1. diversidade terminolÓgica · 1 bobbio, norberto. ... cidadão são direitos políticos, ... nos...

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23 TERMINOLOGIA E ASPECTOS CONCEITUAIS Capítulo I Terminologia e aspectos conceituais Sumário • 1. Diversidade terminológica – 2. Dignidade da pessoa huma- na: essência dos direitos humanos – 3. Direitos humanos, pós-positivismo e neoconstitucionalismo; 3.1. O pós-positivismo; 3.2. O neoconstitucionalismo; 3.3. O “ativismo judicial” e os direitos humanos. 1. DIVERSIDADE TERMINOLÓGICA A expressão “direitos humanos” tem servido para abrigar distintos con- teúdos, variando o seu emprego de acordo com a área do conhecimento (direito, losoa, ciências sociais e suas vertentes, economia, etc.) ou o contexto geopolítico (relações internacionais ou nacionais). Mesmo na seara jurídica, o termo está longe de ser unívoco, ante a ausência de uniformidade terminológica, não apenas no âmbito do pen- samento brasileiro, mas também no espaço da comunidade jurídica in- ternacional. Tal situação só faz dicultar as reexões acerca do assunto, porquanto essa ambiguidade acaba por prejudicar até mesmo a prestação jurisdicional, ao embaraçar o caminho do fundamento racional da decisão, desde os enunciados normativos até o juízo concreto. Há, contudo, quem não devote sequer alguma importância ao ato da conceituação dos direitos humanos, como NORBERTO BOBBIO, que recomen- da seja conferida preocupação mais ao efetivo desfrute desses direitos do que à sua mera denição 1 . Sem embargo, é do próprio BOBBIO uma das mais singelas e escla- recedoras referências conceituais, embora despida de natureza técnico- -jurídica: “[...] os direitos humanos são coisas desejáveis, isto é, ns que merecem ser seguidos, e de que, apesar de sua desejabilidade, não foram ainda todos eles (por toda parte e em igual medida) reconhecidos” 2 . São múltiplos os termos utilizados, indiscriminadamente, para a desig- nação desses direitos e de suas derivações (para quem as admita), como 1 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p. 29. 2 Id. Ibid., p. 35-36.

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TERMINOLOGIA E ASPECTOS CONCEITUAIS

Capítulo I

Terminologia e aspectos conceituais

Sumário • 1. Diversidade terminológica – 2. Dignidade da pessoa huma-na: essência dos direitos humanos – 3. Direitos humanos, pós-positivismo e neoconstitucionalismo; 3.1. O pós-positivismo; 3.2. O neoconstitucionalismo; 3.3. O “ativismo judicial” e os direitos humanos.

1. DIVERSIDADE TERMINOLÓGICA

A expressão “direitos humanos” tem servido para abrigar distintos con-teúdos, variando o seu emprego de acordo com a área do conhecimento (direito, fi losofi a, ciências sociais e suas vertentes, economia, etc.) ou o contexto geopolítico (relações internacionais ou nacionais).

Mesmo na seara jurídica, o termo está longe de ser unívoco, ante a ausência de uniformidade terminológica, não apenas no âmbito do pen-samento brasileiro, mas também no espaço da comunidade jurídica in-ternacional. Tal situação só faz difi cultar as refl exões acerca do assunto, porquanto essa ambiguidade acaba por prejudicar até mesmo a prestação jurisdicional, ao embaraçar o caminho do fundamento racional da decisão, desde os enunciados normativos até o juízo concreto.

Há, contudo, quem não devote sequer alguma importância ao ato da conceituação dos direitos humanos, como NORBERTO BOBBIO, que recomen-da seja conferida preocupação mais ao efetivo desfrute desses direitos do que à sua mera defi nição1.

Sem embargo, é do próprio BOBBIO uma das mais singelas e escla-recedoras referências conceituais, embora despida de natureza técnico--jurídica: “[...] os direitos humanos são coisas desejáveis, isto é, fi ns que merecem ser seguidos, e de que, apesar de sua desejabilidade, não foram ainda todos eles (por toda parte e em igual medida) reconhecidos”2.

São múltiplos os termos utilizados, indiscriminadamente, para a desig-nação desses direitos e de suas derivações (para quem as admita), como

1 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p. 29.

2 Id. Ibid., p. 35-36.

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por exemplo: direitos naturais, direitos humanos, direitos do homem, di-reitos fundamentais, direitos do cidadão, direitos individuais, direitos civis, direitos públicos subjetivos, liberdades fundamentais, liberdades públicas, liberdades individuais, direitos e garantias fundamentais e direitos funda-mentais do homem, entre outras3.

J.J. GOMES CANOTILHO envidou esforço para distinguir várias dessas ex-pressões, examinando-as aos pares e chegando, entre outras, às seguintes conclusões:

• Direitos do Homem e Direitos do Cidadão – distinção presente na “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão” de 1789, editada como corolário da Revolução Francesa, segundo a qual os Direitos do Homem são direitos individuais, pertencem-lhe “enquanto tal”, ou seja, são inerentes à condição humana, ao passo que os Direitos do Cidadão são direitos políticos, que pertencem ao homem “enquanto ser social, isto é, como indivíduo vivendo em sociedade”, e perante o Estado;

• Direitos Naturais e Direitos Civis – distinção próxima da anterior, encontrada no Título I da Constituição Francesa de 1791, consoante a qual os Direitos Naturais são inerentes ao indivíduo e os Direitos Civis são os que lhe cabem enquanto cidadão, encontrando-se pro-clamados nas constituições e leis infraconstitucionais;

• Direitos Políticos e Direitos Individuais – entre os Direitos Civis desta-cam-se, de um lado, os Direitos Políticos, correspondentes a uma par-cela atribuída apenas a determinado grupo de indivíduos, dotando--os de aptidão para “tomar parte ativa na formação dos poderes públicos”; o que remanesce, naquela categoria, depois de aparta-dos dela os Direitos Políticos, são Direitos Individuais;

• Direitos e Liberdades Públicas – os Direitos Civis admitem, ainda, um outro tipo de categorização, que coloca, de um lado, as Liberdades Públicas, consistentes em direitos dos indivíduos contra a interven-ção do Estado (e são também conhecidos como “direitos negativos” ou “direitos de abstenção”), e, de outro, simplesmente os Direitos (ou “direitos positivos”), que conferem ao indivíduo status ativo frente ao Estado, quer porque tenha a prerrogativa de participar

3 Vide SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 11. ed. São Paulo: Malheiros Ed., 1996. p. 174 e CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 393-398.

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ativamente da vida política (direito a votar e a ser votado), quer porque goze da possibilidade de exigir as “prestações necessárias ao desenvolvimento pleno da existência individual” (denominados “direitos à prestação”).

Muitas vezes, as expressões até aqui mencionadas são empregadas como sinônimas. É o que se verifi ca corriqueiramente com as designações direitos do homem, direitos humanos e direitos fundamentais, provavelmente as mais utilizadas.

As disciplinas específi cas inseridas nas grades curriculares das Facul-dades de Direito e os editais de concurso público, em regra, têm dado preferência ao termo “direitos humanos” em sentido genérico, sob o qual são abordados tópicos pertinentes tanto ao direito internacional, quanto ao direito nacional (sobretudo constitucional).

Ante este quadro de divergência, o presente trabalho adotará, por questão de conveniência pedagógica, distinção própria, atribuindo as de-signações direitos humanos (em sentido lato), ou direitos do homem, aos direitos inerentes à condição humana e, pois, independentes de norma positiva; direitos humanos internacionais, ou direitos humanos em sentido estrito, aos direitos humanos contemplados em tratados internacionais; e direitos humanos fundamentais, ou direitos fundamentais, àqueles assegu-rados, dentro do ordenamento jurídico interno, pelas autoridades político--legislativas de cada Estado-nação4.

Distinção terminológica adotada nesta obra5

Direitos humanosou Direitos do Homem

Direitos Humanos Internacionaisou Direitos Humanos

em Sentido Estrito

Direitos Humanos Fundamentaisou Direitos Fundamentais

4 Para uma distinção próxima desta, mas adotando para as categorias descritas, respectivamente, os termos “direitos do homem”, “direitos humanos” e “direitos fundamentais”, vide, no Brasil: DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. 2. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2009. p. 35-36; MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 25-26; MENDES, Gilmar; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 320.

5. Deve o leitor atentar para a existência de outras distinções.

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Pensa-se que, conquanto não seja capaz de exaurir o debate termi-nológico – sendo, como todas as demais, passível de críticas –, a distinção adotada é aquela que, com mais simplicidade e clareza, atende à per-cepção de SVEN PETERKE, segundo a qual os direitos de que aqui se trata nascem da refl exão fi losófi ca para, posteriormente, tornarem-se exigências políticas, por vezes elevadas à condição de obrigações contempladas no direito positivo6.

2. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: ESSÊNCIA DOS DIREITOS HUMA-

NOS

A despeito dos prejuízos advindos da aludida diversidade terminoló-gica, os diferentes pontos de vista convergem quanto a apresentar, como eixo central dos direitos do homem (e de suas manifestações como direi-tos humanos e direitos fundamentais), a proteção da dignidade da pessoa humana.

O desenvolvimento da noção de dignidade da pessoa humana deita ra-ízes na constatação de que, na essência, todo o ser humano é livre e goza dos mesmos direitos básicos, verifi cando-se, portanto, que a dignidade da pessoa humana guarda indissociável proximidade com a liberdade e a igualdade (isonomia).

Segundo FÁBIO KONDER COMPARATO, os fundamentos intelectuais para a compreensão da pessoa humana e, consequentemente, para a afi rma-ção da existência de direitos universais a ela inerentes, foram lançados no centro do chamado “Período Axial” da História (séculos VIII a II a.C.), quando nasce a fi losofi a, tanto na Ásia, quanto na Grécia, substituindo-se, pela primeira vez, o saber religioso-mitológico pela crítica racional7. É neste momento que o ser humano “passa ser considerado, em sua igualdade essencial, como ser dotado de liberdade e razão, não obstante diferenças de sexo, raça, religião ou costumes sociais”8.

Percebe-se, pois, que o conceito de pessoa humana remete, historica-mente, à afi rmação de que todos os seres humanos têm natureza comum.

6 PETERK, Sven. Doutrinas gerais. In: PETERKE, Sven (Coord.). Manual Prático de Direitos Humanos Internacionais. Brasília: Escola Superior do Ministério Público do União, 2010, p. 88.

7. COMPARATO, Fábio Konder. A afi rmação histórica dos direitos humanos. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 20-24.

8. Id. Ibid., p. 23-24.

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TERMINOLOGIA E ASPECTOS CONCEITUAIS

Para fi ns didáticos, podem ser identifi cados cinco expressivos momen-tos históricos que apresentaram diferentes fundamentos para a essência comum dos homens e, por conseguinte, para a concepção de Pessoa Hu-mana9:

O Conceito de Pessoa humana ao longo da História

Concílio de Niceia (ano 325 d.C)

Concílio de padres que institui o dogma de fé segundo o qual Jesus Cristo era pessoa com dupla natureza: humana e divina (eis porque, no campo religioso, "pessoa humana" não é pleonasmo)

Boécio, fi lósofo romano (início do séc. VI)

Em sentido diverso do Concílio de Niceia, "diz-se propriamente pessoa a substância indivi-dual com natureza racional". É pessoa, portanto, todo ser dotado de razão em sua substância

Immanuel Kant (fi nal do séc XVIII)

O ser humano é o único ser dotado de razão (que lhe permite ter vontade, poder de esco-lha) e existe como um fi m em si mesmo e não como meio para servir à vontade de outrem (conceito até hoje central para repúdio ao trabalho escravo, por exemplo)

Lotze, Brentano e Nietzsche (séc. XIX)

Reconhecimento de que o homem é o único ser vivo que dirige sua vida em função de suas preferências valorativas (referência fundamental para o entendimento dos Direitos Huma-nos como expressão dos valores mais importantes para a convivência humana).

Pensamento Existencialista (primeira metade do séc. XX)

Afi rmação da singularidade de cada ser humano, moldada pelo mundo em que vive (con-texto cultural) e em permanente mudança ("Toda pessoa é um sujeito em processo de vir--a-ser")

Estas concepções fi losófi cas acerca do que torna o ser humano único em suas características permitem identifi car, na pessoa humana, atributos intrínsecos sem os quais não é possível conceituá-la. A conjugação des-ses atributos autoriza conceituar-se como pessoa humana todo ente que,

9. Id. Ibid., p. 31-43.

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dotado de razão, é um fi m em si mesmo, por ser intrinsecamente livre para tomar decisões segundo seus próprios valores.

Tal liberdade para tomar decisões segundo sua própria racionalidade está, portanto, na essência do ser humano, essência essa de cuja preserva-ção decorre a dignidade. A dignidade da pessoa humana é, pois, antes de tudo (antes inclusive de seu aspecto jurídico), um dado da vida, inerente à condição humana. O Direito só faz protegê-la e promovê-la.

Nessa perspectiva, a construção do conceito de dignidade da pessoa humana não cabe ao campo jurídico, isto é, ao legislador ou ao juiz. Con-tudo, a sua proteção e promoção, no terreno do Direito, não prescinde de uma concepção construída na praxe dos casos concretos que envolvem si-tuações de afronta à dignidade da pessoa humana exatamente pela agres-são a qualquer um de seus atributos essenciais – seja pelo ataque à inte-gridade física ou moral, seja pelo favorecimento do tratamento desigual. Isso faz da dignidade da pessoa humana uma ideia multidimensional, na medida em que congrega várias e distintas facetas da existência humana (autodeterminação, saúde, educação, meio-ambiente, propriedade, etc.).

Uma noção jurídica de dignidade da pessoa humana encontra melhor espaço, então, no exame da sua eventual negação, como se vê da seguinte passagem de INGO WOLFGANG SARLET, consentânea com o olhar mais recor-rente do operador do Direito para o tema:

O que se percebe, em última análise, é que onde não houver res-peito pela vida e integridade física e moral do ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem as-seguradas, onde não houver limitação do poder, enfi m, onde a liberdade e a autonomia, a igualdade (em direitos e dignidade) e os direitos fundamentais não forem reconhecidos e minimamente assegurados, não haverá espaço para a dignidade humana e esta (a pessoa), por sua vez, poderá não passar de mero objeto de arbítrio e injustiças.10

Existe também na esfera jurídica, pois, um permanente processo, in-fl uenciado pelos parâmetros vigentes na sociedade, de construção e re-construção da noção de dignidade humana, visando sua concretização. No que diz respeito ao Direito, dessa tarefa estão incumbidos todos os órgãos estatais, que ao tomar a dignidade da pessoa humana como objeto de

10. SARLET, Ingo Wolfagang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Fede-ral de 1988. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2006, p. 59.

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norma jurídica, deparam-se com a complexidade da respectiva aplicação, decorrente da característica multidimensional desse bem.

Como se verá adiante11, o advento, no século XX, de sistemas mais efi -cazes de proteção jurídica de direitos humanos, nos planos internacional e nacional, decorre de uma necessidade histórica de afi rmação dos homens como detentores de uma gama de direitos iguais que tocam os aspectos mais fundamentais da sua existência. Dito de outro modo, a humanidade viu-se premida a proteger, de forma mais robusta e intransigente, no cam-po jurídico, os atributos da dignidade da pessoa humana.

É também a história que demonstra que a afronta, sobretudo massi-fi cada, à dignidade da pessoa humana, é sistematicamente empreendida em virtude da ação do Estado12, razão pela qual, igualmente, as noções de direitos humanos os relacionam, em uníssono, à limitação do poder estatal, seja como fi nalidade, seja como instrumento. Todavia, como também se verá mais à frente13, cresce, nos dias de hoje, a percepção segundo a qual os direitos humanos também são violados por obra de particular, pessoa física ou jurídica.

Esta intensifi cação da proteção jurídica dos direitos mais elementares do ser humano renovou, consequentemente, a atenção à concepção jurídi-ca do que seja a dignidade da pessoa humana, para de alguma forma en-fatizar seu aspecto político-social, em contraposição a uma “biologização”, verifi cada do tratamento da dignidade da pessoa humana como um dado genético da natureza humana, tal qual a cor de pele, dos cabelos e dos olhos. Afl ora daí a ideia de que a dignidade da pessoa humana, embora inerente ao ser humano, molda-se no contexto das relações sociais (his-tórico-político-culturais) em que inserida a pessoa, sofrendo infl uências e, por isso, comportando individualização. Dito de outro modo, todo ser hu-mano tem dignidade, mas cada qual a ostenta com características próprias, individualizadas. A individualização da dignidade é fundamental para a admissão de que pessoas diferentes, submetidas a uma mesma ocorrência fática, podem experimentar, ou não, a violação da sua dignidade. É nesta esteira que SARLET propõe a distinção entre dignidade humana e dignidade da pessoa humana:

11. Vide Capítulo II.12. Lembre-se que o menoscabo da dignidade da pessoa humana não é exclusividade das formas

de Estado mais primitivas, como o Estado Absolutista, sendo também recorrente e corriqueiro sob a administração dos chamados Estados Democráticos de Direito.

13. Vide Capítulo IV.

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[...] há, de fato, como traçar uma distinção entre dignidade huma-na (aqui no sentido de dignidade reconhecida a todos os seres humanos, independentemente de sua condição pessoal, concreta) e dignidade da pessoa humana, concretamente considerada, no contexto de seu desenvolvimento social e moral e na perspecti-va da própria noção de pessoa como sujeito individual (embora socialmente responsável e vinculado) de direitos e deveres. Em caráter ilustrativo, é possível referir aqui uma série de situações que, para determinada pessoa (independentemente aqui de uma vinculação a certo grupo cultural específi co) não são consideradas como ofensivas à sua dignidade, ao passo que para outros, trata--se de violação intensa, inclusive do núcleo essencial da dignidade da pessoa, o que, na esfera do direito penal e da legitimidade da certas práticas de investigação e tipos de pena aplicados aos con-denados, constitui um exemplo digno de nota.14

Conclui-se, então, que qualquer defi nição do que sejam direitos huma-nos não pode deixar de partir da noção de dignidade da pessoa humana, seja sob o prisma teleológico (como um objetivo a ser atingido), seja sob o prisma hermenêutico (ensejador de interpretação e aplicação conforme as normas incidentes), seja ainda sob o prisma axiológico (domínio dos valores que direcionam as normas enunciadas e, pois, a sua aplicação).

» Importante:

A dignidade da pessoa humana é multidimensional e individual. Multidimensional, porque congrega diversos atributos intrínsecos do ser humano (v.g. liberdade, igualdade, integri-dade física e psíquica). Individual, porque, embora inerente a todo ser humano, é moldada com características próprias, delineadas pelo contexto histórico-cultural que circunda o indivíduo.

Não se nega que se possa opor, à constatação de que a dignidade da pessoa humana é o norte da positivação dos direitos humanos, tanto em tratados internacionais, quanto em constituições nacionais, a alegação de que é também isto o que se dá com qualquer norma jurídica, haja vista que a preservação da dignidade da pessoa humana é a condição sem a qual não pode haver pacifi cação dos confl itos sociais, fi m maior do Direito. Ocorre, porém, que os direitos humanos são o produto de uma necessidade histórica de afi rmação de valores morais mínimos de toda a humanidade, pela dotação de cogência jurídica, o que se justifi ca ante a verifi cação da brutal e insustentável violência contra esses valores. Nessa

14. SARLET, Ingo Wolfgang. Notas sobre a dignidade da pessoa humana na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. In SARMENTO, Daniel; SARLET, Ingo Wolfgang (Coord.). Direitos Fundamentais no Supremo Tribunal Federal: balanço e crítica. Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora, 2011, p. 45.

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CASUÍSTICA – CAPÍTULOS I E II

Casuística

Capítulos I e II Sumário • 1.Caso Antígona de Sófocles (fi ctício) – 2. Caso Dred Scott vs. San-dford – 3.Caso DNA debaixo de vara – 4.Caso Lançamento de anão – 5.Caso Células-tronco

1. CASO ANTÍGONA DE SÓFOCLES (FICTÍCIO)

Ano da decisão aproximadamente 442 a.C. (data da composição da peça teatral)

Órgão prolator Sófocles (escritor e dramaturgo grego)

Síntese do caso

Não é um caso real, mas uma tragédia grega - Antígona, de Sófocles. A parte que interessa está no debate sobre a validade de uma norma imposta por Creonte que proibia o sepultamento do corpo do irmão de Antígona, Polícines, que lutava contra o reino de Tebas. O rei havia determinado que seu corpo fosse deixado para alimento dos cães. An-tígona, no entanto, sepultou o irmão e foi levada ao rei para ser conde-nada, porém, alega que a regra que impedia o sepultamento violava normas superiores, com fundamento na justiça e na religião, que não permitiriam que o corpo de Polícines fosse deixado sem sepultamento.

Importância

Invoca-se norma de direito superior para controlar a ação abusiva do detentor do poder. Num primeiro momento, o fundamento é religioso e de justiça. O fundamento na razão humana vai surgir muito tempo depois, com os contratualistas. Mas, nessa passagem de Sófocles, já se demonstra a preocupação com o fundamento dos direitos humanos.

2. CASO DRED SCOTT VS. SANDFORD

Ano da decisão 1857

Órgão prolator Suprema Corte dos EUA

Síntese do caso

Em 1834, o escravo Dred Scott foi comprado no Missouri e, em seguida, levado para Illinois, um estado sem escravidão. Seu proprietário e ele, mais tarde, mudaram-se para Minnesota, onde a escravidão tinha sido proibida, e depois voltaram para Missouri. Quando seu dono morreu, Scott processou a viúva (que exigiu que ele se mantivesse como escra-vo), alegando que ele não era mais um escravo, porque tinha se tornado livre, depois de ter vivido em um estado livre. Num momento em que os EUA estavam em profundo confl ito sobre a escravidão, a Suprema Corte decidiu que Dred Scott não era um "cidadão do Estado", de modo que não tinha aquele Tribunal competência na matéria, mas a opinião da maioria também afi rmou que ele não era um homem livre, podendo cada Estado defi nir a sua legislação interna.

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Importância

Identifi cação da difi culdade na construção histórica dos direitos huma-nos, especialmente, em situações em que ordenamentos jurídicos con-fl itam na concessão de direitos.

3. CASO DNA DEBAIXO DE VARA

Ano da decisão 1994

Órgão prolator Supremo Tribunal Federal (HC 71.373-4/RS)

Síntese do caso

Em novembro de 1992, Juíza de primeiro grau, do Rio Grande do Sul, determinou que o réu em ação de investigação de paternidade fosse submetido a exame de DNA, devendo ser conduzido sob vara (condu-ção policial), caso não comparecesse. Com essa decisão, afastou a pre-sunção de paternidade, caso houvesse negativa de comparecimento. O STF concedeu a ordem de HC para permitir que o paciente não rea-lizasse o exame, se não o quisesse, arcando com as consequências da não realização.

Importância

Como há a possibilidade de presunção da paternidade em caso de ne-gativa de realização do exame, o STF entendeu que deveria prevalecer a intimidade do pai. Remanesceu, contudo, dúvida sobre a inalienabilida-de da dignidade humana, pois os fi lhos teriam a dignidade protegida, caso soubessem efetivamente (não mediante presunção) quem é seu verdadeiro pai.

4. CASO LANÇAMENTO DE ANÃO

Ano da decisão 2002

Órgão prolator Comissão de Direitos Humanos da ONU

Síntese do caso

Nos arredores de Paris, nas décadas de 80 e 90 do século XX, havia, em um bar, uma competição vencida por quem lançasse um anão à maior distância. Autoridades francesas, alegando violação à dignidade da pes-soa humana, proibiram o ato. Certo anão participante recorreu dessa decisão e, em 1999, depois de perder seu pleito na França, buscou am-paro internacional junto à Comissão de Direitos Humanos da ONU, que também acompanhou as decisões internas francesas, reconhecendo haver violação à dignidade dos anões, a despeito da alegação do re-corrente no sentido de que aquela competição era seu meio de sobre-vivência econômica (sobre a notícia da decisão da Comissão, com uma escrita que não é jurídica, vale conferir o site: http://noticias.uol.com.br/inter/reuters/2002/09/27/ult27u26540.jhtm).

ImportânciaReconhecida a inalienabilidade da dignidade humana, que impede que o seu titular a renuncie por questões pessoais, como as econômicas.

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QUESTÕES – CAPÍTULOS I E II

Questões

Capítulos I e II Sumário • 1. Questões – 2.Gabarito

1. QUESTÕES

01. (MPT – Procurador do Trabalho/2007) No estudo dos direitos humanos fun-damentais, existe cizânia doutrinária em torno da utilização da expressão "geração", para indicar o processo de consolidação desses direitos, sendo que alguns preferem utilizar "dimensão". Examine as assertivas a seguir e se-lecione o argumento que, efetivamente, dá suporte à doutrina que defende a necessidade de substituição de uma expressão por outra.

a) os direitos humanos fundamentais são direitos naturais e, como tais, imutá-veis, de maneira que o vocábulo "geração" faz alusão a uma historicidade inexistente nessa modalidade de direitos, enquanto "dimensão" refere-se a aspectos relevantes de um todo, que simplesmente se destacam de acordo com o grau de desenvolvimento da sociedade;

b) o termo "geração" conduz à ideia equivocada de que os direitos humanos fundamentais se substituem ao longo do tempo, enquanto "dimensão" me-lhor refl ete o processo gradativo de complementaridade, pelo qual não há alternância, mas sim expansão, cumulação e fortalecimento;

c) a ideia de "geração" leva ao entendimento de que o processo de afi rmação dos direitos humanos fundamentais é linear e não comporta retrocessos, enquanto a de "dimensão" melhor expressa o caminho tortuoso desse pro-cesso, de acordo com as relações de forças existentes nas sociedades;

d) O termo "geração" sugere uma efi cácia restrita dos direitos humanos funda-mentais, meramente vertical, ao passo que "dimensão" indica efi cácia mais ampla, também horizontal;

e) não respondida.

2. (Vunesp – Defensor Público – MS/2008) Quando se fala em Direitos Humanos, considerando sua historiciedade, é correto dizer que

a) somente passam a existir com as Declarações de Direitos elaboradas a partir da Revolução Gloriosa Inglesa de 1688.

b) foram estabelecidos, pela primeira vez, por meio da Carta Magna de 1215, que é a expressão maior da proteção dos Direitos do Homem em âmbito universal.

c) a concepção contemporânea de Direitos Humanos foi introduzida, em 1789, pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, fruto da Revolução Francesa.

d) a internacionalização dos Direitos Humanos surge a partir do Pós-Guerra, como resposta às atrocidades cometidas durante o nazismo.

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QUESTÕES – CAPÍTULOS I E II

c) Alcorão.d) Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da França.e) Bill of Rights.

2. GABARITO

Questão Resposta Fundamentação

01 B

A classifi cação dos direitos humanos em gerações, se-gundo a crítica a ela direcionada, dá a falsa ideia de su-cessão de direitos, que fragiliza a proteção desses direi-tos, os quais, na verdade, devem ser entendidos como cumulativos e de natureza expansiva

02 DEsse é um dos fundamentos possíveis, mas é o mais ci-tado, pois coincide com a internacionalização, historica-mente.

03 D

A inserção de direitos econômicos, sociais e culturais nas declarações e tratados internacionais de direitos huma-nos, as Constituições de Weimar e do México e a criação da OIT, todos havidos no início do séc. XX, comprovam a fragilidade da condição sócio-econômica do indivíduo, agravada pela Revolução Industrial do fi nal do séc. XIX.

04 EOs Pactos de 1966 complementam a DUDH, na questão com a sigla em inglês de UDHR, e, em conjunto com ela, formam a Carta Internacional de Direitos Humanos.

05 A A DUDH não confere hierarquia a qualquer categoria de direitos

06 A Fundamento da dignidade da pessoa humana, nascido na necessidade de se responder às atrocidades nazistas

07 A

Art. 1º, III, da CF. O princípio da Dignidade da Pessoa Hu-mana, como fundamento da República e eixo axiológico central dos direitos humanos, tem força normativa irra-diadora para a aplicação de todos os ramos do Direito.

08 E Art. XXI da DUDH

09 A Importante antecessor da proteção internacional dos di-reitos humanos.

10 C

Os direitos de segunda geração ou dimensão contem-plam os direitos econômicos sociais e culturais, cuja proteção, no plano constitucional, teve na Constituição Mexicana de 1917 e na Constituição de Weimar de 1919 suas precursoras

11 BMagna Carta, de 1215, do Rei João Sem-Terra, na Ingla-terra: primeiro documento legal escrito com previsão de restrição dos poderes do monarca.