1 entre dois impérios: lideranças indígenas e colonizadores

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Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008 ISBN - 978-85-61621-01-8 1 Entre dois impérios: lideranças indígenas e colonizadores espanhóis e portugueses no vale do rio Paraguai (1770-1810) Francismar de Carvalho Resumo: Nas últimas décadas do século XVIII, espanhóis e portugueses aceleraram o processo de conquista da porção central da América do Sul, instalando fortes militares e incentivando o avanço dos estancieiros sobre os territórios. Em meio às contendas pela demarcação das fronteiras coloniais, colocava-se o problema de como incorporar as populações indígenas que ali viviam e dispor de mão-de-obra para as atividades econômicas em expansão. O presente trabalho analisa os padrões de estratégias que espanhóis e portugueses utilizaram para atrair a colaboração de caciques, reduzir os povos indígenas em aldeamentos e manter sobre eles uma estrutura de poder que propiciasse o fornecimento regular de mão-de-obra. Os tratados de paz firmados entre colonizadores e lideranças indígenas são documentos decisivos desse processo, dispositivos de dominação empregados tanto por espanhóis como por portugueses. 1. O contexto de expansão colonial no vale do rio Paraguai Nas últimas décadas do século XVIII, acirraram-se as disputas entre espanhóis e portugueses pela posse da bacia do rio Paraguai, de modo que as estratégias de ambos para o controle dos territórios se constituíram principalmente na instalação de fortes militares. Os portugueses primeiramente fundaram o forte de Iguatemi (1767), a fim de garantir o controle do rio Paraná; em seguida, o forte de Nova Coimbra (1775), na margem ocidental do rio Paraguai, latitude de 19º55’, na tentativa de efetivar o controle da região conhecida como Vacaria (correspondente ao atual Estado do Mato Grosso do Sul e parte do leste do Paraguai) e do vale do Alto Paraguai. 1 Apesar de Iguatemi cair em 1777, diante de uma ofensiva militar dos espanhóis, o arrojado projeto prosseguiu. Seguiram-se a fundação da povoação de Doutorando em História Econômica/USP; bolsista da Capes. E-mail: [email protected] 1 BASTOS, Uacury Ribeiro de Assis. Expansão territorial do Brasil colônia no vale do Paraguai (1767-1801). 1972. Tese (Doutorado em História)–Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1972. p. 164-65; BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Autoridade e conflito no Brasil colonial: o governo do Morgado de Mateus em São Paulo, 1765-1775. São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura: Conselho Estadual de Artes e Ciências Humanas, 1979. p. 265-77, passim.

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Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008 ISBN - 978-85-61621-01-8

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Entre dois impérios: lideranças indígenas e colonizadores espanhóis e portugueses no vale do rio Paraguai (1770-1810)

Francismar de Carvalho�

Resumo: Nas últimas décadas do século XVIII, espanhóis e portugueses aceleraram o

processo de conquista da porção central da América do Sul, instalando fortes militares e

incentivando o avanço dos estancieiros sobre os territórios. Em meio às contendas pela

demarcação das fronteiras coloniais, colocava-se o problema de como incorporar as

populações indígenas que ali viviam e dispor de mão-de-obra para as atividades econômicas

em expansão. O presente trabalho analisa os padrões de estratégias que espanhóis e

portugueses utilizaram para atrair a colaboração de caciques, reduzir os povos indígenas em

aldeamentos e manter sobre eles uma estrutura de poder que propiciasse o fornecimento

regular de mão-de-obra. Os tratados de paz firmados entre colonizadores e lideranças

indígenas são documentos decisivos desse processo, dispositivos de dominação empregados

tanto por espanhóis como por portugueses.

1. O contexto de expansão colonial no vale do rio Paraguai

Nas últimas décadas do século XVIII, acirraram-se as disputas entre espanhóis e

portugueses pela posse da bacia do rio Paraguai, de modo que as estratégias de ambos para o

controle dos territórios se constituíram principalmente na instalação de fortes militares. Os

portugueses primeiramente fundaram o forte de Iguatemi (1767), a fim de garantir o controle

do rio Paraná; em seguida, o forte de Nova Coimbra (1775), na margem ocidental do rio

Paraguai, latitude de 19º55’, na tentativa de efetivar o controle da região conhecida como

Vacaria (correspondente ao atual Estado do Mato Grosso do Sul e parte do leste do Paraguai)

e do vale do Alto Paraguai.1 Apesar de Iguatemi cair em 1777, diante de uma ofensiva militar

dos espanhóis, o arrojado projeto prosseguiu. Seguiram-se a fundação da povoação de

� Doutorando em História Econômica/USP; bolsista da Capes. E-mail: [email protected] 1 BASTOS, Uacury Ribeiro de Assis. Expansão territorial do Brasil colônia no vale do Paraguai (1767-1801). 1972. Tese (Doutorado em História)–Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1972. p. 164-65; BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Autoridade e conflito no Brasil colonial: o governo do Morgado de Mateus em São Paulo, 1765-1775. São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura: Conselho Estadual de Artes e Ciências Humanas, 1979. p. 265-77, passim.

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Albuquerque (1778), na margem ocidental do rio Paraguai e do forte de Miranda (1797), no

rio atualmente com este nome, mas que era conhecido como Mbotetei.

Nas vizinhanças dos fortes de Coimbra e Miranda, bem como na povoação de

Albuquerque, as autoridades portuguesas conseguiram aldear vários grupos de índios das

etnias Mbayá e Guaná.2 Ainda não foram suficientemente analisadas as políticas indigenistas

empregadas pelas autoridades portuguesas no trato com os caciques desses grupos, a fim de

obter sua colaboração na transferência dos índios para os aldeamentos no entorno dos fortes

militares, nem as relações entre militares, colonos e indígenas aldeados.

Os espanhóis do Paraguai, acompanhando o ritmo dos rivais portugueses, também

instalaram fortificações e povoações na mesma região, e procuraram atrair os índios para

aldeamentos. Os índios Mbayá e Guaná da redução de Belén, no rio Ypané, que funcionara

sob administração dos jesuítas de 1760 a 1767, após uma malograda tentativa dos

franciscanos, foram paulatinamente transferidos para os novos estabelecimentos que

apareceram.3 Em 1773, os espanhóis incrustaram entre os rios Aquidabán e Ypané, afluentes

do Paraguai, a Villa Real de la Concepción; pouco tempo depois, seu comandante e outros

moradores criollos já contavam com considerável contingente de mão-de-obra Guaná, que

foram aldeados naquelas vizinhanças.4 O processo de militarização da fronteira desenvolveu-

se praticamente no mesmo ritmo dos portugueses: estabeleceram os fortes de San Pedro de

Ycuamandiyú, na margem esquerda do rio Paraguai (1784), forte de Borbón, na margem

direita (1792), e forte de San Carlos, no rio Apa (1794). O forte de Borbón logrou aldear o

subgrupo Mbayá conhecido como Cadiguegodi, bem como índios Guaná, nas vizinhanças do

estabelecimento militar. Branislava Susnik menciona que o governador Pedro de Melo de

Portugal (1778-1785) tentou aldear os índios chamados de Monteses nas imediações de

2 ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO [doravante AHU], ACL-CU-010, cx. 38, doc. 1898. Ricardo Franco de Almeida Serra, comandante de Coimbra, ao governador de Mato Grosso, Caetano Pinto de Miranda Montenegro, Coimbra, 14 fev. 1800. f. 1a. 3 SUSNIK, Branislava. El indio colonial del Paraguay: t. 3-1: el chaqueño: Guaycurúes y Chanes-Arawak. Asunción: Museo Etnográfico Andrés Barbero, 1971. 4 Ibidem, p. 150 et seq.; ARECES, Nidia R. Paraguayos, Portugueses e Mbayás en Concepción, 1773-1840. Memória Americana: Cuadernos de Etnohistoria, Buenos Aires, n. 8, p. 11-44, 1999.

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Ycuamandiyú, e embora não tenha obtido sucesso,5 esses índios passaram a ser empregados

na produção da erva.6

Escapa aos propósitos deste texto a análise dos sistemas de trabalho a que foram

conduzidos esses povos indígenas, mas antes sua intenção é desvelar as tecnologias de poder

que propiciaram a coerção necessária para que esses sistemas pudessem funcionar. Destarte,

quais padrões de estratégias espanhóis e portugueses utilizaram para atrair a colaboração de

caciques e manter uma estrutura de poder sobre os aldeamentos do entorno das fortalezas?

Procura-se investigar aqui a função dos tratados de paz firmados entre colonizadores e

lideranças indígenas, cotejando-os com correspondências de militares, governadores, vice-reis

e secretários de Estado, a fim de problematizar não apenas os aspectos jurídicos desses textos,

mas também pensá-los como expressão e condicionantes do processo de expansão colonial na

região. Sabe-se que, em 1753, os índios Payaguá assinaram um tratado de capitulação com o

governador do Paraguai Jaime Sanjust.7 Em 1759, fizeram o mesmo os índios Mbayá.8 Mais

tarde, em 1791, os Mbayá assinaram um Termo de Paz com o governador de Mato Grosso,9

renovado cinco anos depois.10 Em 1793, os Guaná também buscaram um acordo com os

portugueses.11 A despeito disso, índios Mbayá e Guaná assinaram um tratado com os

espanhóis em 1798.12 Sem ignorar as perspectivas que tinham os indígenas, o presente

trabalho procura deslindar as funções de dominação presentes nesses tratados.

2. Mudanças na política indigenista colonial

5 SUSNIK, Branislava. Los aborígenes del Paraguay: v. 2: Etnohistoria de los Guaranies: época colonial. Asunción: Museo Etnográfico Andres Barnero, 1980. p. 283. 6 COONEY, Jerry W. North to the Yerbales: The Exploitation of the Paraguayan Frontier, 1776-1810. In: GUY, Donna J.; SHERIDAN, Thomas E. (eds.) Contested Ground: Comparative Frontiers on the Northern and Southern Edges of the Spanish Empire. Tucson: Univ. of Arizona Press, 1998. p. 137. 7 ARCHIVO NACIONAL DE ASUNCIÓN [doravante ANA], Sección Historia [SH], v. 127, n. 7. El gobernador sobre la capitulación de los indios Payaguás, Asunción, 26 mai. 1753. 8 Não pude encontrar o texto deste tratado no Archivo Nacional de Asunción. O evento é referido em: LABRADOR, José Sánchez. El Paraguay Católico [1780]. Buenos Aires: Imprenta de Coni Hermanos, 1910. v. 2, p. 82-83, 113. 9 AHU-ACL-CU-010, cx. 28, doc. 1617. João de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres, governador de Mato Grosso, ao secretário de Estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro, 9 set. 1791. f. 5a-7b. O tratado encontra-se transcrito em: PRADO, Francisco Rodrigues do. História dos índios cavalleiros [...] [1795]. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 1, 1893. p. 40 et seq. 10 AHU-ACL-CU-010, cx. 31, doc. 1722. João de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres, governador de Mato Grosso, ao secretário de Estado da Marinha e Ultramar, Luís Pinto de Sousa Coutinho, 10 fev. 1796. f. 8a-b. 11 O evento é mencionado em: PRADO, op. cit., p. 30. 12 ANA, Colección Rio Branco [CRB], n. 58. Artículos de paz que se ha celebrado con los caziques Mbayá y Guaná, 31 jan. 1798. 7 p.

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Embora a política de tratados entre colonizadores e índios tenha sido eventualmente

utilizada desde o início da conquista, na segunda metade do século XVIII tornou-se uma

prática freqüente e incentivada pelas Metrópoles.13 Época do reformismo ilustrado, que

procurava dentre outras coisas garantir a posse territorial, a ocupação e a produtividade nas

fronteiras coloniais, habitadas por índios ainda não conquistados, para os quais arquitetava

uma mudança nas políticas indigenistas, deixando de lado a “guerra justa” de extermínio e

escravização para recorrer à incorporação e disciplinarização para o trabalho.14 Deve-se

considerar que esses povos indígenas fronteiriços tornaram-se cada vez mais contatados pelos

colonizadores rivais em expansão, e uma preocupação constante, tanto por conta das

incursões que praticavam, quando pelo receio de que prestassem auxílio militar a outros

europeus interessados em controlar o território em contenda. Nesse quadro, os tratados

adquiriam os contornos específicos das políticas do reformismo ilustrado.15

Por sua vez, a expulsão dos jesuítas da América espanhola em 1767 resultou em

mudanças substantivas que conduziram a uma utilização mais freqüente de tratados. De um

lado, destruiu o monopólio que os jesuítas detinham sobre a erva-mate produzida nas regiões

fronteiriças do Paraguai, onde liberou terras e mão-de-obra para a produção para o mercado

mundial, que o Édito do Livre-Comércio, de 1778, regulou a partir de Buenos Aires.16 Por

outro lado, segundo David Weber, a função de manter contato com os índios das fronteiras

passou dos missionários para os militares, o que modificou as estratégias utilizadas: por

exemplo, tornou-se mais comum presentear os índios com armas, uniforme militar e insígnias

de distinção que elevavam o poder de certos caciques.17

Além disso, os tratados eram entendidos como uma opção viável no âmbito do

reformismo bourbônico, a fim de economizar o Real Erário e converter os índios em

13 Em texto clássico que inaugura a reflexão sobre o tema, Charles Gibson traça importantes comparações entre os tratados firmados por espanhóis e mouros durante a reconquista, e espanhóis e indígenas na conquista da América. GIBSON, Charles. Conquest, Capitulation, and Indian Treaties. American Historical Review, n. 83, p. 1-15, 1978. Há evidências de que os portugueses também firmassem tratados com povos indígenas inimigos; vide a análise de Pedro Puntoni, em seu trabalho sobre a Guerra dos Bárbaros, sobre os tratados de paz firmados entre portugueses e índios Janduí e Ariús, entre 1692 e 1697. PUNTONI, Pedro. A guerra dos Bárbaros: povos indígenas e a colonização do sertão nordeste do Brasil, 1650-1720. São Paulo: Hucitec: EdUSP: Fapesp, 2002. p. 159. (Transcrições dos tratados às p. 300-304.) 14 Cf. o estudo de David Weber para as áreas de fronteira da América espanhola, autor que, infelizmente, dá pouca atenção para a questão do trabalho índio. WEBER, David J. Bárbaros: Spaniards and Their Savages in the Age of Enlightenment. New Haven: London: Yale University Press, 2005. p. 151, 327. 15 Ibidem, p. 179 et seq. 16 Ibidem, p. 169; COONEY, op. cit., p. 137; SUSNIK, Los aborígenes del Paraguay: v. 2: Etnohistoria de los Guaranies: época colonial… op. cit., p. 261 et seq. 17 WEBER, op. cit., p. 186.

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consumidores. Preocupação que expressa José del Campillo y Cosio, autor ou editor do

conhecido Nuevo sistema de gobierno económico para la América: con los males y danos que

le causa el que hoy tiene, publicado em Madrid em 1789 e que, segundo David Brading, se

não era a bíblia dos reformadores, por ter circulado amplamente desde 1743, pelo menos

exprimia o que boa parte deles pensava.18 Campillo y Cosio rechaça o uso da dispendiosa

força militar para conquistar os índios e recomenda o comércio como meio mais ameno e

lucrativo:

Con los Indios Brabos se ha seguido un sistema igualmente errado; y si hubiéramos imitado la conducta de los Franceses en el Canadá, que no pretenden sujetar á los Naturales, sino tener su amistad y comercio, experimentaríamos los efectos correspondientes; pero nosotros estamos siempre con las armas en las manos, y el Rey gastando millones para entretener un odio irreconciliable con unas Naciones, que tratadas con maña y amistad, nos darían infinitas utilidades; […] los hombres siempre son hombres en todas partes, y vivan en palacios ó en selvas siempre tienen sus pasiones, y el que las sepa descubrir y manifestar, lisonjeándoles el gusto, se hará dueño de ellos, como no intente avasallarlos.19

Da perspectiva dos portugueses, a lei do Diretório dos Índios, conjunto de medidas

publicadas pela Coroa em 1758, pretendia regulamentar a liberdade concedida aos índios três

anos antes. Dentre outros objetivos, buscava garantir a integração das populações indígenas à

sociedade colonial, disponibilizar mão-de-obra para os colonos e consolidar, por meio do

povoamento, as fronteiras coloniais amazônicas,20 e quando estendida a toda a América

portuguesa, tornou-se a linha política mestra que conduzia os contatos com grupos de regiões

fronteiriças sob ameaça de invasões de colonizadores rivais.21

Para Ângela Domingues, a constituição de elites indígenas, na esteira da

implementação do diretório pombalino, manifestava uma nova atitude dos colonizadores para

submeter os índios às estruturas de poder. Embora os portugueses lamentassem que os grupos 18 BRADING, David. Mineros y comerciantes en el México Borbónico (1763-1810). México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1991. p. 47-51. 19 CAMPILLO Y COSIO, José del. Nuevo sistema de gobierno económico para la América: con los males y danos que le causa el que hoy tiene […] [1743]. Madrid: Imprenta de Benito Cano, 1789. p. 16, 210. 20 FARAGE, Nádia. As muralhas dos sertões: os povos indígenas no rio Branco e a colonização. Rio de Janeiro: Paz e Terra: ANPOCS, 1991; ALMEIDA, Rita Heloísa de. O diretório dos índios: um projeto de ‘civilização’ no Brasil do século XVIII. Brasília: Ed.UnB, 1997; DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram vassalos: colonização e relações de poder no norte do Brasil na segunda metade do século XVIII. Lisboa: CNCDP, 2000; COELHO, Mauro Cezar. Do sertão para o mar: um estudo sobre a experiência portuguesa na América a partir da colônia: o caso do Diretório dos Índios (1750-1798). 2005. Tese (Doutorado em História Social)–Programa de Pós-Graduação em História Social, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005. 21 FARAGE, op. cit.

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indígenas não tivessem quem os chefiasse militarmente, reconheciam que os indivíduos que

exerciam certo poder coercitivo sobre os outros, a quem chamavam principal, poderiam ser

interlocutores decisivos na negociação dos descimentos. “Na maior parte dos casos, afirma

Domingues, os luso-brasileiros distinguiam, através de presentes ou de atitudes, quem

consideravam capaz de poder influenciar as decisões da comunidade ou, então, aqueles que,

nas associações mentais dos colonizadores, mereciam ser considerados”. Essa distinção fazia-

se por meio de ofertas de espingardas e munição, de uniformes militares, entre outros tipos de

presentes de itens europeus.22

3. Análise interna dos textos dos tratados

Não constavam nas cláusulas dos tratados de fins do século XVIII que os índios

devessem se tornar tributários das Coroas.23 Alguns autores, partindo de uma análise interna

dos textos dos tratados, acabaram por tomar o discurso jurídico sobre o real pelo próprio real,

e defender que os índios mantinham um status de “nações soberanas”, no mesmo patamar que

os Estados dos colonizadores. Para Abelardo Levaggi, a base da teoria do direito dos tratados

com índios encontrava-se nos escritos de Francisco de Vitória, autor de De Indis (1539).24 A

perspectiva inaugurada por Vitória enfatizava que, em um tratado, os índios poderiam

transferir certa soberania para os espanhóis sem destruir sua autonomia interna. Os tratados

eram instrumentos de relações entre nações, e os índios eram considerados como tais,

comunidades políticas separadas com seus próprios direitos, embora dentro de um Estado

maior.25 David Weber, seguindo a mesma linha de interpretação, afirma que, assinados os

tratados, os índios se faziam reconhecer como “nações autônomas”, e geralmente

permaneciam em suas terras, não sofriam tentativas de redução por missionários e

continuavam “não subjugados”.26

22 DOMINGUES, op. cit., p. 169-171. 23 ROULET, Florencia. Con la pluma y la palabra: el lado oscuro de las negociaciones de paz entre españoles e indígenas. Revista de Indias, v. 64, n. 231, 2004. p. 328. 24 LEVAGGI, op. cit., p. 89. Há tradução para o português: VITÓRIA, Francisco de. Os índios e o direito da guerra. Ijuí, Rio Grande do Sul: Ed. Unijuí: Fondazione Cassamarca, 2006. 25 LEVAGGI, op. cit., p. 90. 26 WEBER, op. cit., p. 212. Vide também: ROULET, op. cit., p. 338.

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Posição contrária sustenta Lawrence Kinnaird,27 que permanece fiel à linha de análise

clássica de Charles Gibson,28 para quem os tratados eram instrumentos de poder. Kinnaird

constata que, nos próprios textos dos tratados, a Coroa espanhola não se colocava no mesmo

nível das “nações” indígenas com quem os estabelecia. O Tratado de Nogales, por exemplo,

foi assinado no dia 28 de outubro de 1793. Diante da guerra com a França e sob ameaça de

invasão da Louisiana pelos Estados Unidos, o governador espanhol Barão de Carondolet, sem

tropas suficientes, resolveu incorporar os índios em um plano defensivo. Ele enviou convites

aos Chickasaws, Choctaws, Alibamons, Talapoosas, Creeks e Cherokees, que enviaram seus

representantes para uma conferência em Nogales. Nota-se no tratado ali assinado29 que os

espanhóis não são incluídos entre as “nações” que “formam uma aliança ofensiva e

defensiva”, que a disposição dos índios em servir é realçada, e que quem os protege e domina,

e a quem servem, é uma “nação” de outro tipo: a Coroa espanhola.

Segundo Gibson, o tratado não poderia deixar de expressar, mesmo que sob a

condição de dissimulá-la, a relação desigual de forças entre as partes.30 O tratado assinado

entre caciques Mbayá e Guaná e o governador do Paraguai, Lazaro de Ribera, em 1798, traz

em seu artigo primeiro:

El cacique embajador Mbayá con los demás de su nación, y el régulo Guaná de que se ha hecho mención anteriormente, reconocen de hoy en adelante y para siempre á S.M.C. Rey de España y de las Indias, por único y legitimo soberano de ellos, obligándose religiosamente a guardarle fidelidad y obediencia como buenos y leales vasallos suyos.31

Uma cópia do tratado entre os portugueses e os caciques Mbayá, assinado em Vila

Bela, em 1791, foi entregue aos mesmos caciques, contendo o seguinte teor:

27 KINNAIRD, Lawrence. Spanish Treaties with Indian Tribes. The Western Historical Quarterly, v. 10, n. 1, 1979, p. 47. 28 GIBSON, op. cit., p. 14. 29 “The Chickasaw, Creek, Talapoosa, Alibamon, Cherokee, and Choctaw nations form an offensive and defensive alliance, so that all in general and each one in particular promise to consider each other as part of their own nations to aid one another mutually, and not to decide any essential question which might affect the security and preservation of the others without consulting them. […] The said nations, in view of the protection which they enjoy and which is given them by His Catholic Majesty, guarantee and obligate themselves to contribute on their part to the preservation of his dominion throughout all the provinces of Louisiana and both Floridas”. Apud KINNAIRD, op. cit., p. 47. 30 GIBSON, op. cit., p. 14. 31 ANA, CRB, n. 58. Articulo de la Paz que se ha celebrado com los caziques Mbaya y Guaná, 31 jan. 1798. f. 1.

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Faço saber aos que esta minha carta patente virem, que tendo a nação dos índios Guaycurús ou Cavaleiros solenemente contratado perpetua paz e amizade com os Portugueses, por um termo judicialmente feito, no qual os chefes João Queima de Albuquerque e Paulo Joaquim José Ferreira, em nome de sua nação, se sujeitaram e protestaram uma cega obediência às leis de S. M., para serem de hoje em diante reconhecidos como vassalos da mesma senhora: mando e ordeno a todos os magistrados, oficiais de justiça e guerra, comandantes e mais pessoas de todos os domínios de S. M., os reconheçam, tratem e auxiliem com todas as demonstrações de amizade.32

De acordo com Gibson, no pensamento dos europeus que elaboravam esses tratados,

escolhas feitas sob forte influência permaneciam sendo entendidas como escolhas, e tinham

um sentido bem distinto da pura e simples imposição. Entretanto, não se pode ignorar o

aspecto coercitivo aí implícito: os índios declaravam sua “cega obediência” como vassalos

sem saber ao certo o que isso significava, ao passo que espanhóis e portugueses entendiam

que se tratava de uma escolha livre.33

A idéia de que os índios deveriam manifestar sua vontade de se tornarem vassalos é

comum aos tratados de fins do século XVIII. A procura pela vassalagem, por parte dos índios,

tinha que aparecer como uma escolha livre e espontânea no texto. Assim, por exemplo, no

termo lavrado por conta da renovação do tratado de paz entre portugueses e Mbayá, assinado

em Vila Bela em 1796, consta:

[...] vieram espontânea e ansiosamente a esta capital de Vila Bela, os capitaens Aycurus José de Seabra, e Luiz Pinto, com suas respectivas mulheres D. Joaquina d’Albuquerque, e D. Carlota de Castro, dois dos principais chefes da dita numerosa Nação, com mais doze dos seus súditos [dez homens e duas mulheres] onde depois de terem sido recebidos, e hospedados com as maiores, e mais sinceras demonstrações de amizade, e de agasalho, e de serem brindados com alguns donativos de Sua Majestade, e outros do dito Ex.mo Snr. Governador e Capitão General e das principais pessoas desta Vila. E sendo-lhe perguntado de ordem do mesmo Snr. se era nascida de sua livre vontade, e voto próprio, a Obediência e Vassalagem que protestavam a Sua Majestade Fidelíssima, como também se queriam ficar sujeitos às

32 PRADO, op. cit., p. 40-41. 33 GIBSON, op. cit., p. 12-13. Os termos empregados nos textos dos tratados modificaram-se muito pouco, se se considerar, por exemplo, o artigo primeiro do “Assento das pazes com os janduís” (1692), tecido durante a Guerra dos Bárbaros nos sertões do nordeste da América portuguesa. No texto do tratado, “o dito rei Canindé” e outros principais “reconhecem ao senhor rei de Portugal, dom Pedro, Nosso Senhor, por seu rei natural e senhor de todo o Brasil e dos territórios que as ditas 22 aldeias ocupavam; e lhe prometem agir como submissos vassalos com obediência para sempre”. Contestando a linha de análise de John Hemming, que enfatiza o fato do cacique Canindé ter sido considerado “rei”, suposto reconhecimento de autonomia, Pedro Puntoni afirma que “este ‘tratado de paz’ deve ser entendido mais como uma capitulação de obediência, do que como um contrato. A fórmula protocolar não deve esconder a verdadeira natureza do documento”. PUNTONI, op. cit., p. 149. (Transcrição do documento: p. 300.)

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leis da mesma Augusta Soberana Senhora, ficando amigos dos seus amigos, e inimigos dos seus inimigos, para desta forma gozarem livre, e seguramente de todos os bens, comodidades, e privilégios, que pelas leis de Sua Majestade Fidelíssima são concedidos á todos os índios. A tudo responderão ambos a referidos capitães uniformemente, que sim.34

Os textos dos tratados podem ser entendidos como um exemplo típico de

documento/monumento, como discurso produzido para impor uma imagem do passado.35

Gibson já notara que a construção discursiva, enfatizando a vontade dos próprios índios em

converterem-se em vassalos, exprime o caráter instrumental desses textos, que serviam com

vantagem nas disputas fronteiriças entre colonizadores rivais, como atestados jurídicos de que

as populações do território em litígio estariam aliadas, por sua própria disposição, a tal

colonizador, e não a nenhum outro.36 Segundo Kinnaird, os tratados da década de 1780,

estabelecidos entre espanhóis e povos indígenas das regiões da Louisiana, Mobile e Flórida

ocidental, procuravam construir a imagem da Coroa espanhola como protetora dos índios e

fortalecer juridicamente sua reivindicação por esse território em disputa com os Estados

Unidos.37

Realmente, o tratado como documento/monumento omite concessões, que só podem

ser percebidas por outras fontes. Segundo Florencia Roulet, é provável que promessas de

reciprocidade tenham sido feitas por espanhóis oralmente, de modo legítimo do ponto de vista

indígena, sem que pudessem aparecer por escrito e colocassem em dúvida, aos olhos das

autoridades imperiais, os procedimentos empregados no nível local.38 O fornecimento regular

de itens europeus deve ter sido uma dessas promessas, a julgar pelas exigências de

“gratificações” por parte dos indígenas. Em 1788, a vila de Concepción contava com cerca de

250 habitantes, os quais viviam em constante estado de alerta, em razão dos ataques

freqüentes dos Mbayá. Seu comandante, Pedro Joseph Molas, em carta ao governador do

34 AHU-ACL-CU-010, cx. 31, doc. 1722. João de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres, governador de Mato Grosso, ao secretário de Estado da Marinha e Ultramar, Luís Pinto de Sousa Coutinho, 10 fev. 1796. f. 8b. 35 ROULET, op. cit., p. 318. “[…] los documentos relativos a la diplomacia con los indígenas no son neutros ni objetivos, sino que sirven los intereses de quienes los redactan, destacando sus cualidades de negociadores y enfatizando los servicios que prestan a la corona” (p. 341). 36 GIBSON, op. cit, p. 14. Roulet, que trabalha com uma noção próxima à de documento/monumento, negligencia, porém, o aspecto instrumental dos tratados nas relações internacionais. 37 KINNAIRD, op. cit., p. 45. “By the treaties of Mobile and Pensacola, Spain made herself protector of the southern Indian tribes and thus strengthened her claim to territory left in dispute with the United States after the Revolutionary War” (p. 46). 38 ROULET, op. cit., p. 316, 319-21.

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Paraguai, refere que os Mbayá, por se considerarem senhores daqueles territórios e “mais

nobres que as demais nações”, impunham aos moradores criollos uma tributação periódica:

Esta dicha Nación, señoreándose por estos países, mantienen su orgullo, por reconocer débiles nuestras fuerzas de pocos pobladores, y el numero de ellos crecidísimo, con tal audacia que en siendo modo se hace que se les tributen, con dádivas de los frutos del chacareo de estas gentes, y cuando se les niega, muestran enojo y prorrumpen en amenazas, y […] a la retirada hacen sus tales cuales robos tanto en chacras, como en las animaladas de estos vecinos.39

Firmada em 1759, a aliança entre os Mbayá e o governador do Paraguai, embora tenha

permitido uma expansão dos criollos ao norte, implicava, segundo a perspectiva dos Mbayá,

em inevitável reciprocidade por parte dos espanhóis. Ou seja, o preço da aliança, sempre

manipulada pelos índios, eram as chamadas “gratificações”. Os chefes Mbayá exigiam

gratificações o tempo todo, promovendo hostilidades quando não as recebiam. Escrevendo de

Concepción em 1788, Pedro Joseph Molas solicita ao governador que forneça os bens para as

gratificações, pois elas saíam às próprias custas dos moradores. Refere ainda que os caciques

vêm a todo o momento “diciendo comandante danos baca, tabaco, sal, y cuanto se les antoja,

[...] piden cuentas, espejos, cascabeles, cuchillos, y quanta agujería hay para las mujeres, e

hijos, que en esto son muy importunos, y que me es preciso revestirme de paciencia”.40 É

possível que, da perspectiva dos índios, as gratificações que recebessem fossem uma forma de

tributar o branco.

4. Entronização de lideranças colaboracionistas

A política indicada por Campillo y Cosio, a de transformar os índios em

consumidores, tornando-os dependentes e, por conseguinte, susceptíveis à subordinação,

converteu-se numa prática amplamente disseminada na América em fins da época colonial.41

Os colonizadores rivais competiam pelo apoio dos índios, utilizando-se de presentes e,

quando possível, trocas comerciais. Em carta de 19 de julho de 1796, o recém-empossado

governador do Paraguai, Lázaro de Ribera, expôs ao vice-rei de Buenos Aires, Pedro Melo de

39 ANA, Carpeta Suelta [CS], Carpeta 67. Pedro Joseph Molas, comandante de Concepción, ao governador do Paraguai, Joaquín Alós, 8 jul. 1788. f. 4. 40 Ibidem, f. 4-5. 41 WEBER, op. cit, p. 192.

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Portugal, que faltavam recursos na província para manter os presentes aos caciques Mbayá,

situação que impedia não apenas o bom curso das negociações para o aldeamento desses

índios, como também os expunha a serem cooptados por parte dos portugueses, que também

os presenteavam.

[…] quinientos y seiscientos pesos empleados en cuchillos, herramientas y cuentas de vidrio es cantidad que no asegura por mucho tiempo la paz de una Nación infiel, docilitándola y poniéndola en estado de recibir nuestras impresiones. Comparemos nuestra política con la de los portugueses fronterizos, y hallaremos que por este medio se han ganado el afecto y confianza de la nación numerosa Mbayá-Guazú, y de otras pobladas al N. de nuestros establecimientos. Esto les proporciona dilatar sus minas con perjuicio nuestro, hacerse dueños de unos terrenos que los acerca al Perú, con infracción del Tratado Preliminar de Limites, fundando colonias no menos repugnantes à nuestros derechos, que las de Cuyabá y Matogroso, cuya posesión la miran en el día como indisputable.42

Em carta de 10 de fevereiro de 1796, o governador de Mato Grosso, João de

Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres, teve de explicar em detalhe ao secretário de Estado,

Luís Pinto de Sousa Coutinho, as despesas que fizera aos cofres da Real Fazenda com os

presentes que ofertara aos caciques indígenas, e as vantagens que tal estratégia trouxera. O

governador encerra sua missiva pedindo mais recursos para essa política, que na sua visão

estava a permitir a expansão do sistema colonial na fronteira: “se pudesse dobrar os donativos

indispensáveis para convidar outros mais dos chefes daquela [Mbayá] e de outras nações, teria

Sua Majestade duplicados vassalos em todas elas, que para o futuro, serão de grande utilidade

para o Estado”.43 A mesma preocupação expressou o governador seguinte, Caetano Pinto de

Miranda Montenegro. Em carta de 27 de novembro de 1797 ao comandante do forte de

Coimbra, mostrou-se solícito quanto ao custeio dos presentes para os índios: “se precisar de

alguns gêneros mais para reconsolidar a amizade dos guaicurus e das outras nações, e para

evitar também que eles troquem a nossa aliança pela dos espanhóis, V. M. me remeterá uma

relação do que julgar indispensável”.44

42 ANA, SH, v. 165, n. 1. Lázaro de Ribera, governador do Paraguai, ao vice-rei de Buenos Aires, Pedro Melo de Portugal, 19 jul. 1796. f. 61-62. 43 CT-AHU-ACL-CU-010, cx. 31, doc. 1722. João de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres, governador de Mato Grosso, ao secretário de Estado da Marinha e Ultramar, Luís Pinto de Sousa Coutinho, 10 fev. 1796. f. 3b. 44 Caetano Pinto de Miranda Montenegro, governador do Mato Grosso, ao comandante de Coimbra, Ricardo Franco de Almeida Serra, 27 nov. 1797. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. Rios Guaporé e Paraguai: primeiras fronteiras definitivas do Brasil. Rio de Janeiro: Xerox, 1985. p. 223.

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Longe de serem apenas decisões de poder local, trata-se de uma política indigenista

que, em suas estratégias de presentear os caciques, firmar tratados e estabelecer o comércio,

contava com o conhecimento, estímulo e cobrança por resultados por parte das instâncias

mais altas da administração colonial. Não surpreende, assim, que as Coroas cobrassem os

governadores não apenas os resultados políticos das alianças, mas a indenização dos gastos

das Reais Fazendas com semelhantes distribuições de presentes. Os governadores se

empenhavam em encontrar mecanismos de indenização, com se vê pela carta de Caetano

Pinto de Miranda Montenegro ao secretário de Estado, Rodrigues de Souza Coutinho, de 28

de abril de 1800. Primeiramente, procurou o governador justificar semelhantes despesas,

afirmando que fora seu antecessor quem colocara os índios “no costume de fardar

completamente os capitães, como se fossem oficiais, e seus soldados, com fardamento

semelhante ao que trazem os pedestres nesta capitania”, e Miranda Montenegro acrescenta

que não pôde deixar de seguir o mesmo costume, “apesar de ver que era despendiozo,

receando que qualquer novidade fizesse húa dezagradável e perigoza impressão nociva”.45 Em

seguida, munido de dados levantados pelo comandante de Coimbra sobre os preços vigentes

nas trocas entre índios e colonos e militares naquela fronteira, indicou os meios de indenizar

os cofres de Sua Majestade: “estabelecer-se por conta da Real Fazenda com estes índios um

comercio de permutação com os seus cavalos, podendo-se-lhes comprar com anualmente os

quais conduzidos a esta vila, e vendidos aqui de dezesseis a vinte oitavas, virão a produzir de

mil e seiscentas a duas mil oitavas”. Dada a necessidade de cavalos na capitania, adquiridos

estes “em direitura do Reino, o farão mais lucrativo”.46

A assinatura do tratado era um momento solene, envolto ainda nos rituais medievais

de entrada na vassalagem. Tanto que os mecanismos simbólicos eram praticamente os

mesmos, como constata Roulet: a homenagem, vontade manifesta dos índios em converterem-

se em vassalos; a fidelidade, simbolizada no abraço; e a investidura, entrega do objeto

simbólico do senhor ao vassalo, no caso da América do Sul, o bastão de mando.47 Em 1791,

depois de um demorado processo de negociação e do estabelecimento de contínuas trocas

entre os Mbayá e os moradores de Nova Coimbra, um tratado de paz foi assinado em Vila

Bela. Os portugueses não pouparam esforços no sentido de corresponder às novas exigências

45 AHU-ACL-CU-010, cx. 38, doc. 1898. Caetano Pinto de Miranda Montenegro, governador do Mato Grosso, ao secretário de Estado da Marinha e Ultramar, Rodrigo de Sousa Coutinho, Cuiabá, 28 abr. 1800. f. 3b. 46 Ibidem, f. 3b-4a. 47 ROULET, op. cit., p. 334.

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culturais dos caciques Mbayá, a exemplo do seu indisfarçável gosto pela figura de “capitão” e

do “bastão de mando”, com o qual certos caciques eram eventualmente presenteados pelos

espanhóis. O governador “mandou vestir a todos, e aos capitães fardar com farda, vestia,

calção e chapéu fino agaloado de prata; e também lhes mandou dar fivelas e bastão, e muitas

outras cousas de valor”.48 Os bastões eram mais comuns na América espanhola, e são

inúmeras as referências de entregas de bastões pelos governadores do Paraguai,49 mas é

surpreendente encontrar a mesma prática entre os portugueses. Segundo David Weber, os

bastões eram feitos com detalhes em ouro ou prata e significavam que os líderes que os

possuíssem detinham relação especial com a Coroa.50

Os gastos dos espanhóis com os regalos aos caciques indígenas eram minuciosamente

anotados nas despesas do Ramo de Guerra, fundo formado a partir de taxações eventuais para

recolher recursos destinados às provisões das milícias nos presídios das fronteiras.51 Em 31 de

janeiro de 1798, por exemplo, quando o governador Lazaro de Ribera recebeu em Assunção a

comitiva de dez caciques Guaná e do embaixador Mbayá (nove caciques Mbayá recusaram-se

a participar, convencidos pelos portugueses de que se tratava de uma armadilha),52 a conta da

confecção das roupas foi enviada à administração do Ramo de Guerra: camisas à moda

francesa, com peitilhos de linho e lenços de seda para o pescoço; casacos com divisas

militares presas ao ombro; gorros ao estilo prioral; três maços de contas de vidro para decorar

as vestimentas; ponchos de Córdoba; um chapéu branco e um bastão, em que se gastou para

fazer a devida “compostura y limpieza”; além disso, receberam: três espelhos, oito facas, seis

varas de lã grossa e oito freios de cavalo, que fecharam a conta total de duzentos e dezenove

pesos.53

Nota-se que os caciques receberam praticamente os mesmos trajes militares e

presentes, mas apenas um deles ganhou o bastão, símbolo de elevação a um status

privilegiado de relação com a administração espanhola. Deve-se observar, também, o adorno

das vestes com contas de vidro, conhecidas também como mostacillas: necessidade de

48 PRADO, op. cit., p. 40-41. 49 ANA, Sección Nueva Encuadernación [SNE], v. 3391, 14 set. 1796. 50 WEBER, op. cit., p. 189. 51 COONEY, op. cit., p. 143. 52 ANA, SH, v. 173, n. 1. Lázaro de Ribera, governador do Paraguai, ao vice-rei de Buenos Aires, Olaquer Feliú, [s.d.] fev. 1798. f. 55b. 53 ANA, SNE, v. 3392. Importe de los géneros invertidos en los vestuarios mandados hacer por el S.or D.n Lazaro de Ribera, Gov.or Yntend.te de esta Prov.a para el Embajador Mbayá, Cacique Guaná e Yndios de su sequito. Juan de Machain, Asunción, 31 jan. 1798.

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consumo que, de acordo com Susnik, reforçava a hierarquização entre os índios, ao ponto em

que o traje do guerreiro desprovido desse adorno denunciasse imediatamente a “pobreza” de

seu portador.54

Em 1796, o governador de Mato Grosso recebeu caciques Mbayá para renovar o

tratado de paz. Sobre o evento, refere o governador:

[...] em 7 de fevereiro deste presente ano, dia em que se principiou a celebrar nesta vila o feliz nascimento do Senhor Príncipe Dom Antonio, com missa solene e se deu na matriz desta dita vila, e banquete a que convidei a nobreza, e oficialidade dela, e dos seus arraiais, convidando a ele os ditos dois Chefes, e suas mulheres, que fiz sentar próximos a mim.55

Depreende-se do documento que os portugueses, enfrentando a rivalidade dos presentes

espanhóis, recorreram a convidar os caciques para um banquete oficial, aonde certamente

foram vestidos com trajes militares adequados à ocasião, que o próprio governador mandara

confeccionar com um mês de antecedência.56

A entronização de caciques colaboracionistas era uma estratégia fundamental de

conquista dos povos indígenas. Como constatam Brian Ferguson e Neil Whitehead,

procurava-se interferir nos chamados chiefdoms, as chefias indígenas, que nem sempre

dispunham de poder coercitivo sobre o restante da gente comum, o que gerava dificuldades

para os impérios europeus em obter resignada subordinação. Identificar e elevar lideranças

favoráveis, mediante o oferecimento de títulos, emblemas e suporte político e militar, tornou-

se uma estratégia decisiva, e paulatinamente foi provocando mudanças estruturais nas

sociedades indígenas, tornando-as mais centralizadas politicamente e passíveis de serem

controladas, processo a que os referidos autores chamam de “tribalização”.57

54 SUSNIK, El indio colonial del Paraguay: t. 3-1: el chaqueño: Guaycurúes y Chanes-Arawak… op. cit., p. 69. 55 AHU-ACL-CU-010, cx. 31, doc. 1722. João de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres, governador de Mato Grosso, ao secretário de Estado da Marinha e Ultramar, Luís Pinto de Sousa Coutinho, 10 fev. 1796. f. 2a. 56 AHU-ACL-CU-010, cx. 31, doc. 1722. Relação dos gêneros da fazenda que se deverão dar dos Armazens Reais para o fardamento, e mais vestuário com que o M.mo e Ex.mo Senhor General manda prezentiar, os dois Caciques, e suas molheres, e mais duas Indias, e dez Indios Aycurus que presentem.te vierao, na sua prezença, render Vassalagem a Sua Mag.e. Vila Bela, 2 jan. 1796. f. 6a-b. 57 FERGUSON, R. Brian; WHITEHEAD, Neil L. The violent edge of empire. In: ____ (eds.). War in the Tribal Zone: Expanding States and Indigenous Warfare. Santa Fe, New Mexico: School of American Research Press, 1992. p. 13-14; WHITEHEAD, Neil L. Tribes Make States and States Make Tribes: Warfare and Creation of Colonial Tribes and States in Northeastern South America. In: FERGUSON; WHITEHEAD (eds.), War in the Tribal Zone… op. cit., p. 132.

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A “Relação dos gêneros que devem sair dos Reais Armazéns para o gentio

Guaycurus” (1791), enviada pelo governador de Mato Grosso ao secretário de Estado

Martinho de Mello e Castro, evidencia essa estratégia de elevação de lideranças. Tanto que os

caciques receberam trajes militares de altos oficiais, com chapéus e distintivos agaloados em

prata, camisas de pano de Bretanha e outros presentes, ao passo que os índios comuns

ganharam pouco mais que camisas de algodão.58

Os colonizadores procuravam elevar pessoas que pudessem ser confiáveis e que, uma

vez munidas dos símbolos de prestígio com que lhes presenteavam, dispusessem de poder de

coerção sobre o restante da população indígena. Assim, não é surpreendente que a intérprete

Vitória, que estava na comitiva que assinou o tratado de paz com os portugueses em 1791,

tenha recebido coisas de alto valor, até mais do que as próprias esposas dos caciques. Sobre a

trajetória de Vitória, o governador refere:

[...] vindo os dois principais hoje chamados João Queima d’Albuquerque, e Paulo Joaquim José Ferreira com dezesseis dos seus súditos, e entre eles alguns cativos das suas confinantes nações Guanás, e Xamacocos e com uma preta chamada Vitoria, sua cativa, e intérprete, a qual tendo doze anos de idade, e haverá vinte que vindo embarcada pelo Paraguai abaixo com uns pretos e pretas que fugiram da vizinhança do Cuiabá, depois de se rebelarem contra seu Senhor, e o assassinarem, caíram em poder dos ditos gentios, que a todos matarão, deixando só com vida a referida preta Vitória.59

Dentre os itens que Vitória recebeu, os que foram especialmente entregues apenas a

ela estavam: duas camisas de pano de Bretanha, ao passo que cada esposa dos caciques

ganhou uma; duas saias de pano de Bretanha, com cadarços de linho; chapéu de baeta; dois

laços de caçadora; uma caixa com sua pintura em verde e suas chaves; pratos de estanho

rasos, côvados de guardanapos; e vinho, que se repartiu entre os capitães, demais índios e a

intérprete Vitória.60

O que os índios pensavam a respeito desses tratados? Não se pode responder com

segurança a esta pergunta, pois não há evidências escritas pelos próprios índios. Contudo, a

documentação administrativa pode trazer algumas pistas. Primeiramente, como já referido,

parece bastante clara, do ponto de vista indígena, a noção de que eram eles que tributavam os

58 AHU-ACL-CU-010, cx. 28, doc. 1617. João de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres, governador de Mato Grosso, ao secretário de Estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro, 9 set. 1791. f. 3a-4a. 59 Ibidem, f. 1b. 60 Ibidem, f. 3b-4a.

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brancos, por permitir que usassem seu território. As incursões para tomar gado e outros itens

seriam antes movimentações para tomar o que eles entendiam que já lhes pertencia, e que fora

negado de boa vontade pelos colonos.61

Em segundo lugar, como se tratavam de dois impérios colonizadores, os indígenas

podiam facilmente manipular suas alianças, assinando tratados ora com um, ora com outro

colonizador, e mesmo com os dois simultaneamente. Essas práticas certamente conduziram os

colonizadores a pensar que os índios seriam inconstantes, como se vê pela documentação.

Contudo, essa visão em parte se deve à incompreensão dos europeus sobre os complexos

sistemas políticos dos indígenas, ainda não inteiramente tribalizados. Pela correspondência

dos militares do forte espanhol de Borbón, sabe-se que o subgrupo Mbayá conhecido como

Cadiguegodi estabelecera-se naqueles arredores, mantendo ali relações amigáveis, embora

promovessem incursões contra a povoação de Concepción. Em 1797, foram procurados por

caciques Mbayá vindos de Coimbra, “muy bien vestidos á lo militar”, que tentaram convencê-

los dos benefícios da aliança com os portugueses. A proposta foi rechaçada e os Cadiguegodi

relataram o caso aos militares de Borbón.62

Contudo, em 14 de fevereiro de 1800, o comandante de Coimbra, Almeida Serra,

relatou ao governador de Mato Grosso que caciques do grupo chamado Cadiueo vieram três

vezes no ano anterior, “fizeram despesa em mantimento, concerto de ferramentas, e outras

dádivas”, e na referida data “chegou a este Presídio um capitão deles, e certifica como aqui já

se sabia, que oito capitães dos ditos Cadiueos, com todas as suas mulheres, filhos, gado e

cavalaria, todos vem de mudança”.63 A migração acabou se concretizando nos anos seguintes,

e os grupos daqueles caciques compunham-se de mais de seiscentas pessoas.64

Seja como for, permanece um problema complexo quanto à fidelidade dos indígenas

aos tratados. A elevação de “elites indígenas” pode ter favorecido a adoção de políticas que,

embora sem uma coerência interna do ponto de vista étnico, obedeciam aos interesses

61 “Whatever the appearance, however, the reality was that Spaniards, who collected tribute from incorporated Indians, paid tribute to independent Indians. […] [Spaniards] preferred to identify those taxes as gifts and entertainment. ‘That which in the name of our majesty are called favors, they receive as tribute’, Chilean Governor Guill y Gonzaga bluntly told the king in 1766”. WEBER, op. cit., p. 192. 62 ANA, SH, v. 362, n. 1. Pedro Antonio de Herrera, comandante de Borbón, ao comandante de Concepción, José Antonio de Zavala y Delgadillo, Borbón, 13 mar. 1797. f. 96a-98a. 63 AHU-ACL-CU-010, cx. 38, doc. 1898. Ricardo Franco de Almeida Serra, comandante de Coimbra, ao governador de Mato Grosso, Caetano Pinto de Miranda Montenegro, Coimbra, 14 fev. 1800. f. 2a. 64 SERRA, Ricardo Franco de Almeida, ao governador Miranda Montenegro, 3 fev. 1803: “Parecer sobre o aldeamento dos índios Uaicurús e Guanás, com a descrição dos seus usos, religião, estabilidade e costumes [...]” [1803]. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 7, 1845. p. 205, 211.

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particulares de cada cacicado em competição. De outro modo não se entenderia como alguns

caciques Guaná e Mbayá assentaram e renovaram a paz com os portugueses em 1793 e 1796,

ao passo que outros, também tidos em alta conta entre os mesmos grupos, assinaram o tratado

com os espanhóis de 1798.

Tanto para espanhóis como para portugueses, os Mbayá eram um apoio militar

imprescindível nos conflitos da fronteira, que deveria ser cultivado por meio de presentes aos

caciques. Durante a Guerra das Laranjas entre Espanha e Portugal, que também teve seu

palco, entre 1801 e 1802, no vale do rio Paraguai, certos grupos de índios Mbayá, ao

observarem alguma movimentação militar no forte Borbón, vieram a Coimbra falar ao

comandante Almeida Serra, contando-lhe que os espanhóis preparavam um ataque, a ser

presidido pelo próprio governador Lázaro de Ribera: “com essas noticias empregou-se o dito

tenente-coronel em contentar aqueles índios por todas as formas, comprando-lhes igualmente

seus cavalos por baetas, facões, machados e outros gêneros que eles estimam muito, afim de

os não venderem aos espanhóis”.65 A tentativa de tomada do forte de Coimbra, dirigida pelo

governador Ribera em pessoa, mostrou-se um desastre para os espanhóis, que recuaram, e em

janeiro de 1802, os portugueses resolveram revidar. A partir do forte de Miranda, os

portugueses conseguiram apoio dos Mbayá para marcharem sobre o forte espanhol de São

José do rio Apa. Registrou Candido Xavier de Almeida e Souza que a tropa consistia em 55

militares e colonos somados a quase 300 índios, os quais “acometeram tumultuariamente

debaixo das sombras da noite com grande vozeria, da qual atemorizados os Espanhóis,

desampararam a estacada”.66 Outro depoimento afirma, contudo, que a atuação dos Mbayá

teria sido um tanto quanto relutante, e que eles teriam participado mais efetivamente dos

saques.67

Em terceiro lugar, ao que parece, os indígenas acreditavam que eram eles quem

estavam pacificando o branco. A aliança estabelecida com os portugueses, embora nem

sempre muito favorável aos interesses dos Mbayá, foi vista por estes como um trunfo da sua

65 SIQUEIRA, Joaquim da Costa. Compêndio histórico chronológico das notícias de Cuyabá, repartição da capitania de Mato-Grosso, desde o princípio do ano de 1778 até o fim do anno de 1817 [...], Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 13, p. 5-125, 1850. p. 43. Para uma análise bem documentada do conflito, vide: FRAKES, Mark A. Governor Ribera and the War of Oranges on Paraguay’s Frontiers. The Americas, v. 45, n. 4, p. 489-508, 1989. 66 ALMEIDA E SOUZA, Candido Xavier de. Descrição diária dos progressos da expedição destinada à capitania de São Paulo para fronteiras do Paraguai, em 9 de outubro de 1800 [1802]. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 202, 1949. p. 78-79. 67 SIQUEIRA, op. cit., p. 50.

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habilidade política. Os Mbayá que, no início do século XIX, viviam em torno do forte de

Coimbra, vinham sempre falar ao comandante Almeida Serra, “não se julgando inferiores aos

mesmos espanhóis e portugueses, gabando-se diariamente de que, apesar de sermos muito

bravos, nos souberam amansar”.68

5. A situação econômica: uma aproximação

O que pode ter levado os índios a procurar esses tratados? Não se pode desconsiderar

que, nas últimas décadas do século XVIII, índios de certas regiões fronteiriças da América

passavam por uma crise ecológica, determinada em parte pela adoção de itens europeus. De

acordo com James Saeger, a aquisição de cavalos, mulas e bois pelos índios Mbayá, desde o

início da época colonial, não os tornaram uma população de pastores, pois preferiam trocar

por ferramentas ou mesmo consumir o gado sem preocupações com a criação sistemática, que

eles pouco estimavam. Quando as trocas aumentaram, em fins da época colonial, os índios

não dispunham mais de tantos cavalos para efetuar incursões e fugas.69 Além do mais, os

espanhóis requisitavam peles e pagavam em valiosas ferramentas, mas a procura por atender

essa demanda depauperou os campos de caça. O declínio dos nichos ecológicos de palmeiras

(namogolidi, em língua Guaykuru), devastados com os machados adquiridos, não foi

acompanhado de nenhuma providência reparadora. Já na segunda metade do século XVIII, as

sociedades Guaykuru foram precipitadas numa crise ecológica com efeitos dramáticos sobre

sua vida social.70

Como instrumento de poder, os tratados impulsionavam a subordinação dos índios ao

trabalho para os estancieiros em expansão nas fronteiras. Essa função decisiva tem sido

negligenciada por alguns historiadores. Embora Roulet reconheça que os tratados devam ser

estudados não apenas internamente, mas também cotejados com outras fontes, a autora se

atém somente às concessões que os espanhóis tiveram que fazer, e não investiga os resultados

em termos de dominação que obtiveram.71

68 SERRA, Ricardo Franco de Almeida, ao governador Miranda Montenegro, 3 fev. 1803: “Parecer sobre o aldeamento dos índios Uaicurús e Guanás [...]” [1803]. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 7, 1845. p. 206. 69 SAEGER, James Schofield. The Chaco mission frontier: the Guaycuruan experience. Tucson: University of Arizona Press, 2000. p. 62. 70 Ibidem, p. 54, 59-60. 71 ROULET, op. cit., 319-21.

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Os espanhóis concertaram um tratado com os Mbayá e os Guaná em 1798. Dentre os

pontos mais importantes do tratado, destacam-se: “se les señalará el terreno que ocupó D. José

del Casal, u otro equivalente al otro lado del Río Aquidabán, el que cultivarán para

subsistencia, concurriendo el Gobernador con algún ganado, prometiendo vivir quieta y

pacíficamente sin dar lugar ni motivo de queja a los Españoles”; “estas naciones con sus

caciques y régulos se obligan fiel y religiosamente no solo a defender con sus fuerzas a los

españoles, niño también a dar aviso y noticias anticipadas de la nación ó enemigos que

quieran ofender y hostilizar los españoles, ó introducirse en sus terrenos”.72 Dois aspectos

devem ser sublinhados: primeiro, a tentativa de assentar os índios numa região em plena

expansão dos ervais, de onde poderiam ser controlados e repartidos entre os estancieiros

criollos; segundo, a procura por se criar uma milícia indígena, elemento importante na

contenda conflituosa com os portugueses pela posse da fronteira.73

Para além da ficção jurídica a que ficam presas interpretações como as de David

Weber, para quem os índios permaneciam “nações soberanas” após firmar tratados,74 uma vez

que estes sejam cotejados com documentos que apreendam os processos sociais em curso, a

instituição dos tratados se revela em essência como dispositivo de dominação. No contexto de

expansão econômica e competição entre rivais coloniais, referendava aos olhos do direito

internacional a subordinação dos índios a sistemas de trabalho e comércio e era um

instrumento importante para reivindicar o uti possidetis da região em contenda.75 Por volta de

1796, o estancieiro Miguel Ibañez, que gozava de alta patente militar em Concepción, chegou

a contar, em suas propriedades, com o trabalho do vultoso contingente de cerca de 800

Guaná-Chavaraná.76 Um cacique Mbayá, Santiago Niquenigue, procurou o comandante

Ibañez, em maio de 1796, para reclamar seus direitos sobre os Guaná-Chavaraná. (Desde a

época pré-colombiana, os Guaná mantinham uma relação de simbiose com os Mbayá, para

72 ANA, CRB, n. 58. Artículos de paz que se ha celebrado con los caziques Mbayá y Guaná, 31 jan. 1798. f. 1b, 4a. 73 Sobre a questão do ethnic soldiering, vide: FERGUSON, R. B.; WHITEHEAD, N. The violent edge of empire... op. cit., p. 21-23; WHITEHEAD, N. Tribes make States and States make tribes... op. cit., p. 146-47. 74 “[...] these powerful Indian societies had forced Spain to limit its own dominion by recognizing them as ‘interior nations’ – societies that governed themselves within a larger nation’s jurisdiction. […] Even when leaders of these Indian groups swore to be vassals, or subjects, of the crown, they were not subject to Spanish political authority. Possessed of real power, these putative Indian vassals continued to live beyond the control of the Spanish state. If they were subjects, they remained unsubjugated”. WEBER, op. cit., p. 213-14. 75 GIBSON, op. cit., p. 14; KINNAIRD, op. cit., p. 45, 47. 76 ANA, SH, v. 163, n. 22. Mariano Ferreyra: su declaración sobre actuación de los indios Mbayás, Asunción, 24 nov. 1796. f. 7a et seq.

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quem realizavam vários tipos de trabalhos em troca de proteção militar.)77 Segundo o

depoimento de certo José Velásquez, no dia seguinte ao apelo do cacique Mbayá, soldados

sob comando de Ibañez foram à noite ao assentamento dos Mbayá e começaram a atirar à

queima-roupa, o que resultou na morte de 75 índios. A chacina chocou até mesmo o

governador Lázaro de Ribera, que submeteu em seguida os militares da vila a um inquérito.78

Para o depoente Velásquez, a ofensiva liderada por Ibañez objetivava afirmar militarmente

que os criollos não estavam dispostos a abrir mão dos trabalhadores Guaná.79 É dentro desse

contexto de subordinação dos índios a sistemas de trabalho que se pode entender o tratado

assinado entre os caciques e o governador Ribera em 1798.

A elevação de lideranças indígenas colaboracionistas, por meio dos presentes e

tratados, possibilitou aos colonizadores a construção de fortificações e o avanço dos

estancieiros sobre os territórios indígenas de fronteira. Mais ainda: propiciou condições para a

subordinação do trabalho índio aos interesses dos colonizadores.

Do ponto de vista dos portugueses, o avanço da colonização é descrito pelo

governador de Mato Grosso, João de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres, ao secretário de

Estado, Martinho de Mello, em carta de 10 de fevereiro de 1796, como conseqüência do

tratado de paz de 1791:

[...] as margens do rio Cuiabá desta vila para baixo, até onde o terreno permita que possa ser cultivada, se acha povoado de lavradores, que antes desta paz se não animaram a fazê-lo, com muito receio dos referidos gentios, de que agora vivem sossegados. [...] Outra conseqüência é os espanhóis de Borbón, forte que estabeleceram na margem ocidental do Paraguai pela latitude de 21º e pouco mais de vinte léguas em linha reta, a sul de Nova Coimbra, terem um grande ciúme da nossa amizade com os Guaycurus, solicitando assiduamente o chamá-los a si, sugerindo-lhes mil idéias contra os portugueses; mas a nossa constante, e sincera conduta a respeito destes índios, sustentada pelos repetidos donativos e mantimentos, que recebem no Presídio de Coimbra tem frustrado todas as suas solicitações.80

77 SUSNIK, Branislava. El indio colonial del Paraguay: t. 3-1: el chaqueño: Guaycurúes y Chanes-Arawak… op. cit., p. 34-35. 78 ANA, SH, v. 163, n. 22. Mariano Ferreyra: su declaración sobre actuación de los indios Mbayás, Asunción, 24 nov. 1796. f. 7a, 8a et seq. O governador Ribera expõe longamente sua reprovação ao “odioso acontecimento” em carta ao vice-rei Olaquer Feliú, na qual reafirma a necessidade da política indigenista por meio da negociação. Cf. ANA, SH, v. 173, n. 1. Ribera ao vice-rei Olaquer Feliú, 15 jan. 1798. f. 5-23. 79 ANA, SH, v. 163, n. 22. Mariano Ferreyra: su declaración sobre actuación de los indios Mbayás, Asunción, 24 nov. 1796. f. 7a. 80 CT-AHU-ACL-CU-010, cx. 31, doc. 1722. João de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres, governador de Mato Grosso, ao secretário de Estado da Marinha e Ultramar, Luís Pinto de Sousa Coutinho, 10 fev. 1796. f. 2b-3b.

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Este documento revela-se bastante rico, mencionando: o avanço dos lavradores

portugueses sobre o vale do rio Paraguai, com o enfraquecimento dos povos indígenas que

controlavam a região; as ofertas de presentes e a pressão psicológica dos espanhóis do forte

Borbón para atrair o apoio dos índios Mbayá contra os portugueses (que faziam o mesmo

contra os espanhóis, a exemplo do caso já citado em que nove caciques se recusaram a ir a

Assunção em 1798);81 e revela que os portugueses do forte de Coimbra presenteavam

sistematicamente os índios e, com isso, mantinham-nos estáveis na aliança concertada.

Em 1793, trezentos índios Guaná apareceram no presídio de Nova Coimbra a pedir

proteção dos portugueses contra seus aliados Mbayá, a quem tinham que prestar serviços.

Refere o comandante Rodrigues do Prado que um dos caciques

[...] foi mandado com mais cinco á capital de Mato Grosso, onde o general o mandou fardar a sua custa com farda encarnada e agaloada de ouro, e dar-lhe sapatos, fivelas de prata, botas, camisas de punhos, bastão, e outras cousas de valor, sustentando-o em seu palácio todo o tempo que se demorou em Vila-Bela.82

Assim como os espanhóis, os portugueses investiam contra a aliança simbiótica entre os

agricultores Guaná e os coletores/caçadores/eqüestres Mbayá. Por meio dos tratados,

procuravam separá-los e, assim, dispor da mão-de-obra Guaná nos novos estabelecimentos

produtivos da fronteira.

Em fins do século XVIII, os espanhóis já contavam com centenas de trabalhadores

Guaná em seus ervais, sendo alguns grupos transferidos para o pueblo de San Juan

Nepomuceno, ao norte de Assunção,83 ao passo que outros se estabeleceram no pueblo de

Tacuatí, cerca de vinte léguas a leste de Concepción, no vale do rio Apa, de onde eram

repartidos entre os estancieiros. Em carta ao governador do Paraguai, Lázaro de Ribera,

datada de 16 fevereiro de 1797, o comandante de Concepción, José Antonio Zavala y

Delgadillo, refere que, no pueblo de Tacuatí, “fuera de los ancianos existen 13 caciques, 530

indios de armas, 49 muchachones, 506 mujeres y 182 chicos de ambos sexos”.84

81 ANA, SH, v. 173, n. 1. Lázaro de Ribera, governador do Paraguai, ao vice-rei de Buenos Aires, Olaquer Feliú, [s.d.] fev. 1798. f. 55b. 82 PRADO, op. cit., p. 30. 83 ANA, SNE, v. 3383. Nombramiento de Fray Antonio Bogarín como Cura Catequista de la nueva Reducción de indios chavaranas de San Juan Nepomuceno, 30 dez. 1797. 84 ANA, Col. Copias de Docs., v. 19. José Antonio Zavala y Delgadillo, comandante de Concepción, ao governador do Paraguai, Lázaro de Ribera, 16 fev. 1797, f. 57.

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O tratado de paz de 1798, na verdade, procurava estabelecer um aldeamento para os

Guaná e Mbayá de Concepción, regularizando o terreno onde seria estabelecido e as

condições em que viveriam esses índios. O estancieiro Miguel Ibañez, na mesma época,

chegou a dispor, em suas propriedades, do trabalho de cerca de 800 Guaná-Chavaraná.85 Não

surpreende que o tratado de 1798 tenha sido acrescido de um novo artigo, quando os caciques

voltaram a Concepción. O artigo acrescentado expressava um projeto para o futuro em que

duas populações distintas conviveriam separadamente, e as visitas em que índios viessem

“tratar y contratar” com os espanhóis deveriam ser formalizadas:

Que cuando se llegue a verificar la radicación de los dichos indios y su estabilidad en las cercanías de esta villa no se introducirán en número crecido en esta villa y su vecindario las veces que pasen a tratar, y contratar con los españoles, y dejarán sus armas en una de las guardias de la frontera, para que por este efecto se reconozcan los españoles ser los de la reducción.86

De acordo com o comandante do forte de Coimbra, em 1799 os portugueses tinham

conseguido aldear 1.400 índios nas imediações de Coimbra e Albuquerque, 800 Mbayá e 600

Guaná, e entorno de Miranda estabeleceram-se 800 pessoas de ambos os grupos, o que

totalizava 2.200 índios. Número que aumentou, em 1803, para 2.600, devido à incorporação

que os referidos grupos fizeram de índios Xamacoco, e que, nos anos seguintes aumentaria

em mais algumas centenas, com a migração do subgrupo chamado Cadiueo do forte espanhol

de Borbón para os estabelecimentos portugueses.87

Nos primeiros anos do século XIX, estancieiros de Mato Grosso passaram a dispor de

trabalhadores Guaná na povoação de Albuquerque e na região de Nova Coimbra. No seu

“Parecer sobre o aldeamento dos índios Uaicurús e Guanás” (1803), enviado ao governador

de Mato Grosso, o comandante de Coimbra refere, sobre a população Guaná, que “é

certamente a que promete um aldeamento constante”:

85 ANA, SH, v. 163, n. 22. Mariano Ferreyra: su declaración sobre actuación de los indios Mbayás, Asunción, 24 nov. 1796. f. 7a et seq. 86 ANA, CRB, n. 58. Articulo de la Paz que se ha celebrado con los caciques Mbayá y Guaná, 31 jan. 1798. 87 AHU-ACL-CU-010, cx. 38, doc. 1898. Ricardo Franco de Almeida Serra, comandante de Coimbra, ao governador Caetano Pinto de Miranda Montenegro, Coimbra, 14 fev. 1800. f. 1a; SERRA, Ricardo Franco de Almeida, ao governador Miranda Montenegro, 3 fev. 1803: “Parecer sobre o aldeamento dos índios Uaicurús e Guanás [...]” [1803]. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 7, 1845. p. 205, 211.

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Plantam algum milho, mandioca, morangas, e grandes batatas. Tecem todos os anos bons dos seus panos de algodão, e algumas redes; e ainda que pareçam assaz preguiçosos, essa cultura, com alguma pesca, não só os sustenta e veste, mas [a]os Uaicurús, vestiram uma boa porção [...]; os Guanás vendem todos os anos em Coimbra alguns panos, e redes; bastantes galinhas, grande soma de batatas; tendo assim esta permutação enriquecido mais esta nação, do que os Uaicurús.88

Sobre os Mbayá, afirma que a mais “interessante riqueza que mais prezam, e em que

mais cuidam todos os Uaicurús, consiste em seis ou oito mil cavalos que possuem, para a

conservação dos quais é preciso pastos”.89

O governador de Mato Grosso, Caetano Pinto de Miranda Montenegro, em carta de 5

de abril de 1803, confirmou ao comandante de Coimbra que recebera seu parecer, e enfatizou

que não concordava com a posição do militar, a saber, que seria pouco provável que se

pudesse aldear aqueles índios. Para Miranda Montenegro, os mesmos índios “podem vir a se

tornar cidadãos úteis”. Os próprios Guaná, “logo no outro dia, me pedem lhes mande pagar o

ouro dos seus jornais, para comprarem baeta, chita, e outras coisas”. Em carta de 19 de

setembro de 1799, já expressara que “nossos índios guaicurus e guanás poderão também

servir de vaqueiros” nas fazendas que se estabeleceriam “nos excelentes campos entre

Miranda e rio Branco”. Na missiva mais recente, pensou numa política para os índios que,

“reduzindo-os a um estado semelhante ao daqueles que, pela sua tenra idade, não são capazes

de governarem a si mesmos [...] servem até certos anos pelo comer e vestir, e ao depois por

uma soldada proporcionada ao seu trabalho”. E acrescentou que, se pudesse, não faria “as

novas populações só de índios, porém uma boa parte seria composta de famílias pobres,

laboriosas, e bem morigeradas, as quais transmitiriam os seus costumes aos índios, vindo

todos com o andar do tempo, a ficar confundidos”.90

6. Considerações finais

88 AHU-ACL-CU-010, cx. 41, doc. 2035. Almeida Serra ao governador Miranda Montenegro, 3 fev. 1803. f. 6b-7a. 89 SERRA, Ricardo Franco de Almeida, comandante de Coimbra, ao governador Caetano Pinto de Miranda Montenegro, 3 fev. 1803: “Parecer sobre o aldeamento dos índios Uaicurús e Guanás [...]”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 7, 1845. p. 211. 90 MIRANDA MONTENEGRO, Caetano Pinto de, governador do Mato Grosso, ao comandante de Coimbra, Ricardo Franco de Almeida Serra, 5 abr. 1803. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 7, 1845. p. 215-218, passim; Caetano Pinto de Miranda Montenegro, governador de Mato Grosso, ao comandante de Coimbra, Ricardo Franco de Almeida Serra, 19 set. 1799. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. Rios Guaporé e Paraguai: primeiras fronteiras definitivas do Brasil. Rio de Janeiro: Xerox, 1985. p. 240-41.

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A interpretação que se procurou defender aqui se aproxima dos aportes clássicos

lançados por Gibson sobre os tratados como instituição de dominação colonial. À época do

reformismo ilustrado, com sua política indigenista de abandono da “guerra justa” de

extermínio e escravização em favor da incorporação e disciplinarização para o trabalho, os

tratados assumiam, aos olhos dos próprios funcionários das Coroas, a função de dispositivo de

dominação. Pois embora os tratados fossem entendidos, no plano jurídico, como acordos entre

“nações soberanas”, espanhóis e portugueses nunca se colocavam como iguais em relação aos

indígenas. Para além dos marcos jurídicos, funcionavam na realidade social como parte de um

conjunto de tecnologias de poder. Os presentes aos caciques e sua elevação como

interlocutores privilegiados para tratar a paz com os governadores provocavam

transformações substantivas nos povos indígenas, atribuindo poder a uma “elite indígena”

com crescente possibilidade de coerção sobre o restante dos índios comuns. Em contextos de

expansão econômica e competição entre rivais coloniais, os tratados referendavam aos olhos

do direito internacional a subordinação dos índios a sistemas de trabalho e comércio e eram

um trunfo jurídico importante para reivindicar o uti possidetis da região em contenda. Do

ponto de vista dos índios, o final do século XVIII foi marcado por dificuldades econômicas e

ecológicas, que eles tentarão resolver procurando ansiosamente pela assinatura de tratados.

Embora entendessem que os tratados não lhes retirariam a autonomia e lhes assegurariam as

contrapartidas, por meio das quais pretendiam tributar os brancos pelo uso de seus territórios,

não podiam vislumbrar imediatamente que estavam sendo enquadrados num processo exterior

de tribalização.

7. Fontes e referências bibliográficas

7.1 Fontes manuscritas

ARCHIVO NACIONAL DE ASUNCIÓN [ANA]:

Sección Historia [SH]: v. 127, n. 7; v. 163, n. 22; v. 165, n. 1; v. 173, n. 1; v. 362, n. 1;

Colección Rio Branco [CRB]: n. 58; Sección Nueva Encuadernación [SNE]: v. 3391; v. 3392;

v. 3383; Carpeta Suelta [CS]: Carpeta 67; Col. Copias de Docs: v. 19.

ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO [AHU]:

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ACL-CU-010, cx. 28, doc. 1617; ACL-CU-010, cx. 31, doc. 1722; ACL-CU-010, cx. 38, doc.

1898; ACL-CU-010, cx. 41, doc. 2035.

7.2 Fontes impressas

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CARTA de [Caetano Pinto de Miranda Montenegro] para [Ricardo Franco de Almeida Serra], [s.l.], 27 nov. 1797. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. Rios Guaporé e Paraguai: primeiras fronteiras definitivas do Brasil. Rio de Janeiro: Xerox, 1985. p. 223.

CARTA de Caetano Pinto de Miranda Montenegro para Ricardo Franco de Almeida Serra, 19 set. 1799. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. Rios Guaporé e Paraguai: primeiras fronteiras definitivas do Brasil. Rio de Janeiro: Xerox, 1985. p. 238-41.

LABRADOR, José Sánchez. El Paraguay Católico [1780]. v. 2. Buenos Aires: Imprenta de Coni Hermanos, 1910.

MIRANDA MONTENEGRO, Caetano Pinto de, governador do Mato Grosso, ao comandante de Coimbra, Ricardo Franco de Almeida Serra, 5 abr. 1803. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 7, 1845. p. 215-218.

PRADO, Francisco Rodrigues do. História dos índios cavalleiros [...] [1795]. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 1, p. 21-44, 1839.

SERRA, Ricardo Franco de Almeida, comandante do forte de Coimbra, ao governador de Mato Grosso, Caetano Pinto de Miranda Montenegro, 3 fev. 1803: “Parecer sobre o aldeamento dos índios Uaicurús e Guanás, com a descrição dos seus usos, religião, estabilidade e costumes [...]” [1803]. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 7, p. 204-218, 1845.

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7.3 Referências bibliográficas

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