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108 Poesias de José Coriolano de Souza Lima

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108 Poesiasde José Coriolano de Souza Lima

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EDITORA MULTIFOCO

Rio de Janeiro, 2015

108 Poesiasde José Coriolano de Souza Lima

O r g a n i z a d o rS a u l o B a r r e t o L i m a F e r n a n d e s

FuturArte Poesia

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EDITORA MULTIFOCO

Simmer & Amorim Edição e Comunicação Ltda.Av. Mem de Sá, 126, LapaRio de Janeiro - RJ

CEP 20230-152

DIAGRAMAÇÃO & CAPA Leonardo G. Filho

EDIÇÃO Frodo Oliveira

108 Poesias de José Coriolano de Souza Lima

FERNANDES, Saulo Barreto Lima

1ª Edição

Fevereiro de 2015

ISBN: 978-85-8473-264-7

Todos os direitos reservados.

É proibida a reprodução deste livro com fins comerciais sem

prévia autorização do autor e da Editora Multifoco.

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DedicatóriaDedica-se essa obra em homenagem a três especiais “Querubins de Co-

riolano”, que embora os dois primeiros - por motivos alheios ao meu co-nhecimento, não tenham demonstrado interesse quanto do convite para organizá-la - ainda sim, por sensatez e senso ético, sinto-me na obrigação de homenageá-los.

São eles:Ao trineto do poeta Coriolano, Ivens Roberto de Araújo Mourão, o

ungido pela História e responsável mor, para resgatar e protegera me-mória de Coriolano e dá seguimento a obra. Rendo a Ivens Mourão, de forma integral, todo o mérito, razão de ser, existência e viabilidade dessa presente obra. Toda a obra, desde a primeira a última letra é dedicada a Ivens. Toda a digitação e disponibilização no blog: http://poesiasjosecoriolano.blogspot.com.br. Presume-se que as notas explicativas que vai desde a poesia ‘A Bela Matuta Avarenta’ até a ‘Vou Cantar’ tenham sido elaboradas por Ivens Mourão.

Ao Raimundo Cândido Teixeira Filho, presidente da Academia de Le-tras de Crateús - ALC. Autor das obras: Karatis (Poemas); Raiz do poema e outras esquisitices ao quadrado (Poemas); Ribeira do Poti: Sertão de Cratheús e Cratheús: do portão da feira aos galos da torre. Por pincelar informações e fazer nascer em mim a insopitável aspiração de mergulhar nas profundezas mais abissais da obra e vida desse ilustre vulto esquecido.

Ao A. Tito Filho (in memoriam), exegeta, historiador, cronista, jorna-lista, professor e Presidente da Academia Piauiense de Letras (APL) por duas décadas. Prolífico, foi autor de mais de 35 obras, dentre elas: Deus e a Natureza em José Coriolano (1973), UmManicaca (1982), Combustível e Alimento (1951), Da Atualidade do Latim Vulgar (1958), Estudo do Vocabulário da Lira Sertaneja (1972), Teresina Meu Amor (1973), etc. É o responsável pelas notas expli-cativas em negrito, de grande parte dos poemas de Coriolano presentes nesta obra.

A todos os demais, que reconhecem J. Coriolano e sua obra, como patrimônio cultural e que se indignam ao tratamento infame dado em prol de sua memória.

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Veste-se, à luz da dedirrósea aurora, Sai da alcova o amadíssimo UlisseidaAo tiracolo a espada e aos pés sandálias, Fulgente como um deus, expede arautosA apregoar e reunir os Gregos. De hasta aênea, ao congresso alvoroçado,Não sem dous cães alvíssimos, se agrega;Minerva graça lhe infundiu celeste.(Livro II – Odisséia – Homero)

Como te massacraram, ó cidade minha!Antes, mil vezes antes fosses arrasadapor legiões de abutres do infinito vindos sobre coisas preditas ao fim do infortúnio(...)Esta é Tróia!, o vigésimo século em Tróia,blasfemam as fanfarras de súbito mudasnos ouvidos mareando a pancada da Terra.(Pequena Ode a Tróia - Nauro Machado)

E no entanto durara: ao tempo quandoa madressilva não temia os pésdesabrochados entre margaridase a mão sabia a dança que hoje não. E também no ritmo desgarrado e borbulhantedeste texto de “Rastro de Apolo”:“é minha profissão e consumoo crepúsculo a aurora os clitóris rosados em seu ninho e o rouxinol/ e o grito do amor...(O País dos Mourões - Gerardo Mello Mourão)

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Da casa de LampiãoQuis vender uns azulejoE disse que um realejoPertencia a GonzagãoMe apontou um colchãoQue Tiradentes morreuTrouxe o punhal de Romeu,Amante de Julieta,Uns tijolo da muretaQue Airton Senna bateu(Paulo de Tarso – Cordelista)

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Sumário

Grandeza de Deus 12Crateús 16A Aurora 20As Aves da Minha Terra 23Só um Anjo Será 27Às Seis Horas da Manhã 29Nênia I 32O Piauí 34Como a Flor do Bulebule 38O Correr da Vida 40Sobre o Mar 42Hino ao Criador 44O Mar e o Vento 48O Catingueiro 50A Virgem do Crateús 57Careço de Teu Amor 62Voto de Gratidão 65A Donzela e a Sensitiva 69A Órfã de Amor e A Rosa Desfolhada 71A Vítima do Poder 72Nos Anos de Maria 75Sabes Amar? 79Êxtase 81Os Dez Mandamentos 83A Virgem e a Roseira 87O Triste Arcano! 89A Vida Humana é Sofrer 92O Que eu Quero 94Primeiras Águas 96

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A Um Passamento 99Beijos Mudos 101O Rei 103A Rosa Defendendo-se 109Feliz Tempo 112À Morte 114O Infante 116Coragem 119O Velho Caçador de Onça 121Em Que Pensas? 127A Filha do Deserto 129A Noiva 131Nênia II 134Entrevista 136Só Eu Não Morro 138Hino à Tarde 140A Rola e o Gavião 148A Morena 150A Canção do Serrano 153Mudanças 158Eugênia Belém e Narciso Cordo 161O Avarento 176Consulta e Resposta 182A Tempestade 187A Lua 190Noite de São João 192A Noite 196Gozemos 199Quadras1 à Meia Noite 201Com Pouco me Contento 204Como Te Amei – Como Te Amo 206

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O Touro Fusco 208

Poesias Inéditas 231

A Bela Matuta Avarenta 232A Compadecida 235A Escrava 238A Louquinha 240A Loureira 241À Loureira 242À Meia Noite 245A Pobrezinha Medrosa 247A Poesia 249A Uma Confessada 251A Verdade Homeopática 252A Virgem do Sepulcro 255Ao Luar Sobre a Areia 257Caminho do Céu 259Ciúme 261Coragem 264Coragem 266Delírio de Poeta 269Desalento 270Ela Dorme 272Eu Amo-te Muito 274Eu e a Enfermeira 276Fases Asmáticas 278Gemidos 280Já Sei a Cor (*) 283Minha Lira 285Minh’Alma Está Lá 287

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Nênia III 289Nênia IV 291Nênia V 293O Canto do Cacique 295O Canto do Soldado 299O Enfermeiro 301O Estudante 304O Fazendeiro 306O Mal já Declina 310O Preso e a Viúva 313O Que Eu Chamo Poesia 314O Suicídio 318O Voluntário 321Os Compadres Cidadão e Sertanejo 323Palinódia 329Por Que Será 331Recordações Teatrais 333Saudade Filial 335Sem Verbo 337Psiu! 340Um Mexerico 342Vou Cantar 344J Coriolano: 347Breve ensaio biográfico 347Notas Bibliográficas e Explicativas 357

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Grandeza de Deus Que cena majestosa se me of’rece1 Onde quer que um olhar pasmoso fite! Que notas, que harmonia deleitável Respira a natureza que me cerca! Aqui manso ribeiro o prado corta, Ali mais apressado o rio rola, Mais além ronca o mar em fúria aceso! Aqui a leve brisa me bafeja, E após ela o tufão me açoita a fronte! Ali pequeno arbusto reverdece, Mais além mira o céu d’árvore a cúpula! A roseira que ostenta donairosa2 A flor que faz inveja às outras flores, Que os homens enamora com seus mimos, Que os ares embalsama com perfumes, Das murmurantes auras embalada, Aqui parece rir co’a3 natureza! Ali mil outras flores se desfazem Os campos matizando, em doce cheiro! Sobre altivas mangueiras gorjeando, Ou sobre altas palmeiras buliçosas Estão mil aves ternas à porfia, Enquanto roxa luz difunde a aurora! O sol já mostra o disco no horizonte, E a metade vingando do seu curso, Em pino cresta o orbe com seus raios! Já descai4 no caminho do ocidente E em breve além do mar se envolve em trevas! O mar converte em fogo as águas suas,

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As nuvens doiro e prata se agaloam, Os favônios expiram nos palmares, E o homem nesse instante ao céu se eleva! Não tarda os horizontes incendidos Nova forma tomarem: uma estrela Seus trêmulos fulgores já reflete Sobre a rugosa face do oceano, Em seguida mais outras e outras muitas! A lua que surgiu de sob as águas, Ou que o rosto mostrou d’além dos montes, No espaço se equilibra, e sobre a terra Aos viventes derrama os seus favores! Óh ! quanta poesia ! óh ! quanto assombro Onde quer que um olhar pasmoso fite! O homem que a virtude traz no peito, Mais a chama cristã no peito ateia! Ao ímpio que o remorso traz na mente, Mais a mente o remorso lhe atribula! O blasfemo que, os céus escarnecendo, Soltou vozes, que aos céus injuriaram, Qual o cão que raivoso ladra à lua, E que alfim5 já cansado inútil pára O sacrílego peito comprimindo, De blasfemar inútil também cessa. Que pode um grão de areia movediça Contra a rocha em que o mar se quebra iroso? Que pode pobre argila sobre argila Contra Deus que sustenta infindos mundos? Que pode o homem frágil pequenino Contra Deus, que o gerou do pó, do nada? Senhor! o teu poder é grande, imenso ! Tudo quanto é sublime a ti se deve. Óh minha doce Mãe! – quem no teu peito Depositou afetos tão sagrados? Virgem meiga e gentil, que o mundo adora, Quem te fez tão amável? Esse riso,

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Que nos prende e fascina, encanta, arrouba, Quem t’o6 depositou nos róseos lábios? Aves, que gorjeais na umbrosa selva, A quem deveis o deleitoso canto? Pois quem tais maravilhas fez no mundo? Foi Deus, que às flores também deu aroma, Macio e fresco ciciar às brisas, Sibilos ao tufão, sussurro às folhas, Brandura à fonte, correnteza ao rio; Foi Deus que fez os mares procelosos, Que lhes deu ondas, escarcéus e vagas, Que às campinas deu relvas e matizes, Ao sol fulgores, às estrelas brilho, E à lua doce luz que a mente aplaca; Foi Deus que deu um pugilo informe, inerte, Fez o homem moral à imagem sua! Óh ! quem há que se iguale ao Deus supremo, Se ele é só o supremo sobre tudo? Quem há que o Criador co’a criatura Compare, se de Deus seu ser dimana? Senhor ! – o teu poder é grande, imenso! O mar no-lo7 revela em seus gemidos, A terra nos seus verdes atavios, A flor no seu perfume, o sol nas cores, As aves no seu canto deleitável, O céu no seu azul que se marcheta De milhões de prodígios luminosos, Quando a noite se desdobra sobre a terra Seu manto de mistério a todos grato! Meu Deus ! Senhor meu Deus! quanto és sublime! Ao teu gesto potente a fronte curvam O grande, o rico, o pobre, o sábio, o néscio! O mar que enfurecido em flor rebenta, O bravo furacão que os bosques prostra, A fera que rugindo atroa os ares, O raio que resvala pelo espaço,

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O trovão que estrondeia retumbando, A nuvem que desata em catadupas E o corisco veloz que caracola, Tudo, tudo a teus pés, ó Deus se humilha, Tudo, tudo a teu nome um hino entoa! E o homem que a razão fez neste mundo, Depois do teu poder, o mais potente; O homem que possui um’alma eterna, Que outra vida lhe of’rece além da campa, Dos brutos se rebaixa à classe ignóbil, E as leis posterga ao criador benigno! .............................................................. Porém, Senhor, perdão p’ro8 homem frágil, Que o fizeste d’argila; atende ao mísero: Quando seus lábios trêmulos soltarem O suspiro final, que o mundo exige; Quando seus olhos turvos se cobrirem Co’o vítreo manto, regelado, eterno; Quando apagar-se9 do seu peito a flama; Quando o frio eternal gelá-lo todo; Quando a morte, Senhor, tirar-lhe a vida Nesse céu de venturas, - misterioso – Dá-lhe asilo, Senhor, lhe cede a glória. Comentários 1. of’rece. Oferece. Supressão de uma sílaba por necessidade de metrificação.2. Donairosa. Derivado de donaire. É o latim donarium, donairum, donairo. A forma donaire teve influência espanhola. A gente pronuncia donaire tal como se escreve.3. C’oa. Em lugar de com a. Necessidade de contagem de sílabas poéticas. Em com a há duas sílabas poéticas reduzidas a uma.4. Descai. Verbo descair: deixar prender ou cair.5. Alfim. Hoje pouco usado. O mesmo que enfim, finalmente.6. To. Combinação dos pronomes te e o. Este o está no lugar de riso. Quem depositou o riso (o) nos lábios teus? (te) Te aqui tem função de posse.7. No-lo. Combinação dos pronomes nos e o. Nesta combinação o nos perde o s e o pronome o toma a velha forma lo. Este lo na poesia está no lugar de poder: no-lo revela.8. P’ro. Para o. Necessidade de metrificação.9. Quando apagar-se. O verbo está no futuro do subjuntivo. Deveria ser quando se apagar. No tempo em que José Coriolano escreveu não estava disciplinada a colocação dos pronomes átonos.

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Crateús1

Lindo sertão meus amores, Crateús, onde nasci,2 Que saudade, que rigores, Sofre meu peito por ti! São amargos dissabores Que em funda taça bebi! Que saudade, ó meus amores, Crateús, onde nasci! Esta incessante saudade Me espedaça o coração! Eu gemo na soledade3 Esses tempos que lá vão... Crateús, minha beldade, Meu lindo, ameno sertão, Que dura, fera saudade Me atormenta o coração Que vezes, em pé, na praia, Me lembro dos mimos teus! Dessas c’roas4, onde ensaia A rola5 os gemidos seus! Onde a lua se desmaia Alvacenta – lá dos céus! Ó quantas vezes na praia Em cismo nos mimos teus

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As ondas que vêm chorosas Na lisa praia morrer, Lembram-me as auras queixosas Nos teus vales a gemer! Lembram-me as moitas verdosas, Ondeando-se a volver! Ondas, não vinde chorosas Na lisa praia morrer! Que dias esses d’outr’ora Que o tempo ingrato levou! Do meu lar eu via a aurora Que sorrindo despontou! O galo co’a voz canora, Cantava : có-córô-cô! Ai ! esses dias d’outr’ora O tempo ingrato levou! Hoje meu peito não goza A dita que já gozou! Hoje minh’alma saudosa Chora o tempo que passou! Ó sorte desventurosa Que meus prazeres turvou! Infeliz de quem não goza Venturas que já gozou! Crateús, que dor tão viva! Ai tempos que já lá vão! Ao teu nome a dor se aviva Que sente meu coração! Assim sofre a sensitiva6 Ao toque de incauta mão! Crateús, que dor tão viva Ai eras7 que já lá vão !

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Se os sinos tocam meu pranto Corre, banha o rosto meu! Seus dobres lembram-me tanto Os dobres do sino teu! Eis do sol, o roxo manto, No ocaso além – se escondeu! Trocam trindades... 8 meu pranto Corre, banha o rosto meu! Não posso ver uma bela, Não posso, lindo sertão; Logo me lembro daquela... Que vive em meu coração. Crateús, onde está ela, Dá-lhe lembranças, que eu não... Não posso ver uma bela, Não posso lindo sertão! Dá-lhe lembranças... e escuta Se a bela por mim gemeu... Se gemer... a brisa arguta Me traga o gemido seu. Ah ! se minh’alma o desfruta ... Crateús se o gozo eu... Quem dera ! – Sertão, escuta ... Escuta se ela gemeu ! ... E adeus, terra, onde a alvorada Primeira p’ra mim raiou! Onde a primeira morada Meu pai querido assentou! Onde o galo, à madrugada, Cantando, me despertou! Onde, à primeira alvorada, Ouvi-lhe o có-rócô-cô!

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Comentários

1. Crateús. Hoje município e cidade do Ceará. Pertenceu ao Piauí e constituía os municípios piauienses de Independência e Príncipe Imperial. 2. José Coriolano de Sousa Lima nasceu na fazenda Boavista, do termo da antiga vila de Príncipe imperial, que pertencia ao Piauí (veja nota 1). 3. Soledade. Estado de quem se acha só. Lugar ermo, onde alguém vive curtindo saudades. 4. C’roas. Coroas. Supressão de uma sílaba por necessidade de metrificação. Monte de areia, no leito dos rios. No Norte também se diz croa. 5. Noutro local deste livro há comentário sobre rola (pássaro). 6. Sensitiva. Planta, cujas folhas e folíolos têm a propriedade de se fechar, quando se lhes toca (Aurélio). 7. Eras. O mesmo que tempos, épocas. 8. Trindades. Toque das ave-marias. Tardinha (neste sentido só usado no plural).

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A Aurora Douram-se os prados ao romper d’aurora, Que surge à hora que prazer só diz, Os horizontes de listões1 se arreiam, Aves gorjeiam nos rosais gentis. Na clara e doce sussurrante fonte, Que do alto monte se despenha e cai, O roxo manto de ondeantes cores Com seus lavores a atenção atrai. Nas verdes folhas, onde o orvalho oscila, Brilha e rutina matinal rubim,2 Que a meiga aurora coloriu, raiando, Co’o matiz brando de um primor sem fim As brancas nuvens que através do espaço, Do lume baço, pelo ar se vão, Cingem brocados de um lavor perfeito Como se feito por virgínea mão A flor donosa, que do calix pende, Cheiro recende que se eleva ao céu; Tudo se expande, se promete vida À luz querida do cambiante véu. Da cumieira, no trinado vário, Quanto o canário nos atrai, seduz! Chilra a andorinha na cornija santa, E o galo canta co’a fulgente luz.

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Douram-se os prados ao romper da aurora, Que surge à hora que prazer só diz, Os horizontes de listões se arreiam, Aves gorjeiam nos rosais gentis. A luz, em tanto, que listões formara Já mais se aclara pelo espaço além; A luz d’aurora que assomou dourada É dissipada pelo albor que vem. E a criancinha, que acordando chora, Logo afervora maternal amor; A linda virgem, que do sono acorda, Só se recordar de brincar e flor. O pobre artista, que o trabalho presa, Apenas reza, se encomenda a Deus, Todo se afana no trabalho duro, Que é seu futuro mais dos filhos seus. E prados e aves, e perfume e montes, E orvalho e fontes, e listões no ar, “Hosana”3 tudo ao Criador entoa, Que a seus pés voa, que lh’os4 vai beijar. A criancinha, que acordou chorosa, Virgem formosa, que sonhou com flor, O artista pobre, que o trabalho estima, Tudo se anima co’o fulgente albor. E antes que o dia radioso assome, E que o sol dome todo o ar com luz, Na mente um hino fervoroso e santo Eu devo, em tanto, consagrar à Cruz.5

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¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨ A luz dourada, que listões formara, Quanto se aclara pelo espaço além! A luz d’aurora que surgiu dourada, É dissipada pelo albor que vem. E a natureza como está sorrindo Ao astro lindo que apontando vem! Tudo progride na ciência e arte! Por toda parte resplandece o bem! Comentários

1. Listão. Faixa. Risca larga. Existe o variante listrão. 2. Rubim. Pedra preciosa de cor vermelha. Em sentido figurado, como no caso, cor vermelha. Há a variante rubi, mais usada. Palavra de propce-dência latina. 3. Hosana. Da língua hebraica. Significa: salve, também louvamos. Breve oração dirigida a Jeová, pedindo socorro, tirada do Salmo 118. Aclama-ção do povo, marchando em tono do altarna festa dos tabernáculos: “A maior parte das orações pronunciadas nesta solenidade, começavam pelo hosana” (John D. Davis – Dicionário da Bíblia” – 280). A multidão dos discípulos que acompanhavam a jesus na sua entrada em Jerusalém aclamava-o, dizendo: “Hosana, filho de Davi”. Hosana corresponde a canto de alegria. No sentido religioso é expressão de júbilo. Substantivo masculino: o hosana. Usa-se hosana também como interjeição. 4. Lh’os. Combinação do pronome lhe (em função possessiva) com o pronome os (objeto direto): que vai beijar os (pés) lhe (dele). 5. Cruz. Deus. Religião.

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As Aves da Minha Terra As aves da minha terra, Quer no sertão, quer na serra, Sabem falar! Esta seu fado carpindo,1 Aquela a lira ferindo No seu trovar! Outras aos matos ensina Doces nomes que amofinam Seus corações; Esses nomes tão queridos, Sempre tristes – repetidos Nas solidões. Quando vai findando o dia, E que, escondido, alumia2 Ainda o sol, A pomba3 no tronco antigo Carpe saudades do amigo Ao arrebol! De outra parte saltitando De galho em galho cantando Gentil sofreu,4 Toca na lira afinada Uma canção modulada Que o amor lhe deu!

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E aquela que além se esconde, Lá chama (ninguém responde) “Ó Zabelê!”5 Tão triste! Lá foi –se embora, E a amada que tanto chora Ninguém n’a vê! E aquela que ali suspira, Que sofre, que até delira Num seco pão, Em tom sentido e penoso Lá chama o chorado esposo “João-corta-pão!”6 também a rola gemendo o esposo que viu morrendo se lastimou! Seu fim co’o sol comparando No ocaso, diz suspirando: “Fogo-apagou!”7 Da cegueira que não o deixa O caboré8 já se queixa Cantando ao sol, Repetindo assim o nome Da doença que o consome: “Terçol-terçol!...”9 Também da beira do rio Quando tudo é já sombrio De um mulungu,10 A infeliz, a desgraçada Chama com voz abafada: “Jacurutu!”11

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Mas... que soldado tão belo Faz com seu peito amarelo A guarda ali? É uma ave mui guerreira, Que, pulando na aroeira12 Diz: “Bem-te-vi!”13 Também diz um, todo o dia, Quando o sol põe-se ou radia, E surge além; Chamando pela esposinha, Dia a saudosa avezinha, “Vem vem!”14 Vede lá também aquela, Chama-se a tal bacharela15 Pega16 ou canção;17 Ela sorri-se, ela fala, Assobia, canta, estala... Que compr’ensão! Eis ali outra – tão bela! Rompendo, qual sentinela, O denso véu Da mudez da noite escura, Quando, vendo a criatura, Grita: “tetéu!”18 Dai, porém, ao papagaio19 Da oratória o louro20, daí-o, Pois nisto estou: No dizer, no estilo é uma, É das aves na tribuna O Mirabeau!21

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É terra que tem primores A terra dos meus amores, Onde nasci! As aves de lá se falam, Cantam, suspiros exalam No Piauí! Comentários

1. Carpindo. Verbo carpir. Emprego no sentido de prantear, chorar. O verbo carpir não conjugado na primeira pessoa (singular) do indicativo presente. Em consequência não tem o subjuntivo presente. 2. Alumia. Noutro local há comentário sobre este verbo. 3. Pomba. Fêmea do pombo. Os autores românticos tiveram muita afeição por esta ave, símbolo da inocência. 4. Sofreu. Também sofrê. É o corrupião. Onomatopeia: tomam-se as onomatopeias traduzidas em palavras humanas para designar o animal que as pronuncia. 5. Zabelê. Copio: “De pés vermelhos e de corpo quase todo vermelho, a primeira impressão para quem vê, de longe, a Zabelê, é de que se trata da Juriti-piranga (ordem Columbiformes, espécie Oreopeleia); e, como o seu canto é de uma nostalgia e ternura inigualáveis, ainda mais se positiva a impressão de que ela é a Juriti-piranga. Entretanto, é muito maior do que a Juriti; o seu tamanho aproxima-se mais de uma inhuma ou de um mutum; sendo assim mais desenvolvida, a natureza lhe permitiu o hábito de andar pelo chão, de caminhar ou correr comumente pelo solo” e adiante: “quanto à origem da palavra Zabelê, não há dúvida de que é tupi, e, quanto ao significado, afirmam que é um enunciado onomatopaico” (Bugyja Britto – Zabelê – 8). 6. João-corta-pau. João tem grande voga no Brasil para a designação de aves. O João-corta-pau pertence à família dos Caprimúlgidas. Plural: Joões-corta-pau. 7. Fogo-apagou. Noutro local há comentário sobre fogo-apagou. 8. Caburé. Nome dado a uma espécie de mocho pequeno. Nascentes dá à palavra origem tupi. Com a significação de “o propenso a morar no mato”. Vive isolado. Só sai de noite. 9. Terçol-terçol. Terçol é pequeno abscesso no bordo das pálpebras. “Lindo olho tem o caburé” – diz-se por ironia. 10. Mulungu. Árvore leguminosa. Nome de uma árvore africana. Nome africano. 11. Jucurutu. Ave de canto triste, plangente. Nome tupi. 12. Aroeira. Árvore de madeira muito dura. 13. Bem-te-vi. Ave muito conhecida. Quando canta parece repetir: bem-te-vi. Daí o nome. 14. Vem-vem. Nome dado a vários gaturamos. Plural vem-vens. 15. Bacharela. Empregada a palavra no sentido de mulher faladora. Aplica-se à pega. 16. – 17) pega ou canção. Ave faladora. Com o nome de pega se batiza a meretriz. 18. Tetéu. Ave pernalta. 19. Papagaio. Ave trepadora, notável pela facilidade com que imita a voz humana. Parece que a origem é o latim papagallus, no provençal papagai, espanhol papagayo. Tido o papagaio como sabido e esperto. Há estórias de papagaios notáveis. No folclore brasileiro o papagaio aparece como herói de muitas aventuras. Anedota de papagaio se tem na conta de anedota imoral. 20. Louro. Nome que se dá ao papagaio. Assim já cantavam os troveiros medievais: Papagaio louro Do bico doirado, Leva esta carta Ao meu bem amado. 21. Mirabeau. Honoré Gabriel Victor Riqueti, conde de Mirabeau, francês (1749-1791). Famoso orador. Pertenceu à assembleia francesa e da tribuna lançou a frase célebre e desafiadora: “Estamos aqui por vontade do povo e daqui só sairemos pela força das baionetas”.

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Só um Anjo Será A flor que melindrosa se baloiça No melindroso, delicado pé, Não é como o meu bem tão melindrosa, Não é, não é, não é! A aurora que o levante purpureia,1 Que os horizontes colorindo vem, Não tem aquelas lindas, róseas faces, Não tem, não tem, não tem! A brisa que sussurra nas palmeiras É doce quando a tarde em calma está; Mas voz tão maviosa como a dela Não há, não há, não há! A flauta2 que desoras3 suspirando Quebra da noite a plácida soidão,4 Não é como o seu canto – direi sempre Que não, que não, que não! Se alguma virgem bela ataviou-se Para mais realçar o todo seu, Esse todo o meu bem – sem atavios – Venceu, venceu, venceu! Su’alma e coração são compassivos, Ela tem o candor de um serafim,5 É, sim, a minha amada um tipo d’anjo; É, sim, é sim, é sim!

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Só um anjo de Deus, dos céus baixado, Que à celeste mansão remontará, Será como o meu bem perfeito e puro, Será, será, será!

Comentários 1. Purpureia. Verbo purpurear. Dar cor de púrpura (vermelho escuro) 2. Flauta. Também frauta. Formas variantes. 3. Desoras. Melhor que o poeta houvesse empregado a locução a desoras, fora de horas, alta noite. Também se usa a desora, como neste passo de Manuel Bernardes: “... estrondos noturnos que a desora se ouviam”. 4. Soidão. Forma antiquada de solidão. Felinto Elísio empregou-a: “Na soidão dos escuros corredores”. 5. Serafim. Nome de entes celestiais que estavam à roda do trono de Deus, na visão de Isaias. Cada um deles tinha seis asas: com duas cobriam a face, com outras duas cobriam os pés e com duas voavam. Figuradamente, pessoa formosa.

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Às Seis Horas da Manhã A mente está mais tranquila, A natura é mais louçã, Tudo tem mais resplendores Às seis horas da manhã. Traja a aurora vestes d’ouro, Matizando o colo1, a chã, Dando à corrente brilhantes Às seis horas da manhã. Negligente sobre o leito Meiga virgem, linda e sã, Inda jaz, cismando amores Às seis horas da manhã. Outras vezes levantada Saúda o terno galã, Que um adeus fruir viera Às seis horas da manhã. Da janela ao acenar-lhe Co’o mais formoso ademã,2 Mostrou quanto era ditosa Às seis horas da manhã. E ele disse: “Oh! mais se firma O donoso talismã Do nosso amor! – m’o3 asseguram Às seis horas da manhã!”

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Libando da esposa um osc’lo4 Nos lábios cor de romã,5 Procura o esposo o trabalho Às seis horas da manhã. Acorda a gentil criança Chorando a gritar mamã! Logo a mãe ao seio aquece-a Às seis horas da manhã. O desgraçado recorda Sonhada aventura – vã Mas essa mesma o consola Às seis horas da manhã. Já brinca à beira do lago Mui esbelta a jaçanã,6 Nessas horas dos folgares, Às seis horas da manhã. As aves trinam nas selvas, E grita a maracanã,7 As brisas serenas sopram Às seis horas da manhã. Horas! vós sois precursoras Do prazer, como do afã! É tudo vida e trabalho Às seis horas da manhã. Lá surge o sol levantino! Prostai-vos, raça pagã, De Deus a sombra que surde Às seis horas da manhã.

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Comentários 1. Colo. Emprego no sentido de zona de transição entre raiz e caule. 2. Ademã. Sinal externo, com que se manifesta o gosto, ou desprazer, e assim qualquer afeto da alma; gesto (Morais). 3. Mo. Combinação do pronome átono me com o demonstrativo o (isto): me asseguram isto. 4. Ósc’lo. Ósculo. O poeta suprimiu uma sílaba por necessidade de metrificação. 5. Romã. Fruta, de cor rósea. 6. Jaçanã. Ave ribeirinha, de bela plumagem. É o tupi-guarani nhaçanã. 7. Maracanã. Ave. Do tupi maracá = m (b) aracá (o maracá, o chocalho), nã (semelhante, parecido): semelhante ao maracá, equiparado ao chocalho (veja Romão da Silva – “Denominações Indígenas na Toponímia Carioca” – 235).

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Nênia I(oferecida à minha querida irmã, Joana C. de A e S., por ocasião da morte de nosso

querido e sempre lembrado pai) A corda que mais sonora Soava em meu coração, Já não vibra alegremente As mesmas notas de então. Agora, envolvida em crepe,1 Só exprime a minha dor; Quanto é triste o seu acento, Pungente e consternador! Ó meu pai, que me educaste Na santa lei de Jesus; Que me deste bons exemplos, Os olhos fitos na Cruz; Por que deixaste este mundo Tão solitário e cruel, Onde sinto só tristezas, E sorvo somente fel? Morreste... e eu sei que tu’alma Descansa eterna e feliz; M’o2 dizem tuas virtudes, Tua vida santa m’o diz; Porém tua ausência eterna, Tão saudosa, tão fatal, Me dilacera as entranhas Com uma dor sem igual.

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Ó vós, corações de filhos, Que inda hoje suspirais Por um pai piedoso e santo, Cuja memória ainda amais: Avaliai minhas mágoas E a dor do meu coração, Pois meu pai já não existe Minha mais doce afeição. Saudade que me acompanhas Pela morte de meu pai, Não sejas tão aflitiva; Fibras do peito chorai! E vós lágrimas saudosas, Por estas faces corre; Que eu não sei como inda vivo Sem meu caro pai, – não sei! Tu, corda que mais sonora Soava em meu coração, Vibra sons consoladores, Como as brisas da soidão; Vibra, sim, que este meu pranto É puro pranto de amor Por meu pai, que amarei sempre, Que hoje habita co’o Senhor.

Comentários 1. Crepe. Emprego no sentido de luto 2. Mo. Combinação do pronome átono me com o demonstrativo o (isto): tuas virtudes me dizem isto.

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O Piauí Vós pensais que minha terra Menos que as outras encerra De beleza e de primor? Enganai-vos: é tão bela, Tão prendada que como ela Poucas há, se alguma o for. É terra, cujas campinas Se matizam de boninas. Tem tantas frutas gostosas, Tantas aves sonorosas, Tem um sol tão criador! Tem uma manhã luzida, Tem uma tarde sentida, Que recorda tanto amor! É terra, cujas campinas Se matizam de boninas; Tem caças mui saborosas, Que vivem tão descuidosas, Sem temer o caçador! Suas madeiras têm favos Que abrigam seus filhos bravos Da fome e mais do calor. É terra, cujas meninas Mostram nas faces boninas.

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Seus rios são caudalosos, Navegáveis e piscosos,1 Emanam dizendo – amor! Tem lindas flores fragrantes,2 Ouro, prata e diamantes, E outras minas de valor. Fogem por entre boninas As nascentes cristalinas. Tem um céu tão anilado, De noite tão estrelado, Tão gentil e encantador, Que eu não sei se assim o digo Porque conservo comigo O que chamam próprio amor. Mas quem nega que as meninas Mostram nas faces boninas? Seus filhos são mui briosos, São, em geral, talentosos, Têm à pátria fido3 amor; Suas filhas são fagueiras, São lindas, são feiticeiras,4 De branca ou morena cor. É terra cujas meninas Mostram nas faces boninas. Tem uma lua saudosa, Uma brisa harmoniosa, Que exala suave odor; Tem mancebos5 dedicados, Valorosos, extremados Na paz, na guerra, no amor. Tem vales e tem colinas Matizadas de boninas.

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Vereis nas altas palmeiras, Ou nas copadas mangueiras Chilrar o alado6 cantor; Vereis, libando a doçura Do cravo, da rosa pura O fulgido beija-flor. Vê-lo-eis pelas campinas Beijar olentes boninas. Vós pensais que minha terra Menos que as outras encerra De beleza e de primor? Enganai-vos: é tão bela, Tão prendada que como ela Poucas há, se alguma o for. É terra, cujas campinas Se matizam de boninas. Minha terra é o El Dorado,7 Deleitoso, afortunado, Que Walter Raleigh8 sonhou; É o país de Cocanha,9 Onde a ventura é tamanha Que a vida nunca abafou! Oh! ide ver a minha terra Que tanta beleza encerra!

Comentários

1. Piscosos. Abundante em peixes. Pelo latim pisce, como representação excepcional do grupo sc. 2. Fragrantes. Aromáticas. Perfumadas. Não confundir com flagrante. 3. Fido. Pelo latim fidu, o mesmo que fiel. 4. Feiticeiras. Emprego no sentido de mulher que encanta por sua beleza. Atraente. 5. Mancebo. É o latim mancipiu, moço, prisioneiro de guerra, escravizado por ser mais útil ao trabalho. Emprego no sentido de jovem. 6. Alado. Latim alatu. Que tem asas, pássaro. 7. Eldorado. Explicação de nascentes: “lugar imaginário, cheio de riquezas incalculáveis (De Eldorado, o dourado, nome do soberano de um país imaginário da América do Sul, o qual ao amanhecer revolvia-se em pó de ouro).” De R. Magalhães Junior a observação: “Por estas palavras era designada uma terra do ouro, que se supunha localizada na América do Sul. Nela existiriam os maiores depósitos desse metal precioso em todo o mundo e não haveria pobres, vivendo todos na maior abundância. A lenda se originou, sem dúvida, da apreensão, por Pizarro, dos tesouros dos

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Incas, no Peru. Aplica-se a expressão, nos dias de hoje, a todas as regiões em que abundam ouro, petróleo ou outras riquezas. Voltaire, em Candide, ou L’optimisme, fez o seu herói visitar o Eldorado, nas imediações do Paraguai, e aí não tinha curso o dinheiro, por inútil, pois até as crianças, nas ruas, brincavam com pepitas de ouro...” (“Dicionário de Provérbios e Curiosidades” – 116). 8. Walter Railegh. Também se escreve Ralegh. Cortesão, navegador, colonizador, escritor. Inglês, viveu entre os séculos XVI e XVII. 9. País de Cucunha. País da abundância, onde tudo é deleitoso. Criação do fabulário da idade Média – segundo R. Magalhães Junior -, que cita Mau-rice Rat para informar haver a expressão aparecido pela primeira vez no século XII. R. Magalhães Junior transcreve Capistrano de Abreu: “Por Gabriel soares sabemos que a gente de tratamento só comia farinha de mandioca fresca, feita no dia. O mesmo autor dá uma lista, forçosamente incompleta, das conservas e doces, transplantados uns de além-mar, aprendidos outros na terra. Dir-se-ia um país de Cocagne”. Cocagne é forma francesa.

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Como a Flor do Bulebule1

Os cabelos de Maria À mais leve exalação Se embalançam, Brincam, dançam. Buliçosos eles são, Como a flor do bulebule, Aos beijos da viração. Anelados por seus ombros De uma candura sem fim, Ora adejam, Ora beijam O seu seio de marfim.2 Como a flor do bulebule, A brisa agita-os assim. Quem a visse descansando Sua face sobre a mão Docemente Negligente, Dissera-a etérea visão, Ou a flor do bulebule, Se não sopra a viração. Mas e a brisa se levanta Como as aves de manhã, Os cabelos, Louros, belos, Da terna virgem – louçã, Como a flor do bulebule, Beija-os a brisa da chã.3

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Os cabelos de Maria, Aos beijos da viração Se embalançam, Brincam, dançam Resplendem meigo clarão. Como a flor do bulebule, Seus lindos cabelos são.

Comentários

1. Bulebule. Ervinha, cuja flor se agita facilmente com qualquer vento. Figuradamente, o que é buliçoso, inquieto. 2. Marfim. Emprego figurado: branco. 3. Chã. Solo. Superfície da terra.

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O Correr da Vida Surge a aurora purpurina, Na roseira abre um botão, Brilha n’água cristalina Dessa aurora almo1 clarão. Mas passou... não volta a aurora, A fonte não mais colora, Nem o botão nessa hora Há de mais abrir-se, não. Exala a flor doce aroma, Os gozos prazer nos dão, O riso aos lábios assoma De acordo co’o coração. Mas esse aroma sumiu-se, Esse prazer extingui-se, Esse riso consumiu-se, Jamais nunca voltarão. Se meiga aurora resplende, É outra – a de ontem morreu! O botão que se desprende, Não é o que emurcheceu! O cheiro, o prazer gozado, Tudo – lá jaz no passado, Tudo, lá jaz olvidado Na era em que se perdeu!

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A brisa que hoje cicia, Que dela amanhã? – morreu! A hora passada, o dia Não volta, desapareceu!2 Mais perto estamos da morte, Trilhe este ou aquele norte, Ninguém evita seu corte, Dá-se à terra o que ela deu.

Comentários

1. Almo. Noutro local deste livro há comentário sobre almo 2. Desparecer. Noutro local deste livro há comentário sobre desparecer

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Sobre o Mar Aos crebos1 sons das empoladas ondas, Que o barco fende, perpassando ovante, Modelo as dores de meu peito aflito, Afiro as mágoas de meu peito amante. Solitário entre o mar e o firmamento, Procuro serenar meus tristes males, Porém o pensamento esbaforido Erras nestes azuis, equóreos2 vales. Por que sulcando as ondas marulhosas, Arrisco minha vida já precária? Por que não findar meus tristes dias No seio de uma gruta solitária? Mas não! Morrer sem vê-la, longe dela Fora morrer mil mortes num só dia. Morrer!... quero viver para fitá-la... Morra depois embora de alegria. Quanta vida reluz nos seus encantos! Nos seus olhos gentis quantos fulgores! Mas eu... pobre de mim! – luto co’a3 morte, Gemo ao recontro de pungentes dores! Talvez que os frescos ares que respira, Me façam renascer, voltar-me a vida; Talvez que do seu hálito no ambiente Possa minha saúde ser mantida.

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Talvez! Avante, ó barco e bem depressa! Leva-me ao suspirado porto amigo; Oh! leva-me, que eu tenho neste peito Muitas saudades que afogar comigo.

Comentários 1. Crebo. Repetido, amiudado. 2. Equóreos. Relativo ao mar. Origem latina. 3. Co’a. Noutro local deste livro há comentário sobre co’a

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Hino ao Criador Senhor, tu és o Deus, o pai celeste, Que minha mãe adora ajoelhada; Por mim, por meus irmãos, por meus parentes, Por todos, neste mundo, ela não cessa De dirigir-te aos céus frequentes súplicas. Suas lágrimas que manam saudosas Por meu Pai, que ela amava mais que tudo, Depois do teu amor que ao dele excede, São outras tantas preces que se elevam A ti, Senhor, por seu repouso eterno! Tu foste de meu Pai o Deus propício; Por ti acrisolou-se na virtude Vivendo como vive o justo e o sábio, Morrendo como morre o sábio e o justo. Senhor, o teu poder tudo proclama: O inseto humilde que se escapa aos olhos, A enorme fera que no corpo avulta, A dura pedra, o vegetal virente, A terra, o espaço, o céu, a luz, as trevas, E o homem que fizeste à imagem tua. Àquele lindo arroio que serpeia Por entre flores, ervas e pedrinhas, Mandaste-lhe correr sereno e puro, E o arroio correu! Àquele mar sanhudo que de encontro Vem quebrar-se nas duras penedias, Mandaste-lhe gemer nos seus embates, E o mar, Senhor, gemeu!

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Àquela várzea, que verdeja ao longe, Àqueles férteis prados recamados De mimoso capim, por onde pastam De minha Mãe as brancas ovelhinhas, Mandaste a chuva fecundar no inverno, E a chuva os fecundou! Mandaste à terra que seu seio abrisse, E nele recebesse o grão que a vida Dos povos alimenta; e ao grão mandaste Crescer e produzir: e o grão crescendo, Aos olhos do colono, que o mirava, Produziu e vingou!1 Oh! quanto o meu Senhor foi previdente Quando do mundo tirou do caos horrível! Como estas laranjeiras fez sombrias E lhes deu flores e dourados frutos! Como à pinha2 lhe deu sabor tão grato! Como deu à romã tão doces bagos! Senhor! Tu és a fonte donde emanam Vida e prazer, amor e poesia! O doce sabia nos seus gorjeios, O lindo pintassilgo3 nos seus descantes,4 O canário amarelo em seus trinados, As aves da soidão, que amam as trevas, Tudo, tudo, Senhor, Deus de proclama Imenso, Criador, Onipotente! Não te saúda a rosa quando se abre Aos beijos da manhã na voz da brisa? Não são tipos de amor que te revelam O cravo5, o bogari,6 os brancos lírios?7

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Múltipla a natureza em elementos, Tudo tem sua voz para louvar-te: As flores o perfume; o canto as aves; O mar seus escarcéus; o sol fulgores; O céu, onde rutilam tantos mundos, Milhões de estrelas que cintilam belas; E o homem, ledos hinos de harmonia, Do coração brotados fervorosos, Que lh’os8 dita a razão por teus favores. Hosana,9 a Deus nos céus! Na terra Hosana! Ó Deus de minha Mãe, Deus piedoso, Que na terra e no céu meu Pai amava, Aceita deste mísero vivente As flores, os incensos que te envia Nos seus versos de amor; - flores, incensos, Sem galas, sem perfumes, sem sinceros, Filhos d’uma alma que te adora crente. Oh! aceita-os, Senhor! se não desprezas A voz da brisa, o sussurrar da fonte, O bulício das ramas que te elevam Um cântico de amor fervente e terno, Jamais desprezarás a voz daquele Que por ti modelaste na feitura, Superior à toda natureza E somente sujeito ao teu destino. Sim! aceita-os, Senhor, e teus favores Derrama-os sobre mim, por piedade, E sobre minha Mãe e minha amada, E sobre os meus irmãos e a Pátria minha. Derrama-os. Minha voz será constante, Senhor, em proclamar-te o Deus propício De meus Pais, - o meu Deus que adoro humilde.

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Comentários:

1. Vingou. Empregado no sentido de amadurecer, medrar, crescer: as sementeiras vingaram. 2. Pinha. O mesmo que ata, fruta. 3. Pintassilgo. Pássaro 4. Descantes. Concerto de vozes. 5. Cravo. Flor do craveiro 6. Bogari. Flor. Também se diz bogarim 7. Lírios. Flor. 8. Lhos. Combinação dos pronomes átonos lhe e os: dita a razão a ele (lhe) homem estas cousas (os). 9. Hosana. Noutro local há comentário sobre hosana.

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O Mar e o Vento

E o vento e o mar viram nascer o gênero humano, crescer a selva florescer a primave-ra; e passaram e sorriram-se.

(A Herculano – Eurico) Irmãos, sócios nas fúrias, quem não sente O gelo do terror ao contempla-vos! Em cada vaga, que se arroja irosa, Em cada sibilar, que rijo açoita, Eu ouço a voz do Imenso, a vos do Eterno! Oh! como assemelhai-vos majestosos Àquele que vos deu poder tamanho! Como zombais nas vossas tempestades Do mísero mortal, fraco e mofino! - É que de Deus representais o verbo? Quando vossos esforços combinados, Os vossos temporais, vossos horrores Se cruzam n’amplidão do espaço imenso, Converte-se o ateu1, o cristão ora, E o guerreiro gentil olvida a espada! E vós como passais – altivo – ousado! Como sorris da própria humanidade! Que se curva, humilhada, às vossas iras! - É que Deus vos criou primeiro que o homem, E em vossas fúrias estampou seu verbo!

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Rugi! Gemei! ó mar, ó tempestade! Erguei aos ares vagalhões indômitos! Enchei o espaço de tufões2 medonhos! Que vos pode domar a raiva insana, Que cava abismos, que soçobra armadas?3 Quem vos pode domar? Deus, Deus somente. Passai – sorri – zombai da humanidade. Quem da afronta ousará tomar vingança? O homem? – este não, que o escarnecestes: - Somente o Criador, de quem sois verbo.4

Comentários 1. Ateu. Formação grega: a (elemento privativo) e theo – teo (Deus). Sem Deus. Que não crê em Deus. 2. Tufão. Vento violento. Parece que se trata do árabe tufan. 3. Armadas. Forças navais. Navios de guerra. 4. Verbo. Referência ao Filho de Deus, a segunda pessoa da Santíssima Trindade. Diz o Evangelho: “No princípio era o Verbo e o Verbo estava junto de Deus, e o Verbo era Deus. O Verbo fez-se homem e habitou entre nós e nós vimos a sua glória, glória como Filho unigênito do Pai” (São João – I, 1, 14). O Verbo feito homem é Jesus Cristo.

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O Catingueiro Nasci e crie-me nas bastas catingas,1 Nas selvas umbrosas2 de meu Piauí; Não gosto das praças, seus usos detesto, Que males e dores não sofrem-se3 aí! Ditoso me julgo, tocando a viola, Cantando os amores que temos aqui. Eu vivo contente de ser catingueiro,4 Da caça, da pesca, das frutas rendeiro.5 Voltando da roça, nas horas douradas, Sentidas que a rola 6 diz fogo apagou,7 Vi uma donzela8 risonha, formosa, Que amor em peito pra sempre plantou. Pedi-a, ma9 deram, casei-me com ela, E Deus nosso leito d’amor fecundou. Co’a esposa querida, co’os caros filhinhos, Que vida que eu passo! que ternos carinhos! Se o dia é de festa, se é santo10 ou domingo, Eu dispo11 a camisa do quente algodão, E visto o meu fato12, que tanto custou-me,13 Se acaso não quero vestir meu gibão;14 E vou-me pra vila, que o padre me ordena Que à missa não falte, não falte ao sermão. Entretanto na igreja, de joelhos curvados, Minh’alma não cisma do mundo em cuidados.

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Não cisma em cuidados, que toda se prende Às chagas, sofridas por nós, de Jesus; Meus lábios suplicam... e as preces contritas, Humildes se abraçam co’a trava da Cruz, 15 Se abraçam – que nela de Cristo os discip’los16 Enxergam seu norte,17 seu anjo, sua luz. Ditoso me julgo na crença primeira Que a mãe carinhosa ditou-me18 à lareira.19 Cumprido o preceito que a igreja nos manda No seu mandamento primeiro,20 saí, E a casa do padre vigário procuro, Que ele é meu compadre – melhor nunca vi! Co’o riso nos lábios, me diz: “Como passa? Sem ter almoçado não vá-se21 daqui.” Às vezes espero; mas outras, saudoso, Regresso à choupana,22 que eu amo extremoso. Oh quadro de encantos! de graças ornado! Sim: vede-o, invejai-m’o . Que vida esta aqui! - A esposa na porta, co’o riso da esp’rança,23 Aponta-me rindo: “Filhinhos, lá... vi!” E as lindas crianças olvidam seus brincos:24 “Mamãe! - Gritam elas – papai vem ali”. Cheguei! – minha esposa foi logo abraçando, E bênçãos25 e beijos aos filhos fui dando. Mimosos afagos me faz a consorte, Em roda os filhinhos me chamam papai, Me contam mil cousas, me pedem bolinhos; Quem vai tão ditoso no mundo – quem vai? Ó vós das cidades notai os enlevos De nossas catingas, senhores, notai!

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Não temos cuidados, que a Virgem Maria A pobre choupana dos pobres vigia. Mil frutas encontro nas vastas catingas Nas várzeas e campos do meu Piauí: Cajus,26 guabirabas,27 maduras pitombas,28 Dendês29 e palmeiras, cajás,30 buriti,31 Também há mangabas32 e umbus33 tão gostosos! Pequis34 e juçaras,35 e o bom bacuri.36 Que vida e doçura nos densos palmares, Em nossos ubérrimos,37 frescos pomares! Em nossos açudes,38 lagoas e rios, Meu Deus! que fortuna! quão provido és! Que boas branquinhas,39 que peixes gostosos, Piaus40 e corvinas,41 mandis,42 mandibés!43 Aqui só tem fome quem vive na rede, As mãos amarradas, atados os pés. Não troco esta vida, pois outra mais bela Não vejo no mundo, nem farta como ela. No inverno que vida! que dias alegres! A chuva na terra, na terra o feijão, O arroz, a maniva44 e o milho amarelo, Que nascem e medram no fértil sertão. Das vacas que mugem – de bafo cheiroso – Mungimos45 o leite que faz requeijão.46 De noite a coalhada47 na branca tigela48 Se estende na mesa tão branca como ela.

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Nas praças se mente, nas praças se zomba De nós catingueiros – dos filhos daqui: Que importa? – desprezo seus usos tiranos, Que a gente sufocam! – não quero-os49 pra mi?50 Ditoso me julgo nas margens virentes Floridas, umbrosas do meu Piauí. Não faltam-nos caças nas matas sombrias: Queixadas,51 veados,52 tatus53 e cotias.54 Belezas dos campos, belezas donosas,55 Que os olhos deslumbram nos dias de abril! A várzea verdeja de flores toucada,56 No vale baloiçam-se flores a mil! E a coma das altas, verdosas colinas Ondeia, flutua de um modo gentil! Não pode ter gozo nenhum verdadeiro Quem vive no mundo sem ser catingueiro. Orquestras das pacas – que valem, que servem! Da minha viola prefiro o rojão;58 Prefiro os tangeres59 que desse umbuzeiro, Pesado de frutos, ferindo-me estão; Prefiro essa orquestra que as aves modulam, Que calam delícias no meu coração. Delícias! Delícias! – prazer que extasia Nas asas sonoras da doce poesia! Que importa-me60 a vida dos homens da praça? Que importa? Que digam se tenho razão: Em nossas catingas mil frutos pendentes O gosto me excitam em toda a sazão;61 Em suas madeiras mil favos62 se criam, Mil favos gostosos – tão doces que são!

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Nambus,63 codornizes64 abundam nos matos Carões65 nas lagoas, marrecas e patos. Nas praças que zombam de mim: que me importa? Co’a esposa, co’os filhos em torno ao fogão, Eu vivo ditoso, não tenho remorsos, Em quanto a viola desfiro o rojão! E as coplas66 alegres com ele se casam Do peito nascidas, do meu coração. Esposa, filhinhos, cantemos, cantemos, De Deus a bondade louvemos, louvemos. Nasci e criei-me nas bastas67 catingas, Frondentes, sombrosas – do meu Piauí; Não gosto das praças, seus usos detesto, Que males e dores não sofrem-se aí! Ditoso me julgo, tocando a viola, Cantando os primores que temos aqui. Bem disse o vigário que nós catingueiros Vivemos mais fartos que em londr’os68 banqueiros.

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1. Catingas. O nome do poema é “O Catingueiro” – e catingueiro é o que habita a catinga. Esta palavra catinga também se escreve caatinga. Aliás, neste sentido em que Coriolano emprega a palavra, aparece sempre caatinga, embora os dicionários também registrem a variante catinga: “Por caatinga, entende-se um aglomerado de plantas lenhosas, de baixa altura, cuja composição, longe de ser uniforme, varia extraordinariamente de acordo com a qualidade do solo, do sistema fluvial e com a topografia geral do terreno. O xerofitismo é o seu elemento básico. As folhas caducam e desaparecem completamente nas secas. Será curioso assinalar que a grande quantidade de folhas das florações das caatingas poderia ser elemento de grande significação para sua sobrevivência. Essa transformação, porém, não se realiza por motivo da umidade do solo. Todavia, abundam nas caatingas tubérculos radiculares providos de bactérias nitrificantes, cujo tipo mais notável é representado pelas leguminosas. Essas bactérias hibernam nas secas para reaparecerem em grande atividade logo que desabam as primeiras chuvas. Dá-se, então, o milagre do verde, que surpreende o vaijante habituado à paisagem desoladora do estio” (Carlos porto – “Roteiro do Piauí” – (114-115). Mais abaixo (pág. 115) salienta o consagrado estudioso: “a caatinga é a vegetação típica do Nordeste, a mais profusa e a que lhe imprime feição peculiar”. Nascentes tira caatinga ou catinga do tupi Ka’a (mato) e tinga (branco). Macedo Soares transcreve a definição que St. Hilaire deu de catinga: “mato que perde as folhas anualmente, e ostenta menos vigor que o mato virgem – e cujas folhas são ora brancacentas, ora avermelhadas, de um bolor ou ferrugem que as cobre” (Dicionário). Acha o dicionarista que nesta acepção catinga vem do tupi-guarani cating, bolor, ferrugem. Acha ainda que caá-ting, mato branco, “como dão todos os escritores, inclusive Batista Caetano, nem tem propriedade”. Há também catinga, com transpiração fétida, bodum dos negros, que Batista Caetano tira do tupi-guarani cati, bolor, contração de caquâ ting, crescido branco (bolor). O cardeal Saraiva registrou catinga (fedor) como vocábulo de Angola. Esclarece Macedo Soares: “Mas, o que se pode concluir é que, em Portugal, o sucedâneo de

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bodum era, como na colônia do Brasil, o tupi-guarani catinga, e que esta palavra passou, como tantas outras, para a África na boca dos negros repatriados. O certo é que ela não se acha em vocabulário africano, nem nas relações dos viajantes”. 2. Umbrosas. Cheias de sombra. Procede do latim umbra, sombra. 3. Não sofrem-se. Na época em que José Coriolano escreveu ainda não estava disciplinada a colocação dos pronomes átonos. Hoje se diria: não se sofrem. 4. Catingueiro. Veja observação de n° 1. 5. Rendeiro. Indivíduo que cobra rendas. Arrendatário. 6. Rola. No linguajar indígena nheengatu a rola tem o nome de juriti. Juruti ou juriti é o tupi yiruti e uruti. Alfredo da Mata disse da rola:”Bonita rola (Leoptoptila rufolixa rich. e Bern, ordem Columbidae), que não tem manchas metálicas nas asas, o que distingue a rola do juruti (Veja Nunes Pereira – Moron Gueta – um Decameron Indígena” – 641) 7. Fogo-apagou. O canto da rola parece dizer fogo-apagou, razão pela qual ela é conhecida por esta expressão. 8. Donzela. É o latim dominicella, diminutivo de dona (latim domina) e originalmente significou moça nobre. A palavra passou a denominar a mulher solteira, virgem. 9. Ma. Combinação dos pronomes átonos me e a, representativos de objetos indireto e direto, respectivamente. 10. Santo. Dia santo, santificado. 11. Dispo. Primeira pessoa do presente do indicativo do verbo despir, irregular. 12. Fato. Roupa. Morais tira a palavra do espanhol hato. 13. Que tanto custou-me. No tempo em que José Coriolano escreveu não se havia disciplinado a colocação dos pronomes átonos. Hoje se diz: que tanto me escutou. 14. Gibão. Traje do vaqueiro, de couro curtido, de bode ou de vaqueta. 15. Cruz. Referência ao martírio de Cristo rumo ao monte Calvário. 16. Discip’los. Discípulos. O poeta suprimiu uma sílaba por necessidade de metrificação. 17. Norte. Empregado no sentido de rumo, direção. 18. Que a mãe carinhosa ditou-me. No tempo em que José Coriolano escreveu não estava disciplinada a colocação dos pronomes átonos. Hoje se dirá: que a mãe carinhosa me ditou. 19. Lareira. Laje do lar no qual se acende o fogo. 20. Mandamento primeiro. São dez os mandamentos da Lei de Deus. Eis o primeiro: “Adorar a Deus e amá-lo sobre todas as coisas”. 21. Não vá-se. No tempo em que José Coriolano escreveu não se havia disciplinado a colocação dos pronomes átonos. Hoje se dirá: não se vá. 22. Choupanha. Casa rústica de madeira ou de palha. 23. Esp’rança. Esperança. Por necessidade de metrificação, o poeta suprimiu uma sílaba da palavra. 24. Brincos. Folguedos, brincadeiras. 25. Bênçãos. De modo geral, as camadas populares não dizem bênção, mas conservam a tônica latina benção (oxítona). 26. Cajus. Fruto do cajueiro. Tem o nome científico de anacardium occidentale. Fruta de que há duas partes alimentares: o pendúnculo carnoso e doce, que se come cru e de que se fazem doces, sorvetes, cajuadas, cajuína; e a amêndoa da castanha (sendo esta o verdadeiro fruto do cajueiro) e que depois de desembaraçada )ao fogo) do pericarpo algo oleoso e cáustico, usa-se à maneira de amêndoa da Europa, em doces e confeitos, e também sob a forma de farinha (veja A. J. de Sampaio – “A alimentação Sertaneja e do Interior da Amazônia” – 225) Muito popular a casta-nha assada. Para Romão da silva caju é nome indígena: (a) ca (chifre) ajú igual a ayú (o pomo amarelo). Cf. “Denominaçõesd Indígenas na Toponímia Carioca” – 83. Macedo Soares (Dicionário) entende que vem de caá, folha, planta, mais ju igual a jub, amarelo. 27. Guabiraba. Fruto da guabirabeira. Nascentes tira do tupi gwa’bi, comestível, e rab, relativo de ab, pelo, por alusão a ser tormentoso, razão pela qual se chama cabeluda. 28. Pitomba. Fruto da pitombeira. 29. Dendês. Fruto da palmácea africana e da espécie amazônica. Cultivada para a produção de óleo ou azeite de dendê. Nome africano de palmei-ra do Congo e da Guiné, introduzida no Brasil. Forma derivada, dendezeiro. 30. Cajás. Fruta muito apreciada para refrescos, sorvetes, cambicas. Vem do tupi cã igual a (a) cã. (osso, caroço) e já igual a yá (fruta) – a fruta de caroço, o fruto que é todo caroço. 31. Buriti. Nome científico: mauritia vinifera. Palmeira muito alta. Dá frutos comestíveis. “em tempo de calamidade – escreveu Almeida Pinto – o povo erra pela matas à procura destes frutos, para mitigar a fome; mas o uso cotidiano e prolongado deles determina um amarelidão na cútis”. Macedo Soares acrescenta:”O tronco fornece por incisão excelente suco vinhoso; as folhas têm variadas aplicações; op caule fornece madeira de construção: faz lembra a tamareira dos desertos da África Central”. Palavra indígena: imbiriti – de i (água) mais mbiriti, que emite, que bota, que escorre. Na Amazônia se diz miriti. Dos cocos do buriti se prepara vinho e a famosa buritizada (doce de polpa do fruto). O óleo é alimentar. 32. Mangaba. Fruto delicado. Estomacal. Dele se faz doce. O leite é aconselhado contra a tuberculose pulmonar. Do tupi-guarani mangab, fruto que fornece borracha. De fato, o leito coagulado fornece borracha de superior qualidade (Veja – Macedo Soares – Dicionário). 33. Umbu. Também imbu, forma preferível, talvez do tupi ia-imbu, fruto que dá água. Comestível. Da polpa do fruto bem maduro se prepara a imbuzada, com leite e açúcar. Também se faz o doce de imbu. Os tubérculos do imbuzeiro são comestíveis e deles, segundo Gilberto Freyre, se prepara cocada de batata de imbu. 34. Pequis. Josué de Castro dá o pequi como fruto indígena (“Geografia da Fome” – 211). Este fruto isento de casca é cozido com água e sal e comido puro ou com farinha d’água. Também se come cru, ou cozido com feijão, ou arroz. Escreve-se ainda piqui, mas pequi é melhor. Muito usado o óleo de pequi, obtido da polpa do fruto e da semente. 35. Juçara. Romão da Silva (op.cit.) oferece o seguinte como etimologia: - ju igual yu (espinho; fragoso; pungente) çara (ser, o que é) – ju igual a yu (espinho, espinhento) içara igual a yçara (cerca, esteio, tapume) – a cerca ou tapume de espinho; o esteio fragoso ou espinhento. E acrescenta: “Diz-se no comum do espinho utilizado pelos índios à guisa de agulha”. E adiante: “Jiçara e iuçara (q.v) designa uma casta de palmeira (Euterpe edulis), a que chamam também açaí; a fruta dessa palmeira da qual se faz uma beberagem saborosa e muito apreciada no Norte do Brasil” (pág. 214). Para Macedo Soares, açaí provém de ia (fruta) e çai, que chora, bota água. Raimundo Morais disse do açaí, o mesmo que juçara: “Amassado, produz um vinho purpurino, aromático, que é tomado com açúcar e farinha d’água ou farinha de tapioca. Em Belém, capital paraense, as amassadeiras de açaí assinalam as respectivas quitandas com uma bandeirinha encarnada” (O meu dicionário das Cousas da Amazônia” – 66)

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36. Bacuri. Fruto e semente comestíveis. De Raimundo Morais: “O fruto, amarelo, parece uma laranja grande. A polpa é branca, acidulada e doce. A compota é fina, delicada, incomparável. O sorvete – simplesmente delicioso. Dos frutos naturais da planície é o mais gostoso. Os filhos, como são chamados os gomos sem caroço do fruto, comidos crus, com farinha d’água torrada, constituem uma sobremesa excelente” (op. Cit – 72). Esses gomos sem caroço, pelo menos no Piauí, recebem o nome de língua. 37. Ubérrimo. Superlativo absoluto sintético de úbere (abundante). 38. Açude. Palavra de origem árabe. 39. Branquinhas. Peixinho de água doce. 40. Piaus. Peixe. Nome indígena: “pele manchada”. 41. Corvinas. Peixe saboroso. Deriva-se de corvo por causa da cor. 42. Mandis. Nome indígena: “pele manchada”. 43. Mandibés. Nome de peixe. Denominação indígena. 44. Maniva. Explicação de nascentes: “Planta da mandioca, também chamada maniveira. Caule da mandioca (Norte). (Do tupi mani’iwa, arvore de mani; Mani era o nome de uma jovem que morreu de amores e de cujo corpo, segundo uma lenda, brotou a raiz da planta)”. 45. Mungimos. Verbo mungir. Ordenhar. 46. Requeijão. Lacticínio, geralmente de fabricação caseira, feito de leite de vaca ou de cabra. 47. Coalhada. De coagulare, latim. Morais registra coagular, coalhar e qualhar. E acrecenta que a forma divergente coalhar melhor se escreve qualhar. Aurélio só registra coagular e coalhar. Em “Geografia da Fome”, Josué de Castro refere-se ao alimento: “E não é só com milho que se consome leite em abundância nop serttão do Nordeste, mas de muitas outras formas. Misturtando com café de manhãzinha, ou com a colhada fresca ou escorrida...” (pág. 204). Coalhada é o leite coagulado, geralmente de vaca. Coalhada, em tijelas de barro, nos sertões do Nordeste (A.J.Sampaio –“A alimentação Sertaneja e do interior da Amazônia” – 241). Anoto estas considerações de Martins de Aguiar: “É o mesmo caso de coalho, coalhar, coalhada, coalheira. De co-alhar passou a cu-a-lhar e, em fim, a cua-lhar (qualhar). Qualhar é clássico e está no sapiente Morais. É a única feição gráfica que deve tomar o verbo (e todos os cognatos), pelo menos no Brasil, onde só um tolíssimo pedante proferirá cu-alhar. Se em Portugal o fazem, nobreza e povo, é que influiu nos eruditos a lembrança do étimo latino, coagulare, e o vulgo se pôs docilmente a imitá-los”. (“Notas de Português de Felinto e Odorico” – 425) 48. Tigela. Origem latina. Vaso de louça ou de barro. Forma de xícara, sem asas. 49. Não quero-os. No tempo em que José Coriolano escreveu, não estava disciplinada a colocação dos pronomes átonos. Hoje se diria: não os quero. 50. Mi. Forma arcaica do pronome mim. No latim, mihi. A nasal m de mihi nasalou a vogal i, de que resultou mi, mim. As nasais possuem a tendência de nasalização das vogais com que estão em contato. No português arcaico já aparece mim. 51. Queixadas. Porco bravio. Espécie de porco-do-mato. Substantivo feminino. 52. Veado. Do latim venato, animal de caça. 53. Tatus. De ta (pelo, confundindo com ca), casca, escama, e tu que pode ser tou igual a toó abs. de oó, encorpado, denso. Há duas espécies de tatu: a tatu-peba (de peb, chato) e o tatu-bola. 54. Cutias. Animal roedor. Romão da Silva tira cutia de a-cu-ti ou a-gu-ti, o indivíduo que come com as patas dianteiras, feito gente. 55. Donosas. Feminino de donoso, elegante, gracioso, belo. 56. Toucada. Emprego em sentido figurado, orlado, encimado. 57. Coma. Folhagem das árvores, copa. 58. Rojão. Câmara Cascudo acentua que conheceu a forma velha de rojão, aí por 1910: era pequeno trecho musical, tocado a viola ou rabeca (por ambas também), antes do verso cantado pelo cantador.como na cantoria do desafio não havia acompanhamento musical, os trechos eram executados antes do verso e depois, para o descanso do primeiro cantador e pausa para o adversário prepara a resposta. Depois de 1918 – conti-nua ele – rojão tem nova significação, valendo duração, medida, forma, estilo da cantoria, sua extensão e modelo (veja – dicionário de Folclore Brasileiro). 59. Tangeres. Substantivo masculino plural desusado. Significa tocatas, soadas, ou sonatas de instrumentos músicos. No caso, emprego figurado. Na pronuncia o ge é aberto. 60. Que importa-me. No tempo em que José Coriolano escreveu não estava disciplinada a colocação dos pronomes átonos. Hoje: que me importa. 61. Sazão. Estação do ano. Figuradamente, tempo apropriado à colheita de frutas. 62. Favos. É o depósito de mel das abelhas. 63. Nambus. Ave. Tem os pés e bicos vermelhos e por canto um assobio longo e estridente. Também aparecem inamu, inhambu, enambu, nhambu. Etimologia proposta por Rodolfo Gareia; y demonstrativo (igual a o que, aquele que), am, em (pé) e bur (emergia): o que emerge em pé, a prumo; ou de y – am (a que se levanta, mais ba, estrondado); ou de y – nhumbú (o que corre surdindo, ou emergindo, ou que levanta o vôo rumorejan-do). 64. Codornizes. Plural de codorniz. Origem latina. O mesmo que codorna, ave campestre, caça muito procurada. 65. Carão. Ave. 66. Coplas. Estrofe de certo número de versos que faz parte de uma canção ou cançoneta. 67. Bastas. Feminino de basto, espesso, denso, abundante. 68. Londres. Capital do Reino Unido (United Kingdon of Great Britain and Northern Ireland). Constituído de Inglaterra, Gales, Escócia e Irlanda do norte. A chamada Grã Bretanha, a maior ilha da Europa, é constituída da Inglaterra, Gales e Escócia. O Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do norte, na área metropolitana, tem uns dez milhões de habitantes.

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A Virgem do Crateús Oh! não!... pincel, não pode o mais sublime Pintar o brilho teu! A poesia te cante; ela se exprime Co’a linguagem do céu. (D. Antônia Gertudres Purich – Portuguesa) Há na minha província uma ribeira, Um sertão, onde eu vi a vez primeira Sorrir-me da existência a doce luz: Tem o nome da tribo1 que o habitava, Quando ao rude tapuia2 entregue estava, Esse nome, sabei-o, - “Crateús.”3 Não tem matas sombrias, espaçosas, Não tem serras soberbas, grandiosas, Que apontem gigantescas para o céu: Tem somente campinas decoradas De campestres ervinhas perfumadas, Que estendem sobre o chão seu verde véu. Tem várzeas vicejantes, salpicadas, De um sem número de flores nacaradas, E brancas como a rosa e o jasmim; E d’outras mui gentis, cheirosas flores, Tão belas no matiz, nas várias cores, Esmaltando o tapete de capim.

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Pois foi nessa ribeira, em que a verdura Parece uma alongada cobertura, Tecida pela mão do próprio Deus, Onde também gozou a luz primeira, Aquela que é rainha da ribeira Na formosura d’anjo e dotes seus. Pintá-la... tentativa sem proveito! Só a mente a concebe, só o peito, E os olhos, que deslumbram o seu fulgor! Palavras... essas não, que a não descrevem, Que lhes faltam perfumes; não se atrevem Nem sequer a esboçar-lhe a tez., a cor! Quem pudera pintar-lhe os fios4 louros? Os meigos, vivos olhos - dois tesouros, Que pudera-os5 pintar? – Certo, ninguém! Azula-se debalde o firmamento, Debalde o graminoso pavimento Verdeja sobre a terra - aqui – além! – Mas, tentemos, talvez...; busquemos cores: Que modelos gentis, encantadores Nos of’recem6 o céu, a terra, o mar; Há’í cores por certo primorosas; Mas não são como as cores graciosas Dos olhos que eu procuro, em vão pintar! Eles têm um volver tão deleitoso! Uma luz que a luzir infiltra um gozo, Que as fibras vão queimar no coração! Que abrasa sem matar, que dá mais vida, Parece uma centelha despedida Lá do céu... mas não sei se será, não!...

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Sua boca de rosa, seu sorriso Entreaberto – parece um paraíso! Seus dentes, nem o gelo7 é branco assim! Se ela dá-me8 uma fala modulada Pelas falas dos anjos – afinada, - Se ela ri-se9 donosa para mim... Ai! que eu homem não fico! – mudo e frio, Me converte em estátua o calefrio10 Que nos gélidos membros me coou! Empanam-se-me os olhos, enlanguescem E das faces as cores desfalecem Como o lírio pendido que murchou! Que belas são as cores da alvorada! A aurora tem a face tão rosada! É meiga em seu sorrir – é meiga, sim! Tem flores, tem perfumes – é tão bela! Mas não tem o que tem no riso dela Quando ri-se,11 donosa para mim! Mulher ela não é: silfo12 ligeiro, Percorrendo, talvez, o mundo inteiro, Anda ao peito a acordar novo sentir!... É, talvez, uma idéia sedutora... É, talvez, um sorriso da SENHORA,13 Que pairou sobre a terra a refulgir! Quem me dera gozar um só instante – Agora – aquele olhar tão cintilante, Que só têm as estrelas lá no céu! Quem me dera! Tão longe!... o que faz ela? Dorme? Sonha? – Talvez! Nem eu, donzela, Poder do sonho teu rasgar o véu!...

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Infeliz que sou eu! Nunca julguei-o, –14 Este inferno, em que ardo, em que me ateio! Mas de que me queixar? – quem m’o forjou? Ajuntei em montões os combustíveis, Acendi, aticei-os! E, insofríveis, Ardo neles! Meu Deus! Que infeliz sou! Insofríveis! Oh! não: por ti querida, Eu dera de bom grado a própria vida; Qu’importa?... A dura ausência terá fim. Serei, serei um dia venturoso, O futuro me acena dadidoso; Que bens que ele entesoura para mim! Oh! e quanto eu te adoro, ó minha imagem! Gemerei; mas não temas vassalagem, De meu peito pra outra: oh! isto não. Sou firme como a rocha combatida, Donde a vaga recua espavorida, Como a fé que desprende a contrição. Linda virgem, feitiço15 de minh’alma, Nem sabes quanto sofro! Em doce calma Tu, porém, bebe o ar desse sertão! Linda virgem, meu anjo, meu tormento, Sobe às asas sutis do veloz vento Vem dar-me um lenitivo ao coração. Não é moça, meu Deus! – é uma idéia Angélica, querida, que volteia Em torno à mente minha: mulher não! É talvez, um sorriso da SENHORA, Transformado em imagem sedutora Que pede neste mundo adoração.

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1. Tribo. Referência aos Crateús, índios que habitaram a região do hoje município de Crateús, Ceará. No tempo em que o poeta escreveu, Crateús pertencia ao Piauí – com o nome de dois municípios – Independência e Príncipe Imperial. O Piauí trocou os dois pelo de Amarração, hoje Luís Correia, porto marítimo. O Ceará fundiu os municípios de Independência e Príncipe Imperial num só, com o nome de Crateús. Odilon Nunes, mais de uma vez, no 1º Volume de “Pesquisas para a História do Piauí”, faz referência aos índios Crateús. Eis um passo: “Em 1703, os Anapurus pedem aldeamento, mas um pouco mais tarde estão a perturbar a tranqüilidade dos colonos, e assim também os Crateús que levam o desassosse-go ao Ceará e Piauí e contra os quais toma o Governador de Pernambuco medidas repressivas”. (pág. 109). 2. Tapuia. Índios bárbaros. Tapuias habitavam o norte, e tinham muitas tribos com várias denominações. 3. Crateús. Veja nota 1. 4. Fios. Empregado como cabelos. 5. Quem pudera-os pintar. Na época em que José Coriolano escreveu ainda não estava disciplinada a colocação dos pronomes átonos. Hoje se diria: quem os pudera pintar ou quem pudera pintá-los. 6. Of’recem. O poeta suprimiu a vogal e para diminuir uma sílaba (necessidade de metrificação). 7. Gelo. Empregado no lugar de neve. 8. Se ela dá-me. Na época em que o poeta escreveu não estava disciplinada a colocação dos pronomes átonos. Hoje: se ela me dá. 9. Se ela ri-se. Veja nota 8. 10. Calefrio. Também calafrio. Formas variantes. 11. Quando ri-se. Veja nota 8. 12. Silfo. “Ser macho sobrenatural, que, segundo crenças celtas e germânicas, ocupava no mundo invisível posto intermediário entre gnomo e a fada”. (Nascentes). 13. Senhora. Nossa Senhora. 14. Nunca julguei-o. Veja nota 8 15. Feitiço. Para uns provém de feito mais sufixo iço, nome dado ao ídolo feito pelo próprio adorador. Para outros promana do latim facticiu, com evolução fonética normal. Empregado como encantamento, encanto.

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Careço de Teu Amor Eu careço1 de ti, ó minha amada, Como da rotação carece a terra, Como d’alma carece o corpo imbele,2 Como o mundo de tudo quanto encerra. Eu careço da luz desses teus olhos, Como as plantas da luz do sol carecem, E da gota d’orvalho a flor no prado, E da mansão celeste os que falecem. Eu careço do teu riso fagueiro, Como o crepusc’lo3 do fulgir d’aurora, Como carece o arrebol do ocaso, E a terna virgem do chorar que chora. Eu careço do teu falar tão meigo, Como dos bosques das brisas sussurrantes, Como os regatos do arenoso leito, Por onde se deslizam murmurantes. Sim, do teu hálito, careço, ó bela, Como o vivente do ar que se respira, Como os astros do céu, onde fulguram, Como a rosa do aroma que transpira. Do teu amor careço, ó minha amada, Como das ondas da praia em que se quebram, Como as aves do canto mavioso Com que tão docemente se requebram.

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Do teu amor careço, ó minha amada, Como o nauta carece da bonança, Como um peito que geme consternado Carece de seus males a mudança. Tu és o meu santelmo,4 a minha vida, Sem ti o q’eu seria? um desgraçado, Folha seca do ramo desprendida, Um fantasma na vida já penado. Ou se não fora muito: apenas sombra, De um ente que amou tanto, e, malfadado, Vive dores curtindo e acerbas penas, Os dias consumindo desgraçado. Eu te amo, como se ama a meiga aurora, A noite de luar, a flor do prado, Os favônios5 brincões, e as harmonias Dos cantores gentis do bosque ondado. Qual alma e carinhosa mãe solicita O filhinho que aperta sobre o peito, Assim eu te consagro amor tão íntimo Que não posso dizer-t’o6 com efeito! Sim, Maria, meu anjo, quanto te amo Eu não posso dizer-t’o! Como ousara Sem palavras que exprimam quanto sinto! Como eu te amo, ninguém talvez amara! Tu és o meu santelmo, a minha vida, Sem ti o q’eu seria? – um desgraçado, Folha seca do ramo desprendida, Um fantasma na vida já penado!

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Comentários

1. Eu careço. Rigorosamente o verbo carecer significa não ter: ele carece de razão, isto é, não tem razão. Aparece também em grandes escritores como necessitar, da forma em que empregou o poeta. 2. Imbele. Fraco, sem forças. 3. Crepusc’lo. Supressão de uma sílaba por necessidade de metrificação. Crepúsculo. 4. Santelmo. Chama azulada que, principalmente, em ocasiões de tempestade, aparece nos mastros dos navios, por efeito da eletricidade (Aurélio). 5. Favônios. Vento fagueiro, suave. 6. Dizer-to. To aqui é combinação do pronome átono te com o demonstrativo o: dizer-te isto.

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Voto de Gratidão

(À filantropia do ilustre cidadão inglês o Sr. George Patchett, tão bem prodigalizada na calamitosa quadra epidêmica em que nos achamos.)

“Semper bonus, nomenque tuum, laudesque manebunt.”

(Virgílio)

Poeta, não me curvo ante os altares Da lisonja que sempre detestei; Nunca da lira fiz subir aos ares Vendidos cantos, - nunca os modulei. Só presto culto à cândida amizade, À virtude, ao herói só prestarei; Só me curvo ante o altar da Divindade; No pó da infâmia nunca rojarei. Estro de minha pátria, santo enleio, Que meu peito dilata, ó gratidão! Derrama nestes metros1 que encadeio Tua doce e suave inspiração. Que eu diga em poucos versos as virtudes Daquele piedoso coração, Onde não cabem preconceitos rudes, E só ferve o ardor da compaixão. Filho querido de Albion,2 teu nome Entre nós assumiu alto renome, Co’o o heróico Pernambuco há de morrer; Mas, enquanto o pendão de sua glória Tremular nos anais de nossa história, Teu nome abençoado há de viver.

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A sorte, que te olhou tão davidosa, Não a vês a sorrir-te mais donosa, Mostrando-te um porvir de tanta luz? É o fogo celeste que fulgura!... Que espera decorar-te a fronte pura Do lume etéreo, que no céu transluz! Filha de Deus, excelsa caridade! Com teus louros de tanta piedade Engrinaldaste a fronte do bretão:3 São louros eternais, que não fenecem. Imarcescíveis – nunca se esvaecem, Perfumados do orvalho de Sião.4 Este povo tão nobre e hospitaleiro, Que, sempre denodado, do estrangeiro Soube o jugo tirano sacudir, Não se humilha à mentida potestade, Mas aos feitos da santa caridade Profunda gratidão sabe nutrir. Sabe! Terra de bravos, belicosa, Nos triunfos, doutrora, tão famosa, Quando em prol de seus foros batalhou, Repeliu sempre o ousado aventureiro; Mas hoje ao heroísmo do estrangeiro Tributa as homenagens que ganhou! Feliz do povo quando na batalha Expõe o peito impávido à metralha Ensurdecido aos ecos do canhão, Por libertar a pátria escravizada; E depois – beija a mão abençoada Do estranho que leniu sua aflição.

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Pátria de Newton,5 Inglaterra, exulta Aos sons da lira brasileira – inculta! Novo lustre realça os brilhos teus. Nas artes, no comércio poderosa, Nova c’roa6 te cinge luminosa, Mais grata aos homens e mais grata a Deus. Quantas dores, bretão, não tens poupado À terna filha, ao filho desvelado, À mãe solícita, ao afanado pai? Quantas dores, bretão, tens removido Do par ditoso que somente unido Ditosa a vida no correr lhe vai! Homem sublime! Herói – que herói se chama Aquele que se aquece à pia7 chama Da caridade – aceita o voto meu De eterna gratidão, - filho somente De um peito brasileiro incandescente À nobre ação que te franqueia o céu. Filho querido de Albion, teu nome Entre nós assumiu alto renome, Co’o o heróico Pernambuco há de morrer; Mas, enquanto o perdão de sua glória Tremular nos anais de nossa história, Teu nome abençoado há de viver. Recife (pelo cólera), 22 de março de 1856

Comentários 1. Metros. O mesmo que versos. 2. Álbiom. Antigo nome da Inglaterra. Pronuncia-se Ólbion. Ainda hoje por Álbion se designa literalmente a Inglaterra. Em inglês a palavra não toma acento gráfico. Pode em português escrever-se Albião. 3. Bretão. Da Bretanha. O mesmo que inglês. 4. Sião. Em hebraico Zion, Tsion. Nome de uma das colinas de Jerusalém. Nome que também poeticamente se aplicou a toda a cidade de Jeru-salém. Tornou-se o símbolo da esperança da volta do povo judeu para a Palestina. Sião tem sido motivo poético desde o rei-poeta Davi e outros

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autores dos salmos bíblicos, até Dante e Camões. 5. Newton (Isaac). Físico e matemático inglês (1642 – 1727). Descobridor da gravitação e da teoria das cores. Obra principal: “Philosophiae naturalis principia mathematica” (Princípios matemáticos da filosofia natural), em que a formulação definitiva da mecânica de Galileu e abriu caminho para as descobertas do setor da mecânica celeste e continuou incontestada até a formulação da teoria da relatividade. Estabeleceu os fundamentos do cálculo infinitesimal. 6. C’roa. Coroa. Suprimida uma sílaba por necessidade de metrificação. 7. Pia. Piedosa. Observação: No final da poesia, José Coriolano escreveu: pelo cólera. Segue-se o estudo. CÓLERA-MORBUS. Ou cólera-morbo, ou simplesmente cólera. Assim descreve Drigalski a respeito deste mal. “Tão rica em maravilhas mas tão fértil em calamidades, tão freqüentemente maltratada pela natureza como pelos conquistadores é a Índia, que foi em todos os tempos e que é ainda a sede de um outro mal terrível. Na planície compreendida entre o delta do Ganges, o Hongli, o Bramaputra e os contrafortes do Himalaia uma epidemia violenta irrompe freqüentemente. No mais quente verão – na estação fria isto se produz mais raramente – acontece sempre que um indígena, depois de ter consumido os belos frutos da região, bebido da água de uma lagoa sagrada ou de algum poço, seja presa de uma doença repentina. Todo o corpo parece esvaziar-se numa diarréia irrepreensível; apesar do calor, o doente não pode transpirar. Sofre uma sede insaciável, sua face torna-se toda parda, seu corpo se desseca, seus membros tornam-se arroxeados e frios. A voz fica tão fraca, que ele só pode falar com grandes esforços. Perde logo os sentidos”. Todos os continentes conheceram o terrível mal. Na América do Sul, só em 1869 foi extinto. Cólera, como paixão, ira, frenesi é a palavra feminina. E quanto à doença, deve dizer-se o cólera ou a cólera? Referindo-se à doença, Aurélio dá cólera como substantivo feminino e masculino: a cólera, o cólera. Eis anotação de Silveira Bueno: “ O substantivo cólera é feminino, mas no composto cólera-morbus vem predominando o gênero masculino de morbus. A maioria dos gramáticos insiste no gênero: a cólera-morbus. A maioria, porém, do povo teima em levar ao masculino: o cólera-morbus. Quem vencerá? O povo” (Questões de Português” – pág. 87). Napoleão Mendes de Almeida sustenta que “o composto cólera-morbo é do gênero feminino”. Por esta forma se manifesta Cândido de Figueiredo: “Ao ler diariamente os numerosos telegramas que nos anunciam os casos coléricos da Rússia, de Paria, e da Itália, sinto destes calafrios, que não exprimem terror, mas uma repugnância instintiva pelo nome que dão à epidemia: o cólera”. (“Lições da Língua Portuguesa” 2º vol – 1901 – Lisboa – pág. 300). E acrescenta: “A palavra cólera, de origem grega, é feminina em todos os dicionários do respectivo idioma; passou para o latim, e ali também conservou o gênero feminino; passou para o português e aqui foi sempre feminino na boca dos mestres da língua e nos dicionários de melhor nome”. Julgo oportuno transcrever estas considerações de Vasco Botelho de Amaral (“Problemas da Linguagem e do Estilo” – 1948 – págs. 190 a 192): “Quem abrir um dicionário de grego, como o de Bailly, por exemplo, encontra lá o vocábulo khole, biles, fel, e, no sentido figurado, cólera, ira. Em kholera, feminino, já se lê o sentido especial da doença. O latim recebeu do grego a palavra e pode ver-se em Quicherat que o vocábulo cholera, também feminino, significa na língua latina a biles, ou a doença da cólera, ou o sentimento da ira. Tanto nesses dicionários, grego de Bailly ou latino de Quicherat, como noutros, toda gente pode verificar que o vocábulo greco-latino referia muita vez o próprio vômito que caracteriza tão medonha doença. Temos, pois, que a palavra cólera já no grego e no latim nomeava a doença física e a doença sentimental, com a biles como base das perturbações, e já nessas línguas era feminina. Passemos agora a ver o que aconteceu em francês. Consultando etimólogos franceses, como Dauzat, aprendemos que o latim cholera deu em francês choléra (como nome da doença caracterizada pelos vômitos, isto é, pelas perturbações biliosas) e colère, isto é, ira. Colère é feminina em francês. Mas le choléra (o nome da doença) é masculino. Ora, como em Portugal há muita gente que se limita a papaguear a França, o gênero masculino francês do nome da doença começou a aparecer em traduções portuguesas. Começou quando? Quando – não se sabe. Mas eu direi: sempre que a doença flagela alguma região do globo, a língua francesa espalha a notícia e os tradutores portugueses espalham a asneira de cólera no masculino. Ora, não está certo que os nossos diários e, em reflexo do noticiário das agências, também as emissoras, ora empreguem a palavra num gênero ora noutro. Uns chamam a essa horrível doença a cólera; outros o cólera. De estranhar é que a nossa Imprensa e a nossa Rádio concedam à palavra dois gêneros. Mas eu ainda me admiro mais de não haver censura para certas indisciplinas. A vítima é sempre a língua portuguesa; e o resultado, a desorienta-ção do público. Em Portugal e no Brasil foram vários os filósofos que se ocuparam do gênero da palavra cólera. Entre outros, defenderam a feminilidade de cólera os autores seguintes: Leite de Vasconcelos, Cândido de Figueiredo. Ribeiro de Vasconcelos, Gonçalves Viana. Era de supor que, depois das advertências desses Mestres da língua, não mais tornasse a aparecer “o cólera” em letra de forma. Redondo engano. A palavra hoje continua a ser tratada como hermafrodita pelos tradutores e pelos redatores portugueses. Não se julgue que tal gênero incorreto não aparece em obras de responsabilidade. O excelente Dicionário de Aulete e Valente apresenta cólera no masculino, o que é verdadeiramente lamentável. Além da sobredita razão de o vocábulo ser em grego e em latim o mesmíssimo que traduz a doença e o sentimento, além dessa razão, há ainda a contribuir para o gênero feminino a terminação em a, peculiar de tal gênero, e o uso dos melhores autores portugueses. Os mais competentes autores de obras de Medicina em Portugal e no Brasil adotaram sempre a cólera, e não o cólera, à francesa. Artistas da pena sempre lhe deram esse gênero, como Alexandre Herculano, o qual em O Monge de Cister escreveu: “Com rapidez da cólera ou da peste...” (IX, tomo I, 17ª edição). Muitas vezes acrescenta-se à palavra cólera o vocábulo latino morbus, isto é, doença. Como é masculino, toma-se em francês o conjunto le cholère-morbus como masculino. Os tradutores portugueses imitam e dizem “o cólera-morbus”. Ainda neste caso, devemos, porém, corrigir para o feminino, considerando morbus como um elemento justaposto de cólera, que é feminino. No dicionário de Dificuldades indiquei aos estudiosos esta abonação de Garret, nas Obras Completas: “é a cólera-morbus”. Em suma: o cólera, o cólera-morbus são erros. A cólera ou, então, a cólera-morbo – sempre feminino. Eis a correção indiscutível”.

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A Donzela e a Sensitiva A donzela é prazenteira, Como a aurora quando raia; Tão fulgente, Tão nitente, Como a luz que o sol espraia: Ela é como a sensitiva,1 Que ao leve toque desmaia! É tão meiga como o riso Da criancinha inocente; É mimosa, Duvidosa Qual luz d’aurora nascente: Ela é como a sensitiva, Que do toque se ressente, A donzela tem caprichos, Como as vagas caprichosas; É qual bela Meiga estrela Sobre as águas marulhosas: Ela é como a sensitiva, Como as flores mais donosas. Às vezes nas faces dela Brilha a cor que tem a rosa, Desbotada, Desmaecida Depois vê-se a cor mimosa. Ela é como a sensitiva, Que se ofende melindrosa.

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Sim, às vezes a donzela É como a cecém2 cheirosa Sempre amada, Festejada; Outras vezes melindrosa. Assim como a sensitiva, Como as vagas – caprichosa. A donzela oculta espinhos Como a rosa em defensiva; Se embravece, Mas murchece Depois como a sensitiva! Às vezes ela é tão branda! Outras vezes tão altiva!!

Comentários

1. Sensitiva.Planta. Noutro local há comentário sobre sensitiva. 2. Cecém. O mesmo que açucena.

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A Órfã de Amor e A Rosa DesfolhadaOh! quanto minha sina se assemelha À triste sina desta pobre flor! Ambas sofremos o rigor da sorte, Ambas somos, meu Deus, órfãs de amor! O quente estio dissecou-lhe as pet’las,1 O vento desfolhou-a pelo chão, Faltou-lhe o orvalho da manhã serena, Como a mim o bater de um coração... O céu foi meu rival! E o sol brilhante Que nos dias felizes me raiou, Também se converteu em sol nocivo, Que a seiva desta vida ressecou. Também as mansas auras que brincavam Com meus soltos cabelos pelo ar, Tornaram-se tufões ardentes, rijos, E ousaram meus amores desfolhar! Porém diz-me, flor, que te secaste Ao sol estivo,2 que te fez morrer, Não há para o perfume e para a vida Uma terra em que devem reviver?

Comentários

1. Pét’las. Pétalas. O autor suprimiu uma sílaba por necessidade de metrificação. 2. Estivo. De estio, de verão. Estival.

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A Vítima do Poder

(Fato) Um pão, Senhor, um pão vos eu suplico, Oh, se não, desta vida alivia-me. Mil inferno, não valem, não importam Os tormentos cruéis que a alma me pugem! Desde muito, Senhor, meus longos males Hei servido comigo – a sós – em pranto; Mas a fome voraz me abrasa toda, E a vossos pés prostrada um pão esmolo! Meu marido morreu, da sanha vítima De tiranos mandões – assassinado! Culpado nunca foi, - honesto e probo, Tendo o voto prestado em prol da pátria, Foi convicto1 de crime! Oh tirania! Meu filho, que a seu pai sobrevivera, Que curava de mim pobre, abatida, Foi gemer na chibata desvalido, Deixando desolada a mãe viúva! E que crime, Senhor, meu filho tinha? Que vícios, que maldades no seu peito Podiam asilar-se em tal idade? Ah! seus crimes, seus vícios eram estes: O ser filho de um pai honesto e probo, O cuidar de uma mãe misera e velha, Que o esposo dia e noite pranteava, Único apoio de um irmãzinha, o único Que bis restava, além do pai celeste. Potentados da terra, homens sinistros,

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Que a sede saciais no sangue nosso, Essa sede cerval,2 - temei perversos, Temei de Deus a vingadora espada, Que mil galopes fulmina aos infratores Dos seus santos preceitos de igualdade. Senhor, se acaso sois também tirano, Se é férreo vosso peito, ímpio, sangrento, Vossa esmola desprezo, e só desejo Que esta vida fatal tirai-m’a presto.3 Meu Deus! meu deus! perdão! vede – eu deliro! Entre as vascas cruentas d’agonia, Meu esposo me fala, e o desgraçado, O meu querido filho das entranhas Eu – lá vejo gemer sob a chibata, Curvado, envolto em sangue e sem alento. * * * Assim delirava a triste, Do tempo exposta ao rigor; Oh! que peito humano houvera Infenso à tamanha dor? Envolto seu corpo em trapos, Como seu rosto em palor, Rojava no chão a triste Agonizante – em furor! Depois soltou um gemido, Tremeu e quêda4 ficou: Toquei-a! que horror! – gelada! A desgraçada expirou!

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Oh! quantos assim se acabam, Como essa pobre acabou! Seu filho sob a chibata Quem sabe? – talvez findou. E a orfanzinha, coitada!... Que será dela também! Oh! quanto a pobre criança Na vida sofrido tem! Não é sonho isto que ledes, Nem poética ficção, Pois eu vi convulsa a pobre, Vi-a estendida no chão. Depois toquei o seu corpo! Coitada! Não tinha ação, Da terra havia voado Para a celeste mansão. Comentários

1. Convicto. Qualificativo do réu cujo crime ficou provado. 2. Cerval. Relativo ao cervo. 3. Tirai-ma presto. O ma corresponde à combinação dos pronomes me e a: tirai a vida (ela: a) a mim (me). Presto: com presteza. 4. Queda. Feminino do adjetivo quedo (quê). Que não se move. Calmo. Sossegado.

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Nos Anos de Maria

(em 21 de dezembro de 1856) Já um sol Deus tinha feito Quis Deus fazer outro sol Com crepusc’lo1 mais fagueiro Com mais fagueiro arrebol. Já uma aurora existia Ornada d’oiro e rubim2 Porém Deus fez outra aurora Mais formosa para mim. Já nos céus milhões de estrelas Cintilavam a fulgir; Porém Deus fez outra estrela Que tem mais doce luzir. Já uma luz espargia Sua luz d’almo3 fulgor; Porém Deus fez outra lua Mais bela por seu langor. Já mil flores recendiam, O cravo, a rosa, o jasmim; Porém Deus das flores todas Criou outra flor pra mim.

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E o sol novo, e a nova aurora, E a nova estrela a luzir, E a nova flor, que eu adoro, E a nova lua a fulgir. És tu, Maria formosa, Mulher fagueira e gentil, Que os mesmos astros supera Que giram no céu d’anil. E o sol dos amores De meigos fulgores Sepulta os ardores No mar ou lá não? Num bar bem estreito: Sepulta-os de feito No mar de meu peito No meu coração. E a aurora nitente, Fagueira, ridente, Com manto rubente De roxo clarão, Me cura as feridas Na ausência sofridas, No pranto embebidas Do meu coração. E a estrela donosa Fadada, formosa, Querida, mimosa, De meigo clarão, Também no meu peito No mar bem estreito Tremula de feito, No meu coração.

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E a lua saudosa, Gentil, langorosa, De luz duvidosa, De frouxo clarão, No mar bem estreito Também de meu peito Reflete de feito No meu coração. E a flor engraçada, A flor perfumada, De todos amada No pátrio sertão, Exalam odores, Mimosos favores, Por ser os amores De meu coração. O sol vem lá do oriente, Sepultar-se no ocidente Tingindo de fogo o mar, Dando á borboleta amores Nos refletidos fulgores, No refletido brilhar. Outra vez nasce brilhante Outra vez morre inflamante, Tingindo de purp’ra4 o céu; Às trevas sucede o dia, Ao dia a noite sombria Coberta de escuro véu.

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E sempre o sol é fulgente Quando vem lá do oriente No occíduo5 mar se ocultar, Durante o curso aclarando Montes, prados, e lançando Sobre tudo o seu brilhar. Porém este sol descrito Mesmo belo está proscrito D’outro sol pelo fulgor; D’outro sol que dentro d’alma Derrama cousa que acalma Gemidos de um trovador. É um sol que é um céu formando Nele vê-se cintilando Mil planetas, é a flor Mais galante e meiga e pura, Tem a celeste figura Dos anjinhos do Senhor. Este sol mais refulgente, Que eu adoro ardentemente, Este sol do meu amor, Hoje viu a luz primeira, Luz vital, grata, fagueira, Luz de meigo resplendor.

Comentários

1. Crepúsc’lo. O poeta suprimiu uma sílaba por exigência de metrificação. 2. Rubim. Há comentário noutra parte do livro. 3. Almo. Noutro local há comentário sobre esta palavra. 4. Púrp’ra. Púrpura. Veja nota 1. 5. Occíduo. O mesmo que ocidental.

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Sabes Amar? Talvez amar não saibas! Não, não sabes, Se vives satisfeito, se ela o vive; Se, quando te sorri, teu peito folga; Se uma palavra terna que te envia, Te arrebata ao pináculo da glória, E faz-te ouvir o sussurrar das brisas, E o murmúrio da fonte que serpeia, E o canto ingênuo das sonoras aves, E a deliciosa música dos anjos: Se assim é teu amor, amar não sabes! Mas, se teu peito torturado geme, Quando o sorriso nos seus lábios pousa, Se tua alma se alegra a sós contigo, Quando os seus olhos umedece o pranto; Se, a meiga voz te cala n’alma Seus ternos, suavíssimos acentos, Descrer do que ela diz, do que ela jura, E logo te arrependes e te humilhas, E incrédulo, depois, o amor praguejas: Se assim é o teu amor – amar tu sabes. Mais de uma vez em minha triste vida Amor tenho ensaiado... hoje em meu peito À virgem do sertão derramo olores. Porém ela sorri, quando em me rio, É ditosa, é feliz, se eu sou ditoso. No passado houve alguém que escarnecia Do meu pranto e sofrer, mas que chorava,

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Se nos meus olhos, se nas minhas frases Descobria sinais de aprazimento:1 Essa... amava-me, sim, mas era um monstro! Amor não gera em mim delícias brandas Nem razoável acho-o em seus efeitos: Faz-me o peito ferver em duras fráguas, E faz-me apetecer martírios dela! Sim, vê-la sempre rindo, encantadora, Botão que desabrocha ao romper d’alva, A falar-me de amor como os eflúvios Da noite que branqueja em noite estiva, Oh! fora para mim tormento e morte! Não quero o seu amor assim, - não quero. Vê-me o rosto a esp’rança2 fulgorosa? Vê-me nos lábios o sorrir dos crentes? Vê-me nos olhos a paixão que brilha? Pois mostre-me no rosto o desalento, Mostre-me os lábios trêmulos sem vida, Mostre-me os olhos lânguidos de pena. Mas, se comigo sente as dores minhas, Eu vejo nela a serpe3 que se finge; Se ao ver-me alegre, prazenteira folga, Eu julgo seu prazer filho do engano! Amar é mui difícil, pois só ama Quem sente amor contrário como eu sinto.

Comentários

1. Aprazimento. Prazer. Contentamento. 2. Esp’rança. Esperança. Supressão de uma sílaba por necessidade de metrificação. 3. Serpe. O mesmo que serpente.

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Êxtase Minh’alma, às vezes, de visões bem cheia Deixando a terra se remonta aos céus! Presa nas asas de eternal idéia, Descansa à sombra do espaldar de Deus! Momento doce que embriaga a mente Em doce arroubo que lhe faz sentir! Batendo as asas para o Céu ridente, Eia, minh’alma, vai ao Céu fruir! Quanto é sublime do Supremo1 a obra Que misteriosa se revela além! Segredo! – aos juizes do Senhor se dobra Tudo! – quem pode-os2 penetrar? Ninguém! Somente o bardo nas canções singelas Do Eterno3 o templo poderá abrir! Bate, minh’alma, tuas asas belas, Eia, minh’alma, vai ao Céu fruir! Deixa as terrenas ilusões do mundo, Sobe, minh’alma, canta Hosana a Deus, Beija-lhe o sólio4 com prazer profundo, Em coro – unidas com os anjinhos seus. Olvida as pompas que no mundo passam Qual da loureira5 o desleal sorrir; Esquece enganos, que o porvir te embaçam: Eia, minh’alma, vai ao Céu fruir!

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E quando houveres em prazer banhado Teus seios – fartos – dos perfumes lá, Volta, minh’alma, do meu corpo ao lado Saudosa pousa, suspirando cá. Espera a hora do tremendo juízo,6 Que há de no campo Josafá7 surgir: E então que glória – dir-te-ei num riso: Eia, minh’alma, vai ao Céu fruir!

Comentários

1. Supremo. Deus. 2. Quem pode-os. Na tempo em que José Coriolano escreveu ainda não estava disciplinada a colocação dos pronomes átonos. Hoje: quem os pode. 3. Eterno. Deus. 4. Sólio. O mesmo que trono. 5. Loureira. Loureira emprega-se como mulher de vida desregrada, também como mulher provocante e sedutora. 6. Juízo. Referência ao juízo final, julgamento que Deus fará de todos os homens, no fim do mundo: “Serão todas as gentes congregadas em torno de Jesus Cristo, que separará uns dos outros como o pastor separa os cabritos das ovelhas, e assim porá as ovelhas à direita, e os cabritos (os pecadores) à esquerda”. (Padre J. Lourenço – Dicionário da Doutrina Católica”. 133). 7. Josafá. Parece que o poeta não se refere ao célebre rei Josafá, de Judá. A referência parece feita ao vale de Josafá, identificado com o vale de Cedron, onde os católicos romanos e os maometanos dizem ser o lugar do juízo final. Simples conjetura.

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Os Dez Mandamentos 1º Eu te amo, ó bela! em ti, por ti, me inflamo... Meu peito já não sente um outro efeito Que não do teu amor! Se durmo e chamo... O lábio pronuncia Teu nome que radia N’est’alma, meu amor 2º Não juro à outra... não: oh! eu perjuro!... Eu? – nunca! Antes morrer numa espelunca1 Como o tigre acoimado, fero2 e duro. Jurar à outra bela, Trair-te, a ti,3 por ela?... Isso não, meu amor! 3º Desejas? queres?... Bem! Pra que tu vejas Que eu quero obedecer a quem venero, Viverei encerrado, se o almejas Nos domingos e dias De festas, d’alegrias, Viverei, meu amor!

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4º Respeito aos caros pais. Negar-te o preito Que pede a amada e o amador concede Para os obedecer?4 – não quer meu peito. Tudo farei, mas nisso, Não, não, doce feitiço,5 Isso não, meu amor! 5º A vida que ao mortal é tão querida Tira-la eu? Não: que horror que isto me cala! Mas em tua defesa – eu homicida6 Serei, eu assassino, Tigre, monstro ferino, Mas por ti, meu amor! 6º Quem visse teus encantos, quem sentisse O doce mimo que te envolve, e fosse Capaz de te ofender, e não nutrisse Um coração de fera, De tigre ou de pantera,7 Isso não, meu amor! 7º Poeta, esse não furta: qual atleta, Desejo tem de herói: porém um beijo Eu morro para furtar-t’o: assim a meta Do heroísmo tocara; Somente assim furtara, Só assim, meu amor!

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8º E falso testemunho, em cujo encalço Descrido, eu apanhado, eu desmentido, Não, nunca levantei! Porém refalso9 Um fato, uma verdade Por um f’licidade10 Gozar-te, meu amor! 9º Comigo, tu, querida! Oh! eu contigo, Logrando o mago11 céu, que ando sonhando No grêmio do consórcio, sacro abrigo Das pudibundas12 almas, Sonhar lascivas palmas... Isso não, meu amor! 10º Cobiça de que é d’outrem, que enfeitiça Um peito pouco nobre, à inveja afeito, Em mim seu torpe facho não atiça. Porém cobiço, bela, Os mimos que revela Teu coração de amor Os dez13 se encerram em dous. Eu amo a Deus14 e a ti me inflamo... A Ele por ser Deus, tu, porque d’Elle És o mais precioso e gentil ramo. Depois da Divindade, A ti, minha beldade, A ti o meu amor.

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Comentários

Observação: são dez os mandamentos da Lei de Deus: 1) adorar a Deus e amá-lo sobre todas as cousas; 2)não invocar o santo nome de Deus em vão; 3) santificar os domingos e festas de guarda; 4)honrar pai e mãe; 5) não matar; 6) gastar castidade nas palavras e nas obras; 7) não furtar; 8)não levantar falsos testemunhos; 9) guardar castidade nos pensamentos e nos desejos; 10) não cobiçar as cousas alheias. 1. Espelunca. Lugar imundo. Origem grega, pelo latim. 2. Fero. Noutro local há observação sobre fero. 3. Trair-te, a ti – Caso de pleonasmo. Na frase há dois objetos: te e a ti. 4. Para os obedecer. Embora antigamente se usasse o verbo obedecer com objeto direto (os), hoje se fixou o objeto indireto (lhes), como no caso. 5. Feitiço. Noutro local há observação sobre feitiço. 6. Homicida. Em homicida há a raiz latina de homine (homem), seguida da vogal de ligação dos elementos latinos, que é i, finalmente cida, derivado da raiz do verbo latino caedo, caedis, caedere, cecidi, caesum, com a significação de ferir, matar. Deveria ser hominicida, mas suprimiu--se uma das duas sílabas próximas nasais, fato a que se dá o nome da haplologia (simplificação). Noutro local, veja o que escrevi a respeito de bondadoso. 7. Pantera. Animal carnívoro muito violento. 8. Descrido. Particípio de descrer. 9. Refalso. O poeta empregou o verbo refalsar, que os dicionários não agasalham, sim o verbo refalsear, enganar, atraiçoar. 10. F’licidade. Felicidade. Supressão de uma sílaba por necessidade de metrificação. 11. Mago. Emprego no sentido de delioso, encantador. 12. Pudibundas. Que tem muito pudor. 13. Os dez. referência aos mandamentos, antes citados. 14. Amo a deus. Caso de objeto direto com preposição. Assim pode aparecer o objeto direto quando representado por nome próprio, e noutros casos.

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A Virgem e a Roseira Linda virgem pensativa Vagava só num jardim, Seu rosto estava tristonho Amor a tornara assim. Seus olhos não tinham vida, Nem suas faces rubor, Que uma rival despiedada1 Lhe roubara o seu amor. Viu numa bela roseira Um semi-aberto2 botão, Querendo a virgem colhê-lo, Estendeu-lhe a nívea mão. Diz-lhe a roseira; “Donzela, Acaso algum mal te fiz?” A mão recolhendo a virgem: - Não roseira, assim lhe diz. - Não supus que mal fazia - Em tirar-te este botão; - Pra suprir a falta deste, - Outros muitos brotarão. Tornou-lhe a verde roseira: “Tu virgem, não pensas bem! Se um amante te hão roubado, Procura, pois, outro bem.

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Mas, se àquele só votavas Tua extremosa paixão, Eu dentre todos prefiro Também só este botão.” Linda virgem pensativa, Que vagava num jardim, Voltou cismando mais triste! Amor a tornara assim.

Comentário

1. Despiedada. Que não tem piedade. Cruel. 2. Semi-aberto. Semi é o elemento latino com a significação de a) quase; b) metade, meio; c) um tanto.

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O Triste Arcano!1

Lamento a sorte que me faz poeta, Não que eu engenhe divinais canções; Poeta n’alma cuja dor secreta Do peito faz-me rebentar vulcões!... Tenho um segredo que na fria lousa Comigo à terra deverá baixar; No peito guardo-o, pois ali repousa O triste arcano que me faz penar. Embalde tenho consumido os anos Em falsas cismas... em penar sem fim; Não saiba o mundo, de fatais enganos, Aquele arcano... que só cumpre a mim! A campa gélida comigo desça. São desventuras que convém calar; Basta que eu saiba-o2 e que Deus conheça O triste arcano, que me faz penar. Dize-lo aos homens... não no3 quer o peito; Que importa aos homens o segredo meu? Soubera-o o anjo... se não fosse afeito Àquelas juras... como o penso eu. Porém os anjos não perjuram... minto! É triste a cisma que me faz chorar! Do peito viva no fiel recinto O triste arcano, que me fez penar.

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Feliz julgai-me! Não no sou, por certo! Anri meu peito, vê-lo-eis de dor Contudo, enfermo, qual baixei incerto, Lançado às rochas por um mar de horro. Segredo infausto que, talvez na campa, Meus curtos dias me fará murchar! E a lousa4 apenas saberão que estampa O triste arcano, que me faz penar. Rireis! – qu’importa – não permita o fado A sorte, um anjo, ou a mulher, ou Deus Que o peito vosso, qual o meu, penado Concentre males como os males meus. Males que pode desfazer somente Um riso d’anjo... de mulher falaz...5 Mas não que a fala, que o sorrir desmente O triste arcano, que me faz penar. Corram meus dias lacrimosos, mestos,6 Julgem-me os homens, por demais feliz; Fruindo julguem-me prazeres festos,7 E ocultem versos o que o rosto diz! Comigo – aos sorvos – beberei meus males Até meus dias, meu viver findar; Nem leve a brisa pelos amplos vales O triste arcano, que me faz penar. Embalde tenho consumido os anos Em falsas cismas... em penar sem fim; Não saiba o mundo, de fatais enganos, Aquele arcano... que só cumpre a mim! À campa gélida comigo desça: Basta que eu saiba e que Deus conheça O triste arcano, que me faz penar.

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Comentários

1. Arcano. Segredo profundo. É o latim arcanu, secreto, oculto. 2. Que eu saiba-o. Na tempo em que José Coriolano escreveu ainda não estava disciplinada a colocação dos pronomes átonos. 3. No. Nos clássicos, principalmente, o pronome átono, acusativo de 3ª pessoa, o, a, os, as assume, por assimilação, a forma no, na, nos, nas, depois de vozes nasais. - Viam-no chegar. - Não na deixariam prear impunemente (Rui). - Que não sabe a arte, não na estima (Camões). No português de hoje, depois de bem, não e quem, vai desaparecendo o modelo clássico: não o desejo, por exemplo. 4. Lousa. Emprego já comentado noutra parte deste livro, com a mesma significação. 5. Falaz. Que engana intencionalmente. 6. Mestos. Tristes. 7. Festos. O mesmo que festivos. Pronúncia aberta (fés).

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A Vida Humana é Sofrer É breve o viver d’aurora, Mas essa vida d’um’hora Brilha, fulgura e colora Tudo ao seu alvorecer; Pura nasce e morre pura, Não sabe se há desventura, Mas a humana criatura Nasce e sofre até morrer! Vive o sol somente um dia Foco de luz, de poesia, Muitos climas alumia De seus raios co’o fulgor; Dá vida às plantas nascentes, Aquece os bosques virentes, Torna as águas transparentes, Todo (ou tudo) é brilho e resplendor! Tem a flor bem curta vida, Porém na estação florida Vive entre galas1 – querida Impera no toucador.2 Tem uma cor de beleza: Branca, - parece a simpleza; Rósea, - parece a pureza, Ofendida em seu pudor.

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Entre as ramas que vicejam As ternas aves se beijam, E das brisas que bafejam Sentem em torno o frescor; Mas o homem vem ao mundo, Sofre em breve um golpe fundo, Depois outro mais profundo E morre entre ais e entre dor. Sim, o homem um só instante Vivendo, sofre constante Dissabores sempre avante, Sempre avante até morrer! Brilha a aurora e o nitente, Recende a flor inocente, Beijam-se as aves contente,3 E o homem sempre a sofrer! Comentários

1. Galas. Pompa. Fausto. Abundância. Alegria. 2. Toucador. Espécie de cômoda encimada por um espelho e que serve a quem se touca ou penteia (Aurélio). 3. Beijam-se as aves contente. O poeta empregou contente no singular, com o valor de advérbio: beijam-se contentemente as aves.

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O Que eu Quero Em quanto a sorte me persegue avara, E a dor dos males me deslustra o rosto, Tenho um consolo: no futuro hei posto Minha esperança mais donosa e cara. Mas, se das turbas através eu passo E não lhes ouço murmurar meu nome, Penso que a sorte, que a cruel consome Tantos castelos1 que velando faço! Então os olhos, a cismar, dilato, E encaro a esfera que me está suspensa... E num arroubo de uma idéia imensa À porta augusta dos vindouros bato! Talvez – orgulho – que a avareza cega, Talvez – um erro – que me embala a mente; Mas, quem não olha pra o futuro crente? Quem destes sonhos – tão gentis – renega? Cubra-me o corpo muito embora aterra, E em meu jazigo,2 em cuja paz repousa, Nenhum letreiro me decore a lousa,3 Nem caia um pranto, que a saudade encerra. Não quero pranto, nem letreiro ou flores, Quero somente que meu nome e glória No tempo augusto da imortal memória Radie ao evos4 co’imortais fulgores.

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Comentários

1. Castelos que velando faço. Castelos no ar. Imaginar coisas excelentes mas irrealizáveis. 2. Jazigo. Sepultura, túmulo 3. Lousa. Pedra funerária que se coloca sobre a sepultura. 4. Evo. Século. Perpetuidade.

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Primeiras Águas Foge, pavoroso espectro1 Maça magra e poeirenta, Deixa vir o guapo jovem Que a tudo, meigo, aviventa. Em teu ossudo regaço2 De medonha catadura, Só chilra o grilo, a cigarra, Só há poeira e secura Porém nos frescos domínios Do jovem que assoma rindo As árvores vêm florescendo E os prados também florindo. O velho tronco lascado,3 Que tinha a seiva perdido, Sente as fibras se lhe incharem, E brota reverdecido. O jericó4 suculento, Que na seca se encolhera, Caindo no chão a chuva, Mais belo reverdecera! A gentil cebola brava,5 Dos prados lindo ornamento, Pelas várzeas e campinas Brinca e se embala c’o vento.

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Nos galhos reflorescentes Os canoros passarinhos Se lembram de seus amores, Se fazem ternos carinhos. E troveja pra o nascente, E o tempo todo empardece, E a terra inchada verdeja, E o velho tronco enverdece. Oh! quanta é minha ventura Por gozar na minha terra De amor os brandos influxos, Que esta gentil quadra encerra! O colono imaginando No seu lar, no seu porvir, Mostra no rosto a esperança Nos lábios mostra o sorrir. O fazendeiro contente Dá largas ao coração; Sente o peito dilatar-se Nos campos do seu sertão, E a semente cai na terra Pelas mãos do lavrador; Mil frutos dela se esperam Entre risos, entre amor. E o fazendeiro à porteira Abóia6 as vacas que vêm Berrando pelos bezerros Que o curral seguros tem.

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Notai aquela vaquinha: Que berro saudoso – momm!... Pois ela chama o filhinho, Que responde ao terno som! Te os sapinhos nos charcos Festejam ao modo seu Esta quadra deleitosa Que a natureza nos deu! Oh! vida, quem não te inveja, Nem sente gosto e prazer: Senti-los, sem invejar-te, Não sei como possa ser! E a chuva cai em torrente, E a terra toda alagou; Corem riachos e grutas, Mais de um açude sangrou. Meu Deus! Prestai-me saúde Neste meu sertão gentil, Onde o inverno é tão belo, Onde o céu tem tanto anil!

Comentários

1. Espectro. Sentido figurado. Espantalho. 2. Regaço. Sentido figurado: lugar onde se repousa. 3. Lascado. Rachado, quebrado. 4. Jericó. Planta da caatinga. Pode secar completamente sem morrer. 5. Cebola-brava. Planta da família Narcisáceas. 6. Abóia. Do verbo aboiar, derivado de boi. Aboiar é cantar à frente do gado; toada pouca variada e triste; serve para guiar e pacificar as reses, e sobre estas exerce muita influência, quando saudosa e em viagem”. (Juvenal Galeno). Aboio é canto sem palavra, marcado exclusivamente em vogais, entoado pelos vaqueiros quando conduzem o gado. (Cascudo). Os vaqueiros abóiam para orientação dos companheiros. Para atrair o gado. Para guiar a boiada. Também se diz aboiado, como Euclides da Cunha: “... ecoam melancolicamente notas do aboiado...”

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A Um Passamento Triste rola, por que gemes? Tua dor quem motivou, Que te carpes nestas horas, Quando o sol já se ocultou? Lastimoso e triste sino Quem te ensinou a dobrar Deste modo tão penoso Que o peito faz-me1 ansiar? Brisa serena da tarde, Por que passas a gemer Pelas folhas da mangueira? Por que vens-me2 entristecer? Sol formoso, que douravas O céu com teu arrebol, Por que perdeste essa cores, Que eu tanto te amava, sol? Lua pálida, mimosa, Astro belo, inspirador, Por que mais lânguido brilho Ressumbra do teu fulgor? Rosa bela, purpurina, Por que te murchaste assim? Lírio, por que te secaste? Por que morreste, jasmim?

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Meu coração, por que sofres? Por que bates, coração? Que desgraças me anuncias Nesta tua agitação? Ah! já sei: tudo me indica Triste nova, que se deu; Tudo lamenta uma esposa, Que bela e jovem morreu! Mas, ah! – lembrei-me que a esposa, Se para o mundo morreu, Para o céu mais venturosa Entre glórias reviveu.

Comentários

1. Que o peito faz-me. Na época em que José Coriolano escreveu não estava disciplinada a colocação dos pronomes átonos. Hoje: que o peito me faz. 2. Por que vens-me? Veja nota 1

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Beijos Mudos Não quero dar-t’os na face, Na lisa fronte não quero, Nem quero um beijo que estale Nos lábios com todo o esmero: Eu quero um lânguido beijo, Mudo abrasado de pejo. Não quero que ninguém saiba Que eu te beijei, meu encanto; Eu gosto dos beijos mudos, São beijos que sabem1 tanto! Depois – as brisas loureiras São por demais chocalheiras. Basta que os lábios se rocem Mudos, bem mudos de pejo; É testemunha indiscreta A brisa de um som de um beijo, Pode contar no arvoredo O que se fez em segredo. E as flores podem ter zelos2 Invejar nossa ventura Podem ferver tantos beijos Nas flores pela espessura! E podem brisas e flores Divulgar nossos amores.

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Por isso delícias minhas, Toma um terno e mudo beijo! Não é mais doce e macio? Não tem mais fogo e mais pejo? Um beijo assim sabe tanto! Toma inda outro, meu encanto!

Comentários

1. Sabem. Verbo saber. Empregado no sentido de ter sabor. 2. Zelos. No plural corresponde a ciúmes.

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O Rei

Reis da terra o que sois? Oh quase um nada (G. Dias)

Sentado no trono soberbo, brilhante De pedras luzentes e de ouro e cetim,1 O rei se espreguiça, notando o cambiente2 Das sedas custosas e do ouro e rubim Da mente lhe fogem tristeza humanas, Que humanas tristezas não sentem os reis; Circumdam-lhe o sólio volúpias insanas, E em torpes prazeres imerso vê-lo-eis.3 Real diadema, cingindo-lhe a fronte, Mortal não supõe-se,4 mas julga-se um Deus, Nos vastos domínios – quem há que o afronte, Não são-lhe5 os vassalos quais vis pigmeus?6 Baixelas7 riquíssimas, taças doiradas, Manjares opíparos – tudo primor, O gosto lhe excitam, e as horas passadas No vinho, na gula que lhe trazem torpor. Do marmor,8 do jaspe9 deslumbram-lhe as cores, E as vestes refulgem com mago esplendor; Dos vasos pendentes exalam-se as flores De em torno a seu trono perfumes e odor.

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Mil quadros lascivos vigiam-lhe o leito, Forrados de sedas, de moles coxins;10 Mil quadros que acendem-lhe11 a flama no peito, Que em beijos apagam-lhe12 maus serafins. E os paços13 se atulham de infames vassalos, De damas corruptas, de vis cortesãos, Que todos procuram os reis para honrá-los, Curvar-lhes os joelhos, beijar-lhes as mãos. São todos sedentos de fama e de glória, Sem feitos briosos, sem nobres ações! A vida estudai-lhes: vereis sua história, Manchada de crimes, de negras paixões. Vereis suas frontes ao peso curvadas De louros sangrentos de vítimas mil! Zombando – profanos! – das cousas sagradas Com riso de mofa, com ar senhoril! Vereis ondular-lhes na mente orgulhosa Enxames, sem conta, de idéias cruéis; Vereis sua pena mover-se impiedosa, Selando mil mortes, - cruentos lauréis! Tiranos do mundo, num lago de horrores A purp’ra14 profana, nem podem lavar! E a purp’ra manchada, que escorre em cruores,15 Não sabe outra cousa, que o vício acatar! Abutres famintos, flagelo dos povos São todos os testas-coroados, - os reis; Voltejam-lhe o leito febris, sempre novos, Prazeres impuros, - tais sempre os vereis!

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História de monstros – dos reis é a história: Um bom dentre centos, - os mais são maus reis; Deveres conculcam, dos homens escória, São massas inertes, são massas sem leis. São massas16 inertes, que um rei sem virtude É rei só na forma, no peito não é: Senhores se dizem, e em tal atitude Nos gozos que passam somente têm fé. Poeta livre não me curvo ao ouro Dos reis perversos, que tiranos são: O falso brilho do seu vil tesouro Ofusca a escravos, mas a livres não. Somente a escravos, pois o povo é nobre Por natureza, mais gentil brazão Que esses ganhados do suor do pobre Como os dos reis pela mor17 parte o são. Os reis detesto, porque neles vejo Impresso o selo de um viver de horror; Direis que o fausto que o circunda invejo, Dizei-o embora, que hei de vós só dor. Dizei-o embora! Mas sabei que o peito Do poeta é livre, como livre sou; Não crê nos ídolos da grandeza, e preito Só rende ao justo que ação justa obrou. No livro magno que contém a história Dos reis mundanos, o que aí vereis? Sinistros feitos e fatal memória Legada aos evos por ignóbeis reis.

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Esse Alexandre,18 que às nações deixara Um nome cel’bre,19 que jamais ganhou, Ébrio – execrável! O seu braço alçara Ferindo aquele que o até20 salvou! A mesma pátria que no livre seio Produziu Brutus21 e gerou Catão,22 Gemeu nos ferros, no infernal enleio De reis protervos – como todos são. Sim, lêde os feitos de um cruel Tibério,23 E os de um Calígula24 inda mais cruel; Vêde, fazendo lupanar do império De Cláudio a esposa,25 sensual, infiel!... E Nero...26 o monstro ainda mais que a fera Cruento e mau, de coração cerval, Páginas negras de sangrenta era Juntou à história mais cruel, fatal! E esse guerreiro que apregoa a fama, Que para sempre no Waterloo27 caiu; Em cujo peito laborava a flama Incendiaria – qual jamais luziu!... Fui um tirano que usurpou impérios, E que da esposa vil repúdio fez!28 Como os Calígulas e cruéis Tibérios Foi Bonaparte29 tão cruel, talvez. De quantos Neros se recheia o mundo! Não posso, oh nunca! – querer bem aos reis; Num mar de gozos, nesse pego30 imundo Os reis polutos sempre aí vereis.

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Dos reis inveja... não se ajusta ao peito Do poeta livre, como livre sou; Não creio em ídolos de grandeza, e preito Só rendo ao justo que ação justa obrou

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1. Cetim. Tecido lustroso e macio. Origem árabe. 2. Cambiante. Gradação de cores. Cor indistinta. Alguns estudiosos lhe atribuem indiferentemente o masculino e o feminino. Escritores de grande notoriedade empregaram cambiante no masculino: “A fé e a superstição misturam os seus reflexos num cambiante confuso” (Manuel Bandeira). 3. Vê-lo-eis. Ao futuro do presente não se junta, depois dele, o pronome átono. Ou o pronome vem antes do verbo – não o vereis, ou no meio do verbo: vê-lo-eis. 4. Não supõe-se. Na época em que José Coriolano escreveu não estava disciplinada a colocação dos pronomes átonos. Hoje: não se supõe. 5. Se são-lhe. Veja nota 4. 6. Pigmeus. De muito pequena estatura. 7. Baixelas. Utensílios empregados no serviço da mesa. 8. Mármor. Termo poético. O mesmo que mármore. 9. Jaspe. Tipo de quartzo que apresenta grande variedade de cores. 10. Coxim. Almofada, ou travesseiro, para descanso. 11. Que acendem-lhe. Veja nota 4. 12. Que em beijos apagam-lhe. Veja nota 4. 13. Paço. Forma evolvida do latim palatiu. Este latim deu duas formas portuguesas: palácio e paço. 14. Púr’pra. Púrpura. José Coriolano suprimiu uma sílaba por necessidade de metrificação. Púrpura é substância vermelho-escura. Também vestuário dos reis, como na poesia. 15. Cruores. Sangue que corre, sangue que sai dos vasos. Matéria corante que entra na composição do sangue. Parte coagulante do sangue (Nascentes). 16. Massas. Emprego no sentido de corpos. 17. Mor. Forma contraída de maior. 18. Alexandre. Veja noutro local herói de Alexandria, que é o mesmo Alexandre, ou Alexandre III o Grande (356 – 323 a.C.). Rei da Macedônia. Destruiu Tebas. Venceu Dario. Conquistou Tiro, Gaza e o Egito. Fundou Alexandria. Apoderou-se da Babilônia. Um dos maiores guerreiros da história da humanidade. 19. Cel’bre. Célebre. Supressão de sílaba por necessidade de metrificação. 20. Que o até salvou. Próclise é a colocação do pronome átono antes do verbo. No caso houve reforço da próclise. 21. Brutus. Político e escritor romano (85 – 42 a.C.). Protegido de César, mas participou da conspiração contra este, que, vendo-o brandir um punhal, gritou: Tu quoque, Brute, fili mi! (Tu também, Brutu, meu filho!). 22. Catão. Marcus Porcius Cato, dito Catão o Antigo (234 – 149 a.C.). tribuno. Político austero e honesto. Lutou contra o luxo das mulheres. No senado exigiu o aniquilamento da cidade de Cartago. 23. Tibério. (Tiberius Julius Caesar). 42 a.C – 37 d.C. Imperador romano. Tomado de desconfiança e misantropia, retirou-se para a ilha de Capri, deixando parte de suas responsabilidades a Sejano, que tramou a queda do imperador. Tibério mandou matar Sejano e vários membros do senado e da família imperial. 24. Calígula. (Caius Caesar Augustus Germanicus) – dito Calígula (12 d.C – 41). Imperador romano. Foi educado entre os soldados, respon-sáveis por seu cognome de cáliga, calçado militar. Sucessor de Tibério. Enlouqueceu no poder. Extravagante e cruel. Quis que seu cavalo Incitatus fosse nomeado cônsul. Lamentava que o povo romano não tivesse apenas uma só cabeça para que pudesse degolá-la de um só golpe. Assassinado. 25. Do império de Cláudio a esposa. Cláudio I (Tiberius Claudius Caesar Augustus Germanicus – 10 a.C., 54 d.C.). Imperador romano. Epiléptico. Drenou o lago Fucino. Sofreu a influência de suas esposas Messalina, depois Agripina. Esta o envenenou. José Coriolano faz referência especialmente a Messalina (Valeria Messalina), que se entregou à devassidão e foi executada por ordem do imperador. 26. Nero (Lucius Domitius Nero Claudius). Nasceu em 37 d.C. Faleceu em 68. Sucessor de Cláudio. Mandou matar o irmão Britânico e a própria mãe. Cruel. Imperador romano, realizou governo despótico e libertino, que contou com a cumplicidade da segunda esposa Popéia, acusou os cristãos do incêndio de Roma, e pelos cristãos foi acusado de incendiá-la. Perseguiu o cristianismo. Abandonou o poder depois de declarado inimigo público pelo senado. Fez-se matar por um liberto. 27. Waterloo. Escreveu José Fonseca Fernandes: “Waterloo é uma povoação a quinze quilômetros do centro de Bruxelas (Bélgica). Deu nome à batalha em que Napoleão Bonaparte foi vencido pelos exércitos reunidos dos ingleses de Wellington e prussianos de Bulow e Blücher, última e derradeira batalha em que se empenhou o maior general-de-campo da idade contemporânea. Uma batalha que Napoleão perdeu na última hora por ter faltado tirocínio militar a um de seus marechais, Grouchy, o indeciso auxiliar que não soube incorporar-se ao grosso das tropas em combate, permitindo às reservas prussianas comandadas por Blücher que decidissem a sorte da contenda” (“Europa de Sempre” – 176). 28. E que da esposa, vil repúdio fez. Referência ao fato de se ter Napoleão Bonaparte divorciado de sua mulher Joséphine Tascher de La Pagerie para casar-se com Maria Luísa, da Áustria. 29. Bonaparte. Napoleão I, imperador dos franceses de 1804 a 1815. General. Cobriu-se de glória como guerreiro em quase todo o mundo do seu tempo. Venceu a Itália. Ocupou Alexandria no Egito. Restabeleceu a ordem na França. Restaurou a paz religiosa. Participou da redação do

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código civil, um dos maiores monumentos jurídicos de todos os tempos. Anexou a ilha de Elba à França. Nomeado Presidente da República italia-na. Reorganizou a Alemanha. Reformou a universidade e realizou grandes obras de urbanismo. Quando anexou a Holanda, atingiu o máximo de poder. Foi desastrosa a guerra que fez à Rússia. Abdicou do trono. Exilado em Elba, mas voltou ao poder. Perdeu finalmente a batalha de Waterloo. Abdicou segunda vez. Feito prisioneiro pelos ingleses na ilha de Santa Helena, aí faleceu seis anos depois. 30. Pego. O mesmo que pélago, mar profundo. O poeta empregou a palavra em sentido figurado.

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A Rosa Defendendo-se Numa roseira formosa, Vicejante, bela, airosa, Despontava linda rosa, Entre espinhos e entre odor; Quis colhe-la à madrugada, Mas a roseira agastada Me fere a mão desdenhada, Que logo foge co’a dor. Qual o guerreiro valente Que, ferido mortalmente, Descansa e co’o combatente Vai nova luta travar; Assim eu esperançoso, Ousado, cavalheiroso, Tendo o botão odoroso Da roseira conquistar. Porém a roseira altiva A fresca chaga me aviva Aos meus desejos esquiva Co’o mesmo espinho d’então; Fujo ainda mais pressuroso, Já me tornando medroso, Já sentindo estrepitoso Me bater o coração.

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Então todo amedrontado Pelo poder denodado Do lindo botão amado Que a roseira em si contém, Já no meu fado reflito, Em minha sorte medito, E quase vencido grito: - Sou fraco como ninguém! Contudo, outra tentaiva Inda faço, mas me esquiva A roseira, é dor mais viva Fez-me então exp’rimentar;1 E logo as armas deponho, Envergonhado e tristonho, No verde tronco risonho Sem que mais queira tentar! Se a roseira, vegetante Apenas, zela constante Seu lindo botão fragrante Que só tem beleza e odor; Como a donzela a beleza, Que lhe deu a natureza, E a su’alma de pureza Não há de zelar co’ardor?2 Sê, pois, qual tal a roseira, Ó donzela prasenteira, Se de tu’alma fagueira Quisesse um mimo roubar; Sê assim, anjo donoso, Que Deus, sempre bondadoso,3 Neste mundo tormentoso Não quis para alívio dar

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Comentários

1. Exp’rimentar. Experimentar. Necessidade de metrificação. 2. Co’ardor. Com ardor. Necessidade de metrificação. 3. Bondadoso. Forma rigorosamente correta ao lado de bondoso. Esta resultou de haplologia: supressão de uma sílaba quando no vocábulo há outra próxima do mesmo valor: da, do (dentais). O mesmo se passa com caridadoso (caridoso).

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Feliz Tempo Momentos felizes, momentos ditosos Em que desfrutei Tua meiga presença, teu rosto de graças, Em que me arroubei; Mas eles se foram, passaram veloces1 E eu triste fiquei. Contudo, Maria, meu peito consulto, Responde: não sei! Lhe noto incerteza, por isso em meus braços Te unir poderei! Venturas me agoura?2 Contigo momentos Felizes terei! Agora somente me restam gemidos, Pois nada alcancei; Meus lábios quiseram se abrir e pedir-te, Porém me calei! Meu fado maldigo; mas como se eu mesmo Meu dano causei? Ao menos nutrindo tão grata esperança... Assim viverei; Se a mão delicada me deres de esposa, Feliz eu serei! Se a mão me negares de esposa, ó querida, Então morrerei!

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Não achas, Maria, tão duro dizer-se: “Jamais o amarei?” não achas tão doce, tão grato afirmar-se: “Sim, tua serei?” Pois olha, Maria, sincero te digo: - Eu sempre te amei.

Comentários

1. Veloces. Forma latina, muita usada antigamente. Hoje, veloz, velozes. 2. Agoura. Verbo agourar. Empregado no sentido de prever, predizer. Fazer agouro, agourar, hoje se emprega quase sempre em mau sentido.

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À Morte

Do Visconde de Almeida Garret.

Não morre o gênio, sobrevive a fama, Não morre o sábio, seu renome voa Em meio às eras que o repetem sempre, Retumba altíloquo. Se abate as asas na gelada lousa,1 Pairando frio, se bordeja à campa, Não morre o vate, nos anais fastosos2 Seu nome exalça-se. Que importa a morte, pois se a vida extingue Do sábio, fica-lhe renome eterno? Se da memória resplandece o templo, Que importa o túmulo? Mais de três séculos sobre o luso3 vate Que importa pesem, se Camões4 perpassa Nos moles carmes,5 nas endechas6 tristes, No canto altíssono? Cantor mavioso! não findou tua vida. Pairou no topo dos umbrais da morte; Ei-la se expande, esvoaçando em torno Do orbe terráqueo.7

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Sim, nos teus versos de imortal beleza Sorriem-te os evos através dos tempos! Repousa a fama sobre o mundo como No céu o espírito. Cantor mavioso, do cantor do Gama,8 Rival nas letras e na glória infinda, Teu nome ecoa lá nos peitos lusos Qual nos brasílicos. E o bardo rude do alaúde tosco Tristes saudades te dirige triste; Se vive a fama, se o esp’rito9 goza, O vate falta-lhe. Soam teus versos como mestos soam Repercutidos, virginais suspiros; Decresce a arte, se lamenta o mundo Pelo teu trânsito. Porém que importa? – Sobrevive a fama, Não morre o sábio, seu renome voa Em meio às eras que o repetem sempre, Retumba altíloquo!

Comentários

Observação: Almeida Garret pertenceu à celebre trindade de romantismo português. Os dois outros: Castilho e Alexandre Herculano. Foi poeta, dramaturgo, romancista. 1. Lousa. Noutro local há comentário sobre lousa neste sentido. 2. Fastosos. De fasto. Grande, notável, pomposo. 3. Luso. O mesmo que português. 4. Camões. Maior gênio literário de Portugal. Grande lírico. Épico notável. Autor de “Os Lusíadas”, epopéia que, em 1972, completou quatrocen-tos anos de publicada. Chamou-se Luiz Vaz de Camões. 5. Carmes. Poema. Versos líricos. 6. Endechas. Poesia triste. Canção melancólica. 7. Terráqueo. Que tem terras e águas. 8. Cantor mavioso do cantor do gama. Cantor do Gamam foi Camões. Vasco da Gama, o descobridor do caminho marítimo da índias, é o herói da epopeia nacional portuguesa “Os Lusíadas”. Quando José Coriolano diz cantor mavioso do cantor do Gama, está a referir-se a Garret, pois Garret escreveu o poema “Camões”. 9. Espr’ito. Espírito. O poeta suprimiu uma sílaba por necessidade de metrificação.

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O Infante Gosto de ver um infante1 Alegre andar pelo prado A correr; Gosto de ver-lhe o semblante De pureza sombreado Florescer. Gosto de vê-lo correndo Em busca da borboleta A fugir; Gosto de ouvir-lhe dizendo Uma gracinha indiscreta A sorrir. Gosto de vê-lo sisudo Quando a mãe o repreende Porque errou; Gosto de vê-lo assim mudo Quando a lágrima que pende Borbulhou. Gosto de vê-lo chorando Porque alguém de coitadinho O chamou,2 Quando na relva brincando Com seu pequeno irmãozinho Se zangou.

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Vede-o correndo – tão lindo! Mas um queda, coitado Lá deu! Dizei-lhe: “É nada.” Sorrindo, Não mostrará acalmado Que sofreu! Vede-o no colo materno Cândidos beijos colhendo Como vai! Vede-o também como terno Mil graças está fazendo Para o pai! Ó infante! Ó belo anjinho! Quem dera no mundo fosses Sempre assim... Tens encetado o caminho... Teus dias inda são doces! Mal de mim! Mal de mim – que hei já chegado À quadra fatal da vida, A do amor; Já fui, qual tu, fortunado; Hoje tenho a alma ferida Pela dor!... Ah! que dos anos da infância Nem eu mais a memória posso Conservar! Nem mais dessa bela estância3 Da vida – a mimosa história Sei contar!

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Não sei – que a vida do adulto É um mistério constante, Um sofrer; Num leito de dor sepulto, Não tem alívio um instante, Te4 morrer! Eis porque gosto do infante Alegre, andando no prado A correr; Gosto de ver-lhe o semblante De pureza sombreado Florescer.

Comentários

1. Infante. Emprego no sentido de criança no período da infância. 2. De coitadinho o chamou. No sentido de dar nome, apelidar, o verbo chamar não admite, hoje, o pronome o, mas o pronome lhe. 3. Estância. Emprego no sentido de quadra, período. 4. Te. Por até. Assinala Silveira Bueno que os textos arcaicos apresentam variadas formas da atual preposição e, algumas vezes, advérbio até: ata, ataa, ta, ta, tee, até, te (“A Formação Histórica da Língua Portuguesa” – 181). No texto te por necessidade de metrificação.

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Coragem (pelo cólera)1

Não descrede da sorte: o mal nem sempre Vos há de lacerar a doce vida: Portai-vos corajosos; não descrede2 Da bondade do Céu na dura lida. O céu é previdente: pelas dores Com que o morbo3 vos há ceifado a vida, Nesse eterno jardim, de olor eterno, Vos destina uma sorte mais subida. Não descredo do Céu: co’as mãos erguidas Louvai a mão divina que suspende No curso o mesmo sol; que, majestoso, Manda ao mar dividir-se, e ele se fende! Não descrede do Céu: correi ao leito Onde jaz sem recurso o triste, o pobre, Prestai-lhe esses sufrágios que dimanam De um peito caridoso e grande e nobre. Um dia morreremos; pois corramos Sem descanso a exercer a caridade; Não pode uma ação boa ser banida, Nem esquece-la a divinal bondade. Nos momentos da vida nenhum gozo Se pode comparar ao gozo santo Que frui o caridoso junto ao leito Que o mísero verte amargo pranto.

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Não vede4 em poucos dias tantos nomes Gravados sobre o templo da memória? Não vede em poucos dias laureados Tantos bravos e heróis? – que maior glória? E enquanto tremular a grimpa alçada Aos brios desta terra belicosa, Um nome ler-se-á no seu fastígio: O nome da pessoa caridosa. Avante, meus irmãos! Se a Deus se pode Rival atribuir na vida e fama, Será rival de Deus o caridoso Que vela o moribundo ao pé da cama.

Comentários

1. Cólera. Veja estudo noutro local. 2. Não descrede. O imperativo negativo se faz com o subjuntivo presente: não descreais. 3. Morbo. Veja o estudo a respeito de cólera. 4. Não vede. O imperativo negativo é feito com o subjuntivo presente: não vejais. Admite-se não vede porque na época em que José Coriolano escreveu muitas questões da língua ainda não estavam disciplinadas.

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O Velho Caçador de Onça I “Avante meus camaradas, Vamos às matas bater; Coragem! Fogo na onça1 Quando a onça arremeter, Que o meu facão amolado Lh’hei de na guela meter; Que eu não sei que cousa é medo, Não sei, nem quero saber. Aquele cão, que ali vedes,2 Trinta mil réis3 me custou! Faltará chuva em janeiro, Mas nunca me ele4 faltou! Se a onça ronca raivosa, Se um ah cão! Me ele escutou, É polv’ra5 – o bicho na cava Meu tubarão6 acuou! Ouvi-me este canto agora; Sabeis que eu não minto, não: Eu caçava no peeiro7 O meu cavalo alazão:8 Vi uma onça comendo-o, Estumei-lhe9 o tubarão. Ele filou-lhe na curva, E eu puxei pelo facão.

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A fera, escumando raiva, Urrando, a mim se botou! Da mão arrancou-me o ferro10 Co’a tapa que me soltou! Mas eu o braço lhe enterro Guela dentro que a afogou! E a fera co’os finos dentes O braço me mastigou! Fiquei – assim – aleijado, Mas inda movo o facão; Não temo onças, nem almas, Nem os vivos, temo, não Esperai!... vejo trilhada De rastro11 a vereda... Ah cão! Palavras não eram ditas, Já corria o tubarão. II Sobre a encosta do serro12 empinado Uma onça pintada acuou; Eram brasas seus olhos medonhos, Muitos cães já o monstro matou! Um restava – estafado – sangrento – Que avançava aos estumos d’iscou!13 Para um canto jaziam cançados Muitos bravos com pedras na mão! Um somente co’a fera lutava, Açulando14 o fiel tubarão! Cada grito d’iscou! Retumbava Qual retumba no espaço o trovão!

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Era só, mas seu rosto brilhava Como brilha o semblante do herói! Muitas vezes à boca da furna Investia valente – qual sói15 Ser o bravo guerreiro ferido Que a ferida não mostra que dói! E lidava e lidava – afilando O brioso, fiel tubarão; E uma pedra vibrando, raivoso, Fez a fera rolar pelo chão Tremeu ela... gemeu... dando um urro Que troou como troa o trovão! E o guerreiro das matas repete Novo golpe que o onça matou; E, co’o peito incendido16 de glória, Seus amigos, por fim animou Com a rude canção que dos lábios Entre vivas e aplausos cantou. III Sou filho destas catingas, Donde vós também os sois; Nunca temi o novilho, Como a onça temer pois? Co’o ferrão17 topo-os na testa, Inda vindo dois a dois! Não me abate o frio inverno, Nem de agosto os quentes sóis.18 Nunca tive dor de dente, Nunca tive indigestão, Nunca doeu-me19 a cabeça Nunca sofri retenção,20 Nunca andei pelas cidades,

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Nunca passei do sertão, Nunca rojei, suplicando, Pelos pés do cortesão.21 Com setenta anos de idade Inda não sei me torcer; Ando de pé quase sempre, Sofro o frio sem tremer; Lamento os moços de agora Que vivem tudo a temer; Nunca chorei nos meus dias, Nunca me ouviram gemer. Sou solteiro, - não casei-me Porque Deus não permitiu; Amei uma linda moça Como igual nunca se viu! Mais leve que uma veada22 Que o caçador pressentiu, Ela não era da terra, Co’os os anjos ao céu subiu! Confessou-me que no mundo Eu só era o seu amor! Que vez, tocando a rabeca,23 Vi-lhe24 no rosto o palor,25 E uma lágrima comprida Banhar-lhe o seio d dor! Nem pai nem mãe tinha ela, Tinha-os levado o Senhor. Vivia do seu trabalho, Honrada como ninguém! Pelos quereres26 da vida Eu adorava-a que nem Tenho palavras que possam

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Pintar-vos todo o meu bem! Mas ela foi-se e eu cá vivo, Enquanto a hora não vem... Desprezei o casamento, Do mundo não quis saber; Meus pobres pais em meus braços Eu vi-os também morrer. Poucos amigos me restam... As onças vivo a bater. - Sou cristão, assisto à missa, confesso-me; eis meu viver.” _______ Eis a rude canção que cantava O Senhor do fiel tubarão, Que zombava do mundo e das onças, E dos males, das eras27 de então.

Comentários

1. Onça. Nome vulgar nas espécies de animal carnívoro do gênero felino. De modo geral, a onça pintada ou verdadeira, de ocorrem as espécies suçuarana e tigre. À onça preta se dá o nome de onça-tigre, muito feroz. 2. Vedes. Verbo ver na 2ª pessoa do plural do indicativo presente. 3. Trinta mil réis. Mil réis era a antiga moeda brasileira. Em 1942 passou a cruzeiro, dividido em centavos. Reis é plural de real (moeda). 4. Nunca me ele faltou. Próclise é a colocação do pronome átono antes do verbo. Os clássicos costumavam colocar o átono antes do reto, quando ocorria na frase advérbio notadamente de negação. O fato se chamou e se chama reforço da próclise. 5. Polv’ra. Por pólvora. Supressão de uma sílaba por necessidade de metrificação. 6. Tubarão. O cão, o cachorro. 7. Peeiro. Lugar onde se peiam os animais. 8. Alazão. Cavalo cor de canela. É palavra árabe. 9. Estumei. Verbo estumar. Assanhar (os cães) por meio de gritos e assobios apropriados. 10. Ferro. O facão. 11. Rasto. Também pode dizer-se e escrever-se rastro. 12. Serro. Pronuncia fechada (ser). Espinhaço. 13. Estumos de iscou. Os dicionários não agasalham estumo. Tenho impressão que o poeta empregou estumo como grito, assobio (para assanhar os cães). Macedo Soares diz que estumar é verbo tirado da interjeição ist! ist! “com que se estumam os cães”. Assim estumo seria deverbal de estumar. O poeta empregou ainda iscou. Há o verbo iscar, o mesmo que açular (os cães). Mas iscou na expressão acima está como interjeição. 14. Açulando. Do verbo açular. Instigar (cães) por meio de gestos, gritos. Emprega-se também em sentido figurado: irritar, provocar. 15. Sói. Verbo soer. Defectivo. Significa costumar e só se conjuga nas seguintes formas: sói, soem (indicativo presente); soia, soías, soía, soíamos, soíeis, soíam (pretérito imperfeito do indicativo; soído (particípio). 16. Incendido. É o verbo incender, acender, inflamar. 17. Ferrão. Ponta aguda de ferro. 18. Sóis. Plural de sol. 19. Nunca doeu-me. No tempo em que José Coriolano escreveu ainda não se havia disciplinado a colocação dos pronomes átonos. Hoje se diria: nunca me doeu.

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20. Retenção. Prisão de ventre. Dificuldade de evacuar. 21. Cortesão. Empregado no sentido de homem de corte, palaciano. 22. Veada. Fêmea do veado. Venatum. Adjetivo latino do verbo venari (caçar). Tal adjetivo indicava, a princípio, todo e qualquer animal obtido pela caça. Hoje veado designa o antigo cervo. 23. Rabeca. Espécie de violino, quatro cordas de tripa friccionadas com um arco de crina, untado no breu. 24. Vi-lhe. Correto emprego do lhe em função possessiva, correspondente a seu, dele. 25. Palor. Cor pálida. 26. Quereres. Emprego de querer como substantivo. Ato de querer: o querer, os quereres (vontade). 27. Eras. Plural de era: época.

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Em Que Pensas? (pelo cólera)1

A estas horas, quando em noite turbida Elevam todos seu esp’rito2 a Deus, Temendo os males que ao mortal misérrimo Envolver tentam nos horrores seus; A estas horas, quando a chuva em cântaros Alaga as ruas tão intensa assim, Que mais assusta os timoratos ânimos, Bela, em que pensas? Pensarás em mim? Além rouqueja pelo espaço altíssono A voz do Eterno no feroz trovão, Que abala a terra ao fuzilar contínuo Que à terra vibra do Senhor a mão. Enquanto a guerra pelo espaço horrífico Os elementos travam feia assim, Dormes ou cuidas, linda virgem cândida? Bela, em que pensas? Pensarás em mim? Ah! tu respiras junto à mãe solícita, Sem que um idéia de volteje má; Nem talvez pensas que o cruel contágio Possa ferir-me sem que eu volte lá! E eu entre os males, entre as duras fráguas Em ti só penso! Crê-lo-ás assim? Mas tu tão longe, criatura Angélica... Bela, em que pensas? Pensarás em mim?

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Não queira a sorte, nem o Céu propício Que eu morra inglório, sem gozar feliz Os teus encantos que na vida fazem-me Olvidar males, de que amor maldiz. Goze eu a glória, seja embora efêmera, De nos teus braços ser ditoso assim Como cogito no sonhar poético... Bela, em que pensas? Pensarás em mim?

Comentários 1. Cólera. Veja estudo noutro local. 2. Esp’rito. Espírito. O poeta suprimiu uma sílaba por necessidade de metrificação.

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A Filha do Deserto Eu sou a triste filha do deserto, Que Deus na terra ingrata abençoou; Se suspiros e lágrimas desperto, Consolações e paz também eu dou. Quando as pompas do mundo te enfastiam, E os prazeres sensuais, que te inebriam, Derramam-te o horror no coração, Quem é que, entre sorrindo e lacrimosa, Que mãe enternecida e piedosa, A ter com Deus te guia pela mão? Eu sou o amigo oásis1 do deserto, Que Deus ao viajante fabricou; Se as saudades da pátria em ti desperto, Em ti também à pátria um gênio dou Onde o luso escreveu essa epopéia,2 Gigante filha dessa nobre idéia, Que deu a Portugal fama e brasão?3 Onde é que o vate geme suspiroso As desgraças de um mundo tormentoso, Fértil em males, fértil em traição? Eu sou a companheira do proscrito,4 Como fui do Alverenga e do Dirceu;5 Se gemidos arranco ao peito aflito, Também extingo-os no regaço meu. Acrisola-se em mim a penitência, Faço em mim ver o ateu a Onipotência, Dos olhos seus rasgando o denso véu;

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Em mim todos encontram pronto meio De chegar-se ao Eterno ao imenso seio, De ganhar-se um asilo lá no céu. Era em mim o Sinai,6 em que contrito Moisés7 quarenta dias jejuou, E o Horto,8 em que o discípulo maldito9 Com um ósculo ao Mestre10 atraiçoou; E o Horebe,11 junto ao qual a sarça ardia12, E o presépio, em que viu a luz do dia E a Estrela mais gentil da redenção: Eu sou, mortais, a filha do deserto, Que o amor e a contrição em vós desperto: Eu sou, mortais, eu sou a solidão!

Comentários

1. Oásis. Lugar aprazível, coberto de vegetação, no deserto. No singular e no plural tem a mesma forma. 2. Onde o luso escreveu essa epopéia. Referência ao poeta português Luís de Camões, autor do poema épico “Os Lusíadas”. 3. Brasão. Noutro local há comentário sobre brasão. 4. Proscrito. Desterrado. 5. Alvarenga e Dirceu. Referência a Alvarenga Peixoto, poeta brasileiro do século XVIII integrante da chamada Escola Mineira, lírico; Dirceu é pseudônimo, ou nome árcade, de Tomás Antônio Gonzaga, português de nascimento, que se radicou em Vila Rica (Ouro Preto). Autor do célebre livro de poesias “Marília de Dirceu”. Marília foi Maria Joaquina Dorotéia de Seixas Brandão, sua noiva. Ambos os poetas se envolveram no movimento político da Inconfidência Mineira. 6. Sinai. Nome de uma montanha, aonde chegaram os israelitas depois da saída do Egito. Do cimo deste monte foi proclamada a lei dos dez mandamentos e na sua base foi ratificado o pacto que formou a nacionalidade hebraica, que tinha Jeová por rei. 7. Moisés. Grande legislador hebreu. Instruído na literatura egípcia, pois era filho adotivo de uma princesa do Egito. Descobriu que Deus o chama-ra para ser libertador dos israelitas, seus irmãos. Retirou-se do Egito. Muito refletiu, na solidão do deserto. Depois do episódio da sarça, Moisés voltou ao Egito. Aí tomou o comando do povo hebreu. No Sinai foi admitido a íntimas relações com Deus. Obteve de Deus os estatutos, baseados nos dez mandamentos. Numa das ocasiões em que foi chamado por Deus ao monte, jejuou quarenta dias e quarenta noites. Como organizador de um povo, Moisés dotou Israel com instituições civis e religiosas de primeira ordem. Possuía dotes de estadista. 8. e 9) Horto e discípulo maldito. Referência ao Jardim das Oliveiras, onde Jesus foi preso por soldados, acompanhados de Judas Iscariotes. É o mesmo Jardim de Getsemâni. 10. Com um ósculo atraiçoou o Mestre. De acordo com um sinal previamente combinado, a fim de indicar aos soldados a pessoa de Jesus, Judas adiantou-se e saudou o mestre, beijando-o na face. 11. Horebe. Veja nota 6. é o monte Sinai. 12. A sarça ardia. Quando terminou a meditação de Moisés no deserto (veja nota 7), foi ele surpreendido com o incêndio de uma sarça que ardia sem se consumir. Aproximando-se para observar o fenômeno, o Senhor o chamou no meio da sarça para ir libertar o seu povo.

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A Noiva Ei-la tão bela e casta – pensativa... Sobre a mão descasando a linda face! Ei-la de leve abrindo os róseos lábios E um ai soltando que em Jesus termina! Ah! que uma lágrima dos meigos olhos Ora lhe inunda o encantador semblante; Mas um sorriso brinca-lhe nos lábios, Dando a seu pranto salutar antídoto!1 Vede-a, não mais suspira, a breve boca O sorriso descerra, pudibundo, Tão cheio de inocência e de candura, Tão pudibundo que de sê-lo cora! Mas, dor! – de novo o pranto se sucede, De novo o riso nos seus lábios pousa! Virgem, virgem do amor, que alternativa Tu’alma ingênua assim contrista e alegra? Que sentes, virgem? Que mistério é este? Por que tu choras, enrubesces, ri-te? Como é que o pranto te sucede o riso? Como é que ao riso te sucede o pranto? Virgem, virgem de amor, eu te perscruto... Os recônditos, puros pensamentos Descortino-te, e sei porque suspiras Tão grato suspirar envolto em gozos.

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________ És noiva, em breve teus dias Vão tomar diversa cor, Não turvos, sempre serenos Nos doces laços do amor. Se pensas, virge, e suspiras, Se acendes na face a cor, Suspiras, virgem, de pura, Pensas nos laços do amor. Teu terno pranto coado Da saudade no rigor, O seio materno banha, Banha as mãos do genitor. Teu riso adoça a lembrança Da posse desse penhor, Que por ti somente anhela Os doces laços de amor Tu’alma é como a de um anjo De um Serafim do Senhor; É pura como a das virgens Que habitam co’o Salvador. Se pensas, virge, e suspiras, Se acendes na face a cor Suspiras, virgem, de pura, Pensas nos laços de amor. _______

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Tu pensas! não sabes se acaso um futuro Pra ti se reserva de angústias pejado; Tu pensas! não sabes se o nó que meditas Será feliz sempre, ditoso, sagrado. Tu choras! teu pranto saudades revela, Revela lembranças do tempo passado; Tu choras! teu pranto nos joelhos goteja Da mãe carinhosa, do pai desvelado. Tu ri-te! teu riso te afaga a lembrança De unires-te2 àquele que te é tão prezado; Tu ri-te!3 teu riso demonstra a certeza De seres, ó virgem, penhor muito amado. Tu coras! o nácar4 que às faces te sobe. Que o rosto formoso te faz mais rosado, Ó virgem, demonstra que és pura, que és bela, Que um nó tu meditas difícil, sagrado. E a virgem que pensa na sorte futura, Que chora saudosa – do tempo passado, Que ri-se5 à lembrança de mútuo amor terno, Que cora de um laço tão puro e sagrado: Oh! não! essa virgem, tão puro, tão santa, Às portas tremendas do templo sagrado, Um beijo não cede, não vende perjura Ao vil que a requesta, profano, malvado.

Comentários

1. Antídoto. É o emprego anti (contra) e doto (dado). Antídoto significa dado contra. Contraveneno. O poeta empregou a palavra em sentido figurado: remédio contra um mal moral. 2. Na época em que o poeta escreveu não estava disciplinada a colocação dos pronomes átonos. 3. Vide nota 2 4. Nácar. Cor de carmim. Cor-de-rosa. 5. Que ri-se. Veja as notas 2 e 3

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Nênia II

(À morte de meu colega Manuel Alexandrino da Silva Girão, falecido no dia 8 de maio de 1855, quando estudante do 1º ano da Faculdade de Direito do Recife.)

Frágil homem, mortal, que és tu no mundo, No grande espaço do universo solto? - Hoje vida e prazer; - hoje alegria: - Amanhã cinza ou nada, em morte envolto. Hoje vida e consolo; hoje esperança, Reluta a mente co’o poder da sorte: Mas não reluta, por lhe ser defeso,1 Co’o tremendo poder que vem da morte. E ela tirana, com seu ferro ervado, Prostra o mancebo no florir dos anos; Desfaz a glória de seus sonhos magos, Sem que vença o porvir de seus arcanos. Ó morte, és bem cruel! Por que roubaste O filho pelo qual a mãe suspira? Por que roubaste o devotado amigo, Cuja lembrança tanta dor inspira? Mas ah! que a flor singela da campina Muitas vezes abate o vento forte, Como a vida singela do mancebo Muitas vezes decepa a crua morte!

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Tua vida exalou-se, como o incenso,2 Como esvai-se da flor o doce cheiro, Fugiu de sobre a terra como foge A cristalina fonte de um ribeiro. Foi unir-se ao Senhor, grato consolo! Que um prêmio lá no céu tem a virtude; Foi unir-se ao Senhor, que o céu acolhe, Quando morre contrita a juventude. Mas a dor que min’alma dilacera Quanto é pungente! Que cruel saudade! Quanto é breve, meu Deus, quanto aflitiva A vida humana nesta soledade! Frágil homem, mortal, que és tu no mudo, No grande espaço do universo solto? - Hoje vida e prazer; - hoje alegria: - Amanhã cinza ou nada, em morte envolto.

Comentários 1. e 2. Defeso e incenso. Palavras comentadas noutro local deste livro. Observação: três espécies de cantos ou poemas havia na antiga Roma recitados nas exéquias de pessoas notáveis: a nênia era declamada ou cantada junto à fogueira, em que se incinerava o cadáver; o epitáfio era gravado sobre a urna; e o epicédio era pronunciado na cerimônia dos funerais, estando o corpo presente. O vocábulo epitáfio ainda tem a mesma significação. A nênia e o epicédio são hoje elegias fúnebres compostas para celebrar ou lamentar a perda de pessoa ilustre e querida (Veja – Olavo Bilac e Guimarães Passos – “Tratado de Versificação” – 135, 136)

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Entrevista Quero pedir-lhe uma coisa. “Duas e três: diga, peça.” Não se zangue: dê-me um beijo. “Tudo farei, menos essa...” Deixe disso: dê-me um beijo. “Logo lhe dou, não se vexe.”1 É que você não me estima. “Não diga tal, não se queixe.”2 Mas por que não dá-me3 o beijo? “Não lh’o dou por ser donzela.”4 Pois então dê-me um abraço. “Bem tola, se caiu nela!” Nada então você quer dar-me? “Dou-lhe este róseo botão.” Somente! nada mais dá-me?5 “Dou-lhe mais meu coração.” Poderei dispor só dele? “Esta é boa! Por que não?” Então não tem outro dono? “Por Deus lhe juro que não.” Porém... quando dá-me6 o beijo? “Quando der-lhe7 a minha mão.” Mesmo à face dos altares? “Deus me defenda! Aí não.”

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Ah! já sei, você tem medo. “Medo, não; vergonha, sim.” Pois escute: é um segredo... “Ai beijou-me! Só assim.”

Comentários

1. e 2. o poeta rimou vexe (ê) com queixe. Não é rima perfeita, mas muito usada. 3. Não dá-me. Na época em que José Coriolano poetou, não estava disciplinada a colocação dos pronomes átonos. Hoje: não me dá. 4. Donzela. Emprego no sentido de virgem. Mulher virgem. 5. Nada mais dá-me. Veja nota 3 6. Quando dá-me. Veja nota 3. 7. Quando der-lhe. Veja nota 3.

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Só Eu Não Morro Morre a inocente criança, Esperanças de seus pais; Morre a donzela formosa, Nem coram-lhe as faces mais! Morre o poeta mimoso Que em brandos versos cantou Sua pátria, seus amores, E tudo que o inspirou! Dentre o catre1 da velhice Sempre querido o ancião, Deixa o filho inconsolável, Deixa mais de um coração! A brisa que sobre a tarde Vem co’as ramas cochichar, Se perde no espaço imenso, Nem pode mais murmurar! Morre a flor que se embalança Na linda haste que a sustem, Tudo morre neste mundo: Morre a virtude também! Tudo morre, é bem verdade!... Mas eu por que vivo sou? Se as flores e as virgens morrem, Por elas por que não vou?

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Eu irei... é bom que finde Este leal coração, Que há tantos anos padece, Sem achar consolação! Flores donosas da terra, Mimosas virgens de Deus, Não morrei,2 por vós eu parto, Lembrai-vos de mim. Adeus!

Comentários

1. Catre. Cama pobre, miserável. 2. Não morrei. Trata-se de imperativo negativo. O imperativo negativo faz-se com o subjuntivo presente: não morrais.

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Hino à Tarde Mas eis a tarde de primores rica! Em mimos co’a manhã rivalizando. ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨ Marques de Paranaguá I Tarde meiga e gentil, se tu não fosses Mais triste que a manhã, mais melancólica, Quantas vezes comigo meditando, Precursora do sol te julgaria! Mas, depois, atentando em teus langores, Na dor, na compaixão que em ti transluzem, Conheço o teu fadário neste mundo Não es ditosa, - não – e só tens risos Para o filho infeliz da desventura. Tarde meiga e gentil, amo-te muito! Que peito pode haver ingrato e rude Aos influxos suaves que respiras, Sem do passado refletir saudoso Nos dias de prazer que já gozamos! Ou em que em teu seio, ébrio de saudade, Não gema e não suspire, e aos tristes olhos Não mande um pesaroso pranto – amigo! Oh! sim – eu chorarei, porque meu peito Às vezes no chorar encontra alívio. Tarde meiga e gentil, amo-te muito.

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Se compassiva os corações tu prendes, Como nos prende com seu pranto a órfã, Se a mente em santo arroubo nos enlevas, Como o riso da virgem pudibunda Que o selo marca de um sofrer intenso, Porque da frouxa, dissonante lira Sentidos carmes te ofertar não devo? Oh! sim – eu cantarei, porque meu peito Às vezes no cantar encontra alívio. Tarde meiga e gentil, amo-te muito! II Quanta é bela a manhã, surgindo alegre Das partes do oriente, em que se arreia1 Que formosos listões2 de fogo e púrpura, Que sua cor dourada comunicam Às campinas, à fonte, às cumeadas! O levantino3 mar é todo rosas No seu leito de areia a espreguiçar-se Oh! quanto a aurora despontando é bela! Tarde, filha do céu, os teus encantos Não lhe ficam somenos:4 tu guarneces Também as nuvens brancas de escalarte, Quando além do poente o sol se esconde. Um manto sobre o mar também estendes De vermelhos listões também formado. Vales, campinas, fonte e campanários Com seu meigo arrebol também matizas. Se a natureza ri-se5 com seus raios, Se bafejam as auras docemente, Enchendo de fragrância os horizontes, Também, tarde gentil, no teu regaço, Ao sepultar-se o sol, as aves trinam, Suspira a natureza, as auras sopram, Embalsamando os ares de fragrância.

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Em ti se encontra amor, ledice, encanto! O proscrito,6 nas lágrimas que entorna, No teu suave seio alívio encontra; Encontra alívio aos duros sofrimentos O desgraçado que de amor padece. Chora a tarde o extremoso amigo a ausência Do amigo que no peito traz gravado. Choram os pais pelos ausentes filhos, E os filhos pelos pais ausentes choram. O amante pela amada em dor se fina7 E a amada pelo amante em dor consome-se. Todos carpem à tarde, e acham consolo, Se da ausência os rigores crus suportam. Extático8 o poeta te contempla! E que idéias tão ternas se associam Por teu tristonho porte despertadas! Te semelhas à virgem que suspira, E como ela também és triste e bela. Mas na tua tristeza o mel se bebe Que tranqüiliza os corações que sofrem. Num triste cogitar se encontra às vezes Lenitivo, que os males dissipando, Torna a mente de novo ao seu descanço. Ó tarde, doce amiga, quanto te amo! Que vezes me ofereceste desafogo As saudades que assaz me acompanhavam! Que vezes dos meus olhos roxeados Já de muito chorar, mais novo pranto Arrancaste, a minh’alma consolando, Que em chorar também há consolo pronto! E quando esses momentos soidosos9 Melancolia só me prodigavam, Onde soltava os meus gemidos longos Que “saudades e ausência” só diziam? Soltava-os nessas sombras que ministras De copado arvoredo sussurante

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Ou no abrigo das penhas que resistem Aos embates do vento duro e forte. Ó tarde! – quanto és grata aos que padecem! Quanto mais tu das trevas te aproximas, Mais exultam d’alegres dous amantes. III Porém, céus! – que feliz coincidência Mais a tarde enfeitiça no meu canto! Eu escuto uma voz que me desperta Na mente altiva pensamentos puros, No peito nobre sentimentos caros. Pobre virgem! quem sabe o que ela sofre! IV Que belo quadro – agora – além contemplo! Perto de mim – sereno – se desliza O meu velho Poty.10 Como amoroso Recebe na rugosa e limpa face Macios beijos das trementes ramas, Que as margens lhe embelecem de verdura! Que sons tão meigos! – que trinados ternos! São canoros cupidos11 que saudosos Despedem-se da tarde que se ausenta. E lá voa também a parda rola12 Do movediço galho do mofumbo, Que deixou de gemer neste momento; E vai no interior, talvez, da selva Em procura do esposo que ela adora.

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V Horas propícias, horas de repouso, Em que o duro trabalho abandonando O rude camponês, fruir vem mimos Da linda esposa que na porta espera E graças infantis, travessos brincos De tenra prole, que sentada em torno Da carinhosa mãe, lhe pede um conto, Uma história de fadas, de Trancoso,13 Onde falem pombinhas e outras aves, A piaba,14 a sardinha, outros pescados, E a quem um beijo, uma promessa ilude, Convidando a dormir – tão crente e pura. Ó horas de repouso, eu vos saúdo! VI Talvez, agora mesmo, além vogando, Garbosa como um cisne, uma barquinha Conduza sobre o mar sereno e quedo Ditoso amante porque aos lares volta, Depois de haver em doce amigo abraço Afogado a saudade que o pungia Ou pode ser que alguém... (talvez que um bardo)15 Infeliz chore a perda irreparável Da prenda que o amava e que constante Amor lhe merecia do imo16 peito. Talvez, que agora mesmo, sobre a laje, Que dela cobre os restos preciosos, Ensine, soluçando, às mansas brisas, Tristes endechas,17 suspirosas nênias!18

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VII Tarde, tarde de amor, que som penoso Te quebra a placidez do almo remanso, Prenhe d’inspirações que infudem n’alma Um sentir que nos lembra a Eternidade? É o toque do sino que anuncia A hora angelical:19 eia... rezemos; Um momento, sequer, aos céus divinos Nossa mente se eleve em santo arroubo! ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨ ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨ Só tu, ó tarde, encerra tais encantos! Ó tarde mais gentil que a manhã bela! VIII Já por outro hemisfério o sol radia! E mal no ocaso seu fulgor vislumbra. A noite já desdobra sobre a terra Sombrio véu que a torna erma e tranqüila. Já tremulam no céu tíbios luzeiros, Decorando de brilho a azul esfera,20 Já rutila saudosa e meiga lua, Beijando o vale ameno e a flor do lago! IX E a deus, ó tarde meiga, um ai recebe Deste que te cantou. Sê formosa como é sempre a bonina21 Que em ti desabrochou. Como a virgem que ardente o bardo adora, Que em teu seio chorou; Que gemeu, por não vê-lo em teu regaço,

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Que tanto suspirou. E adeus mais outra vez, ó tarde amiga, Tarde do coração; Dá-me sempre de amor saudoso pranto, Dá-me consolação. Em ti, somente em ti penso nos dias Passados – que lá vão... Contigo e só contigo os males choro Do triste coração. E adeus, terceira vez, tarde querida, Meu inocente bem Outros bardos inspira e prende meiga Por onde vais – além. Sem teus amores e perfumes castos Que gosto a vida tem? Adeus! – té amanhã: sentidos versos Sempre inspirar-me vem.

Comentários

1. Arreia. Verbo arrear, ornamentar, enfeitar. 2. Listões. Palavra já comentada. 3. Levantino. Relativo ao Levante (o mesmo que leste). 4. Somenos. Adjetivo. De qualidade inferior. 5. Se a natureza ri-se. No tempo em que José Coriolano escreveu não estava disciplinada a colocação dos pronomes átonos. Hoje: se a natureza se ri ou se se ri a natureza. 6. Proscrito. Observação neste local deste livro. 7. Em dor se fina. Verbo finar-se, morrer. 8. Extático. Enlevado, maravilhado. Não confundir com estático (que está em repouso, parado). 9. Soidosos. Forma antiquada de saudoso. 10. Poti. Já observado noutro local. 11. Cupidos. Personificação do Amor. Amantes. Não confundir com cupido. 12. Rola. Já observada a palavra noutro local. 13. Trancoso. Aparece na expressão “História de Trancoso”. Afrânio Peixoto escreveu nas notas ao seu romance “Bugrinha”: “Outro livro que Portugal e o Brasil conheceram e vão esquecendo injustamente, “Contos de História e Proveito e Exemplo”, muito popular em tempo, entre as nossas populações rústicas. Além de livro de leitura e edificação, trazia, apensas, regras de urbanidade e polícia moral, com que educava nas boas maneiras. Várias vezes ouvi, na minha infância o ditado: - São histórias de Trancoso – como cousa difícil de ser acreditada, pela piedade e bom regimento, ironia do povo ao ingênuo autor que lhe encantou e sujeitou a infância, contando-lhe aventuras para proveito e exemplo, para os fazer pessoas prudentes e graves, o que é sempre aborrecido e molesto. Ao bom Gonçalo Fernandes Trancoso deu recente e merecida ressurreição o mais formoso volume da “Antologia Portuguesa”, que dirige o sábio Agostinho de Campos (Lisboa, 1921)”. (“Bugrinha) – pág. 350). 14. Piaba. Peixe de água doce. Peixe pequeno. 15. Bardo. Poeta.

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16. Imo. O mais profundo. 17. Endechas. Palavra comentada noutro local. 18. Nênia. Palavra comentada noutro local. 19. Hora angelical. Angelical é o mesmo que angélico. Relativo aos anjos. Hora angelical é a hora do ângelus, oração em honra ao mistério da Encarnação. Toque do sino que indica aos fiéis o momento de recitar tal oração, no fim da tarde. 20. Azul esfera. O firmamento. 21. Bonina. Planta dos prados.

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A Rola e o Gavião Estava a rola em seu ninho, Quando aponta um gavião,1 Que já tinha um borrachinho2 Roubado a seu coração. “Que vem ver, ave inimiga? Não basta o que sofri eu? Talvez mui3 breve se diga: A triste rola morreu!” - Rola – lhe diz o tirano, Dá-me esse pobre pagão;4 Ficarás em paz este ano, Todo o resto da estação –5 Diz-lhe a rola: “Ave inimiga, Dize: que mal te fiz eu? Talvez mui breve se diga: A triste rola morreu!” - Dá-me, inocente, mesquinha, Dá-me teu filho, se não6 Eu juro comer asinha7 Filho e mãe sem distinção – “Paciência, ave inimiga, Foi este o destino meu! Talvez mui breve se diga: A triste rola morreu!”

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E a cruel ave despreza As queixas que ouvia em vão: Filho e mãe faz sua presa, Come-os com sofreguidão E voando a ave inimiga, Pra sempre o ninho esqueceu! Porém há tanto quem diga: A triste rola morreu!

Comentários

1. Gavião. Ave de rapina. 2. Borrachinho. Diminutivo de borracho. Diz-se de borracho do filhote do pombo. José Coriolano empregou a palavra como filhote da rola. Silveira Bueno leciona que borracha, latim burrago, burraginis, derivado de burra, pele, era vasilha para líquidos, garrafa. Mas na borracha também se colocava vinho e daí se chegou a noção de bêbedo que se vê em borracho: cheio de vinho. O filhote de pombo – borracho – se prende a burra, pele, “mas sobre outro aspecto, sob o aspecto da cor: a pele nova é vermelha e a lã avermelhada, não clara, também era chamada burra. O borracho então, filhote de pombo, tem tal nome já pela cor da pele e também porque, em geral está gordinho, cheinho”. (“Questões de Português” – 1ª série – 68, 69). 3. Mui. Já observado noutro local. 4. Pagão. Empregado no sentido em que não tem padrinho, desprotegido. 5. Estação. Cada uma das quatro partes do ano, diferentes pelas condições de temperatura (primavera, verão, outono e inverno). 6. Se não. Separados os dois elementos quando significa caso não, como no texto. 7. Asinha. Não se trata de diminutivo de asa, mas do advérbio depressa, sem demora, antiquado.

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A Morena Estende no cavalete1 O pintor a branca tela, Já lhe transborda a paleta2 De alambre,3 jambo4 e canela.5 Não é a Vênus6 dormindo, Nem também do mar saindo, Que o quadro vai animar: É a morena mimosa, De face tão setinosa, De tão mavioso olhar! Dá vida, pintor, à tela, Empunha, poeta, a pena: Ei-la! Que moça tão bela! Que encantadora morena! Não sombreiam suas faces Rubim e corais7 vivaces8 Sobre um tez de marfim; Mas nas faces tem a musa9 O garbo de uma Andaluza,10 As graças de um Serafim. Painel soberbo! – nas aras Profanas de tempo adusto, Belezas assim tão raras Valem mais que heróico busto. Marca o guerreiro o nome No batalhar que o consome Entre lagos de cruor;

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A tua glória, morena, É perfumosa e serena E grata como a da flor. Sobraçara Homero11 a harpa12 Para tecer-te odisséias,13 Te invejara a breve charpa Essa mãe do pio Enéas,14 Ossian15 no seu alaúde Te consagrara não rude Um belo canto escocês;16 E até das azuis campinas As plêiadas17 peregrinas Te cobiçaram a tez. De alambre, jambo e canela Extrata,18 pintor, as tintas, Extrata, e anime-se a tela Com essas cores distintas. Na tela o pincel, na história Do bardo a pena, - que glória! Vão-te a cor eternizar: Tu es na terra, morena, Fadada, como a Sirena19 Nos régios paços do mar.

Comentários

1. Cavalete. Armação de madeira, que lembra o cavalo. 2. Paleta. O mesmo que palheta. “Tabuinha delgada, geralmente oval, com abertura para o polegar da mão esquerda, utilizada pelos pintores para dispor e combinar as tintas” (Nascentes). 3. Alambre. É o âmbar. Resina fossilizada. Cor amarela. 4. Jambo. Fruto. De cor loura, esbranquiçada, ou tirante a cor da gema do ovo. 5. Canela. Árvore e especiaria. Cor alourada. 6. Vênus. Da mitologia. Deusa da beleza e do amor, nasceu da espuma do mar. 7. Corais. Concreção calcária e ramosa, geralmente vermelha. 8. Vivaces. O mesmo que vivazes. Vivace é forma antiquada. 9. Musa. Emprego no sentido de mulher inspiradora de um artista. 10. Andaluza. Mulher da Andaluzia, capital Sevilha, na Espanha. As mulheres andaluzas são atrativas, têm algo secreto nos olhos, nos gestos, na personalidade. Inspiraram grandes pintores. 11. Homero. Poeta épico grego cuja vida, desde o século VI a.C., tem sido assunto de lendas. Diziam-no cego. A ele são atribuídas as duas grandes

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epopéias “Ilíada” e “Odisséia”. 12. Harpa. Instrumento musical de cordas, forma triangular. 13. Odisséia. Título da epopéia de Homero. O poeta empregou odisséia como viagem cheia de aventuras extraordinárias. 14. Enéias. Príncipe troiano, filho de Vênus e de Anquises, herói do poema “Eneida”, de Virgílio. Combateu corajosamente os gregos durante a guerra de Tróia. Aportou ao Lácio, território dos latinos. Daí nasceram Roma e a Itália. 15. Ossian. Herói e poeta da Escócia (século III). 16. Escocês. Natural da escócia. A mais setentrional das três partes das Ilhas Britânicas, ao norte da Grã-Bretanha. 17. Plêiadas. Também plêiades. Designação geral das sete filhas de Atlas e de Plêiona. metamorfoseadas em estrelas. 18. Extrata. Verbo extratar, extrair. 19. Sirena. É o latim sirena, que, pelas transformações fonéticas normais, passou a sereia, ser mitológico, gênio feminino malfazejo, representado geralmente na forma de peixe, com cabeça e peito de mulher. Os primitivos navegadores acreditavam que a sereia, que diziam ter canto mavioso, atraía os marujos para o mar, onde morriam afogados.

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A Canção do Serrano1

Deus Senhor compadecido Nossas preces atendeu; A seca que ameaçava. Dentre nós despareceu.2 Graças a Deus, temos chuva! Graças a Deus já choveu! Eia, meus filhos, partamos, Vamos à serra plantar, Vamos as perdas passadas Este ano recuperar: Milho, arroz, feijão, farinha, Teremos tudo a fartar. Agora a seca arrebenta, Coragem! Meus filhos, fé! Teremos bastante chuva, Boa safra de café. Graças à Virgem Maria, Louvores a San’José.3 Esta noite ouvi a porta Muitas vezes estalar; Esta noite a rã esteve Constantemente a raspar...4 São sinais de bom inverno: Vamos, rapazes, plantar.

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Também reparei que à noite Esteve a relampejar Para as partes do nascente,5 Toda noite num cortar! É sinal de bom inverno: Vamos, rapazes, plantar. Vamos, que a vida da serra. Tem primores que mais não! Nosso peito se dilata, Bate alegre o coração Quando chega o fresco inverno E foge o quente verão. É belo à tona da terra Ver-se o legume brotar; É belo vê-lo ir crescendo, Crescendo até se fechar; É belo em manhã serena Na roça se passear. E quando o milho começa No roçado a pendoar,6 E depois de pendoado, Principia a bonecrar,7 E as vberdes, lindas bonecas Começam d’encabelar...8 Oh! que então nada no mundo Eu jugo tão belo assim! Pode ser lá para os outros, Mas, não é cá para mim; Nos gostos não há escolha: Não há nada bom, nem ruim.

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Disse, digo e direi sempre: Nada me sabe agradar Como a vista deleitosa D eum roçado a verdejar! E como as loiras espigas9 Ao lume assando a estalar! Quando um atilho10 de espigas De milho trago na mão. Ou no ombro atravessado, Julgo-me mais que um barão!11 Não troco a vida da serra Pelo viver cortesão. Não invejo o pão das praças, Pois temos a nossa aipim;12 Não há nada tão gostoso Como o nosso gergelim,13 Como a nossa tapioca14 E o beiju15 co’o mondobim.16 O queijo também o temos; Que nos vem lá do sertão; Nada nos falta, meus filhos, Temos tudo em profusão, Não troco a vida serrana Pelo viver cortesão. Socorro-nos Deus com chuva, Que tudo vai bem assim: Pra completar nossos gozos Vem a moagem17 por fim, A rapadura,18 a batida19 E o enroscado20 alfinim.21

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Não invejemos a vida Que desfruta o cortesão: Somos aqui poderosos, Somos nobres que mais não: Temos a enxada por cetro,22 O machado por brasão.23 Eia, meus filhos, partamos, Vamos à serra plantar, Vamos as perdas passadas Este ano recuperar: Pois que o timbre do serrano Consiste no trabalhar.

Comentários

1. Serrano. Pessoa que habita as serras. 2. Despareceu. O mesmo que desapareceu. 3. São José. Esposo de Maria, mãe de Jesus. Ocupava-se no ofício de carpinteiro. Viva em Nazaré. Parece que morreu antes da crucificação de Jesus, pois não se houve falar dele em companhia das mulheres que estavam junto à cruz do Calvário. Também Jesus não teria recomendado sua Mãe aos cuidados do apóstolo João, se José ainda vivesse. 4. A rã esteve a raspar. Penso que raspar aqui está como sinônimo de arranhar, tocar mal, causar sensação desagradável ao ouvido. 5. Nascente. Ponto do horizonte donde parece surgir o sol. 6. Pendoar. O mesmo que apendoar, guarnecer de pendões. Botar pendão (o milho). 7. Bonecar. Derivado de boneca, espiga de milho em flor. 8. Encabelar. Criar cabelos. Referência aos cabelos da espiga de milho. 9. Espiga. É a parte do milho que termina o colmo e contém os grãos. Latim spica. 10. Atilho. Feixe de espigas de milho. 11. Barão. Título dignitário. Homem ilustre. 12. Aipim. Dos tipos de mandioca (raiz de Jatropha Manihot Euphorbiacea, da qual se faz a respectiva farinha). Dois tipos são comestíveis: a mandioca amarga (Manihot uitilissima), com que se fabricam a farinha de mandioca, beijus, polvilho etc, e o aipim ou aipi (mandioca doce, mandioca mansa ou macaxeira), que se usa cozido, assado ou frito, em bolos etc. 13. Gergelim. Já por variada forma se grafou este nome: gerzelim, zirgelim, gingilim, girgelim,jingeli, gegeri. Fixada a grafia gergelim. Planta da Índia. Bem secas as sementes, torradas, socam-se no pilão com farinha de mandioca, sal e açúcar, ou só farinha e sal, “e dão um prato de cheiro e gosto deliciosos”. 14. Tapioca. Alteração de tipioca. De tipiog (tipioca) em Batista Caetano. Trata-se da farinha de tapioca, que é a goma de mandioca umedecida e preparada, e que fica granulosa. 15. Beiju. Também beju, biju. Há muitos tipos de beijus. É o bolo de massa de mandioca ou da tapioca. Do tupi mbeiú, o enroscado, o enrolado. 16. Mudubim. Na classificação de Lineu, arachis hippojoea. As sementes são comidas cruas ou torradas. Acreditam-se que sejam afrodisíacas. Fornecem óleo para uso culinário e farmacêutico. Leio em Macedo Soares: “A sua celebridade consiste no seguinte: depois de fecundado o ovário, o pendúnculo da flor dobra-se procurando a terra, crescendo até penetrar no chão, onde o fruto desenvolve-se e amadurece”. José Coriolano grafou mudubim, mas a palavra tem variada grafia: mandubi, mendubi, mendobi, mendobim, manobi, mundubi e outras. Fixou-se amendoim, por intercorrência de amêndoa. A palavra provém do linguajar indígena: mandubi ou manduí. 17. Moagem. Ato de moer. O autor faz referência à época de moagem da cana-de-açúcar. 18. Rapadura. Açúcar de tipo inferior, produzido sob a forma de tijolos ou blocos de qualquer formato. 19. Batida. Tipo de rapadura, alvo, não em forma de tijolos. 20. Enroscado. O mesmo que enrolado. Dobrado em roscas. 21. Alfenim. No vocabulário de Mario Sette (“Arruar”) está alfenim com esta definição: “Substantivo masculino. Confeito alvíssimo, sólido mas delicado e quebradiço, muito agradável ao paladar, preparado com melado, que se deixa ao fogo até atingir um ponto especial, quando, então, se retira a massa do fogo, estendendo-se sobre um mármore ou qualquer outra superfície fria. Depois de parcialmente esfriada, puxa-se a massa com as mãos polvilhadas de goma, até alvejar e solidificar, podendo-se antes, dar-lhe as mais variadas formas”.

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22. Cetro. Bastão de comando – uma das insígnias da realeza. Poder soberano, Coriolano empregou cetro em sentido figurado. 23. Brasão. Conjunto de insígnias que compõem o escudo de armas de um país, de uma cidade, de uma corporação, de uma família. Honra. Empregado em sentido figurado.

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Mudanças Mudou-se o sol que despontava rindo, Desmereceu-lhe a luz, perdeu o brilho, Embaçado por grossas, pardas nuvens, Já não difunde raios! A meiga aurora já não tem primores, Matiz os campos, nem frescura os vales, Murcharam as belezas d’outro tempo, Que os olhos atraiam! Não é mais estrelado o céu da noite, Por crepes1 nebulosos sempre envolto, Não mostra mais em tela acetinada Da lua o branco disco! Sob o manto sombrio da tristeza, Só quebrando a soidão2 piar sinistro D’aves mil3 agoureiras,4 são as noites, Meu Deus, tão merencórias! Já não cicia no arvoredo a brisa, Nem além rumoreja o bosque espesso, Já não serpeiam límpidos regatos Nem sussurra a cascata! Deixaram de trinar os passarinhos, Secaram colos5 e vergéis e prados, Tudo, tudo mudou-se, a natureza Vai regressar ao nada!

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Já balouça o vento as verdes copas As flores não disparsem mais perfumes! Quem uma tal mudança produzira, Eu bem saber quisera! Mas, ah! nada mudou-se6 – eu só me iludo! Meus olhos, sim, mudaram-se de tristes: Tudo existe no estado primitivo: Eu somente mudei! Ainda fulge o sol e do levante Surgindo, ri donoso e luz do mundo, É a aurora serena, e meiga ainda, Os horizontes doura. De estrelas coruscantes é juncado Ainda o céu de anil, onde passeia A branca lua, que um lençol de prata Estende sobre a terra. São as noites tranqüilas, não as cobrem Tristes mantos que induzam tristes cismas:7 Sob a mangueira lá suspiram langues Dois amantes felizes. A brisa no arvoredo ainda cecia, Ainda rumoreja o bosque espesso, Serpeiam os regatos com doçura, Ainda rui a cascata. O vento ainda balança as verdes copas, As flores ainda exalam seus perfumes, Tudo existe no estado primitivo, Eu somente mudei-me!

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Ainda as aves docemente trinam, Só meus olhos de triste se mudaram, Vendados da incerteza nada enxergam, Lânguidos sem vida! Desgraçado de mim que tudo vendo, Da paixão ofuscado nada vejo; Se a brisa me bafeja murmurosa, Rijo tufão concebo! Ah! triste condição é do amante Que, vendo, nada vê de quanto o cerca, Embora tão patente como o lume Que o sol derrama a pino! E assim vivo, ó meu anjo, ó doce amada, Deslumbrado co’a luz desses teus olhos, Que rompendo a amplidão imensa e vasta, Minha razão ofuscam!

Comentários

1. Crepes. Emprego em sentido figurado: cor negra. 2. Soidão. Solidão. Já observada noutro local a palavra. 3. De aves mil. Mil, quando proposto, indica grande quantidade. 4. Agoureiras. Agoureiro; que faz mau agouro. Agouro é predição supersticiosa. 5. Colos. Observação noutro local deste livro. 6. Nada mudou-se. No tempo em que José Coriolano escreveu ainda não estava disciplinada a colocação dos pronomes átonos. 7. Cismas. Receio supersticioso. Meditação. Neste sentido é feminina. Cisma no masculino significa desacordo, desunião. Rebelião pela qual as pessoas se separam da sua religião.

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Eugênia Belém e Narciso Cordo Na primavera dos anos Era Eugênia tão formosa Como a branca estrela d’alva, Como a redolente rosa. Seu casto peito era templo Desses singelos amores, Que o doce lar perfumando Se matizam de mil cores. A núbil, formosa virgem Era a fadinha1 do campo, Colhia flores de dia, E de noite o pirilampo.2 Nunca a paz lhe pertubaram Aflições, nem dissabores, Nem as faces setinosas Envergonhados rubores. Antes de pegar no sono A menina encatadora Inocentinha, arroubada Se encomendava à Senhora.3 E descuidosa e indolente Andava pela campinas A perseguir borboletas, A colher sempre boninas.

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Mas eis que topa com ela Apaixonado Narciso; Vê-la, amá-la, desposá-la Foi todo o seu paraíso. Contava Eugênia três lustros,4 E quatro seu belo esposo; Que vida cheia de encanto! Que lindo par venturoso! Dois meses eram passados Depois da celebração Das bodas5 afortunadas, De tão ditosa união. Quando o déspota Solano6 Contra o Brasil move a guerra,7 E do par que jubilava Toda a ventura desterra. Não! que no peito do esposo Pulsa um coração ardente, Que geme da pátria amada O mal, o p’rigo8 iminente. Ei-lo, la vai para a guerra Viver vida amargurada; Que despedida custosa! Que dura ausência chorada! Voluntário! Deus te escute Nesses campos pantanosos, Que voltes ao lar querido Trazendo troféus honrosos.

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________ Bem poucos meses são idos Depois que partiu-se o bravo, A granadeira9 troveja E já prostra tanto escravo! Que soldado ali peleja Nesse ardido atrevimento? Co’o a baioneta calada10 Vale mais que um regimento! Quem há de ali, senão ele, Batalhar com ar de riso E dando vivas à pátria, Quem há de, se não Narciso! Sibilam, zunem-se as balas, Sem a fronte lhe ferirem, Outras sente desdenhoso Aos pés – humil11 – caírem! Porém que Narciso é este Que assim às balas sorri? - Um voluntário da pátria Das margens lá do Poti. Belicoso campesino, Quem te instruiu nas batalhas? Quem nos lábios debuxou-te Este desprezo às metralhas? Nunca um passo recuaste, Nunca temeste o inimigo! Quem pela pátria combate, Não teme, arrosta o perigo.

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É que por ti uma santa, Tua esposa noite e dia, Reza de joelhos chorosa À Virgem Santa Maria. Reza, reza, boa Eugênia, Pela pátria e pelo esposo; O céu nem sempre é nublado, Nem sempre o mar tormentoso. Espera, que a fé é base Da consoladora esp’rança;12 Espera! À negra procela Que vez sucede a bonança! Que nação há aí possante Que na sua juventude Haja ceifado iguais louros Com tanto garbo e virtude? Minha pátria, o mundo culto Para vós se volta atento, Pasma! Admira a vitória Dessa batalha incruenta. Por terra e mar que triunfos! Quanto é sublime e quão belo Ver Pedro13 em Uruguaiana,14 Barroso15 em Riachuelo!16 Heróis já tão conhecidos Nas matas de Tuiuti,17 Como Curuzu18 tomaram, Tomarão Curupaiti.19

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A aurora lá se apavona, O dia bem perto está Em que render-se há por força, Ou por vontade Humaitá.20 Há de ser nossa a vitória De Francia21 vergôntea ímpia! Tão certa, oh sim, como a aurora Ser precursora do dia! __________ - É meia noite! ela dorme Na rede sosinha ali... Nem sonha ver-me disforme... E eu dela tão perto - aqui! Dorme talvez descançada, De um doce sonho embalada, Que lhe sorri traiçoeiro Como a brisa suspirosa Que sussurra perfumosa Nas ramas do pequizeiro.22 Oh sina mesquinha, avara Para a pátria e para mim! Quando ela nunca pensara De me ver voltar assim! De não lhe dizer na volta: “Eugênia, engrinalda a fronte, Teu riso angélico solta, Saúda o novo horizonte! Caiu sob o gládio invicto Da tríplice – ultriz aliança23 Esse tirano maldito, Novo Rosas24 na pujança.” Mas quanto o mortal se ilude! Tudo lhe sai ao contrário!

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Real somente a virtude. É toda mágua e fadário Este pélago25 profundo De Circes26 cheio – este mundo! São fados – quem lhe resiste? Fortuna... sorte... destino... Nume impiedoso e ferino, Para mim nunca sorriste! Hoje alegre? – amanhã triste... Depois feliz? – mais adiante Liba-se o cálice feleo,27 E o lábio que não repele-o, Traga-lhe o amargor num instante! Mas porque gemo queixumes, Quando já libo os perfumes Deste lar que é todo meu? Inválido! – Embora. E ela... Tão meiga, tão pura e bela... Quem sabe quanto sofreu! – ________ Guerreiro que te bateste Nos campos do Jatai,28 Que as hostes bravo venceste Nas matas do Tuiuti, Que o braço esquerdo perdeste No ataque a Curupaiti, Esta demora é funesta A ela e fatal a ti. ______ - Pan, pan, pan! - Meu Deus, quem bate Tão tarde, a tal hora aqui! - Pan, pan, pan! - Já meia noite

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Gemeu o meu Jacamim!29 - Pan, pan, pan - Acorda, Firma, Vem te deitar junto a mim. Ouviste bater lá fora? Alguém perdeu-se n aestrada. Ó lá de dentro,30 pousada Ao pobre infeliz perdido! - Meu Deus, bater-se a tal hora, Depressa, Firma, o vestido, Oh! vamos, é dever nosso Dar pousada ao peregrino, Vamos, negar-lh’a31 não posso, Repare se dorme Nino. Dorme, mana,32 o coitadinho. Ei-lo! Parece um anjinho! E o peregrino?... – É verdade! Lá fora... ao frio... tão tarde! - Sim, vamos abrir-lhe a porta. _______ A noite estava sombria E derramava a luz morta Da lua que se sumiu. Abriu-se a porta. - Senhora, Não tema sair cá fora, Bem sei que é fora de hora, Que a lua além se ocultou; Não tenha de mim receio; Honra, dever e virtude Me foram da vida esteio Em toda vicissitude,

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Meu ser se não transformou. Nunca fiz mal neste mundo A ninguém nunca farei; Voto respeito profundo Tanto à donzela mimosa, Como à velhice rugosa; Se fiz algum mal... não sei! Se meu coração a fundo Conhecesse, ah! – saberia A fada destas campinas, Destas virentes colinas, Quanto dó33 mereceria Este pobre sem ventura, Que oscila... gemente aqui! Que deixou sem sepultura Lá junto a Curupaiti, Um braço á bala arrancado! Senhora, o pobre aleijado Vem de longe... dessa guerra, Onde se vê rubra a terra Do sangue dos nossos bravos Derramados por escravos Ao jugo desse Lopes, Desse déspota e tirano, Que recrudesce cad’ano, Que tantos males nos fez, E que está fazendo aos nossos Com traições, torpedos, fossos;34 Na protérvia,35 na bruteza Tigre sangrento e faminto Do sangue da pátria tinto; Aborto da natureza! Reflete no horrido sonho A satânica36 maldade Que do coração ferrenho Mostra toda a feridade.

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Engenho perverso e vil Tão fatal à humanidade, E sobretudo ao Brasil! - Entre senhor, nesta choça Não se despede ninguém, Pois é obrigação nossa Acolher a todos bem. Dê-me notícias da guerra, Se é que da guerra vem. - Venho, senhora, da terra Que nos tem a paz roubado, Porém estou fatigado; Depois que o braço perdi, Ando tão desajeitado, Que sinto no andar enfado, Cousa que nunca senti! - Perdeu então o seu braço N’algum encontro, senhor? Oh sim! voou pelo espaço No ataque a Curupaiti. Não tenho dele saudade, Pois pela pátria o perdi; E até co’a horrível dor, (Foi talvez do céu vontade) Estranho prazer senti, Prazer de novo dulçor! ________ - Agora que descançastes, Dizei-me se lá na guerra Vistes alguém desta terra,

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Das margens cá do Poti? - Conheci, senhora, um bravo, Filho aqui desta ribeira, vi-o sempre na fileira combatendo o guarani.37 Era casado, e vi muito No ardor do márcio38 conflito A esposa chamar aflito E a cara pátria também. - E o nome, senhor, do bravo Da esposa o nome também? - Se acaso bem me recordo... O dele... Narciso Cordo, O dela... Eugênia Belém. ______ Eis ali o par ditoso, Jovem, lindo, afortunado, Em doce abraço enlaçado, Em mudo enlevo de amor! Soluça agora de gozo A lembrança dessas máguas, Dessa ausência, dessas fráguas De fogo tão queimador! Deixa-los: findo o transporte Voltarão depois à vida; Que meiga fase sentida Dos lábios lhes brotará! Das saudades a coorte39 Dos suspiros na vanguarda Desertaram desta quadra, - Onde o amor só reinará. _______

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- Vês, Eugênia, este maneta40 Tão feio que causa dó, Mas não se parece ainda De Eugênio co’o Manquitó.41 Perdeu pela pátria o braço, Feliz por perde-lo só, Feliz por ti, por mim nunca, Pois fora melhor morrer Para salvar nossa pátria, Do que vê-la ainda sofrer. - Amigo, eu sinto que a bala Te houvesse o braço levado; Porém Deus, que é previdente, Que cura o mal que pressente, Nos há bem recompensado: Por um braço que perdeste, Dous braços, Narciso, achaste! Vem cá, - vês este menino? Repara – quanto é celeste! - Tão belo! - Se chama Nino. Dous braços nele encontraste; Se a bala um dos teus roubou-nos, Com dous o céu compensou-nos! - Te lembras? – quando partiste Me deixaste de esperanças... Entre dores e lembranças... E o amargo pranto, tão triste! O pobre Nino nasceu! Dous anos breve42 completa; Narciso, é a tua imagem! Sabido! A sua linguagem Já parece desse atleta Que à cara pátria volveu!

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- Oh! quanto sou venturoso Por tanta felicidade! Do amor da cara metade43 Encontro o melhor penhor! Cresce, meu anjo formoso, Cresce meu futuro bravo; Livrarás – quem sabe? – o escravo Das mãos do cruel senhor. - Cresce, cresce, meu menino, Cresce, cresce para o bem; Vale Deus em teu destino E teus pais Cordo e Belém. _______ - Amado, meu bem Narciso, Como é bele esta deveza! Repara na natureza, Mais graça nela diviso! A precursora do dia! Nas novas galas que muda, Que pompas, que louçania! Como a flor é mais cheirosa! Como alegre o passarinho A meiga aurora saúda Cantando sobre o raminho! - Minha Eugênia, esta ventura Só Deus a fez para os pobres, Pois no torreão44 dos nobres Reina a soberba e o festim, Mas aqui nesta fragura, Onde demora a cabana, Para Deus temos hozana!

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Perfumes tem o jasmim. - Quando com a foice aguçada Descer o anjo à cabana Montado no seu corcel, Não chores por mim amada, Mas antes entoa hozana Ao santo Deus de Israel.45 - Lá onde tudo é doçura, Onde tudo é poesia, Onde se goza a ventura Sem mescla de desprazer, Lá nos veremos um dia Nessa região feliz, Onde se vai reviver! Lá unirei o meu peito O bravo Francisco Luiz;46 Herói, Eugênia, perfeito, Filho deste Piauí,47 Onde nasceste e nasci. Morreu de balas passado A vinte e dous de setembro, O corpo todo crivado... Sem ter inteiro um só membro! Outro mais bravo não vi! Saudades à sua memória! Foi neste ataque intentado Sem fruto a Curupaiti, Porém famoso na história, Onde também teu Narciso Perdeu o seu braço, - glória Para nós, - pra outros risos! - Eu e tu e o nosso Nino, Firma também, nossos pais, Nossos parentes e amigos,

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Lá nos céus seremos tais! Lá se goza de uma vida De delícias sem iguais! A vida lá tem prazeres, Que não desfrutam mortais! Ame-se a pátria, a virtude, Que gozos lá perenais! - Mas em quanto o alto destiono Nos não desviar da rota... Façamos do nosso Nino Um guerreiro, um patriota. - Cresce, cresce bom menino, Cresce, cresce para o bem, Vele Deus em teu destino, E teus pais Cordo e Belém.

Comentários

1. Fadinha. Diminutivo de fada, que é ente sobrenatural com o poder de predizer destinos e fazer encantamentos. Por extensão, mulher formosa, assim empregado pelo poeta. 2. Pirilampo. Do grego piro, fogo, e lampo, facho, do verbo lampein, brilhar. Pirilampo, que brilha como fogo. O mesmo que vaga-lume. Melhor seria pirolampo, pois o o é a vogal de ligação de elementos gregos, mas entrou no hábito da coletividade pirilampo. 3. Senhora. Nossa Senhora. 4. Lustro. Período de cinco anos. 5. Bodas. Casamento, núpcias. 6. Solano. Solano Lopez, ditador do Paraguai. 7. Guerra. Referência à Guerra do Paraguai, que principiou em 1864. 8. P’rigo. Perigo. O poeta suprimiu uma sílaba por necessidade de metrificação. 9. Granadeira. Conjunto de granadas. Granada é explosivo. 10. Baioneta-calada. Baioneta é arma de aguda ponta que se adapta à extremidade do cano da espingarda, do fuzil. Muitos dicionaristas apon-tam como origem o francês bayonnette. Tirado da cidade francesa de Bayonne, onde a arma foi fabricada pela primeira vez. Baineta-calada: posta em posição para investir contra o inimigo. 11. Húmil. O mesmo que humilde. 12. Esp’rança. Esperança. O poeta suprimiu uma sílaba por necessidade de metrificação. 13. Pedro. Pedro II, imperador do Brasil, que chegou a Uruguaiana em 11-9-1865. 14. Uruguaiana. Cidade ocupada por tropas paraguaias (Rio Grande do Sul). Uruguaiana foi cercada por tropas brasileiras e uruguaias. As tropas paraguaias renderam-se. 15. Barroso. Almirante Francisco Manuel Barroso da Silva, comandante da esquadra brasileira na Batalha do Riachuelo (Guerra do Paraguai). 16. Riachuelo. Arroio Riachuelo. Batalha do Riachuelo ganha por Barroso (11-6-1865 – Guerra do Paraguai). 17. Tuiuti. Ganha batalha ganha pelos aliados (Brasil, Argentina e Uruguai) contra o Paraguai (24-5-1866). 18. Curuzu. Pequena fortaleza paraguaia tomada pelos brasileiros no dia 3-9-1866. 19. Curupaiti. Batalha de Curupaiti. Primeira derrota de argentinos ,brasileiros e uruguaios na guerra do Paraguai. Setembro de 1866). 20. Humaitá. Doze meses de duração as lutas pela posse de Humaitá na Guerra do Paraguai. Foi ocupada pelas tropas aliadas. 21. Francia. José Gaspar Rodriguez Francia, chamado Dr. Francia. Fundador da independência do Paraguai. Ditador. Nasceu em 1776 e faleceu em 1840. Ditador vitalício. Alcunhado El Supremo, governou até morrer. Grande estadista e déspota intransigente. Fortaleceu a economia paraguaia. 22. Pequizeiro. Veja pequi, noutro local deste livro.

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23. Da tríplice – ultriz aliança. Referência à aliança do Brasil, Argentina e Uruguai contra o Paraguai, na Guerra do Paraguai. Ultriz quer dizer que vinga. Aliança vingadora. 24. Rosas. José Manuel Rosas (1793 – 1877). Soldado e trabalhador em fazendas de gado. Com o tempo e depois de muitas lutas tomou conta do governo de Buenos Aires. Deixou o governou e foi a ele chamado novamente.o seu poder foi ratificado por um plebiscito. Passou a governar despoticamente. Muitos foram fuzilados. Vários paises assumiram posições contra ele Buenos Aires foi bloqueada. Derrotado pelos brasileiros na batalha de Monte Caseros. 25. Pélago. Veja pego noutro local. 26. Circe. Feiticeira que transformou em porcos os companheiros de Ulisses, quando este aportou à sua ilha, para que o herói permanecesse mais tempo junto dela. Por vezes se faz referência a essa transformação para aludir a pessoas que embruteceram ou perderam as boas maneiras. 27. Féleo. Relativo a fel. De fel. 28. Jataí. Combate de Jataí. Encontro da Guerra do Paraguai (17-8-1865), decisivo para a sorte do general Estigarribia. Argentinos, brasileiros e uruguaios derrotaram o Paraguai. 29. Jacamim. Também jacami. Ave dos campos, de canto singular. Do tupi já-acan-mim, o que tem cabeça pequena, ou já-acan-mii, aquele que move a cabeça. 30. Ó lá de dentro. Modo, no interior, de chamar alguém. 31. Negar-lha. O lha é combinação dos pronomes lhe e a: negar a ele (lhe) a pousada (a). 32. Mana. O mesmo que irmã. 33. Quanto dó. Como compaixão, tristeza, dó é palavra masculina. 34. Fossos. Empregaod no sentido de fortificação, entrincheiramento. 35. Protérvia. Insolência, desaforo, desavergonhamento. 36. Satânica. Derivado de satã, o mesmo que satanás, diabo. Satanás em hebraico é satan. 37. Guarani.de guá igual a guá (hár), o guerreiro, e rani igual a rini,os que guerreiam ou estão guerreando. Primitivamente – lembra Romão da silva – aplicou-se este nome a um dos grupos avançados da grande família lingüística americana, que ocupava o delta do rio Paraguai, e com que primeiro estabeleceram contato e comércio os conquistadores. Mais tarde passaram a chamar assim todos povos afins da bacia do Prata (veja “Denominações Indígenas na Toponímia Carioca” – 138). Guarani é o mesmo que paraguaio. 38. Márcio. Derivado de Marte, deus da guerra, na mitologia. 39. Coorte. Porção de gente armada. O poeta empregou figuradamente como grande quantidade. 40. Maneta. Que não tem um braço. 41. Manquitó. Que manqueja. Coxo. 42. Breve. Adjetivo empregado como advérbio: brevemente. 43. Cara-metade. A esposa com relação ao marido. A palavra cara, na expressão, vale querida, amada. O povo, porém, vê cara como dispendiosa. 44. Torreão. Torre larga e ameada sobre um castelo (Aurélio). 45. Deus de Israel. Israel foi a designação das tribos que se separaram de Judá, formando um dos dois reinos após a morte de Saul. Israel: nome do reino das dez tribos. Deus de Israel é o criador de todas as cousas, inclusive do homem e da mulher. Cristo é o filho de Deus de Israel. 46. O bravo Francisco Luís. Monsenhor Joaquim Chaves transcreve documento de que copio: “No dia 4 de maio, pelas cinco horas da tarde, fez em Teresina sua entrada o contingente de Voluntários da Pátria fornecido pela vila de Barras, em número de 52 praças e 2 oficiais. Aos esforços do Capitão Luís Francisco Pereira de Carvalho e Silva, que foi o primeiro a inscrever-se no alistamento e o primeiro a procurar com o poder de persuasão e do estímulo fazer-se acompanhado de tantos cidadãos, muito se deve pela aquisição de tão importante número de voluntários”. (O Piauí na Guerra do Paraguai” – 17). E adiante, pág. 38: “Em Corrientes, no Estado argentino, faleceu no dia 7 de outubro último (1866), Francisco Luís Pereira de Carvalho e Silva, em conseqüência do ferimento de uma bala que lhe penetrou no peito direito, no ataque de Curupaiti, a 22 de setembro. Natural da cidade de Oeiras e residente na vila de Barras, onde se dava à vida pacífica da advocacia, apenas a Pátria pôs em prova a dedicação de seus filhos, o capitão Francisco Luís apresentou-se voluntário e seguiu com o 1º Corpo que desta Província partiu para o teatro da guerra. Não lhe obstaram o propósito a cara esposa e os ternos filhos, que oram ficam na viuvez, orfandade e pobreza. Fez a campanha de Uruguaiana. No combate de Curuzu o nobre piauiense portou-se heroicamente” (documento citado por Monsenhor Chaves”). 47. Piauí. Nome indígena. De piau (o pele manchada, peixe) e i (rio) – o rio dos piaus,isto é, dos peixes de pele manchada.

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O Avarento

Quid juvat immensum te argenti pondus et auri Furti defossa timidum deponere tura?

(Horácio – Sat.) Vede o pobre ancião na humilde choça Os tíbios olhos para os céus erguendo: Seus lábios trêmulos se dirigem súplices Aos pés do Eterno, desferindo graças... Certo despreza deste mundo as pompas; Dizem-nos os anos e a cerviz1 pintada: Apalpa as contas que rolando descem No grosso fio;2 só nos céus medita... Ele é ditoso, que a virtude é dita. - Vede o pobre ancião na humilde choça! ________ Seus dias correm como os sons queridos Da fresca brisa que desperta as folhas; Correm serenos como os sons da flauta Que acorda as trevas do dormir profundo. Na pobre mesa não se estendem lautos, Gordos manjares que derramam n’alma Torpor e tédio: na frugal3 comida, Bem mostra, sóbrio, que abomina a gula.

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Ele é ditoso, que a virtude é dita. - Vede o pobre ancião na humilde choça! _______ Seus dias correm como os sons queridos Da fresca brisa que desperta as flores Correm serenos como os sons da flauta Que acorda as trevas do dormir profundo. Na pobre mesa não se estendem lautos, Gordos manjares que derramam n’alma Torpor e tédio: na frugal4 comida, Bem nostra, sóbrio, que abomina a gula. Ele é ditoso, que a virtude é dita. - Vede o pobre ancião na humilde choça! ______ Não tem mobília no seu tosco albergue. Apóstolo fiel da caridade, Repele o luxo que arruína os povos, E socorre, propício, aos desgraçados. Vede-o – levanta-se, e com passo incerto Passeia – olhando para certo lado Da humilde estância... aonde5 os dias passa Puro – distante do viver da corte.6 Ele é ditoso, que a virtude é dita. - Vede o pobre ancião na humilde choça! _______

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Mas estudai-lhe do semblante lívido Todos os traços, estudai-lhe os olhos Baços,7 erguidos para os céus, e os lábios Que a Deus parecem desferir8 mil graças... Sim, estudai-o ... Dir-vos-a seu rosto, A cerviz branca, seus olhares baços, Que aos céus se elevam e depois se abaixam,9 E vão pregar-se, vão morrer num canto. É desgraçado - que a vareza torpe Faz a desgraça do mortal que a nutre. Oh! Não! Como é possível que a maldade, Que a torpe hipocrisia se rebuce Nas brancas roupas que a virtude veste? É possível, meu Deus, tanta impostura? ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨ É ele nada menos que um avarento! Prata e oiro conserva sob a terra: Um só real10 não passam os seus gastos Dos juros extorquidos aos que presta11 Dinheiro, cujo prêmio desejara Ao mês fosse de mil ou mais por cento! Porque julga o de dous, de três ou quatro Incapaz de dar pasto à vil cobiça E à sede de metal12 que lhe devora O peito que se afez a torpes crimes! - É de tanto capaz um avarento! E assim vive já próximo da campa,13 Sem que a fome remova ao mendigo; Sem que ao despido corpo do indigente Uma vara14 ministre de fazenda;

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Sem que atenda o gemer do pobre infante Que vive a tiritar de frio e fome E com a voz da inocência o pão esmola;15 Sem que a sede sacie ao que a suporta, Pois que até lhe é penoso um gole d’água Dar a quem lh’o16 suplica sequioso! - É de tanto capaz um avarento! A prole, triste dela! – mal curada, Apenas tem por mestre a consciência! “Meus filhos, assim diz, viver só devem Esta vida qual eu vivido tenho.” E os míseros escravos que se afanam17 No contínuo lidar – nus e famintos – No horror do desespero aos céus dirigem Maldições, maldições contra o tirano Que os dias amesquinha-lhes... que as carnes, Lhes despe – em tiras – do mirrado corpo! - É de tanto capaz um avarento! Malvado! – que ensurdece ao grito infausto Da miséria! – nem sabe-lhe propicio Mitigar o sofrer um só instante! Coração mais ferino que o do tigre! Mais duro do que a rocha! Oh! vede o monstro: - Ao pobre que reclama o pão do dia, Ao cego, cuja indústria lhe é vedada, Ao mísero aleijado que o trabalho Não pode manejar, diz, feio e torvo: “Todos vós sois vadios – que trabalhem... - É de tanto capaz um avarento! Em que pensa o avaro? o qu’ele sonha? - Pensa e sonha chupar o sangue humano! Ao crime negro e vil oblações rende! A virtude, profano! – olvida e cospe:

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À viúva que vê envolta em trapos, Tendo ao seio apertado o orfãozinho, E que uma esmola, lacrimosa, pede; Embora honesta seja, diz-lhe: “Vai-te, Mulher torpe, que as cinzas do finado18 Desonras com os teus nefando vícios.” - È de tanto capaz um avarento! Porém, ei-lo que jaz na cama enfermo, Já sentido da morte o golpe extremo; Seus filhos que da morte o leito imundo, Pranteando-o, circundam, na desgraça Com a decrépita esposa hão de famélicos Morrer a míngua... Mas, no que ele cuida Que, mesmo agonizante, os frouxos olhos Não desprega de um lado... de um somente! - é que ali enterrada a prata, o oiro, Permanecem, que são “seu deus, seu tudo!” - É de tanto capaz um avarento! E muito embora à cabeceira tenha Do Senhor o ministro19 que o exorta, A ninguém os tesouros seus descobre! As verdades do céu são-lhe fantasmas De feio aspecto, que o sofrer lhe agravam. Se os olhos cerra,20 novo mundo encontra De tétricas visões que lhe torturam Os instantes cruéis que ao mundo o prendem! E sem restituir quanto usurpara, Impenitente morre e condenado! - È de tanto capaz um avarento!

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Comentários

1. Cerviz. Emprego como cabeça. 2. Fio. Cabelo. 3. Frugal. Emprego no sentido de sóbrio, parco. 4. Albergue. Asilo para pobres. O poeta empregou como habitação pobre. 5. Aonde os dias passa. Hoje se diria: onde os dias passa. Emprega-se aonde com verbos dinâmicos, de movimento: aonde vais. 6. Corte. Emprego no sentido de capital, centro do governo do país. 7. Baço. Sem brilho. Escuro. 8. Desferir. Lançar, atirar. 9. Abaixam. Excelente emprego. É melhor abaixar quando existe objeto direto: abaixe os olhos. 10. Real. Singular de réis. Mil réis era, até 1942, a unidade monetária brasileira. 11. Presta. Do verbo prestar, o mesmo que emprestar. 12. Sede de metal. Metal aqui vale dinheiro. 13. Campa. Emprego no sentido de sepultura. 14. Vara. Antiga medida de comprimento (1,10m). 15. Esmola. Verbo esmolar. 16. Lho. Combinação dos pronomes lhe e o: suplica a ele o, isto é, o gole d’água. 17. Afanam. Verbo afanar-se, cansar-se, fatigar-se. 18. Finado. Defunto. Que morreu. 19. Ministro. Sacerdote. Padre. 20. Cerra. Verbo cerrar. Fechar.

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Consulta e Resposta Bom dia, senhor Doutor! “Bom dia, senhor Soares! D’onde vem? “ – Dos pátrios lares, Desse sertão sedutor: Eu venho do Piauí. Trousse cento e tantos queijos Saborosos como os beijos Das mulatas1 do Poti;2 Porém, por desgraça minha, Fui ter a certa covinha... Que não direi ser de Caco,3 Pois Caco já não existe. Onde infelizmente assiste,4 E onde tudo abarca e vende, Sem dar o menor cavaco,5 Um certo atravessador.6 Por fim de contas, entende Que, por ser grande senhor, Deve ao credor, bom ou mau, Responder sempre: babau!7 Vendi-lhe, senhor Doutor, Os queijos por atacado, Só por trezentos mil reis;8 Venceu-se o prazo marcado, Fui cobrar do comprador, Insultou-me, - nem dez reis! Agora, o que hei de fazer Para os cobres9 receber?

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O letrado empavonou-se Na cadeira de balanço, Tossiu, cuspiu, asseou-se, Depois de breve descanso, Riscou estalante fósforo,10 Acendeu louro charuto, E respondeu sem mais prólogo,11 Em som grave e estilo arguto: (Soares reprime o fôlego e prega e concentra a vista na boca flórida, antíloqua do grande e Sábio jurista: vai ouvir na voz harmônica a resposta salomônica.)12 “Senhor soares, o caso Não me parece tão leve, Pois não o li no Parnaso,13 Nem no afamado Vanguerve:14 Porém, deixando de parte, Mais perluxas15 citações, Dir-lhe-ei com engenho e arte, Sem Pandectas,16 sem Lobões,17 Que presto18 e presto demande O tal brejeiro e malsim,19 À casa citá-lo mande Por esperto beleguim,20 E citar com hora certa; Pois, se ele vir não o encontra: Mergulhará como a lontra21 Do caçador descoberta.” Mas onde, senhor Doutor, Mergulhará, pois é fama Não há lá rio ou açude?

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“Aí em qualquer palude,22 Ou nessa fétida lama Do brejo23 do tal senhor.” Bom dia, senhor Doutor! “Bom dia senhor Soares! Como vai co’o devedor?” Em róseos, serenos mares! Todos dizem com razão, Com sentimento ou vergonha Não há mais na carantonha24 De tão velhaco truão.25 Inda usou de escapatório,26 Inda tentou mergulhar, Ou quem sabe? – mergulhou... Mas o sujeito é finório: Julgou prudente pagar Os queijos que me comprou. Certificou o meirinho27 Que ele se havia ocultado Para não vir a audiência; Mas, sabendo de caminho Que já tinha advogado, Concordou co’a consciência. “Agora, já que sou velho, Quero lhe dar um conselho: Quem usa vender fiado, Logrado bem pode ser; Mas se fugir do tratante, Avante, pode vender.

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Tem o tratante na cara, Cousa rara! Certo quê,28 Ferrete que o experiente Logo sente, logo vê.” Sim, Doutor, para o futuro Protesto andar mais seguro. Quanto lhe devo, doutor? “Eu não recebo dinheiro por consulta de credor feita contra caloteiro,29 ou contra mau pagador.” Muito obrigado, Doutor.

Comentários

1. Mulatas. Os dicionários ainda acolhem a significação de mu, mulo de pouca idade. Mulo é o mestiço de cavalo com besta, ou de burro com égua; mestiço de jumento com égua. Nascentes admite que se tenha derivado de mulo e sufixo ato – e acrescenta: “para o mestiço humano houve comparação com o híbrido animal”. Sá de Miranda, velhíssimo escritor português, empregou mulato como sinônimo de mulo: “Que possa livre quem queira / Cantando ir de noite à feira, / Ou domingo no mulato”. A. J. de Macedo soares indica, no Dicionário, o étimo latino moratus (fusco), italiano morato, espanhol mulato, francês mulâtre – e diz que é a etimologia mais natural. Comumente se emprega mulato como filho de branco com negro ou de negro com branca. Mestiço com sangue negro. 2. Poti. Afluente do rio Parnaíba. Banha a cidade de Teresina. Nome tupi: as fezes. Poti também é camarão. 3. Caco. Personagem da mitologia. Habitava nas imediações do Monte Aventino. Roubava os bois de Hércules e os conduzia para a sua cova, fazendo com que eles caminhassem de costas, a fim de que não fossem achados. Mas um deles berrou e Hércules arrombou a porta da caverna e matou o ladrão a bordoadas. Cova de Caco emprega-se como covil de larápios. 4. Onde infelizmente assiste. Excelente emprego do verbo assistir na acepção de morar, residir. 5. Cavaco. Emprego no sentido de prosa, conversa. 6. Atravessador. Empregado no sentido de monopolizador, açambarcador (de gêneros) 7. Babau. Interjeição indicativa de que uma cousa se acabou irremediavelmente. 8. Mil-réis. Antiga moeda brasileira. Em 1942, passou a cruzeiro (Getúlio Vargas). 9. Cobres. Dinheiro: “Em primeiro lugar pagarei aqueles cobres que devo...” (Artur de Azevedo – “Contos Efêmeros” – 61) 10. Fósforo. Composto grego. Phos (fos), photo (foto) é luz; phoro (foro), do verbo phorein (forein), que produz. 11. Prólogo. O que antecede, o que precede. 12. Salomônica. Adjetivo referente a Salomão, nascido em Jerusalém, filho de Davi. Rei. Salomão significa pacífico. Começou a reinar no ano de 970 a.C., com 20anos. Pediu a Deus que pudesse sempre discernir entre o bem e o mal. Tornou-se célebre pelas suas decisões. Cultivou as artes e as ciências. Aumentou a riqueza pública. Sábio. Reinou 40 anos. Dois graves erros praticou: estabeleceu um harém com mil mulheres, que lhe perverteram o coração, e praticou enormes despesas na corte. Foi castigado. 13. Parnaso. Do grego parnassós, parnessós, parnasós. Maciço montanhoso da Grécia. Antigo monte de Fócida, onde os gregos colocaram a morada de Apolo e das musas. Designa, simbolicamente o lugar habitado pelos poetas e, figuradamente os poetas em geral e a poesia. Dá-se também o nome a coletânea de poesias, a antologias poéticas e ao movimento literário chamado parnasianismo. 14. Vanguerve. Penso que se trata do famoso jurisconsulto alemão Von Ihering. 15. Perluxas. Presumidas. 16. Pandectas. Ou Digestos de Justiniano. Do latim Pandectae – uma das partes principais da codificação de Justiniano, consistente numa coletânea metódica de fragmentos tirados das obras dos jurisconsultos romanos, e cuja redação foi confiada a uma comissão de 16 membros, dirigida por Triboniano. 17. Lobões. Referência a Lobão, celebrado jurisconsulto de Portugal. 18. Presto. Palavra comentada noutro local.

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19. Malsim. Tenho que o poeta empregou malsim no sentido hebraico da palavra: malfeitor. 20. Beleguim. Agente de polícia. Meirinho. 21. Lontra. Animal mamífero. 22. Palude. Forma latina. O mesmo que paul. 23. Brejo. Terreno alagadiço, pantanoso, inculto. 24. Carantonha. Cara feia, carranca. 25. Truão. Palhaço, bobo. 26. Escapatório. Hoje se emprega mais o feminino escapatória. Morais registrou escapatório: Meio, ou destreza para sair de um embaraço e dificuldade, subterfúgio, tergiversação. 27. Meirinho. Oficial de Justiça encarregado de diligências. 28. Quê. Usado como substantivo. 29. Caloteiro. Que passa calote, que é a dívida não paga. Palavra vinda do francês.

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A Tempestade De uma parte do horizonte Pouco a pouco mostra a fronte De nuvens um torreão. O sol no mar sepultou-se, Da lua a face turvou-se, Lampeja tíbio clarão. Já o mar desperto geme, Já no bosque o vento freme, Retumba ao longe o trovão! Já negreja no horizonte, Já minaz1 ostenta a fronte De nuvens o torreão. De todo a noite fechou-se, O ar medonho nublou-se, Fuzila crebro clarão! O mar furioso ronca, Rouqueja na gruta bronca O vento e perto o trovão! Outro ponto negreja, Como à porfia a chameja O raio, e estoura o trovão! Dos bosques se humilha a coma, Estruge, sibila, assoma Turvo, iroso o furacão!2 No ar se cruzam os raios, Os trovões causam desmaios, Horroriza a confusão!

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Rasgam-se as nuvens pejadas, Grossas bombas despenhadas Rojam, alagam o chão. Cresce a chuva em cataratas, Sossobram-se mil fragatas, Retumba sempre o trovão! Dos cumes mil seixos rolam As águas prostram, assolam Os bosques em borbotão! Qual aqui a Deus invoca, Qual ali os céus provoca Com lastimosa oração! Vacila o teto e se abate Ao duro, ríspido embate Da chuva solta em cachão!3 Mil gritos o ar atroam! Mil gemidos aos céus voam! Deus se move à compaixão. Já menos caem as águas, Menos cintilam as fráguas, Menos estala o trovão. Pouco a pouco o ar serena, Inda a cheia corre plena, Mas cessou o turbilhão. O mar no leito descansa. Perto já vem a bonança Ao cessar do furacão. Em fim, a chuva extingui-se, O puro céu descobriu-se, Cessou de todo o trovão. No bosque a brisa cecia, O mar, que em fúria bramia,

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Quedou, quedando o tufão. No mar a lua de prata Já sua face retrata E esparge meigo clarão.

Comentários

1. Minaz.termo poético: ameaçador. 2. Furacão. Vento impetuosíssimo. 3. Cachão. Borbotão.

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A Lua A lua donosa lá surge fagueira Por trás da mangueira que ao vento murmura Por entre a folhagem mil círios1 rutilam, Mil tochas cintilam da luz que fulgura. Já toda se mostra ridente e formosa, Luzindo saudosa da esfera anilada, Suspiram poetas ao ver seus fulgores, E a virgem de amores é logo assaltada. Não crestam, não queimam seus lânguidos raios, Não causam desmaios às plantas nascentes. Não são como os raios solares que abrasam, Desecam, arrasam as plantas virentes. Oh! como de casta na esfera azulada A face argentada2 no vê transparente De cândida nuvem oculta medrosa. E logo donosa se mostra ridente! Assim faz a virgem que escuta do amante A fala anelante que amores lhe jura, As frases mimosas, que dizem carícias, Que exprimem blandícias de um’alma que é pura. E como ela brilha donosa e fagueira Na verde mangueira que ao vento se embala! E como na mente que sofre e delira Um sonho me inspira que as dores me cala!

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Agora lembrei-me3 da terra querida, Em que minha vida passei noutra idade... Do anjo eu amava até mesmo esquivanças... Que doces lembranças! Que terna saudade! No céu entre estrelas teu rosto flutua, Tu és, branca lua, da noite a rainha; Mas ah! No teu seio que lágrimas chora A virgem que ora, que geme sozinha! Contigo o que sofre, resfolga, respira, Contigo suspira quem vive ditoso, Tu es meu santelmo nos tristes momentos Eu que meus tormentos deploro saudoso. E agora lembrei-me da pátria querida, Em que minha vida gozei noutra idade Do anjo eu amava até mesmo esquivanças... Que doces lembranças! Que ternas saudades!

Comentários

1. Círio. Círio é vela grande de cera. O poeta empregou a palavra como brilho. 2. Argentada. Prateada. Do latim argentu, prata. 3. Agora lembrei-me. Na época em que José Coriolano escreveu não estava disciplinada a colocação dos pronomes átonos.

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Noite de São João1

Radioso assoma o dia Festival de San’Joçao, Já se apavona2 a alegria Nas asas da predição.3 O bolo no forno estala Entre o cheiro que trescala, Que o olfato ferir nos vem; O pão-de-ló,4 a cangica5 Pelo olor também indica O gosto, o sabor que tem. Já se ajunta a verde lenha, Já crepita a combustão; Venha o velho, o moço venha Às sortes6 de San’João. O velho aspira à mor7 vida, O moço à posse querida Daquela que é seu amor. As belas têm seus segredos,... Tremem-lhe’as sortes nos dedos... Abrem-n’as... Deus, que palor! Porém aquela sorri-se... São coisa do coração; O que foi? –8 ela não disse, Só ela o sabe e San’João. Mas esta – aqui – entristece; Pois de repente enlanguece Aquele brilhante olhar!

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O que seria?! Donzela, Nesta palidez tão bela Quem te pode transformar? E ela diz: “Não creio em sortes Em noite de San’João.” E a outra diz: “Pois são fortes Mistérios de predição.” Aquela triste indolente, Machuca a pobre inocente, Que ao virgem seio pendeu. Esta afaga a flor mimosa, Que recende deleitosa No peito que a recebeu. A feliz não satisfaz-se,9 Não creu, talvez, em San’João; Em ais a outra desfaz-se Nascidos do coração. Da desdita ou da ventura Ei-las de novo em procura De trás da porta a escutar Um nome... um nome querido, Que seja o primeiro ouvido Para a bochecha soltar. Júlia, a feliz, sufocava No peito a respiração; Lúcia, a triste, só pensava No rigor de San’João. Júlia quer ouvir um nome... Coitada! em vão se consome! Lúcia, sim, sorriu, corou! São revezes – que este mundo É um mar turvo e profundo: Quem sempre em calma o sulcou?

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Quantos rostos confrangidos, De prazer quanta explosão, Se mal ou bem sucedidos Nas sortes de San’João! Um aqui nota a galera10 Que lhe assinala uma era De glória, de mil troféus! Já outro um palácio nota De uma estrutura ignota Que vai topetar11 co’os céus! Que aqui na lisa fonte, Em noite de San’João, Inclinado mira a fonte, Que há de ver outra estação; Qual o ramo emurchecido Aguarda reverdecido Pela madrugada ver; Qual, por fim, anda nas brasas, Porém suspenso nas asas, Que um anjo quis-lhe12 estender. E o busca-pé13 cabriola14 Em noite de San’João, E pelo ar caracola,15 Lá ruge como um vulcão! Lá vai chiando raivoso, Faiscando, estrepitoso, Fazendo tudo correr! Ouvem-se gritos, risadas! Oh meu Deus, que matinadas16 Um busca-pé faz nascer! Porém o mais pitoresco Em noite de San’João, É, por certo, o compadresco,17

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Isto, sim, tem seu condão!18 Que mal faz? – brinco inocente, Que estreita, que liga a gente Por laços santos assim! Ser-se compadre da bela Por gosto e vontade dela, Não é bom? –acho que sim.

Comentários

1. São João. Áspero pregador. Degolado na Palestina, por volta do ano 31 da nossa era. De noite comemora-se a data com farta alimentação, dan-ças, bebidas, adivinhações para casamento e morte, e acendem-se fogueiras, e soltam-se balões, e tocam-se fogos de artifício, bombas, traques, e dançam-se quadrilhas. Festa tradicional na Europa, notadamente em Portugal, e no Brasil, aonde chegou trazida pelo colonizador lusitano. Conta a tradição que o santo adormece durante o dia, no seu aniversário natalício. E à noite, ao enxergar o clarão do fogaréu aceso para homenageá-lo, desce dos céus e acompanha a oblação popular. 2. Apavona. Verbo apavonar. O mesmo que empavonar. Envaidecer-se como o pavão. 3. Predição. Ato de predizer. Profecia. No São João os pares namorados buscam adivinhar a sorte, na prática de adivinhações: duas agulhas numa bacia d’água revelarão casamento, se no fundo se ajuntam. 4. Pão de ló. Bolo leve e fofo, feito de farinha de trigo, ovos e açúcar. No plural, pães-de-ló. 5. Canjica. Iguaria feita de milho verde, leite e açúcar, muito usada no São João. 6. Sortes. Veja nota 3. 7. Mor. Forma reduzida de maior, mais longa. 8. O que foi? Em frases interrogativas, alguns condenam o o antes do que. Mas muitos o admitem. Pode-se dizer corretamente: que foi? 9. Não satisfaz-se. No tempo em que José Coriolano escreveu ainda não se havia disciplinado a colocação dos pronomes átonos. Hoje se diria: não se satisfaz. 10. Galera. Palavra italiana. Embarcação. 11. Topetar. Atingir. Subir às alturas de. 12. Que um anjo quis-lhe. No tempo em que José Coriolano escreveu ainda não se havia disciplinado a colocação dos pronomes átonos. Coloca-ção moderna: que um anjo lhe quis estender ou que um anjo quis estender-lhe. No caso, a primeira estaria de conformidade com a rima. 13. Busca-pé. A tradição quer que o São João seja festivo e zoadento. Não devem faltar-lhe o foguetório e os busca-pés. O busca-pé é “produto pirotécnico que, posto no chão e incendiado, arde volteando rapidamente de um lado para outro dando um estouro no fim” (Nascentes). 14. Cabriola. Verbo cabriolar, saltar. 15. Caracola. Verbo caracolar; mover-se em espiral. 16. Matinadas. Empregado com estrondo, algazarra. 17. Compadresco. Relativo a compadre. No São João as pessoas se tornam compadres de fogueira. 18. Condão. Poder sobrenatural. Dom. Prerrogativa.

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A Noite Mostra-me, noite, os arcanos, Os altos segredos teus; Vejam meus olhos profanos O que só sabes e Deus. Tu que inspiras tantos gozos, Que a tantos fazes ditosos, Cede, ó noite, aos fervorosos, Anelantes rogos meus. Sob uma mangueira altiva Terno amante adormeceu, Mas antes da bela esquiva Puros favores colheu! Dessa tão meiga donzela, Tão formosa, tão singela, Que de dia jamais dela Um só favor mereceu! Como roubas, noite, o pejo De virginal coração? Mas ah! tu serves de ensejo Também ao crime, à traição! Noite, noite! os teus arcanos1 Não podem olhos profanos, Não podem olhos humanos Perscrutar, não podem, não!

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Embuçado, numa esquina, Na mão sustenta o punhal, Ou cinge, torvo, a clavina2 Perverso gênio do mal. Na mente o crime medita, Outros novos premedita, Em Deus, em nada acredita, Se não no ferro fatal! E por que, noite, ao tirano Asilas no teu seio? E tu por que, desumano, Profanas o grêmio seu? Mas aí! O fuzil lampeja! Um tiro!... o punhal alveja! Em balde o mis’ro forceja... Gemendo, caiu... morreu! Porém ah! És inocente, Es mãe da consolação; Nos teus braços docemente Esquece o triste a aflição Em ti – na pedra gelada – Que cobre o amante, a amada, Sufraga-se soluçada, Mesta, carpida oração. Ó noite, não tens horrores, Espectro, fantasmas, não; Oh! que lindos resplendores Lá no céu! – estrelas são. Que luz propícia tão grata! - É dessa lua de prata Que na fonte se retrata, Que tem tão meigo clarão!

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Sim, não tens, não tens horrores, Espectros, fantasmas, não; Oh! que sons cheios de amores Quebrando tua soidão! - É da flauta o som mavioso Que fende o ar saudoso, Seguido de harmonioso, Do sentido violão. Noite, noite, os teus arcanos, Os altos mistérios teus Não vejam olhos profanos, Saiba-os só tu, saiba-os Deus, Que importa que inspire gozos Que a tantos fazem ditosos Eu cedo dos desejosos, Anelantes rogos meus.

Comentários

1. Arcano. Já comentado noutro local. 2. Clavina. Arma de fogo. O mesmo que carabina.

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Gozemos Dos lábios teus mimosos, que espargem mel e aroma, Que o néctar,1 que a Ambrósia2 mais doces, mais cheirosos, Fazei, ó minha amada, fazei-me uma redoma, Aonde os meus se fartem de amor, de puros gozos. A vida é transitória, momentos poucos dura, Convém sugar-lhe o crêmor,3 enquanto não se esvai, Que em vindo a feia morte, na fria sepultura Desfazem-se os prazeres, no espaço como um ai. Gozemos, minha amada, no mais langue transporte Do néctar dulçuroso que a vida nos franqueia, Enquanto nossos corpos não gela a fria morte, Enquanto ao céu noss’alma não aleia.4 A vida é um grande peso de horrível sofrimento, Se não se suavizasse nas práticas do amor, Seria um anteinferno5 de dor e de tormento, Pior que escuro ergástulo, que acúleo6 afligidor. O gozo não é crime se além da natureza As asas não infecta no lodo da licença; O gozo puro e santo sublima, dá nobreza, E não ofende a alma, de Deus centelha imensa. E pois, ó minha amada, gozemos neste mundo, Que o gozo puro e santo também é do mortal; Só no antro das torpezas, no gozo infrene, imundo, Se ofende os bons costumes e a boa e sã moral.

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Comentários

1. Néctar. Bebida dos deuses na mitologia dos gregos e romanos. Bebida deliciosa. 2. Ambrósia. Manjar dos deuses. Manjar delicioso. 3. Crêmor. Cozimento feito com o suco de uma planta (Nascente). 4. Aléia. Verbo alear, antiquado. O mesmo que adejar, voejar. 5. Anteinferno. No composto, há o elemento ante, que indica contrariedade, contrário. 6. Acúleo. Espinho.

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Quadras1 à Meia Noite Se um momento eu penso nela, Por isso cometo um crime? Quem a beleza despreza? Quem de seus ferros se exime? Juro que sou inocente, Pensando no corpo dela, Inocente como o cisne,2 Como no leito a donzela. Que mal faz que em minha mente, Onde se asila a candura, Consagre uma idéia virgem Àquela visão tão pura? Acaso ofendo os ditames Que a santa moral prescreve? Não, e nem ela o crimina, Nem a beleza proscreve. Quem tem coração e olhos, Quem possui um peito amante, Não pode ver sem surpresa Seu perfil meigo, elegante. Criminem a natureza Que a fez assim tão garbosa, Mas não criminem minh’alma Por mostrar-se afetuosa.

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Visão! Que de ti nada quero, Nada, porque quero pouco: Quisera só que me olhasses, Depois... me chamasses louco. Com isso acaso roubavas Algum dos teus pundonores?3 Com isso acaso traias Teus puros, castos amores? Por que pois teus negros olhos Não queres fitar no vate? Minha mãe não a sentiste Tremer como o peito bate? Supõe em mim um perverso Que olvida as leis da decência? Supõe em mim o profano Que esmaga a flor da inocência? Não, sou por demais caridoso, Amo, idolatro a virtude, Detesto as paixões grosseiras, Abomino o vício rude. Por isso, fita-me os olhos Uma só vez, e isto basta: Não perderás teus encantos, Nem deixarás de ser casta. Nem penses que além existe Quem te roube agora os louros, Não penses, que ela é mui rica De adorações, de tesouros.

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Não dos que o fogo consome, Mas desses que só dão glória, Que a pena do gênio escreve No grande livro da história. Por isso fita-me os olhos Uma só vez e isso basta: Não perderás teus encantos, Nem deixarás de ser casta.

Comentários

1. Quadra. Estrofe de quatro versos. 2. Cisne. Ave de muita beleza. 3. Pundonor. Dignidade. Brio.

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Com Pouco me Contento Não quero mais nem desejo Que aquilo que Deus me deu: É bem feliz e ditoso Quem se contenta com o seu. Tenho uma lira,1 uma esposa, Que posso querer mais eu? Seus mimos me presta a lua, Sua luz me presta o sol, Por meu leito tenho a relva, Tenho a noite por lençol, Por cortinas tenho as nuvens Franjadas pelo arrebol. Não há quem seja mais rico Do que eu sou vivendo assim; Que me importam vãs2 riquezas? Honras – que valem a mim? - Sou poeta – é quanto basta, - Sou de Deus profeta, em fim. Amo a Deus e os pátrios lares, E minha pátria, o Brasil; Amo as belezas brasileiras, Uma, porém, mais que a mil; Amo tudo desta terra Tão formosa – tão genntil.

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Não quero mais nem desejo Que aquilo que Deus me deu: É bem feliz e ditoso Quem se contenta com o seu. Tenho uma lira, uma esposa, Que posso querer mais eu?

Comentários

1. Lira. Emprego no sentido de poesia. 2. Vãs. Plural de vã, inútil.

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Como Te Amei – Como Te Amo Amei-te quando era jovem Com esta heróica paixão, Que nobres afetos movem, Que brota do coração. Teu amor, se a pátria minha, Qual preferira... não sei! A pátria outros peitos tinha, Eu outro amor não terei. Era assim que eu discorria Por esses tempos d’além; Em meu peito só cabia Teu amor, meu doce bem! Escabrosos, ínvios – serros, Dos grilhões1 o estridor, Tudo fráguas, duros ferros, Sofrera por teu amor. Por teu amor, minha amada, Eu dera a vida também, Hoje bela, afortunada, Mais feliz que a de ninguém! Como te amei nessa idade, Não sei, não te ouso dizer! Perguntai-o à imensidade, Ou a um vulcão a ferver.

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Era amor ardendo em chamas! Não te lembras? – Era assim! Mas eram meigas as flamas... Porque sorrias pra mim. Pois olha, escuta-me crente, Escuta, meu doce bem: Inda te amo intensamente Como nos tempos d’além! Apenas sinto no peito Mais pura a chama do amor, Da amizade santo efeito, Dos anos doce langor.2

Comentários

1. Grilhões. Laço, cadeia. 2. Langor. Desfalecimento.

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O Touro Fusco

“Vês aquele boi que rumina ali deitado sonolento na relva? Talvez seja um filósofo profundo que se ri de nós.

A filosofia humana é uma vaidade.”

(Álvares D’Azevedo) Canto Primeiro Argumento Assunto deste poemeto – invocação – nascimento do touro fusco – sua beleza física – sua primeira briga com o touro de nome lavrado – sua nomeada – ódio nascente contra o valeroso touro. I Não vou cantar heróis, nem esses feitos Que adornam os anais da humanidade; Nem incensos1 queimar, nem render preitos À precária e terrena potestade: A um bruto vão meus versos feitos. Pois que aos brutos deu vida a Divindade; E eu, louvando do bruto o fino instinto, Mais amor e respeito por Deus sinto.

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II Ó minha doce infância suspirada, Que o tempo estragador levou consigo; Terna lembrança dessa vida amada, Que há de sempre viver, morrer comigo; Campos em que brinquei, onde fadada A vida me pulava sem perigo, Fazei que, embora pobre, o meu assunto Seja do meu sentir fiel transunto. III No belo Crateús,2 sertão formoso, Obra sublime do Supremo Artista,3 Num terreno coberto de mimoso,4 Está sita a Fazenda Boa Vista”; Do Príncipe Imperial,5 pravo e rixoso, Vila do Piauí,6 seis léguas7 dista: Ai, num massapé8 torrado e brusco,9 Nasceu o valoroso “touro-fusco”.10 IV Em certo ano do século dezenove, Além de peste e fome assoladora, No pobre Crateús nem se quer chove, A seca é por demais abrasadora. Um aqui jaz faminto – nem se move! Outro ali, ante11 a Imagem da Senhora,12 Pede, em pranto banhado, ao bento Filho13 Chuva, arroz e feijão, farinha e milho.

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V Foi neste ano de peste e de carência Que o fusco neste mundo foi botado;14 Mas da seca terrível a inclemência A mãe-vaca matou-lhe: ei-lo enjeitado!15 Porem dele tratou com diligência O bom do criador, com tal cuidado Que, embora magro e feio e cabeludo, Foi crescendo o bezerro barrigudo. VI Já era garrotinho, inda a bariga Parecia querer romper-lhe o couro; Quem olhava o infeliz – dava-lhe figa,16 Dizendo: este nunca há de ser touro! Quantas vezes, me lembra. Eu tinha briga, Se barriga chamavam-no de soro A ponto de chorar, de coitadinho Chamar o desgraçado garrotinho. VII No ano trinta e seis ou trinta e sete17 Era pai de curral o belo touro; As proezas que fez, ainda repete Quem nunca lhe notou um só desdouro: Ouvir-lhe as duras brigas terror mete, Às vezes de prazer rebenta o choro! Se o fusco fosse gente, ele seria Mais herói que esse herói de Alexandria;18

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VIII Pouco a pouco foi ele endireitando, Já suas finas pontas amolava Na dura ribanceira, onde passando, Uma e outra a seu turno ele enfiava. Já quando algum garrote ouvia urrando, Cavando com a mão também urrava; Te que, alfim, de peloso e barrigudo, Tornou-se um touro belo e cachaçudo.21 IX Os seus chifres não eram nem espaços,22 Nem, combucos23 também: pouco virados; Com que garbo gentil movia os passos, Quando vinha ao curral co’os outros gados! Era fusco na cor. Mas tinha traços De liso24 pelas costas empalhados: Seu cupim25 era grande e tão roliço Como em outro não vi igual toutiço!26 X Quando vinha ao curral, tocando adiante A manada27 de vacas que guardava, Tinha um modo de andar tão elegante, Tão grave qu’eu com gosto lh’o28 notava! Tinha um urro saudoso e retumbante Que nos vales florido reboava: Toda a terra do urro estremecia, E o mato em derredor todo tremia!

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XI Sempre me hei de lembrar da vez primeira, Em que ele se pegou com outro touro, Que veio da fazenda Cachoeira, Era grande e lavrado29 em todo o couro; Sempre tinha vencido na ribeira, Donde vinha alcançar triunfo e louro; Mas, coitado! – saiu-lhe o ano bissexto,30 Como diz o ditado ou reza o texto. XII Quando o fusco se viu em pé na frente Do lavrado inimigo que cavava, Numa moita amolando a ponta quente, Com as mãos para o ar o pó lançava; Mas eis que sério fica e de repente, Abanando a cabeça, que abaixava,31 Contra o fero32 inimigo ele arremete De um modo que o pavor em todos mete. XIII Trava-se a luta encarniçada e dura, Grande círculo descrevem na refrega, Já meia hora que a peleja dura, O fusco do inimigo se despega; Mas, de novo, sacode com bravura A testa, e novamente a luta pega Co’o lavrado que em pouco urra na ponta Do fusco que, espetando-o, se remonta.

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XIV Mais de um palmo saiu do oposto lado Do cachaço do mísero vencido A ponta com que viu-se33 traspassado,34 Os campos atroando suspendido! Todo o dia levara pendurado, Se seu próprio senhor, compadecido, Não o fosse arrancar do chifre brusco Do valente e brioso touro-fusco. XV Em breve toda aquela redondeza Só do touro valente se ocupava: Se um urro, acaso, ouviam na devesa,35 Diziam que o fusco quem urrava. Todos queriam ver sua fereza, Quando com outro touro ele brigava, E até vinham de mais de uma fazenda Muitos e muitos touros de encomenda. XVI Dos touros vencedor, nunca vencido, Era o fusco o terror daqueles campos, Seu urro, qual trovão, era temido, Seus olhos fuzilavam, quais relampos.36 Era um touro valente e destemido, Seu valor e denodo não estampo-os:37 Tudo quanto disser, é pouco, é nada, Pra (38) mostrar desse touro a nomeada.

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XVII Não faltava ao curral um só dia, Por demais era manso e curraleiro; Só brigava co’o39 touro que queria, Mas nunca a procurar foi o primeiro; Furtar pelos roçados40 nunca ia, Embora fosse o pasto mui41 vasqueiro:42 Todavia, lhe andava já na pista Na fazenda chamada Boa Vista.

Comentários do Canto Primeiro

1. Incenso. Incenso é resina aromática.Substância aromática destinada a servir em atos de culto. Há a incensação – ato de incensar com o turíbu-lo em algumas funções litúrgicas. O poeta empregou incenso em sentido figurado, como adulação, bajulação. 2. Crateús. Existia no Piauí o povoado de Amarantes, mas os padres de Granja (Ceará), começaram a praticar ali batizados e casamentos, entre outros atos, até que a Assembléia Provincial do Ceará criou ali uma freguesia. Esbulhado o Piauí procurou reivindicar Amarração, porto marítimo. Conseguiu o que desejava em 1880, em troca de dois municípios cedidos ao Ceará: Independência e Príncipe Imperial, que se transformaram no município cearense de Crateús. O município de Amarração tem hoje o nome de Luís Correia. O autor, José Coriolano de Sousa Lima, nasceu (1829) na fazenda Boa vista, da antiga vila de Príncipe Imperial, que, na época, pertencia ao Piauí. 3. Supremo Artista. Deus. 4. Mimoso. Tipo de capim. Acentua Carlos Porto: “Os grandes e extensos tapetes de bromeliáceas do mimoso são típicos do Piauí, não figurando nos demais Estados nordestinos. Coriolano escreve: “É o capim mais delicioso para o gado”. (veja notas do autor). 5. Príncipe Imperial. Veja nota 2. 6. Vila do Piauí. Referência à vila de Parnaíba, Piauí, hoje cidade. 7. Légua. Seis mil metros. No sertão, há léguas grandes, léguas pequenas e léguas de nada (Koster). Também a légua de beiço, anotada por Aurélio: “Indicação vaga dos sertanejos, feita com o beiço inferior distendido na direção que se deve percorrer: daqui até lá pode ter uma légua (é sempre muito mais)”. 8. Massapé. Segundo o autor, terra preta, dura. Também se escreve massapé. Qualidade de terra preta, fina, gomosa. Os estudiosos divergem quanta à origem. 9. Brusco. O autor empregou brusco no sentido de escuro, uma das acepções da palavra em português. 10. Fusco. De pelo escuro. 11. Ante. O mesmo que diante de. 12. Senhora. Referência a Nossa Senhora. 13. Bento Filho. Jesus Cristo 14. Neste mundo foi botado. O verbo botar é de uso extensíssimo no Brasil. Teve o sentido de lançar de dentro para fora, expelir, portanto, parir. 15. Enjeitado. No caso, enjeitado é o animal que se cria sem mãe. Reclama cuidados especiais. Daí porque recebe boa alimentação. 16. Figa. Câmara Cascudo, no “Dicionário de Folclore”, anota: “É um dos mais antigos amuletos contra o mau-olhado... A figa latina, fícus, fica italiana, é a mão humana, em que o polegar está colocado entre o indicador e o médio”. E adiante, citando Furtunée Levy: “A figa esconjura o mal, o contratempo, a inveja, e provoca os bons fados”. 17. 36 ou 37. 1836 ou 1837. 18. Herói de Alexandria. Alexandre o grande, rei da Macedônia. Reinou a partir de 336 a.C. Notável guerreiro. Esteve no Egito, onde fundou Alexandria. 19. Pontas. O mesmo que chifres. 20. Te. Por até. Assinala Silveira Bueno que os textos arcaicos apresentam várias formas da atual preposição e, algumas vezes, advérbio até: ata, ataa, ta, tas, tee, até, te (”A Formação Histórica da Língua Portuguesa” - 181) Na tragédia “Castro”, de Antônio Ferreira, está: “M’acompanhará sempre, té que deixe. O meu corpo c’o teu...” (Sousa da Silveira – Textos Quinhentistas” – 262). 21. Cachaçudo. De pescoço grosso. Derivado de cachaço. Dizia-se porco de cachaço, isto é, de pescoço gordo e grosso. No velho português cacho significou também pescoço grosso. Cachaço é aumentativo de cacho. 22. Os seus chifres não eram nem espaços. Veja as notas explicativas do autor no verbete espaço. 23. Combucos. Chifres combucos. Veja as notas explicativas do autor no verbete combucos. 24. Tinha traços de liso. Liso é a cor vermelha, de cabelo fino. 25. Cupim. Veja a nota explicativa do autor no verbete cupim.

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26. Toitiço. Parte posterior da cabeça, cachaço, alto da cabeça. 27. Manada. Rebanho de gado. Do latim minata, de minare, conduzir, levar. 28. Lho. Combinação do pronome lhe com o demonstrativo o. O lhe, aí, tem função possessiva: eu com gosto notava isto (o) dele, seu (lhe). 29. Lavrado. Marcado. 30. Ano bissexto. Ano de 366 dias. Os romanos tinham datas fixas nos meses para a contagem dos demais dias: as calendas, as nonas e os idos. “Acontece, porém, que os latinos, no ano bissexto, não inseriam o dia, que se deve acrescentar, depois do dia 28 de fevereiro, como fazemos nós, mas depois do dia 24, e como o dia 24 era o sextus dies antes das calendas de março, acontecia que o dia intercalado era chamado o segundo dia sexto, ou seja, bis sextus dies” (Napoleão Mendes de Almeida – “Dicionário de Erros, Correções e Ensinamentos de Língua Portuguesa”). Os latinos contavam os dias regressivamente. 31. Abaixava. A forma abaixar é de excelente emprego, notadamente quando há objeto direto, como no texto. 32. Fero. Feroz, cruel. 33. Com que viu-se. No tempo em que José Coriolano de Sousa Lima escreveu, não estava disciplinada a colocação dos pronomes átonos. Hoje se diria: com que se viu. 34. Traspassado. O mesmo que trespassado. 35. Devesa. Quinta ou cerrado com matas, arvoredos. É o latim defensa, proibida. 36. Relampos. Relampo, igual a relâmpago, é forma velha composta de re, no caso prefixo de intensidade, e lampo, em grego facho, do verbo lampein, brilhar. 37. Não estampo-os. Na época em que José Coriolano de Sousa Lima escreveu ainda não estava disciplinada a colocação dos pronomes átonos. Dir-se-ia hoje: não os estampo. Justifica-se não estampo-os como licença poética, por necessidade de rima. 38. Pra. Em lugar de para. Necessidade de contagem de sílabas poéticas. 39. Co’o. Em lugar de com o. necessidade de contagem de sílabas poéticas. Em com o há duas sílabas poéticas, reduzidas a uma em co’o. 40. Roçados. Terreno para cultivo. 41. Mui. Supressão de uma sílaba final de muito, por necessidade de contagem de sílabas. À figura dão os gramáticos o nome de apócope. 42. Vasqueiro. Raro, difícil de obter.

Canto Segundo Argumento Segunda briga memorável do touro-fusco com o novilho chamado estrela – caráter e bravura deste touro – seu vencimento e triunfo do fusco – cresce o ódio contra este. I Um dia estava o fusco remoendo, Deitado molemente em seu serralho1 Nas formosas novilhas se revendo, Se pensasse diria: quanto valho! Mas logo se levanta, atroz gemendo, Ouvindo d’outro touro feroz ralho: Era um forte novilho que escumava2 De fora da porteira,3 onde cavava.

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II Dous buracos dos lados tinha feito, E o lombo estava negro da poeira Que sobre ele caia: o largo peito Arfava, já não era a vez primeira. Uma moita movia, por despeito, Ou com raiva, talvez de tal maneira Que na ponta fincou-lhe um ped’ricalho4 De um grosso, retorcido e verde galho. III Era grande o novilho e mui formoso, De brancos patacões5 manchada a pele, Que era fina e de um preto mui lustroso, Que a vista a contemplá-la atrai e impele: Tinha um urro também estrepitoso, Que mostrava o vigor dos anos dele: Muitas vezes co’ um6 urro e uma cornada7 O imigo8 havia posto em debandada. IV Tinha ele no meio do negrume, Que a bela e larga testa lhe cobria, Uma estrela brilhante como o lume, Aceso em noite escura, que alumia;9 Outr’ora, parecendo a cor que assume A clara papa-ceia10 que radia11 Lá na esfera celeste: assim, ao vê-la, Podíeis comparar do touro a estrela.

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V Chamava-o12 seu senhor “novilho-estrela,”13 Já tendo muitas vezes exultado, Vendo a vítima que ele, ao suspende-la, Com a ponta cruel tinha varado. Efêmera ilusão! Teve de vê-la Em breve tão desfeita como o brado Que, soando nos amplos do deserto, Se perde pelo imenso espaço aberto. VI Em tanto, o touro-fusco, escavacando, A lama para os lados espargia,14 Tão intensa que, a tudo enlameando, De lama tudo em roda ele cobria; E, gemendo e a cabeça maneando, Contra os fortes mourões,15 arremetia, E os robustos mourões, estremecendo, Às cornadas do touro iam cedendo. VII Mas, o bom do vaqueiro, vendo o estado Em que o touro se achava belicoso,16 Adiante se lhe pondo, sossegado Ficou ele de turvo e audacioso! Depois, tendo a porteira escancarado, Por ela sai o touro furioso, E, sem que o adversário diga: espere, Acene, geme e parte, chega e fere.

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VIII Tal como sobre o ferro que caldeia Bate o mestre ferreiro co’o martelo, E o sulfúreo17 cascalho que encandeia Se espadana em faíscas, loiro e belo Do discípulo ajudado, que maneia18 O malho alternativo, sem teme-lo, Tais soavam dos touros as cornadas, Faiscando nas duras marteladas! IX A terra em derredor ficou revolta, Como dizem que faz o curvo arado; Nenhum dos dous recua, noutra volta O fusco recuou como estafado; Mas, de novo gemendo, à luta volta, E em pouco a estrela berra pendurado Na ponta do sangrento, invicto touro. Que o sacode no ar: foi mais um louro.19 X Quase exangue, sem vida e palpitante, Já a um canto estendido o estrelado. Enquanto, esbaforido20 e triunfante, Em pé respira o fusco doutro lado. O suor que lhe corre gotejante Debaixo dele um poço tem formado; Porém o valeroso peito arqueja Como que ávido ainda de peleja!

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XI Pouco a pouco o vencido, melhorando, Lança ao fusco um olhar assim d’esguelha,21 E, vendo o inimigo em pé, fungando, Abana tristemente com a orelha; Mas a custo, por fim, se alevantando,22 Correu e se sumiu, como a centelha Que, atiçar-se a fogueira, transparece No espaço, e depois logo desparece.23 XII O fusco não o segue; generoso, Talvez, compadeceu-se do inimigo, E, entrando no curral, mui jubiloso, O vaqueiro exultou, sorriu consigo; E quem sabe se disse: o valeroso, Deste vasto curral amparo, abrigo, Se eu fora trovador,24 a tua glória No templo gravaria da memória! XIII Outros touros em brigas afamados, Vieram de lugares mui distantes Medir os seus dous chifres afinados Do fusco com os chifres perfurantes; Mas voltavam vencidos e cansados, Mais fracos e covardes25 do que d’antes, Temendo em qualquer touro ver um filho Do velho lidador, feroz novilho.

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XIV Quando andavam nos campos vaquejando Os vaqueiros daquela redondeza Só falavam no touro que, brigando, Mostrava desmedida, atroz fereza. Alguns já lhe votavam ódio infando, Sem causa, baseado na vileza Do baixo coração, do baixo peito, Denegrido da raiva e do despeito. XV Um daqui, despeitado, assim já fala: Eu sei como vencer o valentaço: Se os touros não o vencem, uma bala Eu hei de lhe meter pelo cachaço. – Já outro diz dali, da mesma escala: Eis como poderei tolher-lhe o passo: Na bebida fazendo uma gangorra,26 Depois de engangorrado, ele que corra. – XVI Mortais! – se da razão a voz preclara Não levasse a verdade à vossa mente; Se Deus, próvido27 e bom, que nos criara, Vos não desse “esse juiz reto e ciente:” Obraríeis pior que a fera ignara, Que o abutre voraz, que a vil serpente! Seria a vossa história um feio misto De horror e de torpezas – nunca visto!

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XVII Enquanto se maquinam negros tramas,28 Passa o fusco seus dias satisfeito; Só cuida no capim e em suas damas29 Que têm lugar distinto no seu peito; Seus olhos o seduzem como as chamas Seduzem o escravo ao frio afeito; Nem se lembra de nada, e, ruminando,30 Seu viver vai o fusco assim passando.

Comentários do Canto Segundo

1. Serralho. Palácio habitado pelo antigo sultão da Turquia, por príncipes e altos dignitários de estados maometanos, provido de um harém com muitas mulheres. Emprega-se também como casa de devassidão, lupanar. José Coriolano empregou serralho como o curral, em que as novilhas ficam à disposição do touro fusco. 2. Escumava. De escuma, do germânico skuma. Há a forma espuma, do latim spuma, daí sai o verbo espumar. 3. Porteira. Cancela. 4. Pend’ricalho. O poeta suprimiu a vogal u por necessidade de contagem de sílabas poéticas: penduricalho, coisa pendente para enfeitar. Na voz do povo se ouve pendurucalho, corruptela de penduricalho. Acrescente-se que esta palavra quase sempre se usa no plural. 5. Patacões. Aumentativo de pataca. Pataca, aqui tem velha acepção que encontro no Morais: mancha branca redonda. 6. Co’um. Com um. Supressão do m para reduzir duas sílabas a uma por necessidade de contagem de sílabas poéticas. 7. Cornada. Pancada com corno, com o chifre, chifrada. Corno é o mesmo que chifre, latim cornu. 8. Imigo. Por inimigo. Necessidade de contagem de sílabas poéticas. Muitos clássicos da língua empregaram imigo. 9. Alimia. Verbo alumiar. O mesmo que iluminar: “Tochas que mal alumiavam o aposento” (Alexandre Herculano – “Lendas e Narrativas” – I – 89). Conjuga-se regularmente: alumia, alumias, alumia, alumiamos, alumiais, alumiam. No Padre Antônio Vieira ora aparece alumeia, ora alumia. Esta última é a usada (cf. Francisco Fernades – Dicionário de Verbos e Regimes). 10. Papa-ceia. A estrela Vésper. O planeta Vênus quando se avista de tarde; estrela da tarde (Aurélio). 11. Radia. Verbo radiar, do latim radiare: lançar raios, luz ou calor. Do verbo radiar se fez outro – irradiar. O latim radiare deu ainda o português raiar. 12. Chamava-o seu senhor novilho estrela. Na acepção de apelidar, dar nome, o verbo chamar deve ser usado com dativo seguido de predicativo do objeto. Construção mais segura: chamava-lhe seu senhor novilho estrela. 13. Novilho estrela. Melhor estrelo. Estrelo – diz-se do boi que tem uma mancha branca na testa (Aurélio). 14. Espargia. Espalhava. 15. Mourões. Também mourão. “Esteio grosso firmemente fincado no solo, e a que se amarram reses destinadas ao corte, ou, para tratá-las, as reses indóceis” (Aurélio). 16. Belicoso. Disposto para a guerra, para a luta. Derivado de bélico, relativo à guerra, pelo latim belicu. 17. Sulfúreo. Da natureza do enxofre. Pelo latim sulfur, enxofre, e sufixo eo, que exprime semelhante a. 18. Maneia. Verbo manear, o mesmo que manejar. 19. Mais um louro. Louro foi empregado como glória, embora na qualidade de glória adquirida pelas letras, pelas artes ou pelas armas, sempre se emprega no plural – os louros. 20. Esbaforido. Particípio de esbaforir. Composto de bafo, arquejante, fatigado. 21. De esguelha. De soslaio, obliquamente, não em cheio. 22. Alevantando. O mesmo que levantando: “Sobe ao púlpito das igrejas do sertão e não alevanta a imagem arrebatadora dos céus” (E. da Cunha o “Os Sertões” – 147). 23. Desparece. Verbo desparecer, o mesmo que desaparecer. “Mas ambos desparecem num momento” – Camões (Veja – “A Chave dos Lusíadas” – José Agostinho – IV – 75). 24. Trovador. Poeta da Idade Média. Cantava sobretudo o amor integral, o amor puro e o amor carnal. Cristina Leite define-o como poeta compo-sitor de formação acurada (Veja “Canções de Hoje – Canções de Outrora” – 17). Por extensão, cantor. 25. Covarde. Também correta a forma cobarde. 26. Gangorra. Veja, noutro local, as notas explicativas de José Coriolano de Sousa Lima. 27. Próvido. Há próvido e provido. Este último corresponde a prevenido, abastecido; o primeiro significa providente, que provê o futuro. A provi-dência é a própria sabedoria de Deus. 28. Negros tramas. Corretísimo emprego de trama no masculino, correspondente a intriga, ardil (acepção figurada). A trama, feminino, corres-ponde a tecido: a trama do chapéu.

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29. Damas. Senhora, mulher. Do francês dame. O poeta empregou como as mulheres do touro, as novilhas, as vacas. 30. Ruminando. Do verbo ruminar. O boi é ruminante, tem estômago com quatro cavidades pelas quais os alimentos passam sucessivamente, sofrendo entrementes nova mastigação. Ruminar é tornar a mastigar (os alimentos que já estiveram numa das quatro cavidades do estômago). Também se emprega ruminar figuradamente com o sentido de refletir por longo tempo.

Canto Terceiro

Argumento Reveses do fusco – é levado a brigar fora – vence o inimigo – leva dous tiros – é capado, e assim mesmo ainda é temido – sua morte – conclusão. I Outra vez, e foi isso em fevereiro, O fusco vinha urrando da malhada,1 Encontrou-o um tirano fazendeiro, Que deu-lhe uma tremenda ferroada; Mas, ao touro tão manso e curraleiro, Vendo-lhe o dono a pá2 ensangüentada, Protestou contra um ato tão tirano, Praticado por quem se diz humano! II Mas, acaso, pensais que a sede humana Do sangue do inocente saciou-se? Não pensei-lo: a razão, tão soberana, Nos escolhos da inveja aniquilou-se! Inveja! Teu estímulo dimana Do sórdido egoísmo que chocou-se!3 E sofra o pobre que só tem instinto As iras desse ser nobre e distinto!

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III Outro dia, em que o fusco ia passando, Saiu a seu encontro um preto-touro, E, como a ele foi desafiando, O fusco, sem temer, lhe4 foi ao couro: O dono, que de parte estava olhando, E que do baque5 ouviu o grande estouro, Caiu às ferroadas sobre o pobre, Cuja ação certamente não foi nobre. IV O touro, que pra outro era valente, Não sabia ofender a humanidade! Entrou em seu curral muito doente, Corria o sangue em grande quantidade. Pobre bruto infeliz! E quem não sente Teu sofrer nessa longa e triste idade? Que vale ser humano na figura, Tendo a alma de fera ou penha6 dura? V Faltando ainda sarar de uma ferida, Foi levado a brigar com um touro estranho, Mas ele, vencedor em toda a vida, Aos triunfos juntou outro tamanho. Supunham que o veriam de corrida, Vencido do cruel, audaz castanho;7 Porém, o seu senhor por fim de contas, Do fusco inda8 maldiz as finas pontas.

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VI Entretanto, nas forjas da maldade Ao fusco se maquinam mais tormentos, Filhos só da cruel perversidade De peitos inumanos e sangrentos; Nem respeitam do bruto a longa idade! Só cuidam em pascer9 ódios nojentos: Sabei, posteridade, qu’eu não minto, Nem tudo como foi descrevo ou pinto! VII E, se quereis saber a que cinismo10 Pode chegar o coração humano, Vede com que crueza e barbarismo Se trata o pobre bruto veterano. Desgraçado mortal: teu egoísmo Tem limites também, homem insano! Não maltrates um ente tão mofino, Que é obra, como tu, d’um Ser Divino. VIII Era tempo de inverno. O Pai celeste Que os campos de verdura tapetiza, Quando o tronco de folhas se reveste, Quando a várzea de flores se matiza, Havia dado chuva. Nem a peste, Nem a fome que a gente atemoriza Grassava no sertão, onde a fartura Na colheita enxergava-se futura.11

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IX Num campo recamado de mimoso, Do orvalho matutino rociado,12 Pastava o velho touro valeroso, Sem ter no seu instinto um só cuidado; Comendo aquele pasto saboroso, Que o nome mostra ser tão delicado, Talvez que não soubesse se vivia, Só podendo-o saber, porque comia. X Perto havia um roçado verdejante De milho, de feijão, de arroz viçoso, Por causa do bom ano que, abundante, Tornava o sertanejo esperançoso; O capim tão gentil, refrigerante, Era em roda mui grato e copioso: Eis porque da campina sedutora Fizera o fusco sua manjedoura.13 XI Viu o touro pastando um bom roceiro, Que nunca para ele teve um riso, E, apontando a espingarda, mui veleiro,14 Fez-lhe fogo na testa de improviso. O touro cambaleia... e, prazenteiro, Ensaia o seu algoz cruel sorriso; Mas, vendo qu’ele em pé inda ficava, Quem o crera! – de novo lhe atirava!

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XII A segunda descarga foi mal dada, Ferindo o velho touro mui de leve, E, voltando-se co’a testa ensangüentada, O vaqueiro o tratou, que à morte esteve. Nunca mais sua voz tão entoada Nos campos foi ouvida, nem mais teve O curral por seu pai o touro bravo, Que viu render-lhe preito tanto escravo. XIII Não teve, que o vaqueiro, desgostoso, Capou15 o desgraçado que, sentido, Nunca mais fez ouvir o som famoso De seu urro saudoso e destemido. Agora, para um lado, desditoso, Vive o pobre, chorando entristecido, E, maior que o leão que a fab’la16 conta, Nenhum touro lhe vem, tocar co’a ponta! XIV É que todos receiam que ele possa, Como dizem da fênix,17 renascendo, Enxota-los com a ponta, embora grossa, Estragos nos cachaços lhes fazendo. E nisso têm razão. Quem uma coça18 Uma vez suportou, segundo entendo, Jamais dela se esquece em toda a vida, Temendo a mão por quem foi despedida.

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XV Viveu penados anos. Seu cachaço, Esse belo toutiço, tão forçudo, Decresceu, já não tendo aquele espaço Que outrora resumia força e tudo: Do prazer à desdita há só um passo; Contra a sorte não vale esforço, estudo: E da sina quem há que se resguarde? Há de certa cumprir-se ou cedo ou tarde. XVI Morreu o touro-fusco abandonado, Posto que mui querido do vaqueiro, Por ter-se para um ermo retirado, Onde deu seu gemido derradeiro. E, tendo, felizmente, escorregado De cima, onde morreu, dum grande outeiro, Rolando, foi parar nu fundo do abismo, Defeso19 do urubu ao barbarismo. XVII Possam meus versos rudes, sem beleza, Entre meus comarcãos20 erguer um brado, Nos vales do sertão e n’aspereza, Fazendo o touro-fusco celebrado; Possam mostrar a nobre gentileza Do bruto que entre os seus foi respeitado; Possam mostrar que quem os brutos canta Do mundo ao Criador a voz levanta.

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Comentários do Canto Terceiro 1. Malhada. Lugar onde comumente se reúne o gado, para ser trabalhado; lugar onde o gado costuma dormir, em lotes (uma das acepções de Aurélio, a nordestina). 2. Pá. Omoplata da rês. 3. Que chocou-se. No tempo em que José Coriolano poetou, ainda não estava disciplinada a colocação dos pronomes átonos. Hoje se escreve: que se chocou. 4. Lhe foi ao couro. Excelente emprego do lhe em função possessiva: couro dele, seu couro. 5. Baque. Queda, choque. 6. Penha. Rocha, rochedo. 7. Castanho. Cor de castanha. 8. Inda. Por ainda. Forma muito velha no português. 9. Pascer. O mesmo que pastar. Na conjugação o verbo pascer não tem as pessoas terminadas em a e o, com exceção da primeira do plural do subjuntivo presente: pasçamos. 10. Cinismo. Empregado no sentido de falta de vergonha. Palavra de origem grega: de Kyon, Kynós, cão. Em cínico há o sufixo iço, relativo a. Na antiguidade, cinismo era o sistema dos filósofos cínicos – aquele que “desprezava as conveniências sociais”. O mais conhecido representante da filosofia cínica foi Diógenes – “rudeza e energia de caráter”. Divisa da escola: “supressão de todas as necessidades sociais”. Pregavam ainda os cínicos: o que é natural não é nunca imoral. Praticavam os atos naturais como os cães – daí cinismo corresponder a falta de pudor, desavergonha-mento. 11. Onde a fartura na colheita enxergava-se futura. Ordem inversa. Pura construção imitada de Camões. Entende-se: onde na colheita se enxergava a futura fartura. 12. Do orvalho matutino rociado. No latim vulgar existiu talvez o verbo roscidare, com a significação de cair orvalho. Esse roscidare é a fonte do português rociar, orvalhar, umedecer, e do substantivo deverbal rocio, o mesmo que orvalho. Embora rociado seja também umedecido, penso que a construção é redundante: do orvalho matutino rociado, ou seja, do orvalho orvalhado. 13. Manjedoura. Tabuleiro em que se deita o alimento para o gado. O poeta diz, entretanto, por extensão: fizera sua manjedoura da campina sedutora. O touro comia no campo. 14. Veleiro. Veloz, rápido. 15. Capou. Verbo capar. Extrair ou destruir os órgãos genitais. 16. Fáb’la. O mesmo que fábula. O poeta suprimiu uma vogal por necessidade de diminuir o número de sílabas poéticas. 17. Fênix. 18. Coça. O mesmo que surra. 19. Defeso. Proibido. 20. Comarcãos. Plural de comarcão. Que vive numa mesma comarca, numa mesma região, num mesmo território.

Notas ao Touro Fusco: Mimoso É o capim mais delicioso para o gado. O seu mesmo nome está indicando o que ele é. Massapé Assim geralmente chamam a uma terra preta e dura (glutinosa quando chove) semelhante à terra que cobre uma lagoa, quando seca. Espaço Boi espaço é chamado aquele que tem os chifres muito abertos: daqui o uso vulgaríssimo de se dizer – chifres espaços. Combucos Dizem que um boi ou touro é combuco, ou tem as armações ou chifres combucos, quando, descrevendo estes, cada um, uma curva, as duas pontas se ficam olhando ou apontando uma para a outra.

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Fusco e Liso São nomes com que se designam duas qualidades dde cores entre o vacum somente. Cupim Assim chamam o toutiço dos touros pela semelhança que tem com esse pequeno morro de terra, levantado ás vezes da superfície do chão, outras do meio de uma moita, ou já finalmen-te apegado a um tronco, a um ramo, onde residem os insetos do mesmo nome etc. Lavrado Touro, vaca, bezerro etc; diz-se somente a respeito do vacum. Quem Urrava O relativo latino quis, de cujo acusativo quem se deriva o relativo português – quem, - tem aplicação tanto às pessoas como às cousas; o relativo português porém, se aplica exclusiva-mente às pessoas. Usando eu dele do seguinte modo: “quem urrava”, tive em vistas o costume que há entre os nossos vaqueiros de urrarem, muitas vezes, nos matos, ou porque se vêm per-didos, ou para darem sinal de que já se acham no ponto de reunião convencionada. Dos touros vencedor, nunca vencido Este verso me foi sugerido por Bocage. Novilho Sem embargo de significar esta palavra – boi novo, - contudo, ela se dá no sertão ainda mes-mo aos touros mais velhos. Gangorra É uma espécie de armadilha que se faz para prender os animais bravos, ordinariamente entre estreitos de serra ou boqueirões. Consta de um pequeno curral em roda de uma cacimba, ou aguada, com uma entrada ou porteira por onde facilmente entra o pobre bruto, e com uma saída que importa para ele um labirinto mais enredado do que o famoso de Creta. O animal engangorrado ou se deixar pegar ou terá de romper ou saltar a cerca. E por que não, se é doce a liberdade, e se já se foi o tempo das Ariadnas? Castanho A cor castanha é tão vulgar no cavalar como no vacum. Aquele que quiser ridicularizar os meus dous últimos versos da primeira oitava:

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“E eu, louvando do bruto o fino instinto, Mais amor e respeito por Deus sinto;” Ou os dous finais da última oitava: “Possam mostrar que quem os brutos canta Do mundo ao Criador a voz levanta,” lembre-se que o criado é um reflexo de Deus, por isso mesmo que é obra de suas mãos. “Pelos Santos se beijam os altares.” Seja, em fim, mais filósofo, não confunda as cousas, e verá que me sobeja razão. Ao menos a minha intenção foi pura. Deus o sabe.

Olinda, 22 de fevereiro de 1856.

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Poesias Inéditas (do arquivo do bisneto Alexandre Sauly Mourão, em originais escritos pelo próprio

poeta)

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A Bela Matuta Avarenta Menina, dize se queres Que eu seja teu arlequim? “Vá, Senhor, o seu caminho, Não bula comigo assim.” Responde-me, anda: permite Que eu seja teu campeão? “Eu não gosto destas graças, E nem meu pai também, não.” Valha-me Deus! – quero dar-te De marido a minha mão. “Quem sou eu! pobre matuta, Não zombe da gente, não.” Mas que importa? – eu tenho posses; Anjinho, que queres mais? “Meu Senhor, deixe-se disso, Tenho medo de meus pais.” Ora... teus pais, matutinha, Hão de gostar da união... “Mas, Senhor, você é rico, Ou coitado pobretão?” Menina, tenho no banco Meus bons continhos de réis. “Pode dar à sua noiva Brincos, colares, e anéis!”

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No curral anualmente Mil vaquinhas berram: mom!... “Eu gosto tanto de queijo! Meu Senhor, não acha bom?” Muito bom. E os mil bezerros Saltando, berrando: beé!... “Não há nada mais gostoso Do que leite com café.” Também as minhas boiadas Nas feiras vendem-se bem. “Meu Senhor, que bons vestidos, Que panos que as praças têm!” Muito lindos. Também tenho Cem cativos a lavrar. “Meu Senhor, é de verdade, Queres comigo se casar?” Tenho terras que produzem Doce cana e frutas mil. “Meu Senhor, diga uma coisa: Eu sou feia ou sou gentil?” Espera! – tenho rebanhos Que cobrem prados e val. “Meu Senhor, eu não sou bela, Quem dera que eu fosse tal!” Tenho também uma carta Galardão do meu saber. “Ai! Doutor, se estes meus lábios Pudessem risonhos ser!”

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Oh! Muito!... Enfim, sou poeta E canto só versos meus. “Poeta!... feliz daquela... Ai de mim! valha-me Deus!” Mas... que tens? por que suspiras Mudando de cor assim? “Que tenho! – sou desgraçada! Adeus! - coitada de mim!” Vem cá, minha matutinha, Contigo eu quero casar. “Ai, meu Deus, vou ser ditosa! D’alegre disse a chorar.” Recife, 1855

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A Compadecida Seus lábios Purpúreos Ferinos Não são; Se falam, Proferem, Desferem Paixão... Co’a doce Voz dela Que bela Moção! Quisera Tocá-los, Beijá-los, Meu Deus! Quisera Fruí-los, Possuí-los Por meus! Mas eles São dela, Da bela, Só seus! Um dia Toquei-lhe... Falei-lhe De amor;

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Sorrindo Me disse Que eu visse Melhor: Mas ela Fingiu-se, Traiu-se Na cor. No rosto, Nas faces Fugaces De amor, Sombreados De leve De breve Pudor, Se acende Ligeiro, Fagueiro Rubor. Co’a esp’rança Peguei-lhe, Toquei-lhe Na mão; Me disse Com fria Sombria Expressão: “Poeta, Tu mentes, Não sentes Paixão.”

Eu minto!... Pois mudo, Sisudo

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Fiquei E pranto Copioso Penoso Chorei! “Que sofres? (Pergunta E ajunta) Não sei!” De novo Toquei-lhe, Falei-lhe De amor; As faces Coraram, Mudaram De cor; Mas ela Não disse Que eu visse Melhor - Já bate Seu peito Do efeito De amor! “Sou tua Te atesto. Protesto, Cantor!” Nem quando Falava Mudava De cor!

Soledade (Recife) 5 de junho de 1855

Fugace = adj. Poético. Ver Fugaz

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A Escrava Já fui feliz e ditosa Nessas terras de além-mar, Hoje sou desventurosa, Vivo a gemer, a chorar! Ai minha infância mimosa! Ai vida de tanto amar! Que vezes sobre um rochedo Eu via a fonte correr! Nela plácido e quedo O meu semblante a rever! Nessa fonte, onde um segredo Há de com ela morrer! Hoje aqui sou desprezada! Desprezam té minha cor Tão mimosa, aveludada, De tanto lustre e primor! Em cima disto, coitada! Tenho um tirano senhor! Minha voz tão maviosa Como as brisas de além-mar, Já não é mais sonorosa, Já nem quando diz – amar – Parece a brisa saudosa Na palmeira a ciciar!

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Fui livre como as areias Do meu país livres são; Cantava como as sereias, Que a cantar no mar estão; Nem já me corre nas veias Hoje o sangue como então! Allah! Mil vezes maldito Quem do meu país natal Roubou-me, erguendo o grito Que ecoou pelo areal! Allah! Mil vezes maldito Esse monstro tão fatal! Viverei desventurosa, Viverei sempre a chorar; Que importa se fui ditosa Nessas terras d’além-mar! Ai Allah! Que voz irosa! É meu senhor a ralhar!...

Recife, 19 de abril de 1855

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A Louquinha Eu vi-te à tardinha Co’as outras brincando, E eu lá escondido Na fresta espiando. Tu eras tão bela! Teus almos brinquedos Que lindos não eram! Tão simples, tão ledos! Louquinha, louquinha, Sorrias, sorrias, Dançavas, dançavas, As palmas batias! Tu eras a fada Das fadas da festa, Alfim eu julgava Te olhando da fresta. Meu Deus! – que assembléia? Gentil, galhofeira, Na quinta encenada Ao pé da mangueira. E tu, meu anjinho, Sorrias, sorrias, Dançavas, dançavas, As palmas batias!

Almos = puros Alfim = afinal, enfim

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A Loureira Eu a vi que divagava Ao jardim colhendo flores, E que risonha que estava! Misturavam-se os odores Do jasmim, da bela rosa Com seus suaves olores. E a louquinha mariposa Já deixava a flor colhida Por outra flor mais mimosa. Era fado tanta lida! Talvez fosse, mas sua alma Por minh’alma foi descrita. Ou era capela ou palma Que devia ser formada Em tributo à estação alma?... Não, que a virgem delicada Era o símb’lo da inconstância, Amava como a fragrância Ama a brisa enamorada.

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À Loureira Linda virgem, de faces coradas, Que escarneces dos laços do amor, Estas juras assim refalsadas Hão de um dia abismar-te na dor... Não vês borrifadas Do fel da traição As vozes fingidas, Que afetam paixão? Não dizem verdades, são vozes mentidas, Que juram perjúrios – não jures assim; Depois não profiras palavras sentidas Sem ter mais remédio, não gemas por fim. No rol das perdidas Não entres, ai! – não; Olvida essas falas Que afetam paixão. Teu riso enfeitiça, nos prendes, se falas, Mas todos se julgam amados por ti; No olor se perfumam que a todos exalas, E todos apostam que a sorte lhes ri! No engano te embalas... Que má tentação Sorrisos falsários Que afetam paixão!

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Talvez descuidosa, caprichos tão vários, Um dia te imerjam nas frágoas do horror, Envolvam te as carnes em rotos sudários E as faces te sequem da vida no albor! Tiranos, contrários Do teu coração São teus devaneios Que afetam paixão. Desdenha esses atos que aos olhos são feios Da virgem discreta, do mundo e do céu, Deslustram, profanam poluem-te os seios Tão puros ainda! Receia o labéu! Despreza esses meios De vil sedução, Que forjam mentiras, Que afetam paixão. Não temes os males?... loureira, suspira! Suspira dos males que encerra o porvir. Depois não te punjam remorsos que a lira Te afronta nos males... que podem surgir Quem é que delira? Quem carpe-se em vão? - Quem creu falsas juras, Que afetam paixão. Oh! Quão transitórias são essas venturas Que a mente te escalda! Recua, mulher, Recua do abismo, que em longas torturas Aguarda tragar-te... nem julga-as sequer!

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Misérias futuras, Que má tentação! Te cavam amantes Que afetam paixão. Não zombes do mundo; teus olhos brilhantes, Que tanto seduzem, falando de amor, Somente se cravem – gentis – fascinantes - Nos olhos do jovem que amar o pudor. Despreza inconstantes, Não jures em vão, Não crê traficantes Que afetam paixão.

Recife, março de 1856 Labéo = desdoura, desonra Refalsado = muito falso, desleal, fingido Imergir = afundar Labéu = desdouro, desonra, mancha infamante

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À Meia Noite Salve, horas melancólicas, Repouso dos mortais; Em vós o humano espírito Não dá suspiros e ais, Nem pensamentos tétricos Voltejam-lhe fatais. Oh! Quanto são dulcíficos, Ó sono encantador! Os teus efeitos mágicos, O teu mago torpor! Oh!Que horas tão propícias Em que se esquece a dor! Nem freme o vento alígero, Nem canta o sabiá; É paz, tudo é silêncio, Dormente tudo está; Somente o poeta estorce-se Cismando triste já! Sonhou! Talvez intérprete De algum cruel porvir, Viu sobre frescos lábios Veneno atrós cair, Que os rubros lábios cândidos De morte fez tingir.

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Vós, horas melancólicas, Repouso dos mortais, Que a todos dais carícias Por que suspiros e ais Ao bardo marasconia Somente tristes dais?

Recife, março de 1855 Estocer = debater Dulcifico= ameno, suave, grato Mago= mágico Alígeros = que tem asas, muito veloz

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A Pobrezinha Medrosa Minha mãe, eu tenho frio, Grande tempo doentio! Toda a tremer!... Minha mãe, antes a morte, Não sei como se suporte Tal viver! E se eu que sou tão mocinha Sinto que a vida definha Por modo tal; Ai, minha mãe, seu tormento Deve em tempo tão friento Ser sem igual. Venha em meu seio aquentar-se, Minha mãe, venha deitar-se Comigo aqui. Minha mãe há de ter frio! Tempo assim tão doentio Eu nunca vi! “Como está tão caridosa Eu já sei, coisa medrosa, Isso o que é Não crê que o demo ande à toa Tentando a gente que é boa Que em Deus tem fé.”

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No entanto, a pobre velhinha Sai da mísera caminha E adiante cai; Levanta-se e sempre chega À filha, a qual se aconchega, Órfã de pai.

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A Poesia Quem é que veste de fragrantes flores O verde campo que o matiz iria? Quem é que pinta-o sem pincel e cores? - A poesia! Quem é que torna d’esmeralda os mares? Quem é que a noite faz melhor que o dia? Quem nos consola dos cruéis azares? - A poesia! Quem nos cantores que no ar passeiam Nota primores, divinal magia, Quando seus hinos matinais gorjeiam? - A poesia! Quem cisma e geme, se do frágil ramo Viu a rolinha que a cismar gemia? Quem ama os infelizes como eu amo? - A poesia! Quem descortina num olhar modesto, Que o chão afaga quase todo um dia, A maior prova de um amor honesto? - A poesia! Quem d’entre os lábios da consorte amante Perscruta o sonho que o Senhor lhe envia Co’o fido esposo – no sorrir tão crente? - A poesia!

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Quem sonda o seio de u’a mãe zelosa E afetos nota que só ela cria? Pois quem suspira, se ela está chorosa? - A poesia! Quem no sorriso da gentil criança Descobre augúrios que ninguém sabia? Quem vê sorrindo, lh’acenar a esp’rança? - A poesia! Quem neste peito me afervora o sangue? Depois quem fá-lo estremecer que esfria? Quem robustece-o, quem o torna exangue? - A poesia! E quem o mundo num balanço brando Qual ama terna que o infante cria, Meigo embalança como quê ninando? - A poesia! Harpa saudosa, que harmoniza o mundo, Íris formoso que no céu radia, Sentir sublime de um pensar profundo, - És - poesia!

Recife, 1856

Fido= fiel, firme, constante. Iria= que matiza, reveste com as cores do arco-íris.

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A Uma Confessada (de quinta feira santa) Não quisera das aves a inocência, E nem do infante a candidez do riso; Pecador, eu também me achara indigno Das purezas que encerra o paraíso. Quisera que minh’alma hoje estivesse, Tão amiga de Deus que o céu habita, Tão sincera, tão pura e escrupulosa Como está de Maria a alma contrita.

Príncipe Imperial, 23 de março de 1853

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A Verdade Homeopática(oferecida pelo autor, depois de uma

convalescença ao Ilmo. Sr. Dr. Sabino Olegário S. P.) Quando a verdade, luminosa, esplêndida, Na terra ingrata – se espandiu – raiou Embora irrite-se a calúnia esquálida, Fala a verdade, foi Deus quem falou Profanas guerras se hão traçado – inglórias, - Contra a palavra que plantou Jesus, Porém sucumbem, e o estandarte deífico Mostra a verdade, que se lê na cruz. Como se fora assolar, notívago Ladrão que à estrada p’ra roubar saiu, Do Padre o Filho no estalar do látego Sente torturas quais ninguém sentiu! Sente seus membros divinais – tão cândidos! Serem quebrados por tormentos crus! Mas a inocência que em seu rosto expande-se Mostra a verdade, que se lê na cruz. Verdade! – nome que eu venero – angélico – Mago atributo, que revela Deus, Não temas, zombes da calúnia esquálida, Como a virtude dos amigos seus O sol não vede sepultar-se fúlgido? Porém do ocaso ainda o sol não luz? São seus reflexos: a verdade é lúcida, Como o cordeiro que sofreu na cruz.

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Quanto mais louca de prazer satânico A negra inveja, da calúnia audaz Amiga intrínseca, ou de vãos espíritos Prole malévola, imbecil, falaz, Mais presto a queda se lh’ antolha - mísera! E a louca fica se estorcendo em flux D’angústia e dores, pois o céu é próvido, Como o cordeiro que sofreu na cruz. Oh tu que notas a ciência antíloqua, Que à morte rouba dos umbrais do horror, A triste e magra, macilenta vítima, Que a morte untara já de seu palor; Curva a cabeça diante a dose ímplica, Que em simples gole de um licor – cristal, Livra da peste sem pungente e cáustico, E que o mal cura, destronando o mal. Rendo mil preitos ao varão exímio Que o bom sistema no país plantou; Devido culto, não é culto idólatra Esse que ao médico o mortal votou Não rendo culto ao poder estólido, Nem ao guerreiro destrutor, cerval; Mas rendo ao sábio que repele a cólera, E que o mal cura, destronando o mal. A todos rendo, cujo peito sôfrego Ao bem dos homens sacrifica o seu, Amo os eflúvios da verdade lúcida Que tem seu trono e resplendor no céu. Amo o homeopático sistema símplice Que em simples gole de um licor cristal Livra da peste sem amargo e cáusticos, E que o mal cura, destronando o mal.

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Viva cem anos a teus encômios Pelo sistema que o viver me deu, Que assás amado por dois .......... Que vida possuo; - que feliz sou eu! Nunca exprimira do sistema altíloquo As maravilhas – exprimi-las – qual! Como se a dose é que supera a cólera E que o mal cura, destronando o mal.

Olinda, dezembro de 1855

Encômio = aplauso, elogio, gabo Simplice = ingredientes de plantas, médicas Cerval = feroz, ferino Estólido = estúpido, estouvado, parvo Palor = palidez (poético) Antíliquo = sublimidade ou elevação da linguagem, dotado de altiloquência Provido = providente Deifico = pertencente ou relativo a Deus Flux = jorro em abundância Antolho = por-se diante dos olhos, que se oferece a imaginação Votou= declaração, ordinariamente por escrito,para afirmar que alguém é digno de elogio

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A Virgem do Sepulcro Tu, virgem do sepulcro, triste e pálida, Vem meus males sanar, vem socorrer-me; Cinge-me o colo com teus braços gélidos, Vem num beijo de morte aos céus erguer-me. Oh! Delícias da campa! Anjo fantástico, Não queiras espaçar meu terno gozo; O mundo não receis, que um manto místico Nos veda aos olhos maus do curioso. A lousa estremeceu! Espectro longévio Lá surge colossal, a mim se lança! Nos braços aguardei-o! instantes mágicos Nos seus braços frui sem esquivança! Oh virgem sepulcral! Teu rosto lívido Resume tal condão! Virgem do mundo, Detesto os risos vossos, - são intérpretes De prazeres mentidos, - mal profundo: Um beijo, quanto sabe! – frio e cândido, Doce beijo do túmulo! – tal doçura Não encontra o mortal nos beijos tépidos De terrena, animada criatura! Virgem! Dá-me outro beijo, embora extinga-se Para mim esta vida: que val ela? Contigo descerei também ao túmulo, Ó virgem do sepulcro, ó virgem bela!

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E tu queres partir... e eu melancólico A sós co’o meu delírio... ai! Piedade! Um som, visão querida, um som por último Que tétrico ressoe nesta soedade! “Um som... profano! um som... oh! tu, meu cúmplice Foge, vai-te, que o céu contra ti brada Adeus, ó desgraçado! Um beijo único A vítima do amor, à condenada! ...”

Recife, 1856

Longevio = que tem muita idade, macróbio, duradouro Ressoe = repete o som, ressoa, torna a soar Soedade = saudade

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Ao Luar Sobre a AreiaJunto de uma clara via Sobre a areia – me assentei, E pensando em meu futuro Mal seguro – suspirei! Era a noite tão saudosa! Radiosa – do luar, Convidava o desgraçado No seu fado a cogitar Eu formei tantos castelos E tão belos! – porém vi Que as bases que os sustentavam Franqueavam – mesmo ali! Deixei mentidos tesouros, E nos louros... pensei eu! Tive uma sublime idéia... Divanea... – la morreu! Pensei no tempo passado Suspirando – que passei Com meus pais e com meus manos, Tempos lhanos – que eu gozei! Pensei na vida presente, De repente – solto um ai! Que, destilando amargores, Dissabores – lá se vai...

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Pensei, afinal, na morte!... Num transporte – me arroubei! E só na morte pensando Vi, chorando, - que pensei!

Recife, 1856 Mentido = falso, fingido, ilusório, vão Lhano – sincero, flanco, cândido Fraquear = desfalecer, perder o vigor La = forma arcaica do pronome possessivo oblíquo da 3ª pessoa Fado = destino

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Caminho do Céu (pela cólera) Quereis que eu vos diga quais são os caminhos Que o homem conduzem direito p’ra o céu? Pois eles são fáceis, são bens comezinhos: Purgai-vos das culpas, de todo labéo. Quereis que eu vos diga que meios mais prontos Nos podem do cólera-morbo livrar? Pois eles são fáceis: correi, ide aos pontos Por onde ele grassa socorros levar. A mente ocupada na voz do Evangelho, Os olhos humildes pregados na Cruz, Vereis os caminhos e o sábio conselho Que os passos nos movam a ter com Jesus. Co’a mente abrasada de amor caridoso, Co’a alma incendida do amor do cristão, Correi denodado, correi piedoso À cama do enfermo colérico irmão. Uni vossos votos aos votos constantes, Às vozes, às preces dos filhos do Altar; Cumpri quanto dizem: vereis incessantes O ousado gangético ao certo voltar.

Oh! quantos que tendo delírios mimosos Donosos e cheios dos riso do amor, E agora feridos aos golpes da sorte, Da morte, murchando dos anos na flor!

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E quantos não morrem à falta de meios? E quantos sucumbem à falta de pão! Cobarde quem foge, que olha a receios, Deixando sozinho morrer seu irmão! Aquele que geme sem meios – prostrado – É membro do corpo, do ser social: Soframos com ele, se sofre, coitado! Recursos lhe demos que sanem-lhe o mal. A Deus nossas frontes humildes curvemos: Que vezes há males que vem-nos por bem! Sondar os mistérios do Eterno podemos? Oh! não, que é defeso sonda-los alguém. Irmãos, se vós vísseis num leito de dores Cercado de angústias, de penas cruéis, Sem esses consolos, sem esses primores, Que ao leito nos trazem amigos fieis; Nos seis gosmentos do peito penado Teríeis sorrisos? Teríeis prazer? Oh! não: novas chagas no peito chagado Veríeis minarem o vosso viver! À mingua não findem os dias mimosos, Donosos e cheios dos risos do amor, Do filho, do esposo, do pai tão requerido Ferido aos embates, do mal, do furor.

Olinda, em férias, fevereiro de 1856

Gangético = que se refere ao Rio Ganges e às pessoas das regiões que o margeiam Defeso = proibido, vedado para efeito de entrada Donosos= donairoso, primoroso Cobarde = quem não tem coragem, medroso, timorato, traiçoeiro, covarde

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Ciúme Quem nunca viu a desgraça No mais terno e grato amor, Não sabe que em fina taça Se bebe infecto liquor. Não sabe que a fonte pura Correndo pela planura, Refrescando o prado, o val, Fecunda a planta mimosa, Como a planta venenosa, Que encerra o gérmen do mal. Quanto se adoram! Que vida! Que sonhos que são os seus! Quanta ventura fruída! Quanto amor, dirão, meu Deus! Sim, amamo-nos, é certo, Porem vede com incerto No peito o mal germinou! Como o tirano ciúme Me queima o peito co’o lume Que a mão rival atiçou! Ai! nosso amor quanto é puro! Quanta ela é pura, o meu bem! Ai! quanto adoro-a, seguro De não competir-me alguém! Seguro!... quem m’o atesta? - É esta a dúvida – é esta Que o peito me traz em dor:

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Vede vós, vede a desgraça Bebida por fina taça No mais terno e grato amor! Ai! quanto sou desgraçado! Quanto o sou por ser feliz! Mesquinho por ter amado Por ser amado infeliz! Infeliz por ter na mente Um vulcão sempre fervente Que intenso amor acendeu! Infeliz por ouvir dela A meiga jura singela, Quando amar-me prometeu. Um dia achei-a sozinha, Tendo a face sobre a mão: Ai! Que tens, lhe eu disse asinha, Meu anjo, minha afeição? Suspirou! Ficou mais triste! Mas meu peito, qual antiste, Seus males adivinhou! Desde então fui desgraçado - Por amar, por ser amado Do anjo que suspirou! Eram por mim seus suspiros, Seus ternos ais eram meus; Seus queixumes, eu inquiro-os, Por mim elevem-se a Deus? Ela pedia ao Supremo A posse de um gozo extremo, Sem mescla de dissabor; Porém... o voraz ciúme Meia queima o peito co’o lume Que a mão rival atiçou!

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Ai! Nosso amor quanto é puro! Quanto ela é pura, o meu bem! Ai! Quanto adoro-a, seguro De não competir-me alguém! Mentira! Que eu ardo em zelos Até de ver-lhe os cabelos Co’o a brisa brincando ao ar! Não quero que olhem pra ela; Mas sua feição singela Vive tudo a avassalar!

Recife 1856 Val = o mesmo que vale Fruída = desfrutada, gozada, possuída Antiste = antístite = grande sacerdote

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Coragem (Pela cólera) O horizonte parece turvado, A borrasca, talvez, vai surgir; La negreja o gangético ousado, Que nos tenta, nos quer engolir: Não se torça o semblante ao malvado, Que há de alfim cabisbaixo fugir. Prevenimos de há muito o ataque, Eis-nos firmes, leais campeões, Se vier, não tememos o saque, Que será repelido a limões; E o tirano, rolando no baque, Morrerá em cruéis convulsões. Não é esse o recurso somente Que nós temos: a dose aí está; Que há de amanhã estorvar do impudente, E fazê-lo partir-se de cá; Há de o ímpio voltar tão doente Que aqui nunca jamais voltará. Mas no caso que venha o tirano Desejando imolar-nos aos mil, Resistamos com ar soberano Essa fera do Ganges tão vil; Nem saibamos temer ao insano, Já que somos um povo gentil.

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E lutemos enquanto no peito Restar viva uma só pulsação, Nem voltemos o rosto ao aspeito Do colérico enfermo cristão; E os que em torno velarem do leito, Que louvores, que prêmios terão! O cristão que ao doente socorre, Que vigia-o no leito da dor, Também tem quem lhe assista, se morre, E o console nos transes de horror; Mas àquele que ao leito não corre, Té na hora lhe falta o Senhor. É nas crises que o homem se mostra, Sobranceiro tal qual fê-lo Deus; É nas crises que o homem assostra Quer os males alheios, quer seus; É na luta que o exército prostra Duras hostes, ganhando troféus. E se o mal agredir-nos intenso, Tão intenso qual é seu furor; Resistamos; pois Deus que é imenso Padeceu, sendo Deus, maior dor! Resistamos, que em cima propenso A salvar-nos lá está o Senhor. O horizonte parece turvado, A borrasca, talvez, vai surgir; La negreja o gangético ousado, Que nos tenta, nos que engolir: Não se torça o semblante ao malvado, Que há de alfim cabisbaixo fugir.

Olinda (em férias) 1856 Estorvar = embaraçar, importunar, dificultar, impedir a liberdade dos movimentos. Impudente = que não tem pudor, descarado, sem vergonha

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Coragem (Pela Cólera)

(Incompleta) Lira, não quero esses cantos Que outr’ora sabias, não; Nem também sentidos prantos Que afligem o coração. Quero um canto sublimado De um amor acrisolado De um peito cheio de fé, Que vá na Página Avulsa, Por onde a cólera pulsa, Falando a todos de pé. Quero um canto que se diga: “Coragem, povo cristão!” Que, consolando, prossiga Em sua nobre missão; Um canto cheio de esp’rança Como a voz que não descansa Mandada, vinda do céu; ------------------, heroico povo, ----------------------------------- -------------- do inimigo que a vida nos vem roubar; Temos em Deus um abrigo, Devemo-nos consolar. Resistamos corajosos

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Aos estragos horrorosos Que surgirem dentre nós; Resistamos incessantes Aos ataques fulminantes; Honramos nossos avós. Honremos, que um povo bravo Não curva nunca a cerviz Como faz o povo escravo Em uma crise infeliz. Corramos, ó gente nobre, Ao leito em que geme o pobre, Lutando presto a morrer; Corramos, - à parte a vida, Que é melhor morrer na lida, Do que cobarde viver. ----------------------------------- Sem esses louros da lida Que falam ao coração! - É bom morrer-se lidando Aos seus um nome ligando Que o futuro abrace – além; - É bom sucumbir à morte, Morrer porém como um forte Que a Deus teme e a mais ninguém. Lira, não quero esses cantos Que outr’ora sabias, não; Nem também sentidos prantos Que afligem o coração. Quero um canto sublimado De um amor acrisolado De um peito cheio de fé, Que vá na Página Avulsa,

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Por onde a cólera pulsa, Falando a todos de pé.

Olinda (em férias) 31 de janeiro de 1856 Cerviz = a parte posterior da cabeça

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Delírio de Poeta Pousa a pena... e tristonho medita No futuro que imerge-se além... Mil idéias na mente suscita, Que não sabe, não pensa-as ninguém! Ei-lo – altivo – sorrindo – orgulhoso – Ei-lo – os olhos cravando no chão! Quem motiva este estado penoso? - Um lampejo talvez da razão. Ele pega da pena – sem tino – Uma estrofe lá faz no papel; Não são frases: – seu estro é divino, Que lhe ferve na mente em tropel! E seus olhos na estrofe correndo, Ele sente queimar-lhe um vulcão! Quem agita-lhe a mente fervendo? - Uma nuvem talvez de ilusão! Pobre moço! – talvez se despenha Nos abismos do incerto porvir! Muito estreito p’ra que se contenha Nele a ideia que esteve a nutrir! Mas seus sonhos desfazem-se logo Aos ditames da clara razão: Finda a palha, também finda o fogo, - Cinzas restam, – nem mais combustão!

Olinda, 1856

Despenha = lançar de grande altura, precipitar.

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Desalento Tanta lida, meu Deus, tantos martírios Por tão curto viver! Fugaz esp’rança, És como o meteoro-passageiro, És como o sonho – vem; por ti minh’alma Em vão suspira e geme! Há quantos anos vivo neste mundo, Labirinto infernal, cismando amores, Ruminando na mente escandecida Um futuro risonho a despontar-me! Meus amores, meus sonhos de futuro, Meus dias minhas tardes, minhas noites Mal dormidas insones, meus haveres; Porém amores vãos, só pressentidos – Eis toda a minha vida! Esperança por que me abandonaste? Lá quando em infante a via a amara Bordando os horizontes no meu peito Eu sentia o viver pulsar-me em ondas. Porém hoje que eu sinto frouxa e gasta A mola do sofrer, o que me resta, Depois de tanta dor, de tantos males, Depois das mil provanças deste mundo? - Somente o desalento.

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Embora! Gemerei, nunca humilhado; Não crerei nesse amor que me sorria Com risos de ouropel, nem nos encantos Desse sonho falaz, que eu tanto amara! Crerei, na mulher não, nem no futuro; Nem nos homens que trazem sobre os lábios A torpe hipocrisia, nem no mestre Que co’as obras desfaz tudo que ensina; Crerei, porém mais alto! Crerei: mas na virtude e nos seus prêmios; Crerei: mas nas misérias deste mundo; Crerei: porém na morte inexorável; Crerei: porém em Deus, na eternidade!

Escandecida = posto em brasa, ardente, escaldante, inflamado. Provança = prova, indício, mostra, sinal, aquilo que serve para estabelecer uma verdade. Ouropel = aparência enganadora.

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Ela Dorme Ela dorme, mas seus lábios Parece que estão a rir. Suas faces Tão vivaces Exprimem ledo sentir! Que formosas, lindas pálpebras! Ah! se ela as quisesse abrir... Não é mulher – é um anjo Que ali dorme a disfarçar... Assim vê-la... Sem podê-la Por um momento acordar! Ah! se eu soubesse uma coisa... Mas pode-se ela zangar. Como parece que sonha! Que sonho será o seu? E é bem doce! Ah! se fosse. Comigo – quisera-o eu; Mas ela sonha com outro, Talvez outro o mereceu. Com outro sim, que eu não tenho Da ventura tal condão; Que este sonho Assim risonho Com outro é, comigo não,

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A ser comigo dissera-o De há muito meu coração. Dissera-o, sim, mas tentemos: Minha mão no peito seu! Como bate! Demos mate Ao puro desejo meu... Mas não, que o pudor às faces Lhe subiu, - enrubesceu! Deixemos... fique a esperança Que eu não a quero acordar Pois que ao ver-me Pode ter-me Que dizer, que conversar Deixemos... que ela parece Um anjo ali a sonhar.

Príncipe Imperial - no Piauí

Ledo = alegre, contente, jubiloso. Mate = lance decisivo

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Eu Amo-te Muito Eu amo as loiras tranças de Maria, Eu amo a flor que adorna seus cabelos, Eu amo a fita que lh’os prende em laços, Eu amo solto ou atados vê-los Eu amo, sua fronte lisa e branca, Eu lhe amo os meigos olhos tricolores, Eu amo suas faces rubicundas, Eu amo seus receios... seus pudores. Eu amo-lhe a boquinha graciosa, Eu amo seu sorriso tão amável; Eu amo de marfim seus claros dentes, Eu lhe amo o som da voz tão deleitável! Eu lhe amo o liso colo alabastrino, Eu lhe amo o virgem, palpitante seio, Eu amo-lhe a cintura vaporosa, O porte, as finas mãos, garbo e meneio. Eu amo as mimosas roupas que ela veste Eu amo suas plantas pequeninas Eu amo o mesmo chão, onde eles pousam, As ervinhas calcadas e as boninas. Eu amo o doce pranto que ela chora, Eu lhe amo os ternos ais quando suspira, Eu amo suas queixas mal - fundadas Que o ciúme cruel talvez lhe inspira

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A meu próprio rival eu perdoara Fazer-se por amor cativo dela; Quem pode resistir aos seus encantos? Quem pode – sem amar- ver minha bela? Sim, Maria, meu anjo, terno encanto! Quanto te amo, dizer não sei, não posso! É amor que não pode ser descrito, Porém nele o rigor d’ausência adoço. Teu sorriso é que faz-me venturoso, Teus olhos é que dão luz a meus olhos, Eu não fora o que sou sem tua vida, Sem ti que fora o mundo? Um mar de abrolhos.

Rubicundo = vermelho Bonina = o mesmo que bela margarida Alabastrino = muito branco, que tem a alvura ou outras qualidades do alabastro

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Eu e a Enfermeira De dores pungentes, de angústias valado O meu triste fado constante gemia, Desperto, pensando naquela que amava, Com ela sonhava, se entanto dormia. Ai vida mesquinha, porém que eu amava, Porque eu a sagrava à bela querida! Ai vida mesquinha, que se ia findando, Mas nunca esfriando da chama nutrida. E assim, moribundo, meu peito sentia A flama que ardia do bem que eu amava, Mas cessa a desgraça, me torno ditoso, Que do anjo formoso bem perto me achava. Que importa que as dores comprimam meu peito, Se é vão seu efeito, se amor nos afaga? Que importam lamentos que a dor nos arranca, Se finda-os e estanca paixão doce e maga? Vivendo a seu lado, venturas só via, Ditoso sentia pungirem-me as dores! Aos ares freqüentes suspiros alados Soltava, passados do cremor de amores! Que bela enfermeira que eu tinha a meu lado! Que terno cuidado! que moça tão pia! Sucumbem as dores com sua presença, Esvai-se a doença, que atroz me pungia!

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Os dias são horas, as horas instantes Passados constantes em ternos brinquedos: Que bela enfermeira que eu tinha ao meu lado Que terno cuidado! que tratos tão ledos! Que falas tão doces por nós só faladas! Que horas passadas em doces recreios! Que vida tão doce! que doces ternuras Que doces canduras! que doces receios! Num leito de dores prostrado, doente, Vivera contente com tal enfermeira: Amável e bela! Que moça tão pia! Alegre me ria! Que moça fagueira! O céu era às vezes de estrelas ornado, Outr’ora nublado, só trevas se via, Às vezes a lua com pálidos raios Em meigos desmaios saudosa luzia. Outr’ora nas frestas o vento zunia, O teto gemia, brilhavam relampos, E os raios caindo, trovões estouravam, E as águas jorravam nos vales e campos! E eu todo assombrado, dormia ou pensava? Quem sabe! Sonhava? Talvez, são segredos... Fruía prazeres aos homens vedados, Gozava de agrados, os mimos mui ledos! Mas sabem-no as trevas, a lua, as estrelas Que tremem de belas, trovões e relampos E raios e ventos e chuva celeste, Que os prados reveste de perlas e de campos.

Entanto = contração de entretanto Valado = cercado pelo inimigo Cremor = parte mais espessa de um líquido, essência, rico de muita consistência. Perla = pérola Relampo = popular de relâmpago

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Fases Asmáticas Outrora quando batia De prazer meu coração, Oh! então como eu sentia Dilatar-se-me o pulmão! Hoje sucede o contrário! Neste mundo tudo é vário Hoje, porém, se ele bate De prazer, corre por mim Frio suor que me abate; Porque me lembra, por fim, Que em breve lá vem a tosse, E o prazer foge precoce! Por exemplo, quando penso Naquilo que já gozei. E nessa idéia suspenso, Ar muito ao pulmão mandei, Eis que a tosse asfixiante Me lembra o quarto minguante Chegou ele: eis-me prostrado, Oh! meu Deus, quanto sofrer! Levo as noites acordado. A me virar e torcer! Seis dias dura esta prova, Té que chega a lua nova.

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Cuidas que nesta o repouso Me vê, por fim, consolar? Nem dar um só passo eu ouso, Posso apenas suspirar! Se o pulmão mais ar consente Lá vem o quarto crescente! Asma tirana e maldita, Que me hás roubado o vigor, Nem mais olho à minha dita Por um prisma encantador Nada, nada me sereneia Pois lá vem a lua cheia.

Sedear = acalmar moderar. Vário = inconstante, volúvel, mutante, caprichoso. Sereneia = aplacar, acalmar, aquietar, amainar

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Gemidos Tudo geme neste mundo Onde tudo é só gemer; O bardo meditabundo Geme e sofre até morrer. Geme, sim, toda a natura, Geme a rola com ternura, Geme o bosque em se mover, Geme a brisa na espessura, Geme a fontinha a correr. E quem não geme no mundo? Quem não geme... não sei eu. Vede o pombo gemebundo, Cuja pombinha morreu. Coitadinho! – quanto pena! E quem a tanto o condena? Essa sorte quem lh’a deu? Ai! Nem mais lhe cata a pena A esposa que faleceu! Gemidos que são? – queixumes Contra amor – são tristes ais; Lavas de um peito – ciúmes, Que nos torturam – fatais: São suspiros exalados, Por entre uns lábios passados... São zelos cruéis, mortais; São juramentos quebrados; Protestos de nunca mais...

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Meus versos, meus tristes versos Que alívio às vezes me dão, São os afetos diversos De minh’alma e coração; São gemidos de minh’alma Que às vezes colhem-me a palma No seio da solidão, Com que mitigo e se acalma A frágua de uma impressão. Gemidos sempre são frases Arrancadas pela dor? Não: da vida em certas fases Exprimem gozos de amor Exprimem tanta ventura Quebrados com tal brandura Nuns lábios de rósea cor, Que, em lugar de desventura, Dizem prazer e dulçor. Mas o canto do poeta Acaso é canto ou gemer? Se na desgraça o enceta Como pode canto ser? Não é canto: são gemidos, São ais do peito sentidos É triste pranto a correr; São os ecos repetidos Do seu constante sofrer. Se canta a meiga donzela Fá-lo sempre de feliz? Não: talvez nas vozes dela Da dor se estampa o verniz Que vezes o passarinho

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Sobre o flexível raminho Canta, e seu canto o que diz? Diz saudades do seu ninho, Canta por ser infeliz. Tudo geme neste mundo Onde tudo é só gemer; O bardo meditabundo Geme e sofre até morrer. Geme, sim, toda a natura, Geme a rola com ternura, Geme o bosque em se mover, Geme a brisa na espessura, Geme a fontinha a correr.

Recife, 27 de junho de 1855.

Meditabundo = que medita, melancólico. Frágua = forja, ardor, calor intenso, amargura, adversidade. Gemebundo = gemente, que tem o hábito de gemer ou de se queixar. Dulçor = doçura Enceta = começa, principia, dá início

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Já Sei a Cor (*) Vou descrever de Maria Os olhos que afinal vi, De cuja cor deslumbrado Não sei porque me esqueci. Pondo-me um dia a revê-los Conheci ser trina a cor, Que os torna tão preciosos E tão propícios a amor. São verdes como as campinas, Como o mar sem escarcéu, Têm um toque de castanho, Tão azuis da cor do céu! Este composto tão belo Da-lhe risos de mimos tal, Eu não sei se por ser trino, A razão não sei eu qual! Outra cousa lhe hei notado Nos seus olhos a brilhar, Ocultam não sei aonde Dois anjinhos a brincar. Quando a Maria dirijo Um riso ou falas de amor, Vejo que eles também riem Ou falam seja o que for.

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Quando em rosto ela me lança Não faltas, suspeitas vãs. Como em mim, lágrimas correm Por suas faces louçãos. Eu não sei que será isto, Eu não sei, Maria não Se é magia se é feitiço Em teus olhos se é condão!

São Raimundo Nonato, 4 de setembro de 1853

Loução = elegante, garboso, gentil, agradável à vista, belo, bem feito. Fem. Louçã. Plural = louçãos.

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Minha Lira De marfim, nem de madeira Minha lira é fabricada, Não foi no mato cortada, D’alem mar não veio, não; Mas é lira e nela canto Meus ternos, gratos amores, Nela mitigo os ardores De minha extrema paixão. Tantas cordas contém ela Quantas letras o alfabeto; Quando soa o som direto Nasce do meu coração. Não de branco marfim liso Fabricada, ou de madeira, É contudo verdadeira, Lira de nova invenção. Deu-me o plectro com que toco Uma ave branca, inocente; Diz a lira docemente Quanto sente o coração. Cada nota que eu desfio De minha lira inventada Causa nela, que enlevada Ou azul, negra impressão.

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Soando embora d’amores, Sempre solta um ai profundo! Ela sabe que este mundo É só morte – vida não. E é por isso que sentida A minha lira inventada Fica toda repassada Sempre de negra impressão. Não de marfim ou madeira Fabriquei a minha lira, Em que canto o que me inspira A minha ardente paixão: - De papel é fabricada, São as letras – cordas dela, O plectro – a pena singela De uma ave do meu sertão. E nem convém-me outra lira, Outras cordas, outro plectro, Pois com ela canto o metro Que diz a minha paixão. E a tinta que o metro grava Que mostra o meu pensamento É que dela o sentimento Gera e produz a impressão.

Príncipe Imperial no Piauí nos 10 de abril de 1853

Plectro = pequena vara de marfim, com que se feriam as cordas da lira, gênio poético.

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Minh’Alma Está Lá Vem, tarde propícia, difunde os primores Que tens em teu seio, - difunde-os em mim, Que a dura saudade me aviva os rigores Da ausência que faz-me viver triste assim. E dá-me uma brisa que voe na espessura, E à bela que eu amo mui rápida vá Dizer-lhe que peno, que em tal amargura Meu corpo aqui vive, minh’alma está lá!. Dos plúmeos cantores que tecem-te cantos À bela que eu amo despede um cantor; Receba nas asas meus tépidos prantos Filtrados na frágua da mais crua dor. E parta e não cesse, constante voando, E pouse de fronte do lar onde está, E diga-lhe, triste, que, em ais se finando, Meu corpo aqui vive, minh’alma está lá! Seu peito que asila pureza e candura, Terá piedade, terá dó de mim; Nas asas, chorando, dirá uma jura D’amor dentre os lábios de rosa e carmim. E traze-m’a logo, veloz passarinho, Que o peito me anseia... não vês como está? Adeus! Eu cá fico cismando sozinho... Meu corpo aqui vive, minh’alma está lá! Lá foi-se, partiu-se, chegou... que fazia A bela? – que jura daria ao cantor?

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Mentiu-lhe? - traiu-me? – pensava? – sorria? Zombava – quem sabe! – do seu trovador? Sorria – zombava – que o pobre habitante Do bosque vivente não veio mais cá; E eu, triste, saudoso, me fino constante! Meu corpo aqui vive, minh’alma está lá! Mas ela não mente, que pura e singela Mil vezes me disse seu peito ser meu; E eu creio nos lábios da doce donzela Que um riso, uma fala d’amor concedeu. Eu creio que os lábios da virgem não mentem, Que neles, sinceros, saudades, só há; Pois dizem, qual digo, na ausência que sentem: Meu corpo aqui vive, minh’alma está lá! Vem, tarde propícia, difunde os primores Que tens em teu seio, - difunde-os em mim, Que a aguda saudade me aviva os rigores Da ausência que faz-me viver triste assim. E dá-me uma brisa que voe na espessura, E à bela que eu amo mui rápida vá Dizer-lhe que eu peno, que em tal amargura Meu corpo aqui vive, minh’alma está lá!

Soledade ( Recife) 27 de novembro de 1856

Plúmeo = relativo a plumas. Que tem plumas, emplumado. Frágua = Ardor, calor intenso. Amargura, adversidade Cismando = ficar absorto em pensamentos. Fino = acabado, me acabo, faleço

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Nênia III(No aniversário de morte do

Dr. G. Vilella de Castro Tavares) A vida – hás de no céu melhor gozá-la, Pois no mundo a lidar minaste a vida. Bem louco quem no mundo não descansa Em busca da verdade, em prol daqueles Que vivem dominados pela incúria, Que vivem sotopostos pelo peso Da matéria que atrai, fascina, ilude! Bem louco! Mas que importa que o descrente Sem critério, imoral, assim se exprima, Esquecendo essas leis que Deus gravara Em nossos corações? Que o diga embora! Bem sábio e bem feliz! Por alguns anos Passados sem descanso e prescrutando Os segredos infindos da ciência Levando da razão o facho extremo Ao seio da ignorância que tropeça Nos escolhos do erro, o sábio, o justo, Enquanto neste mundo os loiros colhe Do seu reto viver, dos seus labores, No outro mundo constrói melhor asilo, Onde as palmas encontra da virtude, Onde a paz e o descanso eternos goza. A vida – hás de no céu melhor gozá-la, Pois no mundo a lidar minaste a vida.

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Quanto difere o homem da ciência Do homem da matéria! Aquele chora O sábio que finou-se pelo estudo; Este cospe a irrisão sobre seus restos. Purifica o primeiro a inteligência; O segundo ao prazer só rende cultos! Eu não! Eu gemerei também a perda Daquele que oferecia seus tesouros, Não de fulvo metal, de idéias puras, De sãs doutrinas, de verdades sólidas A tantos que os buscavam. Onde eu posso, Onde podeis vós outros que o escutastes, Passados de prazer, de entusiasmo, Do gelo aprovador que em nós corria, Igual sábio encontrar que nos ilustre, Igual mestre tão bom que nos ensine? A morte, a inexorável crua morte Arrebatou-nos o querido mestre! Mas, irmãos, consolemo-nos. Sua alma Será no céu mais sábia e venturosa. A vida – hás de no céu melhor gozá-la, Pois no mundo a lidar minaste a vida.

Pastos Bons, Maranhão, maio de 1869

Nênia = canto fúnebre Sotoposto = posto por baixo, exprime a idéia de inferioridade. Irrisão= mofa, zombaria, desprezo, escárnio. Fulvo = metal amarelado, da cor de ouro

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Nênia IV(À morte de meu patrício o estudante

J. Pires Ferreira) Inda bem o triste pranto Nos olhos não me estancou; Quando ainda soa o canto Que a triste lira entoou, Novas lágrimas sentidas Correm tépidas, nascidas Do magoado coração; De novo a lira enlutada Geme, carpe, repassada De dor, de amarga aflição. Geme, carpe, oh minha lira, A morte de teu irmão, Dessa flor que sucumbira Rojada pelo tufão. Geme, carpe – que há um fado Que ao meu Piauí amado Vive sempre a perseguir! Terra esquecida do norte, Que dura, que infeliz sorte Vai minando o teu porvir? Quando os carinhos maternos Mais caros, doces nos são; Quando os desvelos paternos Mais provas de amor nos dão, Inebriados dos sonhos

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Que à mocidade risonhos Os louros mostram além, Trocamos essas doçuras Pelas esp’ranças futuras Que tantas vigílias têm! Mas, ai! Que vezes na campa Se findam castelos tais! Resta a lousa que os estampa... Aos vivos... sentidos ais! Lá foram-se as esperanças Depois de tantas provanças Depois de tanto velar! Morreram como essas cores... Como do sol os fulgores, Quando mergulha no mar. Mas não – que o sol noutro dia Volta, luz, torna a viver; Assim há de à lousa fria O espírito sobreviver. Basta, lira; basta, pranto; Nem mais lágrimas, nem canto, Que talvez se ofenda o céu. - Vida! Morte! Eternidade! Mistério da divindade, Quem pode rasgar-te o véu?

Recife 5 de março de 1856

Rojado = arrostado pelo chão

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Nênia V(À morte do estudante

Manuel Rodrigues Machado) Quer Deus ou quer a sorte lacerar-vos O peito que inda pouco gemeu tanto? Novas dores vos dão novos suspiros, E aos olhos, inda roixos, novo pranto! Eu blasfemo, Senhor, mas me perdoa, São excessos da dor que me devora: É minh’alma que, unida às almas tristes D’amigos que se carpem, também chora. Respeito os teus encarnos – neles vejo O selo do mistério que os estampa; Ou viva o moço no mundo venturoso, Ou desça prematuro o justo à campa. Se acaso no verdor dos ledos anos A flor de uma existência é decepada, Não valem vãs blasfêmias contra a sorte: A teia da existência está fiada! A sentença fatal do livro eterno Que o termo do mortal escrito encerra, Não sofre dilação, se o prazo expira, Há de o homem voltar por força à terra?

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Amigos! Serenai o amargo pranto, Que pelo rosto vosso se desliza; O homem sem morrer mesquinho fora: É a morte que ao homem eterniza. Quem sabe se um porvir funesto aguarda Aquele que morreu na flor dos anos! - São decretos de Deus que nos escapam: Curvados veneremos seus arcanos. Veneremo-los, sim, que neles vejo O selo do mistério que os estampa, Ou viva o moço no mundo venturoso, Ou baixe prematuro o justo à campa! O jovem que viveu singelo e casto, Que um peito para vós sincero tinha, Que este triste epicédio, em dor coado Motiva a lacrimosa pena minha. Também me era assás caro! Mas que importa O doloroso pranto sem remédio? Uma lágrima, pois, uma somente Comigo derramai neste epicédio. Os arcanos de Deus se não prescrutam, Que o selo do mistério é que os estampa, Ou viva o moço no mundo venturoso, Ou desça prematuro o justo à campa!

Soledade (Recife) 12 de julho de 1855

Encarnos = o mesmo que descarnar Ledo = alegre, contente, jubiloso. Epicédio = poema recitado nas exéquias de alguma pessoa notável. Qualquer composição poética fúnebre.

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O Canto do Cacique Sou índio, sou forte; se a lida me chama, Sou raio, corisco, só temo a Tupá: No campo juncado de imigos ferozes Se movo o tacape, mil mortos são já! Os ares demando co’a frecha empenada, Que voa infalível à presa onde está; A onça sedenta, que espuma raivosa, Se vi-a, mandei-a de mim a Anhangá. Sou bravo e cordato; se a paz se concerta, Quem é tão cordato como eu? – quem será? Na paz sou cordeiro, - sou tigre na guerra, Sou raio, corisco; só temo a Tupá. Domino estas matas espessas, sombrias, Que estão sob a mira do grande Tupá; Que há poderoso como eu nestas serras, Que tudo que vejo sujeito me está? No doce remanso da taba querida Mil filhas donzelas que adora Tupá. Dos olhos quebrados me lançam mil setas Mas uma somente no peito me dá. Sou índio, sou forte, se a lida me chama, Sou raio, corisco, só temo a Tupá: No campo juncado de imigos ferozes, Se movo o tacape, mil mortos são já! Borés lá ressoam – e agrupa-se a tribo!

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Quem foi ao perigo primeiro ter lá? Fui eu, ó guerreiro, valente e brioso, Que sobre mim vejo somente a Tupá. ---------------- como eu não existe: ---------------- seu manacá, ----------------- na taba excitando, ----------------- louvando a Tupá. Notai essas várzeas floridas, verdosas! Notai estes serros, que ao céu vão ter lá Firmantes – soberbos? – São meus – eu domino! Em forças eu cedo somente a Tupá. Não vedes mil cândidas aves formosas Nos céus peneirando-se em honra a Tupá? Pois todas eu tenho; se quero na ponta Da frecha certeira que prestes está. Sou índio, sou forte; se a lida me chama, Sou raio, corisco, só temo a Tupá: No campo juncado de imigos ferozes Se movo o tacape, mil mortos são já! * * * Na taba verdosa, de flores amada, Que belo guerreiro qual eu haverá? Meus olhos são pretos – bem pretos – retintos – Que eu índio Toupino, não sou marabá.

Que vastos domínios! que prem herdades De cima há cedido-me o grande Tupá. Se os olhos espraio.... só vejo riquezas Doadas ao neto de Tupinambá.

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Sou bravo guerreiro; sou rei destes campos; As feras me temem e eu temo a Tupá: Meus olhos fuzilam,desferem relampos, Que ferem, deslumbram o vil marabá A fronte guerreira me cinge o kem..... Que lindo não fico se sobre....... Sou índio, não nego............. Feitura orgulhosa do grande Tupá ............ Sou índio, sou forte, se a lida me chama, Sou raio, corisco, só temo a Tupá: No campo juncado de imigos ferozes Se movo o tacape, mil mortos são já! * * * Não turvam-me os olhos a vil mussurama E o vil iv’rapeme que importa-se o há? Co’a massa e o tacape, co’o arco guerreiro Mil tribos eu mando de mim a Anhangá. Co’o arco empunhado, co’a frecha no rosto, Não vejo, não temo senão a Tupá. Ao sonho terrível destroço fileiras, Que tombam, mordendo da terra o tobá. Ornando-me a cinta gentil encluape, Quem é que a vitória como eu louvará? Eis soam janubias e muimures soam, Quem tão prazenteiro como eu bailará? Nas tabas protegem-me Nas igaras guarda-me o grande Tupá: De dia reluz-me o sol corincante, E a lua serena de noite me está.

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Sou índio, sou forte, se a lida me chama, Sou raio, corisco, só temo a Tupá: No campo juncado de imigos ferozes Se movo o tacape, mil mortos são já! Nas águas correntes não há pirabebe Que voe tão ligeiro qual eu nade lá; Na estreita piroga desliza garboso, Nem há igaruana mais de ....... As armas provado na leve tipóia Enquanto o Piaga, no teu maracá Tocando, celebra os teus sacrifícios, Aos pátrios Manitos, ou grande Tupá. Por que sou tão forte? Por que mil imigos Nas rígidas lutas eu mando a Anhanjá? Porque sou dos índios o chefe, o cacique, Porque só me curvo no céu a Tupá. Desperta, ó Piaga, desperta os Manitos Aos sons piedosos do teu maracá; Corramos alegres ao largo Tisseiro, Cantando, dançando, louvando a Tupá. Sou índio, sou forte, se a lida me chama, Sou raio, corisco, só temo a Tupá: No campo juncado de imigos ferozes Se movo o tacape, mil mortos são já!

Soledade (no Recife) abril de 1855

Boré = trombeta de bambu, usada pelos índios Tobá = atobá, pássaro mergulhão Pirabebe = peixe voador Piaga = pajé Maracá = cabaça seca e interiormente limpa, em que os indígenas metem pedras ou frutos e agitam nas festas, na feitiçaria e nas guerras. Manito = manita = fermento especial Igaruana = canoeiro navegador

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O Canto do Soldado Na vida encaneci que me legaram Meus parentes, meu pai, que vi morrer, Quando as tropas rebeldes nos cercaram E foram rechaçados sem vencer. Nunca me hei de esquecer daquele aspeito, Com que disse meu pai a se finar: “O soldado que à bala expõe o peito Não deve a vil chibata suportar.” Seguindo de meu pai o nobre exemplo, Não encontro descanso a combater, E da pátria, malgrado, o mal contemplo, Sofrendo o frio, a fome sem gemer! A metralha feroz da canonhada Não me faz abater, nem recuar; Mas – quem missão exerce tão sagrada Não deve a vil chibata suportar. Gritando: quem vem lá? – eu passo as noites; Que vezes tenho opresso o coração, Vendo o meu camarada aos vis açoites Gemer da vil chibata e sem razão! Eu sinto, então, meu sangue enregelado, Sinto o pranto dos olhos a brotar: O guerreiro valente e denodado Não deve a vil chibata suportar.

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Sem mim, pobre da pátria! – desvalida, Quem zelara seus foros, seu brasão? Seria vacilante em sua vida, Não tivera respeito de nação. Sou eu, oh sim! – sou eu que com bravura Mil triunfos lhe faço conquistar, E quem coloca a pátria em tal altura Não deve a vil chibata suportar. Mas eu vivo estafado... e minha etapa Não me dá para o pão! Sorte cruel! E esta fome do inferno, me solapa Esta vida nutrida só de fel! E se acaso eu morrer de fome ou frio, Ai da pátria também, que há de acabar! Quem morre pela pátria e por seu brio Não deve a vil chibata suportar. Governo do Brasil, atende ao brado Do valoroso exército fiel, Que de fome e nudez jaz alquebrado, Entregue ao despotismo mais cruel. Minora nossos males, nossas dores, Dá-nos pão pra podermos trabalhar Pois pátria, que por ti morre d’amores, Não deve a vil chibata suportar.

Recife (1856)

Etapa = o que o soldado consome diariamente Aspeito = semblante Encaneci = grisalho, envelhecido. Opresso = oprimido

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O Enfermeiro(Pela cólera) Ei-lo ali, caridoso velando Sobre o enfermo, que jaz a morrer; Pelas faces lhe vejo rolando Uma lágrima triste a correr. Não descansa nem noite, nem dia, Junto ao leito do enfermo a velar; Partilhando de sua agonia, Só deseja o irmão consolar. Não descansa, não curva-se à lida Que lhe rouba o repouso, o dormir; Ele julga precária esta vida, Melhor vida quer ele fruir. E, embalado de idéia tão santa, Não trepida, constante a velar: Geme o enfermo que o mal aquebranta; Só deseja o irmão consolar. É um anjo por Deus enviado, É um anjo! Que um anjo só é Quem ao leito do enfermo encostado Passa as noites velando com fé. Nem receia diante da morte, Pois que o leito pudera deixar; Mas, do enfermo pensando na sorte, Só deseja o irmão consolar.

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Não lhe faltam palavras contritas Não lhe faltam palavras de amor. Pelo céu inspiradas, prescritas, Consolando o enfermo na dor. Quantas vezes não geram no triste Uma idéia sublime, um cismar! É qual anjo, qual célico antiste, Só deseja o irmão consolar. No seu peito só pulsam virtudes, No seu peito só há compaixão! Ele carpe as cruéis vici’tudes Que espedaçam o peito do irmão. Bem quisera poupar-lhe a metade... Bem quisera seu mal minorar: Só um anjo tem tal caridade; Só deseja o irmão consolar. A um dia sucede outro dia, Tudo passa, mas nunca esse amor Que, seu peito banhando radia Como o orvalho que cai sobre a flor. Não descansa o cristão caridoso: Ei-lo sempre no leito a velar! Que lhe importam fadiga e repouso? Só deseja o irmão consolar. Mas a hora final se aproxima! Ei-lo enfermo na cama a morrer; Deus vigia sobre ele de cima, Pois que soube no mundo viver. Que desvelo, que assíduo cuidado! Todos chegam e o vem prantear, Todos querem ficar ao seu lado! Todos querem ali consolar!

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Esta vida tão doce, tão bela, É a vida que importa ao cristão; Tem mil prêmios, mil vidas por ela Prodigadas de Deus pela mão. Trabalhemos, irmãos, trabalhemos Pela vida que se há de gozar... Nossos olhos no enfermo fitemos: Eia! – vamos o irmão consolar.

Olinda (em férias) 7 de fevereiro de 1856

Antiste = antístite = grande sacerdote, pontífice. Célico = celestial, celeste.

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O Estudante Triste vida a do pobre estudante, Que jamais gazeou à lição, Que as pestanas queimando incessante, Não se abala ao clamor da função. Eu, por mim, gazeando por ela, Mudo a sorte de triste pra bela. Galhofando é que a vida se passa, Galhofando é que sente-se amor, Galhofando, meu Deus, quem se maça? Galhofando é que vive o doutor. Minha vida será galhofeira; Oh! que vida, gentil, prazenteira! Não me curvam vigílias do estudo, Não me curva a maçante lição, Sabatinas – que importam – se tudo Eu desprezo e prefiro a função? À função, à função, ao pagode Só não vai, só não vai, quem não pode. É melhor repimpar-me às varandas E a moiçola fazer ademans, Do que estar a mexer com demandas Nessas horas de graças louçãs. Hei de ser bacharel, hei de sê-lo, Mas o tempo... hei de breve fazê-lo

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Só desejo ganhar minha carta Para rr não dou atenção; Andarei co’a barriga bem farta, Que imposturas, meu Deus, que mais não! Com meus oc’los, com minha luneta, Oh! que vida, que vida de treta! Não me abatem falácias do mundo, Não me abatem dictérios, baldões; Tenha eu um viver bem jocundo, N’algibeira meus bons patacões. Meu viver há de ser galhofeiro, Que me importam baldões do treteiro? Isto, sim, é que pé vida gostosa, Esta a vida que eu peço a meu Deus; Que me importa essa vida afanosa, Que se passa co’os livros judeus. Tão judeus – que nos roubam tiranos Nosso belo folgar tantos anos! Vou, portanto, abrandar minhas dores, A minh’alma vou dar expansão, Vou gozar uns sorrisos... traidores? Que me importa que o sejam ou não. Um charuto acendamos pachola Vamos ver a faceta moiçola.

Olinda – fevereiro de 1856

Repimpar-me = abarrotar, fartar, locupletar. Treta = ardil, sutileza, astúcia, estratagema Dictério = ditério = dito satírico, motejo. Baldões = afrontas, doestos, impropérios. Treteiro = dado a tretas

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O Fazendeiro Não invejo aos reis da terra Esses poderes que têm; Dou também leis nestes campos, Como não nas dá ninguém; Todos aqui humilhados As frontes curvar-me vêm Nem meus poderes trocava Por aqueles que os reis têm. Pisando, altivo, o terreiro, Um grito altivo soou! Cem vassalos obedecem Ao grito que além troou! Tenho riquezas nos campos Como o rei nunca logrou! Sou rico, digam-no os vales Por onde o grito soou. São vastas minhas riquezas! Lidando – ganhei-as eu, Não me custaram batalhas, Nem sangue em jorros correu... Custaram-me o meu trabalho, Custaram-me o suor meu. São vastas, todas são minhas, Não devo-as, ganhei-as eu.

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Que formoso panorama Está-me a vista encantar! O capim co’o vento ondeia Como as ondas lá do mar! O gado vejo pastando, Correndo, alegre a berrar! - Pois é meu tudo que os olhos Em roda está-me a encantar! Eu tenho em minhas fazendas Aquilo que os reis não têm: Um povo de quem sou id’lo, Um povo que me quer bem. Seus filhos não lh’os recruto, Não lhe roubo um só vintém. Eis porque possuo aquilo Que os reis dos tronos não têm. Dou o pão ao desvalido Que pede-o, rojando-o ao pó; Socorro a mísera viúva, Que geme no leito só; Respeito as casas alheias... Das virgens eu velo em pro. Protejo a todos que vejo Gemendo, rojando ao pó. À tarde eu aboio as vacas Recostado nos moirões, Vendo os currais atulhados De prata e d’oiro em montões; Meu orgulho é somente este, São estes os meus brasões. Os cetros o povo os quebra E vai sentar-se aos moirões.

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Os reis no trono de luxo Quase de seu nada têm; Imperam no fausto e grandeza, Sem se lembrarem porém, Que os suprem nossas riquezas, Que impostos deles só vêm - Riquezas só são as nossas, Que os reis, coitados! – não têm. Tiranos, sorriem-se aos ecos Das bombardas, dos canhões! Eu, porém, me rio aos berros Dos gados cá dos sertões: São hinos, são harmonias Que falam aos corações - De todos que não se aprazem Ao retumbar dos canhões. Olhai – não vede quem passa Tirar-me, humilde, o chapéu? Pois eu como irmãos os trato, Que assim nos ordena o céu. Não tenho, nem quero títulos Roubados – negro troféu. - Homenagem – dá-m’a o povo, Tirando-me o seu chapéu. Isto, sim, é que é grandeza, Isto, sim, é que é poder: Tudo mais não vale nada, É como eu sei descorrer. Os reis que vivem nos paços Inertes a adormecer. - Poder o meu na fazenda, Este, sim, é que é poder.

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Não quero superfluidades, Nem luxos que é tudo vão; Das vacas eu tenho o leite, A coalhada, o requeijão; Tenho a manteiga, e mais tudo Que pode haver no sertão. - Nem quero luxos, nem pompas Supérfluos – que é tudo vão. Como a carne saborosa Como não a come o rei; Sirvo à pobreza, aos amigos, Aqueles que eu bem o sei; Desprezo os aduladores, Resisto à tirana lei - Que vem me roubar as terras Por mando e fome do rei.

Olinda, 2 de fevereiro de 1856

Superfluidade = qualidade de supérfluo, demasia, excesso, coisa supérflua ou escusada.

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O Mal já Declina (Pela cólera) Já o mal pouco a pouco declina! Faze, ó Deus, que de todo se vá; Que não volte com sua malsina A fazer-nos mais vítimas cá. Embainha, cruel, teus alfanjes, Vai sumir-te outra vez no teu Ganges. Resfolgando da luta renhida, Este povo às janelas já sai Já no peito renasce-lhe a vida, A esperança afagando-o já vai. Ó do monstro sangrentas falanges Outra vez mergulhai-vos no Ganges. Tantas vidas no albor da existência Teu cutelo fatal decepou, Desejosos da luz da ciência, Não vingaram, que a tumba as guardou Mas sua tuba da morte já tanges Retirada, cruel, pra teu Ganges. Quantos pais, quantos filhos e esposos Não se carpem envoltos no dó? Quantas taças boiantes em gozos Não transbordam de fel sobre o pó! Ímpio chefe de pravas falanges, Parte; vai-te outra vez para o Ganges.

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Já o mal pouco a pouco declina! Faze, ó Deus, que de todo se vá; Que não volte com sua malsina A fazer-nos mais vítimas cá. Embainha, cruel, teus alfanges, Vai sumir-te outra vez no teu Ganges. Qual o homem que o raio fulmina, Que no chão quase exangue o deixou, E depois do delíquo combinio As ideias, que alfim despentou: Tal o povo suspira às falanges Que uma a uma lá vão-se pra o Ganges. Minha mãe, eu também ainda vivo! O teu filho, meu pai, não morreu! Meus irmãos, não chorais: estou vivo! Não morri, não morri, anjo meu! Mal feriram-me os demos alfanjes Do cruento flagelo do Ganges. Pobre povo! Gemente, abatido, De valente e do bravo que é, Foi do mal de tal sorte ferido, Que bem pouco ficou-lhe de fé! E tudo isto devido às falanges, Que assomaram das águas do Ganges! Mas já hoje, de faces coradas, Se escapando do leito de dor, Lança a vista através das sacadas E na mente bem diz o Senhor, O Senhor que o livrou dos alfanjes Das sangrentas coortes do Ganges.

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Já o mal pouco a pouco declina! Faze, ó Deus, que de todo se vá; Que não volte com sua malsina A fazer-nos mais vítimas cá. Embainha, cruéis, teus alfanjes, Vai sumir-te outra vez no teu Ganges.

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O Preso e a Viúva Sonoro pintassilgo, por que vives Carpindo teus pesares na gaiola? Por que vives no pé do tamarinho Gemendo, suspirosa triste rola? - São reveses da sorte: aquele chora A doce liberdade que há perdido; E a penosa avesinha geme à falta Do esposo que da seta foi ferido. Eu também, passarinhos, vivo presa Aos sagrados deveres que os humanos Cultivam neste mundo enquanto dura O curto espaço dos penados anos. Também meu coração, viúvo, geme À falta dos irmãos que a dura morte Ceifou, despiedoso, tinturando Com salpicos de dor a minha sorte. Sonoro pintassilgo, triste rola, Deixai estes carpidos tristurosos; Calai-vos: vossas dores lembram dores Que me arrancam do peito ais lamentosos.

Olinda, 14 de janeiro de 1856

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O Que Eu Chamo Poesia(num álbum) No levante brilha a aurora Rouxeando os horizontes, Realça prados e montes Com sua luz matinal. Mas clara luz já cintila Dentre o mar o sol desponta Trepa no céu, no zênite monta Mais luzente que o cristal, Transparece a lisa fonte, Treme o ar tudo fulgura, Trinam aves na espessura, Languesce a flor no rosal. Descai o sol, menos flama, No ocaso lá vai sumir-se, Eis a bonina a sorrir-se No seu suspiro final! É qual ao nascer da aurora, Rouxeam-se os horizontes, Outra vez prados e montes Vestem a cor matinal!doce – As correntes murmuram! Tinge o mar purpúreo manto, Saltam as aves um canto Mais terno – sentimental!

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Como as nuvens são tão belas Ornadas com franjas d’oiro! E as aves cantando em coro Um hino ao seu criador! E as brisas meigo-soprando No cimo dos arvoredos! E o mar nos rijos penedos A quebrar-se com fragor! E eles, mudos atalais A amostrar suas procelas, Enquanto da fúria delas Também zomba o pescador. E quem não sente arroubar-se Su’alma aos risos da aurora A idéia arrebatadoura Que vêem ao surgir do sol! Ao trinar alegre ou triste Dos alados amadores? A essas mimosas cores Do crepúsc’lo, do arrebol! Aos prazeres da frescura Que nos traz suave brisa À fonte que se desliza O prado banhando a prol? Oh! que nisto há poesia, Que penetra os seis d’alma, E poesia que acalma Um penado coração; A poesia que eu sinto, Que me arrouba ao contempla-la, A poesia que fala Mais alto do que a razão Mais alto – que além remonta Desses astros, onde os anjos Entoam com os arcanjos A Deus celeste canção.

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Há sim! E uns olhos volvidos Amedo – e um sim que é dado A um poeta enamorado Que sente ardente paixão, E uns lábios rubros que tremem Quando a sentença proferem, E em vez do sim só desferem Traído, equívoco não; E essas mágoas que se emergem Nascidas da voz fingida Num peito cuja ferida Penetrou té o coração: Há sim! E é isto que eu chamo, Que eu chamarei poesia, Que eu sinto que me extasia Sem que possa definir! É isto. E umas faces murchas No verdor já desbotadas Pelo cismar, maceradas Pelo velar e carpir: E as falas entrecortadas Por um pranto que se chora E um semblante que descora, Que depois torna a fulgir! E as obras miraculosas Que a natureza circudam, E as águas que um terço inundam Do solo – aí também está Mui sublime a poesia Que os seios d’alma me banha, Onde reside e se entranha A idéia de Jeová! Idéia imensa, infinita,

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Toda amor, toda harmonia, Fonte de toda a poesia A maior de quantas há! Sim nisto uma flor singela Que sorrindo desabrocha Às vezes na dura rocha, Às vezes no mole chão; E no riso inocentinho Que mostra à mãe desvelada A criancinha afagada Que ainda não tem razão; E na amizade sincera De duas almas unidas, Que formam não fementidas De dois um só coração. Há também tanta poesia E tanta que a alma me prende! E, vate ou não, quem não rende Mil graças a Jeová! Quem ao ver a natureza De mil prodígios cercada, Não sente a mente abrasada, E um hino não cantará? Cantemos, ó lira! Hosana! Cantemos que a poesia É, em Deus que mais radia É em Deus onde ela está!

Soledade (Recife) outubro de 1855

Volvido= passado de volver = mover para um e outro lado = que volveu ou se volveu; decorrido, passado. Brisa = na época do poeta escrevia-se com z. Zênite = o ponto mais elevado que se pode atingir. Espessura = floresta Languesce = torna-se voluptuoso Prol = prole Fementido = perjuro, que falta à palavra dada, pérfido, ardiloso.

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O Suicídio Deste mundo, que me emb’raça, Vou despir os ouropéis, Vou esquecer para sempre Meus dissabores cruéis. Vou à terra da justiça Saciar esta cobiça Que me inunda o coração, De fruir um gozo eterno, Não esses gozos do inferno Do mundo – que amargos são. Por vezes tenho esgotado A funda taça de fel, Como o ditoso esgotara O cálice de doce mel. Tenho zombado da sorte, Encarando sempre a morte Tal como deve o mortal, Tenho em luta co’os revezes Triunfado muitas vezes, Tendo a fé por meu fanal. Tenho lutado... meu peito Já por fim enfraqueceu! Não posso curvar-me ao fardo Que a sorte iníqua me deu! Vou da vida desligar-me, Para sempre separar-me Deste mundo enganador;

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Vou fugir às amarguras, Trocá-las pelas doçuras Que nos céus tem o Senhor Temerários, vossos juízos De uma só vez suspendei Não profanais os segredos Que no meu peito asilei. Lede a história que não falha, Vereis peitos que a metralha Não temem, rojar no pó, No suicídio buscando Lenitivo certo e brando Ao mal que os oprimem – só. Mas... triste! Quem me assegura Que o peito de um bravo herói Não pode um dia quebrar-se Ao mal intenso que o roi? Quem ousa dizer que um peito À guerra, no sofrer afeito Não quebra um dia por fim? Catão, esse herói romano, Foi bravo, mas era humano, Deixou-se quebrar assim. Imitemos a bravura Que vemos no herói luzir, Mas resistamos aos males, Que ele não quis resistir. Quem sofreu mais dissabores, Quem sofreu maiores dores Que o santo, que o herói de Hus? Quem padeceu mais torturas Por amor das criaturas Que o Nazareno Jesus?

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Não quero morrer, que a vida Não ‘a fiz com as minhas mãos, Hei de dá-la a quem prestou-m’a Que é isto dos bons cristãos Sim, hei de: foi um delírio, Que venha maior martírio, Minha vida Deus a tem, Não me cumpre a mim cortá-la, Que venha o Senhor tirá-la Quando julgá-la por bem.

Olinda , fevereiro de 1856

Fanal = facho, farol, sinal luminoso, guia

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O Voluntário Nas bandeiras flutuantes, Feitas de rosas fragrantes E mais flores do jardim; Meninas! Nessas bandeiras Em vossa, gentis fileiras Venho alistar-me por fim. Recebei os meus serviços, Pagai-m’os co’um dos feitiços Desse olhar que tendes vós; Além de um dócil escravo, Meninas! tereis um bravo, Que há de honrar a seus avós. Ver-me-eis, além do soldado, Um poeta namorado, Um valente campeão! Meninas! farei proeza, Cantando vossas belezas Como Dirceu ou Durão. Inspirai-me: um mago riso Meninas! se eu o diviso... Oh! vereis meu coração Desfazer-se em harmonias Como os céus em melodias, Crepitar como um vulcão!

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Entanto, nos flóreos paços, Onde as flores aos abraços Vos rendem cultos de odor, Em vossas gentis bandeiras Minhas juras verdadeiras Recebei de adorador.

Olinda, 20 de janeiro de 1856

Flóreo = ornado de flores

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Os Compadres Cidadão e Sertanejo Pan, pan, pan! “Batem lá fora!” Pan, pan, pan! “Quem bate aí?” É de paz! “Empurre a porta” Compadre! “Você aqui!” Vim fazer-lhe uma visita, Espairecer no sertão. “Como deixou a comadre? Os pequenos como vão?” “Como deixou a cidade? O que há de novo por lá?” Deixei com saúde a todos Quando parti para cá. A cidade é sempre a mesma, Sempre bailes e função. “Quanto a isto meu amigo, gosto mais cá do sertão.” * * * Na cidade desfruta-se a vida, Que nem pensam vocês do sertão! Esta vida, que aqui é vivida, Não é vida que valha um tostão! Na cidade é que a vida se passa, Na cidade é que tem-se prazer; Esta vida do centro é escassa: Eu não quero no centro viver.

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“Vida boa só é esta nossa, a da praça não vale um vintém! Eu não troco esta vida da roça Pela vida que lá vocês têm. Não, não quero viver lá na praça; No sertão é que tem-se prazer; Na cidade é que a vida é escassa: Na cidade eu não quero viver.” Na cidade se gozam delícias, Que nos enchem o peito de amor! As donzelas nos fazem carícias, Que nos matam de morte sem dor! Oh ditoso quem vive na praça! O viver do sertão é morrer! Esta vida do campo é escassa: Eu não quero no campo viver. “Também temos donzelas formosas E mais lindas, talvez, que as de lá, Tão santinha, meu Deus, tão mimosas, Como estas, que nas praças não há! Eu não creio na vida da praça, Disse, digo, hei sempre de dizer; No sertão é que a vida se passa: Na cidade eu não quero viver.” Temos bailes, teatros, partidas, Temos tudo que pode agradar; Vão as horas voando entretidas Nessa vida donosa a bailar. Nossa vida desliza com graça, Como a fonte perene a correr! Esta vida do mato é escassa: Eu não quero no mato viver.

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“Também temos aqui nossas festas, Nossos sambas, batuques, funções; São, talvez, que as de lá mais honestas Estas danças aqui dos sertões. Nossa vida é que mana e que passa Como aquele riacho a correr! Eu não quero essa vida da praça: Na cidade eu não quero viver.” Na cidade tomamos sorvetes E jantamos nos gordos hotéis, Onde em vez de feijões, de vinhetes, Encontramos champanha e pasteis. Tudo aqui é miséria, é desgraça, Na cidade é que tem-se prazer; Esta vida da roça é escassa: Eu não quero na roça viver. “No sertão nós comemos coalhada E o bom leite, co’o loiro cuscuz. Boa carne sal-presa que assada Tenta mais que o inimigo da cruz. O jir’mu se co’o leite se amassa, É tão bom que eu nem posso dizer! Isto, sim, que não comem na praça: Na cidade eu não quero viver.” “Sim, não quero, que é vida mesquinha Essa vida que passam por lá: Quero leite comer com farinha E co’a carne sal-presa de cá. E quem troca o sertão pela praça?! De verdade, isto estava pra ver! Na cidade só vejo desgraça: Na cidade eu não quero viver.”

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Na cidade nós temos vestidos Que nos cortes só tem-n’os os réis, São dos mais delicados tecidos, E nos levam bons contos de reis! Temos tudo que é bom lá na praça, Lindas coisas que podem-se ver; Não é como aqui nesta desgraça! No sertão eu não quero viver. “E nós temos gibões e perneiras Dos veados do nosso sertão; Temos roupas também domingueiras, Não só essas que são de algodão Não invejo essa vida que passa! Pois é morte essa vida da praça: Na cidade eu não quero viver.” Na cidade nós temos orquestra, Tem-nas boas qualquer batalhão; Minha filha ao piano é já mestra, Discorrendo o teclado co’a mão! Só assim é que a vida se passa, É só isto o que eu chamo prazer! Esta vida do centro é escassa: No sertão eu não quero viver. “Nossa orquestra do mato é mais bela: Veja as aves que estão a cantar! Minha filha, mimosa donzela, Assim canta também a bordar! Isto, sim, tem delícias, tem graça! Isto, sim, é que eu chamo prazer! Essa vida de lá não me engraça: Na cidade eu não quero viver.”

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Namoramos no baile, às janelas, E colhemos mil frutos de amor! Quantas vezes das pálpebras belas Brilha um pranto chorado sem dor! Dessa vida meu peito se engraça, Nessa vida é que eu sinto prazer! Porém esta do centro é escassa: No sertão eu não quero viver. “Também temos de trás do umbuzeiro Nossas falas ocultas de amor, Nosso belo tijolo roceiro, Que respiram candura e pudor! Se de nós a mocinha se engraça, Ai que zelos! Que amor! Que prazer! Isto sim, que não tem lá na praça: Na cidade eu não quero viver.” Na cidade prestamos contritos Culto externo pomposo ao bom Deus, Que há de um dia fazer-nos benditos, Separados dos ímpios e ateus. Mas no centro que gente tão crassa... Que não sabe sequer se benzer! Esta vida, meu Deus, não tem graça: No sertão eu não quero viver. “Esse culto é que torna precito... Que corrompe mais de um coração, Que ante Deus não se prostra contrito, Que vai nele buscar distração. Consagramos a Deus culto e graça Fervorosos quais devem de ser; Mas não esse fingido, que é farsa: Na cidade eu não quero viver.”

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“Vão à igreja ouvir missa? Duvido! Vão fazer oração? – Qual orar! Deus a tudo tem prestos ouvidos, Sua fé não se pode enganar. Nas cidades o culto não passa De irrisão – bem o posso dizer – E esse culto – é torpeza é negaça! Na cidade eu não quero viver.” Pois eu gosto e só quero a cidade. “Pois eu gosto e só quero o sertão.” O que aqui mais se vê? – bestidade. “E por lá? – só mentira e traição.” Pois eu vou desfrutar minha praça. “E eu aqui viverei ‘té morrer.” Na cidade é que a vida se passa. “No sertão é que serve o viver.”

Olinda, 1856 Pois me aparece agastado?... “Se o vejo tão cabeçudo!...” Pois outro abraço apertado... “Na verdade acaba tudo.”

Vinhete = vinho fraco Negaça = engano, logro, mostra ilusória. Precito = condenado, maldito, réprobo. Irrisão = ato de zombar, mofa, zombar com desprezo Jirimu = jerimum Tijolo = namoro (gíria)

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Palinódia Disse que não te cria: - foi mentira; Que eram vãos meus amores: - foi loucura: Perdoa a mente enferma que delira, Que a delonga cruel punge e tortura. Quando me lembra que a ficção de Tântalo Eu hei realizado em minha vida; Que cada dia mais formosa e cândida Eu te contemplo, em vão, minha querida! Quando me lembro desse amor tão sôfrego... Firmado sobre as bases da ninoscência, Que eu tanto quero do meu peito no íntimo Com tanto ardor, com tanta veemência... Quando me lembro das penosas fráguas Que o septênio cruel me tem causado, Das rugas que na fronte há produzido-me Esse espaço sem fim, por mim marcado!... Oh! que então contra mim bravejo em cólera, Maldizendo esse passo irrefletido; Gemo e derramo copiosas lágrimas, Julgo tudo no mundo haver perdido. Eis porque de meu peito lacerado, Onde o mais santo amor tenho acatado, Saíram vãos queixumes; Porém vê neles, nos meus ais e pranto Incensos que te envolvem, meu encanto, E suaves perfumes.

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Em que me hás ofendido, tu que és pura Como o aroma da flor que o sol depura, Que ao céu conduz a brisa? Que és bela e meiga como tu somente, Como teu riso cândido, ninocente, Que tanto me eletriza? Descrer do teu amor, tu crês que eu possa? Não é ele que o meu viver adoça No meu longo martírio? Perdoa esse momento de loucura, Filho da ausência mais amarga e dura, Perdoa o meu delírio. Perdoa-me. Bem vês que arrazoado Não pode ser um peito lacerado, Aos recontros da sorte. Perdoa-me. Serás a minha estrela, Meu anjo e meu amor, – sim, minha bela, Na vida e mais na morte Disse que não te cria: - foi mentira; Que eram vãos meus amores: - foi loucura: Perdoa mente enferma que delira, Que a delonga cruel punge e tortura.

Recife, 1858

Palinódia = retratação de um poema daquilo que se disse noutro Recontros = embate Setênio = septênio = período de sete anos Bravejo = esbravejo.

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Por Que Será Tão bela! – assentada na branda esteirinha Constante a coser; Dos olhos lhe mana diáfano pranto Em fio – a descer: Que sente – que sofre – que vive chorando Sem nada dizer? Às vezes conversa, diverte-se e ri-se A só se entreter; Não cisma, não chora; porém depois muda E o pranto a correr! Que sente – que sofre – que ri-se – que chora Sem nada dizer! Seus braços lançados no colo do triste Que vive a gemer, Não diz o que sente – não diz o que sofre E o pranto a correr! E o colo me cresta co’o pranto divino, E eu todo a tremer! Acaso dirige-se a mim a ventura Do teu padecer? Oh! não: a mim nunca, não sou tão ditoso, Pois vivo a gemer! Teu peito de neve – tão casto – por outrem Só sabe bater!

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Se o colo me abraças, aos laços de sangue Sei isto dever; Mas dize, declara... teu pranto divino Eu posso conter: Por mim... venturoso! por outrem, teu pranto Eu posso suster. Que vezes, Maria, me sinto por dentro Em chamas arder Que vezes desejo fitar os teus olhos E o peito a gemer! Mas tudo não passa de francos desejos... Cismar... escrever...

Maranhão, 1852

Mana = brota, corre

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Recordações Teatrais Às vezes, refletindo, em minha rede, Eu gemo, eu choro, eu rio, ai que é assim As loucuras dos outros, gemo e choro, Das loucuras que eu faço, rio, enfim. Misantropo não sou, nem um coitado Que o mundo olha, porém não no vê: Daqui de minha rede, em que me embalo, Meu solto pensamento indaga e lê. Ao teatro se vou, perco a saúde, E nele penso noites sem dormir, Porque lá vi um anjo pelo espaço A voar como a rola, a se expandir. Dois dias, pelo menos, meus ouvidos Ferem as palmas que a platéia deu, Palmas tão justas que, esposando bravos, Para o gênio foram só, que as mereceu. Mas quantas palmas na platéia soam E quantos bravos prolongados vão Em vaso impuro queimar vil incenso À lascívia, à fatal devassidão! Noto as virgens pudicas ocultarem O lindo rosto no seu lenço ou véu, Se o anjo que no palco dança e pula Suas formas mostrou, mas sem labéu!

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E eu que sei que os mil bravos se desprendam Por um idéia deleitosa e ruim E eu que sei que as donzelas se velaram Não por pejo ou pudor, - por luxo sim: Voltando penso em tudo... e me deleito! Gemo e choro, afinal, rio de mim!

Recife 1856

Solto = livre Labéu = desdouro, desonra, mancha inflamante.

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Saudade Filial Quando me lembro dos passados tempos Desse viver d’outrora que provei... Viver tão puro! – qual frui ao lado Dos pais queridos, que inda em bem verei; Minh’alma triste se desfaz em notas De dor pungente, de febril sofrer! Pois nada me inquieta neste mundo Como distante de meus pais viver. Chamai embora desgraçado aquele Que viu seus anos no verdor crestar; Ou que no peito da mulher querida De amor as rosas viu por fim murchar; Chamai embora sem ventura aquela Que passa os dias a arrastar grilhões Ou que proscrito por falsários crimes Suporta a pena de cruéis mandões; Chamai embora malfadado aquele Que a vida leva praticando ações, Que um prêmio devem merecer, e alcançam, Em vez de prêmio, de louvor, baldões: Eu, porém, malfadado chamo ao filho Que as mãos nunca beijam dos caros pais; Que no leito de dores nunca teve Da terna e doce mãe, sentidos ais.

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Ah! nomes doces, que no peito calam Sentir profundo que eu não sei dizer! Deus não permita que dos pais que adoro Distante morra sem ainda os ver! Desprezo as pompas que ligeiras passam São transitórias como os gozos são, Os gozos, digo, que corrompem a alma, E nesses gozos eu não creio, não. O mundo mente no falar de engano, Mente a donzela no sorrir de amor; No trato amigo, muita vez o amigo Esconde um peito desleal, traidor. Sim, tudo mente, - só não mente o extremo Do amor materno, desse amor de pai; Qual a virtude, dentre o crime horrendo, Sem mancha, ileso da mentira sai. E quando eu penso nos passados tempos, Nessas breves delícias que provei... No viver doce que fruí ao lado Dos pais queridos, que inda em bem verei; Minh’alma triste se desfaz em notas De dor pungente, de febril sofrer! Deus não permita que dos pais que adoro Distante morra sem ainda os ver.

Soledade (Recife) 20 de agosto de 1855

Arrostrar = arrostar Baldo = carecido, falto, baldado, inútil.

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Sem Verbo Eis, por conseguinte, debaixo desses diversos pontos de vista, só pela propagação deste novo gênero de estilo nas escolas, senão progresso para as ciências, e talvez mesmo a desaparição desses epítetos aviltantes de louco, de visionário, de original e de uma crítica acerba contra o autor; e da mesma forma a cessação desses sarcasmos e desse afetuoso cinismo. (Herautl – professor em Montaigne) Pobre do bardo Minha querida, Sem tua vida, Sem teu amor: Contigo – amante Feliz - ditoso Sem ti – cuidoso - Sem ti – que dor! Antes a morte Sobre meu peito, Que o triste efeito De idéia tal; Junto a teu lado, Prenda mimosa. Que vida hermosa. Celestial! Que luz, que brilho, Nos teus formosos Olhos graciosos D’alma fulgor! Triste do bardo

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Sem os teus belos Olhos singelos. De tanto amor! Nos curtos lábios Da cor da rosa, Que dulçurosa Vida de amor! Na meiga face Da cor da neve. Que toque leve D’alma rubor! Pobre do bardo, Minha querida, Sem tua vida, Sem teu amor: Contigo – amante Feliz – ditoso - Sem ti – cuidoso - Sem ti – que dor! Tristonho, amante, Sem ti, meu pranto, Ai! quanto e quanto Dos olhos meus! Ai minha amada Doce, sensível, Vida frenével - Longe dos teus. Ah! meus suspiros Dentro em teu seio! Que terno enleio Junto co’os teus! Mas ai do bardo,

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De triste amante, Tão só – distante Dos mimos seus! Adeus, ó bela, Anjo perfeito, Neste meu peito, Que aguda dor! Adeus amável, Doce menina, Virgem bonina, Meu grato amor! Pobre do bardo, Minha querida, Sem tua vida, Sem teu amor: Contigo – amante - Feliz – ditoso - Sem ti – cuidoso- Sem ti – que dor!

3 de janeiro de 1855 Bardo = trovador, poeta Frenevil = que tem frenesi, impaciente, agitado, convulso, delirante

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Psiu! Psiu! dê-me um beijo Linda mocinha! Linda mocinha Diga se dá? Não conte o beijo, Não diga nada, Não diga nada Pra seu papá. É coisa simples Ceder um beijo! Ceder um beijo Pode você. Nada mais simples! Um beijo tome! Não ria! – tome, E outro me dê. Ora não fique! Tão pudibunda! Tão pudibunda Como um rubim! Ora não fique Não core tanto! Não core tanto Por pouco assim!

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Eu lhe protesto... São graças minhas, São graças minhas, São... e bem são... Sim, lhe protesto... Mais outro beijo! Mais outro beijo Não faz mal, não.

Olinda, 9 de janeiro de 1856

Pudibunda = que tem ou revela pudor, corada, rubicunda

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Um Mexerico Olhe que eu digo... Zomba comigo? Meu pai! “Cabeça oca, Cala essa boca!” Ai! ai! - Senhor, que cousa! - Ninguém repousa! - Que foi? Era... “caluda!” Que unhada aguda! E dói! “São cousas dela, Mãesinha bela, São sim;” “Quem acredita Numa gasguita Assim?” - Ah! se eu tivesse - Quem me dissesse - Se alguém - Que ali estava - Me atraiçoava.. - Mas quem? –

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“Quem acredita Nesta gasguita?” Não eu!” Era... não digo; Buliu comigo, Me deu. “Oh! deus te ajude!” Fiz quanto pude, Fiz bem? “Oh! muito bela, Tu, depois dela, Meu bem.” “Foi somente isto, Juro-o ... por Cristo!” Que é? Quem assim jura Também, perjura À fé! Uma terceira Moça fagueira Assim, A vez chegando, Esteve falando Pra mim.

Olinda, 1856

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Vou Cantar Oito horas Noutro horizonte raiava O claro sol; Doce a lua refletia Os raios que ela fundia No seu irisol. Era a noite beleza e tanto Que logo inspirou-me um canto Pra alívio meu; Pois que o poeta sem lira Certamente sucumbira Ao fado seu. Sucumbira, - que há momentos Que geram padecimentos, Tamanha dor, Que somente se cantando Vão-se os males mitigando Do trovador. Porém Deus que assim formou-nos, Que tão sensíveis criou-nos, Também nos deu O condão da poesia Que ao vate tanto alivia No penar seu.

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Qual o cantor que emudece Quando à noite lhe aparece Certo cismar?... Qual o poeta que olvida Esse momento na vida Do belo olhar? É doce tirar da lira Uma nota que suspira, Que lembra amor, É doce entoar um canto Passado de terno pranto Que abrande a dor. Sim – que a lembrança de uns olhos Que atiram setas a molhos Lá onde estão; Constante arrocha-me o peito! Ah! são das setas o efeito No coração! Saudoso efeito que gera Um sentir que eu não o dera Por outro, não; Um sentir que dentro n’alma Se expande tanto que acalma Meu coração! Hei de cantar que meu peito Só se consola de feito Com o cantar; Hei de cantar que minh’alma Só está tranqüila e se acalma Com o trovear.

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Sim, hei de, que é bom da lira Ouvir-se um som que suspira Que lembra amor; Um som que revele um canto Passado de terno pranto Que abranda a dor.

Irisol = irisado, matizado com as cores do arco.

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J Coriolano: Breve ensaio biográfico

Ingratidão que desama, grande ingratidão é, mas a ingratidão que chega a desconhecer, é a maior de todas.”

Padre Antônio Vieira

José Coriolano de Souza Lima (1829 - 1869), ou “J. Coriolano”. Você leitor (a), por algum acaso, já leu ou ouviu falar algo a respeito desse nome? Logicamente que a resposta majoritária será um sonoro e uníssono NÃO! Pois bem, com relação aos primórdios e das possíveis origens mais remo-tas - pelo menos quanto da etimologia do nome “Coriolano” - o escritor e poeta Raimundo Cândido Teixeira Filho nos ventila a seguinte informação:

É provável que a estirpe dos Coriolanos provenha do lendário general Caio Márcio que recebeu a alcunha de Coriolanus, por se distinguir na batalha do Lago Regillus, no cerco da cidade Coriolli, povoada por gente antiquíssima chamada Volscos, eternos adver-sários de Roma nos primeiros tempos. Contam que os irmãos gêmeos, Castor e Pólux, ajudaram imensa-mente aos romanos, liderados por Coriolano, a obter êxito nessa importante batalha.1

Entretanto, os dados mais fidedignos acerca das origens e da árvore genealógica do Poeta, são aqueles pinçados dos meticulosos estudos tra-çados pelo seu trineto Ivens Roberto de Araújo Mourão, que dispõe de grande planilha com os nomes ascendentes, descendentes e colaterais do estimado poeta. Pois bem, o mundo ganhou Coriolano de presente no dia 29 de outubro de 1829, na Fazenda Boa Vista, a qual lhe inspirou um dos mais lindos versos: “(...) num massapé torrado e brusco / Nasceu o valoroso touro fusco.”Essa fazenda, estava situada na Vila do Príncipe Imperial (hoje cidade de Crateús no Ceará) uma bela cidade sertaneja a beira do caudaloso Rio

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Piranhas (hoje nominado Rio Poti). É salutar que se frise, que quando o Poeta surgiu, sua Vila Príncipe, ainda era condado de solos piauienses. Em 1880, a região começou a fazer parte do Ceará, por conta da troca de parte de seu litoral ao Piauí. Eis o motivo pelo qual nosso poeta, é tratado nesse escrito, como duplo cidadão.

Ali, num mundaréu desabitado da Fazenda Boa Vista, no benéfico ano de 1929, calcinado pela terra, moldado pelo vento, forjado pelo fogo e esculpido pelas águas majestosas do Poti, emerge um grande poeta, só comparável ao grandessíssimo Gonçalves Dias, para fazer nascer a poesia por aqueles rincões distantes de Crateús.2

Essa região foi fortemente habitada pelos índios da etnia Carateús, e é considerada, geograficamente como uma das cidades abrangidas pelo Grande Sertão Nordestino. Quanto ao amor doentio e as peculiaridades de sua terra, o nobre poeta se derrama:“Lindo Sertão, meus amores / Crateús, onde nasci / Que saudade, que rigores, / Sofre meu peito por ti!/ São amargos dissabores / Que em funda taça bebi! / Que saudade, oh meus amores, / Crateús, onde nasci!”.

J. Coriolano foi o caçula de 7 (sete) filhos do casal Gonçalves Correia Lima e Anna Rosa Bezerra. Graças ao empenho e das pesquisas genea-lógicas desenvolvidas pelo meu tio-avô Raimundo Raul Correia Lima3 e prosseguida pelo pesquisador, historiador e genealogista Ivens Mourão, podemos ter a informação de que J. Coriolano é descendente de Alexan-dre da Silva Mourão (1720), o “primeiro Mourão cearense”. Desta feita, possui laços consanguíneos com outro monumento da literatura mundial, Ge-rardo Mello Mourão4 (1917-2007), considerado por uns, o maior poe-tado século XX e um dos poucos brasileiros indicados ao Prêmio Nobel de Literatura (1979); além de diversos outros nomes valorosos da litera-tura regional, que foram integrantes ou não, do clã Correia Lima.

Quanto da infância, J. Coriolano, relembra no poema ‘Crateús’:

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... terra, onde a alvorada Primeira pra mim raiou! Onde a primeira morada Meu pai querido assentou! Onde o galo, à madrugada Cantando me despertou! Onde à primeira alvorada Ouvi-lhe o có-corô-cô!

Ainda sobre a envergadura literária de Coriolano, Raimundo Cândido decreta:

Com o surgimento do livro Impressões e Gemidos, publicação fei-ta por fiéis amigos, José Coriolano, a maior figura do romantismo piauiense e crateuense, faz com que a literatura do Piauí deixe de ser um mero produto português, para ser algo genuinamente nacional, pois cultivava um compromisso com raízes locais, através de um sentimento nativista que passou a fixar teluricamente a paisagens e a alma da gente piauiense. Por isso foi consagrado o Príncipe dos Poetas naquele estado.5

O membro permanente da Academia Piauiense de Letras Francisco Miguel de Moura, em seu artigo ‘J. Coriolano - patrono da literatura do Piauí’ corrobora com esse pensamento acrescentando que J. Coriolano não fora somente “Príncipe” como também fundador da literatura piauiense:

Ícone da nossa literatura, diria mesmo que, com seu livro póstumo Impressões e Gemidos, de 1870, torna--se o fundador da literatura piauiense. Antes dele, pra-ticamente não havia instituto da literatura em nosso meio, como conhecemos hoje, pelo menos com tan-tos autores e livros, e, sobretudo, leitores e estudiosos.

Porém, essa afirmativa encontra oposição na declaração do pesqui-sador Cláudio Carvalho Fernandes, que em seu trabalho intitulado de: ‘Surgimento e Desenvolvimento da Poesia no Piauí’, o mesmo traça um detalhado

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histórico dos primeiros trabalhos poéticos realizados por piauienses, in-clusive dividindo sua tese em fases:

Vejamos o que afirma Fernandes:

Foi sob o signo da poesia que a literatura surgiu no Piauí, com a obra “Poemas”, de Ovídio Saraiva de Carvalho e Silva, primeiro poeta piauiense, sendo publicada no ano de 1808, em Lisboa, como produto da sociedade cultural portuguesa, nada tendo de piauiense além da origem de seu autor, que nasceu na antiga Vila de São João da Parnaíba, em 1787. Por sua família ser abastada, fez seus estudos em Portugal, bacharelando-se em Ciências Jurídicas pela Universidade de Coimbra. (Grifo nosso)

Nessa fase, ao qual o pesquisador nominou de 1ª Geração, ele a sub-divide em 2 (duas) subfases, a Neoclássica (1808-1870) e a Romântica (1870-1889). A primeira seria representada pelos escritores Ovídio Sa-raiva de Carvalho e Silva e Leonardo de Nossa Senhora das Dores Castelo Branco de Carvalho. Já a segunda, teria como expoentes os seguintes no-mes: José Coriolano de Souza Lima, Hermínio de Paula Castelo Branco, Theodoro de Carvalho e Silva Castelo Branco, Joaquim Ribeiro Gonçal-ves, Luiza Amélia de Queiroz Brandão e Lycurgo José Henrique de Paiva.

Visto isso, embora defenda a tese e transfira a outro escritor, a honra de ter fundado a literatura piauiense, Fernandes reconhece a importância e a robustez da obra de Coriolano:

A literatura no Piauí deixou de ser um produto por-tuguês com o surgimento do livro “Impressões e Ge-midos”, de José Coriolano de Souza Lima, a maior figura do romantismo piauiense, cultor de significa-tivo compromisso com as raízes locais, através de um sentimento nativista que passou a fixar teluricamen-te as paisagens e a alma da gente piauiense.

Em artigo, outro entusiasta e pesquisador da vida de Coriolano, Jú-nior Bonfim, lucidamente assevera:

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Aclamado Príncipe dos Poetas Piauienses, é considerado o talhador da pedra fundacional da literatura Piauiense. (...) José Coriolano é a ma-terialização inconteste dessa assertiva bíblica. Nascido entre as babu-gens destes solitários torrões, na fazenda Boa Vista, quando Crateús era conhecida por Vila Príncipe Imperial, resplandeceu nos cerimoniosos espaços em que pontificavam os luminares da cultura nacional. Co-riolano foi um fidalgo das letras que construiu uma obra impagável e inapagável de devoção às maravilhas Divinas, de paixão pela Natureza e por todos os animais, de modelar sintonia com a mulher amada, de culto aos altos valores da Justiça e da Liberdade!

Quanto da sua vida privada, estudos dão conta de que na primeira década de vida, J. Coriolano apaixonou-se cegamente por sua sobrinha Maria Cisalpina Correia Lima (1837-1894) de tenros 2 (dois) anos de idade. Encontro esse, que incitou a feitura dos seguintes versos: “eu con-tava dous lustros, tu dous ano / Quando nosso himeneu foi resolvido”. Com esse amor arrebatador e sanguíneo, não deu outra. Casaram-se em 24 de janeiro de 1859; quando Coriolano se encontrava no último ano como acadêmico de Direito. Logo depois, o casal é agraciado com a vinda de sua primogê-nita, no dia 26 de outubro. Nessa época, o poeta Coriolano dividia a vida entre seu eterno amor, seus estudos acadêmicos e sua produção literária. Fontes não muito exatas dão conta de que o casal tivera 5 (cinco) filhos, a maioria com destino não muito bem-aventurado, ou seja, perecendo antes mesmo de chegar à fase adulta. Eram eles: Maria Gerson, Ana Rosa, Joana Coriolano, José Coriolano e Josefa Coriolano de Sousa Lima.

Na vida profissional, como não poderia deixar de ser, ofereceu grande préstimo à sociedade exercendo com enorme esmero as carreiras públi-cas de jurista e político. Retrocedendo um pouco nos fatos, é bom que se diga que nos idos do ano de 1854, na cidade de Olinda, no estado de Pernambuco, o poeta concluía, sem grandes percalços, seus estudos ini-ciais em Humanidades. Esse preparatório era um dos requisitos primor-diais que antecipava o ingresso dos pretensos candidatos a uma vaga na conceituada Faculdade de Direito em Recife6. Fato esse, que ocorreu no ano subsequente. A famosa e também chamada de Escola de Recife, foi o maior berçário de intelectuais e pensadores e de onde nasceu as Ciências Sociais do Brasil.

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Logo no primeiro ano de faculdade, teve de lhe dá com substantivas perdas de amigos próximos, compondo inúmeros poemas de título Nê-nia7, que significa canto fúnebre em homenagem aos recém-falecidos.

Vejamos um breve trecho de um poema que o Poeta confeccionou quando da morte de seu patrício e amigo estudante J. Pires Ferreira:

Mas não - que o sol noutro diaVolta, luz, torna a viver;Assim há de à lousa friaO espírito sobreviver.Basta, lira; basta, pranto;Nem mais lágrimas, nem canto,Que talvez se ofenda o céu.- Vida! Morte! Eternidade!Mistério da divindade,Quem pode rasgar-te o véu?

Nas férias da faculdade, era muito comum J. Coriolano aproveitar o seu tempo para dedicar-se à sua vida familiar ou à literatura. Em 6 de dezembro de 1859, é conferido ao poeta o grau de Bacharel em Ciências Sociais e Jurídicas pela renomada Escola de Recife. Nessa mesma época, é eleito para o primeiro mandado como Deputado Provincial pelo estado do Piauí, por homologação do3º círculo eleitoral.

Seguindo sua carreira política, durante a sessão legislativa de 1865, J. Coriolano, é eleito pela segunda vez, deputado provincial, só que dessa vez ocupando a honrosa cadeira de Presidente da Egrégia Casa legislativa. Em 1866, o parlamentar Coriolano, devidamente alocado como Magis-trado em Pastos Bons/MA, abdica dos seus 23 votos concedidos, espon-taneamente, pelos seus pares. Essa nobre atitude tomada se deu, para não prejudicar um amigo, que acalentava pretensões a uma vaga como Deputado à Assembleia Geral.

Em nota, no jornal teresinense A Imprensa, J. Coriolano, se mostra surpreso e agradece a expressiva votação:

Lendo na “Imprensa” de 3 de fevereiro do corren-te ano, nº 28, o resultado da apuração de votos da

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eleição a que se procedeu nessa província para um deputado geral, vi que me haviam honrado com 23 votos. Pois bem: declarando a quem me ler que esta-va longe de supor que me dessem um voto, porque não tive a ideia de preterir nesse sufrágio a muitos patrícios que me precedem em serviços e inteligên-cia, devo, todavia, assegurar a esses amigos que me distinguiram com os seus votos, que muito e muito os estimo e agradeço: 1º) porque de modo algum embaciaram o triunfo de meu ilustrado patrício e parente, o Exmo. Sr. Dr. Antônio Borges Leal Castelo Branco; 2º porque foram voluntários e inspirados.

Pastos Bons, no Maranhão, 6 de maio de 1866.

Como jurista, também, não deixou por menos. Sua vida profissional era fortemente marcada pela oscilação de cargos entre as atividades políticas--legislativas e judiciárias. Enquanto Vice-presidente da Assembleia Legislati-va, em meados de 1860, Coriolano se retira para a comarca de Piracuruca/PI, para assumir a nomeação de Promotor Público da cidade. Em março de 1863, Coriolano assume a chefia do juizado municipal de Codó na provín-cia do Maranhão. Dois anos depois, por força do Decreto de 1º de maio de 1865, José Coriolano fora nomeado Juiz de Direito da comarca de Pastos Bons, também no Maranhão. Infelizmente, sua atuação como jurista e até mesmo como político, ainda são muito pouco estudadas. Para não dizer que o Estado fora totalmente insensível e omisso a obra do ditoso poeta, é justo dizer que em 1870, graças ao empenho de seu pai e alguns amigos de Coriolano, fizeram o vate se encorajar para publicar algumas de suas po-esias. Essa obra teve o nome de Impressões e Gemidos. A ideia era publicar seus escritos em dois volumes. O Governo do Piauí bancou a primeira tiragem do primeiro volume. O segundo, por conta do boicote as ideias republi-canas do Poeta, o governo decidiu não mais publicá-lo. Por esse motivo, nunca mais foi publicado, nem por conta própria, nem por apoio oficial. Quase um século depois, nos idos do ano de 1973, o Governo piauiense, na gestão do Engenheiro Civil Alberto Tavares Silva, publicou a reedição de seu único livro Impressões e Gemidos, só que desta vez, contando com o título Deus e a Natureza em José de Coriolano.

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Nesse diapasão, advogado e escritor Júnior Bonfim, acrescenta:

O apelo final do conceituado órgão de imprensa quedou-se insufi-ciente para evitar que cerca de cento e trinta poesias inéditas de José Coriolano sumissem no cânion do tempo. Apenas dois livros seus foram à linotipia: ‘O Touro Fusco’, concluído em 22 de fevereiro de 1856; e ‘Impressões e Gemidos’, publicação póstuma de 1870 viabilizada através de amigos seus. 8

Em meio a toda essa conturbada vida profissional, o azafamado Poeta, ainda arranjava tempo para atuar como acadêmico e jornalista, veiculan-do suas poesias e notas de cunho político ou jurídico de interesse público em jornais, bem como participando de Revistas Acadêmicas ou Literárias. Teve trechos de suas obras publicadas em veículos impressos, tais como: Ateneu Pernambucano, Ensaio Filosófico, Revista Acadêmica, Arena, Íris, etc.

É chegado então, o inescusável momento do chamado celestial final: o apocalipse do ser individual. Depois de tanto, e em certa medida já ter extrapolado todos os cumprimentos de suas obrigações e deveres, possí-veis e inimagináveis, como um cidadão exemplar e diferenciado; Deus, o Senhor Supremo de todo o universo, convoca o J. Coriolano para o Rei-no Celestial, atravessando assim, o portal, que reparte a enfadonha vida terrena, para a camada superior da imortalidade nos céus, onde tudo é perfeito as ruas são de ouro e onde as fontes emanam leite e jorram mel, a destra do Senhor

Nessa altura, encontrava-se já há 4 anos como zeloso Juiz na cidade Pastos Bons no estado do Maranhão. Contando com seus exatos 40 anos e importunado por uma grave congestão cerebral, o Poeta se dirige a cida-de próxima de Caxias, sendo medicado pelos facultativos D. F. de Gouveia Pimentel Beleza e R. Mendes Viana. Ainda sim, vendo que os fármacos não haviam surtido muito efeito e antevendo o pior, ao escritor, é pres-crito o regresso ao seu berço que tanto amou, no intuito de ficar próximo aos seus, gozando de ar fresco e relembrando as paisagens de sua infância

Seu primo, o Dr. Manuel Ildefonso de Souza Lima, foi um dos primei-ros a noticiar para amigos, o tombamento do agora, imortal, poeta:

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Príncipe Imperial, 26 de agosto de 1869 - dou-lhe a tristíssima notícia de ter falecido ontem pela manhã o nosso amigo José Corio-lano. Agravando-se os seus incômodos, em virtude de uma constipa-ção que apanhou, sobrevieram-lhe males tais que dentro de dois dias deram cabo de sua existência! Chego neste momento de seu enterro, e sabendo que o correio está próximo a partir, faço-lhe esta apres-sadamente, sem tempo para dirigir-lhe a outros amigos. O nosso amigo faleceu como uma criança, sem fazer o menor movimento e sem ser visto pelas pessoas que estavam em seu quarto. Não estava presente o vigário Macedo; mandamos a Independência e Vertentes convidar os padres Ricardo e Galvão, e nem um deles veio: o primeiro por motivar incômodos e o segundo por estar doente, de sorte que o nosso amigo não teve encomendação alguma.

Na mesma linha, o Jornal Piauiense O Liberal, edição Nº 35, assim co-

municou a sociedade piauiense seu passamento:

O Dr. José Coriolano de Souza Lima, juiz de direito da comarca de Pastos Bons, na província do Maranhão, acaba de falecer na vila de Príncipe Imperial. Quis a providência que, depois de uma peregrina-ção de muitos anos, ele fosse deixar os ossos na terra do seu berço, ao lado de seus progenitores, lá onde pela primeira vez a esperança lhe sorriu, nos lábios puros da virgem que tanto amou, e depois foi sua esposa. Havia já alguns meses que o anjo da morte adejava-lhe em torno, e segredava ao coração de seus amigos palavras d’além túmulo. Mas, por fim, parecia que a saúde voltara a garantir por mais tempo a existência do ilustre magistrado. De Príncipe Imperial escrevia o Dr. José Coriolano, pouco antes de morrer, a um seu amigo desta capital: passo os dias contente, bebo leite suculento das vacas destes sertões, banho-me nas águas cristalinas do açude, respiro o ar puro de minha terra - que vida, meu amigo!

Não se tem notícia do estado real (nem é relevante, pois presume-se que a consternação tenha sido geral) da sua esposa, nem de amigos e parentes, dos detalhes do velório, nem quem, nem quantas pessoas com-pareceram a solenidade fúnebre. Seus restos mortais, hoje, se encontram em urna funerária, bem na entrada principal, a esquerda da Igreja Matriz

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de Crateús/CE, a Catedral do Senhor do Bonfim. No dia 30 de novembro de 1947, num domingo, em missa solene, o Pe. José Maria Moreira do Bonfim abençoa a lápide. Certa feita, também, conta a crônica crateuense, que o poeta Gerardo Melo Mourão, aportou na cidade para receber o títu-lo de cidadão honorífico na Câmara dos Vereadores. Quando saiu, ao fitar os olhos esbugalhados onde havia o busto de J. Coriolano, num súbito de trágico desespero, ergueu os braços, rumo ao espaço vazio e clamou firme: “MEU POVO, CADÊ O JOSÉ CORIOLANO!?”.

Como cenas do próximo capítulo, graças a um consórcio puxado por alguns dos “Querubins” de Coriolano, a cidade pôde dar outro impor-tante passo no resgate da memória do estimado poeta. Seu busto foi con-feccionado e recolocado ao lado da Igreja Matriz, graças a iniciativa da Academia de Letras de Crateús, principalmente, na pessoa de Edmilson Providência, Flávio Machado e Raimundo Cândido. A façanha contou, também, com a colaboração do Poder Público e de vários conterrâneos como diversos populares, artistas, entusiastas, intelectuais e autoridades, como o Prefeito Dr. Carlos Felipe e o Dr. José Arteiro Goiano (do Ministé-rio Público) e de Ivens Roberto de Araújo Mourão, trineto do poeta, que na oportunidade, doou um manuscrito original de José Coriolano para a Academia de Letras da cidade.

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Notas Bibliográficas e Explicativas1TEIXEIRA FILHO. Raimundo Cândido. Cratheús: do portão da feira aos galos

da torre. Fortaleza; Premius, 2012, página 117. 2TEIXEIRA FILHO. Raimundo Cândido. Ob. Cit. pg.119.3Raimundo Raul Correia Lima nasceu no dia 29 de janeiro de 1912,

Crateús/CE. Filho de José Amâncio Correia Lima e da educadora Amália de Souza Lima. Foi professor, escritor, genealogista e prefeito em várias cidades do Ceará, como Uruburetama, Aurora, Icó, Baturité, etc. Foi um dos grandes responsáveis no resgate da vida de Coriolano, com impor-tantes dados no seu livro Meus Avós (1982). Infatigavelmente, percorria bibliotecas, cartórios, arquivos públicos e particulares, igrejas, realizando entrevistas, principalmente junto aos mais antigos. Foi um trabalho reali-zado durante toda a sua vida. É autor das obras: Conhecimentos Gerais: História e Curiosidades; Minha História: Trabalho, Recordações e Pecados; Recordações / Recordar é Viver: Histórias que Revoltam, Gemem, Riem e Choram; Uma Excursão Curiosa, Vida e Morte do Ser Humano: A Vida é Sofrer, Crateús: dos índios Caratiús ao homem civilizado e Meus Avós: As Origens da Família Correia Lima e outras.

4Gerardo Magela Mello Mourão (Ipueiras/CE, 08 de janeiro de 1917 - Rio de Janeiro/RJ, 09 de março de 2007). Foi poeta, ficcionista, jornalista, tradutor, ensaísta e biógrafo. Era membro da Academia Brasi-leira de Filosofia e de Hagiologia. Influenciado pelo amigo Tristão de Athayde, envolveu-se politicamente com a Ação Integralista Brasileira, em pleno período do fim do Estado Novo. Em 1942, foi acusado de ser espião nazista, e um dos responsáveis pelo naufrágio de vários navios na costa brasileira. Condenado à morte como traidor da pátria teve, sua pena reduzida para 30 anos de prisão. Foi eleito em 1997, pela Guilda Órfi-ca (antiga irmandade secular de poetas) “O Poeta do século XX”. Com a sua obra A Invenção do Mar ganhou o Prêmio Jabuti de 1999. É autor das obras: Poesia do homem só (1938); Mustafá Kemel (1938); Do Destino do Espírito (1941); Argentina (1942); Cabo das Tormentas (1950); Três Pavanas (1961); O

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país dos Mourões (1963); Dossiê da destruição (1966); Frei e Chile num continente ocupado (1966); Peripécia de Gerardo (1972); Rastro de Apolo (1977); O Canto de Amor e Morte do Porta-estandarte Cristóvão (1977); Pierro della Francesca ou as Vizinhas Chilenas: Contos (1979); Os Peãs (1982); A invenção do saber (1983); O Valete de espadas (1986); O Poema, de Parmênides (1986); Suzana-3 (1994); Invenção do Mar (1997); Cânon & fuga (1999); Um Senador de Pernambuco: Breve Memória de Antônio de Barros Carvalho (1999); O Bêbado de Deus (2000); Os Olhos do Gato & O Retoque Inacabado (2002); O sagrado e o profano (2002); Algumas Partituras (2002) e O Nome de Deus (2007).

5 TEIXEIRA FILHO. Raimundo Cândido. Ob. Cit. pg.121.6A Faculdade de Direito do Recife da Universidade Federal de Per-

nambuco, foi o local onde aflorou um dos mais importantes movimen-tos poéticos, críticos, intelectuais, filosóficos, sociológicos, folclóricos e jurídicos do Brasil no século XIX. Conhecido também como “Escola do Recife” ou “Geração de 1871”, o movimento alcançou seu apogeu, prin-cipalmente, entre as décadas de 1860 e 1880. A faculdade foi instalada por força da Carta de Lei de Dom Pedro I, do dia 11 de agosto de 1827. Seus bacharéis muitos influenciados por tendências internacionais, não se limitaram somente ao estudo jurídico. Estudaram com grande afinco a Sociologia, a Antropologia e Ciência Política, além das letras, filosofia e artes. Isso favoreceu para o surgimento e desenvolvimento das Ciências Sociais no país.A instituição possui um acervo bibliográfico de mais de cem mil volumes, inclusive contando com a biblioteca particular de To-bias Barreto. Inclusive, este sergipano,se destacando como um de seus maiores expoentes e entusiastas. Diversos outros nomes passaram pela faculdade, dentre eles citamos: Castro Alves, Urbano Santos, Joaquim Na-buco, Abelardo Lobo, Vitoriano Palhares, Sílvio Romero, Artur Orlando, Clóvis Beviláqua, Capistrano de Abreu, Graça Aranha, Martins Júnior, Fa-elante da Câmara, José Higino Duarte Pereira, Araripe Júnior,Raimundo de Farias Brito, Gumercindo Bessa, João Carneiro de Sousa, Euclides da Cunha, Gilberto Freyre, Pontes de Miranda e muitos outros.

7Nê.ni:a [Lat. nenia.] Substantivo feminino. 1. Canto fúnebre. - Di-cionário Aurélio.

8ACADEMIA DE LETRAS DE CRATÉUS. Crateús: 100 anos. Fortaleza: Ex-pressão Gráfica e Editora, 2011, pg. 165.

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Este livro foi composto em Joanna MT Std pelaEditora Multifoco e impresso em papel offset 75 g/m².