02 sincretismo e teologia

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Sincretismo e teologia interconfessional * Afonso Maria Ligorio Soares * Este texto pretende defender, da maneira mais sucinta possível, o valor teológico do sincretismo religioso, inserindo-o na dinâmica da revelação. O sincretismo é parte irrecusável da história dos encontros e desencontros entre o divino e o humano, captados em seu “durante”, e que, justamente por isso, escapam de definições e/ou inferências cabais. Seja Deus evidente, misterioso ou simplesmente problemático, não há outra maneira de a ele acedermos senão fragmentariamente. Proponho a discussão, em forma de pequenas teses, procurando sugerir às leitoras e leitores que o sincretismo é a revelação de Deus em ato, ou seja aquilo que vai acontecendo quando se processa paulatinamente, entre avanços e retrocessos, luzes e penumbra, nosso mergulho no Mistério. Imaginá-lo de outro modo é simplesmente negar que possa ser humano e histórico esse nosso encontro com Deus. A teologia do sincretismo, em sintonia com a teologia negra e as várias teologias que partem da experiência autóctone, parece, portanto, confluir na direção de uma proposta pluralista que, no entanto, precisa ser examinada com o devido cuidado, pois nem tudo cabe numa sociedade em que todos cabem. 1 Há quem já comece a sugerir para essa nova configuração o nome de teologia multirreligiosa, interfaith theology ou teologia inter e até transconfessional. 2 * O presente artigo é parcialmente baseado no cap. 6 de SOARES, AM.L. No espírito do Abbá: fé, revelação e vivências plurais. São Paulo: Paulinas, 2008. * Afonso M. L. Soares é Professor Livre-docente em Teologia pela PUC-SP e presidente da Soter – Sociedade de Teologia e Ciências da Religião. Leciona e pesquisa no Programa de Estudos Pós-graduados em Ciências da Religião da mesma Universidade. 1 Cf. SOARES, AM.L. Valor teológico do sincretismo numa perspectiva de teologia pluralista. In: VIGIL, J. M.; TOMITA, L. E.; BARROS, M. Teología liberadora intercontinental del pluralismo religioso. Quito: Abya Yala, 2006. pp. 77-91. 2 Cf. o 5º v. da coleção de ASETT/EATWOT: Por los muchos caminos de Dios. Quito: Abya Yala, 2009 (Ed. bras.: Paulinas, no prelo). Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano VI, n. 27 32

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Sincretismo

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  • Sincretismo e teologia interconfessional *

    Afonso Maria Ligorio Soares*

    Este texto pretende defender, da maneira mais sucinta possvel, o valor teolgico do

    sincretismo religioso, inserindo-o na dinmica da revelao. O sincretismo parte irrecusvel

    da histria dos encontros e desencontros entre o divino e o humano, captados em seu

    durante, e que, justamente por isso, escapam de definies e/ou inferncias cabais. Seja Deus

    evidente, misterioso ou simplesmente problemtico, no h outra maneira de a ele acedermos

    seno fragmentariamente.

    Proponho a discusso, em forma de pequenas teses, procurando sugerir s leitoras e

    leitores que o sincretismo a revelao de Deus em ato, ou seja aquilo que vai acontecendo

    quando se processa paulatinamente, entre avanos e retrocessos, luzes e penumbra, nosso

    mergulho no Mistrio. Imagin-lo de outro modo simplesmente negar que possa ser humano

    e histrico esse nosso encontro com Deus. A teologia do sincretismo, em sintonia com a

    teologia negra e as vrias teologias que partem da experincia autctone, parece, portanto,

    confluir na direo de uma proposta pluralista que, no entanto, precisa ser examinada com o

    devido cuidado, pois nem tudo cabe numa sociedade em que todos cabem.1 H quem j

    comece a sugerir para essa nova configurao o nome de teologia multirreligiosa, interfaith

    theology ou teologia inter e at transconfessional.2

    * O presente artigo parcialmente baseado no cap. 6 de SOARES, AM.L. No esprito do Abb: f, revelao e vivncias plurais. So Paulo: Paulinas, 2008. * Afonso M. L. Soares Professor Livre-docente em Teologia pela PUC-SP e presidente da Soter Sociedade de Teologia e Cincias da Religio. Leciona e pesquisa no Programa de Estudos Ps-graduados em Cincias da Religio da mesma Universidade. 1 Cf. SOARES, AM.L. Valor teolgico do sincretismo numa perspectiva de teologia pluralista. In: VIGIL, J. M.; TOMITA, L. E.; BARROS, M. Teologa liberadora intercontinental del pluralismo religioso. Quito: Abya Yala, 2006. pp. 77-91. 2 Cf. o 5 v. da coleo de ASETT/EATWOT: Por los muchos caminos de Dios. Quito: Abya Yala, 2009 (Ed. bras.: Paulinas, no prelo).

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    Sincretismo como pluralismo em ato

    O sincretismo faz parte das relaes histricas entre as religies. At quem o rejeita, em geral o faz a partir de uma religio que tambm , em alguma medida, sincrtica.

    Da pluralidade dos termos que disputam a ateno da teologia pluralista, ns j falamos

    logo no incio deste ensaio. Mas a realidade mesma do sincretismo e da dupla vivncia

    religiosa continua sendo um dos pontos mais delicados e controversos do dilogo inter e intra-

    religioso. Tanto os telogos catlicos mais afinados com o paradigma romano quanto os mais

    sensibilizados pelas CEBs reconhecem a dificuldade doutrinal que representam as vrias

    comunidades latino-americanas mergulhadas em um cristianismo popular que no abre mo de

    milenares tradies espirituais.

    Ressalte-se, porm, que a vivncia sincrtica do cristianismo no uma inveno de

    indgenas latino-americanos e afrodescendentes. Ocorre na histria dos povos um autntico

    jogo dialtico em que, primeiramente, o povo vencedor tenta impor-se eliminando a religio do

    povo vencido (anttese); em seguida, o dominador acaba aceitando os elementos mais vlidos

    ou mais fortes dos oprimidos (tolerncia, coexistncia pacfica); no final, chega-se a uma

    sntese. O cristianismo, por ser uma religio universalista, no pde se subtrair ao sincretismo,

    j que chamou sobre si a responsabilidade de conter, em princpio, toda a pluralidade

    encontrvel no gnero humano.

    A atual hierarquia catlica, embora com mais pudor, ainda reluta quanto melhor

    maneira de lidar com a espiritualidade sincrtica. No fundo, por uma questo de poder.

    Todavia, indiferentes controvrsia, grandes segmentos da populao de nossos pases

    continuam cultuando seus deuses e observando alguns ritos cristos, plenamente convencidos de

    que tais modos de compreender e praticar a religio so seguramente catlicos. Eu sou catlica

    apostlica romana espiritista, graas a Deus, me dizia certa vez uma ialorix.

    certamente distinto abordar tais interaes do ponto de vista da cincia da religio e

    do lugar da teologia. No entanto, os estudos culturais pem uma boa dose de realismo nas

    aferies teolgicas quando mostram a falta de consenso para se estabelecer os critrios que

  • Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano VI, n. 27 34

    ?

    definem uma traduo cultural ou um hibridismo incorreto. O conselho que nos vem desses

    estudiosos ter a sensatez de levar em considerao as prticas sincrticas persistentes, sem

    deixar de pr ateno nos pontos de vista da parte reclamante, a saber, aqueles que viram

    determinado item de seu sistema de crenas ser apropriado por outrem e no gostaram da

    adaptao.

    H sempre a sada, algo idealista, de propor que seja banido para sempre do mundo

    teolgico o conceito de sincretismo, pois um sincretismo correto e ortodoxo recebe hoje a

    denominao de inculturao, que no vem carregada por leituras negativas do passado como se

    d com o termo sincretismo.3 A questo saber at que ponto podemos avanar na segurana

    de estarmos em um sincretismo correto e ortodoxo. Ser que todos os elementos de dada cultura

    ou religio so plenamente traduzveis em outro cdigo lingstico-dogmtico

    Parece que no. As variveis sincrticas so justamente o rastro que vai ficando ao longo

    do caminho da autocomunicao de Deus na histria. Porque sentem essa presso reveladora do

    divino em suas vidas, mas no tm tempo e condies de calar sua resposta enquanto no

    conseguem elabor-la cabalmente, indivduos e comunidades vo se arriscando, de tentativa em

    tentativa, a traduzir suas descobertas e experincias com a linguagem que tm disposio.

    Desafio parte para a teologia fundamental seria averiguar aquilo que em uma dada

    poca, cultura ou regio mais resiste a ser traduzido ou inreligionado, e tambm aqueles

    elementos que inexoravelmente vo-se perdendo no processo de traduo ou recriao da

    Tradio.

    O sincretismo mais se parece a uma constante antropolgica e deve ser estudado com os melhores recursos da cincia, independentemente de nossos pressupostos axiolgicos.

    revelia dos interditos teolgico-eclesiais, o tema das bricolagens e hibridismos

    culturais seguiu seu caminho na literatura cientfica. Alguns o abordam a partir da teoria

    evolucionista; outros preconizam o culturalismo e vem-no como etapa que inclui conflitos,

    acomodao e assimilao rumo desejada aculturao; outros ainda inauguram uma fase de

    3 Cf. MIRANDA, M. DE F. Inculturao da f; uma abordagem teolgica. SP: Loyola, 2003. pp. 107-127; aqui: 287.

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    explicaes mais sociolgicas, analisando a capacidade do nativo digerir a seu modo a

    novidade aliengena; e assim por diante. O certo mesmo que vo caindo, um a um, os mitos

    de outrora: a tese do sincretismo como mscara colonial para driblar a dominao; a hiptese

    do sincretismo como estratgia de resistncia; a sinonmia com justaposio, colcha de

    retalhos, bricolagem (Lvi-Strauss) ou aglomerado indigesto (Gramsci), pois, no explicariam

    os casos em que a religio permanece como um todo integrado. Tem-se maior conscincia do

    preo que pagaram certos conceitos por estarem atrelados a determinadas teorias. Ou ainda, do

    reducionismo de ver o sincretismo num arco de bipolaridades do tipo pureza versus mistura,

    separao versus fuso etc.

    Pode ajudar-nos neste cipoal de terminologias e usos ideolgicos a sntese proposta por

    Srgio Ferretti, que inclui no guarda-chuva do sincretismo uma escala de zero a trs, em que

    zero seria a hipottica separao entre duas religies que jamais se tocaram, o nvel um

    consistiria nas primeiras misturas, junes ou fuses inter-religiosas, o nvel dois contemplaria

    a construo de paralelismos ou justaposies entre smbolos e signos religiosos, chegando-se,

    enfim, ao nvel trs, da convergncia ou adaptao.

    A questo, portanto, no se somos ou no sincrticos uma atenta resenha dos bons

    estudos culturais disponveis demonstra inequivocamente que, mais ou menos, o somos todos ,

    mas at que ponto da estrada queremos ou agentamos ir nesse intercmbio, sem prejuzo da

    inspirao crist original. Chamemos essa traduo de inculturao ou de sincretismo

    ortodoxo, o importante ir aprendendo a detectar nesse processo de emprstimos quando o

    mesmo comandado por delimitaes fora das quais j no se percebe nenhum continuum com a

    tradio crist.

    O sincretismo , antes de tudo, uma prtica que antecede nossas opes tericas e bandeiras ideolgicas.

    Este livro pretendeu to somente trazer luz experincias que, porventura, ainda se

    sujeitem s catacumbas religiosas. No estamos lanando nenhuma campanha em prol da

    sincretizao ampla, geral e irrestrita de todas as religies. Trata-se, em primeiro lugar, de

    reconhecer o sincretismo de fato; s depois pode ter algum sentido a pergunta sobre o que

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    poderamos aprender teologicamente desse dado real. Portanto, ningum deve ser obrigado a

    participar de tais experincias nem a escond-las por medo de represlias. No entanto, como se

    viu anteriormente, ambos os extremos s vezes so detectados na membresia crist, que oscila

    entre a tolerncia prtica em nome da caridade e o repdio oficial.4

    A bem da verdade, nem sempre fcil explicar o que move um processo de doao e

    recepo de valores e objetos culturais, que critrios presidem tais escolhas e quais sujeitos

    conduzem, se que conduzem, essas reconfiguraes e reordenaes. Os estudos culturais se

    servem de vrios conceitos a fim de no reduzir a complexidade de tal comrcio de bens

    simblicos. Falam de apropriao ou traduo cultural para destacar o papel do agente humano,

    mas preferem hibridismo ou crioulizao para mostrar que, muitas vezes, as modificaes

    resultantes naquela cultura ou religio ocorrem sem que os agentes envolvidos tenham

    conscincia.5

    De outro lado, seria ingnuo desconsiderar que muito das prticas sincrticas vividas

    por nossa gente so fruto da maneira violenta com que o cristianismo se imps, dentro e fora

    da Europa, s restando s pessoas hbitos enviezados, camuflados e fragmentares de suas

    tradies. Por isso, so alvissareiros os movimentos hodiernos de retomada dessas tradies

    ancestrais, que evitam pagar pedgio a rituais cristos/catlicos. A seu modo, recolocam as

    tradies autctones e as transplantadas em p de igualdade diante da herana crist, com o

    mesmo direito de existncia e expresso. Mas nem por isso a rejeio ao sincretismo implica

    repudiar o catolicismo. Para as lideranas de religies afro-brasileiras, por exemplo, basta que

    o iniciado tenha na conta que orixs e santos catlicos so energias diferentes.

    Quanto ao caso dos Agentes de Pastoral Negros (APNs), em sua maioria, catlicos que

    pretendem resgatar as tradies negras e reafirmar sua identidade cultural, a questo toma um

    novo colorido. Muitos deles chegaram s portas de uma dupla vivncia religiosa, ou de uma

    experincia irradiada em distintas expresses como conseqncia de uma opo tico-

    ideolgica prvia. E esto tendo de enfrentar o srio questionamento sobre as fronteiras seguras

    dessa viagem crist em busca do resgate das autnticas razes africanas. A questo a mesma

    4 Cf., por ex.: SOARES, A.M.L. Interfaces da revelao: pressupostos para uma teologia do sincretismo religioso. So Paulo: Paulinas, 2003. pp. 59-69; 72-91. 5 BURKE, P., Hibridismo cultural. S. Leopoldo: Unisinos, 2003. pp. 39-63.

  • Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano VI, n. 27 37

    em qualquer latitude: posso ser aimara e cristo, hindu e seguidor do evangelho, chins e

    participante da missa dominical, banto e crente na ressurreio?

    Uma vez admitido com tranqilidade que tais conexes j so feitas na prtica,

    podemos passar a um ponto seguinte: essa situao de fato, e no fabricada artificialmente,

    tambm tem algo a nos ensinar do ponto de vista no apenas da teologia pastoral, mas

    propriamente da teologia das religies.

    A dupla vivncia religiosa um dos possveis desdobramentos naturais do dilogo inter-religioso, tendo no limiar o sincretismo.

    Se o termo no unnime, ao menos h sensveis avanos quanto aceitao ou

    tolerncia da realidade representada pelo termo. Na base dessa nova disposio esto, por

    exemplo, as decises do Conclio Vaticano II com relao ao ecumenismo e ao dilogo com as

    demais religies. Caso exemplar no Brasil foi o de Dom Boaventura Kloppenburg. At as

    vsperas do referido Conclio, seus escritos continham um indisfarvel sabor apologtico

    contra espritas e umbandistas. Era um sincretismo, confessar ele, mais tarde, que me

    parecia inaceitvel do ponto de vista de uma vida autenticamente crist.6 Anos mais tarde,

    inspirado no Conclio e referindo-se Mensagem Africae Terrarum de Paulo VI, ele assevera: O africano, quando se torna cristo, no renega a si mesmo, mas retoma os antigos valores da

    tradio em esprito e em verdade. Ns, porm, porque ramos europeus, ocidentais, da Igreja latina (...)

    incapazes de imaginar uma dana sacra ao toque dos tambores; ns queramos que o africano, s porque

    morava ao nosso lado, deixasse de ser africano (...) Era o etnocentrismo total e orgulhoso dos europeus e

    da Igreja que vinha da Europa. Mas o negro, quando se tornou livre, (...) voltou ao terreiro, ao tambor, ao

    ritmo de sua origem e aos mitos de sua linguagem. Da profundidade do seu ser (...) irrompeu a velha

    tradio religiosa da frica Negra...7

    parte eventuais imprecises nos termos referentes ao universo afro, o testemunho de

    Kloppenburg d o tom das dcadas seguintes, como vimos ao comentar a dupla vivncia de

    6 Cf. KLOPPENBURG, B. Os afro-brasileiros e a umbanda. In: CELAM. Os grupos afro-americanos. S. Paulo: Paulinas, 1982. pp. 185-211. 7 Cf. IDEM. Ensaio de uma nova posio pastoral perante a umbanda. In: REB, 28, pp. 404-417 (aqui: p. 410). O artigo foi reeditado em REB, 42, pp. 506-527. A Mensagem Africae Terrarum do papa Paulo VI foi a pblico em 29/out./1967.

  • Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano VI, n. 27 38

    padre Franois de L'Espinay, que foi ministro de Xang no Il Ax Op Aganju, de Salvador da

    Bahia. Ou em experincias ainda mais desconcertantes, como aquela do templo paulistano de

    Jos Carlos de Lima, que atua na Comunidade Catlica Apostlica Espiritualista de Nosso

    Senhor do Bonfim como padre e zelador-de-santo.

    O projeto de Lima extremamente iluminador. Ele representa um movimento

    importante em parcelas significativas da populao latino-americana e comuns tambm na

    frica: ancoradas em sua religio e cultura de origem ou nos traos mais profundos que

    delas restaram vo ao encontro do cristianismo para extrair dele tudo aquilo que possa

    enriquecer sua prpria experincia de bero. No do a mnima importncia para nosso orgulho

    ocidental ferido. Imaginam que, se h algo bom e verdadeiro na tradio crist, eles tambm

    tm o direito de saborear. A seu modo.

    Mesmo a trajetria neo-esotrica de algumas comunidades-buscadoras-de-ovnis8, no

    deixa de ser uma espcie de dupla vivncia na fronteira entre lgica cientfica e pensamento

    mgico. Refratrios ao discurso religioso tradicional, esses uflogos espiritualizados que

    provavelmente contriburam para aumentar o percentual dos sem-religies no ltimo censo

    demogrfico brasileiro9, alimentam-se de uma srie de informaes de livros de divulgao

    cientfica e, confiantes no testemunho referencial10 de um lder presumidamente abduzido por

    seres extraterrestres sensivelmente mais adiantados filosfica e tecnologicamente, regurgitam

    esses dados na forma de uma cripto-religio de perfil utpico-socialista.

    8 Veja meu livro No esprito do Abb; cit.; cap. 5. 9 Os que declaram no censo no ter religio subiram para 7,3 % em 2000 contra 4,8% em 1991. Para outros pormenores, acesse o site do IBGE (www.ibge.gov.br), principalmente em: www.ibge.net/home/estatistica/populacao/censo2000/tabulacao_avancada/tabela_brasil_1.1.2.shtm. 10 Conforme J. L. Segundo, que baseia boa parte de sua epistemologia nas formulaes tericas de G. Bateson, todo ser humano tem necessidade de testemunhos referenciais para articular seu mundo de valores. So testemunhos oferecidos pela sociedade e que requerem como critrio certa f. No podemos experimentar at as ltimas conseqncias todos os valores que iro conduzir nossa vida antes de nos decidirmos por eles. Devemos, por fora, confiar em algum (f antropolgica) que j tenha percorrido aquela estrada e que nos garanta a validade de tal escolha. O conjunto das informaes que receberemos e aceitaremos, sem checar empiricamente, o que o autor denomina dado transcendente. Cf.: SEGUNDO, J. L. O homem de hoje diante de Jesus de Nazar. So Paulo: Paulinas, 1985. v. I (F e ideologia). De G. Bateson, veja: Pasos hacia una ecologia de la mente, cit.; IDEM. Mente e natura; ununit necessaria. 5 ed. Milano: Adelphi, 1989.

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    6. Uma experincia hbrida pode muito bem sinalizar o desgnio divino de se autocomunicar. A teologia deve consider-la no interior do processo da revelao.

    Anos atrs, mesmo sem ter conhecimento das faanhas sincrticas de padre Lima, Sua

    Santidade o Papa Joo Paulo II, recebendo em visita ad limina alguns prelados brasileiros,

    destacou em seu discurso a religiosidade popular como tema importante e o sincretismo

    religioso como uma das principais ameaas. Para o Santo Padre:

    A Igreja catlica v com interesse estes cultos, mas considera nocivo o relativismo concreto de

    uma prtica comum de ambos ou de uma mistura entre eles, como se tivessem o mesmo valor, pondo em

    perigo a identidade da f catlica. Ela sente-se no dever de afirmar que o sincretismo danoso quando

    compromete a verdade do rito cristo e a expresso da f, em detrimento de uma autntica

    evangelizao.11

    Diga-se, em primeiro lugar, que da prtica de rituais pertencentes a diferentes tradies

    por uma mesma pessoa no se infere automaticamente que estes tenham idntico valor ou

    significado para o praticante. Em segundo lugar, e se bem interpreto a mensagem pontifcia,

    talvez haja aqui uma margem de dilogo para deduzir que, se o sincretismo no comprometer a

    verdade do rito etc., ele ser bem-vindo. Afinal, como bem sabia o antecessor de Bento XVI, a

    verdade do rito e a expresso da f no surgem de uma hora para a outra e uma autntica

    evangelizao pressupe, em longussimo prazo, um processo de encarnao do esprito

    evanglico na vida das pessoas e das comunidades. Ademais, o papa pareceu reconhecer que o

    nico acervo de critrios que o povo possui para julgar se o evangelho , de fato, notcia boa

    sua prpria cultura autctone e, portanto, no pode automaticamente larg-la para se tornar

    evanglico.

    Os prelados brasileiros poderiam ter informado ao bispo de Roma, naquela ou em

    outras ocasies, que o povo do Candombl s pode dizer sim a Jesus quando o compara com

    Oxal e os outros orixs e s compara quem reconhece a pertinncia dos dois termos de

    comparao. Os bispos tambm poderiam ter contra-argumentado que, em vez de largar o

    11 L'Osservatore Romano, 1/02/2003.

  • Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano VI, n. 27 40

    cristianismo para ficar somente com suas entidades protetoras, o povo-de-santo preferiu

    quem sabe, numa prova de amor gratuito continuar com o orix Jesus, respeitando as

    rezas catlicas. Seja como for, a condescendncia afro-popular certamente uma dessas gratas

    surpresas da maneira como Deus se revela, sempre soprando inesperadamente onde quer.

    Em vrias ocasies e j h muitos anos, os desdobramentos envolvidos na prtica e no

    exemplo de personalidades como LEspinay e Simb tm desafiado a f, a espiritualidade e o

    jeito de fazer teologia de muitas pessoas. As concluses a que, pouco a pouco, se vai chegando

    no so confortveis para a igreja-instituio e talvez nem agradem maioria dos catlicos

    aqui includos os que mantm uma dupla vivncia, ou ainda seguem em trnsito religioso,

    mas no o querem admitir reflexivamente.

    at fcil resgatar o sincretismo como condio sociolgica de toda religio, afinal,

    nenhuma delas, como fato cultural, existe independentemente das vrias tradies de que

    tributria. Mas o que deduzir teologicamente da opo de um padre catlico que nunca

    entendeu ser preciso apostatar de sua f originria para abraar a espiritualidade oriunda dos

    orixs? Ou o que inferir do testemunho de um zelador-de-santo que decide cursar filosofia e

    teologia crist para enriquecer sua experincia medinica de base afro-kardecista? E como

    avaliar a apropriao da personagem Jesus de Nazar por uflogos espiritualizados que

    garantem ter decifrado emprica (por contato imediato de terceiro grau) e cientificamente o

    sentido soteriolgico do universo?

    No primeiro caso, o padre catlico que vai ao candombl (ou volta, caso esteja num

    processo de reassuno de suas razes tnico-culturais), plenamente cabvel admitir um

    movimento de sincera condescendncia crist com relao a outras tradies espirituais, sem

    que isso implique em qualquer reajuste dogmtica crist. Um imperativo tico-afetivo pode

    sustentar semelhantes experincias, ou o sincero desejo de melhor conhecer o dia-a-dia dos

    destinatrios da misso. A teologia da libertao deu azo, mas no somente ela, a esse tipo de

    engajamento solidrio.

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    No entanto, as pessoas envolvidas no processo podem, de fato, vivenciar algum tipo de

    mudana interior, uma vez que se acham expostas a uma experincia pessoal situada na

    confluncia de vertentes espirituais no coincidentes, e mesmo contraditrias, em mais de um

    aspecto. Acompanho aqui as consideraes de Torres Queiruga, quando este detecta as reais

    dificuldades em se viver mais de uma f, se esta f for vivida como o modo radical e

    integral de se relacionar com o Divino e organizar a partir dele toda a existncia.12 A julgar

    pela curta durao de uma vida em comparao com longussimos processos de

    interpenetrao cultural, o que se pode vislumbrar nessas vivncias pessoais no so duas fs

    profunda e coerentemente vividas, sem confuso, mistura ou separao, mas sinceras e

    legtimas inreligionaes de determinados elementos descobertos no tesouro de outrem.

    Mesmo na hiptese de censura ou condenao de algum aspecto preterido no poo alheio, devo

    ter a honradez de admitir que posso no estar compreendendo em profundidade minha recm-

    adotada religio.

    O segundo caso, o filho ou pai-de-santo que resolve ser seminarista e padre catlico,

    tambm no deveria causar maiores problemas a uma sensata teologia pastoral. Chega a ser

    lisonjeiro, nesses tempos de decadncia da hegemonia catlica, o fato de haver adeptos de

    outras tradies religiosas interessados em conhecer melhor o cristianismo, eventualmente

    tomando de emprstimo algumas de suas noes e ritos. Nem seria preciso apelar a uma viso

    teolgica pluralista para ver a sinais positivos, desde que se tenha o bom senso de levar em

    conta que tanto do ponto de vista das interaes culturais no mundo atual como das

    caractersticas bblicas da revelao divina, estamos falando de processos de extensa durao.

    Ademais, parte o desconforto que iniciativas como a de pai Simb possam gerar (alm da

    atual impossibilidade jurdica, em sociedades democrticas, de se proibir tais tradues),

    precisamos admitir que o cristianismo tem sido, ao longo dos sculos, um reconhecido

    especialista em agir dessa maneira no embate com outras religies. Como j vimos,

    ultimamente tem-se chamado essa habilidade crist de inculturao ou, mais recentemente, de

    inreligionao. Quando membros de outras religies fazem o mesmo conosco, podemos,

    12 TORRES QUEIRUGA, A. Autocompreenso crist: dilogo das religies. So Paulo: Paulinas, 2007. p. 187.

  • Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano VI, n. 27 42

    claro, dar a essa prtica outro nome, mas nem por isso teremos mudado sua consistncia ou

    interferido em seus resultados.

    O terceiro exemplo de inreligionao que aludimos (buscadores de ovnis) parece de

    outra ordem, uma vez que seus adeptos neo-esotricos no se pensam como religio. Talvez,

    no mximo, aceitem para seu grupo o teor de uma espiritualidade. Se fossem europeus,

    poderiam se ver refletidos na proposta de Mari Corb de uma espiritualidade laica: sem

    crenas, sem religies, sem deuses.13 No entanto, sua f antropolgica traz de modo incoativo

    alguns valores absolutos que o Ocidente habituou-se a ver corporificados na pessoa-smbolo de

    Jesus Cristo. Assim, embora o movimento flerte com a compaixo budista, admita o postulado

    da reencarnao, anseie por um mundo ideal alternativo de vis socialista, declare-se aberto ao

    dilogo com toda e qualquer religio e defenda como mtodo nico de conhecimento a

    investigao cientfica, o certo que o fascnio exercido pela tradio judeu-crist evidente

    tanto em Carlos Wells (o fundador do grupo ufologista Projeto Amar) como na maioria dos

    participantes do Projeto. Sua leitura literal de extensos trechos da Bblia como prova ou

    indcio de antigas e regulares visitas de seres aliengenas a nossos antepassados bem

    significativa desses tempos hipermodernos em que soa absurdo crer na Trindade, mas parece

    razovel acreditar em duendes ou no horscopo do jornal. Talvez tenhamos aqui um exemplo

    da encruzilhada em que estamos todos neste incio de sculo, entre o fim das ideologias e a

    emergncia das sensologias, como diz M. Perniola. De um lado, a f como crena subjetiva e

    como elemento de coeso social; de outro, uma estranha solidariedade entre a credulidade e o

    niilismo: tanto faz acreditar em qualquer bobagem e no acreditar em nada.14 A nova alvorada

    de movimentos hbridos como o Projeto Amar pode estar sinalizando uma futura e original

    reconfigurao do que normalmente entendemos por religio, exigindo do cristianismo que

    escave em seu prprio poo a dimenso experiencial h tanto tempo abafada por contedos

    dogmticos demasiadamente rgidos e estruturas de governo que sabem ao Antigo Regime.

    13 CORB, M. Hacia una espiritualidad laica; sin creencias, sin religiones, sin dioses. Barcelona: Herder, 2007. 14 PERNIOLA, M. Del sentire cattolico, cit., pp. 34-35. Sobre as idas e vindas da crena e da multiforme credulidade na sociedade europia contempornea, um arguto panorama traado por J.-Cl. Guillebaud (GUILLEBAUD, J.-CL. A fora da convico; em que podemos crer? Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007; Ed. orig.: La force de Conviction. Ed. Du Seuil, 2005).

  • Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano VI, n. 27 43

    Os trs casos apresentados so, cada qual a sua maneira, provocadores de rearranjos na

    autocompreenso crist. Saber quem tem direito ou poder para conduzir esses inevitveis

    processos de doao e recepo de signos (significantes condutores de significados) passa a

    depender, evidentemente, da perspectiva ou instituio a partir da qual os olhamos. O

    candombl inreligionado de pai Simb ser algo diferente do cristianismo no qual ele bebe e

    no tem porque ser cristianizado fora. Sua espiritualidade sai modificada e enriquecida dos

    componentes cristos que adotar. Por sua vez, de se esperar que algo similar acontea com o

    cristianismo inreligionado na ndia, na frica e entre as naes latino-americanas. Sem perder

    sua f-eixo, a mensagem crist hibridiza-se nas metforas que aprende de outras religies,

    embora no abra mo de sua fora metonmica.

    Algo menos arriscado impossvel, pois de um lado, o carter missionrio de levar a

    Boa Nova irrenuncivel para o cristo, e de outro, todas as culturas so hoje culturas de

    fronteira (Nestor Canclini), sendo a histria de todas elas a histria do emprstimo cultural

    (Edward Said). No temos, pois, outra dimenso disponvel para armar nossas tendas.15

    A natureza hbrida das experincias religiosas a partir da interfaith theology

    No se pode ignorar as mltiplas vivncias e o trnsito religioso neste planeta cada vez

    mais globalizado e enredado (web). O pensamento interfaith parece ser a modalidade de

    pesquisa e reflexo mais adequada para enfrentar a pergunta suscitada por tais experincias.

    Porque a teologia do sincretismo trata exatamente disto: possvel que uma pessoa ou grupo

    social vivenciem simultaneamente mais de uma f? Ou ainda: a mesma f suporta

    concretizaes distintas (f sincrtica)?

    A dplice resposta tradicional no desconhecida. Em nome do princpio de no-

    contradio, sempre soubemos responder que h deficincia intelectual quando se escolhem

    concomitantemente sistemas (noticos) de crena que sejam claramente distintos. Mas tambm

    15 Autores mencionados por BURKE, P., Hibridismo cultural, cit., p. 13.

  • Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano VI, n. 27 44

    possvel admitir, sem grande abalo para as grandes tradies ocidentais, que ao atingir certo

    nvel de profundidade espiritual, consigamos relativizar pendncias conceituais em benefcio

    de clarividncias ticas ou puramente msticas. Os exemplos aqui relatados de padre Franois

    LEspinay entre os nags da Bahia e as vivncias dplices de agentes de pastoral cristos

    cabem nessa demarcao tica e/ou mstica. Do lado da igreja-terreiro de pai Simb, talvez se

    possa alegar como atenuante, numa tentativa de leitura positiva do lado da ortodoxia catlica,

    um movimento invertido da primeira resposta, a saber, a busca de superao de algumas, por

    assim dizer, aporias das tradies medinicas graas aproximao da linguagem conceitual-

    dogmtica do cristianismo.

    Mas nada disso o que estamos perguntando aqui. Falamos de uma opo espiritual

    consciente de que pretende alimentar-se de noes conceituais irredutveis entre si ou seguir

    rituais litrgicos que conduzem a opes ticas no equivalentes. Tanto padre LEspinay como

    pai Simb poderiam, individualmente, possuir essa conscincia, embora nenhum dos dois, at

    onde me consta, tenha propugnado essa terceira via. Seja como for, para descrever qualquer

    fenmeno menos radical, j contamos com palavras mais bem-comportadas como

    ecumenismo, dilogo inter-religioso, a j ortodoxa inculturao e a estreante inreligionao.

    A teologia do sincretismo religioso ou poder desaguar numa teologia inter(trans-)confessional (interfaith theology)?

    Quando se fala de teologia do sincretismo, possvel entender esse genitivo como

    complemento nominal ou como adjunto adnominal. No primeiro caso, trata-se de um discurso

    formalmente teolgico cujo escopo construir juzos de valor sobre os fenmenos sincrticos

    luz de determinada mediao hermenutica. Religies monotestas fundadas na crena de que o

    mistrio absoluto comunica-se com a relatividade humana localizvel no tempo e no espao,

    acabaro tendo de considerar teologicamente eventuais benefcios e limites de uma

    espiritualidade hbrida.

    Mas o genitivo suporta uma segunda acepo alis, cronologicamente anterior que

    explicamos no pargrafo acima. Esta consiste em reconhecer o sincretismo de fato e estudar

    sua lgica interna. Identificar a(s) teologia(s) subjacentes aos fenmenos de hibridismo cultural

  • Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano VI, n. 27 45

    e religioso o que se espera da cincia da religio. Esse cuidado prvio livrar o telogo da

    apologia ingnua de prticas sincrticas de outrora, tantas vezes decorrentes da violncia com

    que o cristianismo e/ou o islamismo se impuseram aos povos autctones. Sob tais condies,

    s restava s pessoas prticas enviesadas e fragmentares de suas tradies de origem.

    At aqui, porm, no estaramos propriamente no mbito de uma reflexo interfaith.

    Certa teologia do sincretismo poder at julgar de forma mais ou menos inclusiva os resultados

    aferidos pela cincia da religio, sem com isso se deixar provocar e modificar por eles. Poder

    mesmo rejeit-los como incompatveis com a f crist. Mas o que far toda a diferena ser a

    prtica. E esta j vem encetando, a duras penas, um novo caminho: lderes cristos do

    movimento negro optam por resgatar sua identidade ancestral e se perguntam at que ponto

    convm avanar na busca de suas autnticas razes africanas. O mesmo ocorre na encruzilhada

    das mais diferentes religies, quando topamos com zen-catlicos, aimaras cristos, hindus

    seguidores do evangelho, chineses iniciados no candombl, bantos crentes na ressurreio,

    judeus recitadores do Coro.

    Para construirmos uma conseqente teologia do sincretismo preciso levar a srio os

    dados fornecidos pela cincia da religio, a saber, que tais conexes interculturais e inter-

    religiosas so vivncias cotidianas e no caprichosas invenes de algum telogo ou teloga. O

    fato novo ser a eventual constatao de que as categorias tradicionais crists no do mais

    conta do que se descobrir no redemoinho formado pela confluncia de diferentes mares de

    espiritualidade.

    A interfaith theology aprende do sincretismo que no h etapas rumo a esta ou aquela religio total, pois nenhuma f ou espiritualidade esgota o Sentido da Vida.

    Uma experincia hbrida pode ser sinal do desgnio divino de se autocomunicar. Entre

    falar-nos e ser mal compreendido ou calar, deixando-nos totalmente s cegas, vrias

    religies so unnimes em afirmar que a Divindade optou por dizer-nos algo, apesar do risco.

    Desse modo, o sincretismo poderia consistir numa bem-vinda teraputica para certas escleroses

    dogmatistas das religies monotestas. Ele torna imediatamente evidente onde est o problema

  • Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano VI, n. 27 46

    ia divina.

    teolgico bsico dessas tradies: a revelao de Deus comporta ambigidades, erros e

    contradies que so inevitveis graas nossa maneira humana de aceder Verdade.16 Mas

    ao mesmo tempo, como nos ensinou a Dei Verbum, permeia todo o trajeto a segura e

    verdadeira pedagog

    Pois bem, como ler teologicamente as experincias sincrticas? A teologia pode fazer o

    esforo de pensar uma situao entre-as-fs ou uma fronteira comum ainda livre das

    demarcaes religiosas institucionais. Mas que tipo de f est disponvel nessas borderland?

    Trabalhei ao longo deste livro sempre pressupondo uma categoria operativa que talvez ajude a

    entender o que est acontecendo conosco e nossa volta. Eu a chamo de f sincrtica,

    inspirado na dade f-ideologia proposta por J.L. Segundo e traduzida por Hermilo Pretto como

    f poltica.17 O escopo da dade, em suas trs verses, articular, no interior de uma mesma

    experincia de f/opo de vida duas foras distintas embora possivelmente complementares:

    de um lado, o qu de absolutez dos valores fundamentais que norteiam escolhas aparentemente

    contraditrias de significantes religiosos (dimenso f); de outro lado, a relatividade dos

    resultados efetivamente atingidos (dimenso ideolgico-sincrtica).

    No fundo, seja qual for o termo predileto do leitor, preciso identificar o modo mesmo

    de uma f se concretizar ou ser traduzida, uma vez que no existe f em estado puro; ela s se

    mostra na prxis. Aqui entendo como praticamente sinnimos o sincrtico, o histrico, o

    concretizado e o traduzido. O que procuro evitar quanto possvel simplesmente chamar esse

    processo de inculturao, pois existe a uma diferena de trajeto, ou seja, o ponto de vista de

    onde se observa a criatividade religiosa do povo em ao. Quando digo f sincrtica tenciono

    salientar a autocomunicao divina j atuante nas vrias tradies culturais antes, contra ou

    16 Cf. SEGUNDO, J.L. O dogma que liberta: f, revelao e magistrio dogmtico. 2. ed. So Paulo: Paulinas, 2000. pp. 141-144. 17 PRETTO, H.E. F poltica. Vida Pastoral, 121 (1985), pp. 2-8. Para H. Pretto, j existe na Amrica Latina uma conscincia, embora minoritria, de uma f essencialmente poltica. Todavia, esse novum suscita evidentemente forte resistncia dentro e fora dos crculos eclesisticos. O autor apresenta trs fatores que explicariam tal resistncia: (a) a no-aceitao da radical ambigidade da vida, que induz as pessoas a sonharem com o fim da Histria e a concretizao da Utopia; (b) a conseqente busca de espaos paralelos (f), sem ambigidade, ou ainda a crena na existncia histrica de heris (santos ou revolucionrios) absolutamente inequvocos; (c) a ingnua crena nas duas histrias: uma sagrada e pura, porque conduzida por Deus; outra profana e pecaminosa, cujo autor o ser humano.

  • Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano VI, n. 27 47

    mesmo apesar do contato com as comunidades crists, sustentando em sua discreta

    misericrdia as livres escolhas e selees (algumas, ainda na fase das justaposies) que cada

    indivduo ou grupo social vai fazendo. Pensar que as pessoas tenham antes que deixar entre

    parnteses sua histria de vida, sua cultura e religio para, s depois, em algum estado de

    exceo (seja l o que venha a ser isso!), entrar em comunicao autntica com o Deus

    verdadeiro , de um lado, desabonador da livre e amorosa deciso divina de vir a ns a

    qualquer custo, e de outro, significa ceder ao que outrora j fora identificado como

    pelagianismo: o descomedimento de pretender chegar salvao plena na solido das

    prprias foras, sem nenhum amparo da divina graa.18

    Como diz, quase poeticamente, meu caro amigo Torres Queiruga, a histria da revelao

    consiste justamente nisto: em ir Deus conseguindo que esse meio opaco e impotente para o

    infinito, que o esprito humano, v captando sua presena e se sensibilize para sua manifestao,

    entrando assim em dilogo com sua palavra de amor e acolhendo a fora salvadora de sua

    graa.19 O resultado dessa progressiva descoberta do divino amor em ns no cabe numa

    nica jurisdio religiosa ou filosfica. A prpria tradio crist o intui em diversos momentos,

    como quando recorda as palavras do Mestre: No lar de meu Pai muitos podem viver.

    No va para ningn lado quien no sabe donde est20

    Em seu recente O futuro da cristologia, Roger Haight arrisca predizer o rumo que

    poder tomar o desenvolvimento dessa disciplina apelando para trs metforas. A primeira

    espacial: a concepo cientfica da origem do universo possibilita interpretar a criao

    contnua de Deus (...) como uma presena divina e fora criativa interna ao prprio processo,

    18 Por isso extremamente feliz a expresso maiutica histrica, proposta por Torres Queiruga em sua obra A revelao de Deus na realizao humana (So Paulo: Paulus, 1995). O que revela-nos a revelao no hoje de nossa histria o que, desde sempre, j ramos: amados por Deus. E esse segredo banha cada seqncia de nosso DNA, cada cmodo de nossa casa cultural, at mesmo os subprodutos que, segundo Paulo, um dia sero queimados como palha (1Cor 3,13-17). 19 TORRES QUEIRUGA, A. A revelao de Deus..., cit., p. 408. 20 O verso do compositor porto-riquenho Gilberto Santa Rosa (apud ESPN, O. Grace and humanness; theological reflections because of culture. Maryknoll-NY: Orbis Books, 2007. p. x).

  • Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano VI, n. 27 48

    levando-nos a pensar em um quadro referencial teocntrico, distinto do arcabouo

    cristocntrico. A segunda imagem temporal: a histria e as cincias duras esto forando-

    nos a uma compreenso processual da realidade que, cada vez mais, torna evidente que

    estrangeiros de outrora so hoje membros de minha comunidade humana de uma maneira

    nova, concreta e prtica, de sorte que pleitear o cristianismo como a nica religio verdadeira

    seria, nas palavras de E. Schillebeeckx, uma virtual declarao de guerra a todas as outras

    religies. Assim, pode-se esperar que, aos poucos, idias a priori de superioridade dem lugar

    a uma aceitao a priori do que Deus est fazendo em outras religies como equivalendo, em

    seus contextos, mais ou menos ao que Deus fez em e atravs de Jesus.21 A terceira dinmica

    proposta por Haight considera que novas informaes e experincias so constantemente

    englobadas por ns e expandem nossos horizontes, terminando por nos fazer revisar, a todo

    momento, nossas posies acerca de qualquer assunto. A gradual aceitao do pluralismo um

    desses casos e vai fazendo com que as pessoas leiam de forma positiva as demais religies, na

    medida em que reconheam Deus como Esprito atuando em seus adeptos e concluam que

    uma pluralidade de religies proporciona mais revelao de Deus que uma s religio

    particular poderia faz-lo.22

    A inteno de Haight mostrar, por meio dessas trs sugestes, a possibilidade de uma

    cristologia futura reafirmar a divindade formal de Jesus Cristo sem solapar a integridade de sua

    humanidade. Isso ser (j ) feito graas ao contexto sempre mais inter-religioso em que

    teremos (temos) de viver, e que nos obrigar (j obriga) a explicar quem Jesus comeando

    quase automaticamente a explicao com um relato sobre a pessoa histrica de Jesus de

    Nazar. Por outro lado, abrirmo-nos sinceramente ao que outras experincias religiosas podem

    nos ensinar (embora nem sempre faam questo disso, como no caso das tradies de matriz

    africana), talvez nos leve, um dia, a concluir que ns, pessoas crists, por intermdio de Jesus,

    [e sem precisarmos abdicar desse Jesus] ficamos sabendo o que Deus est fazendo no mundo

    todo atravs de vrias religies. Isso poder nos levar a uma ratificao realista, mas no

    exclusiva, da divindade de Jesus, ou seja, embora atue em Jesus de uma forma distintiva e

    21 Schillebeeckx foi citado por HAIGHT, R. O futuro da cristologia. So Paulo: Paulinas, 2008. p. 164, nota 8; os demais excertos: p. 163 e 164. 22 IBIDEM, p. 164.

  • Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano VI, n. 27 49

    historicamente singular, o Divino tambm pode estar presente e atuante em outros smbolos

    histricos de Deus que igualmente so singulares.

    O que R. Haight est sugerindo exatamente isto: que, talvez, no futuro, uma

    cristologia decididamente ortodoxa seja capaz de afirmar que Jesus divino de uma maneira

    tal que no exclua a divindade de mediadores oriundos de outras tradies espirituais. Mais:

    uma conscincia pluralista futura poder julgar que restringir a divindade a Jesus signifique

    ser infiel revelao de Deus mediada por ele.23

    Torres Queiruga pra bem antes de Haight e admite a autocompreenso do

    cristianismo como culminao definitiva da revelao de Deus na histria. Mas no sem antes

    pavimentar o terreno com, pelo menos, trs novas categorias suficientemente elsticas para

    possibilitar ao pensamento de avanar nos limites do ortodoxo na direo pluralista. Ele prope

    ser pertinente um pluralismo assimtrico que d conta do diferente sem inferioriz-lo, pois

    afinal, sendo a revelao um processo histrico, no dito que, por verem algo, estejam todos

    vendo tudo na mesma medida e clareza. Em seguida, invocando o realismo devido aos novos

    tempos de intensa pesquisa bblica e crescente contato inter-religioso, Queiruga apresenta o

    teocentrismo jesunico como garante do delicado equilbrio entre a centralidade de Deus e o

    papel nico e irrenuncivel da figura histrica do Nazareno que se concentra basicamente

    na sua proposta de Deus como Amor ilimitado e perdo incondicional. A terceira categoria,

    que venho adotando ao longo deste livro, a inreligionao, sem dvida, um evidente

    avano com respeito a sua prima-irm inculturao.24

    Queiruga consegue, dessa forma, ver com bons olhos um ecumenismo in fieri que j

    faz com que as instituies crists [estejam] real e verdadeiramente presentes [como no caso

    da comunidade hbrida de pai Simb] nas demais religies, da mesma forma que estas [prticas

    ancestrais dos antigos brbaros, rituais enquistados no catolicismo popular] esto presentes

    23 IBIDEM, respectivamente pp. 167 e 168. 24 TORRES QUEIRUGA, A. Autocompreenso crist: dilogo das religies, cit., respectivamente, pp. 191; 93-102 (pluralismo assimtrico); 102-122 (teocentrismo jesunico) e 167-188 (inreligionao).

  • Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano VI, n. 27 50

    na religio crist.25 Por outro lado, creio que a direo vislumbrada por Haight para os

    prximos desenvolvimentos cristolgicos j represente a iminncia de um novo patamar do

    discurso teolgico justamente, a interfaith theology.

    Esta decorre dos resultados da teologia crist contempornea, que redescobriu a

    revelao divina como um processo histrico, com etapas que tm seu sentido prprio (Dei

    Verbum 15: a pedagogia divina), mas no so definitivas. Nesse processo, o povo bblico

    (autores e comunidades leitoras) sempre procurou modular em linguagem humana o sopro e as

    ressonncias do divino mistrio. Da provm a fora e a fraqueza do umbral cristo: este

    depende intrinsecamente de uma experincia ineludvel que s tem sentido se o indivduo a

    fizer por si mesmo. E nem garantido que o resultado deva necessariamente configurar-se

    como uma comunidade nitidamente crist (ao menos, nos moldes em que a podemos descrever

    hoje). Mesmo que o fosse, isso no eliminaria os inevitveis percalos da traduo concreta

    desse encontro, ou seja, de nossa espiritualidade cotidiana.

    Tal ambivalncia no em si um defeito; fomos constitudos assim. Por isso, as

    experincias sincrticas so tambm variaes de uma experincia de amor. E se fazem parte

    da revelao as maneiras como os povos foram e continuam chegando, tateantes, a seus

    insights, o sincretismo s pode ser a histria da revelao em ato, pois consiste no caminho real

    da pedagogia divina em meio s invenes religiosas populares.

    Que teologia daria conta de traduzir conceitual e adequadamente uma experincia como

    essa? No precisamos ser afoitos em respond-lo para no acabar confundindo o rolo

    compressor ecltico do tudo cabe com a intuio universal e pluralista de que todos cabem.

    Pode ser um trunfo nesta fase reconhecer que nem teria sido pensvel uma teologia inter ou

    transconfessional se no fossem os passos prvios dados pelo pensamento ocidental. A

    25 IBIDEM, p. 195. A expresso ecumenismo in fieri merece o mesmo cuidado sugerido acima para macro-ecumenismo (Cf. CATO, F. Falar de Deus: consideraes sobre os fundamentos da reflexo crist. So Paulo: Paulinas, 2001. pp. 208-209).

  • Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano VI, n. 27 51

    pergunta e as dificuldades de uma teologia entrefs decorrem do caudal monotesta trinitrio

    que as gerou.26

    Creio que essa ltima considerao sela o limite alm do qual no poderemos seguir

    sem banalizar a prpria busca. O projeto teolgico interfaith assinala uma encruzilhada. No

    parece epistemologicamente difcil avanar na proposta de uma tica (H. Kng) ou ethos (L.

    Boff) mundial; e ser sempre simptico enveredar por um caminho mstico que supere as

    demarcaes teo-lgicas (R. Panikkar). Tambm fcil descartar pastiches de pluralismo

    religioso como os blockbusters da trilogia Matrix. Mas ainda nos retm do lado de c a velha

    noo de verdade.

    Um autor assumidamente interfaith como J. M. Sahajanada nos prope que a verdade

    no pode ser definida, porque cada definio da verdade como um tmulo e somente os

    mortos so postos em tmulos.27 Entender isso avanar pelos caminhos da sabedoria, pois

    a sabedoria nasce de uma mente virginal, em que o poder do conhecimento silenciado.28

    bvio que, para aceitar tais asseres, temos de assumir, com H.-C. Askani, que a

    reivindicao da verdade tem na filosofia diferente significao do que numa religio. Na

    primeira, a reivindicao implica e exige a confrontao e o dilogo entre as filosofias. Na

    religio, no entanto, h uma maneira de se sentir obrigado e de se comprometer que to forte,

    to extrema, to nica, que cada comparao seria, por isso mesmo, uma indiscrio

    profunda.29

    Contudo, aqui estamos a fazer teologia, ou seja, elaborando uma reflexo ou

    especulao acerca da Realidade ltima que parte dos dados oferecidos por determinada

    tradio espiritual em geral, referendados por um acervo coerente de escritos que pode,

    ou no, chegar adorao da Realidade afirmada.30 De outra parte, uma linguagem apta a furar

    26 Quanto aos perigos e questionamentos a uma teologia entrefs que possam provir de telogos originrios de outras tradies religiosas alm da crist, no cabe a mim elenc-los aqui. 27 No original: truth cannot be defined because every definition of the truth is like a tomb and only the dead are put into tombs (SAHAJANADA, J.M. You are the light; Rediscovering the eastern Jesus. Winchester (UK): O. Books, 2006. p. 813). 28 A wisdom is born of a virginal mind, in which the power of knowledge is silenced (IBIDEM. p. 149). 29 Askani citado por TORRES QUEIRUGA, A. Autocompreenso crist, cit., p. 96. 30 A teologia, embora possa questionar um ou mais dados ou a interpretao destes que nos chegam via tradio, no questiona a tradio em si. Alis, premissa da reflexo teolgica admitir a tradio como consistente doadora de sentido, isto , como fonte com razoveis chances de ser verdadeira por remontar a um conjunto coerente de testemunhas referenciais, por sua vez conectadas a uma origem ontolgica presumida.

  • Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano VI, n. 27 52

    bloqueios meramente ideolgicos ou axiolgicos a eficiente linguagem cientfica. Inbil para

    nos dizer a verdade cabal, ela pode, sim, desmascarar pretensas verdades e superar impasses

    que as viseiras religiosas e dogmticas no conseguem destrinar sem antemas ou

    derramamento de sangue.

    O que vir nas prximas dcadas pode significar uma nova aliana entre religio e

    cincia, entre teologia e cincia da religio. Realidades como as vivncias espirituais

    sincrticas esto literalmente rompendo diques e tornando porosas fronteiras onde pode estar

    nascendo uma nova possibilidade de nos reeducarmos como seres humanos.