2 revisÃo da literatura sobre sincretismo religioso afro-brasileiro · 2 revisÃo da literatura...

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2 REVISÃO DA LITERATURA SOBRE SINCRETISMO RELIGIOSO AFRO-BRASILEIRO Analisaremos aq ui os traba l hos mais importantes de autores que fi - ze ram abo r dagens sign ifi cativas no estudo do sinc retismo religioso afro- bra sile iro. Sem a pretensão de esgotar o assunto, faremos um balanço crí ti co da produção acad ê mica sob re este tema. Tal análise é importante pa ra os objct i vos de nosso trabalho, po is p ermiti uma aval i ação crítica elos estu- dos sobre sincreti s mo c nos ajuda rá a realizar um levantamento dos princi- pais modelos ou tipos de si nc r ct i smos encontrados na li tcra tura, par a en tender me l hor este fe nômeno . Existe , ev ident emente, vasta bib l iog r afia sobre o neg ro c as religiões af ro- b rasileiras que se ap r ox i ma deste t ema c que não será discutida aqui, pois nos limitaremos a autores que se ocupam do sincretismo nas religiões afro-brasileiras. Estudaremos o assunto, reunindo os autores na medida do possível, na esco la teó ri ca a que estão mais vinculados. EVOLUCIONISMO Nina Rodrigues Nina Rodrigues é o fu nd ador do campo de co nh ec ime nto s científicos afro - brasi l eiros. A pa l avra si ncre t ismo , relacio nada a seus escritos, era utili zada na época por Marcel Mauss ( 190 I , p. 224) na resen ha no L 'Année Sociologique, elogiando a "e le ga nte mono g rafia do médico baiano" . Nilo chegamos entretanto a l ocaliza r a palav ra sinc reti smo cm seus tr aba l hos. Nina Rod r igue s, entretanto, discorre mui t as ve zes so bre o fenômeno, uti- lizando exp r essõe s equivalentes, tais como: c dua lida de de crenças, justaposição ele exterioridades c de idéias religio sas, associação, adaptação c equiva l ência de divindades, il usão da catequese c outras.

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Page 1: 2 REVISÃO DA LITERATURA SOBRE SINCRETISMO RELIGIOSO AFRO-BRASILEIRO · 2 REVISÃO DA LITERATURA SOBRE SINCRETISMO RELIGIOSO AFRO-BRASILEIRO Analisaremos aqui os trabalhos mais importantes

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REVISÃO DA LITERATURA SOBRE SINCRETISMO RELIGIOSO AFRO-BRASILEIRO

Analisaremos aqu i os trabalhos mais importantes de autores que fi ­

ze ram abordagens s ign ificativas no estudo do sinc retismo religioso afro­

brasileiro. Sem a pretensão de esgotar o assunto, faremos um balanço críti co

da produção acadêmica sobre este tema. Tal análise é importante para os

objct ivos de nosso trabalho, pois p ermiti rá uma aval iação crítica elos estu­

dos sobre sincreti smo c nos ajudará a realizar um levantamento dos princi­

pais modelos ou tipos de si nc rct ismos encontrados na li tcra tura, par a

e ntender melhor este fenômeno . Existe, ev iden temente, vasta bibliografia

sobre o negro c as re lig iões afro- brasileiras que se aprox ima deste tema c

que não será discutida aqui, pois nos limitaremos a autores que se ocupam do

sincretismo nas religiões afro-brasileiras. Estudaremos o assunto, reunindo os

autores na medida do possível, na escola teórica a que estão mais vinculados.

EVOLUCIONISMO

Nina Rodrigues

Nina Rodrig ues é o fu ndador do campo de conhecimentos científicos

afro-brasi leiros. A pa lavra si ncre tismo , relacio nada a seus escritos, j á era

utilizada na época por Marcel Mauss ( 190 I , p. 224) na resen ha no L 'Année

Sociologique, elogiando a "elega nte monografia do médico baiano". Nilo

chegamos entretanto a localiza r a palavra s inc reti smo cm seus traba lhos.

Nina Rod rigues, entretanto, discorre mui tas vezes sobre o fenômeno, uti­

lizando expressões equivalentes, tais como: fu~ão c dualidade de c renças,

justaposição ele exterioridades c de idéias re lig iosas, associação, adaptação

c equiva lência de divindades, ilusão da catequese c outras.

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42 REPENSANDO O SINCRETISMO

Rodrigues ( 1935, p. 13) estava convencido, de acordo com a pers­pectiva evolucionista dominante na época, da incapacidade físi ca "das raças inferiores para as elevadas abstrações do monoteísmo", c procurava demons­

trar que o fctichismo africano dominava na Bahia como expressão religiosa do negro c do mestiço. No capítulo em que discute a conversão dos afro­baianos ao catolicismo ( 1935, pp. 168 e ss.), faz distinção prévia entre os neg ros africanos, que ainda existiam na Bahia, e seus descendentes e, de outro lado, os negros crioulos e mestiços. Constata que os primeiros com­

preend iam mal o culto católico e para eles a conversão era apenas uma

"justaposição de exterioridades", enquanto para o negro crioulo e para o mestiço, as práticas fetichistas e a mitologia africana vão degenerando de sua pureza primiti va (1935, p. 170) . Considera, porém, que nesta fase de transição curiosa, mesmo quando tiver desaparecido com os últimos africanos a prática de seu culto, será difícil demonstrar que o culto dos negros aos santos católicos é fetichista, rcrmo que ele próprio (1935, p. 27) afirma se

prestar mal para qualificar as crenças africanas.

Nina Rodrigues (1935, p. 17 1) faz também distinção entre candomblés africanos - terreiros de gente da Costa- e os candomblés nacionais - de

gente da terra, crioulos c mulatos. Posteriormente ( 1977, pp. 253-254) apre­senta outra distinção entre duas formas de adaptação fetichista do culto católico. Uma interna ou subjctiva, que prevalece quando a dircção do culto é confiada a um sacerdócio mais ou menos esclarecido c o fenômeno tem a

feição que ele descreveu no trabalho ante rior (1935). A outra seria externa

ou cu ltual, ocorrendo quando os negros assumem livremente a direção do culto. Documenta e exemplifica ( 1977, pp. 254-260) estas asserções, citando uma cerimônia dos Metodistas Uivadores nos EUA e a cabula, descrita no \ Estado do Espírito Santo pelo bispo católi co D. João Correia Nery/ Lamen­tamos entretanto que, tendo deixado sua ob~a inacabacl·a, Nigocl rigues não tenha detalhado melhor a di stinção que fez entre a adaptação interna ou subjeti va que lhe parece ocorrer no candomblé da Bahia (1977, p.255) e a

adaptação externa ou cultual, identificada por ele no que posteriormente será chamado de macumba c mais tarde de umbancla (Sil va, 1987, pp. 65-85) . O s incretismo ou a "adaptação fetichista ao catolicismo", no dize r de

Nina Rodrigues, no candomblé e na umbanda, parece hoje mais claramente distinto do que em fins do século passado, ao tempo de suas pesquisas. -

Para N ina Rodrigues, é a equ ivalência das divindades que dá a ilusão

ela conversão católica, po is, "sem renunc iar aos seus deuses ou orixás, o negro baiano tem pelos santos católicos profunda devoção" ( 1935, p.l82). Cita casos comprovando esta dua lidade do fervor relig ioso, demonstrando

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REVISÃO DA LITERATURA SOBRE SINCRETISMO ...

ser frcgüente a prática dos dois cultos pela mesma pessoa (1935, p.l84), pois tanto na Bahia como na África, "todas as classes, mesmo a dita supe-rior, estão aptas a se tornarem negras" (1935, p.l86) : Afirma ser consi-derável o número de brancos, mulatos e indivíduos de todas as cores que, cm caso de necessidade, vão consultar os negros feiticeiros, mesmo quando

em público zombam deles, c por isso não será para muito cedo a extinção -----dos cultos africanos na Bahia.1Diz que nãosó o culto católico, como tam--'

bém as práticas espíritas e a cartomancia receberam na Bahia influências do fet ichismo negro (1935, p. 194). Assinala (1977, p. 245) a extraordinária

resistência e a vitalidade elas crenças da raça negra apesar dos preconceitos, das perseguições e da repressão policial. Para ele, o culto jeje-nagô é uma verdadeira religião, e por isso deve merecer as garantias de liberdade cons­titucional (1977, p. 246). Também constata (1977, p . 230) que, na Bahia, prevalece esta mitologia, cuja fusão íntima acredita, segundo Ellis, ser de­vido a estes povos provirem de um tronco ancestral comum.

Aceita sem discutir a perspectiva evolucionista c racista da época, empregando conceitos c pontos de vistas hoje superados, como o de in ferio­ridade cultural c racial. Verificamos entretanto que Nina Rodrigues possuía v isão penetrante dos fenômenos que estudava. Embora evite usar a palavra sincretismo, como muitos até hoje, e enfatize a idéia da ilusão da catequese, constatamos que Nina Rodrigues foi de fato o pioneiro entre nós dos estu­

dos sobre sincretismo. Fazia distinção entre negros mestiços c africanos c

seus descendentes, importante na época para caracterizar formas diferentes

d.e conversão ao cato lic~·A distinção. que fez entre a a~aptação subje- ~- ,\0) .J. ~ao cãtõltc tsmo, que localtza no candomblc, c a cultual ou externa, que exemplifica na cabula, infeli zmente não foi mais elaborada por

!ele, mas parece igualmente interessante na caractcriza~o do fenômeno cuj'!

~·vação~cta tão bc~ dOQ~mentOU . f

CULTURALISMO

Arthur Ramos

Cerca de trinta anos após a morte de Nina Rodrigues e durante duas décadas, Arthur Ramos foi seu divulgador c continuador. Teve rápida ascen­são acadêmica e também vida curta. Médico nordestino, como Nina, dedi­cou-se igua lmente à medicina legal c tornou-se o primeiro professor ele

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. '

44 REPENSANDO O SINCRE71SMO

antropologia na Univers idade do Bras il, onde fun dou c d irigiu a Sociedade

Brasile ira de Antropologia e Etnologia . Ajudou a org aniza r c publ icar tra­

ba lhos d e Nin a Rodrigues . P ubl icou mu itas obras, incl usive uma vo lumosa

fntroduçüo à Antropologia Brasileira cm 2 volu mes (1943-1947). Sobre o

negro publ icou vários livros; ent re os ma is importantes podemos apontar:

O Negro Brasileiro ( 1934), Aculturaçüo Negra no Brasil ( 1942) c As

Culturas Negras ( 1943) . Em sua época a Teoria culTura lisTa, desenvolvida

na ant ropo logia norte -ame ricana, encontrava-se no apogeu, c Ramos a ado­

tau, embo ra lhe fizesse algumas c rft icas, como verificamos ad iante.

Rea li za, cm d ive rsos tra bal hos, apreci ação crítica elas obras de Nina

Rodrigues, de quem se considerava cont inuador. Afi rma (1942, pp. 5-7) que

o m estre Nina fo i o pio nei ro no estudo do mecanismo que os modernos

antropólogos passaram a denominar de aculturação, cm capítulo onde exami­

na "o essenc ia l do que depois retomaríamos com o nome ele 'sinc retismo

reli gioso' entre os negros bras il e iros".

Ramos ( 1942) foi de fato o prime iro es tudioso brasi leiro a ana lisa r o

s in cret ismo sob o ponto de vista ela teoria culturalisTa , difundida largamente

desde a década de 1930. A este respeito diz: \ ,0 que Nina Rod rigues julgou r --l com o scn<.ió ulnã jUSrãj)ôSIÇãononcgí-Õ c uma fusão no crio ulo c mulato,

não são mais do que etapas do processo de aculturação, graus ác s incretismo,

\ pe la maior ou meno r percentagem de aceitação, por um grupo rel igioso, dos

0 raços cultura is~ o~~o g ru p_?" (1942, p. 9) .

...___ Prefe re c hamar de s in c re ti smo o que Nina Rod rig u es cha mou de

"ilusãÕ da catcq!:lcsc" c Fcrnãndo Ortiz de "aparente catolização dos negros".

Lembra ( 1942, p. 34) qüCotcrmo acultu ração jacra empregado péÍos ingle­

ses, americanos c alemães desde 1880, c somente cm 1936 pode ser defi nido

cm sua exata signi ficação, embora os europeus prefiram a expressão con­

tatos de cu ltu ras.

Estudando os processos de contatos sociais c cu ltu ra is c constata ndo

q ue os conceitos de adaptação, acomodação, ajustamento c aculturação, etc.,

variam de acordo com os p ontos de vista das várias escolas, Ramos adota a

de f inição de aculturaçã o ap resentada cm 1936 por Linton, Rcdficld c

Hcrskovits.

Procurando conciliar métodos de estudo da aculturação com a psi ­

canálise, Ramos ( 1942, p. 4 1) inclui, entre os resultados c ul tu ra is da acul ­

turação, aceitação, s inc retismo, rcação. Diz pre fe rir chamar ele s inc ret ismo

o que os norte-ame ricanos chamam de adaptação, expressão q ue possu i s ig­

nificado biológico aceito nas ciências c cujo emprego com out ro significado

pode acarretar con fusões. Ampliando o significado ele si ncretismo, d iz:

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IIEV/SA-0 DA LITERATURA SOBRE S/NCIIETISAIO ...

Será preferíve l chamarmos ao resul tado harmonioso, ao mosaico cultura l sem conflito, com partic ipação igual de duas ou mais culturas cm contato, de sincretismo. Ampliamos assim o significado de um termo que já havíamos empregado com rcfe- ~,

rência à cultura espiri tual, especialmente religiosa. Parece-nos que o signficado de sincretismo deva ser estendido a todos aqueles casos de resultados harmoniosos de contatos culturais, não só espiritua is como materiais, ou todos aqueles casos que os norte-americanos chamam de adaptação ( 1942, pp. 41-42).

Ass im, para Arthur Ram os, o si ncretismo não se restringe exclusiva­mente ao domínio religioso, embora sej a este o do mínio mai s típico c o que ele mais se dedicou a estudar. Na defi nição de si ncretismo apresentada por Arthur Ramos, enfatiza-se o aspecto de processo harmon ioso, sem conni­tos, de culturas em contato. Posteri ormente o próprio Ramos irá constatar que este processo não é sempre tão harmonioso c pouco conniti vo, espe­cialmente nos casos de colonização, de dominação c de escravização.

Em um de seus últimos trabalhos, ao discutir o problema geral da acul­turação ( 1947, pp . 475-483 ), ~mos re laciona a europe ização do mund o com o imperialismo, a dominação, a colonização, a destrui ção cultu<al, o -- .. " preconceito racial, as lutas contra a dominação européia c os pmccssos ele contra-aculturação. Na década de 1940 tais associações não eram comuns, ~p~ram a ser i O ou 15 anos mai s tarde. Também não era frcqücnte, cm autores que abordam a acultu ração, relacioná-la com o imperialismo, a coloni zação c a dominação cultural. Ramos j á constatava, ass im , qu e o processo de aculturação não é sempre tão harmoni oso c sem conflitos como

prevê a teoria cultural ista. _, {):.

'Em diversos trabalhos Arthur Ramos apresenta quadros c esquemas de 2 :_­sincretismo que são comuns cm outros autores da época vinculados ao cu!- -tural ismo. Referi ndo-sc à avo lanche de si ncrct ismos, apresenta esquemas com9~ag.Q-muçulmi- banto-eatólico-~pírita-caboc lo ( 1942, p. 146).

Arthu r Ramos infeli zmente morreu cedo, com apenas 46 anos, como . , -r;f-y Nina Rodrigues. De fa to n52 foi um grande teóri co, nem g~ncle pesquisad~r -~

~mpo. A respéito de sincretismo e de aculturação, apresentou uma sín- .. tese do que os outros escreveram, acrescentando detalhes, sugestões c algu-

;,nas crític0os esquemas c classifi cações sobre sincreti smo rel igioso quÓ utiliza parecem hoje demasiadamente formais, mccanicistas,_9_q~ ·c de reduzido valor explicativo.\ .

~-~ismo é, portanto, um dos resultados do processo

de acuituraçã o. Como era comum na época, não di sti ngue sincretismo de acul turação c não entende sincreti smo como fo rma de res istência cultural, como será encarado posteriormente. Adotanclo visão esquemática c con-

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46 REPENSANDO O SINCRETISMO

ceitual, parece-nos que Ramos não conseguiu chegar a uma teori zação mais abrangente e objetiva sobre a real idade que estudava.

Gonçalves Fernandes

Em inícios das décadas de 1940 e de 1950, surgem dois trabalhos sobre sincretismo religioso, pu plicados por médicos da Escola de Recife de estu­dos afro-brasileiros fundada por Ulysscs Pernambucano c Gilberto Freyrc.

Ao que nos consta, são os p ri meiros livros com título sobre sincretismo,

entre nós.

Gonçalves Fernandes publicou vários trabalhos sobre o tema. Seu livro sobre sincretismo religioso no Brasil (I 941) é uma coletânea de artigos que contém diversas observações sobre mudan ças nas religiões populares. Apresenta fotos, inclui cânticos, orações, mitos, invocações, lendas, relatos de curas e comenta alterações decorrentes de perseguições pol iciai s aos ter­

reiros. Descreve aspectos do xangô, do catimbó e de vários outros cultos exóticos no Nordeste, cm Minas Gera is e no Rio de Janeiro. Aponta ainda aspectos do surreal ismo da religiosidade popular, cm que se misturam ele­

mentos negros com outros de procedências variadas, com a presença de imi­grantes japoneses, libaneses e italianos."Comcnta o aparecimento, nad"6c'adã'

- - -......:-• de 1930, da macumba para se ganhar jogo ele futebol e ela macumb~ , turistas.léftãeasos de curadores c beatos que constroem templos b izarros ~ ---- ~ e organizam seitas estranhas.' O trabalhá apresenta informações interes-santcs,-do6.~1cn ad~a quase jornaiística, assemelhando-se aos

' escritos de João do Rio, de inícios elo século, incorrendo cm preconceitos I

ainda comuns em trabalhos da época. · -

Waldemar Valente

Doze anos após a publicação de Fernandes, outro médico do Recife, Waldcmar Valente (1976), publica o segundo trabalho entre nós com o título Sincretismo Religioso, dedicado às religiões afro-brasile iras. Propõe-se dar

continuidade, ampliar e/ou adaptar os estu dos de N ina Rodrigues, Arthur Ramos e Herskovits.

Adotando a perspectiva da teoria culturalista, Valente (1976, p. lO) define sincretismo como: "um processo que se propõe a resolver uma situa­

ção de conflito cultural". Para ele sincretismo se distingue de aculturação, de assimilação e de amalgamação, caracterizando-se por ser uma intennis-

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REVISÃO DA LITERATURA SOBRE SINCRETISMO ... 47

rura de elementos culturais, uma interfusão, uma simbiose entre compo­nentes de culturas cm contato.

Considera que o sincretismo, como processo de intcração cultural,

abrange duas fases . A primeira, de acomodação, de ajustamento e de redução de conflitos. A segunda, de assimilação, implicando modificações ou fusão, num processo lento c inconsciente em que o rcmpo exerce sua ação.

Referindo-se diversas vezes à incapacidade mental do negro, parece-nos que Valente adota a visão da mentalidade primitiva de Lévy-Bruhl, que, segundo o próprio Valente (1976, p. 16), teria perdido a razão de ser. Sobre

sincretismo afirma 1976, p. 68): -r.-Nos candomblés de caboclo processa-se b. i ~ • ,, J...Í'"':

um stncretismo complexo, no qual se entrosam elementos de procedênci a ).1-l-"

nagô, jeje, banto, mina, malê, tupi, católica c kardecista. Misturados ainda

com possíveis vestígios esotéricos, tcosóficos e maçônicos. E também com

ráticas de quir~manc.!:.:~:!_om~n~ L • Assim Valente amplia os quadros do sincretismo, acrescentando novos

dados aos elementos coietados por Nina Rodrigues c Arthur Ramos. Ado ta, porém, a mesma visão de Arthur Ramos que nos parece automática, mecânica e pouco esclareccdora . ~Cióvis Moura (1988:-p. 39). criticando Valente, re­

f~ "ncccssi~e se analisar a influência do conceito de sincretismo criticamente, pois ele inclui um julgamento de valor entre as religiões infe­riores e superiores que, pelo menos no Brasil, reproduz a situação da estru­

tura social de dominadores e dominados". Vemos que Valente, embora incorrendo cm preconceitos, procura

ampliar a noção de sincretismo, distinguindo-a do conceito de acuituração

c caracterizando suas etapas. Apesar de deficiências, os trabalhos de

0..2,~'!.!v~s Fernandes c Waldemar V~lcntc sobre sincret ismo foram pio­nei ros em sua época. Posteriormente não encontramos novas tentativas de

r análise do sincretis;;;o com tais ambições generalizadoras. _,

I ).. • Herskovits e a teoria culturalista

Melville Herskovits foi um dos principais estudiosos da corrente cul­turalista norte-americana. Co-autor do Memorandum pelo Estudo da Aculturação de 1936, realizou numerosas pesquisas sobre o negro na África c cm vários países das Américas. Foi o principal teóri co do cultural ismo nos estudos sobre negros e religiões afro-americanas. Desenvolveu suas análises principalmente cm torno dos conceitos de foco cultural, província cultural do Velho Mundo, aculturação, dinâmica da cultura c mudança cul­

tural. Deixou vasta produção com quase 500 títulos, conforme apreciação

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48 REPENSANDO O SINCRETISMO

ele Rcné Ribeiro ( 1963, pp. 377-429). Em 1948, ele forma didát ica, expõe a

teoria da cultura, cm obra hoj e clássica ( 1969) .

Considera que foco cultu ral consiste na instituição de uma cultura que

apresenta maior com plexidade, maior va ri ação c onde ocorrem as maiores

mudanças ou onde o conservantismo aparece com maior intensidade (1969,

pp. 363-375). Para Hcrskovits, nas culturas da Á fri ca Ocidental c cm suas

deri vadas no Novo Mun do, a cul tu ra é o e lemento focai ( 1969, p . 374).

Como nesta~ regiões suas crenças não continham dogmas rígidos, os deuses

dos vencidos c dos vence do res foram li vremente tomados de cmprcst imo

( 1969, p. 375). Defi ne re interpre tação como .. o processo pelo q ual antigos significa­

dos se ad screvem a novos e le mentos ou atrav és d o qual va lo res novos

mudam a s ig nif icação cul tu ra l de ~clhas for~1as" (pp . 3 75-3~Consi dc~ o sincretismo como fo rma de rcinterprcwção dõSCicmeniOs de uma cul tura.

A ss im, para e le, sincre tismo c re inte rpretação const ituem componentes doj

diálogo cn! re__Q velho~ Constata que o processo de sincretismo tam-oém ocorreu entre e nt idades dos Haussás d a N igéria, que foram maome­

tani zadas com ele mentos do Alcorão ( 1969, p. 376) .

Utiliza o conceito de provínc ia cultural d o Velho M undo ( 194 1,

p. 18), reconhecendo que, apesar da au to nomi a e ntre c iv il izações, há

tradições c inst itu ições sim ilares, especial mente no fo ici orc, na rel igião c

cm outros aspectos ela cultura ele povos ela Eu ropa, Ásia c Afr ica. Elementos

culturais di stribu íd os cm todo o V elh o Mundo podem se mani fes tar, po r

exemplo, cm sobrevivências de africanismos no Novo Mundo, que emergem

ele contatos entre povos de procedência européia c africana.

No trabalh o que aprese ntou c m Con~sso na Bahj.i)' so bre deuses

af ri ca nos c santos cató licos ( 1940, p. 2 1 ), consid era que é a i n n uência do

cato lic is mo, "ju nta mente com vest ígios hodicrn os elo medo de que os cul­tos africanos sejam focos de revolta popular- med o consta nte me nte pre­

sente no entendim ento dos europeus d urante a escravidão - que expl ica a

i nfe rior posição social mantida por estes 'cultos fet ichi stas' onde quer que

seja" . Apresenta também correspondências entre deuses afri canos e santos

cató licos no Brasil , cm Cuba c no Hait i, con stata ndo que as di vergênc ias

I. Em relação ao 13rasil, ll crskovits deixou diversos trabalhos importantes. Realizou observações dirctas entre 194 1 c 1942 cm Recife, Sa lvador, Rio de Janeiro, São Paulo c Porto 1\lcgre. Orientou trabalhos de pesqu isadores brasi leiros, publicou nu merosos a rti gos e encam inhou trabalhos aos con •rcssos afro-brasi leiros de Reei rc cm 1934 . de Salvador cm 193 7 e de amcncanistas em São

Paulo cm 1954. omo mencionam 13astide e outros, l lcrskovits pare~chcgou a publicar todo o material que coletou no 13rasil.

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REVISÃO DA LITERATURA SOBIIE SINCRETISMO ... 49

nas identificações cm diferentes iocais deve-se ao fato de o si ncretismo ter-

se desenvol vido independentemente cm cada região. ./ ,

En~rJcrên ciãnâ13âh i a (1943, pp . 23 -26), analisa a possessão no

candom blé, q ue fora até então explicada cm te rmos de anorma l e psicopa- \

tológica, cm g rande parte porque as observações foram feitas p rincipa l­

mente por médi cos. Passa a anal isar a possessão cm termos cu lturais: não)

como fe nô meno anorm~ -- - -

S'cgrrhdo Ribe iro t 1963, p. 385), esta conferência, que fo i repetida em

várias capitais, exerceu influência considerável entre os que se dedicavam

aos estudos do negro entre nós. Hcrskovits conh ecia bem o fenômeno do

transe c d a possessão rel igiosa a part ir de suas observações na África c nas

A méricas. Tal vez suas pesqui sas no Brasil tenham-no levado a dar maior

ênfase a este compo nente fund amcnral da rel igião dos orixás.

Em sua obra teórica ( 1969, t.I, pp. 89-90), ana lisa a possessão na pers­

pectiva do re lativismo cultural, constatando que o transe é modelado cu! -_____________. tu ral mcntc c induzido por aprendizagem e disciplina. Sem dúvida sua visão

deste fenômeno fo i pioneira, c sua in fl uênc ia, decis iva pa ra a superação ele

preconceitos, se ndo atual a inda hoje.

Hcrskovits ( 1969, pp . 34 7-348) lemb ra que o c ientista social cubano

Fernando Ortiz criou o neologismo " transculturação" para substitui r a palavra

aculturação. Considera q ue poderia ser aceito pa ra exprimi r o conceito, se

a palavra aculturação não estivesse tão fixada na litcra tura2 .

Di scutindo o conceito de aculturação ( 1969, pp. 341 -362), Hcrskovits

acentua a importância da te rm inologia c do uso de conceitos o mais c lnros

possíve l como fe rramenta da pesq uisa (p . 343). Considera que a acultura­

ção nunca teve quali dade crnocêntr ica (p. 348) c que o termo não impl ica q ue as culturas cm contato se d ist ingam uma da outra cm ·'superioridade".

Também faz dis tinção entre contatos am istosos c hostis, afirmando que em

ambos se processa a acuituração. Refere-se ainda a movimentos contra-acul­

tu rativos c ao abandono da busca de culturas '·puras" ( 1969, p . 362) . Alunos de Hcrskovits realizaram também importantes estudos no Brasil

na perspect iva ela re01·ia culruralisra. Octávio da Costa Eduardo ( 1948) reali­

zou pesqu isa no Maran hão, que d i sê~ir~ll OS no p róx imo capítul o. Renê "-...... _.

2. Fernando Ortiz ( 1983, p. 90) ass11n explica sua proposta: "'Entendemos que o vocábulo transcul­:u:-açào expressa melhor as difcrcmcs fases ôo processo transi tivo de uma cu llura noutra, porque

nfi o consiste somente cm adquirir uma cultura distinta, que é o que a rigor indica a palavra anglo­amcricana aculluraçfio, mas que o processo implica necessa riamente a perda ou o dcscnrniza·

mcnto de uma cultura precedente, o que poderia ser di to como sendo uma parcial tlesculturação. e, além disso, si gnifica a conseqüente criação ue novos fenômenos cu lturai s , que poderia ser dcnom!t~ad~ de ncocuiluíação':. '

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50 REPENSANDO O SINCRETISMO

Ribeiro desenvolve até hoje estudos sobre o negro, religiões afro-brasil eiras - -c outros assuntos, especialmente em Pernambuco.

Em vários trabalhos René Ribeiro di scute aspectos do sincretismo. Num deles ( 1955, pp. 473-491), anali sa o si ncretismo na perspect iva do

processo de reinteprctação, documentando a incorporação nos cultos afro­brasile iros óe práticas do foiciore derivadas do rc isado, das congadas e dé padrões de conduta sexual africana. Ribeiro, como veremos adiante, faz várias críticas aos trabalhos de Bastide.

Tullio Seppilli

O antropólogo italiano Tullio Scppill i ( J955a; b; c), na década de 1950, publicou em Roma dois artigos e um anexo, num total de umas cem páginas,

sobre sincretismo afro-brasileiro c aculturação. Os artigos foram traduzidos pelo Instituto de Estudos Brasileiros da US P, na década de 1970, mas não estão publicados no Brasil, sendo difícil localizá-los. Trata-se de estudos bem documentados c criteriosos, com referências bibliográficas numerosas.

Po s icionando- se a favor do materialismo hi stó rico e utilizando a metodol ogia da aculturação, Scppilli se interessa por estudar religião c sin­

cretismo afro-brasileiro. Bastide ( 197 1) o cita me ia dúzia de vezes, con­cordando com suas idéias ou di scordando delas. Parece qu e seus trabalhos não tiveram muita divulgação no Brasil, embora sejam citados por alguns

autores. O professor João Batista Borges Pereira nos di sse que, na época, o sincretismo e a teoria da aculturação foram considerados temas ultrapassa­dos, suplantados por outros assuntos c novas teorias, sobretudo pelos estu­dos de cl asses soc iais e pelos trabalhos de Lévi- Strau ss.

Considera (Scppill i, 1955a, p. 15) que o si ncret ismo com a relig ião católica foi maior na liturgia elo que na mitologia. Diz que na liturgia encon­

tramos a presença africana nos cânticos, nos instrumentos, no ri tmo, na melodia, nas danças, nas comidas sacras, e que o alta r c santos catól icos são englobados como influências secundárias pela liturg ia afro-brasileira. Afirma (id. ib.) que "dessa maneira o estudo da liturgia leva a uma m aior com­

preensão[ ... ] do sincretismo".

Mostra preocupação metodológica em realizar uma interpretação cien­tífica do sincre tismo para compreender as religiões afro-brasileiras. Afirma ainda não ter encontrado sol ução orgânica que permita uma aval iação crítica

e a sistemati zação elo fenômeno cm seu conjunto. Refere-se (1955a, p. 14) à necessidade ele estudar o sincretismo na perspectiva histórica.

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REVISÁ O DA LITERATURA SOBRE SINCRETISMO ... 51 --.---1 Seppil li aceita preconceitos comuns na época, como a referência à superioridade cultural dos iorubás e dos escravos islamizados ou a preocu­pação com a pureza africana. Prevê o desaparecimento fatal e progressivo

dos cultos afro-brasileiros (1955a, p. 26tBastide (197 1, p. 334) o critica, a nosso ver inju stificadamente, por utilizar livros e art igos qu e diz serem ultrapassados e incorrer no erro de dizer que os mitos estão perdidos. Seu trabalho, entretanto, apresenta preocupações científicas bastante avançadas

cm relação aos padrões da época.

Críticas à teoria culturalista

Como demonstram diversos autores (Cardoso de Oliveira, 1978, pp. 83-84), a reoria culturalista não leva devidamente em conta o caráter de s istema da cultura de uma sociedade e sua estru tura, daí in sufici ências e

inadequaçõcs desta abordagem, sobretu do em regiões subdesenvolvidas

onde se considera que existem verdadeiras co lônias internas. Estudando sociedades indígenas e suas relações com a sociedade nacional, Cardoso de Oliveira ( 1979) propõe que a noção de aculturação seja substituída pela de "fricção interétnica".

A teo ria funcional ista c os estudos de co ntatos de cu lturas com ela vinculados foram criticados por Balandicr ( 1971 , pp. 22-28) e por Leclerc

( 1973, pp. 69-80), entre outros. Balandicr, a partir de análises anteri ores de Max Gluckman, critica a concepção de dinâmica da cultura de Malinowski, desenvolvendo a noção de "situação de contato".

Como mostra Balandier, entre os povos dependentes, as situações que foram denominadas de choques ou contatos de civilizações ocorreram em

condições específicas que têm o nome de situação colonial, definindo-se pela "dominação imposta por uma minoria estrangeira 'racialmente' e cul­turalmente diferente, em nome de uma superioridade racial (ou étnica) e

<cultural dogmaticamente afirmada, a uma maioria autóctOne materia lmente

inferior" (197 1, pp. 34-35).'Na perspectiva de "fenômeno social total" de Mauss, Baiandierconsiaera- a s ituação colonial em seu conjunto como um sistema totalizante c conclui propondo uma antropologia e uma socio logia

dinâmicas. No campo dos estudos afro-brasi leiros, Renato Ortiz (1978, pp. 10-

13) critica também idéias da escola culturalista. Assinala a importância ele

Arthur Ramos como seu principal representante no Brasil. Para Renato Ortiz,

a idéia central ela noção ele aculturação valoriza a "cultura" cm detrimento da "sociedade". Diz que as críticas ele Balandier ao cultural ismo combatem

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52 REPENSANDO O SINCRETISMO

o erro de se considerar a cultura como um sistema autônomo (i 978, p. 12) .

r rropõc-sc discuti r a integração da umbanda na sociedade urbano-industrial

c de classes do Brasii c não cxatamcntc como fenômeno de sincretismo reli­

g ioso, utilizando o conceito de reinterpretação de Hcrskovits para fazer uma J

anúli sc da entidade Exu no candomblé c na umbanda.

Entre os estudi osos do negro no Brasil , C lóvis Moura ( 1988, pp. 34-

36) criti ca os conceitos de sincretismo, ass imil ação, acomodação e acu l­

turação, "tão caros a uma ciência social colonizadora". Considera que ·'certos

conceitos ela antropologia revelam ele forma tra nsparen te [ ... ] sua função de

c iê nc ia auxiliar de uma estrutura ncocolonizadora" ( 1988 , p. 38): Mostrã"

que mui tas análises elo sincretismo incluernjulgamenros de vã lor, pois con-1

sideram_ inferior a rel ig ião elos dominados.

Para M ou ra (1988, p. 45), o conceito ele aculturação "tem limitações

c ientífica s enormes". Tem como conseqü ência a di luição ela "domi nação

estrutural - cco nômico, social c pol ítico de uma das culturas sobre a outra.

[ ... ]O culturali smo exclui a histori c idade do contato" (1988, pp. 45-46). "A

aculturação não mo difica as re lações soc iais c conseqüente mente as insti ­

tuições fundamen tais de uma estrutura social. Não modifica as relações de

produção" ( 1988, p. 47). Parece-lhe que o processo aculturativo dese mboca no conceito de " democraci a racia l", c a aculturação não é um processo de

di nâmica soc ial.

Analisando estudos sobre o negro no Brasil, Borges Pereira ( 1981, pp.

198-199), embora reconhecendo o padrão c ientífico dos trabalh os desta es­

cola entre nós, destaca com muita propriedade que, enfa tizando a cultura c

ere ligião, a antropolog ia negligenciou os aspcctoS'' normais" ou tri via is da

da do negro, contribuindo para construir a imagem de ''o negro cspctáculo". ---Como vimos, a teoria culturalista tem sido cri ticada por muitos, mas

fo i aplicada a inúmeras áreas. N o campo d os estudos sobre o negro c das

relig iões afro-americanas, Hcrskovits foi seu principal autor. Foi nela que

se fizeram primeiro, c com maior ênfase, tentativas de abordagem mais teóri ­

cas do fenômeno do sincret ismo.

O conceito de re interpretação fo i uma das princ ipa is noções dcscn­

voiv idas po r Hcrskov its na análi se do sin c reti smo. Para Bastid c ( 197 ! ,

p . 53 1 j, embora este conceito pe rmaneça muito próxi mo do que ele própio

denomi na de aculturação materia l, foi o mais importante desenvolvido pela

antropologia no estudo dos encontros de c ivilizações. Bastidc ( 1973 , p. 147)

icmbra que Hcrskovi ts foi criticado sobretudo por sociólogos negro s co mo

frankli n Frazier, que o acusa de preconceito branco.

,

I

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/IEVJSiO DA LITEIIA TUIIA SOJJRE SINCRETISMO .. . 53

A pesa r d as críticas, a contribu ição de Hcrskovi ts c do cuituraiis mo

foram importantes, realizando avanços inegáveis no campo dos estudos afro­

americanos. Entre outros aspectos, fez-se a anál ise do transe como faro social

normal c pela primeira vez se rea li zou abordagem teórica ma is ampla d o

si nc rct ismo re i igioso.

CONTRIBUIÇÕES DE ROGER BAST!DE

Nos úl timos c inqüenta anos, o autor mais publicado c mais conhecido

no campo dos estudos afro-brasileiros foi Roger Bastidc. Sua obra até hoj e

exerce la rga influê ncia, desperta vocações e permanece um ponto de par­

t ida para pesquisas posterio res, como se ele fosse um novo fundador deste

campo. Orien tou trabalhos de alunos q ue hoje são estudiosos conhecidos,

como Binon-Cossard, Renato Ortiz, Jua na Elbein e outros. 1

Três anos após seu falecimento, duas reses fo ram defendidas cm Pari s

(Bcylicr, 1977 c Ravclct, 1977) sobre ele. O total de sua obra foi aval iad o

cm 1335 textos (Ravclct , 1978). É, portantO, mu ito complexa uma síntese

de seu pensamento sob qualquer aspecto. Interessa-nos, aqui, a contribuição

de Bast id c a respeito de s incretismo afro-bras ile iro , assunto sobre o qual

fo i dos autores que mai s escreveram c teorizaram, ad otando a perspectiva

da so ciologia em proji111didade de Gurvitch.

I '

<

Desde seus primeiros livros no Brasil , Bastide (1945) refere-se divcr- .J

sas vezes ao sincretismo. Discutindo, por exemplo, a ori gem do candomblé -- ;..J' de caboclo ( 1945, p . 196), considera que o indigcnismo após a independência , t"~ foi um dos motivos da inc lusão do índio no ca ndomblé .' Pergunta se esta , /

.' inc lusão dataria de~ como lhe afirmaram, ou se teria s ido difundida

com o espiritismo, que cm outro lugar (Bastide, 1971 , p.432) informa ter

sido introduzido _::om sucesso imediato no Brasil, desde 1863.

Data de 1946 um dos primeiros c importantes estudos de Bastidc ( 1973,

pp. 159-1 9 1) sobre sincreti smo. Cons idera aí que não ex iste uma re li g ião afro-brasile ira, mas várias. Procurando entender o sincretismo dos orixás

com os santos, parece-lhe que há ini cialmente uma inte rpretação socioló­

gica-~ catolicismo é um meio de 9 isfarce- é a ilusão da catequese de que

fala N ina Rodrigues. <------- --A segunda interpretação seria psicana lít ica - trata-se da projeção de

um complexo de inferioridade desenvolvido no negro pela escravidão, pois

a re ligião do branco faz parte de uma cultura considerada superior. Após

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54 REPENSANDO O SINCRETISMO

analisar respostas de devotos a perguntas que formulou sobre santos e orixás, Bastide vai procurar outras explicações mais profundas para o fenômeno.

Em diversos trabalhos, Bastide critica e procura ultrapassar o conceito de aculturação. Considera (1 97 1, p.29) que não são as civilizações que

entram cm contato, m~s os homens. Não se pode estudar os contatos entre as civili zações separando-os das situações de contatos, daí a necessidade

de encarar o encontro de civilizações ultrapassando a sociologia colonial , através de uma sociologia cm profundidade. Afirma (197 1, pp. 38-39) que os estudos sobre aculturação eram feitos na perspectiva de pequenas comu­nidades e sob a ótica exclusiva do funcionali smo.

Considera (1974) que o conceito de re interpretação proposto por Herskovits não cobre todos os aspectos da vida afro-americana. Em 1948 (Trindade, 1985, p. 430), o conceito de convergência lhe parece mai s indi­cado. Em sua tese (1971, p. 531 ), diz que o conceito de reinterpretação é

import.@te, pois retorna ao pensamento de Durkheim.\Para o afro-brasileiro (há duas espécies de reinterpretação possíveis: a do~ traços culturais oci­

dentais em termos africanos (culto dos santos, concubinagem) c a reinter-1 pretação dos traços culturais africanos em termos de cultura ameríndia ou ._p_grtuguesa (culto dos monos, transe) . ~

Para entenél~ esses movimentos em direçõcs divergentes, localiza, além da reinterpretação, uma dupla aculturação: a material, relacionada com o conteúdo das cu lturas em contato3, c a aculturação forma l, que se rela­ciona com o espírito, a mentalidade, o inconsciente, sendo mais lógica e afctiva. Estuda também ( 1973) a aculturação jurídica, folclórica, cu! inária,

literária e religiosa . Aproximando-se de Durkhcim, Mauss e Lévy-Bruhl, passa a racioci­

nar sobre o que irá chamar de princípio de cisiio para compreender o s in­

cretismo afro-brasileiro. Como informa (1973, p. 182), fora "a própria palavra s increti smo que me induzira ao erro. Eu procurava um fenômeno de fu são ou pelo menos de penetração de crenç;s, d~ simbiose cultural, uma espécie de q~mica dos sentimentos místicos. Mas o pensamento do negro se move num outro plano, o das participações, das analogias, das correspondências".

D iz que passou para o que Durkheim e Mauss chamaram de "classi­

ficações primitivas", constatando que o que a sociologia norte-americana chamava de aculturação era insuficiente.

r Pere ira de Queiroz (1983 , pp. 27-37), analisando a obra de Bastide, diz que ele se voltou para a análise das religiões afro-brasi leiras com duas

3. Para Bast ide (1974, pp. 193- 194), o conceito de reinterpretação de Herskovits parece mais pró­

ximo da aculturação material.

I

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REVISlO DA LITERATURA SOBRE SINCRETISMO ... 55

~as teórica0 de um lado, inspirado em Nina Rodrigues, Euclides da Cunha. e ou~nsiderava a existência de uma dualidade em nossa sociedade (brancos X negros; cidades X campo; sobrevivências africanas X valores

~de outro lado, apoiava-se na teoria d~fendida por Lévy-Bruhl ~ cm voga na década de 1930, sobre o pensamento primiti vo.

Para Lévy-Bruhl, as representações coletivas dos povos primitivos teriam a especificidade da participação. Os primitivos raciocinariam segundo a lei de associação de idéias, por contigüidade c por similaridade. A lei de participação constituiria para Lévy-Bruhl a base da lógica primitiva, orien­

tando suas classificações4•

Pereira de Queiroz (1983, pp. 33-34) mostra que a teoria de Lévy­Bruhl foi sendo abandonada por Roger Bastide ao aprofundar suas análises

sobre as religiões afro-bras ileiras, verificando que não existiam categorias primeiras do espírito humano, e sim sistemas mitológicos diferentes, con ­forme as sociedades. No mencionado artigo (1973, p. 184), Bastide vê o sincretismo como um sistema de equivalências funcionais, de analogias e

de participações. ---._,_ __! Como aparece formalizado cm artigo de 1955 e em outros trabalhos,

\}3 astide elaborou a partir destas idéias o princípio de cisão ou de cortc5•

Diversas vezes (1971 , pp. 529-530), emprega-o como solução do problema

da aculturação, parecendo-lhe possuir valor geral característico dos fenô­menos aculturativos.

·o princípio de cisão é uma das idéias-cha,;,cs incluídas em sua tese de\ ~orad<1""É ali parcialmente comentado na introdução e nas conclusões (Bastide, 1971, pp. 17-24,37-42, 523-535), embora tenha sido intuído e

4. Lucien Lévy-Bruhl, falecido em 1939, exerceu grande inlluência teórica na antropologia em começos do século. Nos seus Carncts, publicados pos tumamente cm 1949, aba ndona a idéia do caráler pré-lógico do pensamentO primitivo e a lei de participação para entender sua lógica (Lévy­Bruhl , 1949, pp. 60-62, 77-80) . Bastide, em vários trabalhos (1955, p. 493 ; 1973, p. XIII), reco­nhece que Lévy-Bruhl havia abandonado a tese do pensamento pré-lógico, mas " isto não quer

dizer que a lei de participação não existe, somente, que ele havia dado uma interpretação crrônea". Para Bastide ( 1973. p. XIII), em seus Carnets, Lévy-B ruhl jamais renegou a noção de partici­pação. Evans-Pritchard (1978b, pp. 111- 138) faz revisão crítica, analisando os principais con­ce itos utilizados por Lévy-Bruhl.

5. Pereira de Queiroz (1983, p. 32) afirma em nota: "Roger Bastide util izou o termo francês coupure, que significa ato de cortar. Julgamos que o termo correspondente em português seja 'cisão'". Constatamos que algumas vezes este termo aparece traduzido por Hcorte" (como em l3astidc.

1971, pp. 238, 517). É traduzido também por principio de "ruptura" (in Trindade, 1983, p. 643). Coupure é as vezes denominado pelo autor de brisure. rupture, hiatus (Ravclct, 1978, pp. 322-323). Em português, pode ser traduzido como rompimento, separação, fissura, cisura ou cisão. Parece-nos porém que a tradução cisão proposta por Pere ira de Queiroz é a mais adequada e a

que deveria ser utilizada uniformemente em novas edições ou traduções da obra de 13astide, bem como nas referências que lhe forem feitas .

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56 REPENSANDO O SINCRETISMO

apresentado, cm etapas, cm diversos trabalhos, pelo menos desde 1946 (Bastide, 1973, 1955). Excelente resumo foi elaborado por Pereira de Quei roz

( 1983, pp. 3 1-3 7) e por Ravclct ( 1978, pp. 28 I -289, 32 I -3 24). A síntese

que estamos apresentando base ia-se nestes t rabalhos.

Partind o de es tudos sobre nossa rea lidade, Bastidc preocupa-se cm

compreender, na perspectiva denominada por Gurvitch, de u ma socioiogia em profimdidade, o encontro ou conta to entre civil izaçõcs diferentes. Procura

construir o que denomina de sociologia das interpenetrações de c ivilizações,

subtítulo de sua tese c expressão que prefere uti lizar, cm vez do termo acu l~ turação, mais cmpregã'd~ pela antropolog ia culturalista norte-americana .

Analisando razões últimas das interpenetrações de civlizações, diz que ultra­

pa ssa o funcion al ism o, procurando chegar a uma análise soc iológica da

sociedade brasilcir~ (1971, p p. 39-40).

- Segundo Bastide (1973 , p. 182), para Lévy-Bruhl o pensamento pri­

mitivo é analógico : vai do semelhante ao semelhante. O universo para o

p rimitivo estaria dividido cm certo número de compartimentos estanques c

as participações se fariam no inte rior dessas divisões c não de uma di visão

a outra. O sincretismo deixa transparecer resíduos desta maneira de pensar.

Não se trata de mistura ou identi ficações, o que seria um verdade iro sin ­

cretismo, mas de semelhanças, equivalências c não identificações (por exem­

plo, entre o ri xás e santos) . Trata-se de um jogo de analogias.

Bastide (1955, p . 494) lembra tamb ém que, segundo Durkhei m c

P iagct, as classificações dos primitivos são comparáveis às nossas, po is

div idem o real num certo número de compartimentos. Mas, segundo Piagct,

estes esquemas intelectuais primitivos não constituem verdadeiramente sis­

tematizações lógicas, pois não formam, como nosso pensamento oc idental ,

classes dcsjunras c encaixotáveis umas nas ou tras. Assim como o s com­

partimentos do real não são encaixáveis uns nos outros, Bastide não fa la, como Durkhcim, em classificações, mas cm um princípio de cisão que,

segundo e le, complementaria o p rincípio de participação de Lévy-Bruhl.

Parece-lhe ainda que a expressão é mais adequada do que a de Durkhcim.

Apoiado cm Griaule, acresce nta o princípio de correspondênci as . Diz

que não há parti c ipação de um domínio do real a outro, mas há analogias

ou correspondências.

Para Basti de, as grandes interpretações da cosmologia primit iva, a de

L6vy-Bruh l, a de Du rkheim c a de Griaulc, longe de se oporem, consti tuem

pontos de vista complementares. Parece-lhe, pois, que os princípios de cor­

respondência, o de participação c o de cisão constituem a melhor imagem

que se pode fazer da cosmologia primi tiva. Destes, o mais importante é o

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REVISÃO DA LITERATURA SOBRE SINCRETISMO ... 57

princípio de cisão, pois dentro das cisões é que se realizam as participações c as correspondências místicas.

No mesmo traba lho, Bastide (1955, p. 498) constata que é preciso rever a teoria do "homem marginal" , do homem dividido entre dois mun­dos que se defrontam dentro dele. Parece-lhe que, pelo pri ncípio de cisão, o afro-brasileiro escapa à desgraça da marginalidade. Impressiona-l he a ale­gria de viver c o equi líbrio psicológico dos adeptos do candomblé. Q.n~gro ~o é tfío fe rvoroso patriota quanto está li gado à ,sua cultura anccs­~ Age como os outros brasi lei ros no mundo cconômico, c enquanto mem­bro do candomblé, faz parte ele um mundo onde predominam outros valores.

Esta característica não é puramente brasileira. Na África também se diz: "É verdadeiro para os negros". O negro considera namral que um sort i­légio, uma magia, um rito ajam quando se trata de africano, mas não tenham eficácia quando aplicado, aos bra ncos. Quando um membro do candomblé afirma seu catolicismo, não mente, poi s é ao mesmo tempo católico c "fe­tichista". ~s_duas coisas não são opostas, mas separadas- é a lei de analo­gias que a~c_. Assim, o corte ou cisão é constatado ao se-verificar que nos templos de candomblé há um altar católico c um pcji africano, que se podem corresponder, mas não se idcnti ficam, pois desempenham papéis diferentes. Um informante lhe diz que "rezando ladainhas não mistura nada de africano c que cm outros momentos celebra fe stas africanas c não mi stura nad a de católico".

Tra ta-se, cm sua visão. de um mundo compartimcntado c cujos com­partimentos não são encaixáveis uns nos outros. O princípio de cisão parece­lhe como uma característica dos fenômenos aculturativos, agindo sobretudo nas famí lias ligadas ao candomblé, nas classes ba ixas da sociedade, onde a in fluência da escola permanece confinada a alguns anos da primeira infân­cia c nas comunidades onde os preconceitos de cor são mínimos (Bastidc, 1955 , pp. 493-503; 197 1, pp. 17-29, 523-531 e 1973, pp . 182-191).

Enco ntram os por parte de pais-de-santo como pô i Balbino da Bahia, ou de intelectuais radicados cm nosso meio, como Pierre Vergcr, declara­ções de que .. candomblé c catolicismo são como úgua e óleo- podem ficar no mesmo copo, mas não se misturam" (Vcrgcr, 1983 , p. 45). Segundo V erg c r ( 198 i , p. 28), ''com o passar do tempo,[ ... ] tornaram-se eles tão sin­ceramente católicos quando vão à igrej a, como ligados às tradições africanas, quando participam, zelosamente, das cerimônias do candomblé". Declarações como estas, a nosso ver, complementam a opini ão de Bastide.

Atualmcntc, o sin cretismo afro-católico passa a ser rej eitado publi ­camente, por diversos pais c mães-de-santos, como mãe Stela de Oxóssi,

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'

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58 REPENSANDO O SINCRETISMO

zeladora do Axé Opô Afonjá de Salvador, ao declarar publicamente que os pais-de- sa nto devem ser contrári os ao s incretismo (Fry, 1984, p. 38). Encontramos atitude idêntica de reje ição do sincretismo por parte de pai s­de-santo que se pretendem reafrica ni zados (Prandi , 1989), como men­cionaremos adiante.

Críticas às análises de Bastide

O curioso artigo de Bastide ''Macunaíma cm Paris", datado de 1946, (Pereira de Queiroz, 1983, pp. 78-80), desperta-nos o interesse em traçar paralelismos entre ele e Mário de Andrade. O intelectual paulista foi sobre­

tudo literato, musicólogo e folclorista. Através de suas diversas atividades na área de cultura, Mário de Andrade tinha em mente o projeto da construção de nossa nacionalidade. Um dos marcos desse projeto foi sua rapsódia

Macunaíma, o Herói sem Nenhum Caráter (Andrade, 1988), cm que procura recriar, a partir do herói mítico, a figura do protótipo do brasi leiro. Este origina-se do índio e do negro, vira branco, é esperto e sempre encontra saí­

das, dando um jeito brasileiro para resolver problem as. É bastante hábil, embora seja preguiçoso e tenha muitos outros defeitos. Macunaíma não é igual nem melhor do que os elementos que contribuíram para sua formação,

mas é um ser novo c diferente.

No capítu lo VIl de Macunaíma, Mário de Andrade dcsqcvc um ritual de m acumba na casa de t ia C iata, onde tinha m uita ge nte, "gente direi ta, gente pobre, advogados, garçons, pedreiros meia-colh eres, deputados,

l gatunos, vend edo res, bibl iófilos pés-rapados, acadêmicos, banquei ros, \ , ladrões, senadores, jecas, negros, senhoras, futeboleres ... " A descrição de

Mári o de Andrade assemelha-se às que eram comuns na imprensa brasi leira nas primeiras décadas do século, como as de João do Rio (1976), ou artigos ---...... _~do surreali starBcnjamim Peret, dos anos 30 (in Ginway, 1983). Mário de Andrade distingue-se, entretanto, por não acentuar uma vi são negativista,

pejo rativa c prcconceituosa, como as que encontramos norma lmente na imprensa. Em vários trabalhos, constata-se seu interesse pela macumba, pela pajelança, pelo catimbó e outras fo rmas de religiosidade popular6.

6. Artistas c intelectuais de vanguarda na década de 1920, que eram também nacionalistas . regis­

tram visões ''surrea listas" da religião c da cu ltura popular, como comenta com acuidade Alcjo

Carpentier no prólogo da edição brasileira do li vro " Écuc-Yamba-Ó". Entre outros temas do povo,

Carpenticr descreve rituais de iniciação à soc iedade dos nanigos de Cuba, que qualifica de uma

espécie de "maçonaria popular".

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REVIMO DA LITERATURA SOBRE SINCRETISMO .. 59

Como Mário de Andrade, Roger Bastide se preocupava em entender

nossa realidade, adotando uma perspectiva essencialmente sociológica. Não

elaborou um projeto do brasileiro, mas procurava analisar em profundidade

aspectos do nosso comportamento. O princípio de cisão de Bastide é um

elemento fundamental que diferencia sua v isão da de Mário de Andrade,

mais preocupado em formular uma síntese do homem brasileiro.

Interessado no problema da interpenetração de civilizações, Bastide

procura contornar situações de anomia decorrentes dos sincretismos e das

misturas resultantes dos contatos entre culturas diferentes. Por isso dá ênfase

à cisão, à separação, à preservação relativamente pura, no candomblé, de

elementos originais da construção de nossa cultura, criticando a desinte­

gração que encontrava na macumba, em oposição à integração que discernia

no candomblé. Mário de Andrade, por outro lado, constrói em Macunaíma seu modelo de brasileiro, apoiado numa síntese original, sui generis, apre­

ciando a macumba, sem receios de sinc reti smos ou de anomias.

Enquanto Mário de Andrade se colocava favorávei à mistura, ao sin­

cretismo e à macumba, Bastide se colocava ao lado da pureza do candomblé,

separado do sincretismo e da mistura, fenômeno que explicava pelo princí­

pio de cisão. Cot.llO afi.rma Peter .Fry ( 1984b_, p~~en~o então que .o debate sobre o smcretismo religioso remete a toda uma discussão mais

ampla sobre o pensamento brasileiro como um todo. Há uma forte tensão

entre uma ênfase numa cultura nacional homogênea ('sincretismo,

mestiçagem') c uma outra nas especificidades culturai s com v istas a um

pluralismo cultural".

René Ribeiro (1982, pp. 72-78) critica o princípio de cisão de Bastide,

"autor por muitos tí tulos merecedor do aca tamento, mas nesse, como em

vários outros pontos, lamentavelmente mal informado e equivocado" (1982,

p. 74) . Ribeiro critica a tese de Bastide (1971, pp. 157-180) da existência

de dois catolicismos - a religião do senhor c a do escravo, em que o catoli ­

c ismo aparece como subcultura de classe (1971, p. 162), com confrarias ele

brancos e ele negros. Considera que esta abordagem sociológica minimiza

o princípio de reinterpretação, acentuando o clua l is~o na estrutura ela sociedade. --·- ..... - -- ·

Ribeiro também critica a perspectiva marxi sta ele Bastide, que a seu

ver enfatiza o fator económico . Crit ica o princíp io ele c isão dizendo que toda sociedade impõe uma padronização de grande número de papéis. Critica

a metodologia de Bastide, que cons idera estruturali s ta, por despreza r a natureza valorativa da cultura. Suas críticas a nosso ver procedem em parte,

po is o marxismo de Bastide não o faz incorrer num determinismo

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60 REPENSANDO O S/NCRET/SA/0

cconômico. Segundo Douglas Monteiro ( 1978, p. 15), cm Bastide, nem sem­

pre "o sagrado degrada-se cm instrumento de dominação e de luta".

Bastidc estava demasiado imbuído de princípios lógico-filosóficos,

vendo dois mundos se defrontarem dentro do homem que pratica o can­

domblé. Por isso se espantava de que o negro fosse ao mesmo tempo patrio­

ta, agisse como outros brasilei ros c continuasse ligado à sua cultura ancestral,

cm que predominam outros valores. Daí a importância que dava ao princí­

pio de c isão, cm suas análises do sincretismo, dos contaras culturais e da

aculturação.

É conveniente indagar: até que ponto este princípio de cisão fu nciona

de fato na mente dos participantes das re li giões afro-brasileiras? Será que

pa ra os adeptos elo candomblé o universo estari a d ividido cm comparti­

mcnros inconciliáveis, como via Bastidc? O participante do candomblé con­

segue construir o mundo como um todo coerente c harmonioso c vive suas

crenças sem nelas encontrar contradições, como Bastide mesmo constatou .

Co nsegue conciliar coisas que a outros parecem inconciliáveis. O catoli ­

cismo c a religião de origem africana funcionam para os devotos, a nosso

ver, como se fossem camadas de um bo lo recheado, que eles saboreiam c

digerem indistintamente.

As religiões de origem africana, ao menos cm seus redutos mais anti ­

gos, preservam suas características paralelas aos e lementos do catolicismo,

como un idades que se justapõem c nã o se confundem, como reconheceu

Bastidc. O princípio de cisão foi um instrumento teórico-metodológico de

anúl isc que ele criou para entender a interpenetração de civilizações c o sin­

cretismo, considerando fundamental separar coisas distintas c opostas, que

logicamente não poderiam estar misturadas. Para outros, tal procedimento

não é tão importante .

Entre as críticas a Bastidc, destacamos a de sua aluna Juana Elbcin

dos Santos ( 1977, pp. 107-1 08), a respeito da expressão "religiões em con­

serva", que ela considera "uma denominação pouco feliz".

A religião foi o mais poderoso transmissor de valores[ ... ] que de nenhum modo permaneceram congelados [ ... ]é absolutamente enganador interpretar a fide­lidade às raízes africanas como cópia, como algo imutável c congelado( .. . ] Sustentar

' a premissa do congclamcnro revela, por um lado, dcsconhccimcnro do dinamismo próprio do sistema africano herdado c de sua habilidade de renovação [ .. . ] incorpo­rando mudanças; c por outro lado, comete o ctnoccntrismo inconsciente de regis­trar como mudanças só aquelas que visivelmente revelam elementos de procedência ocidental.

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!?E VISÃO DA LITERATURA SOBRE SINCRETISMO ... 61

Concordamos com Elbcin dos Santos. A religião da Casa das Minas

não pode ser rotulada de '·religião cm conserva", com faz Bastidc (1974,

pp . 124- I 30), pois apesar de haver declinado cm alguns aspectos, permanece

v iva c dinâmica (Fcrrctti, 1985), e esta expressão não é adeq uada a seu

estudo. Outra crítica a Bastidc refere-se à utilização elo que foi denomi nado

de "etnografia congelante". Comentando a revisão da li teratura afro-brasileira

já realizada por Bastide em 193 9 , Jorge de Carvalho (I978, p. 95) afirma:

Este foi o início de uma atividadc que ele continuou ao longo de toda a vida: sumarizar a massiva litera tura brasileira[ ... ] Além disso freqücntcmentc faz uso destes resultados como suporte para sua próprias interpretações. Fazendo isso ini ­ciou um novo c quase peculiar meio[ ... ] que posso chamar de "etnografia conge­lante": a falsa, embora atrativa suposição de que os dados apresentados nos livros c artigos de escritores brasileiros representam a realidade da vida do culto, de tal forma que podem ser aceitos como válidos inclusive na época atual, não importando quão velhos eles sejam. Esta "etnografia congelante" aceita a descrição do que acon­teceu num grupo de culto nos tempos de Nina Rodrigues como sendo ainda um retrato válido do que está acontecendo nos grupos de culto da Bahia na própria época da pesquisa de Rogcr Bastidc. Sem dúvida ele não foi o primeiro autor a adotar uma "etnografia atemporal", mas a grande ênfase que sempre pôs nas referências biblio­gr;ITíê as toríiã cst'Cjji-occdimcnto técnico muito aparente na maioria de seus livros, pois ele não era somente um erudito, mas freqüentemente a utiliza cm muitas ocasiões como fonte de dados.

Concordamos com estas críticas a Bastidc, especialmen te cm relação

ao Maranhão, como já disse mos cm outra oportunidade (Fcrrctti, S . 1985,

p . 26) . Na d écada de 1950, Bastide esteve cm São Luís por poucos dias, c

a maior parte de suas referênc ias àquela região decorre ele informações de

outros autores, colhidas cm meados da década anterior, que continua a uti -

fí~isêü'Scscri tos dos anos 60.

Também faz afi rmações apressadas , imrrcc isas ou erradas , como por

exemplo: que na mitologia os voduns não v ivem na cidade, mas nos cam­

pos (1973, p. 170); diferenciando o estado ele transe das tobossi (transe infan­

til), dos toqucnos (que diz ser de transição) c dos deuses prorriamcntc ditos

( 197 1, p . 5 16); ide ntificando toboss i c crê com ibcji (I 978, p. 222); dizendo

qu e a possessão pcios toque nos ocorre somente após à dos voduns ( 1978,

p. 2 18) ; afirmand o que Vcrgcr m ost rou que a Casa das Minas de São Luís

teria sido provavelmente fundada c m I 796 ( 197 1, p. 70). Estas c outras

imprecisões comprovam cm pane crít icas que hoje lhe são feitas.

E m palestra na USP cm I987, anali sando contribuições de Bastide ao

estudo dos cultos afro- brasileiros , Lísias Negrão come ntou que Bastidc

rejei tava o conceito de sincretis mo, marcado pela perspectiva cu lturalista

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11

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62 REPENSANDO 0 SINCRETISMO

(ver Bastide, 1973, pp. VII-XX), preferindo o conceito de interpenetração

de civilizações. Lísias destaca a extensão da obra, sua qualidade, coerên­cia, profundidade teórica c sensibilidade sociológi ca para com os proble­mas do negro.

Lísias não concorda com os que levantam contra Bastide uma visão

crítica impertinente, apressada e leviana, com intui tos de demolir o trabalho cu idadosamente elaborado de um etnógrafo paciente, identifi cado com o sujeito c apaixonado pelo objcto de estudo, que adotou uma pe rspecti va

compreensiva na análise da religião. Com essas ressalvas, Lísias, segui ndo rumos de Douglas Monteiro (1978) , também apresenta críticas teórico­metodológicas a Bastide (Negrão, 1979).

Reconhecemos a contribuição de Roger Bastide aos estudos do negro

c das rel igiões afro-brasileiras. Ele escrevia bem e escrevia muito, daí deriva cm parte a enorme in fluênc ia que exerce até hoje no estud o das rel igiões

afro-americanas. Além de informações elaboradas, apresenta reflexões teóri ­

cas de grande interesse. Algumas vezes impacientam-nos certas falhas, como se qui séssemos que seu trabalho fosse perfeito. Não podemos entretanto concordar com tudo o que escreveu. Parte das críticas que hoje lhe são fei tas dirigem-se também à perspectiva teórico-filosófi ca da sociologia em pro­fundidade, que adotou.

ALGUNS DISCÍPULOS DE BASTJDE

Na década ele 1970 o estudo das reli giões afro-brasileiras voltou a receber novo impulso, que parecia declinado nos anos 60, quando quase só ocorreu a tradução de alguns traba lhos de Bastide. Sua obra principal, As Religiões Afro-Brasileiras, de 1961, somente cm 197 1 foi lançada no Brasil. Nos anos 60, além de trabalhos de Bastidc c das publicações de Edison

Ca rne iro, de stacam-se os estudos de Procópio Cama rgo ( 1961), sobre espiritismo c um banda, tema ao qual foi dos prime iros a se dedicar com exclusividade, conforme Carvalho ( 1978, p. 105). Pouco antes do fa leci ­mento de Bastide, em 1974, concluem-se teses de pesquisadores que foram

seus oricntandos .

Renato Ortiz ( 1978) estudou o cmbranquccimento das tradições afro­brasileiras c o cmpretccimento do espiritismo kardecista, relacionados com transformações na soc iedade, pois "o cosmos rei igi oso umbandista repro­

duz as contradições da sociedade brasileira" ( 1978, p. 112). Para Ortiz, na sociedade urbano-industrial , a umbanda é mais funcional elo que o can-

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I ,

REVISÃO DA LITERATURA SOBRE SIN CRETISMO ... 63

domblé, cujo culto é demasiadamente dispendioso, antevendo uma expan­são da umbanda em detrimento do candomblé e considerando suas práticas mais adequadas à sociedade atual. Outros como veremos adiante, mostram

hoje que a evolução foi oposta (Prandi, 1989).

Ortiz (1980, pp. 91-1 08) discute sincretismo em artigo de 1975, numa coletânea sobre religião c cultura popular, afirmando que "se distancia em muito da noção de mistura e de incoerência" ( I 980, p. 97). Com Bastide, relaciona-o às noções de memória coietiva e de "bricolagem", discutindo esquecimentos e vazios da memória. O sincretismo consiste em "uni r

pedaços das histórias míticas de duas tradições dife rentes em um todo que permanece ordenado por um mesmo sistema" ( 1980, p. 1 00) .

Anali sa ambigüidades no sincretismo, parecendo-lhe que não se deve pensar a umbanda como síntese química, mas como síntese social, uma prática sui generis, "um Macunaíma religioso (todos os caracteres, seja, nenhum deles) que p rocura se integrar a todo preço no seio da moderna

sociedade brasileira" (1980, p. 1 08).

Juana Elbein dos Santos (1976) também concluiu tese, sob orientação de Bastide, que obteve grande receptividade. É uma das defensoras da orto­

doxia nagô, da cultura africana tradicional e de sua permanência em alguns candomblés da Bahia. Uma de suas contribuições foi destacar a necessidade

de abordagem "ele dentro para fora", nos estudos de rei igião.

Com Dcoscorcdes elos Santos, Juana Elbein tem publicado artigos com

reflexões sobre sincretismo (Santos, 1977, pp. I 03- I 28), afi rmando que : "a religião foi o mais poderoso tran smissor de valores essenciais dessa negri­

tude afro-americana" . Para eles os cultos se acomodaram sem se embran­quecer, pela capacidadé negra de "digerir ou africanizar" as contribuições.

Classificam as expressões da religião negro-americana entre as variá­ve is homogéneas: os complexos jeje-nagô do Bras~ucumi e nani go de Cuba, radá do Haiti, xangô de Trinidaci e Granada_,, Entre as variáveis hc­terogêneas incluem os cultos de influência bantÕ- Congo-Angola- com ramificações cm toda América Latina, como o petro no Haiti , umbanda,

caboclo e pajelança no Brasil , Maria Lionza na Venezuela, as formas myal,

' cunfa e poco no Caribe e outros (1977, p. I 09). ·Ks variáveis homogéneas são as fortemente centradas cm reelaborações africanas, c as heterogêneas

continuam pluralistas. O si ncretismo foi acontecendo com a contribuição do cristianismo e dos vários grupos étnicos de origem africana.

Afirmam que quase todos os negros da América são cristãos c tam­bém praticam uma variável da rel igião negro-ameri cana, embora ambas

mantenham separadas suas estruturas básicas (1977, p. 113). Parece-lhes

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REPENSANDO O SINCRETISMO

que as diversas categorias de sincretismos devem ser reexam inadas como

formas de resistência. "A religião e suas comunidades constituem o balu­

arte da dignidade psíquica c cultural do negro" ( 1977a, p. 115).

Elbcin dos Santos ( 1977) resume colocações anteriores, de modo explí­

cito. Defende uma reformulação conceptual c term inológica de designações

que têm como conseqüência negar o carátcr de religião ao s istema mí stico

legado pelos africanos c ree laborado por seus descendentes. Considera que

os termos fctich ismo, anim ismo c até s incretismo são conseqüências da he­

rança evol ucionista, que se continua até hoje. Termos como bruxaria, magia

c superstições são utili zados para encobrir o papel da religião, já que a indc-- _./

pendência espiritual foi por longo tempo a única liberdade do negro. Neste

c cm outros trabalhos, Elbcin dos Santos enfatiza aspectos africanos da cul­

tu ra negra nas Américas. Como inte lectuais c part icipantes do candomblé, Juana c Dcoscorcdcs contribuem também para construir uma teologia do can­

domblé no B rasil, enfati zando a importância das trad ições africanas.

O MITO DA PUREZA AFRICANA

O trabalho inovador d e Lapa ssadc e Luz ( 1972) é o primeiro, e ntre

nós, favorúvcl ú macumba c à quimbanda, v istos como conrracultura domi­nada que se opõe à cultura branca dominante. Mostra que desde os tempos

de Nina Rodri gues, o candomblé, considerado mai s puro, foi valorizado

pelos pesquisadores, cm detrimento da macumba, tida como misturada.

Consta ta que estes cul tos são diferentes desde as origens, embora haja

empréstimos de um a outro. Critica a idéia de pureza africana ( 1972, p. XIV),

identificando quimbanda como contracultura negra no Brasil ( 1972, p. XXI I),

comparando-a ao tropical is mo c ao Manifesto Antropofág ico de 1928. Toma

o partido da quimbanda libertadora co ntra a umbanda c utiliza cicmcntos

da sociologia marxista c da psicanáli se freud iana, relacionando a macumba

a revoltas c fugas de escravos . O texto te m características mais jornalís ti­

cas do que de análise sóc io-anrropol ógica . Em alguns momentos assum e ar

sensac ional ista, d izendo preferir ficar ao lado do d cmônio. T rata-se con­

tudo de trabalho inegavelmente pioneiro.

Posteriormente, Luz ( 1983) publica livro cm sentido oposto, d efen­

dendo a ortodoxia do candomblé nagô. Critica seu trabalho anterior, desta­

cando o candomblé das casas mais tradic iona is. Considera que por trás do

si ncretismo o negro manteve sua reli g ião c diz que incxistc fusão ou sin-

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REVISÃO DA LITERATURA SOBRE SINCRETISMO ... 65

cretismo ao nível da cosmogonia. Acha que não se deve perceber a cultura

negra como mestiça, mas como negra, para não caracterizá-la sob noções

de sobrevivência c sincretismo ( 1983, p. 61 ) .

Desta forma, em 1983, Luz desdiz quase tudo o que havia dito cm 1972.

Esta posição foi constatada por Fry ( l984a, pp. 23-24) c criticada (Giacomini,

1988, pp. 55-71 ), por apresentar abordagens divergentes do mesmo objeto,

dez anos depois, valorizando mais o negro africano do que o negro brasileiro.

Giacomini ( 1988, p. 65) critica Luz por abandonar as análises de classe e de

ideologia para se referir "de maneira pouco precisa a relações interétn icas",

enfatizando aspectos teológicos c metafísicas. C ritica a supervalorização da

cultura nagô e mostra que Luz inic ialmente proclamava a ruptura com a África

c, posteri ormente passa a se preocupar com origens africanas e a defender

estudos comparativos entre religiões negro-brasi leiras e negro-africanas.

Atualmente, desenvolveu-se nos estudos afro-brasileiros tendência a

não mais valorizar a pesquisa em grupos reiigiosos considerados tradicionais

ou "puros". C rí ticas a Bastide são identificadas com críticas ao estudo desses

grupos. Critica-se a perspectiva, que foi corrente entre os antropólogos, de

estudar quase que exclusivamente os grupos tradic ionais, com o objctivo

de descobrir uma "pureza africana". Desde inícios dos anos 70, começa a

crítica ao estudo de grupos tradicionai s e a discussão do mito da pureza

africana, embora a idéia j á seja encontrada nos trabalhos de Nina Rodrigues,

mostrando que o problema é muito antigo.

Outro trabalho que levantou esta questão foi o de Yvonnc Velho

(1975), analisando a evolução de um terrei ro de umbanda no Rio de Janeiro.

A autora cri tica a ideologia subjacente na literatura sobre religiões afro­

brasileiras, sempre vistas como fenômeno de sincreti smo religioso entre

"traços" africanos, católicos e outros, mas não estava interessada em refle­

tir sobre s incretismo. Também critica a expressão estudos afro-brasileiros.

Em vá rios trabalhos Peter Fry aborda estes problemas. Em relação à umbanda c ao candomblé, afirma, por exemplo:

Tive dificuldades estéticas também, pois me foi extremamente probl emát ico compartilhar o senso estético dos meus amigos umbandistas. O que para eles era lindo para mim era kitsh [ .. . ]Talvez seja por isso que o candomblé é mais estudado c mais apreciado pelos intelectuais cm geral" (Fry: 1982, p. 14 ).

Adiante afirma:

Agora não é mais perigoso entrar para o candomblé- é chique. O que parece ter acontecido é que alguns dos mais conhecidos c tradicionais terreiros foram absor­vidos, não apenas pelos produtores da "cultura de massa", mas pelos intelectuais,

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66 REPENSANDO O SINCRETISMO

especial mente pelos antropólogos, que foram responsáveis, em grande parte, pela glorificação dos cultos de origem iorubana, cm detrimento dos de procedência ''banto" c daqueles que adoraram práticas rituai s da umbanda cm expansão. Desde o in icio do estudo científico sobre os candomblés, os antropólogos com tendência a expli­cações cm termos de genética cul tural classificaram os terreiros de suposta origem ioruba com o sendo d e algum modo mais "puros" que os óc origem banto (ai i ás, a própria categoria banto não tem nenhum sentido neste contexto, pois refere-se a um grupo lingüístico c não cultural). Os que tinham absorvido práticas não-iorubanas -fo;am cl assificados como "impuros ou deturpados" (Fry, 1986, pp. 41-42).

Fry discute o assunto cm outros trabalhos ( 1984a; 1984b). Considera que o conceito de pureza aparece em situações de disputa de poder c critica a perspectiva que denomina de filogenética, que privilegia genea logias c procura as origens, cm detrimento das condições históricas.

Parece-nos que csra pe rspectiva pode acarretar o peri go de "se j oga r fora a criança com a água da bacia". Deve-se ressaltar tanto a "caipiridadc" quanto a '·africanidad c" (expressões usada s por Fry) das re li giões afro­brasileiras. Estas características não podem ser descartadas sem prejuízo do estudo, mesmo olhando-se mais para o Brasil do que para a África, como prcconiza.muito bem Fry.

Estudando dimensões ideológicas de práticas umband istas, Patrícia Birman ( 1980) a firma que se criou entre nós um saber sobre o africano, que se repete desde Ni na Rodri gues , passando por Arthu r Ramos, Gilberto Frcyrc, Waldcmar Valente, Donald Picrson, Rogcr Bastidc, Edson Carneiro, Procópio Camargo, Renato Ortiz c outros. Para estes, como para os umban­distas, africano signifi ca pri mitivo c inferior. Há um sistema de represen­tações sobre o africano, vigente no meio acadêmico c difundido no senso comum (1980, p.7), c os umbandistas se aceitam como religião inferior, o que contribu i para a manutenção da ordem social, numa visão ideológi ca que legitima a ordem vigente. Para Birman ( 1980, p. 28), os africanismos

1nos terreiros são construção de intelectuais para encobrir a dominação.

I A nosso ver, com esta afirmação, Birman exage ra c incorre no mo-dismo ele atacar autores clássicos c modernos, independentemente do valor c importânc ia de sua contribu ição. Assume posição ideológica que com­promete a objctividadc de sua análise. Não concordamos com a generali­zaçã o de que os afri canismos no s te rreiros são construções de intelectuais para encobrir a dominação.

Este não é absolutamente o ponto de vista de autores como Bastidc, Carneiro, Elbcin dos Santos e outros, que acentuam cxatamcntc uma visão oposta, c não consideram o africano como primitivo ou inferior. Levada às últimas conseqüências, esta visão retiraria aos participantes destas religiões

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REVISÃO DA LITERATURA SOBRE SINCRETISMO __ _ 67

a possibi lidade de elaborar c manter suas próprias tradições, o que, no Brasil , vem sendo feito há ccrc~ de um século e meio por antigas comunidades reli­giosas, independentemente da colaboração de intelectuais, como se cons­tata nos terreiros .

Esta perspectiva será retomada por Beatriz Dantas (1982, 1987, 1988), ao repensar a questão da pureza nagô. Beatriz afirma que avança cm pistas

propostas por Yvonnc Maggic, Pcter Fry c Patrícia Birman. Vai estudar um

terreiro reconhecido pela população como único "puro" de Laranj eiras cm Sergipe, c diz:

A decantada ··pureza nagô" tem contornos diferentes na Bahia e em Sergipe. [ ... ]Como a etnic idadc, a pureza é uma retórica que tem muito a ver com a estru­tura de poder da sociedade. [ ... ] A atuação dos intelectuais, na medida em que discriminava os cultos segundo os graus de "pureza" c fidelidade à África, poderá ser vista como acirradora de ri validades dentro do segmento popular e como tenta­tiva de controle desses cultos[ ... ) Nessa perspectiva, pode-se pensar que a valo­rização da África, que cm outros contextos tem sido usada pelos negros para questionar a dominação, também tem sido uma forma de domesticação dos cultos, mais su til que a exercida pelos aparelhos repressivos, na medida cm que não altera as relações entre as classes c os grupos, constituindo ass im uma idcoiogização da pureza africana pa ra encobri r a dominação (Dantas, 1982, p. 19).

D iscordamos de Beatriz Damas, embora reconheçamos a seriedade de seus trabalhos i. Eia própri a constata que pureza c etnicidadc são categorias

na tivas. Parece-nos que ela também foi atraída pela idéia de pureza, pois em s ua monografia (1988) traba lha mais com o terreiro nagô "puro" de Bil inda do que com outras casas. De fato, a idéia de pureza se encontra na real idade dos terreiros, justamente naqueles em que os antropólogos tende­ram a pesqu isar mais. Isto talvez se deva cm parte a razões ele ordem esté­

~i ca, como constatou Fry (1982, p. 14). A rivalid ade dentro do segmento yopui ar, que para Beatriz é acirrada pela atuação dos in telectuais, é uma

:::onstan te entre os terreiros, como tem sido constatado, c indcpcnde dos ;resqu isadorcs.

Em arrigo mais recente (pois sua monog rafia foi defendida em 1982),

D:lnras { 1987) retorna ao problema da pureza africana, a nosso ver, de forma '"'"":::!ÍS equilibrada . Define pu reza, com Mary Dougl as, como a qualidade que -:.o se alte ra e decorre da mistura com formas tidas como socialmente infe-

--:ores, a rticulando-se com a idéia de poder. A dicotomia pu roi misturado é _-;-;a forma de marcar um lugar para si e para os outros no esquema de fo rças

- ::: . ~=or,bmos com 1\lcjandro !'ri geri o que, em correspondência de I 988. nos dizia ser o trabalho

. : ::>:~rriz Damas ( I 988) '·um dos trabalhos mais importantes nos últ1mos tempos sobre o tema".

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68 REPENSANDO O SINCRETISMO

da sociedade. No caso dos cultos afro-bras iie iros, é um elemento na busca

da legitimidade c na luta pela hegemonia.

Segundo Beatriz, os intelectuais desempenham papei significativo na construção dessa hegemonia. Os antropólogos tornam-se aval is tas da orto­

doxia e personagens na construção da hegemonia nagô. A herança africana

mais autêntica, representada pelos nagôs "puros" da Bahia, é apresentada

como verdadeira religião, contrastando com a magia/feitiçaria dos bantos.

Os antropólogos fortalecem os terreiros mais "puros", às custas dos mais

"misturados". A repressão policial passa a incidir então sobre os que fazem

feitiçaria, os "impuros". Constata também (1987, p . 126) que a cruzada con­

tra o sincretismo anunciada cm Salvador, após a II Conferência Mundial da

Tradição dos O ri xás c Cultura ( 1983), se inscreve nessa linha de busca de

hegemonia e disputa pelo poder.

As opiniões de Fry, Birmane Damas foram criticadas entre outros por

Ari Araújo, Renato Silveira e Muniz Sodré. Renato Silveira (1988, p. 91)

afirma que "o afro-brasileiro não é um mero objeto (ele c iência), mas um

suj eito (histórico), c, enquanto tal, capaz de manipular o pesqu isador". Para

Sodré (1988, p . 64): "Uma interpretação desse gênero recalca a possibil i­

dade de elaboração autônoma de uma estratégia político-cultural por parte

do grupo negro" . A ri Araújo ( 1986, pp. 69-70) diz:

A crítica- por vezes extremamente ácida- ao modelo "puro"[ ... ] não justi­fica sua extensão à componente de res istência presente na cultura negro-brasileira. [ ... ]Também não justifica o não - reconhecimento de passos fundamenta is dados por esta vertente da pesquisa, como, por cxcmpio, o da constatação de que os ter­reiros constitue hisroricamcntc a mais imponante fo rma de organização social para­lela à da sociedade abrangente; de que o terrei ro implica[ ... ] um impulso de resistência à ideologia dominante [ ... ]

Como criticam Yvonne Velho, Peter Fry, Birman, Dantas e outros, os

terreiros considerados mai s próximos elas tradições africanas foram ele fato

quase que os únicos procurados pelos antropólogos, pelo menos até a década

ele 1970. Mas esses terreiros são realidades empíricas, ex istem e foram

pesquisados. O intelectual atua como reflexo do que encontra, que pode

reforçar, mas sua função legitimadora tem limites. O êxito ou fracasso de

um terreiro depende principalmente da eficácia de sua l ide rança, como da

autentic idade de suas tradições .

Entre as décadas de 1930 e 1950, as religiões afro-brasileiras come­

çavam a se tornar conhecidas. Havia, porém, muitos preconceitos, acusações

de charlatanismo e perseguições policiais. Os antropólogos procuraram jus-

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REVISÃO DA LITERATURA SOBRE SINCRETISMO ... 69

ta mente os terreiros de maior prestígi o no meio, cujos líderes eram mais

estimados e contribuíram com seu trabalho para o conhecimento desse campo, combatendo o ctnocentrismo. No Maranhão, na década ele 1940, os primeiros pesquisadores encontraram na Casa das Minas uma tradição de

origem africana mais que centenária. Não foram absolutamente os pesquisadores que criaram esta tradição.

' Como mostra Beatriz Dantas (1988), no caso de Bilinda, foi ela pró-pria, com sua sabedoria c as alianças que conseguiu formar, que construiu

o p rest ígio de sua casa. O mesmo ocorreu cm outras partes com grande nú­mero ele pais c mães-de-santo, como Aninha, Senhora ou Menininha na Bahia, como Anclrcsa no Maranhão, com tantos outros líderes no passado

c até hoj e. Geralmente eles são procurados por pesquisadores em função do prestígio de que já desfrutam . O intelectual pode con tribuir para ampliar

esse prestígio, mas não é quem o forja, ao menos entre os líderes mais au­tênticos. A tradição afro-brasi leira não é portanto uma invenção de intelec­

tuaisH, como querem alguns. Os intelectuais, de fato, contribuem, entretanto, para o seu reforço.

Com Pcrcr Fry, Patrícia Birman c Beatriz Dantas supervalorizam o papel do intelectual nos terreiros. Sua função mediadora é importante e tem sido reconhecida. Roberto Motta ( 1986, pp. 80-81) comenta casos de

antropólogos que agem como teólogos e como fator de mudança nos ter­reiros. Muitas casas incluem intelectuais em sua estrutura como ogans ou --cm outros cargos, o que também é um costume consagrado. Embora não se neg ue esta influência, sua função é limitada e condicionada pela atuação dos líderes, que mantêm c renovam as tradições dos terreiros, manipulan­

do-as em função de seus interesses. Beatriz Dantas (1988, p. 147) constara que a ' 'decantada pureza nagô"

tem contornos diferentes na Bahia, cm Sergipe c cm Pernambuco. As seme­lhanças c diferenças entre as religiões afro-brasileiras ela Bahia, Pernambuco,

Sergipe, Rio Grande do Sul, Pará, Maranhão, etc., não se devem a "repre­

sentações de africani smos construídas nos meios acadêmicos". Há de fato diferenças incontestáveis entre as práticas religiosas nestas c em outras regiões. Dantas (1988, p. 147) descarta rápido demais a hipótese de que se devam "a diferenças étnicas nos grupos negros originários, cujas tradições

8. Segundo I lobsbawm (llobsbawm & Ranger, 1984, p. 9), ''muitas vezes 'tradições' que parecem

ou s5o consideradas antigas são bastante recentes, quando não são inventadas". llobsbawm ana­

lisa a invenção de tradições como processo de rituali zação. Estudando casos na Inglaterra do

século XVIII ao XX, mostra que tradições que são consideradas como tendo vários séculos fo ram

invenções relativamente recentes fei tas por intelectuais, como o saiote irlandês, estabelecido cm

inícios do século XIX.

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70 REPENSANDO O SINCRETISMO

culturais eram diversificadas já na própria Áfri ca". Afirma estar compa­

rando terreiros que se autodcfincm como nagô, c o que é considerado sinal

de pureza num lugar, noutro é sinal de mistura. Estas diferenças certamente

se devem a vários fatores, como a diversidades nos grupos originários, nos

processos de adaptação a cada ambiente, ao isolamento geográfico que gerou

estruturas di fercnciadas c outros .

Ãtualmentc a problemática da pureza africana assume Olllras dimen­

sões. Furuya ( 1986), estudando o tambor de mina do Pará, fala do processo

de "nagoização". Outros falam em ""nagocracia" ou ''quctocracia", referindo­

se ao predomínio do padrão de candomblé nagô qucto sobre as tradições de

origens africanas no Brasil.

Outro ângulo deste tema, que tem sido analisado em São Paulo c ocorre

também cm d iversos lugares, é o processo denominado de "africanização ou

rcafricanização" destas religiões. Prandi c Silva (1989, p. 221) c Prandi ( 1989) mostram que hoje, em São Paulo, o candomblé não é mai s uma religião de

preservação de um patrimônio cultural do negro, uma religião étnica, tendo­

se transformado numa religião universal, aberta a todos, independentemente

de cor, origem c classe, competindo no mercado rel igioso com outras religiões.

Eles estudam em São Paulo o fenômeno recente da transformação de

terreiros de um banda em candomblé nagô queto. Segundo Prandi ( 1989, p.

142), tal fato se acentuou em fins da década de 1970. Trata-se de "um pro­

cesso intencional de dessi ncrctização, afastando-se do calendá ri o litúrg ico

católico e eliminando símbolos c práticas do catolicismo umbandizado".

Para Prandi ( 1989, pp. 143- 154), rcafricanização não significa ser negro nem

desejar sê-lo; significa intelectual ização c acesso a uma literatura sagrada que contém poemas oraculares, a reorganização do culto conforme modc­

ios trazidos da África contemporânea; é uma bricolagcm c não uma volta ao

primitivo original. Atinge principalmente pais c mães-de-santo de São Paulo

"que vêm passando por um p rocesso de mobilidade social ascendente".

Repetindo cm escala mais reduzida a saga de pai Adão do Recife c de

Martiniano do Bonfim da Bahia, g randes líderes reli giosos do inicio do

século que estiveram na África, o processo de rcafricanização implica hoje a ida por algumas semanas à África, ou a vinda de um pai-de-santo africano

ao Brasil , ao qual se prestam obrigações. Implica o aprendizado da língua

iorubana moderna cm cursos de extensão oferecidos por estudantes africanos

cm Universidades como a USP ou a UFBA. Inclui a introdução de inovações

aprend idas c m livros sobre religiões africanas, de autore s como Ycrge r,

Maupoil, Bascon, Ab imbo la , Gleazon c outros . A afr icanização ou a

rcafricanização, como o processo análogo de nago ização, consti tuem uma

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REVISlO DA LITERATUR;I SOBRE SINCRETISMO ... 71

negação do sincretismo, uma ''dcssincrctização" (Prandi e Silva, 1989, p.

234), afastando influências católicas c ameríndias do cuito dos o ri xás.

Este processo recente de dessincrctização começa a ser anal isado por

cientistas sociais. Evidencia que atualmcntc os líderes dos cultos afros procu­

ram justamente uma pureza africana que os pesquisadores acentuaram no

passado c que hoje renegam. Os intelectua is en tretanto não constituem a

maioria dos seguidores destas religiões, c veri fica-se que não há unanimi­

dade entre os pais-de-santo na a titude de ataque ao s incretismo (Jocéli o

Santos, 1989, p. 51).

A respeito do tema da pureza africana, podemos dizer do candomblé,

como Leonardo Boff ( 1977, p. 54), cm relação ao catolic ismo oficial : "Este

é tão sincrét ico como qualquer outra reli gião[ ... ] o cristian ismo puro não

existe, nunca exi stiu nem pode exis tir.[ ... ] O s incretismo, portanto, não

constitui um mai necessário nem representa uma patologia da religião pura.

É sua normalidade".

A idéia de pureza religiosa como vemos é um mito que alguns adeptos

procuram vivcnciar no candomblé c que estudiosos procuraram evidenciar.

Este ideal de pureza é de fato mais um mito que influc!1~ia a ~ai idade reli­

giosa. No passado , foi acentuado por inte lectuais, c apesar das crít icas que

recebe, retorna hoje no processo de reafricanização c de dcssincretização.

É conveniente disting uir a idé ia de pureza, que muitas vezes fo i idea ­

lizada pelos pesquisadores, da noção ele tradição, relacionada com a história

de cada grupo e com a preservação ele costumes c vaíorcs dos antepassados.

A crítica à pureza não pode ignorar a tradição prese rvada cm muitos g ru-

pos, como fazem aíguns autores que a consideram uma invenção de intc- .V icctuais . Sem d úvida , c ntrctanro, es te é um problema emin entemente t<

ideológico, que tem a ve r co m disputas de poder c prestígio entre os te r-

reiros c entre os próprios inte lectuais . A idéia de pureza transformou-se como vimos num mito. Para as ciências sociais, entretanto, o mi to possui

sempre um fundo de verdade . Achamos que a verdade do mi to da pureza

encontra-se nas tradições mais antigas, não inventadas recentemente. -----

PESQUISAS A TUA IS

Sem a pretensão de esgotar o tema, é oportuno apreciar contribu ições

recentes a respeito de sincreti smo, que têm sido formuladas cm artigos, teses

J U livros divulgados a partir da década ele 1980, que ainda não mencionamos.

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72 REPENSANDO O SINCRETISMO

Apoiado na idéia de Durkheim de que nenhuma instituição social pode repousar sobre o erro c a mentira, c que por isso não há religiões que sejam sociologicamente falsas, Roberto Motta (1982) indaga se "simples disfarces durariam através de mais de 150 anos de história dos cultos afro-brasileiros". Critica a idéia do sincretismo como disfarce e considera que "o povo-de-santo do Recife vive o sincretismo com todas as suas contradições. [ ... ]O sincretismo não representa apenas concessão de escravos a senhores ou de senhores a escravos, disfarce ele negros amedrontados. Ao contrário, possui um apccto de legítima apropriação dos bens do opressor pelo oprimido" ( 1982, p. 7).

No Rio de Janeiro, na perspectiva da psicologia religiosa, Monique Augras realiza pesquisas sobre religiões afro-brasi leiras. Em seu livro mais conhecido sobre o tema, encontramos entre outras as seguintes observações sobre sincreti smo (Augras, 1983, pp. 27-32):

Desconfiamos no entanto que o sincretismo seja mais aparente que real, e, sobretudo, não seja vivido do mesmo modo pelas diversas religiões de origem africana. [ ... ] Acreditamos que seja possível falar de sincretismo no caso da umbanda. Nela, as divindades e os ritos não se juswpõem apenas. Fundem-se. [ ... ]a doutrina incorpora os diversos valores das demais religiões.[ .. . ] Nas regiões onde a religião nagô tradicional pôde subsistir[ ... ] é mais difícil falar cm sincretismo. Todas as definições que encontramos da palavra "sincretismo" dão como essencial a fusão de vúrios elementos. No caso do candomblé de rito nagô, parece tratar-se de justaposição mais do que fusão. [ .. . )Nossa opinião é que houve fusão real ao nível das divindades africanas [ ... ] Nossa avaliação é mais reservada cm relação ao propa­lado sincretismo com o catolicismo. [ ... ] Ao nível do candomblé tradicional, não hú fusão, nem síntese entre a ideologia cristã e o sistema nagô.

O antropólogo argentino Alcjancl ro Frigcrio ( 1983), que realiza pesquisas sobre religiões de origem africana cm Salvador e em Buenos Aires, impressiona-se com a recente expansão desta religião cm seu país. Afirma que o crescimento do sincretismo é um dos temas pouco abordados na lite­ratura sobre as rciigiões afro-brasileiras, pois o preconceito africano fez com que cm Salvador somente fossem estudadas as casas mais ortodoxas­quinze a vinte dos cerca de 3000 terreiros existentes. Como os terreiros estu­dados cm geral são de tradição nagô quero, conclui que os estudos não são representativos da situação da maioria das casas de culto ele Salvador.

Frigcrio analisa diversos estudiosos elas religiões afro-bras il eiras . Critica Bastidc por ver o candomblé como um enquistamcnto cu ltural c encontrar contrad ições entre seus participantes serem ao mesmo tempo bons brasi leiros c bons africanos. Não concorda que haja contradições entre valo­res do candomblé e da sociedade brasi leira. Em Juana Elbcin, critica a pro-

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REVISiO DA LITERATURA SOBRE SINCRETISMO ... 73

priedadc da uti lização de matcriai africano na análi se de dados brasil eiros e do termo nagô do Bras il, como equivalente ao qu e a etnologia moderna denomina de ioruba da Nigéria.

Em tese de doutorado sobre tipos de personalidade c representação simbólica no Xangô do Recife, Rita Scgato ( 1984, pp. 284-287) anali sa tam­

bém o papel do sincretismo. Verifica que o povo-de-santo considera incom­pleta a mitologia dos orixás. Independentemente das razões de suas origens, para ela, o s in creti smo desempenha a função de compl ementar aspectos

f ragm en tários da mito logia. Segundo Rita, para esclarecer a imagem dos orixás ou p reencher falha s de informações, os filho s-de-santo utilizam-se

do sincretismo com os santos catól icos correspondentes. Por exemplo, para dar idéia da postura de Ogum util iza-se a figura de São Jorge cavaleiro; a

superioridade distante e o carátcr m elancól ico ele lemanjá são expressos através da imagem de N. Sra. da Conceição emergindo elo mar. Para Scgato,

o sincretismo, como os sonhos, contribui para se te r uma visão mai s clara dos orixás que são incorporados nos devotos no estado ele transe.

Estudando a iconografia atual do Exu afro-brasileiro em artigo sobre arte africana c s incret is mo no Brasil , Kabenge ie Munanga (1989, pp . 99-128) uti liza o conceito ele sincretismo afirmando que houve uma verdadeira s íntese. "Às fu nções orig inais (africanas) acrescentaram-se novas (afro­brasileiras), como as de contestação, de revolta c de liberação dos negros

de suas condições de escravos" (1 989, p. 126).

Para Munanga, se no Brasil a situação de contato tivesse sido de igual­

dade de trocas recíprocas, teria hav ido um processo de aculturação entre negros escravos e brancos colonizadores. Munanga diz que os pesquisadores das re li g iõcss afro-brasi le iras div idem-se cm dois g rupos: uns crêem que ho uve realmen te sincretismo entre reli gião cató li ca e religiões africanas c util izam o conceito, outros negam o sincret ismo e evitam a utilização do

termo. Conside ra que ambos cometem o erro de part ir do conceito para a

realidade, não anal isando adequadamente o conceito nem a realidade.

Atualmentc começam a se alterar as relações c o interesse ela Ig reja Católica pcio negro, rel igiões afro-brasileiras e sincret ismo. Tal fato pode ser constatado na experiência vivida cm Salvador durante alguns anos pelo sacerdote francês padre François de I' Espinay (19 89) . Fa lecido cm dezem­bro de 1985, c não deixando ele ser padre, François assu miu cargos como

min ist ro ele Xa ngô no te rreiro do Opô Aga nju, c de ixou alguns artigos

(Espinay, 1987a; 1987-b) co m reflexões sobre cristian ismo c cand omblé. Relações entre o negro e a Igreja são anali sadas na tese de doutoramento de Ana Lúcia Valente ( 1989). Após apresentar uma visão sintética da presença

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74 REPENSANDO O SINCRETISMO

do negro na história da igreja no Brasil. Ana Valente estuda a Irmandade

de N. Sra. do Rosário dos Preros de São Paulo c discute vertentes atuais da

presença do negro na Igreja após o Vaticano II. Acompanha o G rupo ele

Agentes de Pastoral do Negro de São Paulo, analisando seus conflitos com

a Igreja c com o movimento negro.

Valente ( 1989, pp. 190-215) discute a proposta de inclusão de valores

afro-brasileiros nas celebrações li túrgicas com reinterpretação de símbolos,

de gestos corporais, de objctos e a inclusão na m issa de a limentos como

pipoca, farofa, pinga, etc. Comenta o risco da folclorização, da manipulação

do exótico pelo exótico c de desvalorização ele formas de resistência do negro.

Riscos que diz que o próprio negro combate nesta tentativa ele "enegreci­mento" da igreja, procurando criar uma liturgia ·'do c para o negro".

Valente também discute a Campanha da Fraternidade de 1988, comen­

tando sua pouca divulgação na imprensa escrita c tclcvisionada9. Segundo

Ana Valente ( 1989, p. 68):

Seja qual for o ânguio que se anal ise a questão do sincretismo rciigioso, é importante ressaltar que o negro não permaneceu passivo ante este processo, ape­

sar da imposição, da obri gatoriedade c do papel desempenhado pela reiigião catól ica como sustcntácui o do projeto colonia l. Tudo leva a crer que a partir da rea lidade v ivida naquela época, considerando as dificuidadcs. o negro recriou c reinterpretou a c ultura dominante, adequando-a à sua maneira de ser.

Constatamos que os autores mais preocupados em estudar o catoli ­

cismo popula r ou as religiões populares, cm geral, dedicam pouca atenção

ao fenômeno do sincretismo religioso, considerado tema vi nculado aos estu­

dos afro-brasil eiros. Surpreendem-nos as tentativas de inclusão ele elementos

destes cultos cm celebrações litúrgicas católicas, num tipo de sincretismo

do dom inado para o dominante, que pode ser precursor de mudanças.

Em decorrência de pesquisas recentes, as rel igiões afro-brasileiras

tornaram-se mais conhecidas cm sua diversidade. Ampliam-se hoje as obser­

vações do fenômeno do sincretismo, que no passado foi visto ele modo mais

restrito. Vejamos os resultados destes estudos no Norte do país, onde reali­

zamos nossas pesquisas de campo.

9. An~ Valclllc ( 1989, p. 253) refere· se ao fato oe que a 1mprensa de Siio Pau i o praticamente tam­bém 1gnorou o Congresso lmernacional do Cemenário da Abolição, promovido pela USP cm maio

de !988. Es:c desinteresse é comu m cm todo o pais. Em junho de 1985 a UNESCO organizou no Maranhiio um colóqu 1o internacional para discutir Sobrevivência das Tradições Religiosas Africanas na América Latina c Co1ribc. reunindo mais de quarenta especialistas de diversos países. Os meios de comunicaçflo nadonais não t1 veram interesse cmnoticinr o evento. apesar do empenho dos Organizadores. Tal ntitudc reflete preconceitos raciais contra o negro e as religiões afro· brasilciras. !.!UC se constnta na imprensa c em outros sctorcs da sociedade cm várias regiões do pa ís.

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