retorno ao big-bang microcósmico

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From travels in time and space to the Ciberdemocratics revolutions De viagens no tempo e no espaço às revoluções Ciberdemocráticas

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Denis Moura de Lima

RETORNO AO BIG BANG MICROCSMICO

Fortaleza Banco do Nordeste do Brasil 2009

A obra RETORNO AO BIG BANG MICROCSMICO de Denis Moura de Lima foi licenciada com uma Licena Creative Commons - Atribuio - Uso No Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 No Adaptada.

Editor: Ademir Costa Reviso: Jorge Pieiro Capa: Victor Alencar Ilustraes: Pedro Uchoa Diagramao: Patrcio de Moura

L732r Lima, Denis Moura de. Retorno ao big bang microcsmico / Denis Moura de Lima. - Fortaleza: Banco do Nordeste do Brasil, 2009. 196 p ISBN 978.85.7791.048.9 1. Literatura Brasileira. I. Ttulo CDD: 869.899 2

Dedico esta obra gerao que realizar o sonho da Ciberdemocracia.

Retorno ao Big Bang Macrocsmico uma narrativa gil com personagens que podiam ser nossos conhecidos, nossos vizinhos, nossos amigos. Ana Cristina Rodrigues Historiadora, mestra e doutoranda em Histria, presidenta do Clube de Leitores de Fico Cientfica Brasil.

Acredito que Dnis Moura seja um viajante do tempo, daqueles com alma vitoriana e olhos duros de quem no simpatiza com o que prev. Poderia jurar que esse estratonauta compartilha do entusiasmo febril dos que acreditavam num futuro melhor luz da cincia, mas com o sorriso mezzo-cnico mezzo-calabreza cansado de esperar, produzindo o futuro que os gerou, exterminadores de um presente estagnado. Octvio Arago Doutor em Artes Visuais pela UFRJ. Foi editor de arte da Ediouro e coordenador de arte de O Globo. professor adjunto da Universidade Federal do Esprito Santo.

Retorno ao Big Bang Microcsmico: esta uma obra de fico. De FC, fico cientfica. Filia-se melhor tradio de Julio Verne e H. G. Wells (), mas ao prescindir de um movimento retilneo para a composio de sua histria (), aproxima-se, assim, muito mais de 2001 e de Arthur C. Clarke. O Poeta de Meia-Tigela Doutorando em Filosofia pelo Programa de Doutorado Integrado UFRN-UFPB-UFPE, autor de Concerto N 1Nico em Mim Maior Para Palavra e Orquestra.

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SUMRIOPrefcio O arquivo ou como a histria chegou at ns Microcosmacro Acabou? 68, o ano que nem comeou Big Bangs sociais Faxina em Braslia Conspirao ZHAARP Exploses Politicagens CientiF Precognio Sobreviventes e viajantes Experimento novamente Big Bang microcsmico Capturados Humanos Nova Terra Gliese 581d O plano Escola e escrita Apago O fim Raptados por vergulianos Capturados Em Nova Terra Duelo mental Chantagem Aliengena Perdidos no espao Conspirao 9 11 17 18 19 20 21 29 31 37 39 43 47 49 59 63 67 77 85 93 95 97 105 111 115 119 123 133 1357

O planeta nmade Big Bangs dos microcosmos sociais A origem do universo Simtricos Universos 25 bilhes de anos ao Futuro Festas Retorno ao fm da eternidade Nota final do autor Prosfcio

141 147 155 169 177 181 187 191 193

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PrefcioA invaso do amanh Octvio AragoO que est acontecendo no futuro? Sim, porque alguma coisa deve estar ocorrendo por aquele territrio de heroicos brados retumbantes para provocar essa enxurrada de novos autores de fico cientfica do Pas do Futuro. Dnis Moura e seu Retorno ao Big Bang Microcsmico so os mais recentes resultados desse paradoxo, dessa invaso de trs para frente, que faz com que os visionrios do porvir aportem no dia-a-dia de nosso sculo XXI, antigo cenrio de uma Era de Ouro que quase morreu no ovo do ps-Estado Novo. O Brasil do ano 2008 no de plutnio, urnio ou qualquer metfora porno-radioativa, mas de carne chamuscada e osso fraturado. Carbono safra mil-novecentos-e-quatorze. Talvez o motivo para a invaso dos escritores do amanh seja mais singelo, quem sabe devido ao amadurecimento ou, se a lgica do reverso estiver em voga nesse caso tambm, de enverdecimento de uma gerao que cresceu antecipando a realizao de milagres por exposio a raios catdicos. Aqueles velhos medicados com overdoses de George Pal e Irwin Allen chegaram infncia e decidiram que cabe a eles, em lugar de dormir em bero esplndido, realizar o sonho de um pas que no tem pavor do agora. Acredito que Dnis Moura seja um viajante do tempo, daqueles com alma vitoriana e olhos duros de quem no simpatiza com o que prev. Poderia jurar que esse estratonauta compartilha do entusiasmo febril dos que acreditavam num futuro melhor luz da cincia, mas com o sorriso mezzo-cnico mezzo-calabreza cansado de esperar, produzindo o futuro que os gerou, exterminadores de um presente estagnado. Diante desses construtores de proto-realidades, sinto como o fsico que identifica uma partcula teimosa, escondida sob uma capa de invisibilidade quntica, tquions cronografados nas entrelinhas.9

Cuidado, leitor, eles esto entre ns e, a partir de agora, mais especificamente na pgina que vem, big bangs sero rotina. Maravilhe-se.

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O arquivo ou como a histria chegou at nsA propaganda para a democracia burguesa o que o cassetete para o estado totalitrio. (Noam Chomsky) Quando a Mdia no detm as novas ideias, o porrete volta cena? Existem coisas que a gente pensa que nunca vo acontecer conosco ou com algum conhecido. Naquela manh, acordei cedo, tomei banho e caf rpidos e joguei a mochila nas costas. Fiz a caminhada habitual em direo ao CEFET-CE (Centro Federal de Educao Tecnolgica do Cear). Odeio acordar cedo, mas a grana de bolsista de laboratrio de informtica, apesar de mixuruca, era um grande motivador a quem no tinha outra opo para sair da tpica liseira estudantil. Aquele era o nico e ingrato horrio que me ofereceram e tive que aceitar. Geralmente, chego atrasado de propsito pra poder dormir um pouco mais. Fao isto tambm para aproveitar o fato de que ningum usa mesmo o laboratrio s 7h da manh em ponto, talvez porque a maioria tambm odeie acordar cedo mesmo. Mas neste dia havia outro fator motivante: meu amigo Franz me ligou ansioso na noite anterior querendo urgentemente me entregar um material que, segundo ele, no poderia ficar nas mos de uma nica pessoa. No teceu detalhes, agendou comigo s 6 e meia no laboratrio e desligou. Passei a noite preocupado. Devia ser algo grave mesmo, pois meu amigo nunca telefonava. Tinha o hbito de falar sempre pessoalmente. E agendar11

to cedo assim...? Definitivamente, era grave! No era tpico de um astrnomo amador que geralmente tem hbitos noturnos querer resolver alguma coisa de manhzinha. Caminhando introspectivo em frente Escola de Cinema da Universidade Federal, resolvi cortar caminho por dentro daquele Campus, enquanto imaginava o que meu amigo desejava me entregar. Quando cruzei o porto em frente ao bloco da Psicologia, entrando na deserta rua onde mora o humorista Falco, palpitei de alegria ao ver o simptico e moreno rosto do Franz, que cruzava a esquina do Bar Cantinho Acadmico. Ele para, me sorri, e volta o rosto e a mo direita pra dentro da mochila, de onde retira um CD-ROM. Foi quando uma Kombi preta freia do seu lado e dois marmanjos de farda verde-oliva saltam da porta semiaberta onde vi de relance o letreiro: CETEX. O reflexo que tive foi o de me esconder rapidamente num recuo de muro, enquanto o Franz s teve tempo de gritar: CONJUNO!!! enquanto quebrava o CD, cortando feio as mos, antes de ser arrastado pela camisa pra dentro daquela Kombi de placa branca que cantou pneu em disparada pela Avenida 13 de Maio. Agora, meu palpitar era de medo! Passei pelos cacos ensanguentados do CD espalhados pelo asfalto e corri at a esquina pra me certificar de que o veculo havia mesmo sumido. Respirei aliviado e resolvi fazer o resto do caminho at o CEFET, contornando a praa da Gentilndia para entrar no Centro Tecnolgico por trs, pela rua do Estdio Presidente Vargas. Assim, por precauo, despistava um pouco, enquanto meditava sobre o ocorrido atravs de uma caminhada mais longa. Ser que eles viro atrs de mim? Quando agarraram o meu amigo, no deixei que me vissem de forma alguma. Ser que me associariam de alguma forma ao Franz? Achava pouco provvel. Mantinha tanto contato com ele, quanto a maioria dos outros colegas de faculdade. Mas, e aquela nica ligao telefnica? Aliviado, lembrei dos bips caractersticos das unidades de carto telefnico sendo subtradas. Um grampo num orelho escolhido a esmo era quase impensvel. Nisto o Franz fora cuidadoso. Mas, por que pegaram o cara? O que fariam com ele? Minha cabea fervilhava enquanto entrava no CEFET.12

A primeira ao que fiz ao entrar no laboratrio foi pesquisar no GoogleTM a sigla CETEX cruzada com a palavra Exrcito. Mas o que o Centro Integrado de Telemtica do Exrcito poderia querer...? E o que o Franz quis dizer com a palavra conjuno? A expresso me lembrou a nica vez em que assistimos juntos uma conjuno de planetas. Era algum dia de maro de 1996, quando nos reunimos na casa dos pais do professor Omar e fizemos vrias astrofotografias da triangulao formada pela Lua, Vnus e por Saturno. Foi neste contexto que aconteceu um fato inusitado e sem explicao fsica plausvel, mas como todos do grupo de astronomia ramos muito cticos, deixamos o assunto pra l. O Franz o tipo de pessoa do qual se conhece mais as ideias, do que a vida pessoal. A sua tese de que Universos se recriam constantemente at mesmo dentro de ns, por exemplo, eu tento entender at hoje. Ele veio sozinho de So Paulo h alguns meses e frequentava o CEFET como aluno especial, at que conseguisse a necessria transferncia. J com relao s ideias, meus amigos que discutiam Filosofia e Fsica no meio acadmico tinham-no como o mais marcantemente lgico, racional, ctico e humano de todos. O inexplicvel era o fato de que, na primeira vez em que o levei ao Observatrio e o apresentei ao professor Omar, este, ao lhe fazer um convite para participar das astrofotografias da dita conjuno, simplesmente impediu que o professor lhe dissesse o endereo. Para espanto dos presentes, descreveu em detalhes o lugar, como se j estivesse ido l. Este era nosso segredo. Enquanto buscava nexo entre o rapto e a conjuno, minha caixa de correio eletrnico sinalizou uma nova mensagem: era um e-mail do Franz! Abri rpido. Continha apenas um anexo e uma frase: tanto ascende, quanto declina. Clicando no arquivo, surgiu uma tela requisitando uma senha. S haveria um jeito de ler a mensagem criptografada: encontrar uma relao entre o fenmeno celeste e aquela frase esquisita. Quem ascende e declina so os astros, pensei. Tentei ento as combinaes possveis de Lua, Vnus e Saturno, mas nada. Pensei, pensei... E se fosse a sequncia numrica da ascenso reta e da declinao da conjuno planetria? Lembrei que tinha o anurio do Mouro na mochila e, aps consult-lo, digitei: 22 37 56 01 32 56. Eureca!!! Ento, ofegante, consegui ler a mensagem:13

Prezado Moura, Programei no servidor de e-mail uma rotina que dispararia esta mensagem caso eu no a reagendasse hoje s 7h da manh. Se voc recebeu esta mensagem, porque a informao que precisa ser divulgada urgentemente est sob o risco de ser silenciada e decidi confiar a voc o destino da mesma. Por precauo, a mesma rotina que enviou esta mensagem formatou fisicamente o servidor Benfica. Sugiro que faa o mesmo com sua mquina. Depois v at o banheiro masculino, ao lado da escada do corredor central. Sobre o segundo Box, h um alapo que d acesso ao forro do telhado. Na base da terceira coluna da direita h um jornal velho. Dentro dele h uma caixa de CD-ROM. Pegue, proteja e publique o arquivo. Atenciosamente.

Francisco Jos Estupefato e ansioso, fiz o rastreamento dos caminhos por onde aquele e-mail havia passado. Aliviado, vi que apenas o servidor de e-mails Benfica e a minha mquina estavam envolvidos. Pinguei no IP 200.17.33.1 e verifiquei que realmente o Benfica estava fora de combate, mas no confiava em formatao. Qualquer ferramenta de recuperao de disco capaz de restaurar dados. Contra isto, s havia um jeito. Corri at a sala do Diretrio dos Estudantes e, como eu era diretor e tinha a chave, entrei e peguei o grande im de caixa de som usado pra segurar uma pilha de cartazes. Corri ao laboratrio e passei a belezinha nos Discos Magnticos do servidor e da minha mquina. Pronto! Dane-se a dor de cabea que terei depois para arrumar a baguna. Chegaram os primeiros usurios do laboratrio. Entre reclamos de servidor fora do ar, aguentei minha curiosidade at que meu horrio de trabalho terminasse. Afinal, se ele realmente estivesse l, o local mais seguro para o CD era o forro mesmo. At que chegou o outro bolsista e eu sa quase correndo. Ainda esbarrei com uns caras esquisitos que entravam no laboratrio. Apressei o passo. Inspecionei o banheiro. Havia somente um aluno branquinho, lavando as mos. Fao de conta que mijo e, quando o cara sai, fecho a porta principal14

do banheiro e subo no forro. Realmente estava l. Deso um pouco sujo de poeira, mas com o CD j dentro da cala. Ningum me seguia. Fui direto pra casa. Passei o resto do dia lendo o contedo do CD. Eram centenas de pginas, nas quais o Franz relatava uma histria intrigante que dizia respeito ao futuro com revelaes que me arrepiavam a espinha. Por precauo, fiz cpias do CD-ROM e o escondi em lugares estratgicos. Programei tambm uma rotina de mensagem criptografada a partir de meu stio pessoal. Agora, estava pensando no que fazer para ter meu amigo de volta. Abriria um B.O. de pessoas desaparecidas? No, isso seria me expor. Comunicar famlia dele? Como achar sua famlia? Talvez fosse possvel, se pesquisasse na sua ficha de transferncia. Amanh pensaria em como ver a dita ficha. No dia seguinte, para minha surpresa, o Franz entra no laboratrio como se nada tivesse acontecido. Cara, pra onde te levaram ontem? Pergunto-lhe cochichando. Levaram? Que estria essa? Me responde com o olhar no vazio. Uns caras, numa Kombi preta! Ontem passei o dia em casa cuidando deste corte na minha mo que machuquei cortando uma laranja. E o CD?! Gritei. Que CD? As pessoas j comeavam a olhar para ns. Entre elas, dois marmanjos esquisitos a apurarem os ouvidos. O CD de instalao do Linux que eu te emprestei! Brado blefando para disfarar. No est vendo a baguna neste laboratrio que eu ainda tenho que arrumar? Esqueci em casa. Me responde tambm disfaradamente. Mas te consigo outro ainda hoje.15

Deixa pra l, agora. Volto a cochichar. Depois converso na calma e a ss com voc. O Franz deu de ombros com uma sinceridade que me intrigou. Por vrios dias tentei reencontr-lo para conversarmos sobre o acontecido e nada. At que recebi uma notcia de que ele havia conseguido uma transferncia para o Rio de Janeiro e se foi. Trs meses depois ele me enviou um e-mail dizendo, em cdigo, que iria sumir definitivamente. Hoje, faz dez anos que atualizo diariamente uma rotina de e-mail automtico criptografado e guardo aquele CD. Tenho medo de que, ao tentar public-lo, uma Kombi preta me pare na rua. O problema que a Histria escrita pelo Franz est cada vez mais se confirmando diariamente. Em 1998, por exemplo, ele escreveu que um metalrgico seria presidente do Brasil! Isto tem feito meu senso de dever tornar-se superior minha covardia. Bem, se voc est lendo isto agora, porque tomei coragem. Por cautela, para sondar se ainda h perigo, resolvi publicar um a um os captulos do CD no Blog http://bigbangmicrocosmico.blogspot.com/ que divulgo com os amigos. Nas pginas que seguem, est a ntegra dos textos do Franz. Aos verdes-oliva, aviso-lhes que todo o contedo daquele CD ser automaticamente disseminado na Internet caso alguma Kombi preta nos pare na rua. O autor.

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MicrocosmacroAo olhar num microscpio de fundo, As molculas, tomos, os quarks... Com as lentes do meu neurar fecundo Mergulho no nfimo mais e mais. Empunho agora um telescpio Desafiando espaostemporais E no fim do Universo vejo a Terra Na curva-luz, de bilnios atrs. Acoplo lentes do neurar fecundo Submerjo do macro mais e mais Em raios no curvveis como a luz. Assim, no telescpio e microscpio, No macro vejo-me dentro de um tomo, No micro outro universo me reluz.

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Acabou?Havamos viajado ao passado e presenciado plenamente o Big Bang de nosso Universo, agora, rumvamos em direo ao futuro. Mais do que isso, eu os acompanho no retorno ao seu prprio Universo. Tudo ao redor encolhe e se move rapidamente aos meus olhos. A Terra azul acinzenta-se, enquanto a Lua em espiral veloz cai finalmente em seu arenoso oceano. Vejo quando o Sol se expande na forma de uma estrela gigante vermelha e engole Mercrio, Vnus, Terra, Marte e o cinturo de asteroides. A via Lctea gira como um furaco uniforme at que Andrmeda colide nela seus braos espiralados. Enquanto creso e fujo dali mais rpido que a luz, bilhes de galxias no passam de um enxame de vaga-lumes multicores. Quanto mais me distancio daquele esfrico Universo, mais rpido ele se expande e suas galxias se apagam at no se ver mais nada. Ouo minha prpria voz dizendo: As conscincias sobrevivero ao colapso do Universo?

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68, o ano que nem comeouEm Nova York, um formigueiro humano fervilha por dezenas de quarteires da estao de metr Queensboro Place at as margens do rio East River. As guas so escuras, o ar pesado, malcheiroso e quente. Os galpes industriais foram transformados em acampamento. Milhares de pessoas afunilam-se na ponte Queensboro, ocupando-a completamente. Outra multido, bem menor, bloqueia o acesso ilha de Manhattan. Todos os tneis e demais pontes foram igualmente bloqueados, tanto os da Grande Ilha, quanto os do continente. O cerco Manhattan j dura meses. Aproximo-me at discernir construes, veculos e rostos. As pessoas compartilhamgrandescilindrosazuisdeoxignio,revezandoasmscarasconstantemente. Encostada no alambrado amarelo da ponte, embaixo das grandes armaes de ao, reconheo a face de uma mulher idosa com uma familiar meia lua no centro da testa. Quantas dcadas sem reencontr-la? Helenice, no meio da ponte W, olha para a esquerda, entre as duas velhas chamins da Marupi e um painel hologrfico na margem do rio, onde a defasada frase Happy 2068 New Year tremula, falhando. Seus olhos vo alm do extremo sul da ilha Roosevelt, sob a ponte. Desejam o mesmo alvo de todos ao seu redor: a sede da ONU. Muitos carregam faixas e cartazes, mas Helenice, tal qual alguns, carrega apenas um disco preto nas mos. O que eles querem apenas consumar um ato simblico, j efetuado em quase todas as partes do mundo: depositar um disco hologrfico em cada assento que tenha sido ocupado por um poderoso. Por todos os lugares do mundo, de um lado, sessenta famlias controlando toda a riqueza do planeta, enquanto seus aparatos de poder reagem violentamente ao que chamam de desordem das massas. Do outro, milhes de pessoas invadem no mesmo instante os gabinetes corporativos e governamentais. So os braos de trs bilhes de sobreviventes que se organizam mundialmente atravs da Grande Rede e deliberam regras para regular a desordem esgotadora de pessoas e de natureza que perdurou por mais de cinco sculos.19

Big Bangs sociaisAo olhar pras artimanhas no Mundo, O homem e as mquinas que ele faz, Com as lentes do meu neurar fecundo Percebo a humanidade mais e mais. Conecto-me agora s ciberredes, Desafiando espaos sociais, Vejo que o virtual unir dos homens, Democracia milenar nos traz. Mas pra que direta democracia, Se a representativa nos apraz? Questiona quem o Mundo gerencia. Mas a maioria acorda tenaz E os microcosmos de cada homem Explodem em Big Bangs sociais.

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Faxina em BrasliaQuevenhaademocraciadiretaeletrnicaeopovo,viaInternet,Celularou TVDigital,assineleiscertificadasdigitalmenteeasrealizepelaforadasaes articuladas no mundo virtual para o real. Hora de acordar, Franz! Daqui a pouco os turistas chegam. Me sacode o faxineiro Z. Sinto meu corpo todo tremer, mas no devido sacudidela. Ah! Se o Z soubesse por onde minha conscincia vagava... Obrigado, Z. J j iremos. Na penumbra, me espreguio e sento no carpete da laje. Gosto de dormir ali, naquele cho da borda superior da concha da cmara dos deputados. Observo l embaixo o centro iluminado com suas poltronas em semicrculo e a cortina atrs da mesa como uma cachoeira do teto da concha at o cho. A cortina, antes com vinte e nove retngulos inteis, agora um grande painel, onde milhes de pequenos rostos se revezam, apresentando cada brasileiro que delibera naquele momento. Tal qual uma arena de gladiadores romanos, agora a batalha na plenria se d entre os hologramas projetados por discos pretos em cada poltrona, assistidos por uma plateia invisvel espalhada pelo mundo afora. Z, que tal comearmos a espanar a poeira da mesa da presidncia da plenria? Acho bom, Franz. De l podemos observar o que mais devemos retocar. Daqui se v que a bandeira do Brasil no carpete inclinado em frente mesa precisa de realce. Pode deixar comigo. minha tarefa preferida. Enquanto descamos, pensava: mesmo aposentado como engenheiro, aquela sim era uma prazerosa ocupao, antes que eu partisse desta vida. Gostava de apreciar o dinamismo com que o povo participava diretamente das21

decises polticas. Sabia que a nova democracia que se alastrava pelo mundo neste ano de 2068 no dependia destes prdios, destas arenas. Este espao era apenas mais um entre milhares de espaos simblicos do planeta, que serviam apenas para serem apreciados de vez em quando por um turista ou cidado. Para completar, s restavam serem simbolizadas nova ordem as sedes do Governo Chins, da Unio Europia e da ONU. Esta conquista no foi fcil. Durante dcadas, as pessoas de todo o mundo se decepcionavam com a farsa que era a democracia representativa. A pequena elite, dona de todos os poderes, manipulava as massas para convenc-la de que tudo era melhor assim. No entanto, o ar irrespirvel, o calor insuportvel, as tempestades dirias, a fome e a misria universalizando-se, os alimentos e as guas potveis escassos provocados pelas corporaes globais contradiziam e falavam mais alto. Na segunda dcada do milnio, ativistas digitais tentaram popularizar sistemas de votao direta com validao jurdica baseada em assinatura digital. Movimentos partidaristas se opuseram e criminalizaram cada vez mais os abaixo-assinados digitais, alegando serem coercitivos, de curral eleitoral ou que atentam contra a representatividade parlamentar. A elite detentora dos polticos, receosa de perder o poder de lobbies, coopta um a um as cabeas do movimento de software livre para o voto direto universal. Ela oferece a eles empregos, pagando o dobro e at o qudruplo do valor de mercado e boa parte deles cedem. Uma parcela dos comprados passa a integrar equipes que desenvolvem um software similar, mas que garante um discreto poder de manipulao s minorias elitistas. Assim, a organizao dos coletivos numa rede de democracia direta eletrnica, por se basear em tecnologias web e ferramentas das prprias grandes corporaes (GoogleTM, Orkut), foi sabotada pelas mesmas, atravs da descoberta dos cabeas dos movimentos e paulatina cooptao dos mesmos com ofertas de trabalho irrecusveis ou pelos seus desaparecimentos inexplicveis. Os poucos que resistiram no deram conta de manter os coletivos organizados, e o imprio da desorganizao coletiva, resistncia frgil e aceitao pacfica foi mantido.22

No Brasil, num dia de final de Copa do Mundo, em 2016, os parlamentares votam em ltimo turno a emenda constitucional que modifica o Pargrafo nico do Artigo Primeiro da Constituio Federal, suprimindo a expresso ou diretamente, bem como revogando o inciso III do Artigo 14 da mesma Constituio. Como nos demais pases, estava criminalizada a democracia direta no Brasil. Mesmo assim, em todas as partes do mundo, o povo se organizou mundialmente e comeou a deliberar peties e abaixo-assinados que eram votados de forma contrria pelos representantes governamentais. Esta organizao se iniciou atravs da popularizao do comrcio eletrnico mundial. Isto porque tanto o comrcio, quanto as demais relaes foram asseguradas por diversas formas mais seguras e compatveis de assinatura contratual: certificados digitais, assinaturas biomtricas e genticas. fato que quem detm o poder da mdia, possui todo o poder que emana do povo. Contudo, o poder das elites comeou a decair porque, ao longo das dcadas, as mdias de massa, antes garantias de manipulaes ideolgicas, comearam a ser cada vez mais conduzidas pelo povo. Hoje cada pessoa , ao mesmo tempo, produtor e telespectador de contedos. Pessoas simples com interesses e conhecimentos afins produzem mundialmente mdias muito mais interessantes, do que qualquer grande corporao. Agora grupos se organizaram para clarear as contas pblicas e corporativas no formato da linguagem do povo, simuladores de decises apresentam os impactos de cada deciso poltica e econmica para o povo a curto, mdio e longo prazo e analisadores de ideias e discursos sintetizam ao povo o que lhe interessa. O resultado disto foi o choque entre os interesses de uma minoria privilegiada e o resto da humanidade. Quando o povo percebeu que os dinheiros sem ptria que especulam ao redor do mundo so os grandes responsveis pela irracionalidade dos empreendimentos humanos, quando viram que um dinheiro a quem no se pode atribuir um responsvel humano, mas que em forma de aes nas bolsas, a elite lhe direciona impessoalmente para a explorao mxima da Natureza e do homem, votaram mundialmente pela sua regulao. Quando a petio aprovada mundialmente para taxar e identificar pessoalmente23

os responsveis pelos investimentos chegou ao Congresso Nacional, os seus parlamentares rejeitaram. Isto se deu similarmente em quase todos os parlamentos do mundo. Definitivamente, verificou-se que a maioria dos parlamentares mais representante das elites, do que do povo que a elegeu. O povo, enfim, entendeu a lgica da lei do pelego: mais fcil comprar o poder que est na mo de poucos do que na mo de todos. Isto porque cada homem tem seu preo, e o que se vende nunca vale o quanto lhe pagam. Tambm, porque um milho para apenas um homem muito dinheiro, mas para multides e para as corporaes quase nada. E, finalmente, comprar as multides to ruim para os negcios quanto lhes devolver os direitos que reivindicam. As corporaes multinacionais e seus parlamentares estavam indiferentes s deliberaes diretas do povo, at que as multides articularam virtualmente aes simultneas que afetaram seus negcios. Quando a Sheller Oil insistia em produzir derivados de petrleo agredindo a natureza, o povo deixava de comprar sua gasolina e solventes at que sua produo fosse sustentvel. A Sunsing deixou de produzir eletrnicos com mo-de-obra escrava quando a maioria do povo parou de consumir seus multicomputadores (micro e nano computadores em roupas, utenslios domsticos, acessrios e demais dispositivos de comunicao e multimdia). Greves organizadas mundialmente garantiram a reduo da jornada de trabalho para seis horas, mais vagas de emprego e melhoria de salrios. Atravs de um abaixo-assinado mundial na Internet, cada povo aprovou a lei da soberania popular eletrnica. Atravs dela, uma lei assinada pela maioria de um povo no precisaria ser votada nas tradicionais casas legislativas. A rejeio imediata dos parlamentares lei ps em xeque a democracia representativa e provocou o cerco s sedes do poder em todo o planeta. Como agora eu no estava mais presente em Nova York, tal qual minutos atrs, me contentava em acompanhar o desenrolar do cerco a Manhattan, a partir da TV projetada na lente de contato do meu olho direito. Na lente do olho esquerdo, comandava por voz o acompanhamento das principais questes que estavam sendo votadas, bem como as fiscalizaes de contas em andamento.24

Z, nada de competies hoje. Ok? Meu reumatismo est latejando. O Z ria s gaitadas. Enquanto eu direcionava meu aspirador inico em cada parte da mesa da presidncia da plenria, meu parceiro fazia o mesmo em cada uma de suas poltronas. No s poeiras, mas quaisquer manchas eram ionizadas e sugadas pelos aspiradores. Quando cansava, parava para observar e participar das deliberaes. Estava em votao uma proposta de Reforma Tributria. O imposto de renda dever ser proporcional, de tal forma que quanto maiores os rendimentos individuais, maior a porcentagem de imposto sobre a renda e, para quem ganha abaixo dos direitos fundamentais, iseno e recebimento de renda complementar. A proposta no precisou ser votada pela Cmara Virtual de Deputados. Ela fora diretamente aprovada por 65% dos eleitores brasileiros e virou lei. Em seguida, as propostas de regulamentao desta lei foram chegando: o limite do imposto sobre a renda ser de 30%, 40%, 50%, 60% ou 70%? Eu acionei meu simulador de impactos na minha lente direita. 30% no reduziria muito a concentrao de renda no Brasil. 60% e 70% apontavam para baixo poder de compra e investimentos que fariam o pas reduzir o crescimento. Na tela da lente esquerda, votei em 40%, mas o limite de 50% ganhou diretamente. Z, hora de aspirar a plenria! Certo. Eu limpo a esquerda e voc a direita, ok? As propostas de faixas de tributao foram apresentadas: 50 faixas de tributao de R$ 1.000,00 at R$ 50.000,00, tantos por cento quantos sejam os mil reais recebidos por ms pelo cidado; 25 faixas de tributao de R$ 1.000,00 at R$ 100.000,00, 0,25% quantos sejam os mil reais recebidos por ms ou 100 faixas de tributao de R$ 1.000,00 at R$ 100.000,00, meio por cento quantos sejam os mil reais recebidos por ms. Parei a aspirao e, aps conferir os simuladores, votei na primeira opo. Como o resultado estava demorando, voltei faxina. Aps o tempo limite de meia hora, apuraram-se os votos e apenas 47% haviam votado. Agora sim os hologramas virtuais comearam a se digladiar com palavras nas poltronas da cmara.25

Terminamos a limpeza e os turistas comeavam a entrar na plenria. Aps 20 minutos, os deputados votaram e a proposta de 25 faixas de tributao ganhou. Dez minutos depois, em meio votao da mesma matria no Senado, a votao direta atingiu 51% de votantes e, destes, 67% aprovaram a proposta de 50 faixas de tributao. Esta vencedora, fez encerrar-se definitivamente a votao em todas as instncias deliberativas. As propostas eram apresentadas diretamente pelo povo. Pensava enquanto bebia gua com o Z. Eu mesmo submeti no parlamento do bairro onde moro uma proposta de lei que garantia equipamentos de ltima gerao aos faxineiros de rgos pblicos. Minha proposta foi aprovada e passou a ser apreciada pela Cmara Virtual de Vereadores. L, outra proposta similar de outro bairro foi unificada minha. Uma terceira proposta similar, mas que requeria os equipamentos apenas para rgos municipais, foi votada, aprovada e encerrada. Minha proposta no atingiu o interesse da maioria das pessoas de minha cidade e no foi aprovada diretamente no tempo legal. Com isto, os vereadores receberam o poder de decidir a questo. A proposta foi aprovada por eles. Agora, a mesma estava sendo apreciada em nvel estadual. Ela nem aparece na lista das mais interessantes e, por isto, tenho certeza que no ser votada diretamente, mas a partir de representantes eleitos. bom que seja assim mesmo: as questes mais relevantes sendo decididas diretamente pelo povo e as menos importantes sendo delegadas aos representantes. Representantes de verdade, relembro, enquanto observo-os minha frente. Os hologramas apenas apresentavam o brasileiro da vez que estava eleito deputado naquele momento, que tinha a confiana de quem o elegeu. De vez em quando, o rodap de algum holograma fica avermelhando, ao mostrar uma numerao diminuindo (eleitores retirando votos do poltico), at que outro avatar, de verde numerao elevada, substitui em tempo real o que perdeu votos de representatividade. As candidaturas e eleies ocorrem o tempo todo, e o voto sempre pode ser retirado de um candidato e atribudo a outro mais comprometido com o eleitor. Isto garante a representao real do povo. At amanh, Z. At, Fran. Da prxima vez aspiraremos o Senado.26

Enquanto caminhava por baixo da rampa do planalto em meio ao sol escaldante, relembrava: desde que a democracia direta eletrnica comeou no Brasil, muitas coisas mudaram. O povo aprovou a auditoria da dvida externa. Em seis meses, ficou comprovado que a dvida j fora paga com sobras. Decretou-se moratria. Os investidores ameaaram retirar o dinheiro do Brasil, mas, como nossos negcios so seguros, se aquietaram. A auditoria das terras tambm foi aprovada e culminou com a Reforma Agrria esperada h sculos. O povo tambm aprovou diretamente a retomada das naes indgenas Waimiri Atroari e Raposa Terra do Sol. Elas haviam sido alardeadas como independentes do Brasil pelas corporaes internacionais camufladas de ONGs para que as mesmas explorassem com exclusividade as riquezas amaznicas. Outras deliberaes estavam em andamento: a auditoria e reestatizao das outroras estatais que foram privatizadas com perdas para o povo brasileiro; a revitalizao de todo o rio So Francisco e a democratizao do acesso sua gua. A proposta mais badalada a de refazer a transposio do rio So Francisco para que a gua irrigue o semirido nordestino e no as reas j ricas s quais fora originalmente destinada. Mas como a questo muito tcnica, o povo tem participado pouco e ela tem sido votada pelos parlamentares mesmo. Outras propostas de pouca repercusso chegaram at Cmara Virtual Federal por aprovao dos representantes de municpios e estados e foram decididas pelos deputados e senadores mesmo: o envio de um brasileiro a Marte foi aprovado, mas a estranha proposta de reforma arquitetnica da concha plenria do Senado Federal foi rejeitada. Seus propositores argumentavam que, se agora realmente todo o poder emanava do povo, a concha do Senado Federal, hoje voltada para baixo, representando os estados federados, deveria ser reformada para tambm ser voltada para cima, da mesma forma que a Cmara que representa o povo. Os brasileiros, a maioria indiferente proposta, a rejeitaram, porque entenderam ser a mesma irrelevante. O poder dos estados continuaria simbolizado, porque este, igualmente do povo emanado, manteria a tradio da federao de estados e a beleza do carto postal. Mal chego em casa, uma angstia invade meu peito. Aliso meu cachorro, tomo um banho e me deito. Meus sentimentos me atraem para algo ruim que se esboa. No era Manhattam. Minha mente era atrada para um salo nobre27

de um hotel em uma ilha particular no Pacfico. Meu corpo tremula e eu no mais estou preso a ele.

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Conspirao ZHAARP No deixaremos que esta anarquia continue assolando o mundo. Diz um bigodudo senhor no meio da imensa mesa de sessenta lugares ocupados. De hoje no passar, senhor Karl Mittali. Apresento-lhes o plano que nossas corporaes devero seguir. Todos olham ansiosos para o grande holograma que surgiu no alto da mesa. Walton Lee Rockefeller prossegue: Vejam esta constelao de satlites ao redor da Terra. A maioria deles est equipada com canhes Zhaarp que, disparados em direo a todas as cidades da Terra, inutilizaro todos os equipamentos eletrnicos. Ser o fim da Internet e com ela todas as mobilizaes que atentam contra a liberdade dos empreendimentos. Mas, sem Internet, como ficaro nossos negcios? Se voltarmos era do papel, dos contratos atravs de correios, nossos lucros cessaro. Diz um gordo senhor. Muito simples, senhor Carl Johnson. A partir de amanh passar a funcionar a mundial rede fotnica, a nica imune aos pulsos Zhaarp. Todas as nossas operaes passaro a utiliz-la. Diferente da Internet baseada em eletrnicos e totalmente descontrolada, a rede fotnica (que utiliza somente raios luminosos) ser centralizada e apenas os contedos que nos interessam trafegaro por ela. Devemos firmar agora o compromisso de que nossas Indstrias nunca mais produziro eletrnicos. Tiremos assim a ferramenta com que os baderneiros se mobilizam e retomaremos o controle do mundo, a tranquilidade dos nossos negcios. Todos aplaudem exultantes. Pequenos hologramas em frente de cada magnata coletam suas assinaturas biomtricas. Cada corporao recebe uma parte a ser cumprida no plano. O grande holograma central se transforma em um imenso cronmetro em contagem regressiva, mostrando o tempo inicial de seis horas, seis minutos e seis segundos.29

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Exploses Fora! Fora! Fora! Traidor! Fora! Gritava a multido ensandecida empurrando o careca senhor quarento pelos corredores da Escola de Tecnologia. O burburinho se arrastava em direo ao Grande Auditrio. Acha que vai poder se explicar?! Gritava um professor corpulento em meio aos acotovelamentos. A alunada pendurada nas escadas e nos parapeitos do primeiro andar gritava e atirava bolas de papis, cestos de lixo e pratos sujos de merenda no assustado e plido diretor que passava embaixo. Vamos, Franz! Me chamava Helenice. Este ano de 1998 ser um marco em nossa Escola. Hoje conhecero a nossa fora estudantil. Agora a hora da verdade. Assenti com a cabea. Eu e Helenice engrossvamos a multido. Do meio da balbrdia, eu observava tudo, curioso e espantado. Mais surpreso ainda pela certeza de j me lembrar daquilo tudo antes que realmente acontecesse. Como eu poderia me lembrar do que ainda no havia acontecido? Esta foi mais uma razo pela qual resolvi escrever tudo o que acontecesse. Seria uma forma de procurar entender o que estava se passando comigo e com o mundo. *** No dia em que tudo comeou, acordei no meio do nada. Nada mesmo, nem em cima nem embaixo de nada, nem eu mesmo. Estrelas em breu se fizeram perceber lentamente. Quando apurei meus olhos, percebi que eles enxergavam em todas as direes ao mesmo tempo. Ao longe, uma esfera azul-esverdeada saa da penumbra com que encobria um gigantesco Sol amarelo. Foi a que percebi onde estava e faltou-me flego. Talvez tenha sido psicolgico, porque depois senti surpreso, que no precisava respirar. No sentia o ar nem o vcuo, nem frio nem calor. Somente medo. Minha vontade era a de me recolher quele plido ponto esverdeado que se afastava rapidamente. Como se meu desejo fosse um propulsor, ele me atirou naquela estranha atmosfera, tal qual um blido que no queima. Na aproximao, percebi uma gigantesca esfera prateada cheia de luzes que cru31

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zava aqueles verdes cus no sentido contrrio, deixando um rastro de vapor em sua trajetria. Em mergulho, via uma superfcie acidentada serpenteada por rios, mares e montanhas. Em seguida, distinguia florestas e, em meio a elas, clareiras cheias de luzes e minsculas formas retas. Distinguindo uma cidade, pouso espantado, mas acolhido, prximo a uma estranha construo. Um humanoide de compleio esbelta e pele acinzentada se aproxima do prdio. O estranho se equilibra em cima de uma base metlica plana que flutua, reduzindo tanto a velocidade quanto a altitude em direo a onde eu estava. O crepsculo extingue-se progressivamente desfraldando um espetculo de estrelas no cu daquele planeta, num belo anoitecer com trs luas ascendendo no rubro horizonte. O planador aterriza num magnfico jardim de rosas multicores fluorescentes. Seu passageiro salta daquele objeto que mais parecia um disco de um metro de dimetro e poucos centmetros de espessura, repleto de pequenas luzes coloridas. Aquilo devia servir para transporte individual rpido. Digo Ol!, mas o humanoide caminha sem dar sinais de perceber a minha presena.Segueapassossncronosatumcilindroenergticoesverdeado,emque raios luminosos percorrem seu corpo e uma voz robtica exclama, numa lngua que desconheo, mas cuja ideia me chega mente de alguma forma: ACESSO PERMITIDO! BEM-VINDO AO LAR, SENHOR SMELSON*. A parede cinzenta sua frente assume a aparncia de um crculo azul metlico e o ruivo e alto senhor atravessa-o como se o obstculo no existisse. Atravesso-a tambm e ningum me percebe. Sada com uma boa noite o trio familiar que o aguardava na confortvel sala. uma sala de estar escurecida, onde se divisam silhuetas de pessoas e de objetos. Veja, pai. Diz um garoto apontando para uma bola prateada se movendo entre eles no simulado espao estrelado daquela sala. A Cosmos II acabou de decolar rumo zona segura de experimentao.33

Sim Frewly*. velocidade da luz, a nave dever chegar l em dez minutos. Toro para que tudo d certo. Diz uma senhora ao acionar o artefato luminoso que se posiciona no centro do grupo em forma de mesa. Emergem de seu interior cilindros transparentes que provocam uma inundao aromtica e deliciosa em toda a sala. Os hologramas do espao sideral somem aos poucos e uma luminosidade amarelada invade o ambiente. O Jantar de hoje um especial estrfio1, produzido no planeta Astart* do sistema estelar Relim*. Diz a elegante senhora. Parabnsquerida!Vocrealmenteadivinhouoquensqueramoscomer. Obrigada, meu bem. Meu instinto maternal sempre acerta. Gaba-se. Gentileza sua com a mame, pai. Mesmo que o instinto dela falhasse, ela ainda poderia contar com a comunicao psquica direta. Todos riem da observao de Frewly. Menos eu, incgnito e meio por fora. Ah! J ia me esquecendo. Est na hora do indito show ao vivo dos Rmilis*. Vamos participar antes do grande momento da Cosmos II. Fala o patriarca enquanto aciona psiquicamente a projeo hologrfica que faz surgir ao redor do grupo os artistas de um esdrxulo espetculo de dana, som e efeitos que se realizava a anos-luz de distncia. Ainda bem que nosso comunicador taquinico est funcionando devidamente. S assim podemos participar ao vivo de todos os programas da galxia. Os trs juntam-se aos avatares hologrficos e todos danam e cantam alegremente. Olham-se ternamente, riem, pulam e brincam.

1. Nota do Franz Algumas palavras me chegaram incompreensveis mente. Talvez porque

a comunicao se d por ideias e no por fonemas, e como eu no possuo ideias correspondentes a estas palavras, elas no equivalem a nenhum som que conheo. Assim, tomei a liberdade em substituir estes sons esquisitos por palavras que de alguma forma se paream com eles. 34

Chegou o momento! Diz o pai quando percebe que o ambiente mudava. Novamente estvamos inundados de espao sideral. A prateada esfera diminui sua velocidade relativa s estrelas, planetas e aglomerados estrelares que formavam o fundo da cena. Ela estabiliza na rbita de um planeta terroso e seu satlite, ambos sem atmosfera e cheios de crateras. Quatro quartos de esfera oca se desprendem ordenadamente e param equidistantes da nova esfera agora a descoberto. Os trs kelpscianos cinzentos se abraam e observam apreensivos. Conforme as energias envolvidas no experimento, diz Smelson, a zona segura possibilitar que, em caso de algo sair errado, nem mesmo as areias do Planeta Drynner* sero sopradas. Os quartos de esfera inundam o espao entre elas com uma azulada luz. A esfera no centro comea a ficar transparente. Transitando entre a translucidez e a opacidade, comea a encolher aceleradamente at sumir. De repente, os quartos de esfera se amassam em direo ao ncleo como folhas de papel alumnio e a face do planeta Drynner, voltada para o experimento, se esfacela progressivamente. A famlia se abraa mais forte. Sabem que alguma coisa saiu errada. Os pedaos montanhosos do planeta voam sugados em direo ao invisvel, deixando mostra o luminoso ncleo de magma planetrio. Enquanto o moribundo planeta e sua lua so engolidos por aquele nada, a imagem aumenta como que dele se aproximasse. Esta imagem segue como uma sonda filmadora em meio aos novos asteroides igualmente sugados at que a mesma se apaga. A sala da famlia Kelpsiana retorna fria luz. Eu me desespero. Quero saber o que est acontecendo. Minha vontade lana-me de sbito na rbita daquele planeta. Vejo distante um disforme anel de luzes multicores que se expande aceleradamente, engolindo tudo ao seu caminho, com seu centro escuro, e vindo em minha direo. Olho para o planeta abaixo de mim. Inmeras famlias para um trgico destino. A mais distante das trs luas comea a se despedaar. Lano-me novamente em direo quela cidade, casa. Eles esto abraados, mas para minha surpresa parecem tranquilos, resignados. Depois no35

mais se abraam. Apenas se do as mos e fecham placidamente os olhos. O patriarca apenas diz: Nos reencontraremos em breve. Sinto que tudo muito rpido, mas talvez minha estressada acelerao mental me fizesse ver tudo em cmera lenta. Assisto seus rostos se deformarem, at sangue amarelo e ossos marrons serem expostos. A casa e seus objetos se deformam igualmente. As cidades, rios, florestas e montanhas se misturam num caos destruidor e eu fujo dali desesperadamente. Ainda volto meu olhar para a regio cataclsmica. Fico surpreso por ver que havia me distanciado tantos milnios-luz em to pouco tempo. Vejo estarrecido a imensa nebulosa com suas trs supernovas a serem lentamente devoradas por aquele buraco negro. Acordo ofegante, suado e assustado. Era muito real para ter sido apenas um pesadelo. Suspiro de alvio. O sol j vai alto e eu tenho aula e amigos que me esperam na Escola de Tecnologia.

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PoliticagensNo mesmo dia em que tive meu primeiro pesadelo realista num estranho espao-tempo, deslumbrei-me ao chegar Escola. Cartazes por todas as paredes: Grmio 96, vote chapa 3, Vote ELO, chapa 2 etc. Nunca tinha visto tal disputa por um simples grmio. As trs chapas de partidos polticos espalhavam material impresso de primeira qualidade. Quanto dinheiro investido ali? Dinheiro de alunos lisos? As outras duas chapas eram divulgadas apenas com folhas de caderno escritas mo ou xerox vagabunda. Concorrncia desleal. Destas duas, uma era dos alunos livres e a outra era de alunos porralcas que tiravam sarro de toda aquela politicagem. Moura e seus colegas livres, de cima do telhado sobre o grmio, fixavam um imenso cartaz. Um gigantesco 2 pintado de vermelho mo tomava toda a parede do segundo andar at o trreo. Estes caras so malucos. Conclu, encostado no alambrado azul da piscina, observando, junto com a colega Helenice, o fim daquele trabalho. O que que o Moura, um cara que s pensava em Astronomia e computadores, queria se metendo com esta perda de tempo? Ele deve ter suas razes que a nossa razo desconhece. Sugeriu Helenice, a morena garota cabocla que me encantava com as palavras tanto quanto com a beleza da pequena cicatriz em meia lua que trazia simetricamente na testa. Ol, grande Franz. Ouvi a grossa voz de Maurcio, enquanto meu ombro era tocado por sua pesada mo. Est vendo a baderna que estes desocupados esto fazendo? Pois , ainda bem que acaba hoje. Voc j votou? Pergunto, enquanto observo o Moura se aproximando. Eu l vou perder meu tempo com isto. Grmio coisa para quem no quer ovo com a vida, de quem no quer estudar. Gesticulava Maurcio, com seus corpulentos braos, enquanto eu observava uma cicatriz circundando o seu pulso direito como uma pulseira irregular. Ultimamente eu andava curioso com as marcas corporais das pessoas. Que histrias cada uma delas37

encerraria? Eu mesmo andava intrigado com a que eu possua. Nem minha me sabia explicar o que aqueles dois crculos concntricos foram parar a meio palmo acima de meu umbigo. Eu discordo de voc, Maurcio. Replica Moura, enquanto tirava a suada camiseta com a qual trabalhava. Aproveitei para observar as duas cicatrizes do dimetro de um lpis sobre o peito esquerdo espaadas uma polegada. verdade que temos observado nos ltimos gremistas uns diretores que s usam o Grmio para namorar, jogar War, RPG e conversa fora. Nenhuma ao em prol dos alunos. S sabem organizar calouradas. Mas, diante do sucateamento de nossa Escola, penso que utilizar o Grmio para pleitear novos laboratrios, livros e professores coisa para quem quer estudar, sim. De quem quer uma escola decente. Rapaz... Maurcio retoma. Temos que nos preocupar com nossas notas nas provas e s. Se eu no gosto da Escola como ela , me matriculo em outra e pronto. Outra pblica e gratuita como esta? Moura rebate. S se for em outro estado da Federao. Quem disse que eu me referi Escola Pblica? Quem teve condies para pagar cursinhos preparatrios para ser aprovado nesta escola, deve poder custear um curso particular completo. E o que far o aluno pobre que no tem como pagar? Hahaha, meu caro, Moura. Estes j so minoria. Que diferena faro? As escolas boas deveriam ser todas pagas mesmo, tal qual j acontece com as escolas primrias. Assim, teramos menos concorrncia no vestibular. E deixar pblico apenas o ensino superior, o fil mais caro, para onde s quem tem grana para ir pra cursinho consegue entrar. O pobre estuda no pssimo pblico bsico e se quiser se graduar, paga uma faculdade particular, e quem tem grana, faz o inverso. Meio injusto, no? Esta a lgica individualista que predomina em nosso tempo mesmo. Observa Helenice, enquanto o grupo, agora mais acalorado, fecha melhor o crculo sob o frondoso p de Jambo em frente piscina.38

CientiFO cheiro de cloro se mistura aos de grama pisada e das frituras que so preparadas na cantina mais alm. Eu gosto de ouvir aquela garota, apesar de ser avesso sua religiosidade. Ns preferimos que seja negado ao outro o direito de acesso ao saber que alcanamos para que possamos mais facilmente nos sentir maiores. Prossegue Helenice. Fazemos nossa superioridade atravs da inferiorizao do outro. Disse o bilogo Humberto Maturana que somos a nica espcie animal que se comporta assim: no basta ter o necessrio para viver, ns queremos acumular e negar ao outro o ter e o ser. Ele diz que no entendemos direito o Darwinismo. Minha cara Helenice... Responde Maurcio. Ento por que voc no experimenta ceder sua vaga na escola a algum que no teve acesso? Como voc ficar neste mundo onde s vemos cobra engolindo cobra para ter mais que o outro? Eu ceder minha vaga far diferena relevante? Se em vez disso eu me ajudar, concluindo meus estudos e trabalhando, procurar ajudar outras pessoas a terem uma boa escola tambm, a sim. Penso que a mudana tem que ser na forma como a maioria se comporta diante do outro. Tarefa difcil no mundo atual, j que ou nosso atesmo ou nossa religio predominante nos diz que eu s tenho uma vida e ao fim dela ou no h mais nada ou basta pedir perdo a Deus para garantir uma eternidade tranquila. Isto nos incentiva a achar que podemos fazer tudo que nos permita tirar o mximo de prazer e conforto da vida, independente se com isto fazemos sofrer nosso semelhante. E se aps esta vida ns nascermos novamente e tivermos que viver no mesmo mundo que ajudamos a flagelar com nosso egosmo competitivista? No creio nestes dogmas religiosos. Resolvo interferir. Nada comprova que alguma teoria sobre a nossa existncia ou no aps a morte esteja correta. Mas penso que independente disto, devemos conduzir nossas aes segundo a regra de ouro de Kant. Agir de forma que no faamos ao outro39

aquilo que no desejaramos que fizessem a ns mesmos. Penso que isto minimizaria a possibilidade de colhermos nesta vida mesmo o fruto de nossas aes danosas. Pois ento, amigo Franz. Responde calmamente Helenice. Vou deixar por um instante de lado a minha espiritualidade e utilizar apenas a lgica. A prova de que somos eternos seria a seguinte: mesmo do ponto de vista mais materialista, onde consideraramos a nossa existncia atual como resultado de uma combinao singular de partes materiais especficas, se o Universo eterno, existiro infinitas possibilidades destas combinaes j terem acontecido e de voltarem a acontecer. A maior prova de que aconteceu e que acontecer novamente aps a morte do corpo atual, de que somos eternos, a de que ns existimos hoje. E quem garante que nosso Universo seja eterno? Pergunto secamente. Ele teve um incio, mas Deus o criou para ser eterno. Responde Helenice. Ao que Maurcio retrucou: S porque somos finitos e mortais, somente entenderamos a Natureza se a mesma tiver tambm um nascimento e uma morte? A palavra morte me trouxe lembrana aquele esdrxulo pesadelo da noite anterior quando assisti a um buraco negro despedaar uma famlia, sua cidade e planetas. Em vez de requerer um Deus eterno que crie o Universo, no seria melhor supor que o prprio Universo sempre existiu e sempre existir? Sua navalha de Occan vlida, Maurcio. Reforo. mais aceitvel uma teoria com menos elementos a serem explicados. E eu prefiro a do Universo auto-suficiente com uma entidade apenas, o Universo, do que a criacionista com duas: Deus e o Universo. Ao que Moura responde: Eu prefiro Espinosa, que v Deus e o Universo como a mesma coisa. Afinal, quem ou o que seria Onipotente, Onisciente e Onipresente, atributos de Deus, seno o prprio Universo que possue todas as energias, contm todas as conscincias e est em toda parte?40

Entre filsofos e religiosos... Arrematou Maurcio. Eu prefiro os fsicos contemporneos explicando o Universo. A Natureza o que . o que mostram nossos experimentos: bela, misteriosa e inconsciente. Esta nossa cincia... Respondo. Ela est to perdida quanto a Astronomia Medieval. As nossas duas Fsicas totalmente incompatveis entre si, a Relatividade e a Quntica, nos fazem voltar a crise similar entre os epiciclos de Ptolomeu e as leis de Kepler como modelos para tentar explicar os movimentos dos planetas no cu. Cada uma baseada em um modelo matematicamente perfeito, mas diferentes. Em certo grau de preciso igualmente adequadas para prever e explicar o que se via nos cus, at que telescpios mais precisos mostraram Coprnico, Kepler e Newton mais adequados. Hoje, a Relatividade explica os objetos macios, mas falha em nvel subatmico. J a quntica se sustenta sem considerar massa nenhuma nas partculas. Se os experimentos no encontrarem o bson de Higgs que incluiria a massa, a materialidade necessria no modelo, a Fsica Quntica estar perdida. E o pior que a crise cientfica de hoje no se resolver com melhoria de preciso. Pior ainda que esta indeterminao, similar Idade Mdia, abre espao para todo tipo de especulaes e charlatanices msticas. verdade, Franz. Refora Maurcio. Tomara que saiamos desta indeterminao quntica e voltemos capacidade em prever precisamente os fenmenos. Mas como conseguiremos entender o microcosmo se ns mesmos e todos os instrumentos utilizados para perscrut-lo so macrocsmicos? Bem amigos, levarei esta pergunta na cabea at nossa prxima conversa. Diz Moura. Vou agora tomar um belo banho e trocar de roupa. Afinal, aquela entrevista para as duas vagas de professor de Fsica ainda est de p, n, Maurcio? Est sim. O professor Omar nos aguarda no Colgio Independncia daqui a uma hora. Voc ir tambm, Franz? Sim. Sempre sonhei ensinar Fsica. Alm disto, estou curioso para conhecer este professor de quem voc fala to bem. Com isto os amigos se despedem e cada um toma seu rumo. Maurcio resolve ir na frente e nos encontrar no colgio. Eu, com fome, s pensava em41

atravessar a rua e, na padaria em frente, comer umas esfirras com guaran. Eu nem imaginava o que estava para acontecer comigo. Caminho, saindo da Escola. Quando atravesso a portaria do aluno, tenho uma sbita lembrana de minha nova paquera cruzando comigo no ptio logo frente e me dando um beijo. Mas lembrana de qu, se eu nunca a beijei? Tambm no seria um dj vu, posto que eu no a via em nenhum lugar naquele momento. Prossigo caminhando. Para minha surpresa, vejo Cristina subindo as escadarias e me olhando nos olhos enquanto caminhamos um em direo ao outro. Sem que eu lhe insinuasse nenhuma ao de beij-la, ela me abraa forte, me d um profundo beijo de lngua, larga-me e se afasta com olhos melanclicos para dentro da Escola. Meio atordoado, sigo em frente com minha fome. Comeo a descer as escadarias e outro cintilo de memria me sobrevm com um susto de um nibus freando gritantemente e me jogando longe com seu parachoque violento. Quando volto a real, meus ps j esto no meio-fio enquanto o mesmo nibus j voa em minha direo.

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PrecognioParo de sbito ao meio-fio da calada na ponta dos ps e o mesmo nibus da lembrana me tira um fino. Trmulo, suspiro de alvio. Meio sem fome, devoro enfim as esfirras. Penso em como seria fisicamente possvel que imagens futuras me chegassem mente. Impossvel! Imagens precisamente iguais? Isto contraria todo o princpio da causalidade cientfica e desafia a razo. Isto seria precognio? Espcie de dom proftico? S em pensar em palavras msticas, meu ceticismo me reprova horrorizado. Contudo aconteceu. Mas foi mera experincia pessoal. Somente tem valor para mim mesmo. Nem pensar compartilhar isto. No possvel demonstrar para terceiros e muito menos reproduzir cientificamente. Enquanto apanho um nibus, agora menos ameaador, fico remoendo uma explicao racional. Aps vagar quase todo o percurso, finalmente uma ideia me surge: segundo a Teoria da Relatividade, somente para algo que se mova acima da velocidade da luz possvel viajar ao passado. Ora, mas est prevista teoricamente a existncia de ao menos um tipo de partcula que se comportaria assim: o tquion. Ser que nosso crebro emite e capta ondas taquinicas e por isto minha mente de agora, em ressonncia com minha mente futura, consegue captar os tquions que ela emitiu no futuro para o passado? Seria por isto que me lembro do futuro? Deso do nibus, caminho at o colgio Independncia e no laboratrio de Fsica encontro meus amigos. Maurcio me apresenta o professor Omar. A proposta interessante, mas no aceito, por enquanto. Moura e Maurcio acertam lecionar a partir da prxima semana. Tudo certo ento. Diz o professor. Maurcio me contou que vocs gostam de Astronomia. Sim. Respondo. Tenho um telescpio em casa e observo solitariamente o cu h alguns anos. Eu tambm. Diz Moura. Costumo ir de vez em quando ao Observatrio onde meu primo trabalha.43

Que tal todos ns fazermos juntos as observaes e fotografias da conjuno de Vnus, Saturno e Lua no prximo sbado final da tarde? Excelente convite. Diz Moura. Estarei l. Ento vou dizer o endereo. Fica na... Espere, professor! Interrompo-o aps um novo lampejo de memria. Fica na rua do trilho do trem que cruza a Avenida Jos Bastos, em frente a um grande p de castanholas, numa casa amarela de grades de ferro vermelhas, onde dentro h um Opala azul sendo consertado? Exatamente! Responde pasmo o professor. O encontro ser na casa dos meus pais. Mas no me lembro de ter dito a ningum onde meus pais moram. Como voc sabe, Franz? Nem eu que conheo o Omar h tempos e nunca havia ido casa dos pais dele no posso saber onde fica, ainda mais voc que o conheceu apenas agora. No sei como, mas lembro que j estive l. H uma escada de ferro preta em espiral do lado esquerdo do Opala, onde subiremos com os equipamentos at a laje da casa. L faremos as observaes. O professor Omar nos deixar sozinhos boa parte do tempo. Realmente, confesso que terei dificuldades em passar o tempo todo com vocs. Farei as astrofotografias l, porque ser no dia do aniversrio de casamento de meus pais e quero estar prximo deles. Mas no h nenhuma festa programada, assim, penso que ficarei com vocs a maior parte do tempo. Nos encontraremos l ento. Diz Moura. Eu tenho que ir agora. Aproveito e vou com voc. Pegamos o mesmo nibus. Os quatro apertam as mos. Eu e Moura caminhamos em direo ao ponto de nibus. Teve uma coisa que lembrei, mas achei to absurdo e constrangedor que no falei na frente do professor. Recomeo. Lembro que ao fim da44

tarde ele no consegue mais nem subir as escadinhas. Dever ter bebido muito e nos pedir para descer os equipamentos. Cara, que fenmeno esse que aconteceu com voc? No sei, Moura. Hoje a terceira vez que me acontece. Hoje escapei de morrer graas a isto. H tempos que ando tendo sonhos esquisitos. Outro dia, por exemplo, sonhei que em 2002 o rejeitado metalrgico ser presidente do Brasil! J dentro do nibus, aps contar alguns casos anteriores e falar sobre minha hiptese dos tquions, concluo: um tipo de fenmeno muito pessoal. Se eu no encontrar alguma forma de controlar e reproduzir isto, prefiro no falar mais sobre o assunto. O Moura respeitou meu ceticismo e mudou imediatamente de assunto at que ele desceu no seu ponto. Logo depois eu tambm desci do nibus. Bem mais tarde, deito-me na cama. O despertador vermelho marca 23:57. Ao relaxar para dormir, sinto meu corpo vibrar. De olhos fechados, sei que as palmas das minhas mos tocam o colcho, mas ao mesmo tempo sinto que minhas mos esto abertas para cima. Minhas costas sentem a firmeza da cama, porm tento equilibrar meu corpo que cai lentamente para um lado e outro como se o colcho no o barrasse. Depois a escurido profunda, o silncio absoluto. Quando abro os olhos, acordo dentro de uma tenda semiesfrica transparente. Ainda deitado, vago os olhos entre os grandes parafusos esverdeados de oxidao ou sujos e as placas transparentes que eles mantm unidos para formar aquele meu iglu. Levanto-me, acoplo meu capacete, ligo o gerador de oxignio e saio da pequena redoma. Sento-me ao lado de fora, no velho bloco de concreto e cobre. A madrugada est quente e o cu nublado. Observo o entorno cercado de runas. Antes de procurar com os visores infravermelhos qual seria o rumo a tomar hoje, leio no bloco as enigmticas palavras de cabea para baixo no cobre: PATATI SAR. s vezes, antes de dormir, gosto de viajar na imaginao do porqu e quem escreveu aquilo. Por pensar nisto, estranho o45

sonho que tive: o ar era transparente, eu e as pessoas no andvamos dentro de escafandros, as construes eram de alvenaria e no estavam destrudas. Devia ser um sonho bom. Hora de voltar realidade. Terei sorte se encontrar alguma coisa para comer hoje. Se ao menos eu encontrasse o lendrio abrigo subterrneo das corporaes Rockefeller... De repente, vejo o embaado cu clarear estranhamente bem frente. Um crculo de luminosidade cresce de forma acelerada. Ser que depois de todos estes anos, as pessoas de Gliese resolveram visitar seu abandonado planeta de origem? Vejo um descomunal bojo esfrico aterrisar a alguns quilmetros de mim. Corro ansioso em sua direo.

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Sobreviventes e viajantesCom pssima visibilidade, aciono com dificuldade o dispositivo de viso noturna do meu surrado capacete. Vejo os contornos acidentados: vales de rios e canais secos alm de montes de runas urbanas a serem ainda transpostos para chegar ao misterioso objeto. Pelo sensor infravermelho, vejo que no sou o nico a correr naquela direo. Mas no muitos, somos poucos os que sobrevivem na regio. Com meu binculo sensor, vejo distante muitos destroos ardentes abaixo do bojo ileso. O ar cheira a lixo, ao e concreto queimados. Ofegante de tanto correr, vejo a parte da esfera que toca o solo ainda muito distante, mas acima de mim a sua curva metlica se perde num horizonte vertical. Se eu fosse um primitivo, acharia que a prpria Lua havia cado na Terra. Espaadas centenas de metros um do outro, meus amigos param ante a esfera a distncias similares um do outro, formando um grande crculo e observam. Saem de dentro da esfera, como se as suas paredes no fossem slidas, vrios humanoides planando sobre discos metlicos. Um deles voa em minha direo. Fico esttico, entre o medo e a curiosidade. Tem a aparncia humana, roupas brancas coladas ao atltico corpo, mas pelo rosto vejo que possui a pele acinzentada. um pouco maior que eu. Tenho a impresso de j t-lo visto alguma vez. Talvez num sonho. Ele para a trs metros de mim, mostra a palma da mo e me fala numa lngua que desconheo, mas que de alguma forma a ideia me chega mente: Ol, Humano. Sou Atensia. Estejamos em paz. Ol! Respondo, trmulo e ofegante. Paz tambm. Chamo-me John Calderas. Mas quem so vocs e o que fazem aqui na Terra? John, somos cientistas. Temos observado como seus planetas esto sendo devastados e apenas uma minoria de humanos vivem num meio adequado evoluo. A vossa autoextino ser inevitvel. Ajude-nos a ajud-los.47

Por que vocs se interessam por ns? Conhea-nos e voc entender. Sei que voc lembrar. Fico esttico, olhando nos cinzentos olhos daquele ser. Venha conosco. No tenha medo. O medo o filho do desconhecido. Conhea-nos. Sobreviver abandonado na velha Terra aps seu completo exaurimento tem sido muito rduo. Medito. Mas entre o medo e uma possibilidade melhor... Esta alternativa se soma minha curiosidade. Minha intuio impelida por cintilos de memria e eu, finalmente, aceito. Com um aperto de mos ela me leva at o disco prateado. Mergulhamos velozes na parede da imensa Lua metlica. Atensia pousa no centro de uma vasta sala iluminada. No vazio daquele lugar, sou deixado sozinho. Confiro a qualidade do ar e retiro o capacete. Meu corpo comea a flutuar e gira at parar na horizontal. Deitado no ar, minhas plpebras pesam, meu corpo vibra como nunca e eu sinto crescer e entrar numa escurido total. Quando abro os olhos, flutuo sem conseguir ver meu prprio corpo. Observo, logo abaixo de mim, no topo de um edifcio, um humanoide com olhar vagando na escurido do cu. Suas feies so familiares. O nome Smelson vem minha mente. Posso ouvir seus pensamentos.

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Experimento novamenteNem mesmo a eternizao havia nos afastado o medo da morte. Pensa Vox Smelson, enquanto fitava no cu o nico ponto luminoso j tocando o horizonte. A nfima nebulosa estrelar acaba de se pr com suas trs supernovas a serem engolidas por um buraco negro. Elas me parecem familiares. Ele observa agora somente o lmpido e negro cu nu de estrelas. De que nos adianta viver bilhes de anos se ningum sabe se sobreviveremos ao colapso do Universo? Smelson aciona mentalmente suas lentes captadoras de radiao, fazendo uma membrana escura cobrir completamente seus olhos cinzentos. Esta a fronteira final... Diz. Alm destas paredes de fogo da radiao csmica de fundo, haveria outros universos para onde pudssemos escapar? Ningum sabe. Nossos clculos indicam precisarmos de energias inacumulveis para enviar uma nica conscincia em frequncia hiperluz para alm das bordas tetradimensionais do nosso universo. A membrana negra se recolhe. Os olhos cinzentos agora apreciam o alvorecer. Uma estrela binria desponta no rubro horizonte do planeta Icestar, prenunciando mais um ensolarado dia em meio s nuvens esparsas. Mas aquele no seria um dia qualquer. Inmeros carros voadores cruzam os cus de Cosmpolis, pondo em agitao a cidade h pouco adormecida. Ao redor da capital do sistema estrelar Starfire se desfraldam verdes florestas, rios e montanhas que abrigam, artificialmente, a mais diversificada fauna e flora da Galxia Kelps. No extremo norte da cidade, em uma enorme plancie cercada de exticas construes, uma cena se delineia: no centro do grande campo, a maior espaonave j construda naquele planeta, at ento. uma gigantesca esfera, talvez a mesma de Atensia. Na enevoada Terra meus precrios visores no haviam permitido apreciar a beleza daquele artefato. Mas naquela lmpida paisagem, observava em detalhes a imensa Lua metlica.49

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Em minha mente, as palavras-ideias de Smelson chegavam claras. A misso era bem objetiva: reduzir espao-temporalmente a Cosmos III, de modo a permitir experimentar a teoria da existncia de minsculos Universos na composio das menores partculas de matria conhecida. Uma vez confirmado o fenmeno, a tripulao deveria localizar conscincias, eterniz-las e verificar se as mesmas sobreviveriam ou no ao colapso de seus pequenos Cosmos. Esta seria a chave para a eternizao definitiva da civilizao kelpsiana. Fico espantado com isto. A Cosmos III paira a alguns metros da superfcie metlica daquele espaoporto. Centenas de veculos, equipamentos, androides, robs e cientistas a cercavam num ritual de inspeo. O cheiro de mato fresco mistura-se aos indefinidos odores das mquinas. Uma multido assiste ao grande evento. H vrios anos, os kelpsianos deram incio a um projeto desta envergadura, mas a Cosmos I explodira nos testes no tripulados e destrura muitos sistemas planetrios da nebulosa limtrofe, gerando-lhe um buraco negro lateral e trs supernovas (quando assimilo estas palavras-ideias, lembro do pesadelo que tive. Um pesadelo dentro de um sonho bom). Apesar dos danos da falha tecnolgica terem sido apenas materiais, o projeto cosmolgico foi interrompido por centenas de sculos at que a Cosmos II fosse construda. Porm, nesta segunda experincia, a espaonave no tripulada simplesmente encolheu subitamente e perdeu-se entre as partculas subatmicas. Agora, sculos depois, com a Cosmos III j havendo demonstrado sucesso em seus testes no tripulados, chegara o momento da expedio. Na sala de controle do campo experimental, a equipe cientfica de comando faz os acertos finais para dar incio misso tripulada. Um icerstacianozinho de cabelos esbranquiados aproxima-se da porta automtica e uma luz esverdeada percorre seu corpo. Uma voz robtica lhe anuncia permisso de acesso ao corao do projeto. Ele dirige-se placidamente ao atltico comandante da misso cosmolgica. Smelson, voc tem certeza que deseja levar adiante mais esta tentativa de nos manter presos eterna existncia?51

Grande Dabu! Voc bem sabe que esta deciso no cabe a ns. Os coletivos conscienciais da maioria dos kelpsianos mantiveram sua deciso democrtica. Mas voc ainda tem a escolha de manter o curso normal da aniquilao de nosso Universo e de todas as suas conscincias, libertando-as. Basta apenas apresentar aos coletivos uma impossibilidade tcnica. No, Dabu. impossvel enganar os coletivos por muito tempo. Alm disto, se ns no o fizermos, outros o faro. No adiemos o inevitvel. Uma voz robtica ecoa na sala, interrompendo o dilogo: ESTRUTURAOPARATESTESCONCLUDA.AGUARDANDO O INCIO DO EXPERIMENTO GN-773. Smelson d as costas ao desolado Dabu e parte em direo aos hangares de sada. Em segundos, seu carro planador cruza os cus e penetra minsculo na imensa nave cosmolgica. Enquanto transporta-se ponte de comando, luta contra as angstias de seus pensamentos. Ser que sobreviveremos? Nesta misso? Aps enfrentarmos a aniquilao? O que nos aguarda alm? Pensa em desistir. O medo o fruto do desconhecido... Mas o mistrio a semente das descobertas, que gera o conhecimento e a coragem! Avana resoluto, assume seu lugar na ponte e brada: Iniciemos j o maior experimento da nossa civilizao! Olhares sorridentes e srios agitam-se. Capito Klin, inicie a contagem regressiva. O processo de virtualizao deve iniciar em trinta segundos. Setores V73 e V77 iniciem a alimentao energtica do virtualizador. Doutor Jamix! Acione o sistema geral de isolamento modular2. Em vinte segundos esta nave no ser mais a mesma.

2 Isolamento energtico que limitava a ao do virtualizador a toda nave e a alguns centmetros fora dela. 52

A tripulao da Cosmos III movimenta-se em meio a zumbidos e bips eletrnicos. A expectativa geral por todos que acompanham o evento por transmisso hiperluz ou presencialmente na plataforma panormica. Ouvem-se rudos crescentes enquanto a regressiva contagem chega ao fim. Cinco... Quatro... Trs... Dois... Um... Zero!!! A voz robtica cessa antes de ser substituda por um apavorante barulho, at que se ouve a surpresa voz do doutor Klin em meio ao estranho som. Estamos diminuindo de tamanho!!! Toda a Cosmos III est reduzindo suasdimenses!!!Vejotudonoexteriordanaveaumentandovertiginosamente. Tenente Clanes Ordena Vox em meio a uma leve tontura. Contatenos com o centro de Cosmpolis. Esto um tanto difceis as transmisses, senhor. Os comprimentos de onda de suas frequncias aumentam inversamente proporcionais ao nosso tamanho relativo em grau acima do esperado. Informa o engenheiro de comunicaes, enquanto dedilha nervosamente os controles (certas situaes o faziam esquecer os comandos psquicos aos dispositivos). Preciso de alguns segundos para concluir os ajustes. Pronto! Em instantes, um grande cubo hologrfico surge no centro da sala de comando da cosmos III, mostrando um cosmopolitano ruivo e esbelto. Doutor Priples. Diz Vox. como v este fenmeno? Comandante, estamos surpreendidos com a rpida reduo desta nave experimental. Os dados que recebemos indicam um leve desvio entre o terico e o realizado. Apesar disto, recomendamos prosseguir. Nossa equipe de bordo j est formulando as hipteses. Contudo, continuaremos com a espao-reduo. Decide Smelson. Agora nem percebemos mais a presena fsica da Cosmos III e... De repente, o holograma se dilui at desaparecer em meio mensagem incompleta de Priples.53

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As transmisses esto impossveis. No teremos comunicao com Icestar enquanto no retornamos ao nosso tamanho padro. Informa apreensivamente o tenente Clanes. Os visores da nave mostram o agigantar das molculas de ar. incrvel a situao em que estamos. Toda a Cosmos III est com dimenses atmicas e ainda continuamos a nos reduzir exponencialmente. Cus! Somos meros integrantes de partculas subatmicas! Comenta Smax enquanto observa os painis de controle com grficos e imagens tridimensionais a mostrarem constante e instantaneamente os dados obtidos da experincia. fantstica a imagem que podemos ver nos visores panormicos. Sinto-me dentro de um tomo. Voc est certo, Clanes. Segundo a anlise feita pelo neuroprocessador, estamos dentro de um tomo de hidrognio que estava na atmosfera local do campo experimental. Aquela espcie de planeta branco e semitransparente que aumenta gradativamente trata-se de um mero eltron que circunda o ncleo atmico a bombordo. O fato de podermos ver estas estruturas talvez seja a prova de que existem partculas luminosas nos mais variados tamanhos, sendo captveis de acordo com as relaes espaodimensionais Interessante observao, doutor Galik. Por que no experimentamos os propulsores da nave em plena reduo? Senhor Klin, propulsione esta nave para o aglomerado de esferas distantes a nossa frente. Ordena Smelson a sentar-se confortavelmente na poltrona central de controles gerais. Ateno setores P33, P37, e P39, acionem o sistema de propulso em direo ao ncleo atmico. Ordena Klin aos seus auxiliares. A nave parte veloz em direo ao seu objetivo. Pelos visores veem-se aquelas astronmicas esferas a crescerem em progresso geomtrica tanto pela aproximao quanto pela diminuio da Cosmos III. Orgulhosamente, somos os primeiros em nossa histria a sobrepormos o princpio de incerteza de Plorts. Comenta Galik. Conseguimos determinar a posio e a velocidade dessas partculas atmicas. Provavelmente porque estamos agora to indeterminados para o nosso mundo quanto estas particulas. Teoriza Clanes.55

Doutor Smax, verifique as caractersticas do corpo mais prximo de ns. Ok, Comandante! Ele diferente dos outros corpos, no possui cargas eltricas e tem dimenses comparveis ao do corpo positivo mais alm. Deve tratar-se de um nutron! Senhor Smelson, os propulsores continuam funcionando perfeitamente bem durante a espaorreduo. Em vinte segundos penetraremos no interior do gigantesco nutron. Informa Klin. No haver problemas de coliso, pois a estrutura do objeto a ser penetrado demonstra ter uma densidade muito inferior ao da nave. Ao que parece, esse imenso nutron formado por uma espcie de agregado energtico. Estamos entrando no interior da superpartcula. Ainda estamos nos reduzindo em PG (Progresso Geomtrica). incrvel sermos os pioneiros em conhecer to intimamente as pores minsculas do tomo, mas preocupo-me com nosso futuro. Ser possvel neutralizar o processo de espaorreduo? Mas claro, senhor Smax. O virtualizador est fazendo uma espcie de absoro e armazenamento de uma forma energtica que existe em toda a matria da nave. Suponho que se o desligarmos, ele deixar de nos reduzir, j que no armazenar mais energia. Responde o doutor Galik. Matria e energia so movimentos do espao-tempo. Estes movimentos podem ser infinitamente confinados em espaos menores. Prossegue Galik. Qualquer objeto material possui mais vazio que solidez. Alias, a solidez sempre aparente. mera interao de espaos vazios que se movem. Os espaos em movimento dos tomos de nossas mos se chocam com os espaos em movimento dos objetos que tocamos. Usamos estes vazios para que o virtualizador os encolha fractalmente. Por isto, podemos encolher, enquanto armazenamos energia. Setores de propulso, desativem os propulsores e faam a nave parar no centro geomtrico do nutron. Ordena Smelson. O fenomenal espetculo prossegue em meio as conjecturas dos tripulantes da Cosmos III. Dos visores, v-se a incrvel paisagem externa de aglo56

merados materiais esfricos que surgem como minsculos pontos e, depois de algum tempo, mostram-se gigantescos, aparentam outros aglomerados e assim por diante. Estamos penetrando cada vez mais na estrutura da matria. incrvel mesmo como existem tantos espaos vazios no interior das estruturas materiais. Comenta Caliby. Estamos cercados de minsculos cintilos. Cada um brilha como um ponto de luz. Se expandem como microesferas, escurecem e somem. Seriam big bangs microcsmicos? Agora que tudo cresceu mais ao nosso redor, vejam aquele ponto de luz que surgiu e se expande como uma espcie de esfera energtica prxima do visor seis. fantstico, agora tem a aparncia completa de um pequeno Universo.

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Big Bang microcsmicoTodos os olhares voltam-se para o visor 6. A excepcional imagem de um grande aglomerado de galxias to prximas da Cosmos III a aumentar rapidamente causava xtase aos tripulantes da grande nave exploradora. O doutor Smax, antes boquiaberto com a cena, comenta: Acabamos de presenciar o Big Bang de um microcosmo. O doutor Zalem tinha, razo quando ridiculamente afirmava que existiam outros Universos no microcosmos! Ateno todos os postos de controle do virtualizador! Anulem a virtualizao assim que as dimenses da Cosmos III estiverem proporcionais a este Universo. Enquanto isso, rumem em direo a Galxia mais prxima. Vamos investigar a natureza desse microuniverso. Sistemas propulsores acionados. Estamos seguindo em direo ao centro da galxia espiral localizada a y73d4x47a7 de coordenadas w neste Universo. Continue a aproximao, Capito Klin. Os setores de processamento de dados j esto em plena atividade. Em instantes, saberemos de detalhes tcnicos desta regio sideral. Diz Smelson. Comandante Vox, o sistema virtualizador est sendo desligado. J estamos proporcionais dimensionalmente a este microscpico Universo. Informa Smax, engenheiro espacial. A Cosmos III vaga pelo espao quase a velocidade da luz, dentro da esplndida paisagem sideral povoada de estrelas, aglomerados estrelados multicores, nuvens de poeira csmica de vrios formatos e outros objetos galcticos variados. Os cientistas do projeto cosmolgico renem-se pouco a pouco na ampla sala-auditrio da nave para reavaliar todo o desenrolar daquela experincia. Eu acompanho tudo, invisvel a todos. At agora a misso tem sido um sucesso. Resume Smelson. A espao-reduo foi bem-sucedida e os relatrios indicam que a nave reteve59

energia suficiente para a reverso. Nosso retorno est garantido. Passaremos agora prxima fase: iniciemos o mapeamento de planetas habitveis nestas duas galxias espiraladas ao nosso redor. Busquemos padres de conscincias nas emisses de tquions. Deveremos escolher uma raa que tenha maior probabilidade para atingir nosso domnio de memria eterna. Devem ser to capazes como ns de sobreviverem ao colapso de seu Universo. Comandante, acabamos de iniciar a sondagem. Diz Clanes. Devemos nos manter em estado barinico (mesma estrutura material dos planetas e estrelas deste Universo) at que os mapeamentos estejam concludos. Continua Smelson. Quando precisarmos viajar acima da velocidade da luz em direo ao Sistema estelar escolhido, faremos a virtualizao neutra que nos tornar taquinicos em relao a este Universo (imponderveis em relao matria barinica). Assim poderemos viajar a qualquer tempo e espao. J temos o mapa das regies com maior densidade de ondas taquinicas padro. Informa Clanes. Est ao lado esquerdo da galxia maior, a dois teros do seu centro, coordenadas y73d5x23a9. Ento iniciemos imediatamente a virtualizao e viajemos at as referidas coordenadas. Aps todos se posicionarem seguramente, percebem um zumbido e a viso da galxia crescendo nos visores at estarem dentro dela. Todos observam, com um leve enjoo, as estrelas e nebulosas locais se moverem lentamente, at que tudo parece estacionar, apesar de os registros indicarem que a nave est prxima velocidade da luz. Tranquilidade plena ao redor. Smelson quebra o silncio. So 8 horas da manh cosmopolitana. Toda a tripulao tem o seu recesso de meia hora para a refeio matinal. s nove, quero todos aqui novamente. Em instantes, os teletransportes cintilam fazendo pouco a pouco a lotada sala-auditrio se desertificar. O inverso ocorre com os teletransportes mveis do refeitrio central da Cosmos III. Toda a grande nave vaga no automtico, concentrando sua vida naquele imenso hangar discoide onde, entre mesas flutuantes e androides serviais, os passageiros da kelpsiana esfera refazem60

suas energias fsicas e emocionais. Melodias misturam-se aos rumores de vozes alegres e variadas que trocam entre si as mais inimaginveis impresses como se alheios aos infindos lazeres que sua tecnologia poderia proporcionar para aquele momento. Talvez j descobriram que nunca poder haver artificialismo que substitua o prazer do convvio social. Os minutos passam despreocupados e lentamente os rumores vocais exaurem-se, os teletransportes voltam a cintilar e a msica cessa at que o refeitrio silencia completamente. Algum tempo depois, a sala auditrio est povoada novamente e recomeam as anlises sobre o projeto Gnesis. Temos que considerar um certo xito em nossa misso Retoma Galik, depois de revisar os relatrios tcnicos do fenmeno de espao-reduo. De certa forma, o virtualizador cumpriu seu papel de modificar as propriedades fsicas da matria de forma a torn-la indiferente s leis espaos-temporais da matria comum. Isso porque ao encolhermos, nossas relaes de velocidade, tempo e espao no mais esto ligadas s relaes normais de nosso Universo e as podemos modificar para qualquer padro que imaginarmos. Voc tem razo. Isso nos traz algo interessante a ser pensado: se diminuirmos, nosso padro de medio tambm diminuiu. Comenta Smelson. Vimos que em estado normal jamais ultrapassamos a velocidade da luz relativa a nosso tamanho. Sabemos que a atual velocidade que desenvolvemos insignificantemente inferior at a uma simples caminhada curta de lesma em Icestar. Ser que, mesmo em estado barinico, se conseguirmos reverter o processo de reduo atual e aumentarmos de tamanho milhes de vezes, conseguiremos viajar acima da velocidade da luz de nosso universo normal, simplesmente saltando de uma borda de nosso Universo a outra? A curiosa pergunta do comandante Vox Smelson deixou por alguns instantes a cpula cientfica em silncio. O confortvel auditrio que tinha ao centro uma grande mesa elptica suspensa no ar com belas e aconchegantes poltronas ao redor, parecia acusticamente desabitado. TZZIILBROOW!!! O silncio quebrado por um ensurdecedor estrondo que faz tremeluzir toda a Cosmos III, derrubando alguns icerstacianos que andavam pelos corredores da grande nave. O alerta geral acionado.61

Barulhos de sirenes ecoam pelas alas e todos entram em pnico. Dos visores panormicos avistam centenas de objetos esfricos surgidos instantaneamente do nada, que lanam constantemente ofuscantes raios luminosos coloridos contra grandes estruturas discoides que respondem ao ataque com idnticos artefatos blicos. Estamos em meio a uma batalha espacial!!! gritou Clanes entre a confuso de vozes. Acionem os escudos energticos e desviem-nos da trajetria desses enxames desconhecidos. Impossvel, Doutor Smelson! Estamos cercados por todos os lados! Diz o capito Klin. De repente, o silncio paira novamente no ar, mas agora um glido silncio de horror tomou conta de todos. Os passageiros da Cosmos III olham atnitos para os visores. Uma espcie de capa metlica comea a cobrir a nave icestarciana como se esta estivesse sendo tragada por uma enorme boca ciberntica. Quem estivesse a alguns parsecs da nave kelpsiana se impressionaria com o movimento tresloucado de dois enxames luminosos que se aproximavam mutuamente. Enquanto isto, raios blicos multicores faziam espalhar fragmentos vrios de artefatos pertencentes a ambos os grupos atacantes. A poucos quilmetros do centro daquele dantesco digladiar espacial, via-se claramente a grande estrutura esfrica dezenas de vezes maior que a Cosmos III em pesada aproximao. Estava sobre a mesma de forma a fazer a nave experimental kelpsiana entrar em uma abertura circular existente na superfcie em forma de calota e que parecia a entrada para um hangar. Podemos escapar deste perigo eminente se acionarmos o virtualizador. No faz parte dos princpios ticos dos exploradores cientficos, doutor Smax. nosso dever priorizar a investigao a tudo o que se mostrar desconhecido a ns. Alm do mais, se nos reduzirmos, poderemos simplesmente trocar de ambiente periculoso. Sentencia o comandante sem dar mostras de sua real vontade de desvendar aquele recente mistrio.62

Capturados BREAANKT!!! O solo treme aps uma seca pancada, anunciando que a Cosmos III depositou-se em alguma superfcie slida e revelando a inutilidade dos escudos energticos que nem ao menos amorteceram as ondas de choque relativamente insignificantes daquele tipo de impacto. Procure uma maneira de entrar em comunicao com esses seres que nos aprisionou, tenente Clanes. Temos que lhes descobrir os objetivos para conosco, alm de conhecer-lhes a forma de vida. Parece impossvel, comandante Vox. Eles no respondem a mensagens telepticas Informa o esbelto kelpsiano. Aps alguns segundos, prossegue tentando, agora operando mentalmente o sistema de comunicao. Capto ondas de seus equipamentos mas no consigo traduzir os sinais. Mas no devemos ficar parados degustando o terror do desconhecido. Diz o doutor Galik aps silenciosa e paciente anlise da situao. Sugiro que busquemos um mtodo de descobrimos o quanto antes o que nos aguarda l fora antes que possa ser bastante tarde. S nos resta explorar essa suposta civilizao tcnica que nos aprisionou no bojo de seu artefato. Resolve o comandante. Vamos fazer uma expedio ao exterior da Cosmos III. Quero que Smax, o doutor Galik, Klin, a enfermeira Rnit e o capito Caliby vistam os trajes espaciais e me acompanhem nesta explorao. Os demais prossigam em suas atividades e mantenham a segurana desta espaonave. O major Estauro assumir o comando em meu lugar, durante minha ausncia. Minutos aps as ordens de Smelson, a equipe expedicionria estava reunida no hangar de desembarque da Cosmos III. Este parecia gigantesco em relao a meia dzia de icerstacianos entre dezenas de caas espaciais e equipamentos de locomoo auxiliar. Cada um se posiciona sobre um disco planador metlico. Doutor Galik, quais os resultados das anlises externas? Pergunta Vox.63

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Temperatura em torno de trinta graus, presso atmosfrica idntica a de Icestar, com alto teor de oxignio e nitrognio. Nenhum indcio de substncias txicas. Temos um ambiente ideal para explorar! Mesmo assim, continuemos com nossos trajes espaciais. No sabemos que perigos nos aguardam. Decide Smelson antes de um longo suspiro, como se estivesse criando coragem para iniciar o desconhecido trabalho de explorao. Instantes aps, aciona telepaticamente o sistema de desmolecurizao da parede externa da nave. O grupo levanta voo sobre os seus discos metlicos e mergulha na parede tremeluzente, atravesando-a em direo ao exterior como se a mesma no existisse. Todos veem delinear-se a paisagem de uma imensido vazia de um presumido hangar que deixa perplexa a equipe icestarciana. O grupo aterrisa lentamente prximo ao exterior da Cosmos. Os equipamentos do traje espacial funcionam plenamente, mostrando todos os dados relativos ao novo ambiente a que foram submetidos. Aos poucos, todos caminham afastando-se progressivamente da Cosmos. Olhando-se ao redor do grupo, tem-se a impresso de estar dentro de uma abbada metalicamente acinzentada, que no apresenta nenhum sinal de aberturas ou objetos. O nico som que se ouve dos leves passos de Smax e seus companheiros sobre o duro, liso e metlico piso. Repentinamente, os seis icerstacianos param diante de uma conhecida cena. A parede a frente deles parece tremeluzir como gelo em fuso fazendo emergir de sua superfcie um tipo androide quadrpede que apresenta exticas formas. O dantesco artefato parece ter atravessado facilmente aquele obstculo metlico deixando atrs de si a parede tal qual ela era. Parece que eles dominam uma similar tecnologia de recombinao molecular que utilizamos para atravessar corpos slidos quando estamos em estado barinico. O insignificante grupo de icerstacianos permanecia esttico de pavor diante daquela estranha maquinaria cheia de segredos. Era cem vezes maior que um icerstaciano. Possua luminrias coloridas que piscavam compassada65

mente, emitia um zumbido ttrico e possua umas espcies de caixas, cilindros, rodas e esferas que compunham a carapaa daquele horrendo ser. Na regio superior do androide, existia uma espcie de minscula cpula semitransparente que translucidava trs silhuetas de seres vivos. Seis discoides de trs palmos de dimetro saem de uma abertura do artefato em direo ao ignbil grupo. O doutor Smelson deu uma ordem psquica para que seus companheiros acionassem os escudos energticos individuais, no que foi atendido prontamente, visto que ao redor de cada icerstaciano surgiu uma cpsula radiante e semitransparente que os protegeriam de um eventual ataque blico (ao menos das armas conhecidas pelos kelpsianos). Estes campos de foras individuais no impediam que os discoides perscrutassem ao redor de seus corpos como se os estudassem detalhadamente. Pareciam emitir informaes para os trs seres que os comandava. Subitamente, a cpula do androide abre-se como um olho e os trs seres saltam de seu interior, levitam no ar e aterrizam a poucos metros em frente ao icerstacianos.

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HumanosEram seres humanos. Usavam como roupa uma espcie de prateada segunda pele, mas eram pessoas como eu. Pareciam estar desprovidos de qualquer objeto, o que intrigava os cientistas do projeto Gnesis, j que no concebiam estruturas biolgicas com aquela anatomia que pudessem desafiar daquela forma as leis da Gravidade, pois, mesmo sendo seres barinicos, pairavam no ar aparentemente desprovidos de qualquer recurso tecnolgico. Como o contato teleptico tem falhado com eles, acionem os decriptadores33. Ordenou mentalmente o doutor Vox Smelson. Qualquer mensagem emitida a partir da mente desses seres dever ser traduzida para a nossa linguagem, esse parece ser o nico meio de nos comunicarmos com eles. Antes que algum icerstaciano acionasse o decriptador, uma voz mscula e clara parte da boca de um dos desconhecidos em forma de interrogao. Quem so