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    :::Cadernos de tica e Filosofia Poltica | Nmero 25 | Pgina 166 :::

    DINHEIRO, LIBERDADE, DEMOCRACIA

    (CONCEITOS DO BOLSA FAMLIA)

    Homero Santiago1

    Resumo: Com a publicao de Vozes do Bolsa Famlia, de Walquiria Leo Rego e AlessandroPinzani, temos o que se pode qualificar uma considerao filosfica do Bolsa Famlia; emparticular, o estudo permite renovar o contedo de conceitos como liberdade e autonomia ao

    vincul-los, de maneira condicionante, ao dinheiro. As implicaes dessa renovaocompreensiva importam imediatamente para o embate poltico, que deve se voltar para aconstituio de um direito ao dinheiro e pode tomar a forma de luta pelo dinheiro.Palavras-chave: Bolsa Famliadinheiroliberdadedemocracia.

    A gente tem mais liberdade no dinheiro.

    Dona Amlia, moradora do Vale do Jequitinhonha.

    A luta de classes (...) uma luta poressascoisas brutas e materiais sem as quais no

    h as refinadas nem as espirituais.Walter Benjamin, filsofo alemo.

    I O programa Bolsa Famlia (BF) foi institudo em outubro de 2003 sob o governoLula, com o objetivo de complementar a renda de famlias expostas pobreza e extremapobreza (a qual, na definio do Banco Mundial, atinge pessoas com renda inferior a umdlar dirio). Sua maior novidade foi a unificao de vrios benefcios sociais do governofederal (bolsa escola, carto alimentao, bolsa alimentao, auxlio gs) num nicoprograma de transferncia direta de renda em dinheiro, gerido em parceria com os estados e asprefeituras. A participao no BF condicionada, entre outras coisas, ao acompanhamentoda sade e matrcula e frequncia escolares dos filhos. Segundo dados oficiais, ao incio de2015, so mais de 14 milhes de famlias atendidas; mais ou menos um em cada quatro

    1Professor do Departamento de Filosofia da FFLCH-USP. E-mail: [email protected]

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    brasileiros. Podem inscrever-se famlias com renda per capitade at R$ 77,00 (situao depobreza extrema) e com renda per capitaentre R$ 77,01 e R$ 154,00 (situao de pobreza)desde que haja crianas, adolescentes, gestantes ou nutrizes. O valor bsico do benefcio R$ 77,00; uma parte varivel depende do nmero e idade dos filhos e pode atingir R$175,00; em casos de extrema pobreza, benefcios podem ser acumulados at o limite de R$336,00. Os titulares dos benefcios so as mulheres, que recebem em seu nome os cartesda Caixa Econmica Federal para saque dos pagamentos.2

    Como sua novidade e abrangncia deixavam prever, desde o primeiro momento o

    BF assumiu um lugar de destaque no debate poltico-partidrio brasileiro: ora estupendoinstrumento de supresso da pobreza, ora simples expediente populista; para uns, passocrucial rumo efetivao do sistema de bem-estar social esboado pela Constituio de 88;para outros, aberrao que refora o paternalismo estatal e vai na contramo do prpriodesenvolvimento econmico ao desvalorizar o trabalho e a responsabilidade individual eentre tais extremos toda sorte de ponderaes e nuanas. Da mesma forma, o programadespertou o interesse do meio acadmico, que tratou de buscar respostas mais consistentesa perguntas que no noticirio poltico esto com frequncia entregues aos achismos oupreconcepes: quais os efeitos no mdio e longo prazo? eficaz de fato? Qual suainfluncia sobre o voto dos beneficirios? Como estes se servem da renda recebida? Comoenfrentar a questo da assim chamada porta de sada? Questes desse tipo empenharammuitos investigadores, economistas e cientistas sociais frente, que contriburam bastanteao aperfeioamento tcnico do programa bem como ao entendimento de seu significado;para o pas, em primeiro lugar, mas tambm para o mundo, como amplo experimento depoltica pblica.3

    Esse esforo compreensivo ganhou um item de grande vigor e originalidade com apublicao, ao final de 2013, do estudo Vozes do Bolsa Famlia. Autonomia, dinheiro e cidadania,de autoria conjunta da sociloga Walquiria Leo Rego e do filsofo Alessandro Pinzani.4Escapando tanto ao economicismo quanto ao bate-boca partidrio, ao maniquesmo das

    crticas fceis e aos elogios rasgados, sobretudo levando em conta as ambiguidades em jogono programa e em seus efeitos, eles estabeleceram os contornos acabados do que se pode

    2 Cf. pgina da CEF: http://www.caixa.gov.br/Voce/Social/Transferencia/bolsa_familia/index.asp. Emgeral, para uma histria do BF, ver Marco Aurlio Weissheimer, Bolsafamlia.3 Para que se tenha ideia da vastido desse empenho compreensivo, suficiente uma consulta internetlanando o nome bolsa famlia. No dia 9 de fevereiro de 2015, o Google acadmico computava 151.000resultados (entre estudos, documentos oficiais, etc.); no Scielo, restrito a artigos acadmicos provenientes emgeral de revistas latino-americanas, eram 30 referncias; por fim, a base JSTOR, das mais importantes e

    amplas do mundo, registrava 2034 documentos.4Walquiria Leo Rego, Alessandro Pinzani, Vozes do Bolsa Famlia. Autonomia, dinheiro e cidadania. Doravante,damos as pginas desta edio no interior do prprio texto.

    http://www.caixa.gov.br/Voce/Social/Transferencia/bolsa_familia/index.asphttp://www.caixa.gov.br/Voce/Social/Transferencia/bolsa_familia/index.asp
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    entender como uma considerao filosfica do BF.5A partir de uma ampla pesquisa empricarealizada entre 2006 e 2011, apreende-se toda uma srie de experincias, vivncias,problemas tericos que delimitam um importante campo de investigao para a filosofiapoltica brasileira. Os autores se desatrelam dos interesses imediatos mas esto semprefirmes na reflexo sobre esse acontecimento recentssimo que o BF e suas consequnciasao longo de cinco anos nas vidas das mulheres beneficiadas e de suas famlias; batem-secom vrios preconceitos (provindos tanto da esquerda quanto da direita) e ao fim e ao caboos sobrepujam todos; alm disso, tratando de bem avaliar o constatado, promovem

    sugestivas inovaes conceituais, ao conseguir insuflar concretude em algumas noes (emparticular aquelas que subintitulam o livro) que, abstratamente tomadas, esto sempreperigando entrar a servio de qualquer coisa. O sucesso do empreendimento reside naousada e instigante hiptese da relao entre dinheiro, autonomia e liberdade que o guia.

    Ao longo da pesquisa, explicam a sociloga e o filsofo, inmeras questes se colocaramrelativamente s possibilidades de transformao nas vidas das mulheres titulares dobenefcio do BF. Uma das hipteses fundamentais se relaciona com o fato de receberemrenda em dinheiro. (...) A investigao visa exatamente recolher as dimenses deambiguidade e, s vezes, at de paradoxo contidas na experincia delas enquanto pessoasque se tornaram portadoras de certa renda monetria. (...) Nossa tese principal: a rendaregular em dinheiro um importante instrumento de autonomia individual e poltica.Queremos mostrar a relao entre renda em dinheiro e autonomia: a presena de umarenda regular (...) permite o desencadeamento de processos de autonomizao individualem mltiplos nveis.6

    IIO que vem a ser o dinheiro? A pergunta, que assim de chofre pode parecer

    despropositada, para nosso assunto no o nem um pouco. Primeiro, tratamos de umprograma de transferncia de renda em dinheiro; o que cai mensalmente nas mos

    beneficiadas no so nem cupons nem produtos nem coisas do gnero, numerrio puro esimples. Segundo e sobretudo, arriscamos dizer que o grosso da originalidade de Vozes dobolsa famlia reside na capacidade de bem avaliar (isto , livre de preconceitos) o papel daentidade dinheiro em nossa vida social; justo o que lhes permite d-lo por componentefundamental de conceitos como liberdade e democracia, tendo em mira menos como taisideias podem ser compreendidas sub specie ternitatisem qualquer sociedade, do que como

    5 Falamos em contornos acabados porque, faz algum tempo, esse tipo de considerao j vinha sendo

    testado pelos autores; ver especialmente o artigo pioneiro de Walquiria Leo Rego, Aspectos tericos daspolticas de cidadania: uma aproximao ao Bolsa Famlia.6REGO & PINZANI, Vozes do Bolsa Famlia..., pp. 19-20, p. 38.

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    devem ser entendidas histrica e concretamente no interior de uma sociedade capitalistaqual a nossa.

    Dvida no h que muita gente torcer o nariz para essa articulao. Aqueles que seapegam demais unicamente concepo do dinheiro como forma equivalente geral do

    valor, pela qual as mercadorias podem ser trocadas; os que sabem que o dinheiro oelemento que, no capitalismo, medeia as relaes sociais entre os homens submetendo-osinexoravelmente uns aos outros e todos ao fetiche da mercadoria; as belas almas que seindignam diante da constatao de que entre ns o dinheiro tenha o poder de tudo

    comprar, inclusive a beleza anmica, isto , os bons sentimentos.7Por tudo isso e muitomais que grande parte dos integrantes do que costumamos denominar esquerdaoutorgou e outorga ao vil metal um posto abjeto, digno de todo desprezo e merecedorde dio destrutivo; pases ditos socialistas inventaram as cadernetas para itens bsicos,alternativos tentaram restabelecer quanto possvel o escambo, modernosos inventam hojeos bitcoins. Que o seja, amm. Mas exatamente essa vulgata (ao qual um Marx, note-se,jamais aderiu) que incumbe aqui pr de lado menos por erro, os juzos arrolados estocorretos, que por deixar primar uma ingnua parcialidade, unilateralidade, que comprometea boa compreenso de nosso assunto.

    O dinheiro (ou seus equivalentes) no somente medeia relaes sociais comofunciona maneira de um dos portadores fundamentais do poder. Seu poder social, assimcomo seu nexo com a sociedade, [o indivduo] traz consigo no bolso.8Principalmente, pelo dinheiro sob a forma-salrio que o capitalista compra fora-trabalho; tal capacidade desubmeter algum para trabalhar para outrem, em nossa sociedade, o paradigma doexerccio do poder proporcionado pelo dinheiro. Em suma, dinheiro poder. Na formacompacta que se carrega na carteira ou em qualquer outra, ele sabe ser altissonante quandoprecisa. Poder de fazer e desfazer, de mando e desmando; poder que muito amide capazde submeter a prpria Fortuna garantindo boa vida (que o nome da deusa romana tenha setornado sinnimo de muito dinheiro, faz todo sentido; alguns miserveis necessitam

    apregoar e muitos endinheirados gostam de dizer decerto por sarcasmoque dinheirono traz felicidade; j o comum dos homens que no est em nenhuma dessas situaes,costuma fazer um adendo inteligentssimo: no traz porque manda buscar). A est. Quese retoram as narinas, isso nada muda. Em nossa sociedade, o dinheiro poder de umaponta a outra; e da no ser segredo a ningum que em suas variadas formas ele continuasendo o piv principal dos embates sociais: salrios, benefcios, preo da terra, aluguis,

    7DixitMarx: at coisas que em si mesmas no so mercadorias, como a conscincia, a honra etc. podem ser

    compradas de seus possuidores com dinheiro e, mediante seu preo, assumir a forma-mercadoria, de modoque uma coisa pode formalmente ter um preo mesmo sem ter valor. (O capital, I, p. 177).8MARX, Grundrisse, p. 105.

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    tarifas de nibus, etc. Pouca gente vai para a rua por ideias; j por uma vintena de centavos,a estria e a histria so outras.

    Pois nessas paragens que um compatriota de Marx nos pode ser extremamentetil como guia. Foi Georg Simmel quem soube ir bem longe na compreenso do dinheirocomo fenmeno social e suas implicaes sobre o indivduo, inclusive guisa de elementoessencial para concebermos a liberdade humana.

    Pode-se apresentar a evoluo de todo destino humano, afirma Simmel em suaFilosofia do dinheiro, como uma alternncia regular de apegos e desapegos, obrigaes e

    liberaes. Por isso, o que experimentamos como liberdade no amide uma realidade,seno uma mudana de obrigao; no momento em que, em lugar daquela que se assumiaat ento, vem insinuar-se uma nova, sentimos, antes de tudo, o desaparecimento dapresso anterior; e porque dela nos liberamos, sentimo-nos em primeiro lugarabsolutamente livres; mas a nova obrigao que assumimos de incio com umamusculatura at ento poupada, portanto particularmente vigorosa, comea a fazer sentirseu peso medida que vem a fadiga, e a partir da o processo de liberao aplica-se a elacomo havia anteriormente desembocado sobre ela.9

    Nessas linhas esto a base de um processo que o do aparecimento da liberd adeindividual, conforme o ttulo do captulo em que se inserem. Importa sublinhar, paranossos propsitos, que essa liberdade surge precisamente como um fenmeno de correlao,ao invs de uma realidade, uma coisa, um estado absoluto que se alcanaria pela imunidadea todo tipo de relao. Longe disso. Se a evoluo da individualidade, a convico deflorescer, com todo nosso querer e nosso sentir particulares, nosso eu intrnseco, devepassar por liberdade, esta no entra nessa categoria enquanto pura ausncia de relaes,mas justamente como tipo de relaes com os outros inteiramente determinado.10 Aliberdadeou antes, para uma descrio mais exata a seu feitio de movimento, um processode liberao insinua-se entre dois estados (presso e no presso) como uma transio:descompresso relativamente objetividade das coisas que ao mesmo tempo o

    processo de nascimento da liberdade.11

    O que tem o dinheiro a ver com isso? ele um elemento singular no processo deliberao, aquele que por sua forma especfica pode conduzir mais longe que nenhumoutro o desabrochar da personalidade como diferenciao relativamente a presses elimites impostos pela objetividade das coisas. O desejo que se tem de todas as outrascoisas j limitado pela capacidade de absoro do sujeito; por outro lado, s o dinheirono comporta (...) essa medida interior, que acaba impondo tambm seus limites ao desejo

    9

    SIMMEL, Philosophie de largent, p. 345.10SIMMEL, Philosophie de largent, p. 366.11SIMMEL, Philosophie de largent, p. 371.

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    experimentado pelo objeto.12Eis a razo de o avaro poder eleger o dinheiro como um fimem si mesmo; e tambm por que o mesmo dinheiro pode funcionar maneira deinstrumento de expanso, capacidade de liberar-se mais e mais das presses das coisas,poder de agir mesmo sobre coisas distantes e portanto libertar-se da cadeia da imediatez.Pelos efeitos longnquos do dinheiro, o eu pode desdobrar at o fim seu poder, seu gozo,seu querer sobre os objetos mais distantes.13 Donde a concluso: a capacidade deexpanso do sujeito, que limitada por sua prpria natureza, mostra uma amplitude e umaliberdade maior relativamente ao dinheiro do que com qualquer outra posse.14 Ao

    possibilitar a liberao relativamente s presses das coisas, o dinheiro insufla o sentimentode liberdade; ele no a compra, como se fosse ela uma coisa; o que faz permitir umarelao mais livre com as coisas, marcada pela descompresso dos fardos impostos pelasnecessidades imediatas. Como bem sabe Dona Amlia, cujas palavras do a impresso desintetizar a anlise de Simmel, a gente tem mais liberdade no dinheiro.15

    Desde que no nos deixemos levar por pendores morais que, unilateralmente, sveem no dinheiro uma coisa suja que aliena, corrompe e envilece a boa alma humana, taisconsideraes lanam preciosa luz sobre a ambivalncia desse objeto enquanto componentede nossa vida social. fator de submisso, sem dvida, nas mos daquele que compra spessoas a fora-trabalho; de abuso, quando algum paga por seus direitos ou os criaconforme sua convenincia. To claro quanto isso, entretanto, que o dinheiro, veculo desujeio por um lado, o mesmo dinheiro que, por outro lado, libera ao afastar anecessidade de a tudo sujeitar-se, a todo momento e por qualquer coisa, sendo capaz deexpandir o prprio campo de ao de seu portador, medida que o desacorrenta da prisodas coeres cotidianas imediatas abrindo-lhe novas possibilidades. O dinheiro possuiduas faces, como Jano: liberta e oprime.16Para quem no tinha como comprar comidamelhor, uma bolacha por exemplo, poder faz-lo um ato de liberdade que no pode sernegado por nenhum conceitooutro dia comprei pros meninos iogurte e macarro17euma liberao diretamente motivada pela posse de dinheiro.

    Os autores de Vozes do Bolsa Famlia, como se infere da enunciao de sua hiptesebsica de trabalho, no desconsideram essas ambiguidades do dinheiro; e por isso noabrem mo de guiar-se muito pelas reflexes de Simmel ao abordarem um programa cujamaior novidade em face dos auxlios que o precederam foi exatamente, reiteremos,proporcionar aos beneficirios um renda regular em dinheiro. a compreenso desse dadocabal, que de to bvio quase no havia chamado a ateno de ningum, que faz a

    12SIMMEL, Philosophie de largent, p. 409.13SIMMEL, Philosophie de largent, p. 410.14SIMMEL, Philosophie de largent, p. 410.15

    Apud REGO & PINZANI, Vozes do Bolsa Famlia..., p. 208.16SIMMEL, Philosophie de largent, p. 204.17D. AMLIA apud REGO & PINZANI, Vozes do Bolsa Famlia..., p. 208.

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    originalidade do livro ao identificar nessa renda, nesse dinheiro, um papel liberatrio 18sobre os valores e atitudes, as personalidades mesmas dos beneficiados.

    III

    Entre 2006 e 2011 foram realizadas cerca de 150 entrevistas com mulheresbeneficirias no BF em regies de forte ndice de pobreza. Em vez de questionrios

    fechados que renderiam apenas um monte de tabelas descarnadas, os pesquisadoresoptaram pelo mtodo da entrevista aberta, a fim de recolher precisamente as vozes dosbeneficiados pelo programa e demarcar-se do que denunciam como a frequente prtica dascincias sociais brasileiras de tomar os pobres apenas como objetos, raramente comosujeitos.19Os resultados so apresentados em forma narrativa, quase sempre aproveitando-se da literalidade das falas das entrevistadas. Disso emerge um rico painel de vivnciasduras e marcadas pelo sofrimento, ao lado de transformaes importantes, complexas,ambguas tudo o que costuma escapar ao esquadro economicista e ao grande pblicoadversrio do BF. E nem ser preciso insistir que muitos preconceitos encontram seumomento de verdade (ou desmascaramento) exatamente como preconceituaes que nada

    dizem da realidade.Tanto no esverdeado litoral de Maragogi (vendido aos turistas como o mais belo do

    mundo) quanto no agreste serto a vida impiedosa. A cavao do maunim obrigamulheres e crianas a permanecer longussimos perodos de joelhos na mar baixa, a pontode deformar corpos; o trabalho sob o sol trrido faz a pele ficar tal que quase se confundecom o couro dos chapus tpicos do serto; seja onde for, a velhice vem clere, aos 30, 35anos; analfabetismo, subnutrio, misria. Bairro de Canoeiro, cidade de Araua, Vale do

    Jequitinhonha, Minas Gerais: Visitamos casebres com paredes de tijolos sem reboco episo de cho batido, cadeiras de plstico, sofs sem forro e paredes nuas, com a exceo dealgumas imagens sacras (...). As ruas e as casas so povoadas por cachorros famintos,galinhas com pescoos menores que um polegar, pintinhos do tamanho de beija-flores,gatos esquelticos. O sofrimento no se limita s pessoas, mas se estende aos animais e scoisas.20Por toda parte, a elementar unidade da bruteza que um Graciliano Ramos soubecomo ningum captar por resultado da animalizao cruel, que faz do homem bicho e damisria e do sofrimento fenmenos to naturais e imutveis quanto a chuva rara e o solforte. Pois foi nesses lugares que os pesquisadores saram atrs dos efeitos do BF. E osmais escondidos. Os previsveis e comprovados por vrios levantamentos sem dvidaestavam l (melhora geral nos ndices de sade; aumento da frequncia escolar; incremento

    18

    REGO & PINZANI, Vozes do Bolsa Famlia..., p. 19.19Crtica que tambm se pode colher no livro de Amlia Cohn, Cartas ao presidente Lula. Bolsa Famlia e direitos sociais.20Apud REGO & PINZANI, Vozes do Bolsa Famlia..., p. 124.

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    do comrcio de pequenas confeces, lojas de mveis baratos, etc.). Mas ser tudo?Estaro os despossudos fadados a tornarem-se apenas cifras em estatsticas, por melhoresque sejam, e enriquecerem estudos que vo encorpar os lattes dos estudiosos ou sestatsticas a serem propagandeadas por polticos? No. A crtica frequente objetificaodos pobres, quer nas polticas pblicas, quer nas cincias sociais, exige voltar-se subjetividade dos pobres e abre o caminho para que o estudo possa garimpar os efeitosintangveisdo BF. Pelo que revela toda a sua importncia metodolgica o desvio por Simmelefetuado por nossos autores; como recordam, em Os pobres, o alemo soube exemplarmente

    perceber que a renda monetria (...) altera a alma do seu recebedor, quando no seja frutoda mera caridade21(p. 69). Quando mais no fosse, tem-se a um elemento fundamentalpara calibrar a visada do investigador; exatamente porque o BF no uma esmolagovernamental (...), acaba criando as condies para uma mudana profunda na estruturasentimental dos beneficirios.22

    Os ditos efeitos intangveis atuam principalmente na formao de uma novasubjetividade, a qual emerge a partir de renovadas relaes com o meio, o tempo, com osoutros e consigo mesma. Tratemos de acompanhar algumas dessas transformaes, poisnos escancaram certos vnculos possveis entre dinheiro, alargamento das possibilidades,conscincia poltica, autonomia, liberdade, que no so de somenos.

    Nova temporalidade

    Dona Ceclia, 48 anos, me de dez filhos. Indagada sobre o que fazem dois delesque tm 16 e 17 anos, explica que andam beliscando uma coisinha aqui, outra ali. Equando nada conseguem? Ficam a futurando!23. Verbo rosiano para uma condiopouco rsea. A beleza do linguajar arrefece muito quando notamos pelo conjunto dasentrevistas que a realidade expressa inversa ao sabor literal da palavra. Futurar, aqui, em boa medida desconhecer o sentido de futuro; viver na agrura do presente irremedivelresumido luta diria pela comida do jantar ou do almoo de amanh. O tempo moldadopor carestia e labuta; o presente de tudo toma conta, maneira de um macio deimpossibilidades escarpeado apenas pelas presses urgentes da sobrevivncia; primam afalta ou a ausncia absoluta de esperana de mudar sua situao no futuro.24

    Da serem tanto mais relevante as palavras de outra entrevistada: o BFdesenforcou a gente.25Com Simmel no horizonte, podemos entender assim: o benefcio

    21REGO & PINZANI, Vozes do Bolsa Famlia..., p. 90.22REGO & PINZANI, Vozes do Bolsa Famlia..., p. 207.23

    Apud REGO & PINZANI, Vozes do Bolsa Famlia..., p. 94.24REGO & PINZANI, Vozes do Bolsa Famlia..., p. 151.25Apud REGO & PINZANI, Vozes do Bolsa Famlia..., p. 126.

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    ocasiona uma descompresso cujos efeitos sero sentidos na prpria experincia datemporalidade. A regularidade da renda, ainda que de valor pequeno, abre fissuras naquelacondio rgida que no permitia nenhum vislumbre de algo diverso; o tempo alarga-se,distende-se, no tanto quanto podia, mas o suficiente para um respiro. Quanto se deduz,um flego intermitente, j que o dinheiro do benefcio no costuma alcanar o fim do ms;frgil por conta das incertezas quanto continuidade do benefcio nos prximos governos,um pouco ambguo por achar-se entre os persistentes ditos de sempre (Isto no parans, Eu sei qual o meu lugar) e claros sinais de alterao desse quadro 26 que

    despontam nas entrelinhas das entrevistas. E necessrio atentar principalmente renovao que se vai dando nas relaes entre as mes beneficiadas pelo BF e seus filhos.

    Ainda que a duras penas, elas conseguem agora ao menos fazer frente ao sentimentoassolador (relatado por muitas) da impossibilidade de suprir prole o mnimo necessrio,sobretudo a alimentaoo choramingo de fome de uma criana, o nada poder fazer, socoisas que, como diz uma me, atravessam a garganta a ponto de tirar a respirao. Damesma forma, se antes no podiam ensinar aos filhos seno a resignao perante umacondio naturalmente desgraada, que exatamente por ser natural jamais haveria demudar, graas ao benefcio desafogador do BF podem transmitir-lhes alguma esperana,repassar-lhes o sonho de melhores condies de vida, conseguir ao menos dizer-lhes, semo receio de faltar inteiramente com a verdade, que o estudo pode realmente servir paraalguma coisa. Com relao a um programa cujo benefcio volta-se diretamente a mulheresque so mes, est a uma via privilegiada para captar-se mudanas. O caso de filhos depais analfabetos cursando uma faculdade ainda permanece excepcional, mas a maioria dasentrevistadas deposita grande esperana no futuro dos filhos. Isso significa que os excluemde sua viso negativa de si e da vida. Nesse sentido, o BF cria expectativas positivas, e issotransforma o histrico sentimento de resignao de tanto tempo. Tambm nessa direoconstatamos uma mudana profunda na subjetividade das mulheres beneficirias. O futurodeixa de ser imutvel e pr-determinado, a eterna repetio da misria e os sofrimentos

    atvicos, e se torna (...) uma opo e um desafio para nossa gerao.27

    Novos desejos, a capacidade de forjar projetos, em virtude da descoberta de umnovo tempo, o futuro, que renova decisivamente a vivncia abrindo o horizonte da inteiratemporalidade. Descoberta de alguma margem de controle da prpria condio graas fuga da brutal imediatez que o produto mais caracterstico da extrema pobreza (o que voucomer noite, amanh?), alargamento dos horizontes, distenso do tempo, descoberta dopossvel, que base para todas as outras mudanas. E para ningum isso to verdadeiroquanto para mes queo trusmo aqui no injustificadoso primeiramente mulheres.

    26REGO & PINZANI, Vozes do Bolsa Famlia..., p. 228.27REGO & PINZANI, Vozes do Bolsa Famlia..., p. 229.

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    Autonomia feminina

    Uma das questes mais corriqueiras ao se discutir o BF concerne ao uso dodinheiro recebido. Com efeito, uma das marcas do programa facultar s beneficirias uminteiro arbtrio no emprego do dinheiro; pois se h condicionalidades, nenhuma delascerceia tal direito. Ora, a frequncia com que a preocupao vem baila trai a tenacidade deuma representao vulgar, a de que entre pobres e dinheiro no pode haver relao felizcomo est na boca de tantos: o dinheiro que deveria beneficiar as crianas vai ser gasto

    pelos homens em cachaa; em vez de comer saudvel (acredite -se, h quem se alimentede adjetivos!) as mes vo ficar dando porcaria aos filhos; pobre no est preparado paraorganizar as contas, logo se endivida; e assim por diante, sempre pondo no horizonte acerteza de que, para falar em bom portugus, quem nunca experimentou melado quandocome se lambuza ou chega a ter dor de barriga.

    Seguindo diversas experincias internacionais, o benefcio do BF pago sempre smulheres, que recebem um carto em seu nome. Como elas gastam o dinheiro que lhes confiado? Em primeirssimo lugar, em comida, seja garantindo que no faltem os bsicosarroz e feijo e leite, seja introduzindo nas casas novidades como bolachas (inclusive as

    recheadas... um luxo!) e macarro de pacote (que substitui o artigo a granel). Higualmente a utilizao do dinheiro na aquisio de material escolar e vesturio. So os usosbsicos, atestados por todas as sondagens e inteiramente esperados quando recursos queesto longe de serem de monta pingam para famlias em situao de penria. A novidadeque nos interessa, porm, est exatamente nos usos menos previsveis que uma hora ououtra, aqui e ali, ocorrem. E nisso a pesquisa consegue ser bastante reveladora. Graas aoformato das entrevistas e confiana que conseguiu estabelecer entre entrevistadores eentrevistadas, puderam nossos autores vencer constrangimentos e descobrir que algumasmulheres titulares do benefcio s vezes se permitiam empregar o dinheiro na compra deprodutos como creme de cabelo ou maquiagem.

    Ironicamente, bem quando as constataes parecem convergir com o preconceitoque o ensinamento sobre o que chamamos de efeitos intangveis do BF mais se reala. Oartifcio da maquiagem, ao visar diretamente a prpria beleza (real ou imaginria tanto faz),desvela um campo de experincias novas, de poderes e de escolhas recm-conquistados eque vo cobrando seu espao. Sobre faces envelhecidas, marcadas pelos sol, os cremes ebatons funcionam de maneira insuspeitada: devolvem a autoestima, permitem s mulheresconverterem-se a si mesmas, o que para muitas indito; vem a redescoberta dafeminilidade, reencontro de si na imagem renovada de um corpo que pode, apesar dosofrimento impingido pela misria vivida moda de natureza, ser retrabalhado peloartifcio, pelo poder de produzir algo diferente daquilo que lhe foi simplesmente conferidopelo destino. Mesmo desejo de autonomia que se expressa tambm no invarivel sonho

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    de quase todas de fazer uma laqueadura (cf. pp. 109, 196), retomando o controle sobre oprprio corpo, e ainda na paulatina recompreenso do estatuto das relaes conjugais, queno necessitam mais serem vividas unicamente sob o signo da dependncia e dainexorabilidade. No povoado de Cruz, no serto alagoano, quando de conversa com umgrupo de mulheres, uma senhora relata que houve j umas cinco separaes ali. Ospesquisadores perguntam se o BF teve alguma influncia e ouvem: Eu acho que a bolsanos deu mais coragem.28Na cidadezinha vizinha de Inhapi, outra mulher, interrogada se,com o benefcio em seu nome, as mulheres se sentem mais livres e vontade, responde:

    Por aqui so muitas que fazem isso porque no dependem mais do marido .29Todo umleque de novas experincias se abre s mulheres. Ah! O dinheiro da bolsa me tirou decasa! (...) Agora tenho de sair da toca mesmo. Vou s compras, experimentoalguma coisaque no conhecia.30

    A questo do uso do dinheiro fora-nos a identificar uma requalificao dacondio feminina em curso entre as beneficirias do BF. Revoluo feminista?31 Afrmula talvez seja exagerada, mas o acontecimento que ela nomeia est longe de s-lo.

    Talvez mais que revoluo feminista, tratemos de um processo de restituio, a mulherespobres, sofridas, estigmatizadas, da prpria humanidade que muito amide lhes foi negada.As mulheres, a partir do recebimento da renda monetria, se apoderam de alguma formade capacidade humana, como a de escolher certas opes, inclusive (...) as de ordem moral.Nossa humanidade repousa fundamentalmente no exerccio permanente deescolhas.32Poder escolher poucas ideias sero to sucintamente concretas ao mesmotempo em que tocam o ncleo de uma ideia to abstrata quanto a de autonomia. Poderescolher ter ou no um filho, o que comprar ou no comprar, deixar o cabelo assim ouassado, insistir ou no numa relao conjugal. tal poder, tal liberdade que as mulherestitulares do BF famlia vo descobrindo graas posse, em muitos casos pela primeira vezna vida, de uma renda em dinheiro; o que pode aqui e ali redundar numa conscinciapoltica nascente que se exprime de vrias formas, desde o orgulho de votar em mulher at

    as reclamaes com relao aos valores dos benefcios.

    Despertar poltico

    Em regies atravessadas pela pobreza extrema e geralmente margem da cidadania,o elemento poltico mais saliente, se no o nico, a sugerir um vnculo entre a populao e

    28Apud REGO & PINZANI, Vozes do Bolsa Famlia..., p. 108.29Apud REGO & PINZANI, Vozes do Bolsa Famlia..., p. 112.30

    Apud REGO & PINZANI, Vozes do Bolsa Famlia..., p. 208.31Cf. a reportagem da revistaMarie Clairede dezembro de 2012: O bolsa famlia e a revoluo feminista no serto.32REGO & PINZANI, Vozes do Bolsa Famlia..., p. 196.

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    o poder pblico o voto. Uma relao marcada pela pontualidade (apenas em poca deeleio) e pela troca (um voto por um prstimo qualquer ou transao mercantil simples),mas ainda assim capaz de abrir portas. Primeiramente, devido quase universalidade dacondio de eleitor, ao ponto de haver pessoas sem carteira de identidade (e portantoimpossibilitadas de inscrever-se no BF) e com ttulo.33 Segundo, porque isso quefranqueia, minimamente, a insero no mundo das trocas (algum precisa de algo que eutenho e posso dar, barganhar, negociar); um abre-te-ssamo modesto mas imprescindvelcomo sabia Paulo Honrio, que to logo comea a pensar em ganhar dinheiro trata de

    tirar o ttulo de eleitor.34 nessa situao que se encontra a quase totalidade dasentrevistadas e a partir dela que temos de nos perguntar pelas possveis transformaesproporcionadas pelo BF no que tange conscincia poltica; afinal, uma renda regular emdinheiro, conforme a hiptese que guia os autores de Vozes do Bolsa Famlia, seria capaz demudar profundamente a relao dos pobres com a sociedade .35Isso ocorre?

    Uma novidade identificada pelos estudiosos o paulatino transcender esseuniverso; o que se d particularmente mediante uma reconsiderao desse capitalcomponente que o voto. Comea a surgir a percepo de ser considerado pelo Estadocomo uma pessoa concreta, com necessidades, cuja satisfao no pode ser alcanadaindividualmente; a percepo de que as polticas pblicas de apoio ou ajuda no soexpresso de caridade ou de favores pessoais, mas consequncia de um direitoconstitucionalmente amparado; a conscincia de que o voto passa a contar algo e a serrelevante para determinar as condies de sua vida.36Entendamos bem. No est dito queo programa tenha de supeto deixado para trs sculos de coronelismo; tanto mais que asua base, sem a qual ele no funciona, uma autoridade municipal que no raro est merc de tudo de pior que se possa imaginar: cargos de gerenciamento entregues a pessoasde confiana e sem ou de m qualificao, a maldio das primeiras-damas que se arrogama chefia das polticas sociais, a sabotagem como arma de vingana (inutilizao decomputadores aps uma derrota eleitoral, por exemplo, o que simplesmente impede a

    continuidade dos repasses), absoluto descaso burocrtico (paradigmtico o caso de DonaDelia, cujo benefcio foi suspenso sem que lhe fosse explicado o motivo; aosentrevistadores ela mostra uma carta da prefeitura, datada de meses antes, convocando-a arenovar o cadastro; trmites normais, nenhum problema, no fosse e continue sendo DonaDelia analfabeta). Nada disso mudou substancialmente; no houve a emergncia denenhum desejo agudo de revolucionar o mundo, nem viram as beneficirias o sol da

    33Cf. REGO & PINZANI, Vozes do Bolsa Famlia..., p. 115.34

    RAMOS, So Bernardo, cap. 3, p. 13.35REGO & PINZANI, Vozes do Bolsa Famlia..., p. 154, nota 3.36REGO & PINZANI, Vozes do Bolsa Famlia..., p. 39.

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    cidadania brilhar em raios flgidos. Agora, quer-nos parecer fato que, sabendo pr de ladoos preconceitos, inevitvel identificar nas entrevistas transformaes importantes.

    Indagada se o BF um favor ou uma obrigao, uma mulher de Pasmadinho, no Valedo Jequitinhonha, afirma que obrigao do governo, pois, conforme sua argumentao,ela ajudava o governo com seu voto.37Uma outra, da mesma cidade, responde diversamente mesma pergunta: Ah! um favor, porque ningum fez isso antes.38

    Desde que no cobremos das entrevistadas a linguagem altiva e abstrata dosdireitos (os autores alertam contra esse erro comum), essas falas deixam transparecer

    mudanas importantes no que concerne relao com o poder pblico. No algodistante e todo-poderoso qual um deus. Ele precisa de mim, eu o ajudo; quer dizer,precisa de minha legitimao e tem de fazer jus a ela. Sobretudo porque esse oponto para o qual tudo converge poderia ser diferente: eu poderia no ajud-lo, elepoderia no me ajudar; no se fez antes, hoje se faz. Contra o fado do tudo a mesmacoisa, sempre igual, ergue-se a sensao de um poder de escolha, como antes, e agora

    vinculada percepo da responsabilidade que seu exerccio implica. Segundo DonaIracema, a gente tem o direito de escolher aqueles que vo governar por quatro anos,o direito de ver as propostas, de escolher mesmo, e, se no prestar, no pode botar aculpa para ningum, pois foi a gente que escolheu.39 O alargamento da experinciatemporal acima mencionado aqui fator determinante; o que ocasiona oestabelecimento de uma conexo entre cidads e poder pblico que vai sendodescoberta a duras penas e com toda a inevitvel carga de ambiguidade.

    Tal reconhecimento, como era de se esperar, d-se e exprime-se segundo a lgicatradicional do voto; e certamente por isso a mais elitista direita se encontra com a maisidealista esquerda numa s estupidez de variegada formulao: o povo no sabe votar, notem conscincia, vota com o estmago, alienado, etc. etc. e, mais uma vez, etc. Pelocontrrio, reiteremos: mister ver as coisas sem preconceitos; a lgica do voto tradicional, sem dvida, mas sob ela que o novo, no caso, manifesta-se transformando a

    prpria concepo usitada. Foge-se pontualidade dos perodos eleitorais na medida emque os repasses regulares se distendem no tempo. Um governo fez; por que no se fezantes? Far-se- depois? A invarivel reclamao pelos baixos valores revela umainsatisfao, um desejo de quero mais que no hesita em mostrar-se e se dirige ao poderpblico, no limite prpria sociedade. Ainda uma vez: as entrevistadas certamentedesconhecem a linguagem dos direitos e os meandros da cidadania. Seria no entantocanhestro, por m-f ou estupidez, no reconhecer que o BF vai sendo por elas vivenciado

    37

    Apud REGO & PINZANI, Vozes do Bolsa Famlia..., p. 120.38Apud REGO & PINZANI, Vozes do Bolsa Famlia..., p. 209.39Apud REGO & PINZANI, Vozes do Bolsa Famlia..., p. 133.

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    como um direito. Algo que melhorou a vida, que pode melhorar mais, que no pode serinterrompido, que precisa ser radicalizado.

    Dona Ins, 30 anos, mora em Demerval Lobo, Piau, separada e tem doisfilhos, recebe R$ 102,00 mensalmente do BF. Como tantas outras, ao ser entrevistada,indigna-se com o valor, que no d para fechar o ms; reconhece porm que a situaomudou; a bolsa ameniza at chegar o final do ms, foi uma beno para mim, o cartotrouxe um reconhecimento que lhe facultou o crdito. Meu carto, dona, foi a nicacoisa que me deu crdito na vida. Antes eu no tinha nada. pouco sim, porque queria

    ter uma vida melhor. Continua no gostando de votar e o faz somente por obrigao:s muda o nome: Antnio, Jos, Francisco...; no entanto, confessa temer a interrupodo programa e por isso se preocupa com quem ocupar os postos de mandatrios. Achaque um dinheiro abenoado por Deus e, questionada sobre a criao do programapelo governo, explica: , foi o presidente, mas foi Deus que o colocou l; isso aomesmo tempo em que declara a necessidade de ajuda aos que precisam (tem que terapoio de quem tem condio) e identifica na bolsa uma retribuio pelo que pagamoscom os impostos. Em meio a essas ambivalncias, que se poderiam crer tpicas de umamulher que vota com o estmago e foi capturada pelo populo-assistencialismo lulista (foiDeus quem ps l o presidente!) ou algum que desconhece por completo a histria delutas de Lula e do PT (afinal, foi Deus quem ps l o presidente!), dona Ins apresentaperfeita conscincia do que est em jogo e de que se precisa ir alm, ousa proporredefinir os prprios termos e objetivos do programa. Tudo que quer fazer na vida com dinheiro, pagando. A bolsa no cala a boca de quem est passando necessidade.Necessidade no s ter o que comer, no. querer comer uma coisa melhor e no ter,no poder. querer vestir melhor e no poder, ir para a sorveteria com seu filho e nopoder, ver um brinquedo da padaria e no poder comprar para seu filho. Da satisfaoimediata de necessidades bsicas (a bolsa ameniza) ao autorreconhecimento comopessoa (o dono do mercado confiou em mim), admisso da importncia da renda

    regular (tudo o que quer fazer na vida com dinheiro, pagando) at o firmealargamento do horizonte das prprias necessidades (querer sorvetes e brinquedos) e acerteza dos prprios anseios: pouco sim, porque queria ter uma vida melhor.40

    No formidvel romance O faz-tudodo norte-americano Malamud, o protagonista,um miservel judeu preso injustamente, retorque de maneira certeira ao policial que lheinterroga acerca de seus conhecimentos de Hegel, Marx e por uma suposta filosofiaprpria. Em sua humildade, o faz-tudo contesta de maneira genial: Se eu tenho, ela s pele e osso. (...) Se o senhor no se importar que eu diga, minha filosofia que a vidapoderia ser melhor do que .41 A mesma genialidade encontramos nas declaraes de

    40Cf. REGO & PINZANI, Vozes do Bolsa Famlia..., pp. 133-135.41Bernard Malamud, O faz-tudo, p. 103.

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    Dona Ins. Sob questionamentos, ambiguidades, dvidas, percebe-se que a maiorcontribuio do BF desencadear o sentimento, qui a certeza de que a vida poderia sermelhor do que . Filosofia? Cincia poltica? Tanto faz. No extraordinrio depoimento dessasenhora desponta um saber, um saber recm-sabido e muito simples que no entanto (outalvez justamente por isso) condio de toda e qualquer pretenso sria de transformaosocial. A est a sntese dos desafios polticos do BF, desde que o concebamos, comomister conceb-lo, guisa de instrumento transformador.

    IV

    O BF muito recente. Em seu formato atual, assumido aps um saltoqualitativo42 relativamente a outros programas governamentais que o precederam, somapouco mais de uma dcada de vida, estando prestes a entrar na adolescncia. Dacertamente a nuvem de dvidas que sobre ele ainda pairam, de tal modo que as acaloradasdiscusses sobre valores, pblico-alvo e objetivos sejam persistentes, e para nem falar daboataria que de quando em vez ventila suspenso dos repasses ou descadastramento emmassa ou sbita extino do programa. Talvez no pudesse mesmo ser diferente. As

    novidades sempre demoram a dirimir suspeitas e firmarem-se, em especial quando batemde frente com prticas seculares; no caso de algo do porte BF, que como j observadoalcana hoje um em cada quatro cidados, outra coisa no se esperaria. Fato que, semembargo dos parcos anos, e estando inserido num conjunto de importantes mudanas nasociedade brasileira nas duas ltimas dcadas, o programa exibe vitalidade e influncia taisque no podem, por s conscincia, serem abertamente renegadas.

    Foi precisamente em vista dessa situao que ousamos alardear a renovao tericatrazida pelo BF para a filosofia poltica. Algo dessa amplitude no pode passar em branco;pelo contrrio, necessrio que possa instigar o pensamento, renovar os problemas,recauchutar pelo menos muito do que eventualmente pareceria mais certo. O estudo de

    Walquiria Leo Rego e Alessandro Pinzani constitui um passo decisivo nessa direo. Aosimplesmente demonstrar, sem necessidade de cambalhotas partidrias ou tericas, que oBF funciona e surte efeitos de grande importncia, de imediato todo um campo de inovaesconceituais que se abre, especialmente no que concerne ao entroncamento fundamentalentre autonomia, democracia e renda em dinheiro. Com efeito, os j mencionados efeitosintangveis do BF devem estender-se aos conceitos, teoria e prtica, e maisespecificamente ao ponto em que se tocam permitindo a forja de noes operatrias aquelas que o pensamento pode conceber e a poltica efetivar.

    42REGO & PINZANI, Vozes do Bolsa Famlia..., p. 154.

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    Direito ao dinheiro

    Nem por um momento devemos desprezar o fato de o programa BF alcanar amaior parte de seu pblico alvo, isto , famlias expostas pobreza e extrema pobreza,com uma lisura que poucas aes pblicas no Brasil so capazes de exibir: o dinheiro vaidos cofres federais s beneficirias sem intermedirios. As consequncias positivas soreconhecidas e acatadas por todos, inclusive os crticos do programa; no custa repetir:forte diminuio da subnutrio, melhoras nos ndices de educao e sade dos

    beneficiados, significativo incremento da economia das regies em que vivem taispessoas. Problemas h, evidentemente. Por um lado, a natural dificuldade de ampliaodo pblico beneficiado, sobretudo aquela parcela que se encontra em extrema pobreza etende a manter-se estruturalmente marginalizada; por outro, problemas pontuais, s vezesgraves, diretamente decorrentes da insensibilidade ou dos desmandos das autoridadeslocais (no por acaso o elo fraco do programa). Seja como for, nossa insistncia nosefeitos do BF sobre a subjetividade dos beneficiados, e em particular das mulheresbeneficirias, um ponto que deve ser agora inteiramente assumido para uma justaavaliao. Sob a perspectiva desses benefcios intangveis, por assim dizer, o BF no pode

    ser resumido a ao governamental de combate pobreza ou auxlio sobrevivncia;prioritariamente, consiste numa poltica pblica de cidadania43que nada tem a ver com atradio do assistencialismo, essa verso pblica da esmola ou da ajuda bem-intencionadaque, visando aplacar a piedade no corao das belas almas, somente perpetua a excluso.

    A partir da tese diretriz de que a renda regular em dinheiro um importanteinstrumento de autonomia individual e poltica44, Walquiria Leo Rego e AlessandroPinzani concluem que o BF um modelo de poltica democrtica, um processo deconstruo da cidadania democrtica,45 j que seu efeito primrio, alm de garantir asubsistncia imediata, o de fornecer uma base material necessria para que osindivduos possam desenvolver-se em direo a uma maior autonomia.46A poltica de

    transferncia estatal de renda no Brasil atual no simplesmente uma poltica de urgnciamoral que garante o direito vida, mas representa ainda o primeiro passo substantivao da nossa democracia.47E assim , reiteremos uma ltima vez, exato porse tratar de um benefcio regular em dinheiro, numerrio retirado na boca do caixabancrio. Por isso, um programa de cidadania no sentido mais prprio do termo, 48

    43REGO & PINZANI, Vozes do Bolsa Famlia..., p. 20, grifos nossos.44REGO & PINZANI, Vozes do Bolsa Famlia..., p. 20.45REGO & PINZANI, Vozes do Bolsa Famlia..., p. 210.46

    REGO & PINZANI, Vozes do Bolsa Famlia..., p. 69, grifo nosso.47REGO & PINZANI, Vozes do Bolsa Famlia..., p. 213.48REGO & PINZANI, Vozes do Bolsa Famlia..., p. 218.

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    dizem os autores com uma qualificao que se justifica pela eficcia do qualificado:concretamente capaz de intensificar a liberdade dos beneficiados, permite elevar o grau deliberdade de cada um. A independncia material garantida por meio do dinheiro umelemento essencial de tal liberdade e deveria ser considerada, portanto, um bem bsico eum objeto possvel de polticas pblicas voltadas criao de cidados autnomos.49

    Para a filosofia poltica, essa atribuio de sentido mais prprio a termosabstratos como democracia, cidadania, liberdade no pode ser minorada. O que torna oestudo em questo, ao menos a nosso ver, fundamental para uma abordagem filosfica do

    BF exatamente permitir recalibrar uma srie de conceitos luz da experincia.Positivamente falando, o programa um instrumento de construo democrtica pelodesvendamento do nexo indissolvel, em sociedades em que predomina o modo deproduo capitalista, entre dinheiro, liberdade e democracia.

    A menos que queiramos nos restringir ao plano das formalidades, inegvel que aindependncia econmica experimentada como condio de possibilidade daindependncia poltica, o que se desdobra numa relao igualmente inextricvel entreautonomia econmica e autonomia poltica.50 A no ser que sonhemos com sentidosabsolutos para noes como democracia ou liberdade, foroso constatar a originalidadedo BF (e assim atestar sua riqueza conceitual) ao atribuir contedos concretos, correlativos,isto , calcado em graus, a tais noes. Tornemos ao caso da liberdade sugerido pelodepoimento de Dona Amlia.

    Absolutamente considerada, a palavra diz muito pouco. Correlativamente, ganhasentido, pois remete a um processo de aproximao ou distanciamento com relao spresses que nos atingem de toda parte; a chave compreensiva est no mais, queimediatamente denota uma variao, uma movimentao, uma graduao. Liberdade, nessamedida, descompresso, ou seja, abertura para novas experincias, para a multiplicidadedelas; mais liberdade mais e mais vivncia dessas possibilidades, possibilidades de novaspresses de todo tipo, em contraposio vida esttica em que no h jamais nenhuma

    descompresso, somente a imposio de um destino absoluto, a perenidade da misria. oque transparece na figura do melhor invocada h pouco e que vem testemunhar orestabelecimento de uma movimentao vital que anseio de transio entre um estado demenor a um de maior liberdade que se d precisamente no interior daquela novatemporalidade experimentada pelas mulheres beneficirias do BF. Ora, em nossa sociedade,onde predomina o modo de produo capitalista, sem dinheiro isso no existe; e sem isso impossvel falar seriamente em democracia.Ergo...

    por a, ento, que do interior da ideia de democracia aflora um pressupostoessencial seu, componente daqueles a que no se reduz a coisa mas sem o qual ela se torna

    49REGO & PINZANI, Vozes do Bolsa Famlia..., p. 73.50REGO & PINZANI, Vozes do Bolsa Famlia..., pp. 218-219.

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    inconcebvel: o direito ao dinheiro. Dir-se-, com acerto, que no suficiente efetivao davida democrtica; mas tambm precisamos ter em mente que em sua ausncia a ideia dedemocracia perde relevncia. O direito ao dinheiro est na base dos demais direitos e nopor acaso s vezes qualificado o direito a ter direitos. Como noutras sociedades o direitobsico de ter direitos podia ou pode derivar do nascimento em tal lugar, da proveninciafamiliar, etc., na nossa, em troca, o direito a ter dinheiro e t-lo efetivamente o que dconsistncia a outros direitos: sade, educao, pensamento, alimentao, e assim pordiante; s ele capaz de garantir certa vitalidade, certo grau de liberdade, que garanta ao

    menos a possibilidade de usufruto dos direitos envolvidos pela vida democrtica.Por isso mesmo, vale dizer pensando no futuro do BF como instrumento de

    construo democrtica, nos prximos anos, talvez nas prximas dcadas, uma batalhacrucial dever ser travada no que respeita institucionalizao do programa. Que, emconformidade com a lei 10.835, de 8 de janeiro de 2004, que criou a Renda Bsica deCidadania a ser implementada progressivamente, o BF torne-se um direito legal de todos osbrasileiros a ser garantido pela sociedade, liberando-se inclusive, quanto possvel, dosdesmandos e das circunstncias polticas. Se for no bojo de uma espcie de Consolidaodas Leis Sociais, melhor ainda. Como toda poltica efetivamente radical, o BF precisa visar sua prpria dissoluo como poltica de um governo, mero programa ao sabor dos ventoseleitorais, para rumar instituio de um direito. Longe de o futuro do programa passarpelo cantilenado problema da porta de sada, ele aponta, isto sim, a um necessrioalargamento da porta de entrada, assumindo a forma definitiva de um direito universal de todobrasileiro ou residente no pas a um rendimento mnimo garantido.51

    Em suma, a teoria tem de conceber e a poltica deve buscar efetivar um direito aodinheiro. O trabalho certamente ser longo, mas a histria mostra que sempre assim. Atos anos 60, por exemplo, os EUA ainda desconheciam os direitos civis plenos; s com aconstituio de 88, como resultado de uma longa luta, alcanamos o direito sade e acriao dos SUS;52o direito ao transporte forjado hoje nas ruas em meio s bombas

    51 Da vasta bibliografia sobre renda mnima garantida (ou outras frmulas que, com variantes, exprimembasicamente o mesmo, como salrio social, renda bsica ou universal, etc.), pode-se consultar: SUPLICY, Rendabsica de cidadania: a resposta dada pelo vento; VANDERBORGHT e VAN PARIJS, Renda bsica de cidadania.Argumentos ticos e econmicos; NEGRI e COCCO, Bolsa famlia embrio da renda universal; BASIC INCOMENETWORK ITALIA, Reddito per tutti. Unutopia concreta per lera globale. Ademais, de grande interesse pensar oBF e sua possvel institucionalizao e universalizao em cotejo com o programa argentino de renda mnimapara as crianas; cf. AGIS, CAETE E PANIGO, El impacto de la asignacin universal por hijo en Argentina, eAsignacin universal por hijo, ciclo de conferncias realizado pelo Unicef-Argentina.52Ainda que ao custo de fugir um pouco de nosso assunto principal, oportuno e qui necessrio rebaterum preconceito disseminado, principalmente nas classes mdias: a ideia de que o Sistema nico de Sade

    brasileiro surgiu do nada e no passa de um lixo. Primo, aos mais jovens cumpre recordar que at aconstituio de 88 o atendimento gratuito estava reservado a trabalhadores formais, com carteira assinada,mediante o Inamps (Instituto Nacional de Assistncia Mdica da Previdncia Social); os no contribuintes ou

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    policiais. Nada garante que se ter sucesso; tampouco est escrito nas estrelas que nopossa ser assim. O BF ao menos um bom ponto de partida.

    Luta pelo dinheiro

    Uma das mais renitentes crticas ao BF diz respeito aos seus efeitos supostamentemalficos sobre a fora de trabalho: o programa a encarece, a escasseia, a desestimula, j

    que tornaria mais atrativo viver apenas do auxlio. Esse negcio de bolsas tira muita genteda atividade, e a mo de obra fica mais escassa para o produtor (...). Ningum quertrabalhar em mo de obra rural, porque j tem os auxlios. Isso est atrapalhando aproduo na nossa regio.53 Pitorescamente, mas de modo algum inexplicavelmente,crticas desse tipo replicam a dcadas de distncia o que se ouvia nos EUA, nos anos 30,acerca dos projetos e auxlios federais implementados pelo New Dealrooseveltiano: tornoucara a mo de obra, desestimulou o trabalho, e assim por diante. Como ilustrao, em 1934um executivo aposentando da companhia Du Pont escreve a um colega lamentando-se dasituao; s naquela primavera cinco negros haviam recusado trabalho dizendo quetinham empregos fceis com o governo.54 Exemplo acabado da falta de vontade de

    trabalhar e do apego vida fcil.Para os dois casos, assumamos que as crticas ecoam um fundo de verdade sobre os

    efeitos dos ditos programas governamentais. bem provvel que, mutatis mutandis, o que sepassou na Carolina do Sul (de onde escrevia o referido missivista) ou nas regies maispobres do vale do Mississipi encontre paralelo hoje na caatinga nordestina e no litoral deMaragogi. A gente miservel j no est merc da necessidade bruta de submeter-se a

    trabalhadores informais contavam apenas com a assistncia de instituies filantrpicas. Secundo, o artigo 196da Constituio federal que consagra a sade como direito (A sade direito de todos e dever do Estado...) o ponto de chegada de uma longa luta que, desde a segunda metade da dcada de 70, concentrou-se na RSB

    (Reforma Sanitria Brasileira) e envolveu uma importantssima discusso em torno da ideia de sade,buscando-lhe um sentido positivo como bem-estar fsico, mental e social cuja efetivao ficaria a cargo de umsistema de sade. Tertio, com mais ou menos duas dcadas e meia de funcionamento, o SUS foi capaz detransformar significativamente o panorama da sade brasileira: o acesso ao atendimento universalizou-se, apreveno existe, todos os ndices melhoraram, em especial os da populao mais pobre; o queevidentemente no quer dizer que o sistema desconhea gravssimos problemas (em particular definanciamento). Para a histria e pr-histria do SUS, cf. PAIM, O que o SUS; para um balano estatstico, cf.a reportagem especial da revista Carta Capital, n. 491 de 16 de abril de 2008; para os problemas definanciamento, cf. OCK-REIS, SUS: o desafio de ser nico; por fim, para um balano terico que engata com otema do BF, ver COHN, A reforma sanitria brasileira aps 20 anos dos SUS: reflexes.53A declarao do diretor de uma cooperativa de produtores de leite de Bom Despacho/MG; cf. Folha de S.

    Paulo, 22-10-2014, disponvel em: http://brasil.blogfolha.uol.com.br/2014/10/22/o-bolsa-familia-seu-nenem-a-falta-de-mao-de-obra-rural-e-a-emancipacao/54Apud RAUCHWAY, The great depression and the New Deal.

    http://brasil.blogfolha.uol.com.br/2014/10/22/o-bolsa-familia-seu-nenem-a-falta-de-mao-de-obra-rural-e-a-emancipacao/http://brasil.blogfolha.uol.com.br/2014/10/22/o-bolsa-familia-seu-nenem-a-falta-de-mao-de-obra-rural-e-a-emancipacao/http://brasil.blogfolha.uol.com.br/2014/10/22/o-bolsa-familia-seu-nenem-a-falta-de-mao-de-obra-rural-e-a-emancipacao/http://brasil.blogfolha.uol.com.br/2014/10/22/o-bolsa-familia-seu-nenem-a-falta-de-mao-de-obra-rural-e-a-emancipacao/
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    qualquer coisa e vender-se por no importa qual preo. Deve ser verdade, e tomara que oseja. Se for, e para ficarmos s no caso que nos incumbe, demonstra-se uma virtude maiordo BF. Alm de amenizar a situao desesperadora, na sequncia, e por via do flancoaberto na penria, desencadeia um processo de autovalorizaocujo primeiro indcio surge nareavaliao de si e de seu valor de troca no mercado de fora-trabalho o que basicamentequer dizer no se vender por to pouco quanto querem pagar os compradores. Desde omago do mundo da explorao insinua-se algo novo e inteiramente proporcionado peloBF. Ainda que parea irrisrio a muitos de ns, o benefcio bsico de R$ 77,00 faz uma

    diferena de vulto em regies onde homens e maridos desempregados vivem de bicos ecostumam ajuntar apenas 30, 40 reais ao final do ms.55Num momento posterior, e com odescolamento da imagem de pau para toda obra inteiramente disponvel, as mulherestambm reavaliam a si mesmas de outro aspecto, como seres humanos; a renovadaautopercepo desponta inequivocamente nos batons e cremes adquiridos com o dinheirodo benefcio, e de cujo significado j falamos. E assim prossegue. Quer-se ir sorveteria,comprar brinquedos para os filhos, v-los estudados; queixam-se dos entraves burocrticose principalmente dos baixos valores dos repasses. um processo galopante que culminanuma genrica vontade de dinheiro, guisa de expresso da certeza de que, embora nem todosos desejos se realizem pelo vil metal, sem este sequer h desejos; em sua ausncia de modoalgum a vida poder ser melhorsegundo Dona Ins, tudo que quer fazer na vida comdinheiro, pagando.56

    Ora, justamente a partir desse quadro que o BF, mais uma vez, mostra-se capazde arejar os conceitos tradicionais. E no caso a ideia de luta de classes. Nesse tpico, nossospassos precisam ser mais cautelosos que nunca; nem por isso devemos temer realiz-los, jque uma correta ponderao desse aspecto crucial para a compreenso do significado doprograma, de seus efeitos e de seu porvir.

    Como dito, parece-nos razovel assumir que tm algum fundamento as vriasreclamaes relativas ao encarecimento da mo de obra e a recusa ao trabalho mal,

    pessimamente pago. Com efeito, a entrada em cena de todo um contingente de novosportadores de vontade de dinheiro no poderia seno implicar alguma perturbao nadistribuio tradicional desse objeto de desejo que at onde nos consta finito. O X daquesto est no fato de que o BF, segundo a razo de seus efeitos, jamais pretendeu ser umprograma que passasse pela supresso do poder do dinheiro ou pela desmercantilizao da

    vida; o X no por que assim nem como mud-lo, mas em que bolsos ele, o dinheiro,est e de que modo a distribuio pode ser mais equitativa. O esquerdista saudosoreclamar que isso no leva a nada, pois no contempla a algo que possa ser subsumido aseu ideal de luta de classes (ah, os anos 80!); no ver ele no BF seno o cala -boca do

    55Cf. REGO & PINZANI, Vozes do Bolsa Famlia..., p. 113.56D. INS apudREGO & PINZANI, Vozes do Bolsa Famlia..., p. 134.

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    poder para conduzir disneylndia do consumo um amontoado de gente que estava defora. Ser essa a ltima palavra? Certamente no. Porventura o BF nos desvende uma dasformas fundamentais do antagonismo de classes nossa poca, a do capital financeiroglobalizado e em que o capitalismo desconhece um fora a partir do qual se pudesseorganizar a reao; ele centra-se numa contradio interna que, tensionada, pode assumir aforma madura de uma luta pelo dinheiro.

    De novo, ouamos Dona Ins, um senhora inteligente como poucos de ns.Quem pobre, explica, precisa de ajuda. O mundo feito assim, tem que ter o apoio

    de quem tem condio. assim na sociedade, na nossa casa, na escola, na igreja... 57.Nessas palavras, colhemos trs dados de grande importncia: 1) uma partio entre osque tm e os que no tm condies, e insero de si mesma num grupo ereconhecimento da diferena com relao a outros; 2) o dever de um desses grupos deajudar o outro, o que explicita a diversidade de interesses; 3) afirmao de que assimtem de ser porque assim no inteiro da vida social, e consequentemente apreenso deuma generalidade que vai alm de casos particulares.

    Patenteia-se a que, concomitantemente ao despertar poltico individual quetentamos colher mais atrs, aflora tambm uma conscincia poltica coletiva;reconhecimento mtuo entre os que direta ou indiretamente se beneficiam do programa;incipiente conscincia de classe que se vai formando com a percepo do antagonismoentre os que tm e os que no tm dinheiro.

    Deixemos de lado os em si e para si que se costumam aglutinar, em geralsem proveito, ao termo classe. Em troca, insistamos no compar tilhamento de umconjunto de experincias, muitas delas novas, por milhes de pessoas, mulheres,homens, crianas. o que torna materialmente possvel o reconhecimento mtuo quetentamos apreender. Coisas novas esto acontecendo e afetando a muitos ao mesmotempo; em simultneo, muitas mulheres experimentam a independncia relativamenteaos maridos; simultaneamente muitas crianas experimentam, junto ao sabor das

    bolachas recheadas, a possibilidade de um futuro que v alm do s ficar por afuturando. A quem espera uma conscincia de classe grandiosa que adentra a histria ea transforma revolucionariamente, deve ser decepcionante. A conscincia que tentamosidentificar em germe no um elemento heroico nem ideal; um saber partilhado, umacom-cincia de vivncias comuns, identificao, no outro e nos outros, de umacomunidade de experincias, formas de vida, costumes, interesses, acarretada pelaindita condio de posse de uma renda monetria regular. Ora, podero experinciascomo o consumo de iogurte encetar tal processo de aquisio de um saber comum,uma conscincia coletiva? Sim. Por que no? Noutros tempos se dizia que a classemdia era revolucionria porque ela, e s ela, conhecia o sabor do camaro e ao mesmo

    57D. INS apudREGO & PINZANI, Vozes do Bolsa Famlia..., p. 134.

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    tempo carecia de dinheiro para compr-lo; aqui algo semelhante, e em nada diferente decomo o preo do po (e portanto a alternativa entre consumi-lo ou no) servia na

    virada dos sculos XVIII-XIX na Inglaterra de estopim de revoltas, desde a tomada deconscincia de uma condio comum. Tanto nas comunidades rurais como nasurbanas, uma conscincia de consumidor precedeu outras formas de antagonismopoltico ou industrial.58

    A passagem comum, reciprocamente verificada e valorizada do macarro a granelao de pacote, a descoberta dos cremes de cabelo e das idas sorveteria so ndices de uma

    ampliao do desejo, da vontade de dinheiro que possa satisfazer tais desejos; o queextensivamente conduz delimitao dos interesses do grupo e dos grupos de interesses e,no limite, pode constituir o solo de um antagonismo organizado desde o interior mesmo dacondio que todos ns, no interior de uma sociedade em que predomina o modo deproduo capitalista, forosamente compartilhamos: portadores de dinheiro, compradorese vendedores. maneira do masoquista que estrategicamenteaprende a gozar com a lei quelhe oprime,59 acatando-a integralmente para de seu interior subvert-la, os sem-dinheirolutam pelo dinheiro. Queremos consumir. No aceitamos menos do que j temos. A

    vida pode e deve ser melhor. J que estamos, por circunstncias que fogem nossavontade, condenados ao inferno do dinheiro, tratemos sem pruridos de abraar o demnio.A luta pelo dinheiro o reconhecimento de que a maior ofensa do dinheiro no opossuir; um combate pelo direito ao dinheiro, pelos direitos e pela possibilidade, ao menos,de uma sociedade democrtica, j que sem o vil metal, bom no esquecer, no hautonomia nem liberdade nem direitos nem nada.

    Nas mais espantosas catedrais gticas, os levssimos vitrais, que para algunstransmitem a essncia da espiritualidade, no se ergueram sem fundaes bem feitas emuito trabalho sujo de gente miservel. Assim mesmo, os mais altos valores no tm valor,mas tm preos; e s a luta de classes pode pag-los. A moradora do Vale do Jequitinhonhae o filsofo alemo, mesmo que por vias diversas, igualmente o sabem. O xito do BF

    como poltica de cidadania e instrumento de construo de uma sociedade democrticadependem de que ns tambm o saibamos.

    58Cf. THOMPSON, A formao da classe operria inglesa, I, p. 66. Para evitar mal-entendidos, deixemos claroque no apregoamos que toda a conscincia de classe tenha esse feitio. Apenas afirmamos que a conscinciade classe que hoje emerge entre os beneficirios do BF tal; poderia ser outra caso surgida, por exemplo,entre operadores de telemarketing.59

    Cf. DELEUZE, Sacher-Masoch. O frio e o cruel; SANTIAGO, Deleuze leitor de Masoch: da sintomatologia tica, especialmente a nota 25, em que a estratgia masoquista aproximada da ideia de acelerao doprocesso capitalista (preconizada noAnti-dipo) e da reivindicao de um salrio social.

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    MONEY, FREEDOM, DEMOCRACY (CONCEPTS FROM BOLSA FAMLIA)

    Abstract:The publication of Walquiria Lion Regos and Alessandro Pinzanis Vozes do BolsaFamlia shows what can be described as a philosophical concerns on the Bolsa Famlia.Specially, the study allows to re-exam the content of concepts such as freedom and autonomyto link them to money. The implications of this conceptual review are very important to thepolitical struggle, which should focus on the establishment of a right to money and take theform of struggle for money.Keywords:Bolsa Famliamoneyfreedomdemocracy.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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