1. breve introduÇÃo ao direito comparado geral e … · e do direito constitucional ... já se...

16
1. BREVE INTRODUÇÃO AO DIREITO COMPARADO GERAL E AO DIREITO CONSTITUCIONAL COMPARADO O presente capítulo tem finalidades propedêuticas, posto ter por objetivo introduzir o leitor no campo do conhecimento abordado, delimitando-o, esclarecendo algumas confusões e equívocos comuns, e delineando tão bem quanto possível o objeto do Direito Comparado em geral e do Direito Constitucional Comparado em particular. Não pretende ser exaustivo, consistindo antes em uma introdução sumária a questões epistemológicas, teóricas e metodológicas do Direito Comparado Geral e do Direito Constitucional Comparado, remetendo-se o leitor desejoso de aprofundamentos à bibliografia especializada indicada ao final.[1] A primeira parte dedicar-se-á ao Direito Comparado Geral ao passo que a segunda terá por objeto o Direito Constitucional Comparado propriamente dito. 1.1. Direito Comparado Para começar faz-se necessário compreender em que consiste o Direito Comparado, qual seu estatuto epistemológico, seu objeto e seus métodos. O Direito Comparado, como aqui concebido, é o ramo da Ciência Jurídica que se propõe a compreender o direito a partir da utilização de métodos comparativos (SGARBOSSA; JENSEN: 2008). 14 Este libro forma parte del acervo de la Biblioteca Jurídica Virtual del Instituto de Investigaciones Jurídicas de la UNAM www.juridicas.unam.mx https://biblio.juridicas.unam.mx/bjv DR © 2017. Instituto Brasileiro de Pesquisa Jurídica - IBPJ Libro completo en: https://goo.gl/HhQERt

Upload: phungtu

Post on 30-Nov-2018

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: 1. BREVE INTRODUÇÃO AO DIREITO COMPARADO GERAL E … · e do Direito Constitucional ... já se constitui em um conjunto de conhecimentos ... preocupa-se com o conhecimento do direito

1. BREVE INTRODUÇÃO AODIREITO COMPARADO GERAL EAO DIREITO CONSTITUCIONALCOMPARADO

O presente capítulo tem finalidades propedêuticas,posto ter por objetivo introduzir o leitor no campo doconhecimento abordado, delimitando-o, esclarecendoalgumas confusões e equívocos comuns, e delineandotão bem quanto possível o objeto do DireitoComparado em geral e do Direito ConstitucionalComparado em particular.

Não pretende ser exaustivo, consistindo antes emuma introdução sumária a questões epistemológicas,teóricas e metodológicas do Direito Comparado Gerale do Direito Constitucional Comparado, remetendo-seo leitor desejoso de aprofundamentos à bibliografiaespecializada indicada ao final.[1]

A primeira parte dedicar-se-á ao Direito ComparadoGeral ao passo que a segunda terá por objeto o DireitoConstitucional Comparado propriamente dito.

1.1. Direito Comparado

Para começar faz-se necessário compreender em queconsiste o Direito Comparado, qual seu estatutoepistemológico, seu objeto e seus métodos.

O Direito Comparado, como aqui concebido, é oramo da Ciência Jurídica que se propõe a compreendero direito a partir da utilização de métodos comparativos(SGARBOSSA; JENSEN: 2008).

14

Este libro forma parte del acervo de la Biblioteca Jurídica Virtual del Instituto de Investigaciones Jurídicas de la UNAM www.juridicas.unam.mx https://biblio.juridicas.unam.mx/bjv

DR © 2017. Instituto Brasileiro de Pesquisa Jurídica - IBPJ

Libro completo en: https://goo.gl/HhQERt

Page 2: 1. BREVE INTRODUÇÃO AO DIREITO COMPARADO GERAL E … · e do Direito Constitucional ... já se constitui em um conjunto de conhecimentos ... preocupa-se com o conhecimento do direito

Direito Constitucional em Perspectiva Comparativa

15

Ou seja, trata-se de um ramo do conhecimentocientífico que busca, por meio de abordagemcomparativa, estabelecer semelhanças e dessemelhançasentre diferentes sistemas jurídicos para, ao final, extrairconclusões, ampliando o conhecimento sobre ofenômeno jurídico.

Tal disciplina científica nasce no século XIX, adespeito de estudos comparativos de textos legaisexistirem desde a Antiguidade, como destacam muitosautores.

Primeiramente, portanto, convém esclarecer que, adespeito de muitos sustentarem tratar-se o DireitoComparado de simples método, aqui se esposa a visãosegundo a qual o Direito Comparado constituiverdadeira Ciência ou, mais apropriadamente, um ramoda Ciência do Direito (DANTAS, 2010).

Existem diversos motivos para tal tomada deposição, que partem desde o fato de não existir umúnico método comparativo, como se verá melhoradiante, quanto pelo fato de que o Direito Comparadojá se constitui em um conjunto de conhecimentossistematizado, demonstrável e metodologicamenteorientado, que evidencia sua autonomia epistemológicaem face de outros ramos da Ciência Jurídica.

O Direito Comparado é um ramo do conhecimentoque se situa a meio caminho entre a Dogmática Jurídicae a Teoria do Direito. Com efeito, a dogmática jurídicapreocupa-se com o conhecimento do direitocircunscrito a um sistema jurídico nacional, e,frequentemente, a um ramo deste.

Já a Teoria do Direito visa propiciar umacompreensão que abranja o fenômeno jurídico a partirde seus aspectos mais gerais – os sistemas jurídicosenquanto tais, em oposição a outros sistemas

Este libro forma parte del acervo de la Biblioteca Jurídica Virtual del Instituto de Investigaciones Jurídicas de la UNAM www.juridicas.unam.mx https://biblio.juridicas.unam.mx/bjv

DR © 2017. Instituto Brasileiro de Pesquisa Jurídica - IBPJ

Libro completo en: https://goo.gl/HhQERt

Page 3: 1. BREVE INTRODUÇÃO AO DIREITO COMPARADO GERAL E … · e do Direito Constitucional ... já se constitui em um conjunto de conhecimentos ... preocupa-se com o conhecimento do direito

Luís Fernando Sgarbossa

Geziela Iensue

16

normativos, como os sistemas sociais ou morais – semdescer às minúcias de sistemas jurídicos particulares.

O Direito Comparado insere-se precisamente noâmbito não coberto nem pela Dogmática Jurídica –dirigida especificamente aos sistemas jurídicos positivosnacionais ou parte deles – nem pela Teoria do Direitoou Teoria Geral do Direito – dirigida aos sistemasjurídicos em geral.

O Direito Comparado busca compreender ofenômeno jurídico a partir da análise comparativa dediferentes sistemas não apenas quanto à sua forma eestrutura geral, mas também quanto a seu conteúdo.

No estudo do Direito Comparado, duas abordagensprincipais são possíveis. A primeira consiste no estudocomparativo de sistemas jurídicos no sentido defamílias ou tradições jurídicas. A segunda, no estudocomparativo de sistemas jurídicos nacionais – dois oumais.

Os frutos dos estudos de Direito Comparado naprimeira seara são amplamente conhecidos. A partir doestudo comparativo de sistemas jurídicos como oRomano-Germânico, o Common Law, a Char’ia eoutros, formou-se todo um campo do conhecimentodestinado a compreender de forma ampla diferentessistemas jurídicos.[2]

Estudando sistemas que compartilham origens ecaracterísticas comuns, formaram-se as conhecidasclassificações de famílias ou grandes sistemas dodireito, como as propostas por René David e outros.

No outro extremo, estudos mais recentes de DireitoComparado tem focado em comparações entre dois oumais sistemas jurídicos nacionais, notadamente entreramos ou aspectos particulares desses.

Assim, é possível um estudo de princípios, normas,

Este libro forma parte del acervo de la Biblioteca Jurídica Virtual del Instituto de Investigaciones Jurídicas de la UNAM www.juridicas.unam.mx https://biblio.juridicas.unam.mx/bjv

DR © 2017. Instituto Brasileiro de Pesquisa Jurídica - IBPJ

Libro completo en: https://goo.gl/HhQERt

Page 4: 1. BREVE INTRODUÇÃO AO DIREITO COMPARADO GERAL E … · e do Direito Constitucional ... já se constitui em um conjunto de conhecimentos ... preocupa-se com o conhecimento do direito

Direito Constitucional em Perspectiva Comparativa

17

instituições jurídicas, ramos do direito ou outroselementos pertencentes a dois ou mais sistemasjurídicos nacionais.[3]

Naturalmente existem outras possibilidades. Nãoseria possível apenas a comparação entre grandessistemas jurídicos (agrupamentos de sistemas jurídicosnacionais aparentados) ou a comparação entre sistemasjurídicos nacionais.

É possível, alternativamente, a comparação desistemas jurídicos internacionais – a comparação entredois sistemas regionais de proteção de direitoshumanos, por exemplo – ou, ainda, a comparação desistemas jurídicos parcelares integrantes de um sistemajurídico nacional – a comparação entre o direito de doisou mais municípios ou, em federações, de dois ou maisEstados federados, por exemplo.

Além disso, os estudos juscomparativos abrangem amacro-comparação, expressão designativa da tentativade comparar sistemas como um todo, da micro-comparação, expressão designativa do esforço emcomparar parcelas de sistemas jurídicos, como normasisoladas ou institutos jurídicos – tal como apropriedade, os contratos, ou os writs constitucionais.

Além disso, é importante ressaltar, sem se deter noassunto, que a concepção atual de Direito Comparadonão se resume a legislação comparada. Todo estudojuscomparativo contemporâneo deve recorrer nãoapenas à legislação, mas igualmente à doutrina e àjurisprudência, para uma adequada compreensão dasdiferentes ordens jurídicas.

Como ramo da Ciência Jurídica que é, o DireitoComparado tem como principal finalidade a produçãode conhecimento. Nada obstante, são muito conhecidase bastante discutidas suas funções práticas – o

Este libro forma parte del acervo de la Biblioteca Jurídica Virtual del Instituto de Investigaciones Jurídicas de la UNAM www.juridicas.unam.mx https://biblio.juridicas.unam.mx/bjv

DR © 2017. Instituto Brasileiro de Pesquisa Jurídica - IBPJ

Libro completo en: https://goo.gl/HhQERt

Page 5: 1. BREVE INTRODUÇÃO AO DIREITO COMPARADO GERAL E … · e do Direito Constitucional ... já se constitui em um conjunto de conhecimentos ... preocupa-se com o conhecimento do direito

Luís Fernando Sgarbossa

Geziela Iensue

18

denominado Direito Comparado Aplicado.Entre elas encontram-se questões relativas à política

legislativa, aos processos de integração regional, àaplicação extraterritorial de direito estrangeiro, porforça das normas de reenvio formal, entre outros.

Há que se observar que, como se pode perceber, oDireito Comparado não se confunde com o DireitoInternacional Público ou Privado. Também não se podeconfundir Direito Comparado com o direitoestrangeiro, pois este último refere-se a qualquersistema jurídico que não seja o nacional. Énormalmente a “matéria prima” dos estudoscomparativos, mas não se confunde com o DireitoComparado.

O Direito Comparado tampouco se confunde com aHistória do Direito, embora mantenha com ela fortesrelações e embora a maioria dos estudos – como opresente – recorram, simultaneamente, à comparação eao método histórico.

Com efeito, aquilo que se realiza no DireitoComparado, normalmente, é a comparação sincrônica,vale dizer, a comparação realizada entre sistemasvigentes simultaneamente, normalmente na atualidade.

A História do Direito, por sua vez, realiza acomparação diacrônica, ou seja, a comparação entrediferentes momentos históricos de um mesmo sistemajurídico.

A despeito de tal separação em termos de objeto emétodo, deve-se registrar que ambos os campos dosaber – Direito Comparado e História do Direito –implicam-se e requerem-se reciprocamente, não sendopossível fazer estudos juscomparativos sem o apoio daHistória do Direito.

Vistos rapidamente tais aspectos epistemológicos e

Este libro forma parte del acervo de la Biblioteca Jurídica Virtual del Instituto de Investigaciones Jurídicas de la UNAM www.juridicas.unam.mx https://biblio.juridicas.unam.mx/bjv

DR © 2017. Instituto Brasileiro de Pesquisa Jurídica - IBPJ

Libro completo en: https://goo.gl/HhQERt

Page 6: 1. BREVE INTRODUÇÃO AO DIREITO COMPARADO GERAL E … · e do Direito Constitucional ... já se constitui em um conjunto de conhecimentos ... preocupa-se com o conhecimento do direito

Direito Constitucional em Perspectiva Comparativa

19

teóricos do Direito Comparado, convém examinaralgumas questões metodológicas.

Toda comparação, juízo lógico que é, reclama pelomenos dois objetos que tenham ao menos um aspectocomum para tornar possível a comparação.

O primeiro elemento de uma comparação jurídica édenominado comparandum, e normalmente consisteno sistema jurídico nacional.

O segundo elemento é comumente denominadocomparatum, e corresponde a um ou mais sistemasestrangeiros com relação aos quais o pesquisador iráproceder à comparação.

O comparatum pode ser singular – um únicoordenamento jurídico – ou plural – diversosordenamentos jurídicos.

O aspecto a ser comparado entre ambos oselementos da comparação jurídica é normalmentedenominado tertium comparationis ou termo acomparar. Consiste na parcela, fração ou aspecto dosordenamentos jurídicos em comparação que serãoenfocados.

Assim, a título de exemplo, é possível realizar umapesquisa comparativa cujo comparandum seja o direitobrasileiro, cujo comparatum seja o direito francês, odireito inglês e o direito norte-americano e cujo termoa comparar seja o valor do montante da indenizaçãodecorrente de responsabilidade civil por danoextracontratual.

Trata-se de uma pesquisa de responsabilidade civilpor dano extracontratual (termo a comparar)abrangendo um comparandum singular – o direitobrasileiro – e um comparatum múltiplo – os direitosfrancês, inglês e norte-americano.[4]

A despeito de tal aspecto esquemático e

Este libro forma parte del acervo de la Biblioteca Jurídica Virtual del Instituto de Investigaciones Jurídicas de la UNAM www.juridicas.unam.mx https://biblio.juridicas.unam.mx/bjv

DR © 2017. Instituto Brasileiro de Pesquisa Jurídica - IBPJ

Libro completo en: https://goo.gl/HhQERt

Page 7: 1. BREVE INTRODUÇÃO AO DIREITO COMPARADO GERAL E … · e do Direito Constitucional ... já se constitui em um conjunto de conhecimentos ... preocupa-se com o conhecimento do direito

Luís Fernando Sgarbossa

Geziela Iensue

20

essencialmente lógico da comparação, a literaturadedicada ao tema adverte para o fato de não existir umúnico método comparativo, mas vários.

É comum a alusão ao método comparativo-descritivo, assim entendida a comparação que se situano nível dos componentes elementares de um sistemajurídico – as normas. Também é conhecida a alusão aum método dito técnico-comparativo, cujo escopo éum pouco mais amplo, situando-se no nível dasinstituições jurídicas - como a propriedade, omatrimônio ou o controle de constitucionalidade, porexemplo.

Fala-se, ainda, em um método estrutural-comparativo, com enfoque mais amplo, que visacompreender o sistema jurídico de maneira ampla,enfatizando sua estrutura geral (abrangendo grandesdivisões, conceitos, a concepção da norma jurídica,entre outros aspectos, como ensina René David).

O método mais recente e que tem sido consideradoa “virada copernicana” no campo juscomparativo, noentanto, tem sido o método funcional-comparativo.

Tal método parte de um problema qualquer einvestiga, de maneira ampla, que normas ou instituiçõesde diferentes sistemas jurídicos tentam resolvê-lo.

É um método que enfatiza o estudo de casos e abusca da comparação de suas soluções, onde quer queestejam elas – seja na responsabilidade penal, civil,administrativa, política ou outra, por exemplo.

Tem sido considerado um método superior pormuitos, na medida em que possibilitaria uma visão maisacurada dos sistemas jurídicos, evitando conclusõesequivocadas baseadas em falsas analogias ouincompreensões devidas à assimetria dos diversossistemas jurídicos.

Este libro forma parte del acervo de la Biblioteca Jurídica Virtual del Instituto de Investigaciones Jurídicas de la UNAM www.juridicas.unam.mx https://biblio.juridicas.unam.mx/bjv

DR © 2017. Instituto Brasileiro de Pesquisa Jurídica - IBPJ

Libro completo en: https://goo.gl/HhQERt

Page 8: 1. BREVE INTRODUÇÃO AO DIREITO COMPARADO GERAL E … · e do Direito Constitucional ... já se constitui em um conjunto de conhecimentos ... preocupa-se com o conhecimento do direito

Direito Constitucional em Perspectiva Comparativa

21

É considerado superior, também, por favorecer oestudo de sistemas bastante distintos entre si, o que nãosignifica que tal método também não tenha sido objetode críticas.

Inúmeros outros aspectos relevantes e importantesfazem parte do universo analítico, teórico emetodológico do Direito Comparado.

A título de exemplo, o problema da circulação demodelos e da recepção de direito é um tema exploradopor muitos estudos de Direito Comparado.[5]

Ainda, o problema dos formantes jurídicos e dos“criptotipos”, levantado por Rodolfo Sacco edesenvolvido no âmbito das teorias críticas da Escolade Turim.[6]

Outras questões, mais propriamente metodológicas,como as questões relativas aos limites datraduzibilidade, a técnica da “homologação” e outrasrelativas a questões linguísticas também poderiam serobjeto de exame.[7]

Para fins do presente estudo, no entanto, as brevespremissas analíticas, teóricas e metodológicas oralevantadas são suficientes para avançar, eis que seuobjeto não é apenas de Direito Comparado, mas deDireito Constitucional Comparado, especializaçãodaquele.

Diante disso, o tópico sucessivo irá rememorar aoleitor aspectos básicos do Direito Constitucional eintroduzi-lo ao Direito Constitucional Comparado,preparando, assim, os tópicos seguintes.

Este libro forma parte del acervo de la Biblioteca Jurídica Virtual del Instituto de Investigaciones Jurídicas de la UNAM www.juridicas.unam.mx https://biblio.juridicas.unam.mx/bjv

DR © 2017. Instituto Brasileiro de Pesquisa Jurídica - IBPJ

Libro completo en: https://goo.gl/HhQERt

Page 9: 1. BREVE INTRODUÇÃO AO DIREITO COMPARADO GERAL E … · e do Direito Constitucional ... já se constitui em um conjunto de conhecimentos ... preocupa-se com o conhecimento do direito

Luís Fernando Sgarbossa

Geziela Iensue

22

1.2. Direito Constitucional Comparado

Após a brevíssima aproximação ao DireitoComparado Geral realizada no tópico anterior, convémingressar no âmbito do Direito ConstitucionalComparado, a partir de um resgate inicial de temas deDireito Constitucional Geral.

Primeiramente devem ser recordados alguns dossentidos das expressões constituição, DireitoConstitucional e constitucionalismo.

Constituição é expressão ambígua, equívoca eplurívoca. Entre os diversos sentidos possíveis, algunssão imprescindíveis para o presente estudo.

Primeiramente, do ponto de vista da Teoria doDireito, a constituição pode ser concebida em sentidomaterial e em sentido formal.

Em sentido material, uma constituição seria umanorma ou conjunto de normas sobre a produção dasdemais normas de um sistema jurídico (KELSEN,2003).

Ou seja, do ponto de vista de autores como Kelsen,o conceito de constituição em sentido materialcorresponderia àquelas normas que estabeleceriamcomo podem ser criadas outras normas no sistema –quais os órgãos competentes, quais os procedimentos, eassim por diante.[8]

Em sentido formal, por outro lado, constituição seriauma norma ou conjunto de normas dotadas dedeterminadas características formais essenciais.

Nesse sentido, normas constitucionais seriamaquelas que não reconheceriam quaisquer outrasnormas de direito positivo a elas superiores, tendocomo traços característicos a supremacia (ousupralegalidade) e a rigidez (ou imodificabilidade

Este libro forma parte del acervo de la Biblioteca Jurídica Virtual del Instituto de Investigaciones Jurídicas de la UNAM www.juridicas.unam.mx https://biblio.juridicas.unam.mx/bjv

DR © 2017. Instituto Brasileiro de Pesquisa Jurídica - IBPJ

Libro completo en: https://goo.gl/HhQERt

Page 10: 1. BREVE INTRODUÇÃO AO DIREITO COMPARADO GERAL E … · e do Direito Constitucional ... já se constitui em um conjunto de conhecimentos ... preocupa-se com o conhecimento do direito

Direito Constitucional em Perspectiva Comparativa

23

relativa) (KELSEN, 2003).A supremacia significa exatamente que as normas

constitucionais ocupariam a posição hierárquica maiselevada na estrutura escalonada do ordenamentojurídico positivo, constituindo a fonte de validade detodas as demais normas jurídicas.

A imodificabilidade relativa, por sua vez, significaque tais normas não poderiam ser alteradas pelomesmo procedimento legislativo que as demais normasintegrantes do ordenamento jurídico, exigindo processomais difícil ou gravoso (traduzido na exigência de ummaior número de turnos, de quóruns qualificados, ououtras exigências formais).

Das duas características formais mencionadas,decorre que quaisquer normas que delas se revistamintegram a constituição formal – independentementeda matéria ou conteúdo de que tratem. Decorre, ainda,a invalidade das disposições infraconstitucionais –notadamente legais – que contrariem normasconstitucionais.

É de tal distinção basilar entre normasconstitucionais e normas infraconstitucionais – queremonta, em última análise, à distinção de Sieyès entrepoder constituinte e poderes constituídos – quedecorre a noção de inconstitucionalidade – examinadaadiante – e, consequentemente, os institutoscontemporâneos de controle de constitucionalidade.

Além dos sentidos de constituição, aqui brevementeexplorados, há que se chamar a atenção para o sentidomais comum na teoria constitucional, que poderia serdenominado de noção garantista de constituição.

De um ponto de vista histórico, a expressãoconstituição começou a ser utilizada há muito paradesignar o conjunto de princípios constitutivos de uma

Este libro forma parte del acervo de la Biblioteca Jurídica Virtual del Instituto de Investigaciones Jurídicas de la UNAM www.juridicas.unam.mx https://biblio.juridicas.unam.mx/bjv

DR © 2017. Instituto Brasileiro de Pesquisa Jurídica - IBPJ

Libro completo en: https://goo.gl/HhQERt

Page 11: 1. BREVE INTRODUÇÃO AO DIREITO COMPARADO GERAL E … · e do Direito Constitucional ... já se constitui em um conjunto de conhecimentos ... preocupa-se com o conhecimento do direito

Luís Fernando Sgarbossa

Geziela Iensue

24

sociedade politicamente organizada (nesse sentidofalava-se, por exemplo, em constituição de Atenas, ouconstituição de Esparta, e assim por diante).

Tal uso da expressão constituição perdurou durantemuito tempo, utilizando-se frequentemente a expressão“constituição política” para descrever o conjunto deprincípios, normas e instituições que regiam um reino,um império, uma república ou, mais recentemente, umEstado.

A constituição política traduzia, portanto, umconjunto de instituições que conferiam ascaracterísticas básicas essenciais sobre a origem, oexercício e a forma de transmissão ou exercício dopoder (opondo repúblicas a monarquias, democracia eautocracia, por exemplo), entre outros aspectos.

A partir das revoluções liberais dos séculos XVII eXVIII, no entanto, a expressão constituição sofreu umaressignificação.

Referidas revoluções, como é sabido, puseram fim aoAntigo Regime, acabaram com as sociedadesestamentais estratificadas e hierarquizadas e com osprivilégios de castas, bem como aos Estadosabsolutistas.

As monarquias absolutistas, como se sabe, eramcaracterizadas pela concentração de todos os poderes efunções políticas em mãos do monarca, que os exerciadiretamente ou por órgãos delegados. Sua marca era,sabidamente, a ausência de limites ao poder político,concebendo-se o soberano como livre de amarras oulimites jurídicos – legibus solutus – e,consequentemente, detentor de poderes de vida emorte sobre o súdito (recorde-se, entre todos, asconcepções de Thomas Hobbes no Leviatã).

Sob tais sistemas políticos, o poder político era

Este libro forma parte del acervo de la Biblioteca Jurídica Virtual del Instituto de Investigaciones Jurídicas de la UNAM www.juridicas.unam.mx https://biblio.juridicas.unam.mx/bjv

DR © 2017. Instituto Brasileiro de Pesquisa Jurídica - IBPJ

Libro completo en: https://goo.gl/HhQERt

Page 12: 1. BREVE INTRODUÇÃO AO DIREITO COMPARADO GERAL E … · e do Direito Constitucional ... já se constitui em um conjunto de conhecimentos ... preocupa-se com o conhecimento do direito

Direito Constitucional em Perspectiva Comparativa

25

exercido de cima para baixo, sem mecanismos departicipação dos súditos – pelo menos dos plebeus – natomada de decisões. O fundamento de legitimidade dopoder era a doutrina da origem divina deste, nãoradicando no consentimento dos governados.

A lei era concebida como decorrência da vontade dosoberano, e era difundida a concepção de que este nãopodia ser por ela limitado. As sociedades eram divididasem castas fechadas, como a nobreza, o clero e osplebeus, cada um gozando de estatutos jurídicospróprios.

As nobres e clero reservavam-se inúmerosprivilégios, ao passo que para os plebeus abundavam asobrigações e os deveres. Não havia igualdade políticaou jurídica, abundando as discriminações baseadas emcasta, religião ou outros critérios.

Com base em valores como liberdade, igualdade efraternidade, as revoluções liberais propuseram-se areformular radicalmente as bases da sociedade.

Bem ou mal, de maneira mais ou menos efetiva emdiferentes lugares, de sobressalto em certos países oumais vagarosamente em outros, foram se estabelecendolimites ao poder do soberano, foram se transformandoas relações entre governantes e governados, foramsendo extintas as distinções de casta, foram sendoextintos os órgãos de caráter estamental.

A afirmação da liberdade política e jurídica implicouuma série de restrições ao poder político.Estabeleceram-se constituições que passavam a serconcebidas como normas que limitavam o poder dosmonarcas ou dos órgãos que exerciam o poder político(CANOTILHO, 2003).

Uma das principais técnicas utilizadas para tanto eraa da separação dos poderes, baseada no pressuposto da

Este libro forma parte del acervo de la Biblioteca Jurídica Virtual del Instituto de Investigaciones Jurídicas de la UNAM www.juridicas.unam.mx https://biblio.juridicas.unam.mx/bjv

DR © 2017. Instituto Brasileiro de Pesquisa Jurídica - IBPJ

Libro completo en: https://goo.gl/HhQERt

Page 13: 1. BREVE INTRODUÇÃO AO DIREITO COMPARADO GERAL E … · e do Direito Constitucional ... já se constitui em um conjunto de conhecimentos ... preocupa-se com o conhecimento do direito

Luís Fernando Sgarbossa

Geziela Iensue

26

tendência ao abuso do poder por quem o exerce.Assim, buscou-se organizar o Estado por meio deconstituições que atribuíssem diferentes parcelas depoder – ou funções estatais –, como as de legislar,administrar e julgar, a órgãos distintos e independentesentre si (BONAVIDES, 2008).

Além disso, o poder dos monarcas ou governantes,antes limitado apenas pelos privilégios dos nobres e doclero, sob o constitucionalismo medieval que vigoroudos séculos XIII a XVIII (CANOTILHO, 2003) agorapassava a ser limitado por direitos conferidos àpopulação de maneira ampla.

Assim, garantias contra a privação arbitrária da vida,da liberdade e dos bens passaram a ser estabelecidas emfavor de todos os cidadãos, e não mais em favor apenasde certas castas. Esses institutos originarãoposteriormente os denominados direitos, liberdades egarantias fundamentais, igualmente previstos emconstituições e cuja função era a de limitar o poderpolítico em face dos cidadãos.

Este movimento de limitação do poder político,surgido a partir dos séculos XVII-XVIII passou a serconhecido como constitucionalismo moderno.[9]

Consistia em um amplo movimento social, político,jurídico, cultural, que defendia a proteção da liberdade eda segurança individuais e, para tanto, a limitação dopoder do Estado por meio da adoção de constituiçõesbaseadas em direitos e garantias fundamentais,separação dos poderes, federalismo e outras técnicas(CANOTILHO, 2003).

Tal movimento associou dali por diante a noção deconstituição com a ideia de limitação jurídica do podere, consequentemente, à noção de Estado de Direito erule of law.

Este libro forma parte del acervo de la Biblioteca Jurídica Virtual del Instituto de Investigaciones Jurídicas de la UNAM www.juridicas.unam.mx https://biblio.juridicas.unam.mx/bjv

DR © 2017. Instituto Brasileiro de Pesquisa Jurídica - IBPJ

Libro completo en: https://goo.gl/HhQERt

Page 14: 1. BREVE INTRODUÇÃO AO DIREITO COMPARADO GERAL E … · e do Direito Constitucional ... já se constitui em um conjunto de conhecimentos ... preocupa-se com o conhecimento do direito

Direito Constitucional em Perspectiva Comparativa

27

Assim surgiu o mencionado conceito garantista deconstituição, segundo o qual esta é concebida como umconjunto de normas cuja finalidade principal é aproteção do indivíduo em face do poder político(BONAVIDES, 2008).

Tal noção encontra-se diretamente vinculada à noçãode Estado de Direito e de governo de leis e não dehomens, associada, portanto, à ideia de Estado liberalou constitucional, oposto do Estado absolutista.

Assim a constituição, em um sentido garantista,consistiria em um conjunto de normas e instituiçõeslimitadoras do poder político (em princípio) eprotetivas da liberdade e segurança do indivíduo,especialmente (mas não somente) de sua vida, liberdadee bens.

Revisadas algumas das principais acepções deconstituição, resta examinar brevemente dois possíveissignificados para a expressão Direito Constitucional.

Há que se distinguir, ainda, Direito Constitucionalem sentido objetivo e Direito Constitucional comoramo da ciência jurídica. Em sentido objetivo,considera-se Direito Constitucional o conjunto denormas que cria e organiza determinado Estado e seuordenamento jurídico, comumente limitando o poderpolítico por determinadas técnicas, como a separaçãode poderes e o estabelecimento de direitos e garantiasfundamentais.

Tais normas comumente são consideradas superioresa todas as demais do ordenamento jurídico e sãodotadas de maior rigidez, demandando procedimentosespeciais e mais difíceis de alteração, como jámencionado. Além disso, contam com mecanismosespeciais de proteção (controle de constitucionalidade).

Em tal acepção o Direito Constitucional

Este libro forma parte del acervo de la Biblioteca Jurídica Virtual del Instituto de Investigaciones Jurídicas de la UNAM www.juridicas.unam.mx https://biblio.juridicas.unam.mx/bjv

DR © 2017. Instituto Brasileiro de Pesquisa Jurídica - IBPJ

Libro completo en: https://goo.gl/HhQERt

Page 15: 1. BREVE INTRODUÇÃO AO DIREITO COMPARADO GERAL E … · e do Direito Constitucional ... já se constitui em um conjunto de conhecimentos ... preocupa-se com o conhecimento do direito

Luís Fernando Sgarbossa

Geziela Iensue

28

corresponde ao direito constitucional positivo dedeterminado Estado específico (direito constitucionalbrasileiro, argentino ou alemão, por exemplo, entreoutros).

Além desse sentido, resta evidente que DireitoConstitucional significa, também, o ramo da CiênciaJurídica que se dedica ao estudo das normasconstitucionais positivas (ou seja, do DireitoConstitucional em sentido objetivo), normalmenteabordando um ordenamento jurídico constitucionalpositivo específico (distinguindo-se, assim, do DireitoConstitucional Geral ou Teoria Constitucional).

Ou seja, o objeto do Direito Constitucionalenquanto ramo da Ciência Jurídica é o direitoconstitucional positivo, ou Direito Constitucionalobjetivo – embora isso abranja, necessariamente, umaTeoria da Constituição.[10]

Diante disso e do que se afirmou sobre o DireitoComparado no tópico anterior, deve ficar claro aoleitor que a expressão Direito ConstitucionalComparado refere-se a um ramo da Ciência do Direito.

Trata-se do ramo da Ciência Jurídica que se dedicaao estudo do Direito Constitucional objetivo de dois oumais sistemas jurídicos nacionais, por meio deabordagem comparativa.

Assim como afirmado acerca do Direito Comparadoem geral, o Direito Constitucional Comparado situa-sea meio caminho da dogmática constitucional – doutrinasobre um sistema constitucional específico – e daTeoria da Constituição – teorizações sobre o DireitoConstitucional em geral, sem ater-se a sistemasconstitucionais positivos específicos.

Consiste em um conjunto de estudosmetodologicamente orientados e em um conjunto de

Este libro forma parte del acervo de la Biblioteca Jurídica Virtual del Instituto de Investigaciones Jurídicas de la UNAM www.juridicas.unam.mx https://biblio.juridicas.unam.mx/bjv

DR © 2017. Instituto Brasileiro de Pesquisa Jurídica - IBPJ

Libro completo en: https://goo.gl/HhQERt

Page 16: 1. BREVE INTRODUÇÃO AO DIREITO COMPARADO GERAL E … · e do Direito Constitucional ... já se constitui em um conjunto de conhecimentos ... preocupa-se com o conhecimento do direito

Direito Constitucional em Perspectiva Comparativa

29

conhecimentos sistematizados sobre dois ou maissistemas constitucionais, a partir de uma perspectivacomparativa e com auxílio de outros métodos, como ohistórico.

É, desse modo, ramo da Ciência Jurídica e, maisespecificamente, ramo do Direito Comparado. Não é,por outro lado, ramo do direito positivo, posto tratar-sede atividade e de conhecimento científico, não setraduzindo em um conjunto de normas estabelecidaspor um órgão político com objetivo de regular ocomportamento de quem quer que seja.[11]

Este é, portanto, o conceito e o estatutoepistemológico do Direito Constitucional Comparado.Quanto aos aspectos metodológicos, o que foi ditopara o Direito Comparado em geral aplica-se àquele, demaneira geral.

Examinados estes tópicos introdutórios, torna-sepossível adentrar os tópicos essenciais do DireitoConstitucional comparado, o que se fará a partir docapítulo sucessivo.

Este libro forma parte del acervo de la Biblioteca Jurídica Virtual del Instituto de Investigaciones Jurídicas de la UNAM www.juridicas.unam.mx https://biblio.juridicas.unam.mx/bjv

DR © 2017. Instituto Brasileiro de Pesquisa Jurídica - IBPJ

Libro completo en: https://goo.gl/HhQERt