetrias, que, por circunstncia especial, o Universo poderia ter adquirido. No seria consequncia de uma necessidade formal inerente s equaes que descrevem o campo gravitacional. Seria uma curiosa possibilidade, no uma caracterstica genrica que deveria exibir qualquer Universo em que valessem as equaes da relatividade geral. O Universo poderia ter tido uma evoluo completamente distinta: suas propriedades seriam casuais, no seriam obrigatrias. O Universo o que por puro acaso, no por uma obrigatoriedade formal.Em ostensiva oposio a essa afirmao, segundo os teoremas de Penrose e outros, o ponto singular de criao no deveria ser atribudo a uma particularidade especial desse Universo, mas a uma propriedade genrica das equaes da relatividade geral. A singularidade, segundo eles, seria inevitvel.Por outro lado, continuava Sciama na exaltao a seus colaboradores, haviam transformado a ideia vaga e especial da criao do Universo como processo nico e singular de onde toda matria e energia haviam se originado em um modelo mate- maticamente coerente, sustentado por uma verdadeira mquina de guerra formal, em que a teoria da relatividade geral atuava como seu principal instrumento.Essas ideias forneciam um grande apoio formal ao cenrio cosmolgico big bang, cuja base estava precisamente na geometria proposta pelo cientista russo Alexander Friedmann que, em 1919, encontrara uma soluo das equaes da relatividade geral representando o Universo como um processo em expanso a partir de uma singularidade. A crena geral que comeou a aparecer na cincia anglo-sax e se espraiou rapidamente por toda a comunidade cientfica internacional era de que se havia conseguido axiomatizar aquela que certamente deveria ser considerada a mais formidvel das questes da cincia: a origem do Universo. Os argumentos contidos nos teoremas pareciam to convincentes que seus aspectos prticos, aquilo que qualquer pessoa sem maiores conhecimentos tcnicos especficos poderia inferir, a superficialidade de suas consequncias, se alastraram rapidamente, ganhando inmeros adeptos no interior da comunidade cientfica e um nmero maior de seguidores, mais fervorosos ainda, fora dela.Podemos concluir da que estavam preenchidas as condies para que o big bang fosse transformado em um mito moderno de criao de tudo que existe. E foi precisamente o que aconteceu: o big bang passou ento a ser entendido como a boa descrio do Universo ao longo de toda sua histria, a ser visto como uma verdade cientfica, absoluta e sem possibilidade de questionamento. Afirmava-se nos mais diferentes lugares de conferncias cientficas internacionais a programas de rdio e televiso , que o grupo que produzira os teoremas realizara na cosmologia tarefa semelhante que seus colegas britnicos Alfred North Whitehead e Bertrand Russel haviam produzido no comeo do sculo XX, ao elaborar o caminho que os conduziu a propor a reduo da matemtica lgica. Dizia-se que eles haviam conseguido trans- formar a questo cosmolgica em uma questo axiomtica no interior de uma dada teoria da gravitao.Graas ao sucesso dos teoremas da singularidade, as indagaes que caberia cosmologia responder pareciam ter se reduzido a pequenos detalhes, pois sua origem, aquilo que estaria no co- meo de todo o processo de evoluo, j estava bem-estabelecido: a exploso inicial ou big bang! A eficcia desse mtodo de anlise foi tamanha que ainda mais de duas dcadas se tornaram necessrias para reduzi-los sua verdadeira dimenso: cenrios matemticos possveis no interior de uma dada teoria. Nada mais que isso. Uma leitura crtica dos teoremas mostrou que algumas das pr-condies necessrias para sua aplicao no esto presentes nas observaes efetuadas no Universo real. As hipteses de base, que sustentam suas concluses, no foram confirmadas pelas descries das propriedades do Universo que os cosmlogos tm elaborado a partir de observaes recentes. Em parti- cular, como j dissemos, a aceitao de que o Universo est acelerado elimina completamente uma das hipteses bsicas dos teoremas e serviu como grande estmulo ao status elevado que os modelos de Universo com bouncing com uma fase colapsante anterior fase atual de expanso mereceram recentemente. Essa situao colocou os teoremas de singularidade em sua verdadeira dimenso, isto , como nada mais que uma elegante estrutura matemtica que consequncia de uma teoria geomtrica da fora gravitacional.

Comentrios

Somente a ttulo de complementao para os leitores interessa- dos, acrescento aqui um dentre vrios exemplos de teoremas da singularidade demonstrados por Penrose, Hawking e outros. Eu o apresentarei no do modo como ele foi estabelecido original- mente e publicado,* mas com uma linguagem menos tcnica que todavia no altere a inteno do autor.

a)TeoremaAs quatro sentenas abaixo no podem ser simultaneamente verdadeiras: 1.O Universo est em expanso.2.A energia e a presso so ambas positivas.3.O caminho de um observador pode ser estendido arbitraria- mente para o passado.4.Existe um tempo csmico global.

H uma diferena grande entre as duas primeiras e as duas outras. As do primeiro grupo so afirmaes que podem ser decididas por observaes, experincias efetivamente realizadas; as outras duas constituem sentenas genricas que extrapolam propriedades locais conhecidas para regimes inatingveis e esto fora de nosso controle observacional. Vamos examinar um pouco melhor o que cada uma delas est querendo dizer.A primeira sentena trata da dinmica do Universo e sua condio de no constituir o sistema esttico proposto por Einstein. H vrias observaes envolvendo o desvio da frequncia da luz vinda das estrelas longnquas que permitem inferir que o Universo est em expanso e que o aumento do volume espacial um efeito global.A segunda afirmativa trata das propriedades fsicas que a matria/energia responsvel pelo campo gravitacional csmico deveria satisfazer. Embora no seja aceitvel considerar que a densidade de energia negativa, os fsicos conhecem vrias situaes nas quais a presso do sistema pode assumir valores no positivos. Em particular, o prprio fluido csmico introduzido por Einstein por meio da constante cosmolgica possui essa propriedade.A terceira sentena quer dizer que um corpo material qual- quer, clssico (isto , no quntico), no pode ser aniquilado. Ele tem uma persistncia que precisamente o que permite lhe atribuir realidade e durao; ele no pode desaparecer do espao-tempo.Quanto quarta afirmativa, ela certamente a mais difcil de ser compreendida fora de seu contexto tcnico, e quase impossvel de ser posta sob julgamento observacional. De um modo simplista, a sentena traduz a certeza do bom senso de que no possvel voltar ao passado. Eu me dediquei a examin-la em outro livro,* mas aqui farei alguns comentrios para que o leitor possa ter um pouco mais de informao sobre ela.

b)A deformao do tempoKurt Gdel, um dos maiores pensadores do sculo XX, revolucionou a lgica e produziu uma anlise to profunda sobre a questo do tempo na teoria da relatividade que, ainda hoje, passados mais de 50 anos de seu trabalho seminal sobre o Universo em rotao, continua intrigando os cientistas, incapazes de compreender totalmente o alcance de seus comentrios a esse respeito.Em 1950, Gdel foi convidado a participar de uma obra coletiva intitulada Albert Einstein, Philosopher and Scientist, na qual cientistas de diversos pases reuniam-se para homenagear o criador da teoria da relatividade geral uma das descobertas mais imaginativas do sculo XX. Pareceu-lhe natural que a nica investigao digna de seu interesse e ao mesmo tempo de uma homenagem a seu grande amigo deveria envolver uma anlise da questo temporal. Foi precisamente o que fez. Gdel realizou ento um trabalho de flego e empreendeu uma crtica to formidvel que, daquela poca aos dias atuais, desperta comentrios contraditrios, alm de suscitar questes que os fsicos no conseguiram resolver.Para entender a extenso da proposta de Gdel, devemos comear por entender o alcance da revoluo provocada pela teoria da relatividade restrita, na qual se substitua o tempo global nico que permeava a fsica clssica (newtoniana) por diferentes tempos, cada qual dependente daquele que descreve um dado fenmeno fsico. Essa mirade de tempos, um para cada observador, foi construda a partir da constatao de que existe na natureza uma velocidade mxima de propagao de qualquer tipo de informao: a velocidade da luz. Entendemos tambm de um s golpe por que no vivenciamos em nosso cotidiano esses diferentes tempos e usamos no dia a dia um tempo s, comum a todos ns, como se a verdade cientfica da diferenciao dos tempos e sua dependncia do estado de movimento de cada relgio no devesse ser aplicada em nossa realidade.Por que podemos proceder assim? Por que podemos ignorar, em nosso cotidiano, a dependncia dos relgios em relao s diferentes velocidades de observadores distintos? Pela razo que j comentamos: as velocidades que experimentamos em nosso coti- diano so extremamente pequenas comparadas velocidade da luz. Por conseguinte, extremamente pequena a diferena entre esses tempos medidos por observadores ns que se movimentam com velocidades convencionais e possveis sobre nosso planeta.

c)Dialeto newtonianoAqui me parece conveniente fazer uma pequena pausa para um comentrio genrico envolvendo a fsica do sculo XX. At o fim do sculo XIX, as verdades cientficas que a fsica exibia pareciam compreensveis para os no cientistas, o que no ocorreu com as explicaes contidas nas mais importantes teorias do sculo XX. Tanto a teoria da relatividade restrita ou geral quanto a teoria quntica cercaram-se de uma aura quase transcendental junto intelligentsia, pelas dificuldades de compreenso por parte daqueles que no dominam suas formulaes. Essa caracterstica tem a mesma origem: essas teorias tratam de situaes que no so facilmente observadas no cotidiano.A fsica newtoniana lidava com propriedades capazes de ser explicadas por consideraes do dia a dia, isto , envolviam fenmenos que possuam baixas velocidades, pequenas presses, temperaturas no extremamente elevadas caractersticas associadas dimenso humana.Por outro lado, a nova fsica se erguia sobre experincias produzidas, sofisticadas e de difcil acesso. Elas tratavam, por exemplo, do que ocorre quando se atingem velocidades fantasticamente grandes, prximas da velocidade da luz 300 mil quilmetros por segundo; de corpos extremamente pequenos (da ordem de um tomo ou menores), ou de situaes envolvendo estruturas enormes como galxias, contendo centenas de bilhes de estrelas. Passava-se, assim, de estruturas que envolviam a dimenso humana para muito alm ou muito aqum dela.Costumo chamar essa situao de a questo do dialeto newtoniano, querendo com isso explicitar as fronteiras do que tratava a fsica clssica (at o incio do sculo XX) para a nova fsica, relativista e quntica, surgida nas primeiras dcadas do sculo passado. Nesse novo territrio de explicao, fenmenos que parecem impossveis de realizar no mundo efetivamente ocorrem. Por exemplo, como entender, de modo newtoniano, usando nossa experincia corprea, sentenas como: para ir de um ponto do espao a outro, no nvel quntico, no preciso passar por todos os pontos intermedirios; embora a cada momento eu caminhe para meu futuro, estou ipsofacto me aproximando de meu passado.O leitor no acostumado com essas afirmaes da fsica do s- culo XX certamente ter dificuldade de faz-las entrar em seu sis- tema lgico, construdo com suas experincias prprias em seu cotidiano. Essa dificuldade ocorre porque tais propriedades no so comuns, no so acessveis em nosso dia a dia. Ao contrrio, so propriedades da matria em circunstncias muito especiais, a que s podemos ter acesso por meio de um embasamento formal sofisticado que no que se transformou a fsica moderna. E, no entanto, elas formam a teia que sustenta a racionalidade do mundo, e devemos entend-las como algo constitutivo da realidade que a cincia revela.

d)Voltar ao passadoTodos ns, alguma vez em nossa vida, j nos deparamos quer por curiosidade, quer at por simples jogo ou brincadeira com a interrogao por que no podemos viajar ao passado?. Se fizermos essa pergunta a nossos amigos ou vizinhos, depois de passado o momento dos comentrios bem-humorados que a pergunta evoca, todos reconheceremos no saber a resposta.A cincia, que, at o advento da relatividade geral, tratara desse problema apenas por seu lado formal, lgico, gerando aporias, s conseguiu se manifestar abertamente com Gdel.O pensador austraco, de modo inesperado e contundente, ensinou que essa impossibilidade de visita ao passado se explica porque o campo gravitacional nas vizinhanas da Terra fraco! Na verdade, Gdel mostrou, usando para isso a teoria da relatividade geral de Einstein, que se podem encontrar situaes normais, isto , que no violam qualquer lei fsica convencional, nas quais possvel existir caminhos que levem ao passado. Dito de outro modo, caminhos que, contrariamente nossa intuio e nossa certeza newtoniana cotidiana, possuem a inesperada propriedade de, ao se avanar para o futuro, no se estaria automaticamente se afastandodo passado. Assim, ao caminhar a cada momento para o futuro local, acabaremos por nos aproximar de nosso passado.Gdel demonstrou que a ideia temporal com que norteamos nossas relaes cotidianas no mundo no pode ser generalizada para todo o Universo. Haveria a possibilidade de que, em algum lugar no cosmo, o campo gravitacional tornasse possvel a existncia desses caminhos. A anlise de Gdel se baseia na teoria da gravitao de Einstein, que transformou aquilo que entendamos como fora newtoniana gravitacional em uma estrutura universal capaz de alterar as propriedades do espao e do tempo. Como, segundo Einstein, podemos atribuir a estrutura da geometria do espao-tempo ao contedo energtico-material nele existente, a prpria estrutura causal pois disso que estamos falando est subordinada fora gravitacional.Ao ser consultado sobre o que pensara do trabalho de Gdel, Einstein teria dito No gostei. Isso compreensvel, pois Gdel co- locara em xeque a coerncia causal da relatividade geral, bem como a moderna viso da cosmologia relativista, que se baseia funda- mentalmente na possibilidade da existncia de um tempo global, absoluto, csmico. A quase totalidade dos cientistas seguiu Einstein naquele comentrio de carter no cientfico, somente opinativo. A crtica profunda que Gdel produziu sobre a questo temporal comea aos poucos a despertar os fsicos de seu acalanto newtoniano. Estamos sendo levados, inexoravelmente, a examinar, no cenrio cosmolgico, a questo fundamental que ele apresentou: podemos estabelecer um tempo nico global para nosso Universo? Os cosmlogos fazem da afirmativa a esta questo um dos pilares do modelo-padro aceito pelos cientistas.Mas possvel que, isolado ou no, Gdel, afinal tenha razo: um caminho ao passado no deve ser entendido como uma impossibilidade sustentada por paradoxos lgicos. Sua existncia depende das propriedades fsicas globais de nosso cosmo e est contida no modo de descrio do Universo que decidimos fazer. Essa questo exige que aprendamos como conciliar os possveis caminhos ao passado com as convencionais afirmaes causais que a cincia faz.A cosmologia, que tem como tarefa a refundao da fsica, no pode deixar de lado a questo colocada por Gdel. Alguns cientistas, liderados pelo fsico ingls Stephen Hawking, produziram um princpio de proteo causal pelo qual, sem qualquer argumentao formal de sustentao, arrogantemente estipulam que, como as curvas ao passado de Gdel no existem em nossa vizinhana, elas tambm no existem no Universo. Esta soluo lembra a adotada pela Rainha Vermelha em Alice no Pas das Maravilhas; quando confrontada com uma questo difcil e cuja soluo no lhe parecia acessvel, ela declarava: Vamos mudar de assunto. Para Gdel a existncia ou no de caminhos ao passado a questo principal da cincia, se ela quer produzir um discurso aberto sobre o tempo referente a todo o Universo. E ela no pode ser decidida por um apriorismo.Assim, decidiu-se por aceitar que, na descrio do Universo, podemos usar por conveno um tempo gaussiano, global. O matemtico alemo Carl Friedrich Gauss mostrou que localmente se pode organizar uma descrio das localizaes no espao e no tempo o que chamamos de sistema de coordenadas tal que, em uma dada regio do espao-tempo, possvel definir um tempo nico, comum para um conjunto de observadores. Trata-se de uma simples escolha particular de descrio e que no implica considerao alguma sobre as caractersticas do mundo.Assim como o mapa no o territrio, um sistema de co- ordenadas no passa de uma conveno que nos permite fazer referncia a acontecimentos que ocorrem em um dado lugar em certo tempo. Os valores numricos a que nos referimos para caracterizar espacial e temporalmente um evento, qualquer ocorrncia, nada mais so que convenes feitas para que, de modo eficiente e prtico, diferentes observadores possam trocar informaes a respeito do mundo fsico.Desde o maravilhoso modo pelo qual Friedmann havia elaborado um modelo cosmolgico dinmico, pareceu a todos que essa caracterizao por meio de um tempo nico global gaussiano introduzido pelos pais fundadores da cosmologia moderna, aproximando o mximo possvel a descrio contempornea do Universo ao modo newtoniano clssico era perfeitamente natural, matematicamente justificvel para se construrem modelos de Universo, solues exatas das equaes da relatividade geral. Gdel rompeu com essa tradio argumentando que campos gravitacionais possuindo como fonte da curvatura do espao- tempo fluidos materiais dotados de rotao, essa caracterizao gaussiana deveria ser revista. E, ao exibir seu modelo cosmolgico, comprovou formalmente que tinha razo, embora sua soluo no seja um bom modelo para o Universo.

e)Sobre GdelGdel era fascinado pela rotao. Recentemente, em uma visita ao Instituto de Cosmologia e Astrofsica de Pescara, beira do Adritico, um fsico italiano que vivera em Princeton poca de Gdel confidenciou-me que, anos depois da descoberta do famoso Universo em rotao, foi procur-lo em seu gabinete de trabalho no prestigioso Institute for Advanced Studies. Teve ento a curiosidade de aproveitar aquele momento nico que Gdel lhe concedera um dilogo com uma figura to isolada e fechada sobre si constitui certamente um evento raro a fim de lhe perguntar de onde teria ele tirado a inspirao para pensar aquele Universo girante com caractersticas to excepcionais, to diferente de tudo que at ento (e mesmo depois!) os cosmlogos haviam produzido. Gdel, sem um momento de hesitao, teria lhe mostrado a janela (na verdade, uma pequenssima fresta de janela por onde, naquele entardecer, os ltimos raios do Sol conseguiam a duras penas atingir o escuro interior de sua sala de trabalho) e, apontando para o ptio, lhe perguntou: Voc pode me mostrar a fora algo que no esteja girando? semelhana de certos artistas, como o pintor Van Gogh, que parecem ver o mundo como um processo mgico, em que cada ponto de observao, cada evento cotidiano, cada processo de reflexo de luz se deixa descrever como uma fonte de energia que irradiada permanente e continuamente minsculas reprodues de inumerveis estrelas como o Sol , Gdel via a natureza como sequncia maravilhosa de processos em permanen- te movimento, que no permanecem em linha reta, exibindo-lhe o que ele descrevia como ininterrupta rotao.Possivelmente a genialidade dele estava menos em pensar situaes inesperadas e pouco comuns, e mais em deixar-se levar pela exuberncia implcita ou explcita que cada acontecimento, cada mnimo movimento que chega at ns possui; e em usar essa percepo para elaborar uma representao da realidade. Mesmo que, primeira vista, ela parecesse afastada de qualquer evidncia direta ou indireta de observao, parecendo no obedecer s leis convencionais da fsica. Por mais estranha, inusitada e esdrxula que pudesse parecer aos outros cientistas e no cientistas, essa representao do mundo, esses momentos ininterruptos de criao, lhe permitia produzir um cenrio incomum do Universo. Embora o cenrio parea ter seu ponto fundamental de apoio em fantasias formais, na verdade ele reside em cnones reconhecidos que a cincia no consegue mostrar serem inaplicveis ao nosso Universo.O modelo cosmolgico de Gdel no parece se adequar ao Universo observvel. Entretanto, do ponto de vista de compreenso da teoria da relatividade, ele produziu um aprofundamento inquestionvel. Em particular, o modelo de Gdel levou-o a re- pensar o conceito de tempo de um modo inesperado. Ate ento, todo o programa da cosmologia, seguindo a recomendao da fsica, baseava-se, como vimos no modelo-padro, na aceitao da possibilidade de construir um tempo nico, global, capaz de constituir a verso moderna, dentro da teoria da relatividade geral, do tempo absoluto newtoniano.Gdel escapou dessa armadilha apriorstica que todos os cosmlogos aceitam e produziu um cenrio csmico no qual a geometria gerada por fontes de galxias em rotao permite o retorno ao passado. Dito de outro modo, em seu modelo, ao caminharmos em cada ponto para o futuro estaramos localmente nos afastando de nosso passado, mas, ipso facto, nos aproximando globalmente dele. Como se devssemos trocar a descrio temporal do mundo, de uma estrutura linear para um verdadeiro crculo do tempo.Alm desses mritos indiscutveis e raros, Gdel tinha idiossincrasias inimaginveis. Um fsico italiano descreveu-me que o pnico que Gdel sentia de falar em pblico no tinha igual na histria das personalidades cientficas do sculo XX. Durante muitos anos, enquanto trabalhava no Institute of Advanced Studies em Princeton, raramente aceitava apresentar uma palestra pblica ou seminrio para mais de duas pessoas.Por essa conhecida razo, quando finalmente, depois de uma longa negociao, aceitou falar, entende-se o rebulio que o anncio de sua palestra provocou fato raramente visto naquela austera e recatada instituio. No dia da conferncia de Gdel cuja palestra era anunciada como uma sntese da noo de espao na filosofia de Leibniz , o anfiteatro estava totalmente lotado. Na primeira fila viam-se personalidades, cientistas famosos, dentre os quais Albert Einstein. Mesmo em Princeton, conhecida internacionalmente por atrair cientistas e filsofos renomados para a universidade e o instituto, poucas vezes uma conferncia despertara tanta curiosidade e atrara tantos ilustres pensadores.Depois de anunciado e chamado a proferir sua palestra, Gdel caminhou para diante do pblico, sentou-se na cadeira que lhe haviam reservado, colocou suas notas sobre a mesa e esperou que se fizesse silncio, o que logo foi estabelecido. Passou-se um tempo, longo demais para alguns da plateia, em que nada acontecia. Assim ficou ele em silncio durante todo o perodo reservado ao colquio. Aos poucos, os cientistas atnitos e sem entender o que acontecia foram se retirando, esvaziando lentamente a sala. Por fim, depois de 40 minutos de pesadssimo silncio, Einstein, o ltimo presente, levantou-se com o prprio Gdel, e saram juntos.Meu colega italiano pretende explicar a situao inusitada como consequncia do insupervel pavor de falar em pblico de Gdel, o que o levava a procurar, o mais das vezes, o mundo inslito, fechado e indizvel que criou.

f)Cenrios de Universos eternos dinmicosA ideia de Universo cclico na cosmologia moderna foi examinada formalmente desde os estudos de Richard Tolman, na primeira metade do sculo XX; e as geometrias que representam cenrios dinmicos no singulares isto , sem um incio singular em um tempo finito tiveram suas formas explcitas descritas ao final dos anos 1970. Mas somente no comeo do sculo XXI suas caractersticas e principais propriedades comearam a ser examinadas em p de igualdade com o modelo-padro big bang. A principal razo para isso se deveu aos teoremas da singularidade que citamos.Por um lado, a principal lio que se tirou dos teoremas foi a existncia de uma forma de singularidade em praticamente toda soluo da relatividade geral que descreve a evoluo da geometria do Universo pelo menos aquelas que possuem, como fonte, configuraes extremamente simples e idealizadas, em geral associadas a um fluido perfeito. Por outro lado, eles explicitaram modos formais graas aos quais se podem gerar geometrias que representam universos no singulares.Essas geometrias possuem ou uma expanso que se estende- ria lentamente por um tempo infinito, ou um estgio de colapso representando uma fase de contrao anterior atual fase de expanso. Tais cenrios eternos, dinmicos, possuem o que se chama de bouncing, isto , um valor mnimo para seu volume. Eles passam de uma fase de contrao a outra, de expanso, possuindo momento de ricochete e podendo repetir essa configuraosemelhante a um processo de sstole-distole mais de uma vez. A existncia de um valor mnimo para seu raio produz de imediato uma srie de novidades e abre caminho para uma nova viso sobre os mecanismos em ao no Universo. sobre esses mecanismos e propriedades novas que a presena do raio mnimo provoca que os cosmlogos tm se dedicado intensamente nos ltimos anos.

5O programa do Universo eternoNo raro que uma proposta cientfica relevante seja precipitadamente posta de lado, ou mesmo rejeitada como ineficiente, graas ao mau uso de uma de suas caractersticas ou aplicao equivocada de uma formulao terica particular que lhe esteja associada. possvel encontrar vrios exemplos dessa situao em diferentes reas da fsica e mesmo em outras cincias. Um caso notvel ocorreu na histria da cosmologia.Durante a dcada de 1950, duas teorias rivais eram entendidas como alternativas possveis para descrever o Universo em suas propriedades globais: o cenrio explosivo e singular descrito pelo big bang e o cenrio steady state, no qual a configurao do Universo estacionria, semelhante geometria especial descoberta em 1917 por Willem de Sitter. Nas duas dcadas seguintes, partidrios de uma ou outra dessas propostas de histria do cosmo e de sua possvel origem dedicaram enorme esforo na tentativa de encontrar argumentos capazes de mostrar que a teoria rival estava errada.Como vimos antes, em 1964, dois radioastrnomos americanos seguindo a orientao do fsico Robert Dicke, interpretaram a observao de uma radiao csmica altamente isotrpica como sinal de que havia no Universo, homogeneamente distribudo, um mar de ftons em equilbrio termodinmico semelhante a um corpo negro a uma temperatura de 2,7 Kelvin. A explicao natural desse fenmeno passava pela aceitao de que o Universo fora bastante mais quente e concentrado no passado.A interpretao foi bem-aceita pela comunidade internacional, que ficou ento convencida de que o Universo era um processo dinmico e que sua configurao deveria variar, de modo no uniforme, com o passar dos tempos. No final daquela dcada, parecia claro para boa parte dos cosmlogos que o modelo do Universo em estado estacionrio proposto pela teoria steady state , defendida principalmente pelo astrnomo ingls Fred Hoyle e seu colega hindu Jayant Narlikar, no era apoiado pelas observaes astronmicas. Concluiu-se ento precipitada e, como veremos, erroneamente que nosso Universo deveria ter tido um comeo singular h cerca de poucos bilhes de anos.Em verdade, a concluso correta deveria ter se limitado a rejeitar os cenrios cosmolgicos que no incluam em sua expli- cao a evoluo dinmica do Universo, em particular a verso da proposta steady state. Nada mais que isso!Entretanto, como uma dicotomia envolvendo os dois exemplos de descrio dos primrdios do Universo havia se instalado perante a comunidade cientfica, a demonstrao de que uma delas estava em desacordo com as observaes astronmicas deu automaticamente sua rival a condio de verdadeira.A principal questo em jogo na disputa, steady state versus big bang, e que ficara relegada a segundo plano na querela, foi imediatamente abandonada e esquecida. O que realmente estava por trs da discusso e constitua sua razo de ser era a tentativa de responder questo fundamental: o Universo teve um comeo h poucos bilhes de anos ou eterno? O steady state certamente um caso muito especial de Universo eterno isento de uma verdadeira dinmica, posto que sua aparncia, segundo essa concepo, seria independente do tempo csmico.Tal propriedade no deveria ter sido entendida como se, alm do modelo steady state, no houvesse qualquer alternativa dispo- nvel. Com efeito, pois o que efetivamente se observou em 1964, e corroborou-se em outras observaes desde ento, se resume somente constatao de que o Universo um processo e que seu volume foi menor no passado. Nada mais que isso. Deveramos ento perguntar: possvel encontrar outro cenrio, mais realista que o modelo steady state estacionrio e que seja igualmente eterno? A resposta sim, como veremos.

Steady state: a batalha perdidaUm dos maiores obstculos propagao da ideia de que nosso Universo no teve um momento de criao h poucos bilhes de anos est ligada ao sucesso efmero da proposta do cenrio steady state. Durante alguns anos esse modelo foi considerado uma boa alternativa ao big bang, ao sustentar a ideia de que o Universo no teria tido um comeo.Tanto a formulao inicial quanto a evoluo ulterior desse modelo, contudo, apoiaram-se fortemente em propriedades a priori. Nesse aspecto, ele tem origem semelhante ao modo pelo qual Einstein inaugurou, em 1917, a cosmologia moderna: estabelecendo propriedades globais do Universo a partir de princpios gerais, organizando a base de seu cenrio a partir de preconceitos sobre como o Universo deveria ser. O principal obstculo ao steady state est ligado ao modo como esse modelo trata a dinmica que controlaria a evoluo do Universo.Para entender isso, devemos lembrar o que foi comentado anteriormente sobre o modelo de Friedmann: As observaes parecem demonstrar que, em grandes dimenses, o espao tridimensional homogneo. Essa caracterstica adquiriu uma formulao simplificada na expresso geography does not matter (a geografia no importa). Ou seja, se pudssemos tirar uma fotografia da totalidade espacial do Universo em um dado tempo digamos, hoje , perceberamos que as propriedades exibidas por suas diferentes partes so as mesmas, isto , qualquer regio da foto que examinemos mostrar as mesmas caractersticas.Assim, como no existe um lugar privilegiado no Universo, se considerarmos um ponto qualquer como lugar de observao, iremos notar que, em torno dele, as propriedades globais como, por exemplo, a densidade de galxias independem da distncia em relao a esse ponto arbitrariamente tomado como central. Em outras palavras, o espao tridimensional homogneo. Da a expresso popular pela qual a geografia do Universo no permite reconhecer ponto especial algum, ou, de modo simblico, a expresso usada pelos cosmlogos: A geografia no tem importncia csmica.Essa homogeneidade espacial do Universo um dos pilares do modelo-padro da cosmologia. Todos os modelos cosmolgicos citados anteriormente foram construdos a partir dessa propriedade. Em um primeiro momento, como no caso dos modelos pioneiros de Einstein e Friedmann, eles se estruturaram apenas por simplificao formal, permitindo encontrar solues exatas das equaes da relatividade geral e dando-lhe o status de modelo cosmolgico. Mais tarde, nas ltimas trs dcadas do sculo XX, foram construdos com o apoio observacional.

Princpio cosmolgico perfeitoA simplificao formal que admite a priori a homogeneidade espacial (a geografia no importa) foi chamada pelos pais fundadores da cosmologia relativista de princpio cosmolgico. Ele desempenhou um importante papel na consolidao do modelo-padro. Alguns cientistas propuseram uma generalizao desse princpio de tal modo que a configurao do Universo fosse a mesma no somente em um dado tempo, mas para todos os tempos. Essa proposta de homogeneidade temporal ficou caracterizada pela expresso history does not matter (a histria no importa).Esses cientistas argumentaram que no existe uma verdadeira dinmica no Universo, uma vez que todo observador veria a mesma estrutura global. Sua configurao permaneceria para sempre inalterada. Quando, a partir da segunda metade dos anos 1960, comeou a ficar claro para a comunidade cientfica que o Universo era um processo, que suas caractersticas variavam com o tempo e que havia diferenas sensveis entre o presente e o passado, o cenrio steady state comeou a ser severamente criticado, e hoje est praticamente abandonado.*A derrota de um cenrio cosmolgico isento de singularidade e, em sentido rigoroso, eterno foi a principal responsvel pela atitude dos cientistas que deixaram de lado outros modelos de Universo sem singularidade. Podemos dizer que o fracasso primeiro do steady state funcionou como verdadeiro bode expiatrio de todos os demais cenrios eternos.Ainda hoje, passados mais de 40 anos, alguns cosmlogos, ao comentar para o grande pblico a relao entre os modelos singulares e no singulares, cometem a confuso que leva viso incorreta de que criticar o big bang significa voltar ao cenrio esttico do modelo steady state. Na verdade, trata-se de conciliar os dois e produzir um cenrio realista de um Universo dinmico e eterno, sem as dificuldades apontadas de um Universo singular.

6A expanso acelerada do Universo, ou em busca de novas formas de energiaTalvez o ano de 1998 possa ser identificado como aquele em que se produziram as condies de aceitao, por parte da comunidade de cosmlogos, da proposta do Universo eterno. O que provocou essa mudana? Em 1998, observaes efetuadas em certos tipos de estrelas (supernovas) levaram proposta imediatamente aceita pela maioria dos cientistas envolvidos de que o Universo estaria sendo acelerado. Essa concluso, mesmo que provisria, criou uma dificuldade enorme, incapaz de ser conciliada com o modelo-padro da cosmologia.Desde os anos 1930, sabe-se que o Universo est em expanso. Em meados da dcada de 1960, os cientistas tiveram a confirmao definitiva dessa caracterstica graas identificao de uma radiao csmica de fundo.* Estabeleceu-se assim o cenrio cosmolgico-padro no qual o Universo projetado na realidade por um mecanismo singular inacessvel e, a partir da, tem seu volume total aumentado de modo desacelerado. Essa desacelerao compreensvel, pois ela pode ser identificada ao carter atrativo da fora gravitacional. A matria-energia contida no Universo freia a expanso produzida pela suposta exploso inicial, de origem desconhecida nesse modelo.**A possibilidade de que o Universo esteja sendo acelerado* produziu uma verdadeira revoluo nas ideias que sustentavam o modelo big bang, pois significava em linhas gerais que sua descrio do contedo material do Universo estava errada ou, na melhor das hipteses, incompleta.A razo para essa concluso est ligada s hipteses adotadas por esse modelo, pressupondo que a relatividade geral a boa teoria da gravitao e que a fonte de curvatura do espao-tempo um fluido perfeito. Aqui acontece uma catstrofe terica, pois, no interior desse quadro formal, a acelerao do Universo s possvel se a presso for negativa. E ainda mais, ela teria de ser muito negativa. Para ser rigoroso, isso significa que a presso deveria ser, em valor absoluto, pelo menos trs vezes maior que a densidade de energia correspondente. H duas possibilidades para isso: uma configurao material que se pode atribuir a alguma propriedade nova ainda desconhecida; ou aceitar que nosso conhecimento da interao gravitacional est errado.Entre substituir a equao de Einstein ou admitir que o fluido csmico tenha uma caracterstica muito especial, desconhecida at ento, os cientistas escolheram a segunda opo.Aceitou-se assim que a acelerao do Universo deveria estar associada a uma fonte de curvatura do espao-tempo constituda por algum novo tipo de matria ou energia que admite a interpretao em termos de um fluido perfeito, descrito por uma densidade de energia E e presso P negativa, onde a equao de estado P = s E tal que seu triplo 3s menor do que 1 (3s < 1). Essa substncia recebeu o nome de energia escura. Ela no seria identificvel a forma alguma de matria-energia conhecida nem facilmenteobservvel a no ser indiretamente, pelo comportamento de acelerao da expanso do Universo.Ora, como j vimos, a relao que envolve a energia e a presso precisamente a propriedade necessria para a violao das condies de energia que haviam sido postuladas como naturais e que tinham sido utilizadas para demonstrar os teoremas de singularidade.Por conseguinte, a nova constituio material possui propriedades semelhantes quelas necessrias para evitar um colapso gravitacional de uma fase em contrao para produzir um bouncing. As condies para ir alm do big bang e produzir um Universo eterno passaram a ser aceitas, pois no seria mais possvel usar as restries dos teoremas de singularidade posto que as condies de sua aplicao ao nosso Universo no seriam preenchidas.*Conclui-se da que os argumentos apresentados na utilizao dos teoremas de singularidade como apoio formal inconteste ao modelo big bang durante as ltimas dcadas do sculo XX, se mostraram para dizer o mnimo precipitados.**

A energia escura: novos campos no Universo?Para gerar um exemplo concreto do cenrio acelerado, postulou- se a existncia de uma estrutura material identificada com um campo escalar possuindo propriedades muito particulares.A fsica quntica de tal modo transformou a ideia de corpos materiais que foi possvel associar a cada partcula um campo. Perdeu-se assim a caracterstica localizada de um corpo clssico, ganhando-se uma extenso no espao-tempo. Esses campos possuem diferentes propriedades. No entraremos aqui no exame dessa questo, mas, para entender um pouco melhor o discurso que se pode fazer sobre as estruturas materiais no Universo, farei um comentrio a respeito de uma espcie particular de campo chamado escalar.Na verdade, no existe somente um campo escalar, mas uma classe de campo deste tipo. O termo escalar est associado ao fato de que, para caracterizar cada um desses campos, suficiente uma s funo. Em contrapartida, os demais campos materiais de que a fsica trata exigem, para sua caracterizao, vrias funes: seu nmero depende dos diferentes tipos de matria.Exemplo notvel de campo escalar o msonpi, descober- to pelo fsico brasileiro Csar Lattes e seu colaborador italiano Giuseppe Occhialini. Entretanto, o campo escalar que se procura na cosmologia de outra natureza. Ele no possui massa, o que torna sua deteco em laboratrio terrestre muito difcil. Sua possibilidade de existncia vem sendo intensamente examinada em termos globais, nas ltimas duas dcadas, em particular na questo da acelerao do Universo.*Outras formas de matria poderiam estar presentes no mecanismo de acelerao. Programas complexos envolvendo grupos internacionais de cientistas lanaram-se busca da explicao para essas novas fontes de energia. No momento em que escrevo este livro, no se pode afirmar, dentre as diferentes formas de energia examinadas, qual deve ser identificada com a chama- da energia escura e reconhecida como a verdadeira responsvel pela acelerao do Universo. Assim, inmeras possibilidades so analisadas e postas em debate pelos cientistas. Portanto, quando o cosmlogo vem a pblico, ao ser indagado qual delas a ver- dadeira, responder do nico modo aceitvel nos dias atuais: no sabemos. E, com o otimismo que a histria da cincia lhe permite, poder acrescentar: ainda.

7Diferentes modelos de big bang, diferentes modelos de Universo eternoAssim como no existe um modelo nico de big bang,* tambm h vrios candidatos a representar um Universo eterno. Essas mltiplas possibilidades no devem nos assustar, pois o que nos interessa aqui a distino bem ntida entre as duas classes: Universo tipo big bang e Universo eterno. As diferenas no interior das classes so detalhes tcnicos ligados s caracte- rsticas especficas de cada modelo e no nosso propsito desenvolv-las aqui.Ao longo dos ltimos anos, apresentaram-se vrias propostas de modelos sem singularidade. Neles, as causas da ausncia de um ponto singular na histria da evoluo do Universo tm diferentes origens. Entre as mais estudadas esto as seguintes:

1.Mudana nas equaes da dinmica do campo gravitacional.2.Universo magntico.3.Quantizao do campo gravitacional.4.Novas formas de matria.

Somente para dar uma ideia de como elas geram cenrios sem singularidade constituindo um Universo eterno, vamos nos concentrar em uma delas, o Universo magntico.Universo magntico.O eletromagnetismo deve seu enorme sucesso no somente formal, terico, mas tambm e principalmente