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ANUARIO INTERNACIONAL DA COMUCIÓN LUSÓFONA I 2014 11 Outras cartografias no espaço Lusófono Silvino Lopes Évora (Universidade de Cabo Verde, MEDIACOM, CECS Universidade do Minho, Portugal) Pensar o espaço lusófono é, cada vez mais, pensar na congregação das diferenças e na preservação de valores e similitudes. Desmembrando a expressão lusofonia, encontramos, de um lado, um lusocentro e, de outro, uma polifonia. O lusocentro remetenos para uma base comum, um ponto de partida conjunto, uma viagem ao passado, um presente que se reformula diariamente e um futuro que se arquitecta e se preojecta. A nível do espaço africano, a propagação da fonia lusófona remonta ao Século XV, período de ouro de expressão estratégica da inteligibilidade lusófona no cenário transnacional, concatenandose na montagem de uma engenharia forte, que permitisse encontrar mundos para dos limites impostos pela imponência dos oceanos. O próprio mar ganha uma expressão de relevo na edificação da identidade lusófona para lá de Ceuta e do Cabo da Boa Esperança. Na sua globalidade, a África tornouse, entre os séculos XV e XVI, um palco de fonias com os ingleses, os franceses, os holandeses, os portugueses, numa luta titânica para a conquista do seu quinhão. Portanto, a procura de mecanismos que impulsionam a acumulação das riquezas está também na origem dessa congregação fónica que influenciou, de forma indelével, a roupagem cultural que o continente africano ganhou ao longo dos tempos. O lugar que a fonia lusa encontrou no espaço geográfico africano devese, em grande parte, não propriamente àquilo que Portugal ambicionava como um espaço lusocêntrico, que se caracterizava essencialmente pela sua expressão transatlântica, mas mais pela medida de força que se fez no continente africano para, de entre as forças em presença, se consignar aquelas que maior espaço de expansão colonialista haveria de conseguir. Assim, temos, a partir do Séc. XVI os ingleses, os franceses e os holandeses a expulsarem os portugueses das principais zonas costeiras, em África, onde se gozava de condições propícias para o desenvolvimento dos negócios associados à escravatura. Quando olhamos para a relação que se estabelece entre as línguas, a estruturação do ambiente económico euroafricano, a luta por posições de influência no cenário internacional e a mentalidade estabelecida de “dominar para não ser dominado”, compreendemos, da melhor forma, o desenho linguístico operado no continente africano. Se formos contabilizar os países que surgiram do processo de descolonização francesa, de Marrocos à República CentroAfricana, serão cerca de duas dezenas de novos países. Da África do Sul a Zimbabwe, encontramos um número semelhante de países que saíram do processo de descolonização britânica. De resto, encontramos algumas porções como o Congo Belga (actual República Democrática do Congo), a Guiné Espanhola (actual Guiné Equatorial), a Líbia, a Eritreia e a Somália Italiana que passaram pelas mãos da Itália; o Togo, o Camarões e algumas outras porções que ficaram com os alemães. De resto, contamse cinco porções de terra dominados pelos portugueses e que permitiram projectar o espaço lusófono para lá do Alentejo e do Algarve, mas também, ambicionar construir um universo lusofalante (quiçá, lusopensante) para lá do prolongamento oceânico da Madeira e dos Açores. Entre GuinéBissau, Cabo Verde, Angola, Moçambique e São Tomé e Príncipe projectamse espaços descontínuos de sonhos lusófonos, de vidas africanas, de vivências crioulizadas, de ritmos, de melodias, de expressividades, de sonoridades e de fonias, que se caracterizam em virtude do mundo que os rodeias e coloca a lusofonia perante uma crioulofonia em estado de simbiose, que se expressa entre a história (que o é o centro luso) e a sociografia (que é a realidade circundante).

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ANUARIO INTERNACIONAL DA COMUCIÓN LUSÓFONA I 2014 11    

Outras cartografias no espaço Lusófono    Silvino  Lopes  Évora    (Universidade  de  Cabo  Verde,  MEDIACOM,  CECS  -­‐  Universidade  do  Minho,  Portugal)    

Pensar  o   espaço   lusófono  é,   cada  vez  mais,   pensar  na   congregação  das  diferenças   e  na  preservação   de   valores   e   similitudes.   Desmembrando   a   expressão   lusofonia,   encontramos,   de  um   lado,   um   luso-­‐centro   e,   de   outro,   uma  polifonia.  O   luso-­‐centro   remete-­‐nos   para   uma  base  comum,  um  ponto  de  partida  conjunto,  uma  viagem  ao  passado,  um  presente  que  se  reformula  diariamente   e   um   futuro   que   se   arquitecta   e   se   preojecta.   A   nível   do   espaço   africano,   a  propagação  da  fonia  lusófona  remonta  ao  Século  XV,  período  de  ouro  de  expressão  estratégica  da   inteligibilidade   lusófona   no   cenário   transnacional,   concatenando-­‐se   na  montagem   de   uma  engenharia   forte,   que   permitisse   encontrar   mundos   para   lá   dos   limites   impostos   pela  imponência  dos  oceanos.  

O  próprio  mar  ganha  uma  expressão  de  relevo  na  edificação  da  identidade  lusófona  para  lá  de  Ceuta  e  do  Cabo  da  Boa  Esperança.  Na  sua  globalidade,  a  África  tornou-­‐se,  entre  os  séculos  XV  e  XVI,  um  palco  de  fonias  com  os  ingleses,  os  franceses,  os  holandeses,  os  portugueses,  numa  luta   titânica   para   a   conquista   do   seu   quinhão.   Portanto,   a   procura   de   mecanismos   que  impulsionam  a  acumulação  das  riquezas  está  também  na  origem  dessa  congregação  fónica  que  influenciou,  de  forma  indelével,  a  roupagem  cultural  que  o  continente  africano  ganhou  ao  longo  dos  tempos.    

O   lugar   que   a   fonia   lusa   encontrou   no   espaço   geográfico   africano   deve-­‐se,   em   grande  parte,  não  propriamente  àquilo  que  Portugal  ambicionava  como  um  espaço  luso-­‐cêntrico,  que  se  caracterizava  essencialmente  pela  sua  expressão  transatlântica,  mas  mais  pela  medida  de  força  que  se  fez  no  continente  africano  para,  de  entre  as  forças  em  presença,  se  consignar  aquelas  que  maior  espaço  de  expansão  colonialista  haveria  de  conseguir.  Assim,  temos,  a  partir  do  Séc.  XVI  os   ingleses,   os   franceses   e   os   holandeses   a   expulsarem   os   portugueses   das   principais   zonas  costeiras,   em   África,   onde   se   gozava   de   condições   propícias   para   o   desenvolvimento   dos  negócios  associados  à  escravatura.  

Quando   olhamos   para   a   relação   que   se   estabelece   entre   as   línguas,   a   estruturação   do  ambiente  económico  euro-­‐africano,  a  luta  por  posições  de  influência  no  cenário  internacional  e  a  mentalidade   estabelecida   de   “dominar   para   não   ser   dominado”,   compreendemos,   da   melhor  forma,  o  desenho  linguístico  operado  no  continente  africano.  

Se   formos  contabilizar  os  países  que  surgiram  do  processo  de  descolonização   francesa,  de   Marrocos   à   República   Centro-­‐Africana,   serão   cerca   de   duas   dezenas   de   novos   países.   Da  África   do   Sul   a   Zimbabwe,   encontramos   um   número   semelhante   de   países   que   saíram   do  processo   de   descolonização   britânica.   De   resto,   encontramos   algumas   porções   como   o   Congo  Belga  (actual  República  Democrática  do  Congo),  a  Guiné  Espanhola  (actual  Guiné  Equatorial),  a  Líbia,  a  Eritreia  e  a  Somália   Italiana  que  passaram  pelas  mãos  da   Itália;  o  Togo,  o  Camarões  e  algumas  outras  porções  que  ficaram  com  os  alemães.  

De   resto,   contam-­‐se   cinco   porções   de   terra   dominados   pelos   portugueses   e   que  permitiram   projectar   o   espaço   lusófono   para   lá   do   Alentejo   e   do   Algarve,   mas   também,  ambicionar  construir  um  universo  luso-­‐falante  (quiçá,  luso-­‐pensante)  para  lá  do  prolongamento  oceânico  da  Madeira  e  dos  Açores.  Entre  Guiné-­‐Bissau,  Cabo  Verde,  Angola,  Moçambique  e  São  Tomé  e  Príncipe  projectam-­‐se  espaços  descontínuos  de  sonhos  lusófonos,  de  vidas  africanas,  de  vivências  crioulizadas,  de  ritmos,  de  melodias,  de  expressividades,  de  sonoridades  e  de   fonias,  que   se   caracterizam   em   virtude   do  mundo   que   os   rodeias   e   coloca   a   lusofonia   perante   uma  crioulofonia  em  estado  de  simbiose,  que  se  expressa  entre  a  história  (que  o  é  o  centro  luso)  e  a  sociografia  (que  é  a  realidade  circundante).  

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Na  verdade,  Eduardo  Lourenço  terá  lido  o  conceito  de  lusofonia  para  lá  da  simplicidade  que   o   seu   primeiro   significado   poderá   aportar:   o   de   ser   um   espaço   linguístico-­‐cultural  projectado   entre   as   várias  margens   do   oceano   Atlântico.   Problematiza   o   olhar   para,   de   certa  forma,  assumir  que  o  conceito  chama  para  o  centro  os  “lusíadas”,  remetendo  para  a  periferia  da  sua  abrangência  os  “não  lusíadas”.  Destes  pode-­‐se  enquadrar  os  chamados  luso-­‐africanos.  Para  sistematizar  o  seu  pensamento,  Eduardo  Lourenço  considera  que  “o  sonho  de  uma  Comunidade  de  Povos  de  Língua  Portuguesa,  bem  ou  mal  sonhado,  é  por  natureza  –  que  é  sobretudo  história  e  mitologia  –  um  sonho  de  raiz,  de  estrutura,  de   intenção  e  amplitude   lusíada”.  Entendimento  semelhante   tem   Victor   Marques   dos   Santos,   Professor   Associado   do   Instituto   de   Ciências  Políticas  e  Sociais  da  Universidade  Técnica  de  Lisboa,  que  considera  que  “a  defesa  da  língua  e  da  cultura   portuguesas   perspectivadas,   simultaneamente,   enquanto   factores   patrimoniais   da  matriz   identitária   da   nação   portuguesa,   e   enquanto   factores   de   projecção   estratégica   de  Portugal,   no   sentido   da   realização   dos   respectivos   interesses,   através   da   concretização   de  objectivos   políticamente   identificados   insere-­‐se,   inequivocamente,   num   conceito   alargado   de  Defesa  Nacional”  (2004:  126).  

Analisar  a   lusofonia  a  partir  do  filosofar  de  Eduardo  Lourenço  não  deve  ser  feito  sem  o  enquadramento  de  Maria  Manuel  Baptista  que  o  vê  como  “um  europeísta  convicto,  ora  crítico  e  desiludido,   ora   utópico   e   entusiasta,   e   que   as   suas   reservas   face   à   lusofonia   são   claras   e  reiteradamente   assumidas   nos   diversos   textos   que   tem   publicado   sobre   esta   matéria.   O   que  talvez   seja  menos   conhecido   –   segundo   ela   –     é   o   inestimável   contributo   que   a   sua   reflexão,  sobretudo   se   integrada  numa   visão  de   conjunto   da   sua   obra,   pode   trazer   quer   para   a   análise  teórica   do   conceito   de   lusofonia,   quer   para   a   real   construção   de   um   espaço   simbólico   e  imagético   lusófono,   efectiva   e   afectivamente   vivido   e   partilhado   por   todos   quantos   falam   a  língua  de  Camões”  (2000:  2).  

Na  verdade,  quem  assume  integralmente  o  olhar  lusófono  de  Eduardo  Lourenço  haverá,  cedo  ou  tarde,  de  concluir  que  vivemos  uma  fase  de  pós-­‐lusofonia,  que  não  é  propriamente  um  pós-­‐lusófono.  Olhando  a  cultura  ocidental,  desenraizada  da  sua  própria  matriz  de  valores  pela  ordem  económica  denominada  de  capitalismo  tardio,  os  cientistas  sociais  tiveram  que  mobilizar  um   conjunto   de   conceitos   para   explicarem   este   novo   tempo.   Daí   sermos   confrontados   com  conceitos   como   pós-­‐modernismo,   pós-­‐fordismo,   pós-­‐colonialismo,   pós-­‐socialismo.   Se  estendermos   as   conceptualizações   a   outras   componentes   da   vida   em   sociedade,   havemos   de  chegar   a   uma   pós-­‐cultura,   insinuada   por   esse   homem-­‐Light   que,   embora   vivendo   numa  sociedade   sobrecarregada   de   informação,   entrega-­‐se   ao   pragmatismo   da   vida   quotidiana  (basicamente,   o   homem   robot,  marcado   pelo   vazio   de   cultura)   e   que   se   entrega   também   aos  lugares  comuns  (portanto,  superficialidade,  trivialidade,  futilidade),  onde  se  nota  uma  ausência  de  critérios  sólidos,  de  valores  consolidados,  enraizados  e  sedimentados.  Portanto,  um  homem  cuja   dimensão   cultural   se   banalizou   e   é  marcada   sobretudo   pela   volatidade,   funcionando   em  razão   dos   ritmos,   da   musicalidade   e   da   cadência   de   passos   impostos   pela   supercultura   ou  cultura  de  massa,  que  se  distende  num  espaço  mediatizado  e  economicamente  assumido  pelo  grande  capital.  O  capitalismo   tardio   (para  não  dizer  um  capitalismo  desprovido  de  valores  ou  pobre  de  espírito)  determina  os  tempos  de  crise,  os  tempos  de  retoma  económica,  o  valor  dos  bens  de  transacção  acelerada,  as  economias  de  lixo  e  os  robins  dos  bosques.  

O  espaço  da  pós-­‐cultura  não  será  outra  coisa  senão  um  ambiente  da  “não  cultura”  ou  de  imoralidade  de  valores  culturais,  em  que  a  chamada  cultura  global  se  encontra  perante  o  dilema  de  estar  desenraizada  da  sua  genuinidade  (não  se   lhe  conhece  muito  bem  o  terreno  onde  tem  pregado  as  suas  raízes),  ao  mesmo  tempo  que  possui  ramificações  espalhadas  por  um  universo  descaracterizado,   já   que  não   se   lhe   conhece   as   fronteiras   territoriais  de   influência.   Para   lá  da  cultura  ocidental,  o  mundo  viverá  hoje  num  ambiente  ocidentalizado  que,  na  mescla  com  tudo  o  resto  à  sua  volta,  acaba  por  chegar  a  um  pós-­‐ocidentalismo.  É  nesse  ambiente  que  se  projecta  hoje  o  espaço  lusófono.  Ou  seja,  num  ambiente  em  que  o  próprio  ocidentalismo,  de  onde  emerge  

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ANUARIO INTERNACIONAL DA COMUCIÓN LUSÓFONA I 2014 13    

“os   lusíadas”,   encontra-­‐se   desafiado   pela   sua   própria   ganância   plasmada   na   sua   expressão  económica   e   tecnológica.   Portanto,   a   grande   verdade   é   que   estamos   a   assistir   a   diluição   da  cultura   ocidental.   Perante   este   cenário,   é   impensável   a   preservação   do   luso-­‐centrismo,   nos  moldes  caracterizados  por  Eduardo  Lourenço,  essa  lusofonia  voltada  para  o  centralismo  lusíada.  

A   nossa   comunicação   apela   ao   nosso   raciocínio   sobre   outras   cartografias   no   espaço  lusófono.   Olhamos   para   a   cartografia   luso-­‐africana,   em   que   cinco   territórios   descontínuos  projectam  o  espaço  da   lusofonia  por  entre  a   francofonia,  a  anglofonia  e  sobretudo  a  afrofonia.  Desde   logo,   entendemos   que,   no   espaço   luso-­‐africano,   a   lusofonia   é   um   conceito   em  diluição,  sendo  que,  em  África,  a  cultura  e  a   língua   lusíadas  encontram-­‐se  num  espaço  de   intermitência  com  as   culturas  e   línguas   locais.  E  esta  visão  vai   em   linha  com  a   ideia  de  Victor  Marques  dos  Santos   que,   num   artigo   intitulado   “Lusofonia   e   Projecção   Estratégica   –   Portugal   e   a   CPLP”,  afirma  que  “no  ambiente  relacional  globalizante  do  início  do  século  XXI,  a  CPLP  afirma-­‐se  como  uma   comunidade   plural,   enriquecida   pela   diversidade,   unida   em   torno   do   factor   linguístico   e  cultural  comum,  funcionando  como  matriz  de  potenciação  das  culturas  irmanadas  na  lusofonia.  Ao   mesmo   tempo,   a   CPLP   constitui   a   expressão   institucionalizada   do   mundo   lusófono,  convencionalmente   formalizada,   no   plano   político-­‐diplomático,   pelos   respectivos   estados  membros,   afirmando-­‐se   a   par   das   numerosas   comunidades   de   luso-­‐falantes   espalhadas   pelo  mundo,   indiferentes   às   fronteiras   territoriais   e   à   formalização   convencionada   das   políticas  externas  dos  estados”  (2004:  126).  

Em   Angola,   a   língua   lusa   partilha   um   espaço   intermitente   com   outras   seis   línguas  africanas,  consideradas  como  nacionais,  e  outras  tantas  línguas  e  dialectos  africanos  através  dos  quais   se   elaboram  o  quotidiano  de  milhões  de  pessoas.  O   caso  de  Moçambique  não   configura  grandes   diferenças   em   relação   a   Angola,   sendo   que   o   português,   enquanto   idioma   oficial,  partilha  um  espaço  de  intermitência  linguística  com  cerca  de  duas  dezenas  de  línguas  africanas,  sendo  também,  cada  vez  mais,  assediado  pela  anglofonia.  Nem  o  caso  de  São  Tomé  e  Príncipe  e  nem  o  da  Guiné-­‐Bissau  configuram  diferenças  consubstanciais  em  relação  àquilo  que  se  regista  nos  outros  países,  antes  referidos.  A   lusofonia  continua  a  ser  uma  fonia  que  procura  sincronia  com  outras   fonias  para  poder  elaborar  uma  mensagem  africana.  Entre  o  reconhecimento   legal  da  língua  portuguesa  e  a  sua  operacionalização  no  quotidiano  dos  milhões  de  luso-­‐africanos,  vai  um  caminho  distante.  Muitos  conseguem  operacionalizar  mal  a  Língua  Portuguesa  no  seu  dia-­‐a-­‐dia.  Outros,   conseguem  decifrar   grande  parte   das  mensagens   em  Língua  de  Camões,  mas  não  conseguem  elaborar  um  discurso  coerente  recorrendo  a  este  idioma;  há  ainda  aqueles  que  mal  conseguem  compreender  o  que  se  diz  em  língua  portuguesa.  Portanto,  há  uma  congregação  de  diferentes   circunstâncias   no   espaço   luso-­‐africano.   A   nível   económico,   uma   das   motivações  centrais   dessa   relação   luso-­‐tropical,   temos   a   Angola   a   abrir-­‐se   cada   vez   mais   ao   mundo;   o  Moçambique  a  desenvolver  relações  comerciais  no  espaço  da  anglofonia,  confrontando-­‐se  com  o  assédio  da  África  do  Sul,  que  é  uma  potência  económica  na  região;  e  a  Guiné-­‐Bissau  a  aprofundar  as  relações  no  quadro  da  francofonia,  com  um  conjunto  de  países  francófonos  ao  redor  e  a  sua  adesão  a  uma  moeda  francófona,  que  é  o  Franco  CFA.  Portanto,  a  lusofonia  em  África  continuará  a   ser   esse   desafio   constante   de   procurar   federar   as   diferenças   actuantes   na   economia,   na  cultura,   nas   línguas,   na   sociedade   e   nas   estratégias   e   alianças   que   os   países   luso-­‐africanos  estabelecem,  em  favor  de  um  ideal  de  desenvolvimento  integrado  das  suas  sociedades.      

Cabo  Verde   constitui  um  caso  particular  no   contexto  da  projecção   lusíada  em  África.  A  descoberta   das   ilhas,   em   1460,   fez   com   que   as   embarcações   lusas   que   ali   chegaram  encontrassem   terras   vazias,   sem   população,   embora   alguns   autores   falem   de   indícios   da  presença  humana  antes  da  desembarcação  lusa,  passando  a  ideia  de  que  não  foram  os  primeiros  a   aportarem   nas   ilhas.   De   ilhas   inóspitas   da   primeira   impressão,   facilmente   começou-­‐se   a  trabalhar  no  seu  povoamento,  sobretudo  pela  necessidade  de   ter  uma  plataforma  no  atlântico  para   a   distribuição   da   mercadoria   escrava.   Assim,   começou-­‐se   com   uma   tipologia   de  povoamento  essencialmente  europeia,  em  1462.  Foi  uma  tentativa  parcialmente  falhada  devido  

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à  falta  de  incentivos  naturais  para  a  fixação  nas  ilhas.  Apesar  dos  incentivos  económico-­‐políticos  para  os  lusos  que  decidissem  fixar  nas  ilhas,  com  uma  vasta  área  para  o  livre  tráfico  de  escravos  até  aos  rios  da  Guiné,  a  verdade  é  que  a  adesão  dos  lusos  ao  povoamento  das  ilhas  áridas  não  foi  satisfatória  e  sentiu-­‐se  perante  a  necessidade  de  mobilizar  outras  populações  para  preencher  os  territórios   vazios   em   Cabo   Verde.   Daí,   uma   boa   parcela   dos   escravos   recrutados   da   Costa  Africana  terem  sido  fixados  em  Cabo  Verde.  

A   junção  entre  os  africanos  escravizados  e  os  europeus  que  residiam  nas   ilhas  de  Cabo  Verde  mediante  incentivos  fez  com  que  se  desse  o  processo  de  crioulização  e  nascesse  a  cabo-­‐verdianidade.  O  mesmo  se  passou  em  relação  ao  domínio  linguístico.  O  processo  comunicativo  entre  os  europeus  e  africanos  fez  com  que  a  língua  lusa  se  diluísse  nas  línguas  africanas,  no  seio  dos  crioulos,  e  vice-­‐versa.  Neste  sentido,  regista-­‐se  a  emergência  de  um  novo  idioma,  o  crioulo  cabo-­‐verdiano,   que   é   primo   em   primeiro   grau   da   Língua   Portuguesa   e   das   Línguas   Africanas  operadas  no  processo  de  povoamento  das  ilhas.  Portanto,  mais  uma  razão  para  concluir  que,  em  África,  a  Lusofonia  é  uma  crioulofonia  ou  afrofonia.  Muito  da  língua  portuguesa  que  se  fala  está  embutida  nas  línguas  locais.  O  cabo-­‐verdiano  torna-­‐se  lusófono  ao  falar  o  crioulo,  na  medida  em  que   o   crioulo   não   se   faz   da   negação   da   língua   lusa,   mas   incorpora   uma   vasta   terminologia  “lusíada”,   sendo   que   as   diferenças,  muitas   vezes,   se   registam   na   pronúncia,   na   eliminação   de  algumas  sílabas,  na  substituição  de  algumas  letras  que  constituem  as  palavras  ou  nos  próprios  sotaques  empregues,  que  acabam  por  passar  a  ideia  de  uma  outra  língua  muito  distante,  quando  no  fundo,  está-­‐se  num  terreno  familiar.  

Portanto,   a   língua   portuguesa,   no   contexto   africano,   convive   com   outras   línguas,   mas  também  com  línguas  derivadas  da  sua  própria  essência.  Por   isso,  o  caminho  aponta  para  uma  integração   simbiótica   da   língua   na   cartografia   da   lusofonia   africana.   A   constituição   de   uma  Comunidade  dos  Países  de  Língua  Portuguesa   (CPLP)   resulta  do  amadurecimento  de   relações  informais   entre   povos   lusófonos,   durante   vários   séculos.   O   elemento   comum   destes   povos   é  claramente  o  elo  linguístico  como  elemento  de  comunicação.  Portanto,  a  comunicação  nas  suas  múltiplas   plataformas   de   difusão   torna-­‐se   na   espinha   dorsal   do   sonho   de   uma   Comunidade  Lusófona   e   da   realidade   de   povos   dispersos   que,   de   uma   ou   de   outra   forma,   usam   a   língua  portuguesa  no  processo  de  interacção  social.  

Sendo   a   Comunicação   um   elemento   importante   para   alimentar   um   ideal   lusófono,   há,  para  além  da  própria  institucionalização  da  Comunidade,  outros  elementos  que  funcionam  como  sua  coluna  vertebral.  Criou-­‐se  um  Instituto  Internacional  da  Língua  Portuguesa  (IILP),  que  está  instalada  em  Cabo  Verde,  mas  não  consegue  sair  do  formalismo  institucional  porque  os  vários  Estados-­‐membros  insistem  em  não  assumir  os  seus  compromissos  financeiros.  Outro  elemento  que   se   considerou   pilar   de   institucionalização   do   espaço   lusófono   é   a   proposta   de   Adriano  Moreira   de   se   criar   a   Universidade   Internacional   Luís   de   Camões,   que   seria   “de   estrutura  federativa,  visando  congregar  várias  entidades”.  Ideia  que  não  se  concretizou  e  foi  ultrapassada  pelo  Governo  do  Brasil  que  avançou  com  projecto  semelhante,  não  na  forma,  mas  no  conteúdo,  criando   a   Universidade   de   Integração   Luso-­‐Afro-­‐Brasileiro   (UNILAB).   Tendo   sido   uma  instituição   que,   para   além  da   formação   superior,   constitui   um   espaço   de   conhecimento   entre  africanos   que   nunca   tiveram   a   oportunidade   de   se   conhecerem   no   próprio   continente,   como  também  de   interacção  entre  os  africanos  e  os  brasileiros,  a  UNILAB  desempenha  um  papel  de  grande  importância  na  consumação  do  ideal  de  um  espaço  de  partilha  lusófona.  A  língua  é  uma  das   principais   áreas   de   aposta   formativa.   Portanto,   a   mesma   língua   que   serve   de   elemento  multiplicador  das  relações  humanas,  comerciais,  científicas,  políticas  e  culturais  entre  os  povos  do  espaço  lusófono.  Desta  feita,  o  processo  de  reconfiguração  da  lusofonia  tem  acontecido  entre  as   margens   dos   oceanos,   lá   onde   haja   povos   luso-­‐falantes,   luso-­‐pensantes   ou   luso-­‐descodificantes.   Com   o   protagonismo   que   o   Brasil   tem   assumido,   tem-­‐se   registado,   cada   vez  mais,   uma   deslocação   de   um   luso-­‐centro   para   um  multi-­‐centro.   O   protagonismo   de   Angola   a  nível  económico,  se  for  direcionado  para  o  campo  da  cultura,  das  línguas  e  da  política,  também  

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ANUARIO INTERNACIONAL DA COMUCIÓN LUSÓFONA I 2014 15    

poderá  confirmar  esse  multi-­‐centro   lusófono  e  desafia  a   lusofonia  a  refazer-­‐se  neste  ambiente  de  uma  eminente  pós-­‐cultura.  As  novas   tecnologias  de   comunicação  vieram  abrir  novas  auto-­‐estradas   de   informação,   permitindo   os   países  menos   desenvolvido   participar   no   processo   de  elaboração  de  uma  mensagem  lusófona.  Isso,  sabendo  que,  embora  os  ciberjornais  dos  PALOP  e  de  Timor  Leste  não  tenham  a  mesma  capacidade  de  influenciar  a  agenda  lusófona  de  que  os  seus  congéneres  brasileiros  e  portugueses,  a  verdade  é  que  conseguem  fazer  a  diferença  e   têm  um  impacto  na  partilha  do  conhecimento  Sul-­‐Sul.  

Igualmente,  as   televisões   transfronteiriças  acabam  também  por  constituir  um  elemento  de   grande   relevo   no   desenho   da   agenda   cognitiva   lusófona.   Portugal   cedo   compreendeu   a  importância  de  canais  de  fracturação  social  através  da  informação,  penetrando  semioticamente  as   sociedades   lusófonas,   construindo   simbolicamente   as   realidades   vividas   no   espaço   da  lusofonia.   Desta   feita,   criou   a   RTP   África   e   a   RTP   Internacional,   como   forma   de   continuar   a  desenhar  uma  mensagem,  uma  estratégica  e  uma  semiótica  em  que  o  centro  continuaria  lusíada.  Trata  de  uma  política  governamental,  uma  estratégia,  uma  visão  do  país  para  o  mundo  lusófono.  O  Brasil  fez  isso,  não  propriamente,  através  de  uma  política  assumida  pelo  Governo,  mas  através  das  estratégias  expansionistas  dos  seus  canais  de  televisão,  como  a  Rede  Globo  e  a  Rede  Record.  O   trabalho   destes   é   complementado   com   a   actuação   dos   Centros   Culturais   do   Brasil,   nos  diferentes   países   africanos,   que,   embora   surgindo   posteriormente,   têm   sido   muito   mais  actuantes  do  que  os  Centros  Culturais  Portugueses.  

A   nível   da   África,   essa   preocupação   de   marcar   terreno   no   espaço   lusófono   tem  acontecido,   sobretudo   com   a   posição   que   Angola   vem   assumindo.   Há   cerca   de   cinco   anos,   a  Televisão  Pública  Angolana  (TPA)  lançou  no  composto  da  televisão  por  assinatura  internacional  a   TPA   INTERNACIONAL.   Isso,   a   par   dos   negócios   que   as   empresas   angolanas   têm   estado   a  desenvolver  no  domínio  da  banca  e  das  telecomunicações  entre  Portugal,  Cabo  Verde  e  outros  países   lusófonos.  Cabo  Verde,  com  uma  estrutura  económica  muito  menos  ousada  que  Angola,  lançou  há  menos  de  um  ano  um   canal   internacional,   via   cabo:   a  TCV   INTERNACIONAL.  Neste  caso,  a  programação  ainda  não  é  orientada  para  marcar  diferença  num  diálogo   inter-­‐lusófono,  mas  mais  para   alcançar   a   comunidade   cabo-­‐verdiana  emigrada  e   constituir  um  elo  de   ligação  entre  os  nacionais  e  a  nação.  E  assim  se  tem  feito  esta  outra  cartografia  do  espaço  lusófono.