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A presente edição segue a grafia do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa [email protected] www.marcador.pt facebook.com/marcadoreditora © 2016 Direitos reservados para Marcador Editora uma empresa Editorial Presença Estrada das Palmeiras, 59 Queluz de Baixo 2730-132 Barcarena Título original: 100 Heróis e Vilões Que Fizeram a História de Portugal – Tudo o que precisa de saber Autor: Pedro Rabaçal Revisão: Rui Augusto Pré-impressão: Fotocompográfica, Lda. Capa: Ideias com Peso/Marcador Editora Impressão e acabamento: Multitipo – Artes Gráficas, Lda. ISBN: 978-989-754-223-7 Depósito legal: 405 124/16 1. a edição: março de 2016 O autor assume, de forma individual, toda a responsabilidade pelos textos, opiniões e outros materiais publicados nesta obra, assegurando a originalidade do copyright e a não violação de direitos de terceiros.

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A presente edição segue a grafia do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa

[email protected]/marcadoreditora

© 2016Direitos reservados para Marcador Editorauma empresa Editorial PresençaEstrada das Palmeiras, 59Queluz de Baixo2730-132 Barcarena

Título original: 100 Heróis e Vilões Que Fizeram a História de Portugal– Tudo o que precisa de saberAutor: Pedro RabaçalRevisão: Rui AugustoPré-impressão: Fotocompográfica, Lda.Capa: Ideias com Peso/Marcador EditoraImpressão e acabamento: Multitipo – Artes Gráficas, Lda.

ISBN: 978-989-754-223-7Depósito legal: 405 124/16

1.a edição: março de 2016

O autor assume, de forma individual, toda a responsabilidade pelos textos, opiniões eoutros materiais publicados nesta obra, assegurando a originalidade do copyright e a nãoviolação de direitos de terceiros.

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VIRIATO:Símbolo de uma nação, muito antes de esta o ser

Que Viriato seja um herói nacional na nação portuguesa não é motivode estupefação: elogiado como um guerreiro valoroso e virtuoso pelos pró-prios romanos, as suas capacidades de estratega foram equiparadas às deJúlio César e Alexandre da Macedónia. A par do gaulês Vercingetórix e dogermano Armínio, foi um dos chefes bárbaros que abalou o avanço da po-derosa loba romana, embora à custa da própria vida (só Armínio salvaguar-dou a liberdade do seu povo) e, por isso mesmo, ainda hoje é respeitado elouvado. Irónico que também seja herói nacional de Espanha, tendo men-ções honrosas em crónicas medievais e estátuas contemporâneas em cida-des como Zamora. Durante as guerras entre os reinos ibéricos, terá havidopropagandistas a utilizar o exemplo de Viriato na luta contra os portugue-ses?

Sabe-se pouco sobre o líder luso, pelo que a dedução e a imaginaçãotiveram grande destaque nos escritos sobre tal personagem. Provavelmen-te, utilizava uma variedade local de túnica, polainas de lã, uma capa negra epossuía cabelos longos, que atava num rabo-de-cavalo durante os comba-tes. O seu equipamento militar devia incluir couraças de linho e cotas demalha, além de capacetes de couro ou de bronze. Pelo menos, assim é des-crito o vestuário dos guerreiros lusitanos pelos historiadores e geógrafosantigos.

Muito provavelmente, a palavra «Viriato» provém da palavra celta «vi-riae» nome dado aos braceletes utilizados pelos líderes guerreiros, à seme-lhança do colar designado «Torquato», convertido num nome ainda hojeutilizado. Nada de espantar, se se relembrar que imigrantes celtas se instala-ram na Península Ibérica, originando povos como os Celtiberos e os Célti-cos, contemporâneos e aliados de Viriato. Se «Viriato» é um nome próprio,apelido, alcunha ou título, isso ainda está por descobrir.

Pastor durante a juventude, era forçado a defender o gado de animaisselvagens, não sendo difíceis as suas conversões sucessivas em caçador,bandoleiro e, posteriormente, guerreiro. Diga-se de passagem que os roma-nos não viam grande diferença entre um latronum dux (chefe de ladrões) eum chefe guerrilheiro: não possuíam palavras para designar a luta de guerri-lha, típica dos lusitanos e considerada pelos latinos como inferior à guerra

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convencional (e denegrir o adversário nunca sai de moda). Quanto ao exér-cito romano, estava acima das pilhagens e da extorsão: só recolhia «despo-jos de guerra» e «tributos»...

O seu percurso de vida faz lembrar Rómulo, o lendário fundador deRoma, justificando o apodo de «Rómulo Ibérico», tendo até um historiadordeclarado que só a morte prematura evitou a sua entronização. Afirmaçãoelogiosa mas improvável, dado os dirigentes lusos serem eleitos por assem-bleias e dividirem-se em comunidades independentes.

Embora os Lusitanos fossem considerados pelo invasor romanocomo o povo mais valente e belicoso da Hispânia, os seus talentos comba-tivos devem ter sido influenciados pelo exterior. É sabido que os Cartagi-neses, povo norte-africano originário da Fenícia e rival de Roma,conquistaram parte da Península Ibérica, levando as legiões romanas a in-vadir tais territórios por «autodefesa» — uma vez vitoriosas, passaram aconquistar os povos locais em nome do lucro... Ora, as tropas dos famososgenerais Amílcar Barca e Aníbal Barca incluíam mercenários lusitanos, elo-giados pelas crónicas da época. O poema épico Púnica descreve um coman-dante lusitano ao serviço de Amílcar e morto na luta contra os romanos naPrimeira Guerra Púnica: também se chamava Viriato!

Tais relações entre ambos os povos podem explicar porque é que osprimeiros líderes lusitanos a lutar contra o invasor romano eram conheci-dos como Púnico (nome romano dado aos fenícios) e Césaro (nome simi-lar à palavra fenícia para elefante, animal comum nas tropas cartaginesas).É tentador indagar se o génio de Viriato — o ladrão, não o mercenário —não terá sido influenciado pelos relatos de Aníbal, tornando ainda maisadequado o epíteto elogioso atribuído pelos romanos ao guerreiro lusitano:Aníbal dos Iberos.

As lutas luso-romanas em território peninsular começaram aproxima-damente em 194 ou 193 a. C., com vitórias e derrotas de ambos os lados.Ao que parece, a falta de terras resultante da desigualdade social para como povo lusitano levava os mais pobres a enveredar pela pilhagem e a con-quista, em especial das povoações pertencentes à próspera civilização ro-mana, pelo que as chamadas Guerras Lusitanas não constituíam somenteautodefesa perante as legiões invasoras...

Em 151 a.C., um exército lusitano foi derrotado pelo pretor SérvioSulpício Galba, antepassado do imperador homónimo, levando os venci-dos a propor a deposição das armas a troco de terras de cultivo e pastoreio.Galba aceitou e dividiu-os em três territórios enquanto confiscava todo oseu armamento — para depois massacrar cerca de 9000 e escravizar uns 10mil. Mil fugitivos souberam evitar o suplício e o cativeiro, dos quais umprovaria que não o fez recorrendo à sorte: era Viriato, o qual viveu para lu-tar noutro dia e ganhar a imortalidade histórica.

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Quebrar acordos internacionais já era um ato criminoso na época, lo-go, Galba foi levado a tribunal, em 149 a. C., por ter quebrado os juramen-tos feitos aos deuses. O advogado dos lusitanos era o lendário MárcioPórcio Catão, o Censor, grande estadista da época, impiedoso e defensoracérrimo da moral e das tradições romanas. Excelente orador, Catão souberefutar a defesa de Galba, baseada numa alegada vontade dos lusos de vio-lar o acordo: o que importa são as ações, não as intenções («Se quiseraprender adivinhação, isso torna-me um adivinho?», perguntou). Galba re-correu à emotividade barata, exibindo os filhos e um enteado chorosos aimplorarem piedade ao Senado. Ironicamente, safou-se recorrendo à ação,e não às palavras — entregou parte da fortuna saqueada ao Estado. Cincoanos depois, foi eleito cônsul de Roma, juntamente com Lúcio Aurélio Co-ta. Custa a acreditar que uma história tão familiar tenha ocorrido há maisde 2100 anos...

Um exército de 10 mil lusos foi cercado pelo general Caio Vetílio em147 ou 146 a. C., levando, por medo do extermínio, alguns sitiados a pro-por a rendição em troca de terras. Um assediado não estava assim tão de-sesperado e opôs-se à proposta, beneficiando de um argumento de peso:Viriato, cuja sobrevivência à traição do perjuro Galba testemunhava quãopouco fiável seria um acordo com o inimigo. Mais valia morrerem a lutarcom dignidade, de acordo com um ditado moderno: perdido por cem, per-dido por mil.

O plano de Viriato era simples e ousado: o exército dividir-se-ia emgrupos suficientemente pequenos para atravessarem discretamente as li-nhas inimigas e depois se dispersarem num vasto território. Viriato liderariaum grupo encarregado de atrair a atenção de Vetílio, que o seguiria numcaminho aos ziguezagues, levando-o até um local geograficamente ideal pa-ra uma armadilha, no qual todos os grupos se juntariam para participar naemboscada. Não só o plano foi aceite, como também teve sucesso: os anti-gos sitiantes foram derrotados e um lusitano matou um «velho obeso», nãoimaginando que este fosse Vetílio. A sorte sorri aos audazes, como dizia oditado romano.

Viriato ganhou grande fama, respeito e a eleição como líder, pois nãoé qualquer um que converte uma situação desesperada numa vitória esma-gadora. Tornar-se-ia no mais poderoso dirigente do povo lusitano (é duvi-doso que o tenha unificado, pois estava fortemente dividido em clãs etribos) e adquiriria o apoio de povos celtibéricos como os Titos, os Areva-cos e os Belos.

O estilo de vida do Rómulo Ibérico era típico dos lusitanos rústicos dasmontanhas: dormia no chão, comia e bebia com frugalidade, além de prati-car exercício físico com frequência, provavelmente pugilato, ginástica, tiro

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ao arco e combates simulados, desportos tradicionais do seu povo. Era há-bil no manejo da lança, arma vulgar dos lusitanos e habitualmente comuma ponta similar à dos arpões. Tais hábitos e habilidades acentuaram asua popularidade, assim como a partilha equitativa dos espólios de guerra,na qual se mostrava pouco ganancioso. Só o facto de ter controlado tantastribos, sem nunca ter sofrido nenhuma revolta interna, demonstra quãorespeitado — e temido — deve ter sido.

Não basta o valor combativo e o exemplo pessoal para travar umaguerra: também são precisos aliados poderosos e recursos materiais, moti-vos pelos quais Viriato contraiu matrimónio com a filha de Astolpas, ricolatifundiário da região designada Bética. Contudo, no banquete do casa-mento deixou claro que o luxo não o iria corromper e qual o seu grau deafeto para com o sogro. Olhou com desprezo os metais preciosos, tecidoscaros e iguarias do banquete, preferindo comer pão e carne, depois de opartilhar com os seus camaradas de armas. Quando Viriato questionouo sogro sobre o motivo de os romanos nunca terem tentado tirar-lhe as ri-quezas, Astolpas respondeu que nunca tinham tentado. O recém-casadoretorquiu: «Se esses senhores te têm concedido total imunidade e uso abso-luto desses bens, porque abandonas tais coisas e te queres aliar à minha vi-da livre e humilde condição?» A mensagem era clara: não vale de muitopossuir e desfrutar riquezas quando não se possui a força necessária para asmanter. A relação entre sogro e genro terminou pior do que começou, da-do Viriato ter executado Astolpas por este se ter aliado aos romanos.Tendo em conta as punições judiciais lusitanas, talvez tenha sido atirado deum precipício, gesto não impopular entre certos homens casados.

Outra qualidade de Viriato era ser um orador de talento, recorrendo aparábolas, muito populares na Antiguidade. Ao povo de Tucci (hoje, Mar-tos, Espanha) censurou o hábito de mudar de aliados, ou seja, de se aliarema Roma ou a Viriato, consoante os seus interesses. Comparou-os a um ho-mem com duas mulheres (talvez amantes, pois os lusitanos eram monóga-mos, ou seja, só podiam ter uma esposa), uma jovem e outra idosa.A jovem arrancava-lhe os cabelos brancos para lhe dar uma aparência maisjovem. A idosa fazia o mesmo aos cabelos escuros, pois não apreciava pa-recer mais velha que o companheiro. E o resultado de agradar a duas mu-lheres diferentes levaria o infeliz a ficar completamente careca. Tal comoos tucitanos ficarão sem nada enquanto procuraram agradar em simultâneoa romanos e lusos.

Mas não é possível tornar-se um grande comandante militar a partirde um povo de fracos. Os lusitanos eram excelentes cavaleiros, com mon-tadas velozes ao ponto de um mito (ou piada) afirmar que as suas éguaseram fecundadas pelo deus do vento! A tática de simular fugas para atrair

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os perseguidores a armadilhas, como terrenos montanhosos onde não con-seguiam proteger-se dos projéteis inimigos, era uma das favoritas dos lusi-tanos. O génio de Viriato não foi inventar novas estratégias, mas utilizá-lascom uma destreza incomum, obtendo oito anos de vitórias contra as le-giões que subjugaram o mundo conhecido de então.

Um dos generais derrotados por Viriato foi Fábio Máximo Serviliano,irmão adotivo do Cipião Emiliano que escravizou e exterminou a popula-ção de Cartago nessa mesma altura. Numa ocasião, Serviliano provou quaisos seus valores morais ao escravizar 10 mil cativos ibéricos, excetuandocerca de 500 condenados à morte e um grupo condenado ao corte dasmãos direitas, clara vingança e paródia do costume lusitano de oferecer asmãos direitas dos prisioneiros de guerra sacrificados aos deuses. Repare-secomo os sacrifícios humanos eram um mal universal, partilhado pelos fení-cios e os citas de então: até ao século II a. C., os romanos enterravam inimi-gos capturados para apaziguar a cólera divina, em caso de desastre militar.

Vítima de uma emboscada, Serviliano recebeu outra surpresa: Viriatofez-lhe uma proposta de paz, em vez de aproveitar outra vitória iminente,gesto inaudito da parte de quem jurara inimizade eterna a Roma e testemu-nho de como os romanos violavam os acordos de paz. É provável que o lí-der luso estivesse saturado de guerras sem fim, ou tivesse sido sensível àsqueixas dos correligionários ansiosos por paz, podendo ainda ter consciên-cia de que não podia resistir para sempre à maior potência militar da região,como os cartaginenses descobriram.

Um tratado de paz foi assinado em 140 a. C., rapidamente ratificadopelo Senado, e Viriato passou a ser reconhecido como amicus populi romani(«amigo do povo romano»), título habitualmente atribuído aos monarcasaliados de Roma. Se Viriato não era assim tão ingénuo e esperava ao me-nos conseguir um período de tréguas, estas não duraram muito, dado osromanos terem rapidamente recomeçado as hostilidades. Ao que parece,«paz vergonhosa» (deformem pace) não significava paz injusta, mas impostapor inimigos vitoriosos...

A despeito de novas vitórias, muitos lusitanos continuavam a ansiarpela paz e convenceram Viriato a tentar negociá-la uma vez mais. O «Aní-bal dos Iberos» envia os amigos Audax, Ditalco e Minuro, este último de-nominado Nicorontes pelo cronista Diodoro de Sicília (o nome é grego,mas o historiador também — a Sicília estava repleta de colónias gregas).Quinto Servílio Cipião, novo comandante das legiões ibéricas, revelou-setão excelente negociador que as persuadiu a assassinar o seu chefe, a trocode uma avultada recompensa, a qual talvez incluísse benefícios para Urso(hoje, Osuna), cidade natal do trio e em poder de Roma. O precavido líderdormia de armadura, para o caso de ser atacado por tropas inimigas, não

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tendo previsto que homens de confiança entrassem na sua tenda, à noi-te, para golpearem o seu pescoço desprotegido. Assim morreu Viriato, em139 a. C.

Embora os ritos fúnebres obedecessem às tradições lusitanas, a dorpela morte do líder foi descomunal. Viriato foi cremado numa pira de altu-ra considerável e realizaram-se hecatombes (nome grego dado ao sacrifíciode uma centena de animais da mesma espécie) de bodes e cavalos, bem co-mo combates de 200 pares de lutadores (algo similar aos gladiadores), ini-cialmente parte dos funerais romanos, antes de se converterem numespetáculo de massas. Segundo Diodoro: «Enquanto comandava, foi maisamado do que alguma vez alguém foi antes dele.»

Audax, Ditalco e Minuro-Nicorontes descobriram não ser exceçõespara a tradição romana de quebrar a palavra dada, quando a única recom-pensa de Cipião foi um sermão hipócrita: «Nunca foi do agrado dos roma-nos que um comandante fosse morto pelos seus soldados» (a frase «Romanão paga a traidores» é uma invenção literária, mas soa melhor). O novodirigente luso, Táutalo ou Tautamo, não tinha o talento e o carisma de Vi-riato e foi rapidamente derrotado. Cipião não recorria à astúcia apenas nohomicídio de inimigos: percebendo que os lusitanos nunca se resignavamperante a brutalidade de Roma, concedeu-lhes as terras tão almejadas, semrecorrer a massacres, mutilações e escravatura em grande escala. Contudo,muitas tribos continuaram a luta, sendo derrotadas em diversas campanhaspor Décimo Júnio Bruto (da família do assassino de Júlio César), Júlio Cé-sar e Pompeu.

No entanto, o valor combativo dos lusitanos foi admirado e respeita-do pelas gerações greco-romanas posteriores, as quais glorificaram Viriatocomo um símbolo das virtudes das filosofias cínica e estoica, incluindo atéo estadista-filósofo Cícero. Quando o imperador Augusto dividiu a Hispâ-nia em três províncias, uma delas foi batizada Lusitânia, numa clara home-nagem a um adversário digno (aliás, era até maior do que a Lusitânia«original» e englobou quase todo o Portugal moderno). Repare-se numpormenor histórico: no século II d. C. foi criada a província da Galácia, emhomenagem ao povo galaico (ou calaico), cuja subjugação também não foinada fácil para Roma. Ora, alguns lusitanos eram considerados galaicos e aGalácia converteu-se na Galiza moderna, terra de onde surgiu o reino por-tuguês, inicialmente um condado galego. A história e as ligações entre por-tugueses e galegos são muito mais íntimas do que se julga.

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II

MÁRTIRES DE LISBOA:Biografia tão duradoura quanto curta

Morrer pelos ideais em que se acredita é um ato de grande coragem(ou loucura), especialmente quando não implica mortes alheias, sendo omartírio considerado por alguns como uma forma de heroísmo e exemplode firmeza moral e autossacrifício, exceto para cínicos ou críticos dos valo-res em questão.

Mártires não rareiam na história do cristianismo, tendo a Igreja Católi-ca o hábito de os canonizar, como se uma morte nobre implicasse sempreuma vida virtuosa. As histórias de alguns mártires estão cobertas pelo véuda lenda, não sendo fácil separar a verdade do mito. Parece ser esse o casodos irmãos Veríssimo, Máxima e Júlia, cujas biografias são bastante vagas epossuem versões divergentes. De qualquer maneira, mesmo pouco conhe-cidos, são os primeiros santos oficiais de Portugal, uma nação de forteidentidade católica.

O mártir em estudo é S. Veríssimo, padroeiro da diocese do Porto edas paróquias de Paranhos, Valbom, Nevogilde, Lagares (Felgueiras) e SãoVeríssimo, de Amarante. Esse nome pode ser um título ou alcunha, dadoser superlativo de «vero» ou «verdadeiro» em latim. Segundo a versão maisdifundida, Veríssimo, Júlia e Máxima eram a prole cristã de um senador deRoma quando receberam a visão de um anjo, bem como a ordem parairem para Olisipo (atual Lisboa), onde receberiam o supostamente desejadomartírio pelas suas crenças. Por esse motivo, costumam ser representadoscomo romeiros de bordões compridos. Outra versão afirma que eram olisi-ponenses de gema.

S. Veríssimo, Sta. Júlia e Sta. Máxima viviam numa sociedade pagãpouco apreciadora do monoteísmo judaico-cristão, descrito como «supers-tição» pelos defensores dos deuses tradicionais, como Júpiter, equivalenteromano do grego Zeus, cuja filha Atena nasceu já adulta, vestida e armadaquando a cabeça paterna foi aberta com um golpe de machado. Frequente-mente discriminados e ridicularizados pela sociedade romana, os cristãoseram acusados de incesto e orgias sexuais, sinal da incompreensão dos en-contros onde os fiéis de Cristo confessavam os pecados cometidos, secumprimentavam com o «beijo da paz» e se tratavam por «irmãos». Comoestá escrito na Epístola a Tito (1:15): «Tudo é puro para os que são puros

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(Omnia munda mundis), mas para os corrompidos e incrédulos nada é puro;antes, tanto sua mente como seu coração estão contaminadas.» Frase feita àmedida da época em que foi escrita — e simultaneamente intemporal.

Contudo, a crise de valores que afetava o Império Romano lançou nodescrédito as crenças tradicionais e banalizou as guerras civis. Ou seja, opúblico romano estava preparado para aceitar a espiritualidade das religiõesdo Médio Oriente, em especial a cristã, mais «democrática» que as tradicio-nais, cujos «mistérios» (rituais secretos) e paraísos estavam reservados àselites. O crescimento da comunidade cristã levou o imperador Dioclecianoa decidir o seu extermínio, por meio de perseguições muito mais abrangen-tes que as realizadas por Nero, Domiciano, Sétimo Severo e outros. Aoscristãos foi dada a oportunidade de sacrificar animais aos deuses, sob penade severas punições. As execuções celebrizaram-se pela sua brutalidade,embora fossem minoritárias: um máximo de 3000, segundo alguns historia-dores. Era mais lucrativo condenar os cristãos a trabalhos forçados nas mi-nas, e existiam ainda punições alternativas como a amputação de membros.

Vários abjuraram a sua fé (alguns regressaram quando tiveram opor-tunidade) ou recorreram a uma tradição universal de grande eficácia e pou-co sacrílega: suborno. Sendo cada apostasia confirmada por um atestadooficial, subornavam-se as autoridades para conseguir documentos falsos.Tal método não era lá muito nobre, mas ter «estofo» para o martírio é pri-vilégio de poucos e subornar gera problemas de consciência menos gravesque a renúncia forçada às crenças. Morrer por Cristo era a suprema provade fé e algo glorificado pelos escritores cristãos da época, como Tertuliano,havendo vários relatos e lendas sobre mártires da Roma antiga, incluindo odos irmãos em questão.

Uma vez chegados a Olisipo após uma viagem pelo mar, Veríssimo eas irmãs apresentam-se ao governador Tarquínio, ou Ageiano, segundo ou-tra versão, manifestando a sua fé cristã e a recusa em abandoná-la. Nãotendo sucesso as promessas, Tarquínio (ou Ageiano) decidiu sujeitá-los auma sucessão de torturas: espancamentos, açoitamento com varas ásperase cheias de espinhos, ecúleo, unhas de ferro, lâminas em brasa. Igualmentesem sucesso.

Veríssimo, Júlia e Máxima acabaram por ser arrastados pelas ruas dacidade e transportados até a meio do Tejo, onde foram atirados com pesa-das pedras atadas ao corpo. Todavia, os cadáveres voltaram rapidamente àsuperfície, fenómeno considerado milagroso (as pedras podiam estar malatadas). Talvez enfurecido, o governador interditou o sepultamento dosmortos, destinados à alimentação de aves e cães, mas como os animais nãoprovaram de tal ementa, lançaram-nos ao mar. Os corpos acabaram por serencontrados na praia por correligionários, que os recolheram e sepultaram

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num local onde se construiu posteriormente uma Igreja para os homena-gear. A morte dos irmãos teria ocorrido a 1 de outubro de 303 ou 304.A maior das perseguições anticristãs foi a última: Diocleciano abdicou e,poucos anos após o seu óbito (306), Constantino converteu Roma ao cris-tianismo em 313. O Panteão romano, composto por milhares de divinda-des, foi erradicado pelo deus israelita.

Quando uma história famosa é parca em detalhes, recorre-se à imagi-nação para a embelezar: os relatos sobre a suposta paternidade senatorialdos irmãos são muito posteriores aos primeiros registos da sua história. Deresto, o público não parece apreciar heróis de condição humilde, preferin-do portadores de sangue azul ou de empregos fascinantes, não padeiros epastores. Uma das primeiras menções hoje conhecidas do trio de mártires éo Martirologium escrito por Usuardo, monge beneditino do século IX queviajou à procura de relíquias de santos em várias cidades e povoações his-pânicas. Segundo uma teoria do padre e historiador Miguel de Oliveira, ostrês irmãos romanos já possuíam um lugar no calendário hispânico cristãoaproximadamente dois séculos antes dos escritos de Usuardo.

Quando as tropas de D. Afonso Henriques cercaram Al-Ushbuna(Lisboa árabe), um cruzado inglês relatou a conquista com fascinantes deta-lhes, mencionando como os moçárabes locais prestavam culto aos martiri-zados: «Sob o domínio dos reis cristãos, antes que os mouros a tomassem,num lugar junto da cidade, e que se chama Campolide, venera-se a memó-ria dos três mártires, Veríssimo, Máxima e Júlia, virgem, de cuja igreja, to-talmente arrasada pelos mouros, restam somente três pedras comolembrança da sua destruição, as quais nunca dali puderam ser retiradas.»

D. Afonso Henriques, o vitorioso conquistador de Al-Ushbuna, orde-naria a construção de uma ermida — ou ampliação da já existente, segundooutra versão — em homenagem aos três irmãos, concedida pelo filhoD. Sancho I às Comendadeiras da Ordem de Santiago, encarregada daguarda das relíquias. Estas últimas seriam transferidas para um novo con-vento por ordem de D. João II, a 5 de setembro de 1490, denominadoSantos-o-Novo, levando a novo batismo da antiga morada tumular: San-tos-o-Velho. Ainda hoje é possível ver na Igreja de Santos-o-Velho aspedras onde os jovens terão sido acorrentados em vida (pormenor impro-vável e que soa a atrativo para turistas e peregrinos).

Em 1529, a comendadeira D. Ana Mendonça, alegando obedecer auma ordem divina recebida num sonho, depositou os restos mortais numrelicário de enorme valor e talento artístico, dotado da inscrição: «Sepulturados santtos martyres S. Verissimo, Santa Maxima & Iulia, filhos de hum se-nador de Roma, vindos a esta cidade a receber martírio, por revelação doAnjo. Iazem nesta sepultura os seos santos corpos, os quaes há 1350 annosque padecerão & forão trasladados a esta casa onde jazem.»

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A lenda de Veríssimo, Júlia e Máxima foi representada em quatro pai-néis atualmente presentes no Museu Carlos Machado, em Ponta Delgada,da autoria de Garcia Fernandes ou de Cristóvão de Utrecht. A arte é inte-ressante, embora peque por falta de fidelidade à lenda: os quadros da IdadeMédia e dos séculos posteriores representavam as personagens com o ves-tuário e os penteados das épocas em que foram elaborados. Neste caso, osmártires estão vestidos com os fatos coloridos utilizados pelos portuguesesabastados do século XVI. Não são lá muito educativos sobre as modasromanas, mas compensam ao descrever as roupas, os cortes de cabelo ea arquitetura do reinado de D. João III. Os Mártires de Lisboa são apresen-tados como portadores de elevada beleza física, pois os estereótipos medie-vais e renascentistas reprovavam a combinação de perfeição moral comfalta de beleza física (estereótipos ainda hoje populares).

Os três irmãos foram festejados no dia 1 de outubro durante séculos,embora a atual data festiva tenha sido transferida para o primeiro domingodo mês em questão. Algumas das relíquias foram devolvidas à Igreja deSantos-o-Velho, em 2003.

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III

ITÁCIO DE OSSÓNOBA:Pioneiro lusitano do ódio

Ossónoba, cidade pertencente à província romana da Lusitânia e hojedenominada Faro, ganhou um triste lugar na História devido a um bispodos finais do século IV, conhecido como Itácio de Ossónoba, pioneiro deum dos fenómenos mais repugnantes da humanidade: as perseguições reli-giosas às chamadas «heresias».

A conversão do Império Romano ao cristianismo tinha originado umnovo problema: o facto de vários cristãos escolherem vias distintas para se-guir os ensinamentos de Cristo, levando a disputas entre fações rivais e aosurgimento das primeiras heresias (palavra grega para «escolha») bastantenumerosas, destacando-se as fações denominadas arianos, gnósticos, dona-tistas e montanistas. Itácio era um ferrenho opositor a tais doutrinas alter-nativas, sendo subordinado de um poderoso indivíduo de opiniões e nomesimilares: Idácio, bispo da capital lusitana Emerita Augusta (Mérida moder-na) e metropolita da Lusitânia (o título «arcebispo» só era utilizado na altu-ra pelos cristãos do leste do Império).

Pregadores ascetas leigos não rareavam no Império Romano cristão,sendo frequente possuírem conceitos particulares de como é que se deveriaser «um bom cristão» e, precisamente por isso, serem acusados de heresia.Assim foi o caso de Prisciliano.

Originário da província romana da Calécia (ou Galécia) e de berçoaristocrático, Prisciliano defendia o celibato numa época de clérigos casa-dos, jejum ao domingo e o vegetarianismo, entre outras renúncias ao con-forto, tão comuns entre pregadores. Mas o que agradou ao público foi asua defesa do livre-exame da Bíblia e da alma como uma extensão do Cria-dor, tornando os fiéis independentes da influência do clero. As mulheres,em particular, apreciaram os sermões a favor do seu direito a pregar osEvangelhos ao público, dando-lhes uma importância incomum.

Os discursos do pregador galaico geraram grande controvérsia, sendoa sua popularidade demonstrada quando foi eleito bispo de Ávila, para fú-ria e medo dos inimigos, dados os cargos episcopais serem elegíveis quan-do a civilização romana aderiu ao cristianismo. As acusações feitas aopolémico pregador por figuras como Idácio foram impiedosas e revestidasdos chavões da época, sendo «gnóstico» e «maniqueu» os mais frequentes,

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com frequência meros insultos gratuitos (algo semelhante às expressões«fascista» e «comunista»).

A dupla Idácio-Itácio conseguiu convocar um concílio em Saragoça,em 380, anno domini, no qual a doutrina priscilianista foi sujeita a proibiçõeshilariantes: a oitava interdição anunciada interditava aos respetivos fiéis odireito de se ausentarem da igreja, de se ocultarem nos seus lares, de anda-rem descalços e de se deslocarem até às aldeias desde 17 de dezembro até àEpifania, isto é, a 6 de janeiro, sob pena de excomunhão. Ainda havia mais,como vetar o uso do véu às virgens antes de atingirem os 40 anos!

A natureza meticulosa e absurda de tais regras denuncia a falta de ar-gumentos sérios capazes de refutar o priscilianismo. Note-se que o ditoconcílio foi um fracasso em termos de participantes: somente dez bispos,um dos quais nem sequer ibérico, pois provinha da Gália. Uma das conclu-sões-proibições do concílio era bastante reveladora: todo o padre de cos-tumes austeros, como jejuns e estilo de vida pobre, era «vaidoso» e«presunçoso», motivos suficientes para valer a excomunhão. Ora, se Prisci-liano condenava o luxo e as riquezas do alto clero, Itácio adorava o confor-to e a satisfação da sua enorme gula.

Embora católico ferrenho, o escritor Sulpício Severo admitiu váriasqualidades em Prisciliano (!) e elaborou uma pouco simpática descrição dapersonalidade de Itácio, análoga à de inúmeros fanáticos, não sendo neces-sário alterar muitas palavras para a adaptar a diversas épocas. «Audaz, fala-dor, imprudente, presunçoso e escravo do ventre e da gula. Levou a suaignorância a tal extremo que chamava de priscilianistas todos aqueles, mes-mo santos varões, que sentissem ânsia de cultivar o estudo [da Bíblia] oufossem vistos a jejuar.» Um dos acusados era ascético como Prisciliano:S. Martinho de Tours, um dos mais importantes santos católicos, ao qualviria a ser dedicado o dia 11 de novembro! Pelos vistos, acusações absurdase colocar todos os adversários «no mesmo saco», por mais diferentes quesejam, são tradições milenares... Em suma, a descrição de Itácio é tão cari-catural quanto credível.

Segundo Itácio, Prisciliano obteve as suas ideias controversas a partirde Marco e Ágape, originários de Mênfis e membros de uma seita gnóstica doEgito. Uma acusação desprovida de investigações prévias: o único Marcode Mênfis conhecido viveu no século I, ou seja, dois séculos antes, enquan-to Ágape não era nome de mulher, mas das reuniões de iniciados. Tais er-ros dão nova luz ao desprezo do bispo da futura Faro para com padres«presunçosos»...

Prisciliano e a seguidora Eucrócia, acusados injustamente de heresia,tentaram falar com S. Damásio, bispo de Roma (ainda não havia papas nosentido que hoje conhecemos), sem sucesso. Itácio conseguiu a graça de

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ser recebido pelo imperador Graciano e a condenação do rival ao exílio ex-tra omnes terras («para fora de todas as terras»), levando alguns «heréticos» arefugiarem-se nas Gálias. Todavia, Graciano era suscetível aos argumentosdos simpatizantes católicos do pregador galaico. Assim, o procônsul (go-vernador) Volvêncio da Lusitânia obteve a anulação do decreto de exílio ea tarefa de devolver os bens e os templos confiscados. Volvêncio foi umaespécie de S. Paulo priscilianista: inicialmente perseguidor acérrimo, tor-nou-se um membro devoto.

Ao fim de alguns anos de emissões e anulações de proibições, Prisci-liano apelou ao imperador, na altura residente em Tréveris (atual Trier), ati-tude considerada ingénua e adequada a um místico preocupado com avirtude, pois quem governava o Ocidente do império era Magno ClementeMáximo, antigo comandante das tropas da Bretanha (Inglaterra) e assassinodo antecessor, Graciano. Talvez acreditasse que o novo imperador, alega-damente natural da Galécia, fosse mais sensível a um compatriota. Contudo, oimperador, nem Magno («grande») nem Máximo («maior»), necessitava delegitimidade e de fazer esquecer a maneira como subiu ao poder, sendo ummétodo muito eficiente a defesa dos valores oficiais, neste caso a ortodoxiacatólica.

Persuadido por Itácio e Idácio, o imperador ordenou a prisão de Pris-ciliano e seis seguidores, para escândalo de S. Martinho: o poder secularnão devia deter membros do clero, mesmo heréticos. Escândalo agravadopela decisão de os executar, dado ser inaceitável que um cristão matasseoutro por questões de doutrina (como os tempos mudarão!). Aliás, a sen-tença baseou-se em acusações utilizadas pelos pagãos nos julgamentos polí-ticos, como devassidão sexual («conciliábulos noturnos e obscenos commulheres») e feitiçaria («maleficium»), confessadas após cuidadosas torturas.Vários hábitos pagãos prosperaram na Europa cristã.

O pretexto não enganava e os protestos foram generalizados, levandoMáximo a prometer a S. Martinho que pouparia a vida aos condenados. Noentanto, Prisciliano, Eucrócia, Felicíssimo, Arménio, Aurélio, Asarino e La-troniano (excelente poeta, segundo S. Jerónimo, intolerante mas apreciadorde arte) foram publicamente decapitados a golpe de machado em 385 d. C.,além de serem enviados tribunos encarregados da caça aos priscilianistas.Um tabu foi quebrado.

Todavia, a renúncia aos tabus não é fácil, como se pode deduzir pelafúria generalizada de parte do clero, incluindo o respeitado bispo Ambró-sio de Mediolanum (Milão), futuro Papa, levando ao cancelamento da per-seguição. O imperador do Oriente, Teodósio, o Jovem, adquiriu um pretextopara declarar guerra ao usurpador. Derrotado, Clemente Máximo apelou à

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clemência do vencedor, recebendo mais do que concedeu aos priscilianis-tas: foi decapitado em público enquanto a esposa e as filhas eram poupa-das. Itácio e Idácio foram excomungados, destituídos dos seus cargos eexilados em Nápoles, desconhecendo-se o que posteriormente lhes suce-deu.

O facto de alguns dos mais importantes doutores da História da Igre-ja Católica, como S. Martinho, se terem oposto ao derramamento de san-gue em nome da uniformidade religiosa deve ter atrasado o surgimento daInquisição durante cerca de oito séculos, poupando horrores a diversas ge-rações. A relativa tolerância de então acabaria devido a paus de santo comoS. Domingos e S. Vicente Ferrer. Ao que parece, S. Martinho ficou depri-mido com as execuções de Tréveris ao ponto de nunca mais ter participadonem assistido a um concílio ao longo dos restantes 16 anos da sua vida.

Enterrado com pompa e considerado mártir, até por vários católicos,Prisciliano obteve ainda mais adeptos na Galécia e no Norte da Lusitânia,territórios que englobavam a maior parte do Portugal moderno. Contudo,o priscilianismo extinguiu-se no século VIII, ou devido à invasão moura de711, ou vítima não só de uma Igreja hostil como também das mudançassociais e de mentalidades (de resto, o vegetarianismo e o respeito dado àsmulheres não combinavam com os costumes «viris» tradicionais). Bastantepopular na maior parte do território português moderno, o priscilianismofoi sendo a única forma de cristianismo a fazer concorrência ao catolicismona história do país — até à chegada das igrejas evangélicas brasileiras.

Quão simbólico: a Inquisição adquiriu maior ignomínia em Portugal eEspanha, tendo como precursores um pré-espanhol e um pré-português!Habitantes da Lusitânia romana, Itácio e Idácio não possuem fama compa-rável à de Viriato, mas adquiriram igual infâmia.

A defesa de Prisciliano perante semelhantes acusadores é intemporal:«O fruto da vida é ser estimado por aqueles que procuram a fé da ver-

dade e não por aqueles que, sob o nome de religiosos, perseguem inimiza-des pessoais.»

«Ninguém tem o direito de condenar o que não sabe, o que não lê e oque não quer investigar.»

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IV

STA. IRIA:Morta por crer que o seu corpo só a ela pertencia

Iria, Irina ou Irene é uma personagem cuja veracidade história é deba-tida, embora a narrativa popular seja bastante credível, como se verá, maugrado a componente sobrenatural. Filha de uma família abastada da cidadede Nabância (atual Tomar), Iria teria nascido em 635, durante a governaçãovisigótica da Península Ibérica, filha de Hermígio e de Eugénia, um visigo-do e uma romana, a julgar pelos nomes. Como era frequente na época, as-sim como em muitas outras, Iria escolheu a vida religiosa, entrando nummosteiro de monjas beneditinas, gerido pelo tio, o abade Sélio, para mágoadaqueles que admiravam a sua beleza.

E nenhuma mágoa superou a de Britaldo, herdeiro do governador dacidade e trovador que cantava serenatas de amor junto da Igreja de São Pe-dro, onde a jovem freira de 18 anos ia assistir à missa ou fazer orações.Contudo, ela pediu-lhe frontalmente para ele a esquecer, saturada, sem dú-vida, de tanta atenção indesejada, pois o seu coração pertencia a Deus, nãofossem as freiras apodadas de Noivas de Cristo. Britaldo resignou-se e con-cordou, na condição de Iria nunca se entregar a nenhum homem, como seele tivesse algum direito de decidir a vida dela.

No entanto, as paredes dos conventos e das igrejas nem sempre sãobarreiras eficazes contra os perigos do mundo. Especialmente se o conven-to for misto, ou seja, de frades e freiras, o que era o caso. O tutor de Iria, omonge Remígio (outro nome gótico), fez-lhe propostas pouco monásticas,tendo sido também recusado. A reação de Remígio fez, em comparação, ade Britaldo parecer muito madura e sensata: espalhou rumores caluniosossobre a protegida, além de a fazer beber uma tisana que lhe inchou a barri-ga, levando a acusações de gravidez e à sua expulsão do convento.

Magoado e furioso com a «infidelidade» da mulher que nunca foi suacompanheira, Britaldo jurou vingança. Ao visitar um aleijado idoso ou,noutra versão, durante uma oração junto à margem do Nabão, Iria foimorta à punhalada por Britaldo ou, também de acordo com outras versões,por um criado ou um soldado ao seu serviço, sendo depois atirada ao rioNabão. Estava-se em 653. A lenda inventou um nome para o sabujo de

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Britaldo (seja qual for): Banão, um óbvio anagrama do nome do rio. Umaversão da história prima pela ignorância: descreve Britaldo como um pa-gão, apesar de os visigodos serem cristãos desde o século IV, tendo trocadoo arianismo pelo cristianismo antes da época onde decorreu a história deIria.

Quanto ao corpo da desventurada freirinha, foi levado pelas águas atéao rio Zêzere e daí até ao Tejo, sendo encontrado junto à cidade de Esca-lábis (atual Santarém). Seja lenda, milagre ou algo explicável pela ciência,diz-se que o cadáver estava intacto, algo considerado miraculoso pelapopulação. O tio de Iria, o abade Sélio, obviamente desejoso de defender ahonra da sobrinha, declarou ter recebido uma revelação divina sobre a lo-calização do corpo, bem como sobre a sua inocência.

Considerada santa pelo povo, foi sepultada num túmulo de mármore,tornando-se padroeira de ambas as cidades, a que a viu nascer e a do seurepouso eterno. Nem a conquista moura apagou a memória popular da jo-vem freira visigoda, graças às tradições moçárabes, passando a ser veneradapelas duas religiões em romarias conjuntas. Como afirma uma quadra com-posta por João Arruda:

Ó santa que estás no rio,Deixa-te estar que estás bem.Foste Iria, foste Irene,Deste o nome a Santarém.

Aliás, a associação de Escalábis a Sta. Iria ficou tão embrenhada namentalidade popular que a cidade passou a ser chamada de «Santa Iria», nodialeto pré-português da época, tendo o nome evoluído para Xanta Irin, as-sim pronunciado pelos árabes, culminando no moderno Santarém. Umalenda descreve como as águas do Tejo se afastaram para deixar passar San-ta Isabel, rainha de Portugal do século XIV, qual Moisés feminino, que aídeparou com o sepulcro intacto da santa visigoda. O sepulcro revelou-seinviolável e rapidamente voltou a ser coberto pelas águas, mas um pedestalde alvenaria deixado pela muito devotada rainha à sua colega de canoniza-ção, na Ribeira de Santarém, marca a memória do alegado evento.

Em sua homenagem, D. Filipe II criou a Feira de Santa Iria em 1626,sediada em Tomar, cuja duração engloba o dia 20 de outubro, comemorati-vo da sua festa litúrgica. As imagens populares de Iria de Tomar costumamrepresentá-la com a palma do martírio, numa referência à maneira comomorreu.

A lenda popular de Sta. Iria de Tomar está provida de elementos ve-rosímeis e chavões da vida real, como o monge libidinoso, o pretendente

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machista que confunde amor a uma mulher com sentimentos de posse, ajovem morta por não querer ceder à concupiscência e à prepotência mas-culinas e a impunidade do assassino e do caluniador. Ou seja, uma históriabastante credível.

Se o povo santificou a adolescente visigoda da qual pouco se sabe, aocontrário da Igreja Católica, tal deveu-se à maneira como tantas mulheresse sentiram identificadas com a sua história. Mesmo nestes tempos em quea castidade já não é valorizada (e até é considerada defeituosa...), Iria per-manece um exemplo ainda atual. Ela quis que o seu corpo não fosse pro-priedade de ninguém senão seu, mostrando a reação dos homens, aincapacidade imatura de aguentar a ideia de não serem irresistíveis. Um fe-nómeno bastante comum, mesmo nos tempos modernos e nas sociedadesmais «desenvolvidas». Além disso, preferir a morte à vergonha e à humi-lhação ainda hoje é um feito pouco praticado e, por isso mesmo, muitolouvado (antes morrer de pé que viver de joelhos). A memória dessa perso-nagem histórica lendária persiste nas tradições populares, em especial da ci-dade cujo nome teve a mártir virgem como progenitora.

No rio do luar boiando,Iria lá vai fluindo,Os serafins vão cantando,O rio queda-se ouvindo.

Livre dos males do mundoDorme santinha sorrindo,Em breve num sonho lindo,Hás de repousar no fundo.

(Afonso Lopes Vieira)

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S. SISENANDO:Vítima da «tolerância»

S. Sisenando é uma personagem pouco conhecida, tanto em famacomo em pormenores biográficos. Festejado a 15 de julho, é um dos inú-meros santos católicos que tornam o ano demasiado curto para tantos diasreligiosos. Considerado mártir pela maneira pacífica como morreu pelassuas crenças, o diácono de Beja merece um lugar nesta lista. Nascido emBeja, no ano de 828, viu a sua curta vida findada em 851, alvo da intolerân-cia religiosa do emirato islâmico do Al-Andaluz. O livro Memoriale Sancto-rum é a única fonte de informação desse santo pré-português (ou «luso-an-tepassado», palavra tão credível quanto lusodescendente), sofrendo odefeito de ser parca em detalhes. Córdova, a capital do Al-Andaluz, era umimportante centro cultural e fonte de atração de estudiosos e negociantesde toda a Península Ibérica e mais além, não sendo exceção o jovem Sise-nando, estudante de Teologia de uma escola situada junto à Basílica de SãoAcisclo, célebre nessa época. Ao que parece, terá declarado à família a deci-são de aderir ao clero depois de lhe aparecerem, numa visão, os mártiresPedro e Walabonso, tendo sido nomeado diácono.

A famosa tolerância religiosa do Al-Andaluz e a harmonia entre mu-çulmanos, judeus e cristãos, consideradas como um exemplo a seguir, aindahoje é glorificada e recordada com nostalgia e exemplo a seguir. Infeliz-mente, as reputações costumam ser exageradas. Os cristãos e os judeuseram tolerados, todavia «tolerar» significa suportar, e não aceitar, a diferen-ça, como vulgarmente se crê. Os judeus e os cristãos tinham o direito depraticar a sua fé e de se regerem pelas suas leis, mas apenas dentro dos li-mites do Pacto de Omar, definidor dos direitos dos infiéis governados porislâmicos.

Os não-muçulmanos eram designados dimis («protegidos») e a sua li-berdade religiosa era «comprada», ou seja, tinha como contrapartida o avul-tado imposto jizia, além de uma discriminação permanente: não podiamconverter maometanos às suas crenças nem tê-los como criados (o inversoera permitidíssimo), era-lhes negado o porte de armas, não podiam ter ca-valos como montadas; a lista de proibições era considerável. Era esse o se-gredo de tantas conversões à religião de Maomé: a obtenção de maisdireitos e menor carga fiscal. Os Mártires de Córdova protestaram contra

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semelhante estatuto e desafiaram a charia, ofendendo o Islão e pregando osEvangelhos aos maometanos. O preço foi cobrado na forma de 48 exe-cuções entre 848 e 859, incluindo dez mulheres e S. Sisenando, o único ori-ginário do atual território português. Todos eles viviam em Córdova ouarredores, influenciados pelas prédicas do bispo Eulógio, que os incentiva-va a procurar o martírio nas mãos dos ocupantes.

Quinze foram executados por ofenderem a fé islâmica, como acusarMaomé de ser um falso profeta, além de «blasfémias» como defender a di-vindade de Cristo em público. Para não mencionar que pelo menos 12 dosexecutados foram-no por terem abandonado a fé islâmica, crime punívelcom a morte e ainda hoje em vigor em Estados confessionais como o Irãoe a Arábia Saudita. Os apóstatas incluíram dois ex-conversos ao Islão, pu-nidos por mudar de ideias, cinco acusados de apostasia por partilharem a fédas mães cristãs (os filhos de um matrimónio misto deviam sempre seguiro Alcorão) e um padre falsamente acusado.

S. Sisenando comportou-se como a maioria dos executados: defendeupublicamente as suas opiniões e recusou-se a fugir, acabando na prisão, naqual estava autorizado a receber visitas e a trocar correspondência. Estava aescrever uma carta a um amigo quando chamou um rapaz: «Vai-te, filho,rapidamente, para que não te atropelem os meirinhos da justiça, pois o po-der das trevas ordena que me tirem do cárcere. Vão-me degolar rapidamen-te.» E degolado acabou por ser: manteve-se firme em frente ao cádi (juiz),o qual, talvez irritado pela sua atitude insubmissa, o condenou sumaria-mente à morte. Destino preferível ao de Sto. Abúndio, cujo cadáver foi ati-rado aos cães, Sta. Benilde, cuja cabeça foi exibida publicamente na pontade uma lança, S. Sancho (empalado à maneira do príncipe Drácula) e a ido-sa freira Sta. Laura, atirada a um caldeirão repleto de chumbo derretido.O cadáver foi lançado ao rio Guadalquivir, mas a corrente levou-o até àmargem, sendo recolhido e sepultado na igreja onde estudou.

O bispo Sto. Eulógio de Toledo, líder e biógrafo dos Mártires de Cór-dova, acabou por praticar as suas pregações sobre martírio — quisesse ounão — quando foi preso por esconder Sta. Leocrícia, muçulmana converti-da ao cristianismo, sendo ambos enviados para o cadafalso por ordem deMuhammad, sucessor do emir Abdel Rahman II.

O comportamento dos Mártires de Córdova era polémico, sendo naaltura considerados suicidas, não mártires, pela Igreja desejosa de evitar afúria do poderoso Abdel Rahman II. Se S. Sisenando deixou textos escri-tos, não sobreviveram ao passar dos tempos, sendo os discursos do seumestre Sto. Eulógio o mais próximo que se consegue descobrir sobre ascausas do desafio feito aos governantes mouro. Tais escritos descrevemsarcasticamente a famosa liberdade religiosa do Al-Andaluz:

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«Afirmais que sem violência, perseguição nem agravo algum da partedos infiéis, os nossos mártires se levantaram temerariamente para explorare provocar os que, tolerantes e liberais, autorizam a profissão do cristianis-mo. Pois julgais que não sofremos agravo algum com a destruição das nos-sas basílicas, com o opróbrio e insulto dos nossos sacerdotes e com opesado tributo que, com grande angústia e fadiga, pagamos todos os me-ses? Não será menos dolorosa uma morte que acabe de vez com tantas ca-lamidades do que uma penosa agonia de uma vida sustentada com tantapenúria e estreiteza? (...) Quando obrigados por qualquer necessidade emister da vida nos apresentamos em público e do nosso mísero tugúrio saí-mos à praça, se os infiéis nos veem o trajo e insígnias da ordem sacerdotal,aplaudem-nos burlescamente como a loucos ou a fátuos, fora o escárnioquotidiano dos seus rapazes que, não satisfeitos com os seus gritos insul-tantes, nos perseguem à pedrada? (...) Irrompem nas maldições e blasfé-mias mais brutais quando ouvem a voz religiosa dos nossos sinos. (...)Enfim, atormentam-nos quotidianamente por causa da nossa religião.(...) E ainda vos atreveis a assegurar que gozamos de liberdade religiosa (...)?» (o itáli-co é do autor).

Assim, a insolência e o aparente desejo fanático de morrer dos márti-res são explicados por Sto. Eulógio como fruto do desespero e forma deprotesto de uma minoria oprimida, similar aos monges budistas que se au-toimolaram até à morte como protesto contra as invasões do Tibete e doVietname.

Naturalmente, essa é a versão de Sto. Eulógio e dos seus seguidores,Sisenando incluído. Os muçulmanos tinham uma ideia mais favorável dodomínio árabe, assim como o bispo Recafredo de Córdova. No entanto, osmartirizados possuem dados a seu favor:

— Viveram na sociedade do Al-Andaluz, ao contrário dos apologistasda Idade de Ouro da Hispânia islâmica, nascidos séculos depois;

— Os abusos físicos impostos aos cristãos, atrás descritos, asseme-lham-se aos ainda hoje sofridos nas sociedades islâmicas conservadoras,como o Paquistão e o Egito, onde ninguém inveja a humilhação quotidianados coptas e católicos locais e ainda é permitido matar apóstatas (que o di-ga a Amnistia Internacional);

— Deve-se acrescentar que os pesados impostos e a discriminaçãodos infiéis e crentes não-árabes levaram às revoltas dos cristãos e conver-sos muçulmanos de Mérida e Toledo, brutalmente reprimidas pelo emirAbdel Rahman II, como testemunham centenas de cabeças enviadas comodespojo de guerra para a capital. Ou seja, os emires de então eram tirâ-nicos.

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Concluindo, embora Sto. Eulógio pareça tendencioso, não parecementiroso. De resto, um problema comum das Idades de Ouro é nem tudoo que luz ser ouro...

Em 1574 foi republicado o Memoriale Sanctorum, da autoria de Sto. Eu-lógio, reavivando a memória dos Mártires de Córdova, incluindo o diáconode Beja, oficialmente nomeado mártir em 1586: «Em Córdova, na Espa-nha, S. Sisenando, levita e mártir, foi degolado pelos sarracenos, por causada fé de Cristo.» O seu culto só foi confirmado pelo papa Clemente VIIIem 13 de fevereiro de 1598, sendo um osso do rádio a única relíquia pre-servada do diácono de Beja, transferida de Córdova para a cidade natal em25 de junho de 1600, durante o domínio filipino. Assumindo que era dele,pois não só errar é humano, como o tráfico de falsas relíquias era um maladmitido até pela Igreja medieval (havia santos cujas «cabeças» eram vene-radas em duas cidades diferentes). O reino português e o papa Inocêncio Xproclamaram-no padroeiro do Beja a 24 de outubro de 1651.

No início do século XX, S. Sisenando tornou-se novamente vítima dasautoridades: a capela erigida no suposto local do seu nascimento, na RuaCega, junto à Igreja do Salvador, foi convertida numa cantina escolar, cor-tesia anticlerical da Primeira República. O interesse público foi reavivadodurante o Estado Novo (como não podia deixar de ser), o qual ajudou oapropriadamente chamado D. José do Patrocínio Dias, bispo de Beja, arestaurar a catedral em 1947 e a depositar o osso de S. Sisenando num reli-cário. Assim, um homem morto num protesto pacífico foi homenageadopelo chamado «Bispo Soldado», dado ter sido capelão militar durante a Pri-meira Guerra Mundial. Muitas figuras históricas são mais famosas na mortedo que em vida, mas S. Sisenando acabou por ter uma biografia não tãobem conhecida como a dos seus restos mortais.

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VI

MUMADONA DIAS:Poder feminino medieval

Durante milénios e nas mais diversas sociedades, as vias femininas pa-ra a ascensão a cargos de poder eram bastante limitadas: em geral, influen-ciavam a vontade de homens poderosos, com base em ligações sexuais,amorosas ou de parentesco. A única maneira de uma mulher se tornar go-vernante oficial consistia em suceder ao falecido marido ou pai, na ausênciade candidatos disponíveis (ou aceitáveis), privilégio naturalmente raro, emespecial nas regiões seguidoras da Lei Sálica. Contudo, algumas revelaram--se estadistas de valor superior ao de vários homens, o que não é de es-pantar, dado terem mais para provar. Mesmo assim, não era raro seremdesprezadas por se envolverem nas mesmas intrigas e violências praticadaspelos homólogos e competidores masculinos (embora muitas merecessemo opróbrio recebido), tornando ainda mais louváveis as que souberam go-vernar por direito próprio sem adquirir má reputação. Foi o caso de Mu-madona Dias.

A origem do nome é disputada: uma teoria credível descreve a palavracomo a contração da versão invertida da expressão «Dona Muma»; segun-do alguns investigadores, «Muma» provém de «Muoma», palavra germânicacujo significado é «tia materna», algo credível numa região do mundo ondese instalaram os Suevos e os Visigodos.

Nascida em família de sangue azul, a condessa tinha relações ao maisalto nível, como o tio e colaço Ramiro II, rei de Leão, o qual englobava asterras da Galiza. «Colaço» era o nome que se davam aos irmãos de leite,pessoas de famílias distintas mas amamentadas pela mesma mulher, costu-me vulgar numa sociedade onde os filhos da alta sociedade eram educadospor amas. Casou-se, provavelmente aos 20 anos, com Hermenegildo Men-des, também conhecido como Mendo Mendes, conde de Tui e do Porto,governador da província de Entre-Douro-e-Minho. A data de matrimóniode Mumadona, assim como as de nascimento e óbito, são desconhecidas.

Sabe-se pouco sobre a vida da condessa, o que pode ter sido influen-ciado pelo desdém nutrido pelo sexo feminino da época (e de muitas mais).Por outro lado, ao longo da história humana, inúmeros documentos foramdestruídos pelo tempo voraz, ratos devoradores, insetos famintos e vânda-los impiedosos, não tendo chegado aos nossos dias várias obras de grandes

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autores como Tácito, Aristófanes e muitos outros. Até a data de nascimen-to de uma personagem de destaque como Ramiro II permanece um misté-rio nos nossos dias.

D. Muma deve ter adquirido respeito e uma posição segura ao darcinco filhos e uma filha ao cônjuge, dado as esposas serem valorizadas pelasua fecundidade, especialmente se a descendência fosse masculina. Quandoenviuvou, em vez de cair na obscuridade, tornar-se-ia mais famosa do queo marido e seria conhecida não como a esposa de Hermenegildo Mendes,mas como a condessa Mumadona Dias. Pouco se sabe sobre o estado doseu casamento, exceto as referências ternas ao marido no seu testamento,as quais podem ser tanto sinal de afeto como obediência ao costume in-temporal de manter uma fachada de felicidade.

A morte de Mendo Mendes, também em data incerta, mas posterior a933, levou D. Muma a dedicar-se mais à espiritualidade e à religião. Assim,entre 927 e 929 ordenou a construção de um mosteiro beneditino na quin-ta de Vimaranes, reservado tanto a monges como a freiras — segregados,naturalmente (como tal forma de clausura foi abandonada há muito, supõe--se que não deve ter tido muito sucesso).

A devoção da condessa, ao ponto de se recolher no mosteiro por sifundado, ajuda a explicar porque se sabe tão pouco da sua vida, pois a His-tória prefere os comportamentos escandalosos e violentos. E disso nãohouve falta na família!

O tio Ramiro II só se tornou rei de Leão devido à abdicação do irmãoAfonso IV, vítima de uma depressão gerada pela morte da esposa, que o le-vou a entrar num mosteiro. Contudo, a dor é como o amor: é eterna en-quanto dura. O instável Afonso IV abandonou o mosteiro e exigiu a coroade volta, sendo a resposta fraternal do sucessor uma guerra civil. Ramiro IIganhou a guerra e o epíteto de «Diabo», pois Afonso e os restantes irmãosviram os seus olhos serem vazados, para depois passarem o resto das vidasno Mosteiro de Ruiforco. É tentador questionar se o recolhimento de Mu-madona como monja seria uma maneira de se afastar e até de se protegerdas violências e da crueldade do mundo e da família.

Contudo, a condessa não estava afastada das desilusões dos familiaresmais próximos. A única filha, Onega ou Oneca, nome de origem basca par-tilhado pela avó materna, acompanhou a mãe como noviça do mosteiro,mas parece ter voltado atrás na decisão, se é que alguma vez foi sua, aca-bando por fugir com o primo Guterres Rodrigues, com a qual contraiu ma-trimónio. Nas palavras da desiludida mãe, «rendeu-se ao desejo carnal».Resignada e como para se consolar, citou uma frase bíblica, cujo significa-do percebeu por fim: «Conforme o proclama a própria Verdade, muitossão os chamados mas poucos os escolhidos» (Mateus 22:2-14).

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Ao menos, não é invulgar a renúncia de uma vida monástica por partede uma jovem desejosa de experimentar os prazeres da vida. O luto da viú-va Ausenda, cunhada de Muma Dona, não demorou muito: o leito conju-gal deixado vazio pelo marido Ximeno Dias foi rapidamente ocupado pelorespetivo sobrinho Ramiro! Matrimónio nada apreciado pela condessa,convertida em cunhada do próprio filho! Tanto na época como atualmente,tal comportamento privado é, no mínimo, bastante polémico!

Outro motivo para D. Muma se ter tornado uma «eremita» devota foia morte prematura do amado filho mais novo, Nuno, vítima de uma «febregravíssima», levando-a a ordenar missas pela sua alma. Uma mãe que sepreze preocupa-se sempre com o estado dos filhos, mesmo falecidos.

O mosteiro tornou-se o centro das atenções locais, dado os romeirosserem atraídos pela imagem de Nossa Senhora da Oliveira, transferida pelacondessa da antiga Capela de São Tiago da Praça. Vários romeiros vinhampara ficar, assim como os artesãos e os pedreiros encarregados das obrasde construção. Além disso, os reis e os senhores faziam generosas doaçõesem bens, terras e dinheiro, para manterem tranquilas as suas consciênciaspolutas. A condessa deu o exemplo, legando ao mosteiro dádivas nada mo-destas: quatro sinos, vários livros, 30 cavalos, 50 machos (mulos), 60 éguas,vastos terrenos, mobília, peças de prata, um enorme número de vilas, etc.No caso da Vila de Nespereira, esta foi concedida em troca de missas pelaalma do amado Nuno. O mosteiro recebia donativos do próprio Diabo —mais precisamente, de Ramiro II.

Por outras palavras, a clausura espiritual de Mumadona Dias permitiuà região adquirir importância económica, religiosa, cultural e, por conse-guinte, política, tendo a povoação de Araduca, à qual pertencia a quinta deVimaranes, crescido até se converter na futura capital de Portugal, Guima-rães.

Naturalmente, as riquezas de Guimarães tentavam olhos cobiçososnuma época de guerras civis e conflitos com os Mouros e os Normandos,motivo pelo qual a condessa edificou no monte Largo, em 968, o Castelode São Mamede, ampliando a importância da localidade.

Boa parte dos dados biográficos de Mumadona Dias provém do seutestamento, escrito e revisto vários anos antes da sua morte. Numa adendaescrita em 968, a condessa proíbe que se entregue o mosteiro a «mãos es-tranhas», sob ameaça de sofrer as penas infernais. Testamentos com maldi-ções destinadas a quem desrespeitasse os seus termos eram um costume daépoca.

O mosteiro seria saqueado após a sua morte e vários dos respetivos li-vros destruídos ou queimados pelos mouros comandados pelo emir da tai-fa de Sevilha. No entanto, era irreversível o desenvolvimento da região quea piedosa viúva soube acelerar.

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Mumadona Dias, condessa do Porto e Tui, viveu na sombra durante amaior parte da sua vida, tanto do marido como do mosteiro. Mas essa figu-ra apagada, cuja descrição física e data de óbito permanecem desconheci-das, tomou medidas que desenvolveram Guimarães, até então uma terriolasem valor. Durante milénios, os governantes masculinos consideravam aviolência e a destruição como atos «viris», enquanto essa «frágil» viúva pre-feriu construir e proteger.

Mumadona Dias foi homenageada em 25 de junho de 1960, por meioda construção de uma estátua da autoria de Álvaro de Brée. Era galega, nãoportuguesa, mas pode ser considerada uma luso-antepassada, de importân-cia determinante para a História de Portugal. Embora o poder da famíliaMendes tenha findado com o homicídio de Nuno Mendes por se ter revol-tado contra o rei Garcia II do efémero reino da Galiza, os descendentes deMumadona tiveram grandes futuros: um deles foi coroado D. Afonso I dePortugal!

O poeta António Sardinha honrou a sua memória e importância:

À hora em que o trabalho se abandona,sentada em tua torre com nobreza,tu és, rezando, ó velha Mumadona,a boa avó da terra portuguesa!

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VII

D. AFONSO HENRIQUES:O valente e traiçoeiro pai da nação

A lista dos heróis de um país inclui obrigatoriamente o respetivo fun-dador. D. Afonso Henriques, o Conquistador, é presença obrigatória quandosão referidos os maiores portugueses de sempre. Lutou contra vários inimi-gos poderosos e triunfou contra todas as probabilidades. Fisicamente sau-dável, viveu bastante além da esperança média de vida medieval, a despeitode tantas batalhas, falecendo com idade avançada. No entanto, em termosmorais, o seu comportamento foi condenável, exemplo claro de como aguerra e a política não estimulam a virtude.

Nascido em 1111, D. Afonso Henriques era filho de D. Henrique deBorgonha, senhor do Condado Portucalense, e de D. Teresa, filha ilegítimade Afonso VI, rei de Leão e Castela. D. Henrique e o primo/cunhadoD. Raimundo planeavam revoltar-se contra o sogro comum para poderemtomar o poder ou, no mínimo, ampliarem a sua autonomia feudal. Mas amorte natural de Raimundo fez a conjura acabar em águas de bacalhau, oufinir en queue de poisson («acabar em cauda de peixe»), como se diz atualmentena terra de nascença destes. A esposa D. Teresa, uma vez viúva, procla-mou-se rainha e guerreou contra o reino de origem e contra a irmã, D. Ur-raca. Com pais tão ambiciosos e dotados de um questionável conceito devalores familiares, não espanta a atitude de D. Afonso Henriques.

D. Henrique, no seu leito de morte, em 1114, terá dito ao herdeiro:«Toma a terra que te deixo, que é de Astorga até Leão e até Coimbra, nãopercas dela coisa nenhuma, que eu tomei com muito trabalho. Filho, tomaesforço em meu coração. E sê companheiro dos fidalgos e dá-lhes direitosem todos os conselhos.» Ou tais conselhos foram escritos ou foram ditosem delírio, dado D. Afonso Henriques só ter três anos na altura... Educadopor Egas Moniz, o órfão cresceu, juntamente com as suas ambições, aoponto de se armar a si próprio cavaleiro quando atingiu a maioridade —aos 14 anos. A fidalguia portucalense não queria ser governada por umamulher, e o futuro Conquistador, agora maior de idade, não queria ser domi-nado pela mãe. Os desentendimentos levaram o conde, com apenas 16anos, a dirigir o seu exército contra o da mãe e do respetivo companheiro,

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Fernão Peres de Trava, na lendária Batalha de São Mamede, a 24 de julhode 1128. Vencida a mãe, desterrou-a para sempre do condado. E tantos sequeixam da insolência dos adolescentes modernos!

Afonso VII, imperador das Espanhas, invadiu o Condado Portucalen-se para meter na ordem o seu insubmisso vassalo (e primo). D. AfonsoHenriques, cujas forças eram mais fracas, cedeu e garantiu a sua lealdade evassalagem. Mal partiu o inimigo, voltou a governar como bem entendia,sem prestar contas a nenhum mortal. O ambicioso infante não se contenta-va com um condado independente: queria expandi-lo, motivo da invasãoda Galiza em 1135. Derrotado e expulso, iniciou nova invasão e uma alian-ça com o rei de Navarra, Garcia Ramires. Tinham bastante em comum,sendo ambos vassalos de reduzida lealdade a Afonso VII. Tal como oprimo e suserano homónimo, D. Afonso Henriques combatia em duasfrentes, tendo de se deslocar ao sul, devido aos ataques dos mouros.Afonso VII não desperdiçou a oportunidade e pôde derrotar ambas as re-beliões mais facilmente. Em julho de 1137, o derrotado Conquistador reno-vou juras de lealdade e obediência ao imperador.

O leitor já deve ter notado que o fundador de Portugal não dava gran-de valor à sua palavra. Jurava lealdade ao mais forte, regra geral depois deuma derrota, ganhava tempo para refazer e reorganizar as forças, adquirirnovas alianças contra rivais comuns e, quando se considerava forte o sufi-ciente, recomeçava a luta. Em suma, um político de sucesso. Outro motivopara se comportar de maneira desleal foi a fraqueza dos recursos do seumodesto condado. Era melhor guerreiro na qualidade de guerrilheiro: per-deu várias batalhas convencionais em campo aberto. E das que venceu, amais famosa é de credibilidade historicamente duvidosa.

Segunda a lenda, a Batalha de Ourique, ocorrida em 25 de julho de1139, teve como antagonistas os portucalenses e cinco reis sarracenos, sen-do a vitória pertencente aos primeiros, os quais aclamaram D. AfonsoHenriques como rei: «Real, real, por el-rei D. Afonso Henriques de Portu-cale!» Alexandre Herculano, historiador que desmanchou tantos prazeres,expôs a batalha como um mito. Na melhor das hipóteses, as crónicas exa-geraram a importância e a escala de uma peleja menor, tal como a Canção deRolando converteu uma escaramuça entre francos e bascos numa batalhaentre 20 mil francos e 400 mil mouros... Certo é que D. Afonso Henriquespassou a designar-se «rei de Portucale» nos seus documentos oficiais algunsmeses após a polémica batalha, embora nenhum Estado o reconhecessecomo tal — o papado designava-o oficialmente de dux portucalensis («chefeportucalense»).

Afonso VII viu-se obrigado a enfrentar a realidade: o primo portuca-lense era demasiado forte para ser eliminado, não com tantos outros inimi-gos cristãos e muçulmanos. Assim, reconhece-o como rei no Tratado de

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Zamora, sempre na condição de vassalo, pois o imperador não podia per-der a face (nem um pretexto legal para o manter na ordem num futuromais favorável). Agora podia ser internacionalmente chamado de rex portu-calensis («rei portucalense»). Outra falsidade histórica a poluir os manuais es-colares durante gerações foi o registo da coroação oficial do Conquistadornas Cortes de Lamego, em 1143. Herculano, sempre ele, expôs esse acon-tecimento como outro mito, criado durante as guerras da Restauração de1640-1668, destinado à propaganda patriótica. O dito registo declarava co-mo o reino nunca poderia ter um soberano estrangeiro, algo convenientena guerra contra os espanhóis, sendo inconveniente a completa ausência demenções às cortes antes de 1641. Quem afirma que uma fraude nunca me-rece justificação, não importa quão bem-intencionada seja, devia utilizaruma das leis supostamente definidas pelas fictícias cortes como exemplo:se alguém violar uma virgem, será executado e os respetivos bens servirãode indemnização, mas «se ela não for nobre, casem ambos, quer o homemseja nobre ou não»...

Fracassadas as tentativas de expansão na Galiza e sempre presente operigo islâmico a sul, o Conquistador realizou novas campanhas dignas doseu epíteto. As circunstâncias favoreciam-no, dado o Império Almorávidaestar minado pelas guerras internas e a invasão almóada. O primeiro alvode peso era a cidade de Xantarin, atual Santarém. A astúcia e a cautela fo-ram duas das principais armas utilizadas, enviando um certo Mem Ramirespara estudar a topografia e a muralha da cidade, o qual regressou com umrelatório dos respetivos pontos fortes e fracos. Avisou o alcaide de Xanta-rin, Abu Zakaria, de que iria quebrar as tréguas dentro de três dias e, quan-do terminou o prazo, não fez nada, exceto dirigir-se com as suas forças emdireção a outra povoação. Adormecida a desconfiança dos futuros sitiados,o monarca avisou os soldados de qual era o verdadeiro objetivo da campa-nha e avançou para Xantarin. Um grupo de 120 homens subiu as muralhasda cidade, recorrendo a escadas, numa noite de nuvens a cobrir o luar. Trêsvigias mouros foram degolados e, com as portas da cidade abertas, os sol-dados portucalenses entraram, chacinando vários defensores e habitantessem dó nem piedade, encorajados pelo triste exemplo do seu rei: «Quenem um só escape ao ferro.» Al-Ushbuna, a moderna Lisboa, seria o alvoseguinte.

A conquista da futura capital de Portugal teve o apoio de uma forçainternacional, composta por cruzados ingleses, bretões, normandos, fla-mengos e alemães. O seu fanatismo religioso era duvidoso, se se tiver emconta as exigências acordadas com D. Afonso Henriques: o direito de sa-quear a almedina (cidade interior) antes de a entregar ao rei portucalense,

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receberiam terras locais e o resgate pela libertação dos prisioneiros captura-dos, etc. Para quem inicialmente queria morrer em nome da glória de Cris-to na Terra Santa, tinham objetivos bastante materialistas, além de nãosuportarem viagens longas. Englobaram piratas da Normandia, atividadeadequada aos descendentes dos viquingues (também chamados de norman-dos) que ocuparam essa região da França. Segundo as leis da guerra de en-tão, bastante liberais em termos de violência, devia-se enviar emissários apropor uma rendição dos sitiados em troca da salvação das suas vidas, hon-ra e bens. Proposta recusada, como seria de esperar, de maneira poética:«Fazei o que couber em vossas forças, nós faremos o que for da divina gra-ça.» Tivesse sido aceite, o Conquistador ficaria preocupado — uma rendiçãopacífica anularia os termos do acordo feito com os cruzados de pacotilha,verdadeiros mercenários. Ambos os lados desonraram-se com atrocidades,costumando ser piores as do lado vencedor — neste caso, os cristãos.

Um dos horrores cometidos foi o massacre de 80 maometanos emAlmada, cujas cabeças foram exibidas nas pontas de lanças perante as mu-ralhas de Al-Ushbuna. O espectro da fome dizimou os habitantes, qual Az-rael, o anjo da morte. Vários sitiados renderam-se aos sitiantes e conver-teram-se ao cristianismo em troca da vida, exceto uma minoria, queregressou à cidade de mãos decepadas. Os compatriotas receberam os mu-tilados não de braços, mas de mãos abertas, apedrejando-os. Quando a ci-dade caiu, os mercenários iniciaram uma orgia de pilhagens, assassínios eviolações, a qual não escaparam os moçárabes, cristãos arabizados, desta-cando-se a degolação do idoso arcebispo da cidade. Quando os soldadosde D. Afonso Henriques entraram na principal mesquita da cidade, encon-traram 200 cadáveres e 800 moribundos. Quando os flamengos anuncia-ram a presença «milagrosa» de sangue nas hóstias de uma missa, algunsretribuíram sarcasticamente que era um sinal divino de como estes não es-tavam saciados de sangue humano.

A sangrenta guerra de Lisboa definiu a estratégia das guarnições mou-ras de Sintra, Almada e Palmela: fugiram. A de Alcácer do Sal preferiu re-sistir, decisão que redundou na sua derrota e em novo saque atroz. Évorasofreu o mesmo destino, em 1162, depois de tomada pela astúcia traiçoeirade Geraldo sem Pavor, mercenário e bandoleiro cruel contratado, cujo ver-dadeiro senhor era o lucro, não os monarcas cristãos e mouros que servia,até os Almóadas o executarem por traição. Note-se a «carta de segurança eprivilégios» atribuída por D. Afonso Henriques aos mouros subjugados,em 1170, permitindo-lhes ser oficialmente tolerados. Numa categoria infe-rior à dos cristãos, é certo, mas similar à das minorias religiosas do mundoislâmico, algo sempre esquecido pelos críticos da Inquisição, implantadamais de 300 anos depois.

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Quando Afonso VII morreu, em 1157, o respetivo império foi dividi-do entre os descendentes, ficando Fernando II, o Baboso (alcunha árabe),com a coroa de Leão. O Baboso e o Conquistador estabeleceram uma aliança,selada com o enlace da filha do monarca portucalense com o rei leonês.Mas os laços de sangue não serviam de muito à ambição de um homemque declarou guerra à própria mãe... Assim, sogro e genro iniciaram outraguerra. Em 1169, o rei portucalense atacou Badajoz e a vitória parecia a-brir-lhe os braços quando a Fortuna mudou de lado e chegou o exércitoleonês, aliado dos mouros locais. D. Afonso Henriques fugiu com tal velo-cidade que bateu num ferrolho dos portões da cidade e caiu no solo, resul-tando numa anca partida, enquanto os seus homens eram chacinados. Osteimosos fabricantes de mitos pseudo-históricos atribuíram a causa da feri-da a uma maldição da mãe, quando a teria acorrentado: «Porque puseste asminhas pernas em ferros (...) com ferros sejam as vossas quebradas.» Pro-paganda inimiga, obviamente, pois o filho, não tão desnaturado, nuncaacorrentou a mãe. O idoso guerreiro de 60 anos nunca recuperaria comple-tamente desse ferimento (nunca mais cavalgaria), e ainda devolveu as terrasconquistadas ao genro, além de pagar 15 mulas carregadas de ouro e 20 ca-valos de batalha como condição para reaver a liberdade: «Restitui-me o queme tiraste e guarda o teu reino.» Muito diferentes teriam sido os mapas dePortugal se incluíssem Badajoz, Cáceres e Trujillo.

D. Afonso Henriques sabia recuperar das derrotas e recorrer à diplo-macia, quando convinha. Em 1179, os seus 70 anos foram alegrados pelabula Manifestatum Probatum, do papa Alexandre III, a qual o reconhecia e aPortugal como rei e reino de pleno direito, respetivamente. Um facto infor-mal passa a ser formal. A invalidez do rei, forçado a deslocar-se de cadeirasou liteiras, para não ser visto a coxear, encorajou os Almóadas, fanáticos is-lâmicos não menos cruéis, a invadirem Portugal em mais de uma ocasião.Mas um monarca pode delegar o poder a subordinados. O filho e herdeiro,o futuro D. Sancho I, enfrentou o califa Iusuf em Santarém, sendo estederrotado e morto em 1184. Não foi somente o filho a herdar a têmperado pai. A filha D. Teresa, a quem deu o nome da mãe (!), casou-se com oconde Filipe de Flandres, o qual enforcou piratas normandos que lhe tenta-ram roubar o dote (talvez antigos mercenários do sogro?) e mostrou seruma hábil estadista na sua nova pátria. O fundador de Portugal morreu a 5de dezembro de 1185, após 74 anos de vida e 57 anos de reinado, ultrapas-sando largamente a média medieval. O seu túmulo encontra-se no Mostei-ro de Santa Cruz, ao lado da mulher, D. Mafalda.

D. Afonso I de Portugal expandiu o reino pela espada e consolidou-ocom a ajuda da pena, mas também o governou. Para garantir lealdades e

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obter recrutas nas guerras contra vizinhos, fossem mouros ou não, ofere-ceu bens materiais e privilégios à nobreza e ao clero, incluindo ouro e vas-tas terras isentas de impostos. Um exemplo famoso foi a edificação doMosteiro de Alcobaça. A necessidade implica sacrifícios: as classes privile-giadas adquiriram autonomia e poder capazes de rivalizar com a Coroa,causa de conflitos futuros ao longo de gerações. As instituições monástico--militares também alcançaram generosas recompensas, datando da época ainstalação dos Templários, Hospitalários e a criação da Ordem de Avis.

Muitos senhores feudais desafiaram os suseranos para criar reinos in-dependentes, mas poucos foram bem-sucedidos. O facto de D. AfonsoHenriques ter pertencido à minoria de afortunados demonstra as suas gran-des aptidões de líder, guerreiro, diplomata e — confessemos — intriguista,algo mais espantoso se se tiver em conta o reduzido tamanho inicial doCondado Portucalense, mais do que duplicado pelas suas conquistas. Astu-to e corajoso, só renunciou à participação pessoal nas batalhas quando aanca partida o impediu, depois de várias feridas e tantos anos a arriscar avida. Porém, não hesitava em quebrar a palavra dada e sabia ser cruel comas populações invadidas, até as cristãs. Não era caso único, pois tais fenó-menos eram comuns na época, logo, a principal diferença moral relativaaos seus vizinhos era o facto de ter triunfado (perdoa-se muito aos vence-dores). Embora tais métodos de governação eticamente polémicos perma-neçam populares nos tempos modernos... Para o melhor e o pior, foi umadas maiores personagens da História de Portugal.

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VIII

IBN QASI:«Messias» e «templário» luso-islâmico

Abu Qasim Ahmad al-Hussein Ibn Qasi, nascido em Silves, foi consi-derado um herói pelos seus seguidores e simpatizantes de épocas posterio-res, pois não só liderou rebeliões contra governos tirânicos como tambémera um líder espiritual que discursava sobre iluminação interior, inclusivena forma de poemas. A sua principal obra, hoje perdida e da qual só se co-nhecem críticas feitas por autores hostis, intitula-se O Descalçar das Sandálias.Aliás, a principal fonte de informação da época sobre Ibn Qasi, o livro His-tória dos Muridinos (ou Revolta dos Muridinos), também lhe é adversa, descre-vendo-o como escroque e traidor. Os cronistas da época almóada tinham aobrigação de denegrir os inimigos dos governantes, mas sempre existiramlíderes espirituais que se revelavam violentos e sedentos de poder e prazer,além de lutadores da liberdade que, ao triunfarem, desiludiam quem espera-va por governantes melhores. Na falta de novas descobertas, a imagem deIbn Qasi terá de ser uma questão de opinião pessoal.

Ibn Qasi pertencia a uma família abastada e provavelmente muladi(muwalladun), ou seja, de locais conversos ao Islão. Aproveitou a juventudee o dinheiro para se dedicar aos prazeres, tendo exercido as profissões deinspetor alfandegário e consultor jurídico. Todavia, ao sofrer uma crise es-piritual, de causa e natureza desconhecidas, foi induzido a renunciar às ri-quezas em prol dos pobres e à conversão ao misticismo religioso, maisprecisamente ao sufismo, guardando algum dinheiro para mandar edificaruma azoia, local de recolhimento (az-zâwia) de sufis, tanto mestres comodiscípulos, em Jilla (há quem defenda que se situaria nas ruínas existentesnuma colina próxima da pequena aldeia de Júlia, perto de Paderne), situadano atual Algarve. Ao que parece, o misticismo e a filosofia das ordens sufisabundavam no Al-Gharb al-Andaluz, região ocidental da Hispânia árabe àqual pertencia o que iria ser o Reino de Portugal. O persa Al-Ghazali, de-nominado Algazel na Europa, era um teólogo e filósofo sufi bastante po-pular na época e uma importante fonte de inspiração para Ibn Qasi(também renunciou a uma rica vida, literalmente falando, para se dedicarao misticismo e à pobreza).

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A época em que Ibn Qasi vivia era ideal para a popularidade de misti-cismos críticos da sociedade e do mundo terreno. A dinastia almorávida es-tava num irreversível processo de decadência, manifestada na fragmentaçãodo califado em diversas taifas — o período das Segundas Taifas — devidoa inúmeras revoltas que adicionaram a guerra civil aos já existentes confli-tos contra os reinos cristãos a norte. Só o facto de as ordens sufis construí-rem rebates (ribat), também designados arrábidas, era um bom motivo paraserem populares, uma vez que as arrábidas, além de serem mosteiros sufis,também eram fortalezas onde a populações se podiam abrigar de guerrei-ros hostis. Muito revelador desse passado islâmico místico-guerreiro é aabundância de lugares com tais nomes, como o ironicamente denominadoConvento da Arrábida, perto de Setúbal. De resto, tanto a anarquia militarcomo o autoritarismo dos califas almorávidas já eram um bom motivo paraalguns sufis abraçarem o belicismo. Por decisão do califa Ali Ibn Taxfin, osescritos de Algazel foram queimados em público e vários místicos viram-seperseguidos: em 1141, Ibn Barrajan faleceu numa prisão em Marraquexe;Al-Mayurqi foi chicoteado e forçado a fugir; Ibn al-Arif morreu pouco de-pois de um encontro com o califa, de doença ou veneno.

Assim, algumas ordens sufis tornaram-se numa espécie de cavalariasespirituais similares aos Templários e Hospitalários cristãos, lutando compalavras e exércitos armados, fenómeno natural num mundo violento. Foio caso da confraria fundada por Ibn Qasi, cujos membros eram conheci-dos como Muridinos, palavra vinda de muridin, significando «seguidores»ou «discípulos». Não seria a última ordem de guerreiros sufis assim deno-minados (por exemplo, houve outra na longínqua Chechénia do séculoXIX!).

Obedecendo ao seu mushrîd (mestre), os Muridinos tentaram conquis-tar a fortaleza de Muntiqût (atual Monte Largo), sem sucesso, tendo tom-bado o comandante do ataque. Ibn Qasi não desanimava facilmente, ounão o demonstrava: «Em verdade, foi uma falsa aurora, à qual se segue averdadeira aurora e depois o dia surge.»

Um novo dia começou em 14 de agosto de 1144, quando 70 muridi-nos ocuparam Mértola, cidade nada fácil de tomar pela força, mas não pelaastúcia dos atacantes, inexistente nos defensores: enganaram o guarda doportão, que os confundiu com mensageiros secretos cuja iminente chegadatinha sido descrita pelo alcaide, o qual esperava por um «presente» (umprovável suborno que lhe custou caro). Quando Ibn Qasi entrou em Mér-tola, a 1 de setembro de 1144, foi proclamado mahdi («guiado»), uma espé-cie de messias islâmico que instituiria um reinado de justiça e paz durantesete anos e lideraria a umma (comunidade islâmica).

Os dawa («missionários» ou «pregadores») conseguiram novos adeptospara o recente senhor de Mértola, incluindo líderes de taifas, como Ibn

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Wazir, senhor de Beja e Évora, além de Al-Mundhir, senhor de Silves, inti-tulado por Ibn Qasi «Vitória de Alá». As campanhas militares de conquistanão demoraram muito para começar, pois, de acordo com um poema do lí-der sufi: «A coragem está nas espadas, rijas, frias, que têm por alvo o fluidodas gargantas gráceis. A paz vem de trespassarmos o cavaleiro com a lança,de golpearmos com alfanges finos e rebeldes. Nós, homens, tivemos asnossas espadas incendiadas pela tirania e iniquidade dos crimes.» Não sedeve ignorar que os mestres sufis, entre outros místicos, costumavam falarpor alegorias, linguagem simbólica e enigmas (aliás, tal como Cristo!), logo,vários dos seus poemas possuíam significados metafísicos ocultos.

Boatos sobre os alegados poderes mágicos de Ibn Qasi, ou concedi-dos por Alá, disseminaram-se entre vários fiéis crédulos: em apenas umanoite, o mahdi teria feito uma peregrinação à longínqua Meca e regressado;o dinheiro surgia-lhe a partir do nada ou do Paraíso. Segundo um relato so-bre este último milagre, verdade ou calúnia, um camponês perguntou comingenuidade, ou cinismo, se o dinheiro do mahdi vinha do Céu, então por-que é que as moedas eram iguais às cunhadas pelos Almorávidas — e nun-ca mais voltou a ser visto. Certo é que as palavras do senhor de Mértolatinham um efeito mágico, como só o carisma pode gerar.

O diminuto Estado de Ibn Qasi não possuía recursos para enfrentarsozinho os Almorávidas, mesmo decadentes, levando-o a apelar à ajuda deAbd al-Mumin, líder da confraria almóada que se sublevou no Magrebecontra os Almorávidas. Outra limitação eram as divisões internas dos pró-prios Muridinos. Aparentemente invejoso do destaque de Al-Mundhir, IbnWazir cometeu atos de insubordinação, valendo-lhe uma curta detençãoem Mértola. Libertado em 1146, revoltou-se contra o antigo mestre e cap-turou o rival Al-Mundhir, cujos olhos foram arrancados num calabouço deBeja. O amor de Ibn Wazir à poesia não provinha da brandura do seu co-ração! Mas só a união poderia derrotar os ainda temíveis Almorávidas,levando Ibn Qasi a perdoar e a reintegrar Ibn Wazir, para grande e com-preensível fúria de Al-Mundhir, até então o mais fiel comandante do mahdi,libertado pelos Almóadas, aos quais aderiu.

Aliança puramente tática: não havia grande compatibilidade entre omahdi de Mértola e os Almóadas, cujo falecido fundador, Ibn Tumart, eraoutro autoproclamado mahdi. Mas havia inimigos mais urgentes — de mo-mento. Assim, o diplomático Ibn Qasi tranquilizou o califa almóada ao de-clarar: «Não há duas alvoradas, a verdadeira e a falsa? Eu fui a falsa.»

Em 1148, exércitos almóadas liderados por Abd al-Mumin invadirama Península Ibérica e as grandes derrotas infligidas aos Almorávidas noNorte de África foram repetidas na Europa. Infelizmente, a situação só secomplicou, pois os invasores eram ainda mais fanáticos e fundamentalistas

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que o antigo opressor, estimulando mais revoltas. Isa e Abdel Aziz, irmãosdo fundador do movimento almóada, são bons exemplos, como o povo deSevilha descobriu à sua custa. Ambos terminaram executados e crucifica-dos por se rebelarem contra o califa...

Derrotado numa batalha, o monarca almorávida Taxfin morreu aocair de um precipício enquanto fugia, sendo a cabeça embalsamada adicio-nada à coleção do califa rival (costume islâmico banal durante séculos).Não demorou muito para os dois sucessores serem mortos pela nova di-nastia. Abd al-Mumin convocou todos os governantes do Al-Andaluz eexigiu-lhes vassalagem, além de o acompanharem à capital almóada, Marra-quexe, sob pena de guerra total. Em todo o Al-Gharb, Ibn Qasi foi o únicoa recusar, que se saiba. Não demorou muito a eclosão da guerra entre osantigos aliados.

Todavia, o mestre dos Muridinos não possuía muitos aliados poten-ciais, dado os governantes do Al-Andaluz se terem passado para as fileirasalmóadas ou para o outro mundo. Como resultado, teve a ousada iniciativade se aliar a um rei cristão conhecido entre os mouros como Ibn Harrik:D. Afonso Henriques, rei de Portugal. Note-se que «Ibn Harrik» é a tradu-ção árabe de «filho de Henrique», o qual é precisamente o significado de«Henriques».

Como gesto simbólico de amizade, D. Afonso Henriques ofereceu aoseu incomum aliado um cavalo, um escudo e uma lança, de implicaçõesnão apenas militares. Para a simbologia sufi, o escudo simboliza a busca es-piritual, proteção do mal, sabedoria e lealdade, enquanto a lança representaa autoridade e o Eixo do Mundo. A decisão de D. Afonso Henriques de sealiar a um mouro talvez tenha sido facilitada pelas semelhanças entre osTemplários e os Muridinos, ambos monges-guerreiros. Contudo, aliar-se aum rei nasara («nazareno», isto é, cristão), que conquistou brutalmente San-tarém e Lisboa aos Mouros, não era uma decisão nada popular, sendo IbnQasi acusado de traição ao Islão.

Al-Mundhir, o Cego, decidiu então eliminar o seu antigo mestre, gestopelo qual foi acusado nos séculos vindouros de traição motivada pela am-bição, esquecendo-se os seus rancores justificáveis contra Ibn Qasi: para oCego, o mahdi era o verdadeiro traidor. Em 1151, durante a ausência do in-fluente filho de Ibn Qasi, ocupado com uma festa, um grupo armado levouum detido acusado de roubo e o oficial da guarda saiu para pedir instru-ções. O grupo aproveitou para entrar no palácio e, quando encontraram omahdi, assassinaram-no. Os conjuradores decapitaram-no e exibiram a suacabeça na ponta de uma lança, supostamente a oferecida por D. AfonsoHenriques, gritando: «Eis aqui o mahdi dos cristãos!»

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No entanto, o dirigente dantes conhecido como «Vitória de Alá» foiderrotado e escorraçado pelo rival Ibn Wazir, o qual seria expulso do go-verno de Évora pelo califa, que lhe concedeu, no entanto, um lugar na corte.

De acordo com o historiador medieval Ibn Khaldun, a decadênciados Almorávidas trouxe guerras e instabilidade, que levaram ao aumentoexcessivo da carga fiscal, a qual, por sua vez, levou à diminuição da produ-tividade económica, em especial da agrícola. Junte-se a redução do númerode trabalhadores devido à violência e o governo ficou com carência de ver-bas para as despesas públicas, como a remuneração dos soldados, gerandodeserções e revoltas. Foi assim que Ibn Khaldun explicou a queda dos im-périos (com tal gesto pioneiro, não admira que seja denominado «pai da so-ciologia»). Todos esses fatores levaram ao fim dos Almorávidas e àascensão de povos inimigos, como Portugal, e de movimentos rebeldes co-mo os Muridinos, os quais combateram entre si até à vitória do mais forte.

Sendo os Almóadas os mais fortes, os mais fracos tinham de se lhesjuntar ou perecer. Ibn Qasi preferiu a última opção: muitos preferem lutaraté à morte em vez de uma desonrosa rendição, encorajados pela remotapossibilidade de triunfar contra todas as possibilidades. Talvez o senhor deMértola soubesse quão reduzidas eram as probabilidades de sucesso, a jul-gar pelo seu poema:

Em Jumâda, por fim terminaráO tempo que a loucura apagará.

Ora, de acordo com o calendário islâmico, Ibn Qasi foi assassinadono mês de Jumâda do ano de 546.