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Prof. Emílio Figueira TEOLOGIA DA INCLUSÃO A TRAJETÓRIA DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NA HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Considerando ser uma obra de cunho e importância social que pode beneficiar muitas pessoas nos meios religiosos e na sociedade em geral, por vontade do autor, esta versão digital passa a ser distribuída gratuitamente para todas as pessoas interessadas, independente de qual seja a dominação religiosa. É livre o seu uso para estudos, preparações de materiais religiosos e estudos teológicos, desde que citada a fonte.

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Prof. Emílio Figueira

TEOLOGIA DA

INCLUSÃO A TRAJETÓRIA DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NA HISTÓRIA

DO CRISTIANISMO

Considerando ser uma obra de cunho e importância social que pode beneficiar muitas pessoas nos meios religiosos e na sociedade em geral, por vontade do autor, esta versão digital passa a ser distribuída gratuitamente para todas as pessoas interessadas, independente de qual seja a dominação religiosa. É livre o seu uso para estudos, preparações de materiais religiosos e estudos teológicos, desde que citada a fonte.

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EMÍLIO FIGUEIRA

Doutor em Teologia Histórica pelo Instituto de Ensino Teológico de São Paulo

TEOLOGIA DA INCLUSÃO:

A trajetória das pessoas com deficiência

na história do Cristianismo

FIGUEIRA DIGITAL SÃO PAULO

2015

2

Edição e capa: Emilio Figueira Revisão: ANA SESSO REVISÃO LTDA. www.anasessorevisao.com.br

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL AGÊNCIA BRASILEIRA DE ISBN

© 2015– Emílio Carlos Figueira da Silva

TEOLOGIA DA INCLUSÃO – A trajetória das pessoas com deficiência na história do Cristianismo. Emilio Figueira. – São Paulo : Figueira Digital, 2015.

ISBN: 978-85-911079-8-8

1. Teologia. 2. Cristianismo. 3. Inclusão. 4. Pessoas com deficiência

É PROIBIDA A REPRODUÇÃO

Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida, copiada, transcrita ou mesmo transmitida por meios eletrônicos ou gravações, assim como traduzida, sem permissão, por escrito, do autor. Os infratores serão punidos pela Lei no. 9.610/98.

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SOBRE O AUTOR

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Mas nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades.

Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo e personal coach com formação em Programão Neurolinguística .

Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de cinquenta títulos lançados. Ator e autor de teatro. Várias entrevistas na mídia e em jornais.

Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira é professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva.

Em seu site há vários artigos, crônicas, cursos e materiais gratuitos. acesse: www.emiliofigueira.com.br

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“Deus me enviou ao mundo com uma deficiência já escalado

para pesquisar, produzir conhecimento e ajudar na transformação de vidas de tantas outras pessoas com as

mais variadas deficiências. Mas o que Deus não me contou é que eu iria de coadjuvante e espectador de tantas coisas

positivas. De mudanças de mentalidades e atitudes. De ver crianças que hoje, mesmo com algum tipo de deficiência,

estão começando a sua jornada neste mundo em uma realidade muito melhor do que aquela de quando comecei há

quatro décadas”.

A Deus,

o principal motivo de ter

nascido este trabalho!

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AGRADECIMENTO

A Deus, pela presença maravilhosa em todos os momentos da minha existência, pela força que tem me concedido, pela inteligência para terminar esta tese de Doutorado em Teologia, primeiros passos de uma longa caminhada.

À minha família, presença sempre constante na minha vida.

À minha grande amiga, Aninha Pina, que desde o começo me incentivou e acompanhou o processo deste estudo.

Aos amigos e irmãos Helton Luiz Tavoni e Alan Rogério Moreli, por todos os nossos papos abertos.

À amiga de infância e dos nossos primeiros de reabilitação na AACD, Deise Tomazin Barbosa, pelo prefácio desta obra.

À amiga Ana Lúcia Sesso de Cerqueira César, pela revisão

Ao querido amigo Joaquim Teles, companheiro de psicologia e psicanálise, troca de materiais e de tantas ideias e conselhos profissionais.

Aos amigos Pr. Silas Costa e Pr. Rodnei Francisco Teixeira

Ao historiador Otto Marques da Silva, que foi pioneiro em dar uma história oficial às pessoas com deficiência.

À equipe da Rede Saci, em especial à amiga Ana Maria Barbosa e ao estagiário Felipe Salles Silva, por indicação de bibliografias.

A todos aqueles que direta ou indiretamente contribuíram na realização desta obra. Os meus sinceros agradecimentos.

6

SUMÁRIO

AGRADECIMENTO ......................................................................................... 5

INTRODUÇÃO .............................................................................................. 15

I – O ANTIGO TESTAMENTO: AS QUESTÕES DAS DEFICIÊNCIAS NO PRÉ-CRISTIANISMO ............................................................................................ 23

NOÉ: O PRIMEIRO REGISTRO BÍBLICO DE UMA PESSOA COM DEFICIÊNCIA ........... 24 A CEGUEIRA DE ISAQUE POR 80 ANOS ........................................................... 27 A DEFICIÊNCIA TEMPORÁRIA DE JACÓ EM DECORRÊNCIA DE UMA LUTA ESPIRITUAL

................................................................................................................. 31 LIA, DESPREZADA, MAS RECOMPENSADA POR DEUS ........................................ 34 MOISÉS: PROBLEMAS DE FALA E AUTOESTIMA ................................................ 36 AS CAUSAS DAS DEFICIÊNCIAS ORIUNDAS DE CASTIGOS ENTRE OS HEBREUS ....... 46 O MONTE SINAI E A QUESTÃO DA HANSENÍASE NA BÍBLIA ............................... 52 O CÓDIGO DE HAMURÁBI E A SEVERIDADE QUE INSPIROU OS HEBREUS ............. 58 REI ZEDEQUIAS, MAIS UM CASO DE CEGUEIRA COMO PUNIÇÃO .......................... 61 OLHOS DIREITOS FURADOS DOS HABITANTES DE JABES ................................... 69 ZACARIAS CASTIGADO POR NÃO TER ACREDITADO EM GABRIEL ........................ 71 MEFIBOSETE: O PRIMEIRO CASO DE INCLUSÃO VEM DA BÍBLIA ......................... 74 OS ESMOLANTES DA ANTIGA JUDEIA .............................................................. 79 A BUSCA DA CURA ........................................................................................ 80 A HANSENÍASE NO NOVO TESTAMENTO ......................................................... 86 A BAIXA ESTRUTURA DE ZAQUEU .................................................................. 92

III – CASTIGO E PECADO: PRINCIPAIS CONCEITOS BÍBLICOS SOBRE PESSOAS COM DEFICIÊNCIAS E MUDANÇAS DE MENTALIDADES ......... 98

DEFICIÊNCIA É FRUTO DO PECADO? ............................................................... 99 JESUS E O INÍCIO DA INCLUSÃO .................................................................... 106 O INCONSCIENTE COLETIVO E A DESCONSTRUÇÃO DOS ESTIGMAS RELIGIOSOS 112 A HISTORIOGRAFIA DE OTTO MARQUES DA SILVA......................................... 118 AS DEFICIÊNCIAS FÍSICAS COMO IMPEDIMENTO AO SACERDÓCIO CRISTÃO ........ 124 SACERDOTES QUE QUEBRARAM A REGRA ...................................................... 130 NICOLAU, AS PESSOAS COM DEFICIÊNCIAS INTELECTUAIS E A INQUISIÇÃO ........ 133

7

RICHARD BAXTER, UM PASTOR ENTRE O MINISTÉRIO E SUAS ENFERMIDADES .. 144 O ASSISTENCIALISMO DOS JESUÍTAS EM TERRAS BRASILEIRAS ........................ 148 CATÓLICOS E PROTESTANTES SE UNEM CONTRA UMA “INQUISIÇÃO NAZISTA” NO

SÉCULO XX ............................................................................................... 155 A IGREJA CATÓLICA E SUAS POSSIBILIDADES DE INCLUSÃO ............................. 158

V – CAMINHOS PARA A INCLUSÃO RELIGIOSA HOJE ............................. 168

O PROTESTANTISMO PRECISA DESPERTAR PARA A QUESTÃO .......................... 168 IGUALDADE DE OPORTUNIDADES, INCLUSIVE NA RELIGIÃO ............................. 173 BARREIRAS ARQUITETÔNICAS ERAM MOTIVOS DE EXCLUSÃO .......................... 176 “UMA TEOLOGIA DA DEFICIÊNCIA” .............................................................. 179 REFLEXÕES SOBRE A CONVIVÊNCIA PLENA NA RELIGIOSIDADE........................ 181

CONCLUSÕES ............................................................................................. 185

BIBLIOGRAFIA ........................................................................................... 189

8

PREFÁCIO

Deise Tomazin Barbosa*

alar de Emilio Figueira sem tecer uma rede de elogios sobre

seu trabalho é tarefa impossível de ser realizada. Grande

mestre, brilhante doutor, amigo e companheiro desde a

nossa infância na AACD, faz com que pessoas que estejam ao seu

redor sintam orgulho em tê-lo como parceiro de luta.

Eclético e muito perspicaz, Emilio Figueira impressiona

com sua peculiaridade. Sua sapiência se traduz em seus escritos e

seu legado está marcado em suas obras publicadas como “O Que é

Educação Inclusiva”, “Conversando sobre Educação Inclusiva com

a Família”, ”Caminhando em Silêncio”, “Introdução à Psicologia e

Pessoas com Deficiência”, e mais de cinquenta títulos.

________________________ *Licenciada em Matemática e Pedagogia, Pós graduação lato sensu em Inteligência Multifocal e Psicanálise da Educação, Educação Especial Áreas da Deficiência intelectual, física, visual e auditiva (UNESP), Tecnologias da Informação e Comunicação Acessíveis (UFRGS), Psicopedagogia e MBA em Gerenciamento de Projetos (FGV). Mestre em Psicanálise e Educação Especial - UNESP. Aperfeiçoamento em Atendimento Educacional Especializado, Libras, Braille e Sorobã. Tutora em curso de Pós graduação no curso de AEE (UNESP) e Tecnologia Assistiva (UFRGS). Assistente de Direção e Docente em Universidades públicas e particulares. Assessora e Consultora Pedagógica. Atuou na AACD como pedagoga e na Secretaria Municipal de São Paulo como professora itinerante de alunos com deficiência e formadora.

F

9

A relação íntima com Deus e sua deficiência, fez com que o

autor mantivesse o foco de seus estudos voltado ao

desenvolvimento de uma sociedade humanitária e cristã. Não que

fosse diferente se a deficiência não estivesse presente em sua vida,

mas talvez a plenitude de suas obras não seria tão lógica não fosse

sua trajetória humana.

Sua deficiência fez com que passasse por momentos

preconceituosos, porém, isso só o tornou mais convicto e

determinado a buscar soluções para o trato com as pessoas com

deficiência.

Dotado de inteligência e capacidades que fogem ao nosso

entendimento, Emílio sempre demonstrou grande paixão pelos

estudos mantendo seu foco nas investigações históricas da pessoa

com deficiência. Participar de alguns momentos formativos ao seu

lado me deixa a vontade para tecer algumas linhas sobre essa

grandiosa obra.

A pesquisa se desenvolve em cinco partes, trazendo

questões que tratam das deficiências do antigo ao novo

testamento. Interessante reconhecer a visão de estudo que Emílio

traz sobre a relação de castigo e pecado e do desenvolvimento da

pessoa com deficiência no catolicismo, percorrendo caminhos que

chegam à inclusão religiosa nos dias de hoje.

Tais questões intensificaram o estudo por pesquisa

bibliográfica baseada em referencial teórico demonstrando

práticas transformatórias da evolução do ser humano com

registros que contextualizam as passagens bíblicas, enaltecendo e

abominando a deficiência e o impacto que o mundo cristão

demonstra em relação à cura, pecado e castigo quebrando a

prepotência e arrogância da divindade sobre o homem e tudo

10

mais que seja obscuro na visão histórica da passagem do

deficiente pelo mundo cristão.

Encontra-se nessa excelente obra, registros bíblicos de

sacrifício e sacerdócio, impureza e pecado, pureza e castidade,

defeito e perfeição.

Partindo do pressuposto de que a linguagem do evangelho

é uma fonte de referência na pacificação entre as pessoas e entre

os povos, é possível se pensar na espiritualidade como um fator

que promova a inclusão e não a exclusão, abrindo uma questão

fundamental entre as comunidades religiosas que é a permissão

da transformação de suas neuroses em direito à existência.

Várias são as releituras realizadas sobre as escrituras

sagradas, porém os critérios para sua interpretação são definidos

por duas ciências: a Hermenêutica e a Exegese. Para que tal

interpretação se torne correta é preciso que se apliquem essas

“ferramentas” de forma consistente, diluindo os malefícios que

uma má interpretação bíblica pode causar: discriminação,

exclusão, preconceito.

O preconceito é um juízo preconcebido, um

desconhecimento pejorativo de uma pessoa ou grupo social e a

discriminação é um comportamento de não aceitação. O

preconceito para com as pessoas com deficiência vai desde

acreditar que necessitam ser dependentes dos outros, são maus

ajustados e infelizes, são "marcados" e menos inteligentes, são

improdutivos, merecem compaixão e piedade, até acharem que

estes estão sendo "punidos" por algum pecado.

Se existe um lugar onde esse comportamento não deve ser

aceito é a igreja, pois esta não deve estar alienada da sociedade e é

o lugar onde a real prática dos princípios bíblicos como "Amar a

11

Deus de todo coração... amar ao próximo como a si mesmo..."

(Marcos, 12:33) deve ser exercida.

Ora, se a palavra de Deus deve estar ao alcance a todas as

pessoas e Jesus foi inclusivo o tempo todo, constatação escrita no

evangelho, por que então continuar pensando que a deficiência é

uma doença e não uma condição? Coisa rara encontrar um

deficiente que se lamente por causa da sua condição física. A

limitação física, o estigma, a discriminação ao longo do tempo

torna as pessoas resilientes. Sendo assim, natural se pensar que

todos os cristãos são pessoas inclusivas, ou pelo menos, deveriam

ser, porém não é o que se vê na sociedade contemporânea.

Na obra Teologia da Inclusão, é possível se encontrar o

processo religioso das pessoas com deficiência e a evolução da

política inclusiva. A obra traz a interpretação bíblica através da

Hermenêutica com o método analítico sintético a partir de uma

consciência crítica dialética demonstrando as transformações

reais da sociedade. Em termos metodológicos, foi desenvolvida

uma pesquisa documental das escrituras e bibliográfica de textos

que abordam o fenômeno apontado.

O capítulo de abertura – O Antigo Testamento: As

Questões das Deficiências no Pré-Cristianismo mostra a saga

histórica do percurso do deficiente pela história da humanidade,

fazendo um estudo sobre os registros de Noé, mostrando a

cegueira de Isaac, a luta de Jacó, o desprezo de Lia e, pasmem com

os problemas de fala de Moisés que afetaram por tempos sua

autoestima. Em meio atos severos, punição, maldição, encontram-

se pessoas que exercitam a justiça e a bondade de forma amorosa,

sem se incomodar com valores e preconceitos determinados por

seu tempo, sem se omitir de tal sentimento de nobreza.

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No Seu Capítulo – milagres e uma nova visão da pessoa

com deficiência no novo testamento, Emílio Figueira analisa e

debate a visão transformadora de Paulo e a busca da cura através

da fé. Estudiosos dos usos e costumes dos povos afirmavam que a

medicina contida nos evangelhos e mesmo nos atos dos apóstolos

aceitavam três tipos de causas para as doenças e para as muitas

limitações e deficiências que afligiam os homens: o castigo pelos

pecados, a interferência dos maus espíritos e as forças más da

natureza, contra os quais o poder divino era o único remédio. Está

em pauta, agora, a identificação dos possíveis caminhos da cura

dos deficientes: os milagres realizados por Jesus.

De sua pesquisa, o autor conclui que o melhor é se tomar a

mensagem de fundo: não estigmatizar e deixar de lado a questão

da plausibilidade do fato.

O autor em seu capítulo III – Castigo e Pecado: Principais

Conceitos Bíblicos sobre Pessoas com Deficiências e

Mudanças de Mentalidades deu destaque ao debate incansável

sobre a deficiência como fruto do pecado. A deficiência era

atribuída a uma magia hostil ou à violação de um tabu e era tarefa

do sacerdote descobrir as causas e estabelecer a magia certa para

eliminar o mal. A causa podia ser interpretada por erro ou pecado

cometido pela pessoa contra a divindade e era exigida reparação

adequada. A pesquisa confirma que as ações e percepções

praticadas de maneira incorreta, desobediente, era considerada

violação de mandamento divino, ou seja, pecado.

O autor faz ainda realiza um estudo sobre a terminologia

“Pecado”, nos mais diversos segmentos: Judaico, Cristã, Católico,

Protestante (evangélico), atribuindo a deficiência, as doenças, as

fatalidades como consequências diretas de pecados cometidos,

como se fossem castigo.

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Referindo-se a planejamento de estudo sobre as

deficiências ao longo dos tempos, é preciso manter o foco sobre as

igrejas que lutam para manter a fé cristã, o que Emílio Figueira faz

brilhantemente em seu IV capítulo - O “Caminhar” da Pessoa

com Deficiência dentro do Catolicismo. O “castigo de Deus” era

decorrente de sua ira, enviando sinais ao povo como os problemas

mentais e as malformações congênitas, o que na realidade, era

consequência de uma sociedade sem conhecimentos científicos e

medicinais. A falta de planejamento urbano abriu caminho para

epidemias e doenças mais graves. Mas a visão do povo voltada à

ira celeste entendia a deficiência como uma falta de capacidade

para a vida, devendo ser excluído de tudo, pois não poderiam

realizar nada com dignidade.

Fechando a Coletânea, o capítulo V - Caminhos para a

Inclusão Religiosa hoje - mostra a igualdade de oportunidade,

até mesmo na religião. O autor dá conta de resultados de sua

pesquisa sobre a passagem do deficiente nos atos religiosos

indagando agora sobre outro problema contemporâneo: as

barreiras arquitetônicas dos templos religiosos.

No espaço de inovações/resistências às mudanças

propostas/impostas, o autor rediscute o sentido de se manter

pessoas com deficiências em nossos círculos de amizade a fim de

quebrar mitos e preconceitos. Mostra que, ao ressignificar os laços

de afetividade, paradigmas são quebrados permitindo que se

possam ver as reais habilidades e capacidades das pessoas com

deficiência, refletindo mais sobre a (re)construção de sua

identidade nesse espaço de múltiplas tensões, e assim,

compreender melhor, sua vida pessoal.

Os leitores que compartilham preocupações relacionadas

aos grandes desafios da inclusão, encontrarão na obra Teologia

14

da Inclusão, elementos significativos para a retomada e a

discussão dos problemas em pauta. O autor, por sua vez,

disponibiliza sua ferramenta investigativa e sua conclusão,

abrindo-se ao debate, reequacionando as questões e adiantando

hipóteses fecundas, aptas a sustentar novas buscas e novos

projetos, de modo que a produção do conhecimento, nessa área,

possa ter a necessária continuidade em busca de uma qualificada

consolidação.

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TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br

INTRODUÇÃO

A TEOLOGIA DA INCLUSÃO COMO UM

NOVO MINISTÉRIO

“Persiste em ler, exortar e ensinar, até que eu vá.”

1 Timóteo 4:13

osso dizer que, mesmo antes de eu nascer, já tinha uma

relação muito íntima com Deus. O primeiro grande milagre

Dele na minha vida foi no meu nascimento. Foi um parto

muito difícil, passaram-se muitas horas do momento de nascer, fui

tirado à força. Mesmo assim, passei horas no balão de oxigênio

lutando para viver. Deus me deu a vitória, mas deixou uma marca:

paralisia cerebral, comprometendo minha fala e movimentos.

Meus primeiros anos foram de inúmeros tratamentos e,

por onze anos, praticamente todos eles dentro de uma instituição

fechada. Quase ninguém acreditava em um futuro para uma

pessoa nas minhas condições físicas. Deus decretou o contrário.

Aos cinco anos de idade eu já estava alfabetizado. Recebi Dele o

dom da escrita. Ainda muito novo nasceram os meus primeiros

textos que deram origem a uma vasta e variada produção literária.

P

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Deus me dotou também de uma paixão grande pelos

estudos. Muitos cursos, descobertas em diversas áreas,

desenvolvimento no jornalismo, na psicologia e na psicanálise.

Toda essa minha inquietação levou-me para o universo das

pesquisas, atuando em instituições renomadas e escrevendo

quase noventa trabalhos científicos publicados no mundo todo.

Foi uma caminhada de muitos obstáculos, de gigantescas

montanhas, as quais Deus foi eliminando uma a uma.

O meu principal foco sempre foram as questões das

pessoas com deficiência, melhor qualidade de vida e sociedade

humanitária que abrace a todos. Hoje, consideram-me uma das

principais referências em Educação Inclusiva no Brasil. Deus me

deu a graça de ser testemunha ocular, eu, que sou de uma época

em que pessoas com deficiência viviam isoladas em instituições,

assisto e contribuo com o meu trabalho, pesquisas e escrita para

tantas mudanças positivas.

Apaixonado principalmente pelas investigações históricas,

já há uns vinte anos eu queria pesquisar sobre as pessoas com

deficiência no Cristianismo. Minha intenção inicial era escrever

um artigo de nove páginas. Só que eu era membro de uma igreja

com bases fundamentalistas que não nos permitia estudar

quaisquer outros livros religiosos, senão a Bíblia. Eu, mesmo

tendo vontade de estudar mais sobre religião, respeitava os

ensinamentos da igreja. Independente de ser certo ou errado, os

18 anos que permaneci ali foram fundamentais para o meu

nascimento, desenvolvimento e aprendizagem espiritual. Pude

participar de incontáveis momentos maravilhosos na presença de

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TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br

Deus. Assisti obras e milagres na vida de muitos e na minha

própria vida.

Eu continuava a guardar anotações e materiais sobre as

pessoas com deficiência e o Cristianismo. Sabia que um dia teria

que escrever algo a respeito. Até que, em 2010, sofri uma grande

discriminação por minha deficiência dentro da igreja onde eu

estava, inclusive por pessoas do alto ministério. Não cabe narrar

esse triste fato aqui. Só que minha permanência naquela igreja se

tornou insustentável. Saí de lá com ainda mais certeza de que teria

que fazer alguma coisa para que outras pessoas com as mais

variadas deficiências não sofressem discriminações nos meios

cristãos, como eu sofri.

Passei meses sem congregar em qualquer igreja. Até que,

em 10 de abril de 2011, manhã de um domingo ensolarado, entrei

pela primeira vez em uma Igreja Batista, vindo de uma

denominação predominantemente fechada em si mesma. Estava

com a cabeça cheia de dúvidas, inseguranças, coração machucado

por discriminações religiosas sofridas. Mesmo machucado, eu

tinha certeza de que era exatamente como fui concebido por Deus

e Ele me amava, apesar da minha deficiência motora. E, ao entrar

por aquelas portas, sabia que jamais poderia me afastar daquele

amor!

Na Igreja Batista percebi logo de início que tudo era

diferente. Senti amor, vi o sorriso no rosto das pessoas. Fui

acolhido. Com humildade. Uma semana se passou e no outro

domingo foi muito forte a vontade de voltar. A mesma vontade

que começou a me mover naturalmente, cada vez mais, sendo

envolvido, acolhido e fazendo parte dessa comunidade cristã. Ali

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descobri um Deus amoroso, bondoso, Pai paciente... Um Deus

como sempre procurei e no qual acreditei. Foi morrendo dentro

de mim o Deus autoritário e punidor, com o qual convivi por

muitos anos. Fui percebendo que a liberdade e expressão religiosa

que eu procurava realmente existem. Que posso falar ou escrever

abertamente as coisas de Deus, manifestar o meu amor por Ele.

Crescia em mim a cada dia a vontade de estudar mais no campo

teológico. Usar as linguagens de expressões que recebi como dom

dos céus para escrever livros, contos, romances, teatro evangélico

ou textos didáticos.

Fascinou-me o modo de se pregar o evangelho em uma

Igreja Batista tradicional. Eu, que vinha de uma igreja onde

éramos até proibidos de ler livros religiosos, na Igreja Batista

conheci a Bíblia empregada de forma didática, ensinada, estudada,

discutida. Aulas aos domingos. Irmãos lendo outros autores e

teólogos. Estudando, surpreendeu-me ver como o Novo

Testamento fala de ensino, doutrina e exemplo. Jesus é chamado

de mestre 42 vezes. As palavras relacionadas com ensino

repetem-se mais de 175 vezes, quase sempre no sentido positivo.

Só em 1 e 2 de Timóteo vemos mais de 50 referências de ensino,

instrução, doutrina e exemplo, visando vidas mais consagradas e

firmes no Senhor. A aprendizagem é o que orienta e motiva as

outras três funções vitais e comunitárias da igreja local: Adoração,

Comunhão e Evangelização.

Enquanto na outra igreja era apenas mais um membro no

banco, na Igreja batista eu fui incluído de imediato e, tempos

depois, já tinha ministérios. Quis cada vez mais estudar e me

aperfeiçoar como um Educador Cristão. Ao mesmo tempo, quis

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estar cada vez mais preparado, orando continuamente para que o

Senhor Jesus ilumine minha mente e eu possa dar sempre o

melhor nos Ministérios e cargos que Ele tem confiado em minhas

mãos para o crescimento de Sua igreja, honra e glória.

Graças a essa abertura, em 2012, bacharelei-me em

Teologia pela Instituto de Educação Teológica de São Paulo, com a

monografia: Entre a cruz e a clínica: Do aconselhamento pastoral

ao atendimento psicológico nas igrejas evangélicas como uma

nova proposta de ministério.

Intensifiquei minhas pesquisas e análises sobre as pessoas

com deficiência no Cristianismo. Por já ter mestrado em Educação

Inclusiva e doutorado em Psicanálise, essa mesma instituição

aceitou-me em seu Doutorado em Teologia e, o que era para ser

um artigo de nove páginas, hoje se materializa em uma tese,

apontando para uma nova caminhada e ministério nas

comunidades cristãs.

Hoje entendo que Deus me dotou de inteligência, inúmeras

capacidades e permitiu aquela discriminação na minha vida para

me libertar, me capacitar teologicamente e me usar como um

instrumento em Sua obra. Peço a Deus que o meu amor e

relacionamento com todos os meus irmãos cresça cada vez mais e

que eu esteja sempre preparado para atendê-los em suas

necessidades. Sobretudo, peço principalmente ao Senhor Jesus

que multiplique minha saúde e capacitação para que eu possa

trabalhar pela Sua obra até meus últimos dias, convicto de que,

tudo o que eu fizer, ainda será muito pouco diante de todo o bem

que Ele sempre fez e fará por mim. E posso testificar esse amor.

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***

Cabe aqui uma rápida explicação teórica e metodológica

que foi utilizada na construção desta obra, fruto de minha tese de

Doutorado em Teologia pela Instituto de Ensino Teológico de São

Paulo, defendida em 27 de outubro de 2014.

Sendo a função dos teólogos cristãos recorrer à exegese

bíblica e à análise racional para entender, explicar, testar, criticar

e defender o Cristianismo, testando a sua veracidade,

comparando-o a outras tradições ou religiões, defendendo-o de

críticos, corroborando qualquer reforma cristã, esta tese teve

como base teórica a Teologia Histórica. Também conhecida como

história da teologia ou história da doutrina, trata-se do ramo da

teologia que busca investigar as circunstâncias históricas em que

as ideias teológicas se desenvolveram ou foram especialmente

formuladas. Uma investigação teológica que objetiva explorar o

desenvolvimento histórico das doutrinas cristãs e identificar os

fatores que influenciaram sua formulação, documenta as

respostas às grandes questões do pensamento cristão e ao mesmo

tempo procura explicar os fatores que contribuíram para a

elaboração dessas respostas. Por um lado, é uma ferramenta

pedagógica, tendo em vista que oferece informações sobre o

desenvolvimento dos grandes temas teológicos, os pontos fortes e

fracos das diferentes abordagens e os marcos mais notáveis do

pensamento cristão, em termos de autores e documentos. Por

outro lado, é uma ferramenta crítica, pois permite ver as falhas, as

limitações e os condicionamentos de certas formulações

doutrinárias, o que possibilita seu contínuo aperfeiçoamento.

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Junto com a Teologia Histórica, utilizei a Hermenêutica

Bíblica, que estuda os princípios da interpretação da Bíblia como

uma coleção de livros sagrados e divinamente inspirados,

abrangendo a relação dialética que visa substancializar os

significados dos textos bíblicos. A hermenêutica bíblica não deve

se afastar do texto bíblico, bem como não se abstém da

problemática inicial do hermeneuta. Seu principal objetivo é o de

descobrir a intenção original do autor bíblico. No caso dos textos

da Bíblia, o leitor, ao menos racionalmente, não tem acesso direto

ao autor original. Por isso é necessário aplicar princípios da

hermenêutica (a ciência da interpretação) ao texto bíblico.

No Cristianismo, essa interpretação é estudada e obtida

através da Exegese, também utilizada nesta tese. A exegese tem

práticas implícitas e intuitivas, sendo os textos sagrados os

primeiros dos quais se ocuparam os exegetas na tarefa de

interpretar e dar seu significado. Por isso, o termo “exegese”

significa, como interpretação, revelar o sentido de algo ligado ao

mundo do humano, mas a prática se orientou no sentido de

reservar a palavra para a interpretação dos textos bíblicos.

Como metodologia, trabalhei com a pesquisa bibliográfica,

que permite ao investigador a cobertura de uma gama de

fenômenos muito mais ampla do que aquela que poderia

pesquisar diretamente. Sua vantagem aumenta ainda mais quando

o problema da pesquisa requer dados muito dispersos pelo

espaço, sendo indispensável nos estudos históricos; em muitas

situações, não há outra maneira de conhecer os fatos passados

senão com base em dados bibliográficos.

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Esta pesquisa de caráter bibliográfico reuniu materiais

(livros, artigos científicos, periódicos), obtidos já em um

levantamento preliminar em bibliotecas públicas e universitárias,

em sítios científicos, por meio do meu acervo pessoal. Vale

acentuar que, assim como qualquer outra modalidade de

pesquisa, esta se desenvolveu ao longo de uma série de etapas. Na

primeira fase, realizei a organização do material, já olhando para o

conjunto de documentos de forma analítica, buscando averiguar

trechos significativos dos documentos de acordo com o objetivo

de investigação com leituras e fichamentos, ocorrendo algumas

transcrições de trechos/dados utilizados posteriormente.

Organizando o material e processando a leitura segundo critérios,

utilizei o método analítico-sintético, unindo os anunciados do

contexto principal referencial teórico (exposto no final desta

obra) aos meus conhecimentos pessoais e observações. Na

segunda fase, visando à compreensão do material coletado,

trabalhei com o modo dialético, visando ser o ato de se conhecer a

análise do processo de fenômeno um processo do conhecimento,

realizada aquela a partir de uma consciência crítica, permitindo a

elaboração de conceitos relativos às atividades do individuo e,

portanto, estabelecendo previsões a respeito da transformação da

realidade e da sociedade.

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I – O ANTIGO TESTAMENTO: AS QUESTÕES

DAS DEFICIÊNCIAS NO PRÉ-CRISTIANISMO

Antigo Testamento é composto de 46 livros e constitui a

primeira grande parte da Bíblia cristã e a totalidade da

Bíblia hebraica, os primeiros cinco livros – os Livros da Lei

(ou Torá). Entretanto, a tradição cristã divide o Antigo

Testamento em outras partes e reordena os livros dividindo-os

em categorias; Lei, história, poesia (ou livros de sabedoria) e

Profecias. Muitos séculos antes de Cristo, escribas, sacerdotes,

profetas, reis e poetas do povo hebreu mantiveram registros de

sua história e de seu relacionamento com Deus. Esses registros

tinham grande significado e importância em suas vidas e, por isso,

foram copiados muitas e muitas vezes e passados de geração em

geração.

A Lei compreende os primeiros cinco livros. Já os Profetas

incluem: Isaías, Jeremias, Ezequiel, os Doze Profetas Menores,

Josué, Juízes, 1 e 2 Samuel e 1 e 2 Reis. Os escritos reúnem o

grande livro de poesia, os Salmos, além de Provérbios, Jó, Ester,

Cantares de Salomão, Rute, Lamentações, Eclesiastes, Daniel,

Esdras, Neemias e 1 e 2 Crônicas.

Os livros do Antigo Testamento foram escritos em longos

pergaminhos confeccionados em pele de cabra e copiados

cuidadosamente pelos escribas. Geralmente, cada um desses

O

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livros era escrito em um pergaminho separado; como a Lei

ocupava espaço maior, foi escrita em dois grandes pergaminhos. O

aramaico foi a língua original de algumas partes dos livros de

Daniel e de Esdras. Hoje se tem conhecimento de que o

pergaminho de Isaías é o mais remoto trecho do Antigo

Testamento em hebraico. Estima-se que foi escrito durante o

século II a.C. e, por isso, se assemelha muito ao pergaminho

utilizado por Jesus na sinagoga, em Nazaré. Foi descoberto em

1947, juntamente com outros documentos, em uma caverna

próxima ao Mar Morto.

É no Antigo Testamento que iniciaremos a nossa saga de

contar a história das pessoas com deficiência ao longo do

Cristianismo!

Noé: o primeiro registro bíblico de uma pessoa com

deficiência

Os primeiros cinco livros do Antigo Testamento estão

repletos de regras e histórias. Inicia-se a Bíblia por Gênesis (nome

que significa começo, origem ou criação), formando cinco

pensamentos principais: 1 – O começo do mundo criado por Deus;

2 – O começo do homem como criatura de Deus; 3 – O começo do

pecado, que entrou no mundo através da desobediência do

homem; 4 – O começo da redenção, vista nas promessas e tipos do

livro e da família escolhida; e 5 – O começo da condenação, vista

na destruição e punição de indivíduos, cidades e mundos.

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No contexto do livro de Gênesis encontraremos o nosso

primeiro personagem: Noé ou Noach (do hebraico, “descanso,

alívio, conforto”). De acordo com Moisés, autor desses primeiros

cinco livros, Noé era filho de Lameque, que era filho de

Matusalém, que era filho de Enoque, que era filho de Jarede, que

era filho de Malalel, que era filho de Cainã ou Quenã, que era filho

de Enos, que era filho de Sete, que era filho de Adão, que era filho

de Deus. Era casado Noéma (ou Namá – Na’amah – cheia de

beleza) com uma mulher cananita e seus três filhos mais

conhecidos foram Sem, Cam (ou Cã) e Jafé. Noé é mencionado pela

primeira vez no capítulo 5, versículo 29, encerrando com sua

morte, capítulo 9, versículo 29, com 950 anos. O relato conta que

Noé viveu em uma época em que as outras linhagens humanas (a

partir dos descendentes de Caim e dos próprios parentes de Noé,

provavelmente) mostraram-se corrompidas.

O nascimento de Noé é descrito pela Bíblia em palavras

muito breves. Seu pai Lameque já sentia que Noé veio ao mundo

com uma missão especial dada por Deus, pois, por ocasião do

nascimento do filho, declarou: “29A quem chamou Noé, dizendo:

Este nos consolará acerca de nossas obras e do trabalho de nossas

mãos, por causa da terra que o Senhor amaldiçoou.” (Gn 5:29).

A Bíblia não oferece mais detalhes sobre o nascimento e

características físicas de Noé. No entanto, recorrendo a um

documento escrito em linguagem “apocalíptica” (repleta de sinais)

conhecido como “Livro de Enoque, O Profeta”, um trecho da obra

diz: “Depois de algum tempo meu filho Matusalém escolheu uma

esposa para seu filho Lameque. Ela engravidou e deu à luz uma

criança cuja pele era branca como a neve e vermelha como rosa;

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cujo cabelo era comprido e alvo como a lã e cujos olhos eram lindos.

Quando os abriu iluminou toda a casa, como o sol; a casa ficou cheia

de luz”.

Enoque diz que Lameque, pai de Noé, ficou intrigado com a

aparência do recém-nascido. Talvez até tenha duvidado da

fidelidade de sua esposa. Foi procurar seu pai, Matusalém, a quem

descreveu o menino, informando dentre outras coisas: “Parece o

fruto dos anjos do céu; é de natureza diferente da nossa, sendo no

todo diferente de nós”. (...) “Ele parece não ser meu, mas dos anjos”.

Pelos relatos históricos, hoje podemos dizer que essas são

características básicas de um albino. Noé devia realmente ser

muito diferente dos primos, tios, avós e demais parentes, todos

morenos e de olhos escuros. Foi uma diferença considerada

problemática o suficiente para levar o avô Matusalém, já com 369

anos de idade, a empreender uma viagem longa e cansativa para

procurar seu pai, o patriarca Enoque, bisavô do recém-nascido,

retirado do mundo “nas extremidades da terra”.

Enoque diz em seu livro que analisou a questão com a

sabedoria de seus muitos anos de vidas. Possuidor de um

misticismo nato e informado por seus alegados contatos diretos

com Deus, tranquilizou Matusalém, que voltou sabendo que o

bebê era, de fato, filho de Lameque, que ele deveria ser chamado

de Noé (consolo da Terra) e, com isso, ser preparado para eventos

que culminaram com o dilúvio, 600 anos após.

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A obra Livro de Enoque, O Profeta1 comenta ainda que

Lameque e sua esposa eram primos em primeiro grau, sendo “o

tipo comum de consanguinidade em albinismo”.

A cegueira de Isaque por 80 anos

O grande patriarca hebreu Isaque talvez seja o homem que

mais tempo viveu nessa deficiência. Seu nome é de origem

hebraica e significa “ele sorri” ou “ele ri”. Descendente de Abraão e

Sara, Isaque foi um dos três patriarcas do povo de Israel, junto

com seu pai Abraão e seu filho Jacó.

A história de Isaque começa a ser contada no capítulo 15

de Gênesis, quando, mesmo em idade avançada, o Senhor promete

1 Embora considerados uma obra apócrifa (do grego Apokryphos, significando oculto

ou não autêntico), os escritos deste livro foram encontrados na primavera de 1947,

quando um pastor árabe deixou cair um objeto perto das ruínas de Qumrán. Ao tentar

recuperar o artefato, o religioso ficou surpreso ao se deparar com 20 grandes vasos

dentro de uma espécie de câmara. Logo ele notou que seu objeto tinha quebrado um

desses vasos, descobrindo que dentro deles havia vários rolos de pergaminho que

traziam o conteúdo deste livro; assim eram descobertos os Manuscritos do Mar

Morto. Eles apresentavam escrituras muito bem conservadas que, além de registrar

todos os rituais e informações a respeito de um povo até então desconhecido, os

essênios, traziam também vários evangelhos escritos por apóstolos que não tinham

sido incluídos na Bíblia. Um desses pergaminhos guardava um texto incrivelmente

interessante e revelador: O Livro de Enoque, o Profeta. Essa obra é de grande

importância não somente em virtude da sua menção aos versículos 14 e 15 da epístola

de Judas, mas também por ter sido citada por vários padres da Igreja Católica

primitiva. Sabe-se que mais de 70 textos do livro de Enoque influenciaram não

somente os diversos escritos do Novo Testamento como também as obras de

Clemente de Alexandria, Tertuliano e Jerônimo.

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um filho a Abrão. Sarai, sua esposa, não lhe dera filhos e, por isso,

pediu que Abrão possuísse sua serva egípcia Agar, a fim de terem

filhos por esse meio, nascendo uma criança de nome Ismael. A

convivência entre eles não era agradável, o que ocasionou a

partida de Agar e Ismael para outras terras. Ismael, embora filho

de Abrão, não era o filho da promessa do Senhor. Quando Abrão

atingiu 99 anos, apareceu o Senhor e mudou seu nome para

Abraão e o de Sarai para Sara. Quando o Senhor disse que dentro

de um ano lhe daria um filho, Abraão riu. O mesmo ocorreu com

Sara quando recebeu a notícia, por estarem em idade avançada. O

nascimento de Isaque está ligado ao riso e não apenas faz alusão

ao sorriso de Abraão e de Sara, mas também pode ser uma oração

implícita de que Deus sorrirá para o filho deles e será generoso

com ele.

Isaque protagonizou momentos marcantes do Antigo

Testamento. Seu pai Abraão foi provado pelo Senhor quando

Isaque ainda era criança, pedindo-lhe a sua vida como sacrifício:

“E disse: Toma agora o teu filho, o teu único filho, Isaque, a quem

amas, e vai-te à terra de Moriá, e oferece-o ali em holocausto sobre

uma das montanhas, que eu te direi.” (Gn 22:2). Tendo feito de

acordo com o que o Senhor ordenou, pouco antes de sacrificar seu

filho, um anjo bradou do céu e lhe disse: “Então disse: Não

estendas a tua mão sobre o moço, e não lhe faças nada; porquanto

agora sei que temes a Deus, e não me negaste o teu filho, o teu

único filho.” (Gn 22:12).

Mais tarde, casou-se com uma linda jovem mesopotâmia,

Rebeca, que lhe gerou dois filhos do sexo masculino somente 20

anos depois do casamento: Esaú e Jacó. Eram gêmeos, sendo Esaú

o primogênito. Um homem rude, cheio de pelos no corpo e nas

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mãos, tornou-se caçador, dedicado às atividades do campo e da

guerra, enquanto Jacó era um homem simples e, como diz Gênesis,

“habitante de tendas”. O pai preferia seu primogênito pelo que era

e pelo que trazia das caçadas; Rebeca dedicava sua atenção e

carinho a Jacó, protegendo-o sempre e mal imaginando que ele se

transformaria no maior patriarca hebreu e que um dia receberia

de Deus o nome de Israel (“o que luta com Deus”).

Ao envelhecer e ficar cego, certamente isso foi peça

fundamental para outra passagem bíblica. Sem enxergar, idoso,

com suas faculdades debilitadas e preocupado com a

possibilidade de morte iminente, Isaque chamou seu filho Esaú

para ele apanhar alguma caça, a fim de receber sua bênção.

“E aconteceu que, como Isaque envelheceu, e os seus olhos se

escureceram, de maneira que não podia ver, chamou a Esaú,

seu filho mais velho, e disse-lhe: Meu filho. E ele lhe disse:

Eis-me aqui.

E ele disse: Eis que já agora estou velho, e não sei o dia da

minha morte;

Agora, pois, toma as tuas armas, a tua aljava e o teu arco, e

sai ao campo, e apanha para mim alguma caça.

E faze-me um guisado saboroso, como eu gosto, e traze-mo,

para que eu coma; para que minha alma te abençoe, antes

que morra.” (Gn 27:1-4)

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Para entender a densidade desse fato é preciso entender

que essa bênção paterna não era um mero palavrório, mas um ato

de peso que conferia a herança de um clã ao abençoado pelo pai. E

os envolvidos sabiam muito bem que, uma vez dada, essa bênção

não poderia ser retirada nem transferida a outrem, pois vinha de

Deus!

Enquanto Esaú estava caçando, Jacó, depois de ouvir o

conselho de sua mãe, enganou seu pai cego propositadamente,

passando-se por Esaú, obtendo assim, a bênção de seu pai, de tal

forma que Jacó tornou-se herdeiro principal de Isaque e Esaú foi

deixado numa posição inferior. Isaque enviou Jacó à Mesopotâmia

para escolher uma mulher de sua própria família. Depois de 20

anos trabalhando para Labão, Jacó voltou para casa e reconciliou-

se com seu irmão gêmeo.

Mais tarde Isaque explicaria a Esaú o engano e daria o

veredito final: “Então respondeu Isaque a Esaú dizendo: Eis que o

tenho posto por senhor sobre ti, e todos os seus irmãos lhe tenho

dado por servos; e de trigo e de mosto o tenho fortalecido; que te

farei, pois, agora, meu filho?” (Gn 27:37). Nem o fato de ser cego e

de ter-se enganado devido à deficiência visual levou Isaque a

mudar sua posição anteriormente assumida.

Isaque viveu até os 180 anos de idade e dessa vida toda

passou 80 anos na dependência de Rebeca e de seus criados. Ele

foi o único patriarca bíblico que não deixou Canaã, o único que

não teve o nome mudado e o patriarca de vida mais longa.

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A deficiência temporária de Jacó em decorrência de uma luta

espiritual

Já vimos que Jacó, ao se passar pelo irmão para obter a

bênção do pai, Isaque, entrou em pé de guerra com Esaú. Sua mãe

o aconselhou a sair de casa, prometendo chamá-lo de volta

quando o irmão se acalmasse. Jacó, com idade entre 76 e 78 anos

aproximadamente, foi para Padã-Arã, região da atual Síria. Como

um homem muito errado na fé, traiu seu irmão (Gênesis, 25:33),

enganou o pai (Gênesis, 27:23), fugiu da ira do seu irmão (Gênesis,

27:41-44) e não teve boas relações com o sogro (Gênesis, 31). Mas

Jacó tinha só um pensamento: vencer a qualquer custo, conseguir

tudo que desejava.

Morando em Padã-Arã, casou-se com duas jovens, Lia e

Raquel. Após trabalhar 14 anos pelas esposas e mais seis anos

pela família, Deus diz para retornar à sua terra. Ele parte com suas

duas esposas, duas criadas, onze filhos, seus criados e respectivos

rebanhos. Após fazer um pacto com Deus, que o ajudaria a voltar

para a Terra Prometida são e salvo, já em viagem e rumando sul

ao longo de uma rota que ficaria a leste do rio Jordão, a caravana

chegou ao vale de Jaboque, um afluente do rio maior. Jacó tomou

ciência de que o irmão estaria a caminho com um exército de 400

homens e resolveu então mandar a família atravessar o rio para

ali ficar em comunhão com Deus e passar a noite à margem norte

do afluente.

Mais tarde, naquela mesma noite, sozinho na margem

meridional do Jaboque, em meio a essa crise aparentemente

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grave, Jacó demonstrou coragem em um dos episódios mais

enigmáticos da Bíblia. Sozinho e na escuridão, viu-se lutando com

um estranho misterioso (Gn 32:22-32):

“E levantou-se aquela mesma noite, e tomou as suas duas

mulheres, e as suas duas servas, e os seus onze filhos, e

passou o vau de Jaboque.

E tomou-os e fê-los passar o ribeiro; e fez passar tudo o que

tinha.

Jacó, porém, ficou só; e lutou com ele um homem, até que a

alva subiu.

E vendo este que não prevalecia contra ele, tocou a juntura

de sua coxa, e se deslocou a juntura da coxa de Jacó, lutando

com ele.

E disse: Deixa-me ir, porque já a alva subiu. Porém ele disse:

Não te deixarei ir, se não me abençoares.

E disse-lhe: Qual é o teu nome? E ele disse: Jacó.

Então disse: Não te chamarás mais Jacó, mas Israel; pois

como príncipe lutaste com Deus e com os homens, e

prevaleceste.

E Jacó lhe perguntou, e disse: Dá-me, peço-te, a saber o teu

nome. E disse: Por que perguntas pelo meu nome? E

abençoou-o ali.

E chamou Jacó o nome daquele lugar Peniel, porque dizia:

Tenho visto a Deus face a face, e a minha alma foi salva.

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E saiu-lhe o sol, quando passou a Peniel; e manquejava da

sua coxa.

Por isso os filhos de Israel não comem o nervo encolhido, que

está sobre a juntura da coxa, até o dia de hoje; porquanto

tocara a juntura da coxa de Jacó no nervo encolhido.” (Gn

32:22-32)

Enquanto, no versículo 24, Jacó identifica a criatura como

“um homem”, no versículo 28 fica claro que ele lutou com o

próprio Deus. Jacó precisava dessa experiência marcante com

Deus que o fizesse mudar radicalmente, para demovê-lo de seu

orgulho e quebrar sua prepotência e hipocrisia. Podemos deduzir

que o objetivo da luta era quebrantar Jacó, mostrando-lhe ser uma

criatura sem forças em si mesma. Jacó tinha um “eu” muito forte

que demandou de uma luta de uma noite inteira, quando ele se

recusava a ceder.

Essa experiência com Deus, Ranauro e Limeira da Sá

(1999) assim analisam: “Isto é muito sério, pois muitos entendem

que Deus não pode servir-se de coisas dessa natureza no trato com

as pessoas. Mas Deus usou uma ‘deficiência’ para marcar Jacó, para

mudar sua história, para lembrá-lo constantemente de que ele não

deveria sentir-se autossuficiente. Pode Jacó sentir vitória e derrota

numa única situação. Dessa vez a bênção era dele mesmo, não

precisou ser roubada nem tramada, mas houve um preço: a luta e

um sinal, a deficiência na coxa. Quando se agarrou desamparado,

recebeu o direito que havia tentado comprar (Gn 27:23) e a bênção

que havia tentado (Gn 27:23). De fato sua vida mudou a partir daí e

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veio ele a constituir uma grande nação. Seu novo nome – Israel –

significa “príncipe”. Príncipe não por sua força, mas por sua

fraqueza, como também por sua perseverança. Parece que, tocando

em sua aparência, em sua força física, Deus conseguiu tocar em seu

‘eu’ mais profundo. Crer na existência de um Deus-Pessoa, em um

Deus pessoal, não implica crer que Ele pode, ainda hoje, agir assim

com determinadas pessoas?” (pp. 72-73).

Essa história fascinou gerações de judeus e cristãos.

Matreiro, dúbio e às vezes amedrontado, o segundo filho de

Isaque parecia um candidato improvável para incorporar e

realização da promessa de Deus à nação de Israel. Notaremos, no

Antigo Testamento e na tradição rabínica, que sua falibilidade

humana foi, precisamente, o que ajudou a provar que a vontade de

Deus, e não a iniciativa humana ou o mérito individual, foi a

responsável por estabelecer os israelitas na Terra Prometida e

moldar o destino da nação.

Jacó retornou à terra de seus pais com 98 anos e ainda viu

seu pai durante mais 22 anos, que morreu com 180 anos de idade,

dez anos antes de Jacó ir ao Egito encontrar seu filho José. Jacó

viveu 17 anos no Egito (Gn 47:28) e morreu com 147 anos.

Lia, desprezada, mas recompensada por Deus

Lia fora a primeira esposa de Jacó. A mais velha das duas

filhas de Labão, ela não tinha a mesma beleza que sua irmã

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Raquel. Por isso, fora uma mulher que sentiu o desprezo do pai ao

ser usada em benefício dele. Esse foi só o início do seu sofrimento.

Lia era desprovida de beleza. Em versões mais recentes da

Bíblia, ela é descrita como tendo um “olhar terno” e nenhum outro

detalhe sobre sua aparência física, quando é apresentada em

Gênesis 29:16-17. Entre teóricos e historiadores é debatido se o

adjetivo “terno” foi usado para significar “delicado e suave” ou

“fraco”. Algumas traduções indicam que “olhar terno” pode

significar que Lia possuía olhos azuis ou claros. Na Bíblia vulgata

essa dúvida se acentua ainda mais em Gênesis 29:17: “Lia tinha os

olhos defeituosos e Raquel era bela de talhe e rosto”. Olhos

defeituosos?

A história dela é marcada pela falta de consideração, de

amor, de apreço. Seu pai a usou para ter mais dinheiro. Lia se

tornou esposa de Jacó através de uma artimanha de Labão, que a

colocou no lugar de Raquel na noite de núpcias. Ao se casar, tinha

um marido que não a amava. Depois, sua irmã casou-se com seu

esposo, cujo amor era maior por essa (Gn 29:30). O desprezo era

tanto que Deus teve compaixão de Lia e a fez mãe antes de Raquel.

Gerou seis filhos e uma filha para Jacó, enquanto sua criada Zilpa

deu-lhe mais dois filhos, que também eram contados como de Lia,

antes que Raquel fosso capaz de ter seus próprios filhos.

Essa é a prova de que Deus sabia do sofrimento de Lia e a

colocou em posição de vantagem em relação a Raquel. O Senhor se

mostrou no controle de todas as coisas ao conceder filhos a Lia,

deixou claro que, mesmo que Jacó não a amasse, Ele a amava,

cuidava e ajudava a passar pelos sofrimentos.

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Moisés: problemas de fala e autoestima

O segundo livro da Bíblia, Êxodo, significando saída, ou

partida, tem como palavra-chave a redenção demonstrada pela

libertação do um povo escolhido, liberto de uma situação

angustiante, a escravidão egípcia. O interessante é que o autor e

personagem principal de Êxodo era Moisés, vítima de um sério e

perturbador distúrbio da comunicação, que alguns estudos

históricos apontam como uma acentuada gagueira, que afetou

profundamente sua autoestima. No começo de sua história,

Moisés, personagem predominante do Antigo Testamento, era

tímido, humilde, buscando ficar na obscuridade. Mas foi

justamente uma pessoa com essas características que Deus

escolheu para uma grande obra.

O problema de sua fala deve ter-se agravado em um

momento de forte tensão em que ele, morando no deserto por

muitos anos, decidiu levar seu rebanho ao monte Horeb para

pastar. No meio da noite calma viu uma grande touceira de sarça

pegando fogo, mas sem queimar. Aproximando-se com cautela,

ouviu uma voz. Era o próprio Deus, chamando-o para a grande

missão de vida: tirar os hebreus do Egito e conduzi-los à Terra

Prometida. Parte desse diálogo, em Êxodo 4, acentua bem a sua

deficiência e como Deus começou a instruir Moisés em sua futura

missão:

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“Então disse Moisés ao Senhor: Ah, meu Senhor! eu não sou

homem eloquente, nem de ontem nem de anteontem, nem

ainda desde que tens falado ao teu servo; porque sou pesado

de boca e pesado de língua.

E disse-lhe o Senhor: Quem fez a boca do homem? ou quem

fez o mudo, ou o surdo, ou o que vê, ou o cego? Não sou eu, o

Senhor?

Vai, pois, agora, e eu serei com a tua boca e te ensinarei o

que hás de falar.

Ele, porém, disse: Ah, meu Senhor! Envia pela mão daquele a

quem tu hás de enviar.

Então se acendeu a ira do Senhor contra Moisés, e disse: Não

é Arão, o levita, teu irmão? Eu sei que ele falará muito bem;

e eis que ele também sai ao teu encontro; e, vendo-te, se

alegrará em seu coração.

E tu lhe falarás, e porás as palavras na sua boca; e eu serei

com a tua boca, e com a dele, ensinando-vos o que haveis de

fazer.

E ele falará por ti ao povo; e acontecerá que ele te será por

boca, e tu lhe serás por Deus.

Toma, pois, esta vara na tua mão, com que farás os sinais.”

(Ex 4:10-17)

A reação de Moisés, naquele momento, foi no mínimo

cuidadosa ao dizer: “Ele, porém, disse: Ah, meu Senhor! Envia pela

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mão daquele a quem tu hás de enviar.” (Ex 4:13), sendo o

verdadeiro sentido dessa frase no hebraico “envia outra pessoa”.

Ele preferiu enfatizar a sua deficiência, não se atentando ao poder

de Deus. Quando o Senhor disse em “ser a sua boca”, poderia livrá-

lo da sua dificuldade de dicção ou mesmo usá-lo, a despeito dela.

As desculpas de Moisés nos demonstram, a princípio, sua falta de

autoconfiança e uma fé momentânea.

Ranauro e Lima de Sá (1999) acentuam que, “quando Deus

comprometeu-se a ser com sua boca, não estava assumindo a

responsabilidade de livrá-lo da dificuldade. Apesar dela,

ressaltaríamos, Deus o havia escolhido. Na perspectiva de Deus, essa

deficiência poderia até mesmo ter um propósito, ou simplesmente

não interferiria naquilo a que Ele o destinara. Na narrativa bíblica,

encontramos Deus tentando fazer com que Moisés levantasse seus

olhos para ver a amplitude do significado de existência de pessoas

com dificuldades semelhantes, e até maiores, o que está dentro da

administração do Deus-Criador” (pp. 75-76).

Deus contra-argumentou com o seguinte e forte

questionamento: “E disse-lhe o Senhor: Quem fez a boca do homem?

ou quem fez o mudo, ou o surdo, ou o que vê, ou o cego? Não sou eu,

o Senhor?” (Ex 4:11). O Senhor procurou encorajá-lo também por

outros meios para enfrentar os desafios que se punham à sua

frente, ou seja, os líderes hebreus e a corte do faraó, chegando a

demonstrar que Ele estaria efetivamente ao seu lado.

Moisés, cônscio de suas limitações quanto à desenvoltura

em falar, levou Deus a indicar uma solução: o irmão de Moisés,

Arão, seria seu companheiro de todas as horas, tanto para

convencer os líderes hebreus quanto para falar ao faraó nas horas

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aprazadas. Arão foi vital para o sucesso de todo o ambicioso

projeto, uma vez que os planos, os comentários, as novas ações e

providências, e mesmo os novos argumentos diferentes eram

transmitidos por Deus a Moisés e este os repassava a Arão. Por

sua vez, este não dispensava nunca a carismática presença de

Moisés e tudo transmitia ao faraó e sua corte, aos líderes hebreus

e ao povo, tendo desempenhado essa missão por muitos anos.

Foram várias as tentativas frustradas de tirar o povo de

uma escravidão cada vez mais opressora, levando Moisés a se

queixar com Deus: “Moisés, porém, falou perante o Senhor, dizendo:

Eis que os filhos de Israel não me têm ouvido; como, pois, Faraó me

ouvirá? Também eu sou incircunciso de lábios.” (Ex 6:12). Deus

continuou com a mesma orientação operacional até então

adotada, indicando Arão mais uma vez como o seu porta-voz.

Tudo o que se sabe a seu respeito está na Torá, ou

Pentateuco (os primeiros cinco livros da Bíblia), e em algumas

referências espalhadas pelo Antigo Testamento, sem nenhum

registro primário fora das escrituras. Foi a personalidade de

Moisés que uniu Israel através de sua história, exercendo uma

variedade única de papéis: legislador, chefe militar e político,

profeta e fundador de uma religião de estado. Ele é o profeta mais

importante do Judaísmo, igualmente reconhecido pelo

Cristianismo e Islamismo, assim como em outras religiões, sendo

considerado um grande profeta pelos muçulmanos. É o grande

libertador dos hebreus, tido por eles como seu principal legislador

e mais importante líder religioso. A Bíblia também o destaca: “E

era o homem Moisés mui manso, mais do que todos os homens que

havia sobre a terra.” (Nm 12:3).

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Mesmo com sua deficiência funcional de ordem bastante

grave, Moisés assumiu o papel que foi a ele indicado e conseguiu

sair-se bem da missão, com a ajuda permanente de seu irmão

Arão e foi, sem dúvida, uma das mais fortes figuras de toda a

história dos hebreus.

Pessoas excluídas dos sacrifícios ou sacerdócio

Os antigos hebreus (etnônimo possivelmente oriundo do

termo hebraico Éber, significando “descendentes do patriarca

bíblico Éber”) foram um povo semítico da região do antigo

corredor sírio-palestino, localizado no Oriente Médio. O etnônimo

também foi utilizado a partir do período romano para se referir

aos judeus, um grupo étnico e religioso de ascendência hebraica.

Acredita-se que, originalmente, os hebreus chamavam a si

mesmos de israelitas, embora esse termo tenha caído em desuso

após a segunda metade do século X a.C. Os hebreus falavam uma

língua semítica da família cananeia, à qual se referiam pelo nome

de “língua de Canaã” (Isaías 19:18). Esse povo, apagado pela

grandeza de estados muito maiores, tecnologicamente avançados

e mais importantes politicamente, foi responsável, contudo, pela

composição de alguns dos livros que compõem a Bíblia, obra

considerada sagrada por religiões ocidentais e orientais.

Será no contexto desse povo antigo que descobriremos os

primeiros registros de um olhar diferenciado no qual tanto a

doença crônica quanto a deficiência física ou intelectual, e mesmo

qualquer deformação, por menor que fosse, indicavam um grau de

41

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impureza ou de pecado. Início de uma visão cultural que ainda

ressoa nos dias atuais.

Em Levítico, terceiro livro da Bíblia, parte do Pentateuco,

sua autoria, tradicionalmente atribuída a Moisés, contém a Lei dos

sacerdotes da Tribo de Levi, a tribo de Israel que foi escolhida

para exercer a função sacerdotal no meio do seu povo. Nesse

conjunto de normas e orientações para os sacerdotes, chegou a

ser determinado por Moisés, capítulo 21:

“Falou mais o Senhor a Moisés, dizendo:

Fala a Arão, dizendo: Ninguém da tua descendência, nas

suas gerações, em que houver algum defeito, se chegará a

oferecer o pão do seu Deus.

Pois nenhum homem em quem houver alguma deformidade

se chegará; como homem cego, ou coxo, ou de nariz chato,

ou de membros demasiadamente compridos,

Ou homem que tiver quebrado o pé, ou a mão quebrada,

Ou corcunda, ou anão, ou que tiver defeito no olho, ou sarna,

ou impigem, ou que tiver testículo mutilado.

Nenhum homem da descendência de Arão, o sacerdote, em

quem houver alguma deformidade, se chegará para oferecer

as ofertas queimadas do Senhor; defeito nele há; não se

chegará para oferecer o pão do seu Deus.

Ele comerá do pão do seu Deus, tanto do santíssimo como do

santo.

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Porém até ao véu não entrará, nem se chegará ao altar,

porquanto defeito há nele, para que não profane os meus

santuários; porque eu sou o Senhor que os santifico.” (Lv

21:16-23)

Imediatamente após o êxodo do Egito, foi dada essa ordem

a Moisés: “Santifica-me todo o primogênito, o que abrir toda a

madre entre os filhos de Israel, de homens e de animais; porque meu

é.” (Ex 13:2). Endossando isso, no tratado de Bechorot – a terceira

mais longa das seis Ordens da Mishná, que aborda na sua maioria

o serviço religioso no Templo de Jerusalém, os Korbanot ou

“oferendas sacrificiais” e outros assuntos considerados ou

relacionados a essas “Coisas Sagradas” –, são citados oito tipos de

defeitos, inclusive a falta de orelhas, seu tamanho ou formato

defeituoso, como impedimento para os serviços do templo.

Uma importante obra paralela à Bíblia, História dos

Hebreus2, do historiador Flávio Josefo, confirma essa

2 A obra História dos Hebreus é outra fonte segura de pesquisa que temos paralela à

Bíblia. Tendo atravessado séculos até os nossos dias, a história do povo judeu

permanece como um fiel relato dos acontecimentos contidos nas escrituras. Esse livro

traz a história de personagens dos evangelhos e de Atos dos Apóstolos, tais como

Pilatos, os Agripas e os Herodes, e inúmeros pormenores do mundo greco-romano.

Seu autor, Flávio Josefo, foi um historiador e apologista judaico-romano, descendente

de uma linhagem de importantes sacerdotes e reis, que registrou in loco a destruição

de Jerusalém, pelas tropas do imperador romano Vespasiano, comandadas por seu

filho Tito, futuro imperador. As obras de Josefo fornecem um importante panorama,

abordando a história judaica, principalmente o período que marcou a segunda maior

tragédia dos filhos de Abraão – a destruição do santo templo no ano 70 de nossa era.

Uma confirmação das promessas de Deus para o seu povo e o cumprimento de sua

palavra em todos os fatos registrados em suas páginas.

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determinação. No capítulo 10, sobre a lei que se refere aos

sacrifícios, aos sacerdotes, às festas e outras solenidades, tanto

civis quanto políticas, ele destaca: “Se entre os sacerdotes houvesse

algum defeito corporal, ser-lhe-ia permitido estar com os demais,

mas não poderia subir ao altar ou entrar no Templo. Eram

obrigados a ser puros e castos não somente quando celebravam o

serviço divino, mas em todo o resto de sua vida” (2004, p. 140).

Mais adiante, capítulo 15, sobre as diversas outras

observações legais do sumo sacerdote, Josefo revela como

deveriam ser tratados aqueles que não podiam exercer tais cargos

por terem deficiência: “Os que eram de família sacerdotal e não

podiam exercer o sacerdócio, porque eram cegos, ficavam com os

que estavam puros e não tinham nenhum defeito corporal.

Recebiam a mesma porção que os levitas, que serviam no altar, mas

estavam vestidos como os leigos, porque só aos que exerciam o

serviço divino era permitido usar o hábito sacerdotal” (2004, p.

1.340).

Muitas vezes era até providencial uma deformidade para

que a pessoa não viesse a ter um sacerdócio no futuro, conforme

se encontra no livro décimo quarto, capítulos 23, 24, 25 e 26,

Antiguidades judaicas, Parte I: “Esses bárbaros não se contentaram

de saquear a cidade, devastaram também os campos, destruíram

Marissa e não somente fizeram Antígono rei, mas entregaram-lhe

Hircano e Fazael, acorrentados. Ele mandou cortar as orelhas ao

primeiro, a fim de que, sobrevindo alguma mudança, ele fosse tido

como incapaz de exercer o sumo sacerdócio, porque nossas leis

proíbem conceder-se essa honra aos que têm algum defeito

corporal” (JOSEFO, 2004, p. 1044).

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Vemos na Bíblia que existem doze defeitos físicos

aparentes, qualquer um dos quais desqualifica um sacerdote para

o desempenho de suas funções (Lev. 21:16-23). Só que a

“Halachá” (nome do conjunto de leis da religião judaica, incluindo

os 613 mandamentos que constam na Torá e os posteriores

mandamentos rabínicos e talmúdicos relacionados aos costumes e

tradições, servindo como guia do modo de viver judaico) aumenta

essa lista para 142, o que achamos desnecessário reproduzir aqui.

Os defeitos físicos que desqualificam um animal para o sacrifício

também são enumerados em Levítico, 22:

“Nenhuma coisa em que haja defeito oferecereis, porque não

seria aceita em vosso favor.

E, quando alguém oferecer sacrifício pacífico ao Senhor,

separando dos bois ou das ovelhas um voto, ou oferta

voluntária, sem defeito será, para que seja aceito; nenhum

defeito haverá nele.

O cego, ou quebrado, ou aleijado, o verrugoso, ou sarnoso,

ou cheio de impigens, estes não oferecereis ao Senhor, e

deles não poreis oferta queimada ao Senhor sobre o altar.

Porém boi, ou gado miúdo, comprido ou curto de membros,

poderás oferecer por oferta voluntária, mas por voto não

será aceito.

O machucado, ou moído, ou despedaçado, ou cortado, não

oferecereis ao Senhor; não fareis isto na vossa terra.

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Também da mão do estrangeiro nenhum alimento

oferecereis ao vosso Deus, de todas estas coisas, pois a sua

corrupção está nelas; defeito nelas há; não serão aceitas em

vosso favor.” (Lv 22:20-25)

Tais defeitos são aumentados para 73 na Lei Rabínica,

escritos rabínicos ao longo da história do Judaísmo, literatura da

era talmúdica, em oposição à literatura rabínica medieval e

moderna. Um defeito temporário desqualifica um sacerdote para

sua função e um animal, para o sacrifício, apenas pelo tempo que

durar. Consultando o verbete “defeito” da Enciclopédia Judaica

(Jewish Encyclopedia, publicada entre 1901 e 1906 por Funk e

Wagnalls, contendo cerca de 15.000 artigos em 12 volumes sobre

a história dos judeus e do Judaísmo, hoje de domínio público),

lemos o seguinte: “Defeito (Heb. mum) – Termo bíblico referente a

um defeito físico ou ritual, que excluía uma pessoa do serviço do

templo e tornava um animal impróprio para ser sacrificado”.

Segundo a Lei Rabínica, por exemplo, um defeito físico do

marido ou da mulher pode, em certas circunstâncias, até invalidar

um contrato de casamento. De volta à Bíblia, o livro Levítico é

contundente quanto aos homens com deficiências físicas,

afirmando isso taxativamente, conforme destaque do capítulo 21:

“Nenhum homem da descendência de Arão, o sacerdote, em

quem houver alguma deformidade, se chegará para oferecer

as ofertas queimadas do Senhor; defeito nele há; não se

chegará para oferecer o pão do seu Deus.

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Ele comerá do pão do seu Deus, tanto do santíssimo como do

santo.

Porém até ao véu não entrará, nem se chegará ao altar,

porquanto defeito há nele, para que não profane os meus

santuários; porque eu sou o Senhor que os santifico.” (Lv

21:21-23)

As causas das deficiências oriundas de castigos entre os

hebreus

No contexto da história do povo hebreu, além das

deficiências ou das deformações consideradas como

consequências diretas de pecados ou de crimes, tais como a

cegueira, a surdez, a paralisia, por exemplo, havia aquelas

provenientes de acidentes, de agressões, de participação em lutas

armadas contra inimigos do povo e as punições previstas em lei.

Outras eram provenientes de marcas da própria escravidão:

orelha ou nariz cortado, dedos ou a mão, olhos vazados.

No quinto livro da Bíblia, Deuteronômio (palavra grega

que significa “segunda lei” ou “lei repetida”), Moisés escreve as

últimas palavras semelhantemente entregues durante os últimos

sete dias de sua vida, não uma repetição da lei, mas sim uma

aplicação dela em vista das novas condições que Israel

encontraria em Canaã e devido à sua desobediência anterior.

Moisés tinha nesses escritos o objetivo de levar Israel à

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obediência, encorajamento e advertência. Deuteronômio é uma

espécie de testamento do velho Moisés às bordas da Terra

Prometida. Nele, capítulo 25, encontramos um castigo severo

(amputação da mão) para um procedimento considerado

altamente pecaminoso por parte da mulher:

“Quando pelejarem dois homens, um contra o outro, e a

mulher de um chegar para livrar a seu marido da mão do

que o fere, e ela estender a sua mão, e lhe pegar pelas suas

vergonhas,

Então cortar-lhe-ás a mão; não a poupará o teu olho.” (Dt

25:11-12)

Os castigos ou penas por faltas contra as leis de Deus e

mesmo de Israel eram por vezes muito cruéis e de caráter

extremo. Eles correspondiam a alguma necessidade da época em

que foram estabelecidos. O próprio Moisés elaborou muitos deles;

no capítulo 13 do livro que disserta sobre os adoradores de outros

deuses, “Para que todo o Israel o ouça e o tema, e não torne a fazer

semelhante maldade no meio de ti.” (Dt 13:11).

Dureza que também é repetida nas palavras de Moisés

com relação à criação de filhos em Deuteronômio, 21:

“Quando alguém tiver um filho contumaz e rebelde, que não

obedecer à voz de seu pai e à voz de sua mãe, e, castigando-

o eles, lhes não der ouvidos,

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Então seu pai e sua mãe pegarão nele, e o levarão aos

anciãos da sua cidade, e à porta do seu lugar;

E dirão aos anciãos da cidade: Este nosso filho é rebelde e

contumaz, não dá ouvidos à nossa voz; é um comilão e um

beberrão.

Então todos os homens da sua cidade o apedrejarão, até que

morra; e tirarás o mal do meio de ti, e todo o Israel ouvirá e

temerá.” (Dt 21:18-21)

Maldições sem fim são indicadas para os que não seguiam

os preceitos e uma delas está em Deuteronômio, 28:

“Será, porém, que, se não deres ouvidos à voz do Senhor

teu Deus, para não cuidares em cumprir todos os seus

mandamentos e os seus estatutos, que hoje te ordeno,

então virão sobre ti todas estas maldições, e te alcançarão:

(Dt 28:15)

(...)

O Senhor te ferirá com loucura, e com cegueira, e com

pasmo de coração;

E apalparás ao meio-dia, como o cego apalpa na escuridão,

e não prosperarás nos teus caminhos; porém somente

serás oprimido e roubado todos os dias, e não haverá

quem te salve.” (Dt 28:28-29).

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O livro de Juízes, que trata da história dos israelitas entre a

conquista da terra de Canaã no final da vida de Josué até o

estabelecimento do primeiro reinado, em seu contexto procurava

levar o povo hebreu a melhor conhecer seus grandes heróis, tais

como Otoniel, Aod, Baraque, Débora, Gideão, Jefté e Sansão,

personagens que libertaram o povo da opressão constante dos

inimigos e tentaram fazer com que esse mesmo povo observasse

as leis estabelecidas. Juízes nos relata fatos que demonstram

claramente que, na luta pela segurança do povo hebreu, às vezes

era indispensável “passar a fio de espada” todos os homens

aprisionados. No entanto, em Juízes 1, existe o relato de um caso

de evidente “desencorajamento” permanente aos ataques aos

hebreus, num severo castigo aplicado a um líder cananeu por uma

das tribos de Judá:

“E sucedeu, depois da morte de Josué, que os filhos de Israel

perguntaram ao Senhor, dizendo: Quem dentre nós primeiro

subirá aos cananeus, para pelejar contra eles?

E disse o Senhor: Judá subirá; eis que entreguei esta terra na

sua mão.

Então disse Judá a Simeão, seu irmão: Sobe comigo à minha

herança. E pelejemos contra os cananeus, e também eu

contigo subirei à tua herança. E Simeão partiu com ele.

E subiu Judá, e o Senhor lhe entregou na sua mão os

cananeus e os perizeus; e feriram deles, em Bezeque, a dez

mil homens.

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E acharam Adoni-Bezeque em Bezeque, e pelejaram contra

ele; e feriram aos cananeus e aos perizeus.

Porém Adoni-Bezeque fugiu, mas o seguiram, e prenderam-

no e cortaram-lhe os dedos polegares das mãos e dos pés.

Então disse Adoni-Bezeque: Setenta reis, com os dedos

polegares das mãos e dos pés cortados, apanhavam as

migalhas debaixo da minha mesa; assim como eu fiz, assim

Deus me pagou. E levaram-no a Jerusalém, e morreu ali.

E os filhos de Judá pelejaram contra Jerusalém, e tomando-

a, feriram-na ao fio da espada; e puseram fogo na cidade.”

(Jz 1:1-8)

Castigo violento também ocorreu com Sansão. Sua

descrição na Bíblia hebraica corresponde a um homem nazireu,

filho de Manoá, nascido de mãe estéril (Juízes 13:2) e que liderou

os israelitas contra os filisteus. Ele era da tribo de Dã e foi o

décimo terceiro juiz de Israel, sucedendo a Abdon. Sansão foi juiz

do povo de Israel por vinte anos, aproximadamente de 1177 a.C. a

1157 a.C. Distinguia-se por ter uma força sobre-humana que,

segundo a Bíblia, era-lhe fornecida pelo Espírito do Senhor

enquanto se mantivesse obediente ao senhor dos Exércitos.

Subjugava facilmente seus inimigos e produzia feitos

inalcançáveis por homens comuns, como rasgar um leão novo ao

meio, enfrentar um exército inteiro e matar uma multidão de

filisteus (depois de descobrir que foi enganado) para pegar suas

roupas, pagando uma aposta. De acordo com Juízes 16, Sansão

apaixonou-se por Dalila, uma mulher do povo filisteu, a qual o

traiu entregando-o aos chefes de sua nação:

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“E descobriu-lhe todo o seu coração, e disse-lhe: Nunca

passou navalha pela minha cabeça, porque sou nazireu de

Deus desde o ventre de minha mãe; se viesse a ser rapado, ir-

se-ia de mim a minha força, e me enfraqueceria, e seria

como qualquer outro homem.

Vendo, pois, Dalila que já lhe descobrira todo o seu coração,

mandou chamar os príncipes dos filisteus, dizendo: Subi esta

vez, porque agora me descobriu ele todo o seu coração. E os

príncipes dos filisteus subiram a ter com ela, trazendo com

eles o dinheiro.

Então ela o fez dormir sobre os seus joelhos, e chamou a um

homem, e rapou-lhe as sete tranças do cabelo de sua cabeça;

e começou a afligi-lo, e retirou-se dele a sua força.

E disse ela: Os filisteus vêm sobre ti, Sansão. E despertou ele

do seu sono, e disse: Sairei ainda esta vez como dantes, e me

sacudirei.

Porque ele não sabia que já o Senhor se tinha retirado dele.

Então os filisteus pegaram nele, e arrancaram-lhe os olhos, e

fizeram-no descer a Gaza, e amarraram-no com duas

cadeias de bronze, e girava ele um moinho no cárcere.” (Jz

16:17-21)

Após ser cegado pelos filisteus, Sansão passou à condição

de escravo. Morreu sacrificando-se para se vingar de seus

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inimigos, após ter clamado a Deus pela restituição de sua força

para um último e definitivo ato.

O vazamento dos olhos era um castigo severo, um tanto

em moda naquelas regiões. Existe um baixo relevo da cultura

assíria, muito conhecido, que nos mostra um soberano vazando os

olhos de três prisioneiros, um deles ajoelhado e os outros dois em

pé, puxados pelo próprio rei para perto de si por meio de um fio

preso aos lábios dos infelizes por argolas. Esse castigo

desencorajava as fugas, sem causar maiores limitações ou

dificuldades para trabalhos pesados.

O Monte Sinai e a questão da hanseníase na Bíblia

No livro de Êxodo, durante a épica migração de todo o

povo hebreu do Egito para a Terra Prometida, que ficou

estacionado por anos a fio na base do monte Sinai, Moisés

elaborou não apenas o Decálogo (ou Os Dez Mandamentos), mas

muitas outras determinações, regulamentos adicionais e códigos

de conduta ao seu povo que ele estava guiando: leis e normas a

respeito de escravos, de conflitos e suas soluções, de homicídios e

seus castigos, de roubos, de seduções, de magia, a respeito de

diversos assuntos de medicina, muitos cuidados e preceitos

relacionados à higiene e à saúde de seu povo, no cenário

grandioso do deserto, lembrando várias daquelas normas que ele

conhecia muito bem no Egito, onde havia sido educado bem

próximo à nobreza e aos sacerdotes. Não é, portanto, de espantar

que apenas sobre a hanseníase haja capítulos inteiros e extensos

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no livro de Levítico. E exatamente como no Egito e outros países

da Mesopotâmia, Moisés deixou a responsabilidade da medicina

sob os cuidados dos sacerdotes, que eram os levitas.

A Bíblia, especialmente no Antigo Testamento, fala muitas

vezes sobre o problema da hanseníase. A antiga e condenada

expressão “pessoas leprosas” referia-se a uma doença da pele,

abrangendo tipos diferentes de doenças. Uma pessoa com

hanseníase era considerada imunda, conforme vemos nestes dois

versos de Levítico 13, embora todo o capítulo só trate desse

assunto:

“Falou mais o Senhor a Moisés e a Arão, dizendo:

Quando um homem tiver na pele da sua carne, inchação, ou

pústula, ou mancha lustrosa, na pele de sua carne como

praga da lepra, então será levado a Arão, o sacerdote, ou a

um de seus filhos, os sacerdotes.

E o sacerdote examinará a praga na pele da carne; se o pelo

na praga se tornou branco, e a praga parecer mais

profunda do que a pele da sua carne, é praga de lepra; o

sacerdote o examinará, e o declarará por imundo.” (Lv

13:1-3)

A doença era vista tal qual uma praga, descrita como

enviada por Deus para repreender o povo desobediente: “Quando

tiverdes entrado na terra de Canaã que vos hei de dar por

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possessão, e eu enviar a praga da lepra em alguma casa da terra da

vossa possessão,” (Lv 14:34).

Os extensos capítulos com as instruções sobre a

hanseníase, obviamente, serviam para conter uma doença

considerada maligna, mesmo séculos antes de cientistas

compreenderem como doenças se propagam. Sobretudo,

concluímos hoje que o motivo para falar tanto sobre a hanseníase

no Antigo Testamento trazia duas lições espirituais:

1. A importância da obediência. Entre as últimas

orientações dadas por Moisés ao povo de Israel

encontram-se estas palavras: “Guarda-te da praga da

lepra, e tenhas grande cuidado de fazer conforme a tudo o

que te ensinarem os sacerdotes levitas; como lhes tenho

ordenado, terás cuidado de o fazer.” (Dt 24:8).

2. A necessidade de distinguir entre o limpo e o imundo. A

chave ao entendimento desse significado da lepra aparece

em Levítico 14:54-57: “54Esta é a lei de toda a praga da

lepra, e da tinha, E da lepra das roupas, e das casas, E da

inchação, e das pústulas, e das manchas lustrosas; Para

ensinar quando alguma coisa será imunda, e quando será

limpa. Esta é a lei da lepra.”

Muitos estudos teológicos apontam que Deus usou coisas

físicas – sejam doenças, questões de higiene, sejam diferenças

entre animais – para ensinar princípios espirituais. Ao ser

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descoberta a “imundícia da lepra”, não mediam esforço para se

livrarem dela. Pessoas leprosas foram publicamente identificadas

e afastadas da congregação para não contaminarem outros.

Quando as tentativas de purificar as casas não foram bem-

sucedidas, foi necessário derrubar casas inteiras para não deixar a

praga se espalhar, como lemos nestes versos de Levítico 14:

“Porém, se a praga tornar a brotar na casa, depois de arrancadas as

pedras e raspada a casa, e de novo rebocada, Então o sacerdote

entrará e examinará, se a praga na casa se tem estendido, lepra

roedora há na casa; imunda está. Portanto se derribará a casa, as

suas pedras, e a sua madeira, como também todo o barro da casa; e

se levará para fora da cidade a um lugar imundo.”

Nesse contexto também há o caso de Naamã, um

comandante dos exércitos de Ben-Hadade II, no tempo de Jorão,

rei de Israel. Ele é mencionado em Tanakh (um acrônimo utilizado

dentro do Judaísmo para denominar seu conjunto principal de

livros sagrados, cujo conteúdo é equivalente ao Antigo

Testamento, porém com outra divisão, consistindo em 24 livros).

Em nossa Bíblia sua história é narrada em 2 Reis 5:

“E Naamã, capitão do exército do rei da Síria, era um

grande homem diante do seu Senhor, e de muito respeito;

porque por ele o Senhor dera livramento aos sírios; e era

este homem herói valoroso, porém leproso. E saíram tropas

da Síria, da terra de Israel, e levaram presa uma menina que

ficou ao serviço da mulher de Naamã. E disse esta à sua

senhora: Antes o meu senhor estivesse diante do profeta que

está em Samaria; ele o restauraria da sua lepra. Então foi

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Naamã e notificou ao seu senhor, dizendo: Assim e assim

falou a menina que é da terra de Israel. Então disse o rei da

Síria: Vai, anda, e enviarei uma carta ao rei de Israel. E foi, e

tomou na sua mão dez talentos de prata, seis mil siclos de

ouro e dez mudas de roupas. E levou a carta ao rei de Israel,

dizendo: Logo, em chegando a ti esta carta, saibas que eu te

enviei Naamã, meu servo, para que o cures da sua lepra.

E sucedeu que, lendo o rei de Israel a carta, rasgou as suas

vestes, e disse: Sou eu Deus, para matar e para vivificar,

para que este envie a mim um homem, para que eu o cure da

sua lepra? Pelo que deveras notai, peço-vos, e vede que

busca ocasião contra mim.

Sucedeu, porém, que, ouvindo Eliseu, homem de Deus, que o

rei de Israel rasgara as suas vestes, mandou dizer ao rei: Por

que rasgaste as tuas vestes? Deixa-o vir a mim, e saberá que

há profeta em Israel. Veio, pois, Naamã com os seus cavalos,

e com o seu carro, e parou à porta da casa de Eliseu. Então

Eliseu lhe mandou um mensageiro, dizendo: Vai, e lava-te

sete vezes no Jordão, e a tua carne será curada e ficarás

purificado.

Porém, Naamã muito se indignou, e se foi, dizendo: Eis que

eu dizia comigo: Certamente ele sairá, pôr-se-á em pé,

invocará o nome do Senhor seu Deus, e passará a sua mão

sobre o lugar, e restaurará o leproso. Não são porventura

Abana e Farpar, rios de Damasco, melhores do que todas as

águas de Israel? Não me poderia eu lavar neles, e ficar

purificado? E voltou-se, e se foi com indignação. Então

chegaram-se a ele os seus servos, e lhe falaram, e disseram:

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Meu pai, se o profeta te dissesse alguma grande coisa,

porventura não a farias? Quanto mais, dizendo-te ele: Lava-

te, e ficarás purificado.

Então desceu, e mergulhou no Jordão sete vezes, conforme a

palavra do homem de Deus; e a sua carne tornou-se como a

carne de um menino, e ficou purificado. Então voltou ao

homem de Deus, ele e toda a sua comitiva, e chegando, pôs-

se diante dele, e disse: Eis que agora sei que em toda a terra

não há Deus senão em Israel; agora, pois, peço-te que

aceites uma bênção do teu servo.” (2 Reis 5:1-15).

Dois pontos de destaques. Naamã volta a Eliseu com

presentes caros, e Eliseu se recusa a aceitar. Naamã também

renuncia ao seu ex-deus Rimom depois de ser curado por Eliseu e

aceitar o Deus de Israel.

Posteriormente, Naamã é mencionado em Lucas 4:27, no

Novo Testamento, como um exemplo da vontade de Deus para

salvar as pessoas que são consideradas pelos homens como

menos piedosas e indignas da salvação. Como a Septuaginta (a

Bíblia hebraica para o grego koiné, traduzida em etapas entre o III

e o I século a.C. em Alexandria), o Antigo Testamento em grego

usa a palavra baptizein para a imersão que cura o pagão Naamã, o

que também ocorre no rio Jordão, onde Jesus Cristo foi batizado

vários séculos depois. Os cristãos muitas vezes interpretam a

história de Naamã como uma prefiguração do batismo cristão das

nações pagãs.

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Voltando a Moisés e ao Monte Sinai, a legislação dos

hebreus da época era violenta, visando manter o povo unido,

disciplinado, com argumentos relacionados à vontade expressa de

Deus com expressões como “...temerás o Senhor o teu Deus, porque

sou o Senhor”. Mas muitas dessas leis e ordens não surtiram os

efeitos esperados. A lei de talião, reinante em alguns países então,

foi também introduzida pelo líder maior, Moisés, que certamente

já conhecia o Código de Hamurábi. Algumas dessas severas

normas lavradas em pedra muitos anos antes de Moisés existir

passaram para o código dos hebreus quase com as mesmas

palavras.

O Código de Hamurábi e a severidade que inspirou os

hebreus

O Código de Hamurábi representa o conjunto de leis

escritas, sendo um dos exemplos mais bem preservados desse tipo

de texto oriundo da Mesopotâmia. Acredita-se que tenha sido

escrito pelo rei Hamurábi, aproximadamente em 1700 a.C. Foi

encontrado por uma expedição francesa em 1901 na região da

antiga Mesopotâmia, correspondente à cidade de Susa, atual Irã. É

um monumento monolítico talhado em rocha de diorito, sobre o

qual se dispõem 46 colunas de escrita cuneiforme acádica, com

282 leis em 3.600 linhas. A numeração vai até 282, mas a cláusula

13 foi excluída por superstições da época. A peça tem 2,25 m de

altura, 1,50 m de circunferência na parte superior e 1,90 m na

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base. Hoje ele encontra-se preservado no Museu do Louve, em

Paris.

A sociedade era dividida em três classes, que também

pesavam na aplicação do código: Awilum, homens livres,

proprietários de terras, que não dependiam do palácio nem do

templo; Muskênum, camada intermediária, funcionários públicos,

que tinham certas regalias no uso de terras; Wardum, escravos,

que podiam ser comprados e vendidos até que conseguissem

comprar sua liberdade.

Os pontos principais do código de Hamurábi eram: lei de

talião (olho por olho, dente por dente), falso testemunho, roubo e

receptação, estupro, família, escravos, ajuda de fugitivos. O

objetivo desse código era homogeneizar juridicamente o reino e

garantir uma cultura comum. No seu epílogo, Hamurábi afirma

que elaborou o conjunto de leis “para que o forte não prejudique o

mais fraco, a fim de proteger as viúvas e os órfãos” e “para resolver

todas as disputas e sanar quaisquer ofensas”.

É a coleção mais antiga de leis que se conhece, bem mais

antiga que o Decálogo de Moisés e que as normas por ele traçadas

no livro de Levítico, com o qual existem pontos de similaridade

eventual. Há semelhanças também no Deuteronômio. Vejamos

alguns pontos que indicam, como punição, amputações:

Eu, Hamurábi, chefe designado pelos deuses, Rei dos Reis,

que conquistei as cidades do Eufrates, introduzi a verdade e

a equidade por todo o país e dei prosperidade ao povo. De

hoje em diante:

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“Se alguém apagar a marca de ferro em brasa de um

escravo, terá seus dedos cortados”

“Se um médico operar um patrício com faca de bronze e

causou-lhe a morte, ou abriu-lhe a órbita do olho e causou-

lhe a destruição, terá sua mão cortada”

“Se um escravo disser ao seu dono: ‘Tu não és meu Senhor’,

seu senhor provará que o é e cortará sua orelha”

“Se um homem bater em seu pai, terá as mãos cortadas”...

“Um olho por um olho, um dente por um dente. Trata-se de

justiça sem piedade. Se um homem tira um olho de um

patrício, também seu olho será tirado; se ele quebrou o osso

de um patrício, seu braço será quebrado. As classes

inferiores da sociedade também merecem compensações. Se

ele tirou o olho ou quebrou o osso de um plebeu, ele deverá

pagar uma mina de prata; se foi de um escravo, pagará

metade de seu preço”...

Nos cinco livros bíblicos escritos por Moisés há textos e

palavras tão semelhantes que parecem pura cópia do Código de

Hamurábi. Eis um deles em uma livre citação: “Se alguém ferir o

olho de seu escravo ou de sua escrava e os deixar cegos de um olho,

deixá-los-á ir livres pelo olho que lhes tirou”. “O que ferir qualquer

de seus compatriotas, assim como fez, assim se lhe fará a ele;

quebradura por quebradura, olho por olho, dente por dente; qual

for o mal que tiver feito, tal será o que há de sofrer”. A mesma linha

de pensamentos encontramos no Êxodo 21:24: “Olho por olho,

dente por dente, mão por mão, pé por pé,".

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Vemos que tanto entre os babilônios como entre os

antigos hebreus sempre houve muitas pessoas marcadas por

crimes cometidos. No entanto, nem sempre a deficiência ou

deformação física ou sensorial correspondiam a uma

demonstração de castigo por feitos delituosos ou à “troca” por

males cometidos a outrem. Reis, generais, líderes, soldados eram

por vezes castigados por combaterem os grandes poderosos e

levavam consigo pelo resto de seus dias as marcas impostas pelos

vencedores, como aconteceu com Zedequias.

Rei Zedequias, mais um caso de cegueira como punição

Os livros Primeiro e Segundo de Reis relatam de forma

contínua relatos de reis, a história de Israel, a morte de Davi, o

reinado de Salomão, os reinos divididos e o cativeiro. Narram

muitas histórias políticas e religiosas, incidentes que são

evidenciados, mas pelo modo com que julgam os vários reis como

maus e bons. Um deles é Zedequias (ou Sedecias), vigésimo e

último rei de Judá, terceiro filho de Josias, cuja mãe era Hamutal.

Quando foi constituído em rei vassalo, o rei babilônio

Nabucodonosor mudou-lhe o nome de Matanias para Zedequias,

tendo 11 anos o seu reinado, substituto ao destronado Joaquim,

refém mantido na capital do reino babilônico. Além de

mencionado na Bíblia (2 Reis, Crônicas e Jeremias), Zedequias é

também citado em diversos documentos e crônicas da Babilônia

que relatam os principais acontecimentos políticos, religiosos e

guerreiros dos séculos VII e VI a.C. sob o ponto de vista babilônio.

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Mesmo sendo indicado e empossado por Nabucodonosor,

porém, Zedequias, tempos depois, começou a conspirar contra o

poderoso rei, fazendo contatos pessoais com diversos monarcas

dos minúsculos países e também com o faraó egípcio. Após ter

governado nove anos quebrou o juramento e, contrário à palavra

de Deus por meio do profeta Jeremias, rebelou-se contra

Nabucodonosor, encorajado pelo novo faraó egípcio Apries, que

organizava uma expedição militar contra a Babilônia. Em 2

Crônicas 36 também dá destaque a isso:

“Tinha Zedequias a idade de vinte e um anos, quando

começou a reinar; e onze anos reinou em Jerusalém.

E fez o que era mau aos olhos do Senhor seu Deus; nem se

humilhou perante o profeta Jeremias, que falava da parte do

Senhor.

Além disto, também se rebelou contra o rei Nabucodonosor,

que o tinha ajuramentado por Deus. Mas endureceu a sua

cerviz, e tanto se obstinou no seu coração, que não se

converteu ao Senhor Deus de Israel.

Também todos os chefes dos sacerdotes e o povo

aumentavam de mais em mais as transgressões, segundo

todas as abominações dos gentios; e contaminaram a casa

do Senhor, que ele tinha santificado em Jerusalém.” (2 Cr

36:11-14).

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O rei Nabuconosor, bem informado das pequenas

conspirações e traições, tomou providências enérgicas. Mandou

todo o seu exército cercar Jerusalém e lá se plantou durante dois

anos. Ocorrido em 586 a.C., está relatado em 2 Reis:

“E sucedeu que, no nono ano do seu reinado, no mês décimo,

aos dez do mês, Nabucodonosor, rei de babilônia, veio

contra Jerusalém, ele e todo o seu exército, e se acampou

contra ela, e levantaram contra ela trincheiras em redor.

E a cidade foi sitiada até ao undécimo ano do rei Zedequias.

Aos nove do mês quarto, quando a cidade se via apertada

pela fome, nem havia pão para o povo da terra,

Então a cidade foi invadida, e todos os homens de guerra

fugiram de noite pelo caminho da porta, entre os dois muros

que estavam junto ao jardim do rei (porque os caldeus

estavam contra a cidade em redor), e o rei se foi pelo

caminho da campina.

Porém o exército dos caldeus perseguiu o rei, e o alcançou

nas campinas de Jericó; e todo o seu exército se dispersou.

E tomaram o rei, e o fizeram subir ao rei de babilônia, a

Ribla; e foi-lhe pronunciada a sentença.

E aos filhos de Zedequias mataram diante dos seus olhos; e

vazaram os olhos de Zedequias, e o ataram com duas

cadeias de bronze, e o levaram a babilônia.” (2 Reis 25:1-7).

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A cidade fora toda destruída. Zedequias, ciente do perigo,

fugiu pelos jardins dos palácios, mas foi preso e levado à presença

do temido rei da Babilônia, em Ribla, ao lado de Jerusalém. Seus

filhos ainda novos foram mortos em sua presença. Segundo todos

os documentos, Zedequias teve seus olhos vazados ali mesmo. E

quando o enorme exército movimentou-se de volta à Babilônia,

levando as últimas levas de prisioneiros de Judá, Zedequias,

carregado de ferros, cego e amargurado, empreendeu a mesma

caminhada. O livro de Jeremias, 52, assim relata o fim de

Zedequias:

“E o rei de babilônia degolou os filhos de Zedequias à sua

vista, e também degolou a todos os príncipes de Judá em

Ribla.

E cegou os olhos a Zedequias, e o atou com cadeias; e o rei

de babilônia o levou para babilônia, e o conservou na prisão

até o dia da sua morte.” (Jr 52:10-11).

A medicina dos hebreus

Pouco nos é relatado pelos diversos livros da Bíblia a

respeito da medicina. Sabemos, sim, que a cirurgia ocorria

basicamente para a circunstância da circuncisão, com uma lâmina

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de sílex. Entre os hebreus, problemas ortopédicos sempre

receberam tratamentos caseiros com bons resultados. Há uma

citação em Ezequiel, capítulo 30, mostrando na cultura hebreia

antiga plenos conhecimentos dos tratamentos indispensáveis para

pernas ou braços quebrados: “Filho do homem, eu quebrei o braço

de Faraó, rei do Egito, e eis que não foi atado para se lhe aplicar

remédios, nem lhe colocarão ligaduras para o atar, a fim de torná-lo

forte, para pegar na espada.” (Ez 30:21).

Um dos juízes da tribo de Neftali, Tobias viveu no século

VII a.C. Sua história nos é narrada pelo livro da Bíblia que leva o

seu próprio nome, embora esse volume só se encontre hoje nas

versões católicas – a Vulgata. Ele era um dos muitos hebreus

desterrados em Nínive e procurava dedicar todos os seus dias à

misericórdia, a fim de minorar os sofrimentos dos seus

compatriotas; “alimentava os famintos, vestia os nus, e, com uma

solicitude toda particular, sepultava os mortos e os que tinham

perecido pela espada” (Tobias, 1:20). Fora denunciado ao rei, que

o condenou à morte por causa desse ato. Tobias fugiu da cidade

com sua família, mas após 45 dias da morte do rei, pôde retornar.

Certa noite resolveu oferecer um banquete em sua casa aos

homens piedosos de sua tribo. No meio do jantar, ao ficar sabendo

de um hebreu morto à espada, correu e recolheu-o, para sepultá-

lo secretamente na madrugada. Voltou a cear, mas com pranto e

temor, lembrando-se de um oráculo que o Senhor tinha

pronunciado pela boca do profeta Amós: “E tornarei as vossas

festas em luto, e todos os vossos cânticos em lamentações; e porei

pano de saco sobre todos os lombos, e calva sobre toda cabeça; e

farei que isso seja como luto por um filho único, e o seu fim como dia

de amarguras.” (Am 8:10)

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Criticado por seus vizinhos por manter aquela prática

mesmo depois de condenado à morte, Tobias, temendo mais a

Deus que ao rei, continuava a levar para sua casa os corpos

daqueles que eram assassinados, que escondia e sepultava

durante a noite. Assim está narrado em Tobias 2:

10. Ora, aconteceu que um dia, cansado desse trabalho,

voltou para a sua casa e deitou-se ao pé do muro onde

adormeceu.

11. Enquanto dormia, caiu-lhe dum ninho de andorinhas

esterco quente nos olhos, e ele tornou-se cego.

12. Deus permitiu que lhe acontecesse essa prova, para que

a sua paciência, como a do santo homem Jó, servisse de

exemplo à posteridade.

13. Como havia sempre temido a Deus, desde a sua infância,

e guardado seus mandamentos, ele não se afligiu (nem

murmurou) contra Deus por ter sido atingido pela cegueira.

14. Mas perseverou firme no temor de Deus e continuou a

dar-lhe graças em todos os dias de sua vida.

Temendo estar próxima sua morte, mandou seu filho, que

também se chamava Tobias, resgatar o pagamento de uma dívida

na cidade de Ragés, no reino dos medos. Em sua viagem, ao lado

de Azarias, que na verdade era o anjo Rafael disfarçado, Tobias

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aprendeu dele que o fel de peixe poderia ser usado com sucesso

como ingrediente para remédios – Tobias 11:

13. Tobias tomou então o fel do peixe e pô-lo nos olhos de

seu pai.

14. Depois de ter esperado cerca de meia hora, começou a

sair-lhe dos olhos uma belida branca como a membrana de

um ovo.

15. Tobias tomou-a e a arrancou dos olhos de seu pai, o qual

recobrou instantaneamente a vista.

16. E louvaram a Deus, ele, sua mulher e todos os que o

conheciam.

17. “Bendigo-vos, Senhor Deus de Israel, dizia ele, porque

depois de me terdes provado, me curastes: – eis que vejo o

meu filho Tobias!”

Cientificamente, Tobias pode ter sofrido de glaucoma, uma

doença ocular causada principalmente pela elevação da pressão

intraocular que provoca lesões no nervo ótico e, como

consequência, comprometimento visual, podendo levar à cegueira.

Mas fato é que o velho Tobias viveu até a idade de 102 anos sem

maiores problemas com a vista.

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Em contrapartida, a cultura hebreia antiga, principalmente

no livro de Levítico, com suas normas e leis relativas à santidade,

à caridade e à justiça, recomendava a todo o povo hebreu não

apenas respeitar os pais, guardar o sábado, evitar a idolatria, a

vingança, o ódio, o furto, mas também que fossem respeitados os

surdos e os cegos. Moisés, em suas orientações, recomenda no

capítulo 19 desse livro: “Não amaldiçoarás ao surdo, nem porás

tropeço diante do cego; mas temerás o teu Deus. Eu sou o Senhor.”

(Lv 19:14)

Recomendação repetida também no livro de

Deuteronômio, dirigida aos hebreus, que garantissem a proteção e

o bom tratamento aos cegos, colocando essas atitudes positivas

diretamente ao lado e em pé de igualdade com o amor aos pais, a

certeza da justiça, a condenação da idolatria, a garantia da

propriedade e algumas outras práticas relacionadas a sexo e

também a traições. Diz: “Maldito aquele que fizer que o cego erre

de caminho. E todo o povo dirá: Amém.” (Dt 27:18).

Apesar dessa forte ênfase nas várias normas de conduta

do povo hebreu, o cego viveu praticamente por muitos séculos em

absoluta degradação social, que só começou a ser combatida sob o

reinado do príncipe Judah-ha-Nasin (135 a 217 d.C.), rabino

redator e editor da Mishná, líder chave da comunidade judia

durante a ocupação romana da Judeia. De acordo com o Talmude –

um registro central das discussões rabínicas que pertencem à lei,

ética, costumes e história do judaísmo –, Judah-ha-Nasin era da

linhagem de Davi, daí o título nasi, o que significa príncipe.

Confirmando a Bíblia, o Talmude narra a sabedoria de

alguns mestres e mesmo de alguns juízes cegos, aos quais, dentre

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as limitações de atuação a eles impostas, não era permitido ler o

Torá (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio), nem

oficiar serviços religiosos públicos. Não tinham também nenhuma

obrigação de ir até Jerusalém para suas orações, nem de cumprir

obrigações religiosas que demandassem o uso da visão. O

Talmude referia-se a esses sábios mestres e juízes cegos por meio

de um apelido afetuoso, ou seja, de “sagui Nehor” (ricos em luz, ou

videntes).

Olhos direitos furados dos habitantes de Jabes

Os hebreus compunham as tribos de Israel e as tribos de

Judá. Israel especificamente controlava os amonitas, povo

habitante a leste do rio Jordão, constantes inimigos em épocas

bem anteriores aos anos de problemas com o cativeiro da

Babilônia, ou seja, em épocas que beiram um milênio antes da Era

Cristã. Naás (que na língua original significa “serpente”), rei de

Amom, da antiga nação de Israel, entrou em batalha contra os

israelitas no território de Jabes, ao sitiar a vila de Jabes-Gileade, e

enviou pelos anciãos da vila uma séria proposta para que a

população sitiada não fosse dizimada.

Vejamos primeiro o que narra a Bíblia sobre esse fato.

Sobretudo, recorremos à versão Vulgata, I Samuel, 11:

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“1. Naás, o amonita, pôs-se em campanha e combateu

contra Jabes, em Galaad. Os habitantes de Jabes disseram-

lhe: Façamos aliança, e nós te serviremos.

2. Mas Naás, o amonita, respondeu-lhes: Só farei aliança

convosco com a condição de vos furar a todos o olho direito,

para impor assim um opróbrio a todo o Israel.

3. Concede-nos sete dias, disseram-lhe os anciãos de Jabes,

para que enviemos mensageiros por toda a terra de Israel;

se não houver quem nos ajude, entregar-nos-emos a ti.

4. Foram os mensageiros a Gabaa, cidade de Saul, e

contaram isso ao povo, e todo o povo pôs-se a chorar em

alta voz.”

Os anciãos da vila sitiada conseguiram, no entanto, o apoio

de um famoso herói da Bíblia, Saul, que conseguiu juntar, com

base em violentas ameaças àqueles que não aderissem, um

exército com 300 mil homens das tribos próximas de Israel e mais

30 mil das tribos de Judá. Com esse impressionante contingente

bateu decisivamente o exército inimigo que apavorava aquele

pacato povo. Tendo sido anteriormente ungido por Samuel como

primeiro rei de Israel, foi nessa oportunidade que Saul foi

confirmado como tal.

A Bíblia não deixa claro se a ameaça de furar o olho direito

das pessoas chegou a ser cumprida. Mas duas respeitadas fontes

paralelas afirmam que sim.

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Em um dos Manuscritos do Mar Morto, que se acredita ser

do século I a.C., há uma inserção logo antes de I Samuel 11:1:

“Naás, rei dos filhos de Amom, oprimiu severamente os filhos de

Gades e os filhos de Rubem, e ele furou todos os seus olhos direitos e

lançou terror e pavor em Israel. Não sobrou nenhum dos filhos de

Israel além do Jordão cujo olho direito não fosse furado por Naás,

rei dos filhos de Amom; exceto que sete mil homens fugiram dos

filhos de Amom e entraram em Jabes-Gileade”. (Bíblia Revista,

1985, volume 1, nº 3, p. 28).

Essa mesma informação é validada na obra História dos

Hebreus, de Flávio Josefo:

“Um mês após Saul ser elevado ao trono, a guerra em que se

encontrou empenhado, contra Naás, rei dos amonitas, conquistou-

lhe grande fama. Esse príncipe, que havia muito causava grandes

males aos israelitas que moravam além do Jordão, entrou no país

deles com um poderoso exército, atacando várias cidades. Para

tirar-lhes de vez a esperança de uma revolta, mandou vazar o olho

direito de cada um, tanto os que fizera prisioneiros quanto os que se

haviam entregado a ele voluntariamente. Fez isso porque os escudos

cobriam a visão do olho esquerdo, e assim, nesse estado, não podiam

mais servir-se das armas e tornavam-se incapazes de guerrear”

(2004, pp. 249-250).

Zacarias castigado por não ter acreditado em Gabriel

Ainda no Antigo Testamento, mas já relacionado com o

Novo, a primeira testemunha do Messias foi Zacarias, sacerdote

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casado com Isabel, prima de Maria, mãe de Jesus. Eram os dois

considerados justos e harmoniosos em seu modo de viver e não

tinham filhos, pois Isabel era estéril. Lucas 1 conta-nos:

“E aconteceu que, exercendo ele o sacerdócio diante de Deus,

na ordem da sua turma,

Segundo o costume sacerdotal, coube-lhe em sorte entrar no

templo do Senhor para oferecer o incenso.

E toda a multidão do povo estava fora, orando, à hora do

incenso.

E um anjo do Senhor lhe apareceu, posto em pé, à direita do

altar do incenso.

E Zacarias, vendo-o, turbou-se, e caiu temor sobre ele.

Mas o anjo lhe disse: Zacarias, não temas, porque a tua

oração foi ouvida, e Isabel, tua mulher, dará à luz um filho, e

lhe porás o nome de João.

E terás prazer e alegria, e muitos se alegrarão no seu

nascimento,

Porque será grande diante do Senhor, e não beberá vinho,

nem bebida forte, e será cheio do Espírito Santo, já desde o

ventre de sua mãe.

E converterá muitos dos filhos de Israel ao Senhor seu Deus,

E irá adiante dele no espírito e virtude de Elias, para

converter os corações dos pais aos filhos, e os rebeldes à

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prudência dos justos, com o fim de preparar ao Senhor u)m

povo bem disposto.

Disse então Zacarias ao anjo: Como saberei isto? pois eu já

sou velho, e minha mulher avançada em idade.

E, respondendo o anjo, disse-lhe: Eu sou Gabriel, que assisto

diante de Deus, e fui enviado a falar-te e dar-te estas alegres

novas.

E eis que ficarás mudo, e não poderás falar até ao dia em

que estas coisas aconteçam; porquanto não creste nas

minhas palavras, que a seu tempo se hão de cumprir.

E o povo estava esperando a Zacarias, e maravilhava-se de

que tanto se demorasse no templo.

E, saindo ele, não lhes podia falar; e entenderam que tinha

tido uma visão no templo. E falava por acenos, e ficou

mudo.” (Lc 1:8-22)

Por ter duvidado do anjo Gabriel, Zacarias ficou mudo até

o dia que tudo se cumprisse. Ele, um parente de Jesus, foi vítima

de uma deficiência passageira. Segundo o evangelista Lucas, na

verdade foi por castigo, corroborando a ideia de que as doenças e

as deficiências estavam fortemente relacionadas a castigos ou

penitências para pagamento de faltas ou pecados.

Nove meses depois, nasceu João Batista, primo de Jesus e

um dos personagens principais do Novo Testamento. Zacarias

indicou numa tabuinha o nome que o menino deveria ter, tendo

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suas primeiras palavras ouvidas novamente na circuncisão da

criança, oito dias após o nascimento.

Mefibosete: O primeiro caso de inclusão vem da Bíblia

Optamos por encerrar este capítulo com a história de

Mefibosete, filho de Jônatas e neto do rei Saul, que foi levado, pela

babá, a uma cidade chamada Lo Debar (sem pasto), onde havia

sequidão e miséria, e cujos habitantes eram todos mendigos ou

doentes. Isso ocorreu após o atentado contra o reino de Saul, por

parte dos filisteus, na sangrenta batalha no monte Gilboa, o que

resultou na morte de Saul e seus três filhos. Sua história está

registrada no livro bíblico 2 Samuel 9:

“E disse Davi: Há ainda alguém que tenha ficado da casa de

Saul, para que lhe faça benevolência por amor de Jônatas?

E havia um servo na casa de Saul cujo nome era Ziba; e o

chamaram à presença de Davi. Disse-lhe o rei: És tu Ziba? E

ele disse: Servo teu.

E disse o rei: Não há ainda alguém da casa de Saul para que

eu use com ele da benevolência de Deus? Então disse Ziba ao

rei: Ainda há um filho de Jônatas, aleijado de ambos os pés.

E disse-lhe o rei: Onde está? E disse Ziba ao rei: Eis que está

em casa de Maquir, filho de Amiel, em Lo-Debar.

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Então mandou o rei Davi, e o tomou da casa de Maquir, filho

de Amiel, de Lo-Debar.

E Mefibosete, filho de Jônatas, o filho de Saul, veio a Davi, e

se prostrou com o rosto por terra e inclinou-se; e disse Davi:

Mefibosete! E ele disse: Eis aqui teu servo.

E disse-lhe Davi: Não temas, porque decerto usarei contigo

de benevolência por amor de Jônatas, teu pai, e te restituirei

todas as terras de Saul, teu pai, e tu sempre comerás pão à

minha mesa.

Então se inclinou, e disse: Quem é teu servo, para teres

olhado para um cão morto tal como eu?

Então chamou Davi a Ziba, moço de Saul, e disse-lhe: Tudo o

que pertencia a Saul, e a toda a sua casa, tenho dado ao

filho de teu senhor.

Trabalhar-lhe-ás, pois, a terra, tu e teus filhos, e teus servos,

e recolherás os frutos, para que o filho de teu senhor tenha

pão para comer; mas Mefibosete, filho de teu senhor, sempre

comerá pão à minha mesa. E tinha Ziba quinze filhos e vinte

servos.

E disse Ziba ao rei: Conforme a tudo quanto meu senhor, o

rei, manda a seu servo, assim fará teu servo. Quanto a

Mefibosete, disse o rei, comerá à minha mesa como um dos

filhos do rei.

E tinha Mefibosete um filho pequeno, cujo nome era Mica; e

todos quantos moravam em casa de Ziba eram servos de

Mefibosete.

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Morava, pois, Mefibosete em Jerusalém, porquanto sempre

comia à mesa do rei, e era coxo de ambos os pés.” (2 Sm 9:1-

13)

Sua história também está detalhadamente registrada no

livro História dos Hebreus. No capítulo 6, Flávio Josefo, após contar

que Davi derrotou Hadadezer, rei de Damasco e da Síria, em

grande batalha, o rei dos bamatenianos procura a sua aliança e

Davi subjuga os idumeus. Josefo descreve:

“Depois de ajustar todas as coisas, Davi lembrou-se da

aliança que fizera com Jônatas e das muitas provas que

recebera de sua amizade, pois dentre outras excelentes

qualidades tinha extrema gratidão. Indagou então se não

restava algum filho de Jônatas, para com o qual pudesse

mostrar a gratidão de que era devedor. Levaram-lhe um dos

libertos de Saul, de nome Ziba, que sabia existir ainda um

dos filhos desse príncipe, de nome Mefibosete, que era coxo

porque a sua ama, ao saber da derrota na batalha e da

morte de Saul e de Jônatas, ficara tão assustada que o

deixara cair.

Davi mandou procurá-lo com todo empenho. Pouco tempo

depois, informaram-lhe que Maquir o educava na cidade de

Labate, e mandou buscá-lo imediatamente. Quando

Mefibosete chegou, prostrou-se diante do rei. Davi disse-lhe

que nada temesse e esperasse dele um tratamento muito

favorável: dar-lhe-ia de novo a posse de todos os bens que

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pertenciam ao seu pai e ao rei Saul, seu avô, e queria que

viesse sempre tomar as suas refeições com ele.

Mefibosete, fora de si diante de tantas gentilezas, prostrou-

se outra vez diante do rei, para humildemente agradecer-

lhe. Davi ordenou a Ziba que fizesse chegar às mãos de

Mefibosete os bens que lhe restituíra, que lhe trouxesse

todos os anos a renda a Jerusalém e que o servisse com os

quinze filhos e os vinte servidores que possuía. Assim, Davi

tratou o filho de Jônatas como se fosse seu próprio filho, deu

o nome de Mica a um dos filhos desse príncipe e tomou

cuidado particular de todos os outros parentes de Saul e de

Jônatas” (2004, pp. 304-305).

Davi deu-lhe os pertences que um dia foram de Saul;

apesar de neto de seu inimigo (Saul), era o filho de seu amigo

(Jônatas) e Davi o tinha por comensal – que frequentava

assiduamente sua casa e ali tomava suas refeições. Mefibosete foi

o único a não ser enforcado, junto com outros sete descendentes

de Saul (entre os quais estava seu tio, também chamado

Mefibosete) por causa da promessa que Davi fez a Jônatas, seu

amigo, de que suas sementes cresceriam juntas.

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II – MILAGRES E UMA NOVA VISÃO

DA PESSOA COM DEFICÊNCIA NO

NOVO TESTAMENTO

Novo Testamento é coleção de livros que compõem a

segunda parte da Bíblia cristã, cujo conteúdo foi escrito

após a morte de Jesus Cristo. Dirigido explicitamente aos

cristãos, embora dentro da religião cristã tanto o Antigo

Testamento (a primeira parte) quanto o Novo Testamento são

considerados, em conjunto, Escrituras Sagradas. Os livros que

compõem essa segunda parte da Bíblia foram escritos à medida

que o Cristianismo era difundido no mundo antigo, refletindo e

servindo como fonte para a teologia cristã.

Essa coleção de 27 livros influenciou não apenas a religião,

a política e a filosofia, mas também deixou sua marca permanente

na literatura, na arte e na música. Entre eles estão os Evangelhos,

um gênero de literatura do Cristianismo primitivo que conta a

vida de Jesus, a fim de preservar seus ensinamentos ou revelar

aspectos da natureza de Deus. O desenvolvimento do cânon do

Novo Testamento deixou quatro evangelhos canônicos.

Literalmente, Evangelho significa “boa mensagem”, “boa notícia”

ou “boas novas”, derivando da palavra grega euangelion (eu, bom,

angelion, mensagem), que também deu origem ao termo

“evangelista” para a língua portuguesa.

O

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Os livros de Mateus, Marcos, Lucas e João são os

Evangelhos canônicos por serem os únicos que o Cristianismo

primitivo admitiu como legítimos e hoje integram o Novo

Testamento da Bíblia, sendo também os únicos aceitos pelos

grupos que sucederam, como os evangélicos. As igrejas cristãs só

aceitam esses quatro evangelhos como tendo sido inspirados e

fazendo parte do Cânon. As igrejas cristãs, católica, ortodoxa e

protestantes têm na Bíblia, incluindo os evangelhos, a base de sua

fé e de sua prática.

Os esmolantes da antiga Judeia

Contextualizando geográfica e historicamente, a cidade da

Judeia era a parte montanhosa do sul da Palestina, entre a

margem oeste do mar Morto e o mar Mediterrâneo. Estende-se, ao

norte, até as colinas de Golan e, ao sul, até a Faixa de Gaza,

correspondendo aproximadamente à parte sul da Cisjordânia.

Atualmente, os termos Judeia e Samaria são usados pelo governo

israelense para designar a Cisjordânia, excluindo Jerusalém

Oriental. A Organização das Nações Unidas utilizou-os em 1948

para se referir à parte sul da atual Cisjordânia.

O Novo Testamento retrata uma Judeia muito viva, muito

real, com seus costumes, atitudes, onde encontramos diversas

considerações sobre pessoas com deficiências ou doenças muito

sérias. Ainda eram fortes e enraizadas as crenças populares de

que a maioria dos males era consequência da interferência de

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maus espíritos ou como um castigo para pagamento de pecados

antigos. Silva (1987) diz que “na Judeia Antiga, inclusive no tempo

de Jesus Cristo, o destino dos deficientes era esmolar para conseguir

sobreviver. Os cegos, os amputados, os paralíticos pelas mais

variadas causas ficavam expostos nos caminhos, ruas e praças. E

pelo que se lê, deviam ser apenas tolerados. Depreendemos isso das

parábolas de Jesus, ou mesmo das atitudes do próprio Jesus para

com eles, demonstrando que estava errada a forma como eram

tratados, mesmo sem expressar esse modo de pensar” (p. 112).

O Evangelho de Mateus, escrito para convencer os judeus

de que Jesus era mesmo o Messias que estava por vir, enfatizando

o Antigo Testamento e as profecias a respeito desse ungido, no

capítulo 20, versículo 30, descreve a existência de dois desses

pedintes: “E eis que dois cegos, assentados junto do caminho,

ouvindo que Jesus passava, clamaram, dizendo: Senhor, Filho de

Davi, tem misericórdia de nós!”. O Evangelho de Lucas, escrito para

os gentios (não judeus), enfatizando a misericórdia de Deus

através da salvação por Jesus Cristo, principalmente para os

pobres e humildes de coração, também no capítulo 14, versículo

21, fica comprovado que o ambiente de exposição da pessoa para

esmolar era um fato concreto: “E, voltando aquele servo, anunciou

estas coisas ao seu senhor. Então o pai de família, indignado, disse

ao seu servo: Sai depressa pelas ruas e bairros da cidade, e traze

aqui os pobres, e aleijados, e mancos e cegos.” (Lc 14:21).

A busca da cura

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Naquela época remota, sem o avanço da medicina ou

ciência, os poucos recursos de cura eram a fé. Tudo era

dramaticamente mais difícil. Podemos imaginar a aflição de

parentes e amigos desses doentes ou de pessoas com deficiência

que, ao saberem da existência ou da presença de um rabino, um

sacerdote, um profeta com dom de cura nos arredores,

procuravam alcançá-los por todos os meios. O Evangelho de

Marcos (discípulo de Pedro) foi escrito para evangelizar

principalmente os romanos e relata somente quatro das parábolas

de Jesus, enfatizando principalmente suas ações. Nele, temos um

registro no capítulo 2 quanto a isso:

“E alguns dias depois entrou outra vez em Cafarnaum, e

soube-se que estava em casa.

E logo se ajuntaram tantos, que nem ainda nos lugares

junto à porta cabiam; e anunciava-lhes a palavra.

E vieram ter com ele conduzindo um paralítico, trazido por

quatro.

E, não podendo aproximar-se dele, por causa da multidão,

descobriram o telhado onde estava, e, fazendo um buraco,

baixaram o leito em que jazia o paralítico.

E Jesus, vendo a fé deles, disse ao paralítico: Filho,

perdoados estão os teus pecados.

E estavam ali assentados alguns dos escribas, que

arrazoavam em seus corações, dizendo:

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Por que diz este assim blasfêmias? Quem pode perdoar

pecados, senão Deus?

E Jesus, conhecendo logo em seu espírito que assim

arrazoavam entre si, lhes disse: Por que arrazoais sobre

estas coisas em vossos corações?

Qual é mais fácil? dizer ao paralítico: Estão perdoados os

teus pecados; ou dizer-lhe: Levanta-te, e toma o teu leito, e

anda?

Ora, para que saibais que o Filho do homem tem na terra

poder para perdoar pecados (disse ao paralítico),

A ti te digo: Levanta-te, toma o teu leito, e vai para tua casa.

E levantou-se e, tomando logo o leito, saiu em presença de

todos, de sorte que todos se admiraram e glorificaram a

Deus, dizendo: Nunca tal vimos.

E tornou a sair para o mar, e toda a multidão ia ter com ele,

e ele os ensinava.

E, passando, viu Levi, filho de Alfeu, sentado na alfândega, e

disse-lhe: Segue-me. E, levantando-se, o seguiu.” (Mc 2:1-

14).

Outro exemplo da busca de cura e sua realização por meio

de um milagre de Jesus ocorreu em Jerusalém, onde havia bem ao

lado do templo uma piscina ou tanque destinado à purificação de

animais que eram sacrificados e que era por esse motivo

conhecida como “piscina probática” (do grego probatikón, ou seja,

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carneiro ou relativo a ovinos em geral). O Evangelho de João 5

narra:

“Depois disto havia uma festa entre os judeus, e Jesus subiu a

Jerusalém.

Ora, em Jerusalém há, próximo à porta das ovelhas, um

tanque, chamado em hebreu Betesda, o qual tem cinco

alpendres.

Nestes jazia grande multidão de enfermos, cegos, mancos e

ressicados, esperando o movimento da água.

Porquanto um anjo descia em certo tempo ao tanque, e

agitava a água; e o primeiro que ali descia, depois do

movimento da água, sarava de qualquer enfermidade que

tivesse.

E estava ali um homem que, havia trinta e oito anos, se

achava enfermo.

E Jesus, vendo este deitado, e sabendo que estava neste

estado havia muito tempo, disse-lhe: Queres ficar são?

O enfermo respondeu-lhe: Senhor, não tenho homem algum

que, quando a água é agitada, me ponha no tanque; mas,

enquanto eu vou, desce outro antes de mim.

Jesus disse-lhe: Levanta-te, toma o teu leito, e anda.

Logo aquele homem ficou são; e tomou o seu leito, e andava.

E aquele dia era sábado.” (Jo 5:1-9).

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Elgood (1951), estudioso dos usos e costumes dos povos

do Oriente Médio, afirma que a medicina contida nos Evangelhos e

mesmo nos Atos dos Apóstolos aceitava basicamente três tipos de

causas para as doenças e para as muitas limitações e deficiências

que afligiam os homens:

o castigo pelos pecados;

a interferência dos maus espíritos;

as forças más da natureza, contra as quais o poder divino

era o único remédio – ou pelo menos era assim

considerado.

Eis alguns pontos destacados dos Evangelhos que ilustram

isso: João 5:14: “Depois Jesus encontrou-o no templo, e disse-lhe: Eis

que já estás são; não peques mais, para que não te suceda alguma

coisa pior.” João 9:2-3: “E os seus discípulos lhe perguntaram,

dizendo: Rabi, quem pecou, este ou seus pais, para que nascesse

cego? Jesus respondeu: Nem ele pecou nem seus pais; mas foi assim

para que se manifestem nele as obras de Deus.” Lucas 9:38-39: “E

eis que um homem da multidão clamou, dizendo: Mestre, peço-te

que olhes para meu filho, porque é o único que eu tenho.

Eis que um espírito o toma e de repente clama, e o despedaça até

espumar; e só o larga depois de o ter quebrantado.”

A Bíblia é a fonte documental que mais revela a existência

e como viviam as pessoas com deficiência naquela época. Por meio

dos Evangelhos vemos “que o povo hebreu – e com ele quase todos

os povos ao seu redor – estava acostumado não apenas à existência

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das doenças e das deficiências que levavam o homem a uma vida de

quase certa indigência ou total dependência, mas também à busca

de soluções naturais e sobrenaturais, quando possível, para sua

eliminação” (SILVA, 1987, p. 140).

Os escritos dos evangelistas registram que Jesus fez mais

de 40 milagres notórios, sendo pelo menos 21 deles relacionados

a pessoas com deficiências físicas ou sensoriais. Optamos por não

reproduzir todos aqui, mas si destacá-los como uma forma de

registro: cego de nascimento (João 9:1-7), cego em Betsada

(Marcos 8:22-26), cego Bartimeu de Jericó (Marcos 10:46 e Lucas

8:35-43), dois cegos de Jericó (Mateus 20:29-34), dois cegos de

Cafarnaum (Mateus 9:27-31), cegos na Galileia (Mateus 15:29-31),

cego e mudo (Mateus 12:22), mudo de Cafarnaum (Mateus 9:32-

34), mudos na Galileia, (Mateus 15:29-31), surdo-mudo na

Decápole (Marcos 7:31-37), surdo-mudo de Cesareia, (Marcos

9:16-26 e Lucas 9:37-43), coxos na Galileia (Mateus 15:29-31),

leprosos de Cafarnaum (Mateus 8:1-4, Marcos 1:40-45 e Lucas

5:12-14), dez leprosos (Lucas 17:13-19), hidrópico (Lucas 14:1-

6), mulher com espinha curvada (Lucas 13:11-13), homem de

“mão seca” (Mateus 12:9-13, Marcos 3:1-6 e Lucas 6:6-11),

paralítico servo do centurião (Mateus 8:5-13), paralítico em

Betsaida (João 5:5-9), paralítico de Cafarnaum (Mateus 9:1-8,

Marcos 2:1-12 e Lucas 5:17-26).

Não é possível ter os registros estatísticos de quantas

pessoas com deficiência existiam naquele período. Mas sabemos

que eram muitas. Na região da Galileia, o lar de Jesus durante pelo

menos 30 anos de sua vida, o Evangelho de Mateus, capítulo 15,

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traz um relato que confirma essa grande quantidade de pessoas e

os milagres de Jesus:

“Partindo Jesus dali, chegou ao pé do mar da Galileia, e,

subindo a um monte, assentou-se lá.

E veio ter com ele grandes multidões, que traziam coxos,

cegos, mudos, aleijados, e outros muitos, e os puseram aos

pés de Jesus, e ele os sarou,

De tal sorte, que a multidão se maravilhou vendo os mudos a

falar, os aleijados sãos, os coxos a andar, e os cegos a ver; e

glorificava o Deus de Israel.

E Jesus, chamando os seus discípulos, disse: Tenho

compaixão da multidão, porque já está comigo há três dias,

e não tem o que comer; e não quero despedi-la em jejum,

para que não desfaleça no caminho.” (Mt 15:29-32).

A hanseníase no Novo Testamento

Nas Escrituras, “lepra” não se restringe à doença

conhecida hoje por esse nome, pois ela podia atingir não só os

humanos, mas também roupas e casas (Le 14:55). No Antigo

Testamento, principalmente em Levítico, há uma ampla descrição

da lepra que, à medida que progride para seu estágio avançado, as

lesões que inicialmente se desenvolveram soltavam pus, faziam

cair os cabelos e as sobrancelhas, as unhas soltavam-se,

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decompunham-se e caíam. Daí, os dedos, os membros, o nariz ou

os olhos da vítima iam lentamente se consumindo. Por fim, nos

casos mais graves, seguiam-se de morte. Que a “lepra” bíblica

certamente incluía tal doença grave é evidente na referência feita

por Arão a ela como sendo um mal em que a carne é “metade

consumida” (Nm, 12:12).

Nos dias de Eliseu, Naamã, o sírio, era “capitão do exército

do rei da Síria, era um grande homem diante do seu SENHOR, e de

muito respeito; porque por ele o SENHOR dera livramento aos

sírios; e era este homem herói valoroso, porém leproso.” (2 Rs 5:1).

Seu orgulho quase o fez perder a oportunidade de ser curado,

mas, por fim, ele fez conforme Eliseu o instruíra, mergulhando no

Jordão sete vezes, e “mergulhou no Jordão sete vezes, conforme a

palavra do homem de Deus; e a sua carne tornou-se como a carne

de um menino, e ficou purificado.” (2 Rs 5:14). Como resultado

disso, tornou-se adorador de Deus. Não obstante, Geazi, ajudante

de Eliseu, obteve gananciosamente um presente de Naamã em

nome do profeta, representando assim mal a seu amo,

transformando, na verdade, a benignidade imerecida de Deus em

meio de ganho material. Por esse erro, Geazi foi afligido de lepra

por Deus e tornou-se “leproso tão branco como a neve” (2 Rs 5:20-

27).

Havia vários leprosos em Israel nos dias de Eliseu,

registrados por quatro leprosos israelitas do lado de fora dos

portões de Samaria, enquanto Eliseu estava na cidade. Nesse

registro fica claro que Deus utilizou-se deles para fazer um

milagre e expulsar o exército inimigo da cidade (2 Reis, 7):

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“Então disse Eliseu: Ouvi a palavra do SENHOR; assim diz o

SENHOR: Amanhã, quase a este tempo, haverá uma medida

de farinha por um siclo, e duas medidas de cevada por um

siclo, à porta de Samaria.

Porém um senhor, em cuja mão o rei se encostava,

respondeu ao homem de Deus e disse: Eis que ainda que o

SENHOR fizesse janelas no céu, poder-se-ia fazer isso? E ele

disse: Eis que o verás com os teus olhos, porém disso não

comerás.

E quatro homens leprosos estavam à entrada da porta, os

quais disseram uns aos outros: Para que estaremos nós aqui

até morrermos?

Se dissermos: Entremos na cidade, há fome na cidade, e

morreremos aí; e se ficarmos aqui, também morreremos.

Vamos nós, pois, agora, e passemos para o arraial dos sírios;

se nos deixarem viver, viveremos, e se nos matarem, tão-

somente morreremos.

E levantaram-se ao crepúsculo, para irem ao arraial dos

sírios; e, chegando à entrada do arraial dos sírios, eis que

não havia ali ninguém.

Porque o Senhor fizera ouvir no arraial dos sírios ruído de

carros e ruído de cavalos, como o ruído de um grande

exército; de maneira que disseram uns aos outros: Eis que o

rei de Israel alugou contra nós os reis dos heteus e os reis

dos egípcios, para virem contra nós.

Por isso se levantaram, e fugiram no crepúsculo, e deixaram

as suas tendas, os seus cavalos, os seus jumentos e o arraial

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como estava; e fugiram para salvarem a sua vida.” (2 Rs

7:1-7)

Nesse episódio, havia da parte dos israelitas uma

generalizada falta de fé nesse homem do verdadeiro Deus, assim

como os judeus no território de Jesus não o queriam aceitar. Por

isso, Cristo disse, em Lucas, 4:27: “E muitos leprosos havia em

Israel no tempo do profeta Eliseu, e nenhum deles foi purificado,

senão Naamã, o siro.”.

No Novo Testamento, muitos leprosos foram curados por

Jesus e seus discípulos. Jesus, durante seu ministério galileu,

curou um leproso, descrito em Lucas 5:

“E aconteceu que, quando estava numa daquelas cidades, eis

que um homem cheio de lepra, vendo a Jesus, prostrou-se

sobre o rosto, e rogou-lhe, dizendo: Senhor, se quiseres, bem

podes limpar-me.

E ele, estendendo a mão, tocou-lhe, dizendo: Quero, sê limpo.

E logo a lepra desapareceu dele.

E ordenou-lhe que a ninguém o dissesse. Mas vai, disse,

mostra-te ao sacerdote, e oferece pela tua purificação, o que

Moisés determinou para que lhes sirva de testemunho.

A sua fama, porém, se propagava ainda mais, e ajuntava-se

muita gente para o ouvir e para ser por ele curada das suas

enfermidades.

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Ele, porém, retirava-se para os desertos, e ali orava.” (Lc

5:12-16)

Essa mesma passagem é descrita em Mateus 8:2-4 e em

Marcos 1:40-45. Quando Jesus enviou os 12 apóstolos, Ele lhes

disse, entre outras coisas: “Curai os enfermos, limpai os leprosos,

ressuscitai os mortos, expulsai os demônios; de graça recebestes, de

graça dai.” (Mt 10:8). Mais tarde, quando percorria a Samaria e a

Galileia, Jesus realizou outra grande cura registrada em Lucas 17:

“E aconteceu que, indo ele a Jerusalém, passou pelo meio de

Samaria e da Galileia;

E, entrando numa certa aldeia, saíram-lhe ao encontro dez

homens leprosos, os quais pararam de longe;

E levantaram a voz, dizendo: Jesus, Mestre, tem misericórdia

de nós.

E ele, vendo-os, disse-lhes: Ide, e mostrai-vos aos sacerdotes.

E aconteceu que, indo eles, ficaram limpos.

E um deles, vendo que estava são, voltou glorificando a Deus

em alta voz;

E caiu aos seus pés, com o rosto em terra, dando-lhe graças;

e este era samaritano.

E, respondendo Jesus, disse: Não foram dez os limpos? E

onde estão os nove?

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Não houve quem voltasse para dar glória a Deus senão este

estrangeiro?

E disse-lhe: Levanta-te, e vai; a tua fé te salvou.” (Lc 17:11-

19).

Vimos que, dos dez, apenas um deles, um samaritano,

“voltou, glorificando a Deus com voz alta”, e se lançou ao solo

diante dos pés de Jesus, agradecendo o que Ele tinha feito em seu

favor.

Vale lembrar que Cristo estava em Betânia, na casa de

Simão, o leproso (Mt 26:6-13; Mr 14:3-9; Jo 12:1-8), quando Maria

ungiu Jesus com o custoso óleo perfumado. Esse Simão era pai de

três amigos próximos do Mestre, Lázaro, Marta e Maria. Não nos

fica claro, mas certamente Simão fora curado por Jesus, pois os

leprosos eram proibidos de se aproximar das pessoas saudáveis.

Era a última Páscoa de Cristo aqui na terra, poucos dias antes de

Sua morte.

A ação de Jesus é demonstração exata de que um doente

não deve ser estigmatizado pela sociedade, apesar dos costumes

da época. Jesus fez várias demonstrações contrárias às leis

judaicas, e essa foi uma das razões pelas quais os líderes judeus

fizeram tanta questão que ele fosse condenado. Como muitas

outras coisas na Bíblia, o melhor é tomarmos a mensagem de

fundo – a de não estigmatizar – e deixarmos de lado a questão da

plausibilidade do fato.

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A baixa estrutura de Zaqueu

Conhecido apenas por um episódio narrado no Evangelho

de Lucas, Zaqueu era o responsável pela coleta de impostos em

Jericó durante o jugo romano. Os coletores de impostos eram

odiados pelos seus compatriotas judeus, que os viam como

traidores trabalhando para o império romano. Em função de a

lucrativa produção e exportação do bálsamo estar centralizada em

Jericó, a posição de Zaqueu era muito cobiçada pelas riquezas que

prometia. Essa é sua história, registrada em Lucas, 19:

“E, tendo Jesus entrado em Jericó, ia passando.

E eis que havia ali um homem chamado Zaqueu; e era este

um chefe dos publicanos, e era rico.

E procurava ver quem era Jesus, e não podia, por causa da

multidão, pois era de pequena estatura, correndo adiante,

subiu a uma figueira brava para o ver; porque havia de

passar por ali.

E quando Jesus chegou àquele lugar, olhando para cima,

viu-o e disse-lhe: Zaqueu, desce depressa, porque hoje me

convém pousar em tua casa.

E, apressando-se, desceu, e recebeu-o alegremente.

E, vendo todos isto, murmuravam, dizendo que entrara para

ser hóspede de um homem pecador.

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E, levantando-se Zaqueu, disse ao Senhor: Senhor, eis que eu

dou aos pobres metade dos meus bens; e, se nalguma coisa

tenho defraudado alguém, o restituo quadruplicado.

E disse-lhe Jesus: Hoje veio a salvação a esta casa, pois

também este é filho de Abraão.

Porque o Filho do homem veio buscar e salvar o que se havia

perdido.” (Lc 19:1-10).

Nos versículos iniciais, vê-se que Zaqueu chegou antes da

multidão que estava ali para se encontrar com Jesus, o qual

passava por Jericó a caminho de Jerusalém. Descrito como um

homem de baixa estatura, o que costuma ser considerado

“deficiência”, quando bastante fora da média, isso nos leva a

acreditar que era tão evidente que chegou a ser registrado na

Bíblia. Zaqueu então subiu num sicômoro para que pudesse ver

Jesus. Quando Ele chegou ao lugar, olhou para os ramos e chamou

Zaqueu pelo nome, pedindo-lhe que descesse, pois pretendia

visitar a sua casa. “Dentre as possíveis coisas que se pode

depreender dessa passagem bíblica está a de se considerar que foi

graças à sua pequena estrutura que Zaqueu pôde vir a chamar a

atenção de Jesus, posto que, ao subir num sicômoro (espécie de

figueira, de oito a quinze metros de altura), veio ele a destacar-se

dos demais. O fato de buscar superar uma ‘desvantagem’, digamos

assim, uma ‘deficiência’, poderão dizer alguns, fez com que ele se

destacasse e chegasse mais próximo até do que ousou almejar: até

Jesus” (RANAURO e LIMA DE SÁ, 1999, p. 70).

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Paulo: Uma visão transformadora

Por volta de 35 a.C., aproximadamente cinco anos após a

crucificação de Jesus Cristo, Saulo, talvez com 30 anos, estava

caminhando rumo a Damasco, levando as cartas do sumo

sacerdote. Deus escolheu aquele momento para promover grande

mudança em sua vida. Anos mais tarde, Saulo descreveria o

acontecimento calmamente, dizendo apenas que Deus “Revelar

seu Filho em mim, para que o pregasse entre os gentios, não

consultei a carne nem o sangue,” (Gl 1:16). Nos Atos dos Apóstolos,

o episódio é contado no mínimo três vezes em detalhes.

Saulo estava se aproximando de Damasco quando uma luz

brilhante vinda dos céus o envolveu e uma voz se dirigiu a ele,

usando seu nome hebraico. Vejamos a narrativa bíblica em Atos 9:

“E Saulo, respirando ainda ameaças e mortes contra os

discípulos do Senhor, dirigiu-se ao sumo sacerdote.

E pediu-lhe cartas para Damasco, para as sinagogas, a fim

de que, se encontrasse alguns deste Caminho, quer homens

quer mulheres, os conduzisse presos a Jerusalém.

E, indo no caminho, aconteceu que, chegando perto de

Damasco, subitamente o cercou um resplendor de luz do

céu.

E, caindo em terra, ouviu uma voz que lhe dizia: Saulo,

Saulo, por que me persegues?

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E ele disse: Quem és, Senhor? E disse o Senhor: Eu sou Jesus,

a quem tu persegues. Duro é para ti recalcitrar contra os

aguilhões.

E ele, tremendo e atônito, disse: Senhor, que queres que eu

faça? E disse-lhe o Senhor: Levanta-te, e entra na cidade, e

lá te será dito o que te convém fazer.

E os homens, que iam com ele, pararam espantados, ouvindo

a voz, mas não vendo ninguém.

E Saulo levantou-se da terra, e, abrindo os olhos, não via a

ninguém. E, guiando-o pela mão, o conduziram a Damasco.

E esteve três dias sem ver, e não comeu nem bebeu.

E havia em Damasco um certo discípulo chamado Ananias; e

disse-lhe o Senhor em visão: Ananias! E ele respondeu: Eis-

me aqui, Senhor.

E disse-lhe o Senhor: Levanta-te, e vai à rua chamada

Direita, e pergunta em casa de Judas por um homem de

Tarso chamado Saulo; pois eis que ele está orando;

E numa visão ele viu que entrava um homem chamado

Ananias, e punha sobre ele a mão, para que tornasse a ver.

E respondeu Ananias: Senhor, a muitos ouvi acerca deste

homem, quantos males tem feito aos teus santos em

Jerusalém;

E aqui tem poder dos principais dos sacerdotes para

prender a todos os que invocam o teu nome.

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Disse-lhe, porém, o Senhor: Vai, porque este é para mim um

vaso escolhido, para levar o meu nome diante dos gentios, e

dos reis e dos filhos de Israel.

E eu lhe mostrarei quanto deve padecer pelo meu nome.

E Ananias foi, e entrou na casa e, impondo-lhe as mãos,

disse: Irmão Saulo, o Senhor Jesus, que te apareceu no

caminho por onde vinhas, me enviou, para que tornes a ver e

sejas cheio do Espírito Santo.

E logo lhe caíram dos olhos como que umas escamas, e

recuperou a vista; e, levantando-se, foi batizado.

E, tendo comido, ficou confortado. E esteve Saulo alguns dias

com os discípulos que estavam em Damasco.

E logo nas sinagogas pregava a Cristo, que este é o Filho de

Deus.” (At 9:1-20)

Em um primeiro momento, aquela voz parecia impossível.

Jesus fora crucificado, amaldiçoado, não podia ser o Messias, e

muito menos lhe falar em uma visão dos céus. No entanto, como

ele mesmo estava tendo aquela visão, Saulo não tinha como negá-

la. Fora uma experiência tão impactante que ele teve a absoluta

certeza de que era uma “visão celeste” (Atos, 26:19) do verdadeiro

Deus que ele vinha servindo, mas o qual tinha entendido de forma

totalmente equivocada. Para Saulo, o impossível tornara-se

realidade.

A luz ofuscante tinha cegado Saulo, talvez para lhe mostrar

a cegueira da violenta perseguição que ele tinha instigado. Mas, ao

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lado de seus companheiros, Saulo seguiu viagem para Damasco,

onde passou três dias orando naquela estranha escuridão –

jejuando, separado de seu passado, sem saber o que o futuro lhe

reservava. Finalmente, aproximou-se o cristão Ananias, um judeu

devoto que também tinha aderido à nova fé, impôs as mãos sobre

ele e escamas caíram de seus olhos, curando milagrosamente a

sua cegueira. Saulo foi batizado e teve o seu nome trocado para

Paulo, experimentando o poder do Espírito Santo que tinha

encorajado Estêvão – o primeiro mártir cristão, cuja história fora

ponto crucial de desenvolvimento dos primórdios da Igreja, cuja

morte marcou o início de uma violenta perseguição,

principalmente contra os fiéis helenistas, uma rebelião

encabeçada por Paulo que fora consciente da execução de Estêvão.

Agora chamado por Deus este mesmo Saulo se torna um apóstolo

da nova fé para continuar e concluir o trabalho iniciado por

Estêvão.

Paulo de Tarso foi um dos mais influentes escritores do

Cristianismo primitivo, cujas obras compõem parte significativa

do Novo Testamento. A influência que exerceu no pensamento

cristão, chamada de “paulinismo”, foi fundamental por causa do

seu papel como proeminente apóstolo do Cristianismo durante a

propagação inicial do Evangelho pelo império romano. A principal

fonte para informações históricas sobre a vida de Paulo são as

pistas encontradas em suas epístolas e nos Atos dos Apóstolos. Os

Atos recontam a carreira de Paulo, mas deixam de fora diversas

partes de sua vida, como a sua alegada execução em Roma.

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III – CASTIGO E PECADO: PRINCIPAIS

CONCEITOS BÍBLICOS SOBRE PESSOAS

COM DEFICIÊNCIAS E MUDANÇAS DE

MENTALIDADES

os relatos dos capítulos anteriores vimos que a

discriminação contra pessoas com qualquer deficiência

era aberta e manifesta nas próprias leis. Certos livros

bíblicos, principalmente do Antigo Testamento, dão-nos algumas

indicações de costumes ou de ambientes, além de apresentarem

relatos – às vezes elaborados na própria época – sobre os

preconceitos contra pessoas e mesmo contra animais defeituosos.

Queremos fazer alguns questionamentos. Será que tais

determinações vieram realmente da parte de Deus, pois, se tudo

que há na face da terra é criação/permissão Dele, iria se

contradizer, criando pessoas com deficiência para depois

discriminá-las? Ou tais restrições partiram da própria mente

humana? Ou seja, pautadas por costumes culturais e a falta de

conhecimentos, principalmente científicos e teológicos, sobre as

pessoas com deficiência?

N

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Deficiência é fruto do pecado?

Vimos ao longo do Antigo Testamento que por inúmeras

vezes a deficiência está associada ao pecado. Deixando o contexto

bíblico e mergulhando ainda mais na história, descobriremos que

essa tendência de interpretação tem suas raízes nas religiões de

Israel, quando nas sociedades primitivas era comum uma doença

ou deficiência ser atribuída ou a uma magia hostil ou à violação de

um tabu. Era tarefa do homem de Deus ou do sacerdote (também

o médico da tribo) descobrir as causas (diagnose) e estabelecer o

encaminhamento ou a magia certa para eliminar o mal

(prognose). A diagnose podia ser interpretada por erro ou pecado

cometido pela pessoa contra as normas sociais ou divindades e

exigia uma reparação adequada.

Essa visão se manteve no Antigo Testamento, além de uma

segunda raiz da tendência teológica de atribuir a doença a um

pecado humano, assim explicada por Kilpp (1990): “É a conhecida

visão assim chamada Sabedoria israelita que vê uma intrínseca

relação entre agir (causa) e acontecer (‘destino’; consequência), ou

seja: os justos terão sucesso enquanto os ímpios, desgosto e

infelicidade. Essa Sabedoria israelita, que, sem dúvida, está baseada

em observações do povo, quer dar lições de vida. Ela tem, pois,

função didática. Essa é, parece-me também a intenção de maldição

condicional de Deuteronômio 28, quando anuncia que a

desobediência aos mandamentos de Deus acarretará, entre outros

males, também ‘loucura, cegueira e demência’. Nesses textos não se

inverte, no entanto, a perspectiva, ou seja, não se afirma (ainda) que

qualquer cego ou demente é um amaldiçoado por Deus ou, então,

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um ímpio. Há reservas, nesses textos, em tirar essa conclusão – e

com razão. Todo o livro de Jó (em parte também Eclesiastes) nos

ensina que não é possível julgar doença e sofrimento como castigo

de Deus por pecado cometido” (p. 43).

Mesmo assim, no Antigo Testamento o conceito de puro e

impuro tinha uma importância extraordinária na vida do fiel e

chegava a ser causa de grande sofrimento por parte do povo

simples, que não conhecia a Lei e devia seguir os rígidos

ensinamentos e interpretações dos escribas e fariseus da cultura

judaica. O conceito de impureza estava ligado a tudo que pertencia

ao mundo dos falsos deuses e dos demônios, em oposição radical

ao Deus verdadeiro, o único santo, contaminando pessoas e coisas,

tornando-as inadequadas para o culto e mesmo para a vida social

com o povo santo de Deus. Vendrame (2001) lembra que o livro

de Levítico “consagra diversos capítulos para declarar o que é puro

ou o que é impuro e ditar normas de purificação. As doenças (de

modo todo particular as doenças de pele), os defeitos físicos, tudo o

que se relaciona com a vida sexual (menstruação, esperma,

nascimento), com o sangue e com a morte, contamina as pessoas; e,

por sua vez, as pessoas, os animais e objetos contaminados

contaminam tudo o que tocam. Quem se contamina, não importa se

por sua culpa ou não, entra na área das potências maléficas, dos

espíritos imundos, e não pode entrar em contato com Deus santo

sem antes se purificar com abluções, banhos e mesmo com

sacrifícios, conforme a gravidade da contaminação. Daí não haver

muita diferença entre pecador, doente ou endemoninhado. Todos os

impuros eram excluídos sem misericórdia do culto e da convivência

na sociedade, o que equivalia a serem condenados à morte social e

por vezes à morte física” (p. 112).

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A lei do puro ou do impuro afastava o povo das práticas do

ambiente pagão circundante, enquanto os profetas pregavam a

pureza interior, afirmando que a beleza exterior não tinha valor.

“Mas com o tempo as normas foram crescendo e as autoridades

religiosas foram se tornando mais rígidas em sua aplicação.

Precisou vir o Cristo para acabar com toda essa carga de normas e

prescrições que infernizavam a vida, excluíam pessoas e desviavam

a atenção dos verdadeiros valores e justiça de misericórdia. A

palavra libertadora e sanante do Cristo purifica todas as coisas,

restituindo ao ser humano a possibilidade de vê-las com o olhar de

Deus Criador. Cristo disse que não é o que toca ou entra no homem,

vindo de fora, que contamina, mas as intenções perversas que

nascem em seu interior, que saem do coração do homem”

(VENDRAME, 2001, pp. 112-113).

Faremos uma contextualização geral do pecado, termo

comumente utilizado em contexto religioso, descrevendo

qualquer desobediência à vontade de Deus, às Leis Divinas. No

hebraico e no grego comum, as formas verbais significam “errar”,

no sentido de errar ou não atingir um alvo, ideal ou padrão. Em

latim, o termo é vertido por peccátu.

A perspectiva judaica considera a violação de um

mandamento divino como um pecado, destacando-o como um ato

e não um estado do ser. A humanidade encontra-se num estado de

inclinação para fazer o mal (Gênesis 8:21) e de incapacidade para

escolher o Bem em vez do Mal (Salmo 37:17). O Judaísmo usa o

termo “pecado” para incluir violações à lei judaica que não são

necessariamente uma falta moral. Por isso, Deus na sua

misericórdia permitiu ao homem arrepender-se e ser perdoado. O

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Judaísmo defende que todo homem nasce sem pecado, pois a

culpa de Adão não recai sobre os outros homens.

Na visão católica, o pecado é uma palavra, um ato ou um

desejo contrários à Lei eterna, causando por isso ofensa a Deus e

ao seu amor. Essa Lei eterna, ou Lei de Deus, é expressa na lei

natural, nos Dez Mandamentos, nos mandamentos de amor, entre

outros. Logo, o pecado é um ato mal e “abuso da liberdade”,

ferindo assim a natureza humana. Cristo, na sua morte na cruz,

revela plenamente a gravidade do pecado e vence-o com a sua

misericórdia. Há uma grande variedade de pecados e a repetição

gera vícios, que são hábitos perversos que obscurecem a

consciência e inclinam para o mal. Os vícios podem estar ligados

aos chamados sete pecados capitais: soberba, avareza, inveja, ira,

luxúria, gula e preguiça. A doutrina católica ensina também que

temos responsabilidade “nos pecados cometidos por outros,

quando culpavelmente neles cooperamos”, distinguindo o pecado

em três categorias: o pecado original, que é transmitido a todos os

homens, sem culpa própria, devido à sua unidade de origem, que é

Adão e Eva; o pecado mortal, que é cometido quando, ao mesmo

tempo, há matéria grave, plena consciência e deliberado

consentimento; além de destruir a caridade, priva-nos da graça

santificante e conduz-nos à morte eterna do inferno, se dele não

nos arrependermos sinceramente; o pecado venial, que, diferente

em essência do pecado mortal, se comete quando se trata de

matéria leve, ou mesmo grave, mas sem pleno conhecimento ou

sem total consentimento, não quebrando a aliança com Deus, mas

enfraquece a caridade, manifesta um afeto desordenado pelos

bens criados, impede o progresso da alma no exercício das

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virtudes e na prática do bem moral, merecendo penas

purificatórias temporais no purgatório.

O segmento protestante (ou evangélico) não crê em

purgatório nem classifica os pecados como venial, mortal ou

capital. Seguindo os preceitos bíblicos, o pecado está em todos os

homens, pois “Porque todos pecaram e destituídos estão da glória

de Deus;” (Rm 3:23). A separação está entre o pecado cometido

contra a carne (pode ser perdoado) e contra o Espírito Santo de

Deus (o qual não pode ser perdoado – Lc 12:10). O pecado nada

mais é do que a transgressão aos mandamentos de Deus. Pecado é

um ato, pois “cada um é tentado, quando atraído e engodado pela

sua própria concupiscência. Depois, havendo a concupiscência

concebido, dá à luz o pecado; e o pecado, sendo consumado, gera a

morte.” (Tiago 1:14-15). Para que tenhamos salvação e

desfrutemos da vida eterna, devemos tão somente crer e

confessar Jesus Cristo como único e suficiente Salvador e Senhor,

sendo necessário arrependimento, e não remorso (que nos leva a

cometer novamente os mesmos erros).

Vimos que nas três visões – judaica, católica e evangélica –

nenhuma cita que uma deficiência é causa ou castigo por algum

pecado. Também no próprio Antigo Testamento há em

Deuteronômio 24:16 um versículo que desmistifica isso: “Os pais

não morrerão pelos filhos, nem os filhos pelos pais; cada um

morrerá pelo seu pecado.”.

Flávio Josefo, em seu conceituado livro História dos

Hebreus (2007), reforça isso: “As crianças não devem ser

castigadas pelos pecados dos pais porque, sendo elas virtuosas, são

dignas de serem lamentadas por terem nascido de pessoas viciadas

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e não devem ser odiadas em razão das faltas cometidas por seus

genitores. Não se deve, do mesmo modo, imputar aos pais os defeitos

dos filhos, e sim atribuí-los à má natureza destes, que os fez

desprezar as boas lições que lhes deram aqueles e os impediu de

aproveitá-las” (p. 187).

Vendrame (2001) reforça o conceito de que pecado não

tem relação com deficiência como uma forma de castigo ou

punição: “O caso do rei Ezequias, mais vezes reportado e proposto à

reflexão no AT, parece contradizer a convicção comum a respeito da

relação entre pecado e doença, pois não se diz que ele tenha pecado

para merecer aquela doença tão grave que o levara à morte, nem

que ele se tenha reconhecido culpado. Aliás, a cura não veio pela

oração ou pela palavra do profeta, mas pela aplicação de um

emplastro de figos (Is 38:21). O mesmo se diga do pequeno Merib-

baal, que ficou aleijado por uma queda (2 Sm 4:4), e do justo Tobias,

que ficou cego apesar de toda a sua bondade (Tb 2:10). Mas

também nesses casos se reconhece que tudo vem de Deus, bom e

justo, que tem suas razões para permitir o mal e depois o curar,

quer diretamente, quer pelos meios que ele mesmo criou e ensina

como usar, para recuperar a saúde” (pp. 28-29).

No Novo Testamento, em João 9, Jesus dá a palavra final,

atestando que as deficiências não são fruto do pecado.

“E, passando Jesus, viu um homem cego de nascença.

E os seus discípulos lhe perguntaram, dizendo: Rabi, quem

pecou, este ou seus pais, para que nascesse cego?

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Jesus respondeu: Nem ele pecou nem seus pais; mas foi assim

para que se manifestem nele as obras de Deus.

Convém que eu faça as obras daquele que me enviou,

enquanto é dia; a noite vem, quando ninguém pode

trabalhar.

Enquanto estou no mundo, sou a luz do mundo.

Tendo dito isto, cuspiu na terra, e com a saliva fez lodo, e

untou com o lodo os olhos do cego.

E disse-lhe: Vai, lava-te no tanque de Siloé (que significa o

Enviado). Foi, pois, e lavou-se, e voltou vendo.” (Jo 9:1-7).

Como a pessoa poderia ter pecado para originar uma

cegueira se já nasceu com ela? Seria a cegueira, em si mesma, um

castigo por pecados cometidos por seus pais ou pela própria

pessoa em vidas passadas? A ideia de várias vidas, de várias

encarnações era a crença de alguns de muitos daqueles povos

primitivos que começavam a conhecer o Cristianismo.

Só que, ainda hoje, muita gente, até mesmo cristãos,

atribuem deficiências, doenças, fatalidades, mazelas a

consequências de pecados dos antepassados, pautados por

algumas passagens do Antigo Testamento, consequências diretas

de pecados cometidos, como se fosse castigo. Conforme observam

Ranauro e Lima de Sá (1999), “é bastante divulgada entre nós a

visão de diversas religiões de influência oriental que sofrimentos,

fatalidades são castigos, punições, ou situações a que se estaria

exposto para purgação de culpas, da própria pessoa ou dos que a

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cercam. As deficiências são encaradas, muitas das vezes, como uma

cruz a ser carregada pelos que ‘as merecem’. O discurso bíblico,

porém, não dá base para que se o afirme. É importante que se deixe

claro que, com base na narrativa bíblica, existem deficiências e

doenças que nenhuma relação têm com pecados cometidos” (p. 54).

Jesus e o início da inclusão

A vinda de Jesus foi o início de uma mudança geral de

mentalidade pautada pela inclusão dos menos favorecidos ao

Cristianismo. Logo de início, Jesus não aceitou pacificamente as

leis do Antigo Testamento como a vontade de Deus, questionando-

as por servirem para organizar a vida em sociedade, sendo

também a Constituição do país. Jesus rejeitou as leis orais dos

escribas, bem como as leis sobre pureza e impureza. Rejeitou-as

porque elas estavam sendo usadas pelas elites dominantes

(escribas, fariseus, sacerdotes) para explorar a população. Isso

Jesus mostrou claramente em sua visita ao templo de Jerusalém,

como vemos em Marcos 11:

“E vieram a Jerusalém; e Jesus, entrando no templo,

começou a expulsar os que vendiam e compravam no

templo; e derrubou as mesas dos cambiadores e as cadeiras

dos que vendiam pombas.

E não consentia que alguém levasse algum vaso pelo templo.

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E os ensinava, dizendo: Não está escrito: A minha casa será

chamada, por todas as nações, casa de oração? Mas vós a

tendes feito covil de ladrões.

E os escribas e príncipes dos sacerdotes, tendo ouvido isto,

buscavam ocasião para o matar; pois eles o temiam, porque

toda a multidão estava admirada acerca da sua doutrina.

E, sendo já tarde, saiu para fora da cidade.” (Mc 11:15-19).

Segundo as leis da época, era por ali que pecadores e

impuros teriam que passar se quisessem encontrar novamente

Deus, pois a reconciliação com Deus só seria alcançada com a

oferta regular de sacrifícios, dízimos e taxa ao templo, cujo

montante chagava a quase um quarto da população. Mesmo que

os sacerdotes jamais admitissem isso (já que se sentiam

amparados pela lei, pela constituição), a verdade é que o perdão e

a reconciliação com Deus estavam sendo usados como fonte de

exploração. Jesus protesta contra isso, porque entende que a lei,

se quer ser expressão da vontade de Deus, deve ajudar a

promover uma vida plena para todos, e não servir como fonte

legitimadora de exploração. Hofelmann (1990) observa que “Jesus

denuncia o uso ideológico da lei. Os considerados justos e puros

diante de Deus não raramente coincidiam com os representantes da

elite dominante da sociedade. Os pobres e doentes, em

compensação, faziam parte da categoria dos pecadores e impuros,

ou seja, daquelas pessoas que estariam em situação irregular

perante Deus. Mera coincidência? Certamente não! Dessa maneira a

elite dominante procurava justificar a sociedade dividida entre

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empobrecidos e privilegiados. Acompanharemos sua argumentação:

os pobres seriam culpados de sua própria pobreza porque

desobedecem às leis, ou seja, à vontade de Deus. Quanto às elites

dominantes, elas estariam em situação privilegiada porque viviam

numa relação correta da lei, ou seja, com a vontade de Deus. Jesus

desarma esse raciocínio. Ao questionar a lei e escolher em nome de

Deus os que viviam à margem, ele coloca o relacionamento das

pessoas com Deus sobre outras bases e tira da elite dominante a

possibilidade de legitimar a sociedade dividida em nome de Deus.

Assim a divisão da sociedade pode ser percebida em suas

verdadeiras causas, que são a exploração econômica e a opressão de

alguns sobre os outros” (p. 61).

Na Bíblia, as duas doenças mais frequentemente

lembradas, a ponto de merecerem o nome de doenças bíblicas,

com sentido próprio de males físicos, e terem uma conotação

religiosa e simbólica, são a lepra, que era considerada o castigo de

Deus por excelência, e a cegueira, que significava, muitas vezes, a

incapacidade de perceber as maravilhas de Deus.

Em especial a questão da cegueira, para entendermos

melhor, Kilpp (1990) traz um bom esclarecimento histórico: “A

velhice e a guerra, no entanto, não eram as causas principais de

cegueira. Geralmente esta era consequência de oftalmias. Comum,

na época, era uma espécie de conjuntivite grave, transmitida por

moscas e agravada pela poeira e pela luz solar, que geralmente

levava à perda da visão. Bastante frequente parece ter sido também

o tracoma. A cegueira de recém-nascidos (cegos de nascenças) era

comumente provocada por infecção gonocócica da mãe. Apesar de

termos notícias de que, já no segundo milênio a.C., se fizessem na

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Mesopotâmia e no Egito operações na vista (talvez de cataratas) e

se usassem substâncias antissépticas e adstringentes nos olhos para

evitar cegueiras, verdade é que esta era considerada incurável. Uma

eventual cura era tida por milagre, intervenção divina” (p. 40).

É precisamente em favor dos leprosos e dos cegos que

Jesus realiza o maior número de curas, logo no início de seu

ministério, conforme narrado em Lucas 7:

“E de todos se apoderou o temor, e glorificavam a Deus,

dizendo: Um grande profeta se levantou entre nós, e Deus

visitou o seu povo.

E correu dele esta fama por toda a Judéia e por toda a terra

circunvizinha.

E os discípulos de João anunciaram-lhe todas estas coisas.

E João, chamando dois dos seus discípulos, enviou-os a Jesus,

dizendo: És tu aquele que havia de vir, ou esperamos outro?

E, quando aqueles homens chegaram junto dele, disseram:

João o Batista enviou-nos a perguntar-te: És tu aquele que

havia de vir, ou esperamos outro?

E, na mesma hora, curou muitos de enfermidades, e males, e

espíritos maus, e deu vista a muitos cegos.

Respondendo, então, Jesus, disse-lhes: Ide, e anunciai a João

o que tendes visto e ouvido: que os cegos veem, os coxos

andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os

mortos ressuscitam e aos pobres anuncia-se o evangelho.

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E bem-aventurado é aquele que em mim se não

escandalizar.” (Lc 7:16-23).

Nos três anos de ministério, Jesus teve uma atenção toda

particular para com aqueles que, seja pelo tipo de doença ou

deficiência, seja por sua condição social, eram os mais

abandonados, excluídos do convívio social e da participação no

culto. Ele mesmo foi um excluído desde o primeiro dia de sua vida,

quando seus pais não puderam encontrar lugar decente para seu

nascimento (Lucas 2:7): “E deu à luz a seu filho primogênito, e

envolveu-o em panos, e deitou-o numa manjedoura, porque não

havia lugar para eles na estalagem.” (Lc 2:7). Em seguida teve de

refugiar-se no Egito: “E, levantando-se, o expulsaram da cidade, e o

levaram até ao cume do monte em que a cidade deles estava

edificada, para dali o precipitarem.” (Lucas 4:29). Considerado

perigoso e vigiado pelos responsáveis da ortodoxia, era excluído

da sinagoga até por quem o defendesse. Caminhando para

cumprir sua missão, Jesus não tinha onde reclinar a cabeça.

Perseguido por ameaças de autoridades locais, foi expedida

ordem de captura contra ele, que teve que se refugiar nas

proximidades de Jerusalém e em Jericó. Ao ser preso e condenado

pelas autoridades religiosas e civis, Jesus foi crucificado como um

criminoso, junto com dois marginais, como indigno de viver, ele,

autor da vida e que veio proclamar as boas novas, morreu na cruz

sem ter quem o defendesse.

Em seus 33 anos de vida em um corpo humano, Jesus se

fez pobre, teve um amor todo especial pelos empobrecidos e

excluídos, proclamando a bem-aventurança deles, não por serem

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pobres e miseráveis, mas porque – com a vinda do reino de Deus,

reino de justiça e solidariedade, onde todos possam sentir-se

filhos de Deus, cidadãos livres e responsáveis – chegou para eles a

hora da libertação: “E, levantando ele os olhos para os seus

discípulos, dizia: Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o

reino de Deus.” (Lc 6:20).

Jesus já promovia a inclusão, ensinando pela palavra e

pelo exemplo que não basta torcer pelos excluídos, é preciso ser

solidário com eles.

Temos aqui o primeiro grande rompimento

histórico/religioso. Com a vinda de Jesus houve uma mudança

profunda no conceito de Deus e do homem e do mútuo

relacionamento entre eles. Se no Antigo Testamento eram

intuições de místicos e profetas, muitas vezes consideradas

utopia, concretizaram-se com a vinda de Jesus Cristo. Nele, Deus

se manifestou não só como o Criador e soberano, mas,

principalmente, como Pai misericordioso, chamando-nos para

viver em comunhão com Ele e, entre nós, no amor e a

solidariedade.

Vendrame (2001) diz que “por isso não é de estranhar que

os doentes ocupam um espaço privilegiado nos Evangelhos e nos

Atos dos Apóstolos. Cerca de uma quinta parte dos Evangelhos e

dedicada à atividade de Jesus em favor deles e às discussões que se

originavam a partir das curas que ele realizava. Dos 3.779

versículos dos quatros Evangelhos, 727 referem-se especificamente

à cura de doenças físicas ou mentais e à ressurreição dos mortos.

Além disso, há 165 versículos que tratam em geral a vida eterna e

31 referências gerais a milagres que incluem cura” (pp. 45-46).

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O inconsciente coletivo e a desconstrução dos estigmas

religiosos

Voltando àquela época, no Antigo Oriente Médio e no

Israel onde viveram os povos narrados no Antigo Testamento, as

doenças e deficiências físicas eram bem mais frequentes do que

imaginamos. Precárias condições higiênicas, sanitárias e

medicinais eram causas de pestes, que reduziam drasticamente a

população, e de doenças, que levavam a lesões físicas

permanentes. As constantes guerras por conquista e retaliação

por parte dos impérios mutilavam milhares de soldados e

inocentes. Uma crônica alimentação pobre e deficiente que

minava a resistência de grande parte da população. Quando, pois,

se fala de doentes e pessoas com deficiência no contexto bíblico,

não estamos lidando com casos isolados, mas com um problema

social geral daqueles tempos difíceis. E, pelas condições de uma

vida praticamente miserável, pessoas naquele estado estavam

sempre destinadas à pobreza e à mendicância.

Conceitos de que pessoas com deficiência são frutos de

castigos, de pecados, de pessoas que precisam viver à base de

caridade viajaram ao longo do tempo e dos séculos e chegaram até

nós quase intocados. Como observam Ranauro e Lima de Sá,

“muitas vezes, doenças ou deficiências são tratadas como advindas

de uma ou outra procedência, considerando-se os espectadores

capazes de julgar, ou pré-julgar, as situações como se fossem de

todo o conhecimento sobre os casos. Muita confusão ou tristeza é

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gerada na vida de pessoas deficientes ou doentes, cujas dificuldades

têm outras origens que não são as ‘interpretadas’ por pessoas não

conhecedoras de toda a situação” (p. 83).

Esses pré-julgamentos que temos com relação às pessoas

com deficiência viajam pelo nosso inconsciente coletivo, conceito

criado pelo psicólogo suíço Carl Gustav Jung, que colaborou com

Freud, escrevendo diversos artigos e livros de psicanálise, vindo,

posteriormente, a discordar de algumas ideias de Freud e a criar

sua própria abordagem, chamada Psicologia Analítica ou

Psicologia Profunda ou Arquetípica.

Inconsciente coletivo é o nível mais profundo da psique,

que contém o acúmulo de experiências herdadas de espécies

humanas e pré-humanas. Todas as experiências são universais –

aquelas que são repetidas relativamente inalteradas por todas as

gerações –, tornam-se parte da nossa personalidade. O nosso

passado primitivo é a base da psique humana, dirigindo e

influenciando o comportamento presente. Para Jung, o

inconsciente coletivo era o repositório de experiências ancestrais

poderosas e controladoras. Consequentemente, Jung ligava a

personalidade de cada pessoa ao passado, não só à infância, mas

também à história da espécie. Não herdamos essas experiências

coletivas diretamente. Pegando um exemplo bíblico, não

herdamos o medo de cobras, mas sim o potencial para temê-las.

Estamos predispostos a nos comportar e a sentir como as pessoas

sempre se comportaram e sentiram. Essa predisposição pode se

tornar ou não uma realidade, dependendo das experiências

específicas com as quais cada um de nós se depara na vida.

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Vale ressaltar que as experiências antigas contidas no

inconsciente coletivo manifestam-se por temas ou padrões

recorrentes que Jung chamou de arquétipos. Ele também utilizou o

termo imagens primordiais. Existem muitas dessas imagens de

experiências universais, tantas experiências humanas que são

comuns a todos. Repetindo-se na vida de várias gerações

subsequentes, os arquétipos são gravados na nossa psique e

expressos nos nossos sonhos e fantasias.

Trazendo isso para o nosso estudo, não podemos fugir da

questão do preconceito que algumas vezes se instala como fruto

de interpretações do discurso religioso, que também são raízes de

nosso inconsciente coletivo, que apontaram para tempos remotos

de origens do nosso imaginário cultural-religioso, o que, muitas

vezes, influencia nossos conceitos e preconceitos com relação à

doença e às pessoas com deficiência, estabelecendo ligações

inconscientes com o castigo e com o pecado divinamente punido.

Cabe a nós hoje, como seres capazes de refletir, com muito mais

conhecimentos científicos, humanitários e religiosos acumulados,

compreender a influência dessas construções históricas em nosso

imaginário religioso, discernir seu reflexo nos nossos julgamentos

e em nossas atitudes com relação a essas pessoas.

Ranauro e Lima de Sá (1999) observam que “há, em

determinadas comunidades cristãs, muita ênfase na divulgação de

episódios em que as pessoas conseguiram alterar circunstâncias

negativas, difíceis, pelo tanto que exerceram ou exercem sua fé. A

ocorrência dessas possibilidades não implica que todas as

circunstâncias negativas ou difíceis devam ou possam ser alteradas,

pois, a ser assim, deixariam de existir” (p. 86).

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Muitas vezes, ao vermos uma pessoa com deficiência em

nossas comunidades cristãs, já vamos “profetizando” que Deus

pode fazer uma grande obra na vida dela, como se a exigência da

cura ou milagre em relação a determinadas deficiências ou

doenças, no fundo, pudesse esconder uma discriminação e a nossa

dificuldade em aceitar o outro como ele é. Mas esquecemos que

cada um é exatamente como Deus criou. Que, como cristãos,

temos que receber, acolher e integrar nossos irmãos como eles

são. Não podemos esquecer que qualquer pessoa, tendo uma

doença, uma deficiência, ou seja, o problema que for, é uma pessoa

possuidora de uma alma a alcançar a Salvação em Cristo Jesus!

O primeiro passo para termos uma Teologia da Inclusão

será rever nossos próprios conceitos. Rever a visão que temos das

pessoas com deficiência, abandonando conceitos de coitadinhos,

vítimas, a deficiência como consequência de castigos ou pecados.

Abandonar a posição que nós cristãos sempre tivemos de

assistencialistas ou piedade para com essas pessoas, apoiados em

nossas caridades, trazendo-as para serem parte de nossas

comunidades cristãs em total igualdade. Sobretudo, temos que

cada vez mais identificar e eliminar do nosso meio os estigmas

religiosos!

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IV – O “CAMINHAR” DA PESSOA COM

DEFICIÊNCIA DENTRO DO CATOLICISMO

uando planejamos realizar um estudo sobre as pessoas com

deficiência ao longo do Cristianismo, entendemos que, para

um trabalho histórico perto do completo, precisaríamos

focar em todas as igrejas que mantêm a fé cristã, ou seja, o

protestantismo e o catolicismo, que abordaremos neste capítulo.

A história da Igreja católica remonta ao início do

Cristianismo, cerca de dois mil anos atrás. Depois da morte de

Jesus, o Cristianismo se disseminou pelo Oriente Médio e pela

Europa. Naquela época, o império romano dominava aquelas

regiões. Inicialmente os romanos tinham a sua própria religião e

com frequência perseguiam os cristãos, que usavam as

catacumbas como ponto de encontro para seus rituais.

Com sua expansão, no século IV o Cristianismo já tinha

conquistado tantos adeptos que passou a ser a principal religião

romana. A parte ocidental do império romano se desintegrou no

século V, mas o Cristianismo permaneceu forte ali. Os bispos

(dirigentes da Igreja) de Roma adquiriram poder cada vez maior e

se tornaram conhecidos como papas. Contudo, os bispos da parte

oriental do império (chamada império bizantino) discordaram

desses papas. As metades oriental e ocidental da Igreja cristã

acabaram por se separar em 1054. A metade oriental tornou-se a

Q

117

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Igreja ortodoxa e a metade ocidental tornou-se a Igreja católica

apostólica romana.

Comandada por Roma, a Igreja católica foi a mais poderosa

organização da Europa ocidental durante séculos. No século XVI,

no entanto, diversas pessoas começaram a se afastar dela para

formar novas Igrejas cristãs. Esse movimento, chamado Reforma,

gerou o protestantismo. Os países do norte da Europa tornaram-

se predominantemente protestantes, mas o sul do continente

continuou católico na maior parte. Para evitar que o

protestantismo se espalhasse, surgiu o movimento da

Contrarreforma, ou Reforma católica.

Enquanto isso, os colonizadores europeus, principalmente

espanhóis e portugueses, levaram o catolicismo para a América.

Os missionários (pessoas que trabalham para disseminar sua

religião) também ajudaram a espalhar o catolicismo pelo mundo.

O catolicismo é o ramo mais antigo e maior do

Cristianismo. Existem mais de um bilhão de católicos no mundo

inteiro. A Igreja católica apostólica romana é representada pelo

papa, que a dirige a partir do Vaticano, um país que fica dentro da

cidade de Roma, na Itália. Essa Igreja tem uma grande estrutura

espalhada pelo mundo, organizada com cardeais, patriarcas,

arcebispos, bispos, presbíteros ou padres e diáconos, que formam

o clero. Os praticantes da religião são chamados fiéis.

Como todos os cristãos, os católicos baseiam suas crenças

na Bíblia, um livro sagrado que engloba a Torá dos judeus e

começa com a história da criação do mundo por Deus. A Bíblia

cristã tem uma segunda parte, chamada Novo Testamento, escrita

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por cristãos. Os católicos acreditam que Jesus é o Filho de Deus e

também atribuem grande importância à virgem Maria, mãe de

Jesus. Ao contrário dos protestantes, os católicos rezam para

Maria e também para vários santos — homens e mulheres que

eles consideram ter proximidade especial com Deus.

A historiografia de Otto Marques da Silva

Quem quer ingressar ou já atua com pessoas com

deficiência (ou é uma delas!), tem de, obrigatoriamente, ler A

Epopeia Ignorada – A pessoa deficiente na história do mundo de

ontem e de hoje, de autoria de Otto Marques da Silva. Impressa em

1986, publicada pelo Centro São Camilo de Desenvolvimento em

Administração de Saúde – CEDAS, é uma leitura obrigatória, mas,

infelizmente, o livro não teve novas edições.

O interessado precisará procurá-lo em bibliotecas ou com

amigos que disponham da obra. Com 470 páginas, cinco anexos,

dezessete ilustrações, o livro está dividido em duas partes. A

primeira foca a visão, conceitos das deficiências e das pessoas com

deficiência ao longo da Pré-História, História Antiga (egípcios,

hebreus, gregos e romanos), advento do Cristianismo, Império

Bizantino, Idade Média, História Moderna e História

Contemporânea, chegando a 1981 – Ano Internacional das

Pessoas Deficientes. Na segunda parte, Silva escreve sobre as

causas de marginalizações das pessoas com deficiência, o

significado da integração social (política em voga na época!), a

questão da adequação pessoal como objetivo último da

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reabilitação, o preparo para a vida de trabalho, as equipes de

reabilitação, a avaliação e o controle das atividades dos centros e

programas de reabilitação. E tudo isso ele escreve com muita

propriedade, pois, há mais de cinco décadas, Otto é especialista

em inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho.

Já foi diretor e/ou membro de várias instituições e entidades

nacionais e internacionais.

Dessa obra queremos destacar o terceiro capítulo, “O

Cristianismo, o Império Bizantino e a Idade Média em face das

pessoas deficientes”. Em 80 páginas, Silva traz informações

detalhadas das relações entre a Igreja católica e as pessoas com

deficiência. Logo na introdução, ele observa: “Houve, com a

implantação e solidificação do Cristianismo, um novo e mais justo

posicionamento quanto ao ser humano em geral, ressaltando a

importância devida a cada criatura como um ser individual e criado

por Deus, com um destino imortal – o que, sem dúvida, muito

beneficiou os escravos e todos os grupos de pessoas sempre

colocadas de lado e menosprezadas na sociedade romana, tais como

os portadores de deficiências físicas e mentais, antes considerados

como meros pecadores ou pagadores de malefícios feitos em vidas

passadas, inúteis, possuídos por maus espíritos, ou simplesmente

como seres que, em muitos casos, deveriam continuar sendo

eliminados ao nascer, segundo as leis e costumes de Roma

recomendavam havia séculos. No entanto, a História nos conta que

as conquistas do Cristianismo não aconteceram nem com facilidade

nem com tranquilidade. Problemas graves e muito sérios surgiram

desde os primeiros anos e mantiveram-se por três séculos” (p. 154).

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As pessoas com deficiência recebiam dois tipos de

tratamento quando se observa a História Antiga e a Medieval: a

rejeição e eliminação sumária, de um lado, e a proteção

assistencialista e piedosa, de outro. Já no período da Idade Média,

entre os séculos V e XV, encontramos algumas informações e

registros sobre pessoas com deficiência. No Império Bizantino,

uma das mais surpreendentes características da vida em

Constantinopla foi a aplicação prática que sua população deu à

caridade cristã, insistente e aguerridamente defendida pela Igreja

católica. Hussey, em sua obra Cambridge Medieval History,

descreve sobre os miseráveis no “Reino de Deus”: “Os benefícios

espirituais da prestação da caridade naturalmente dependiam da

existência de uma classe à qual essa caridade poderia ser dedicada.

Os ‘’pobres’, portanto, eram uma parte integrante da sociedade. Ao

pedirem esmolas os mendigos gritavam: ‘O paraíso bate à sua porta’

... e esmolas eram dadas com liberalidade. Mendigar era uma

profissão reconhecida, da qual, como de outras profissões, os

intrusos eram expulsos. Os pontos mais valiosos eram preservados

ciumentamente. Cada átrio de igreja era cercado por mendigos,

cuja inoportunidade garantiria um suprimento liberal para seu pão

de cada dia. Mas a caridade organizada transcendia de longe os

limites da ajuda meramente casual. A cidade era com justiça famosa

pelos seus hospitais, seus orfanatos e seus abrigos para idosos e

para carentes”.

A coisa era tão bem organizada nessas instituições que a

família imperial e a nobreza mais refinada tomavam parte ativa.

As mulheres dedicavam-se ativamente à ajuda aos doentes,

inclusive algumas delas chegaram mesmo a adquirir o hábito de

visitar as prisões, que eram os ambientes mais degradantes da

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miséria humana na esplendorosa capital. Como auxiliadora cabia à

Igreja católica a principal responsabilidade por essas

organizações várias que, segundo Silva (1986), “ressalte-se que

somas fabulosas, levantadas em banquetes ou por meio de doações e

legados, eram continuamente destinadas aos cofres da Igreja para

distribuição aos pobres e, segundo os historiadores, essa

distribuição era sempre feita com justiça, conhecimento de causa e

pontualidade dignos de nota” (p. 172).

As relações históricas da Igreja católica com os pobres, os

doentes e as pessoas com as mais variadas deficiências foram

objeto de uma norma em pleno século VI, norma essa que

pretendia assisti-los e ao mesmo tempo circunscrever seus

movimentos a um determinado território. Um documento escrito

por P. Guérin, Les Conciles Généraux et Particuliers (Savaète, Paris,

1868), destaca que foi o concílio de Tours, realizado nos anos 566

e 567, que decretou pelo seu cânone quinto o seguinte: “Cada

cidade alimentará os seus pobres. Os sacerdotes da zona rural e os

habitantes também alimentarão seus pobres, a fim de impedir os

mendigos vagabundos de correr as cidades e as províncias”.

Posteriormente no concílio de Lyon, no ano de 583, aprovou-se,

em seu último cânone, a seguinte medida relacionada aos

hansenianos: “Os leprosos de cada cidade e de seu território serão

alimentados e abrigados às expensas da Igreja, aos cuidados do

bispo, a fim de lhes impedir a liberdade para serem vagabundos em

outras cidades”.

As relações entre pecado, doenças, deficiências como

consequência de punição vinda da parte de Deus continuaram a

existir após o Antigo Testamento. Alguns registros entre os anos

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500 até o século XVI, durante toda a Idade Média, o mundo

europeu perdeu muito dos cuidados básicos com a saúde e com a

higiene na imensa maioria das cidades, um pouco em decorrência

do seu contínuo crescimento. A explosão demográfica fez

surgirem aglomerados urbanos, sem qualquer infraestrutura ou

recurso voltado para a saúde de sua população. Por séculos, os

habitantes das cidades medievais viveram sob o permanente

receio das epidemias ou das doenças mais sérias.

A falta de conhecimentos científicos, medicinais,

sanitários, planejamento urbano, dentre outros motivos, abriu

caminhos para as epidemias, as doenças mais graves, as

incapacidades físicas, os sérios problemas mentais e as

malformações congênitas serem considerados como verdadeiros

sinais da ira celeste e taxados como “castigos de Deus”. Eram

diversas epidemias de gravíssimas consequências, grandes

incidências de males não controlados pelos médicos com quase

nenhum recurso. Hanseníase, peste bubônica, difteria, influenza e

outros males devastaram diversas vezes a Europa durante os

vários séculos da Idade Média e deixaram um significativo saldo

de pessoas que sobreviveram. Muitas delas conseguiram

sobreviver, mas com sérias sequelas, para verem o resto de seus

dias passarem em situações de extrema privação e quase absoluta

marginalidade.

Fazendo suas observações sobre os hospitais em face das

pessoas com deficiência nos séculos XIV e XV, Silva (1986)

considera que, apesar dos tropeços sem fim e da heterogeneidade

das situações encontradas nos diversos países europeus que se

formavam com o gradativo esfacelamento do sistema feudal, o

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atendimento médico de um modo geral progredia – o que

seguramente muito significou para pessoas que sofriam as

consequências de males limitantes. Os hospitais da Idade Média

existiam mais para o cuidado do que para a cura das pessoas.

Menos para alívio do corpo e de suas dores do que para

assistência da alma e sua preparação, considerada indispensável

pelas religiosas que dentro deles trabalhavam, para a vida futura.

Silva (1986) conclui que, “na verdade, não havia na quase

totalidade dos hospitais medievais qualquer conhecimento científico

ou preparo técnico, mas outros ingredientes, tais como o amor ao

próximo e a fé na outra vida, na vida após a morte. Parece, todavia,

que médicos treinados em universidades, principalmente as

inglesas, eram muito mais comuns de se encontrar nos hospitais da

época do que se poderia supor. Dessa forma podemos também

imaginar que, apesar dos relatos transmitidos pelos historiadores

menos avisados, todos os pacientes internados em hospitais

europeus de certa qualidade, seja por doença, seja por pobreza

atroz, seja por deficiências muito graves, recebiam mais cuidado

profissional do que o imaginado. De outra parte pode-se também

afirmar que ao final da Idade Média as sociedades existentes na

Europa deram seus primeiros passos no sentido do reconhecimento

de sua responsabilidade em face dos pobres em geral. Inseridos no

contexto estavam todos aqueles que eram, além de pobres,

deficientes e impossibilitados de se sustentar” (SILVA, 1986, p,

221).

Ao final da Idade Média, século XV, os problemas

específicos das pessoas com deficiência ainda não eram nem

entendidos nem atendidos com propriedade, uma vez que elas

faziam parte de um grupo bem maior e de uma problemática mais

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séria ainda, ou seja, aquela representada pelos pobres, pelos

enfermos, pelos mendigos. Para o historiador Otto Marques da

Silva, “na penosa história do homem com deficiência começava a

findar uma longa e muito obscura etapa. Iniciava a humanidade

mais esclarecida, os tempos conhecidos como ‘Renascimento’ –

época dos primeiros direitos dos homens postos à margem da

sociedade, dos passos decisivos da medicina na área de cirurgia

ortopédica e outras, do estabelecimento de uma filosofia humanista

e mais voltada para o homem, e também da sedimentação de

atendimento mais científico ao ser humano em geral. A Igreja

católica dos primeiros cinco séculos sempre procurou demonstrar

pelos mais diversos meios que essas restrições ao sacerdócio davam-

se para benefício maior da Igreja e não por considerar as pessoas

deficientes como indignas ou manchadas pelo pecado. Ressalte-se

também que quando as deficiências ou males incapacitantes

ocorriam "após a ordenação sacerdotal", a Igreja usava do máximo

de benevolência e em geral não impedia o sacerdote de suas funções

básicas” (SILVA, 1986, pg. 167).

As deficiências físicas como impedimento ao sacerdócio

cristão

Existem os documentos intitulados “Cânones Apostólicos”,

um conjunto de decretos eclesiásticos antigos relativos ao

governo e à disciplina da Igreja Cristã Primitiva, encontrados pela

primeira vez como último capítulo do oitavo livro das

Constituições Apostólicas e pertencentes ao gênero das Ordens da

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Igreja Católica. Elaborados no correr dos três primeiros séculos da

Era Cristã, existem restrições claras ao sacerdócio para aqueles

candidatos que tinham certas mutilações. Para a Igreja surgiam

problemas sérios, durante esses três ou quatro primeiros séculos,

principalmente com mutilações de ordem sexual. Na verdade,

mutilações sexuais eram muito comuns, seja como pretexto para

“fuga do pecado”, seja por castigos impostos pelos tiranos

daqueles distantes séculos. Recorrendo novamente ao documento

Les Conciles Généraux et Particuliers (Savaète, Paris, 1868), seu

autor, P. Guérin, diz que, tentando disciplinar a questão e

esclarecer os bispos quanto à seriedade do problema, o cânone

21º ao 24º indica: “Que não se coloque dificuldade em sagrar como

bispo, se o candidato for considerado capaz, aquele que for eunuco

por natureza, ou que se tornou eunuco por malícia dos homens ou

por crueldade dos tiranos”.

Segundo Silva (1986), logo a seguir o cânone 22º declara

como “irregulares” os casos de sacerdotes que se automutilavam,

porque “eles são homicidas de si mesmos”. Para casos de

sacerdotes que tomavam essas medidas, o cânone 23º castiga com

sua deposição, seu afastamento das funções sacerdotais.

Finalmente o cânone 24º “priva da comunhão pelo período de três

anos o leigo que fez a automutilação sexual” (p. 166).

Outro historiador católico destacado na obra de Otto

Marques da Silva é o padre Louis Thomassin (1619 a 1695), que

em sua obra Ancienne et Nouvelle Discipline de l'Église analisa em

muitos pormenores diversas situações relacionadas aos bloqueios

que as deficiências físicas ou sensoriais significavam para um

homem ser aceito como sacerdote da Igreja católica desde o início

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de sua criação até o final do século V. Segundo Thomassin, um dos

primeiros papas a se manifestar abertamente a esse respeito foi

Hilário, que reinou entre 461 e 468. De acordo com as próprias

palavras do papa, na Igreja católica não deveria haver dois tipos

de sacerdotes: nem o analfabeto nem o que não tivesse alguma

parte de seus membros.

No século V houve posicionamentos de dois concílios,

confirmando inclusive a posição do papa Hilário, citada no

documento de Guérin: o concílio realizado em Angers, em 453,

estabeleceu em seu cânone terceiro uma forte medida contra

sacerdotes que adotavam procedimentos cruéis, muito

generalizados no seio da população, acostumada com barbáries

sem conta: “São proibidas as violências e as mutilações de

membros”. O concílio realizado em Roma no ano 465, reunido sob

a autoridade do papa Hilário, aprovou por aclamação cinco

cânones. Um deles, o de número três, diz com clareza: “Deve-se

também excluir das ordens aqueles que não sabem ler, ou que

deceparam algum membro”.

Voltando à obra de Thomassin, veremos que Gelásio I,

papa que reinou de 492 a 496, reafirmou a mesma orientação de

Hilário e do Concílio de Roma contra a aceitação de sacerdotes

com deficiências, afirmando em uma carta ao bispo de Lucânia

que candidatos ao sacerdócio não poderiam ser nem analfabetos

nem “ter alguma parte do corpo incompleta”. Esse mesmo papa

afirmava ainda, muito convicto dessas justificativas para essa

atitude de bloqueio a pessoas com defeitos ou problemas físicos,

que “se trata de uma antiga tradição e um costume observado

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desde muito tempo em Roma; mais do que isso, que se trata de um

desses louváveis costumes que a Igreja emprestou da Sinagoga”.

Em suas observações, Silva (1986) diz que “existem

histórias até de automutilação, destinada a caracterizar uma

irregularidade, como no caso de Amônio, um santo eremita que, ao

se perceber praticamente ‘ameaçado’ pelo povo de ser elevado à

dignidade do bispado, tomou uma providência extrema: cortou uma

de suas orelhas. Todavia, as pessoas que o haviam procurado na

tentativa de fazê-lo bispo ficaram sabendo posteriormente que

aquela mutilação seria apenas válida dentro da religião judaica e

não para os cristãos. Assim sendo, voltaram a insistir com o mesmo

propósito. Tiveram, todavia, uma surpreendente decepção, pois o

eremita, muito resoluto em sua posição de humildade, de faca em

punho ameaçou cortar a própria língua na frente deles,

conseguindo dessa forma dissuadi-los. Caso tivesse efetivado sua

ameaça, Amônio estaria incapacitado inclusive para ser sacerdote”

(pp. 167-168).

Avançando na história, veremos que os bloqueios

interpostos pela Igreja católica para pessoas com deficiência se

tornarem sacerdotes continuavam inabaláveis durante o século

XVIII. Exemplos práticos nos são relatados por M. André, doutor

em direito canônico e membro de diversas sociedades de sábios

do final do século XIX, em adição à obra de Thomassin (Ancienne &

Nouvelle Discipline de l'Église) que fora escrita ao final do século

XVII. Silva (1986, p. 259) destaca alguns dos mais significativos,

citados ao final do capítulo sobre as irregularidades relacionadas

aos defeitos de nascimento, mostrando a posição quase inalterada

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da Igreja católica na aceitação de pessoas com deficiência para o

exercício do sacerdócio até o século XVIII:

no dia 20 de janeiro de 1789 a Sagrada Congregação

recusou concordar com a ascensão às santas ordens de um

clérigo “manco” da diocese de Albenga, na Ligúria;

o padre François Pujol, da diocese de Vincennes, na

França, tendo sofrido um acidente vascular cerebral,

perdeu o uso do braço e da mão esquerdos; solicitou ao

bispo a dispensa da irregularidade para exercício das

funções sacerdotais e para celebrar a missa numa capela

privada. Embora seu bispo tenha apoiado sua consulta, a

Sagrada Congregação recusou o pedido no dia 19 de

agosto de 1797;

o seminarista Ambroise Lamberti, da diocese de Albenga,

tinha um problema de movimentação da perna esquerda,

de tal forma que precisava andar com o apoio contínuo de

uma bengala. O bispo da Diocese foi consultado a respeito

e opinou que haveria graves inconvenientes em promovê-

lo às sagradas ordens, no que foi apoiado pela Sagrada

Congregação no dia 20 de janeiro de 1798;

o sacerdote Philippe Maggiorani, da diocese de Borgo San-

Sepolcro, na Toscana, teve sua mão esquerda de tal forma

mutilada pela acidental explosão de espingarda

excessivamente carregada, durante uma caçada, que foi

necessário amputar parte do braço para evitar sua morte.

Solicitou dispensa da irregularidade para prosseguimento

de seus trabalhos como sacerdote e esta lhe foi negada em

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18 de junho de 1785. No ano de 1787 apresentou uma

nova e humilde solicitação, acompanhada do parecer

favorável de seu bispo e do total apoio de seus

paroquianos. No entanto, a Sagrada Congregação, depois

de haver submetido o assunto à consideração pessoal do

papa, manteve a recusa à dispensa de irregularidade por

um decreto de 7 de julho de 1787.

Essa é uma questão permanentemente discutida por

autoridades eclesiásticas, tendo já merecido o posicionamento de

papas e concílios e um lugar permanente no Código de Direito

Canônico; o problema das deficiências físicas e sensoriais nos

sacerdotes ou nos bispos ao longo da história da Igreja católica

chega ao século XX, quando esse Código continuou impedindo

candidatos ao sacerdócio católico que apresentassem defeitos. Nos

chamados “defeitos corporais”, segundo a disciplina da Igreja

católica, a irregularidade não é um castigo, mas um dos meios

encontrados através dos séculos para preservar a dignidade do

estado sacerdotal e para a exclusão daqueles que não têm

capacidade para essas funções. Ou seja, como irregulares, são

“corporalmente defeituosos que por fraqueza não podem exercer as

funções do altar com segurança ou que por deformidade não o

puderem fazer com dignidade. Quem se torna defeituoso depois de

legitimamente ordenado, só pode ser impedido no exercício de suas

funções se o defeito for notável. Não se proíbem, porém, atos que,

apesar dos defeitos, puderem ser exercidos convenientemente”,

explica Jone-Fox no texto Compêndio de Moral Católica.

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TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br

Se a deficiência ocorresse após a ordenação, as normas

eram bastante condescendentes: quem estivesse quase cego,

poderia obter do papa dispensa para celebrar a chamada missa

“de beata”, ou a missa cotidiana dos defuntos; se um sacerdote

ficasse completamente cego, só poderia rezar a missa com a

assistência de outro sacerdote. O sacerdote que não conseguisse

ficar em pé junto ao altar, ou que pudesse assim permanecer

apenas com o uso de muletas ou apoio especial, só poderia

celebrar missa privadamente e nunca em público. Isso também

era verdadeiro para o sacerdote que sofresse de hanseníase ou

doença grave. Nos casos de epilepsia e de psicopatias ocorria

também a irregularidade, dependendo do bispo local ou das

autoridades eclesiásticas constituídas a permissão do exercício de

suas funções sacerdotais, depois de curados ou de terem o mal sob

controle.

Conforme observa Silva (1986), “é evidente que existe

nesses regulamentos da Igreja católica grande preocupação pela

aparência física de seus ministros, mas, muito mais do que isso, o

firme propósito de não levar os fiéis a se distrair ou a desconsiderar

seus serviços, sua palavra e os atos litúrgicos. Em diversas

cerimônias litúrgicas da Igreja católica é fundamental ao sacerdote

poder ajoelhar-se e levantar-se diversas vezes, em atos de adoração;

é básico também que tenha a mão direita para distribuir a

comunhão ou para dar a bênção” (p. 307).

Sacerdotes que quebraram a regra

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Mesmo com restrições não permitindo a pessoas com

deficiência exercer o sacerdócio, sempre houve casos que

quebraram as regras, até mesmo em outras denominações cristãs.

É o caso de Dídimo, o Cego (ca. 313 d.C.-ca. 398 d.C.), um

teólogo da Igreja Copta de Alexandria, cuja famosa escola

catequética dirigiu por meio século. Diversas Igrejas ortodoxas se

referem a ele como “São Dídimo, o Cego”. Mesmo perdendo a visão

aos quatro ou cinco anos de idade, quando iniciava seus estudos,

graças a sua grande vontade de aprender, gravou o alfabeto em

madeira e depois aprendeu pelo tato as letras, as sílabas, as

palavras e depois frases inteiras. Ouvia professores célebres,

quando já era moço. Pessoas se prontificavam a ler para ele, a fim

de tomar conhecimento dos melhores livros. Quando seus leitores,

cansados, adormeciam, ele meditava muito sobre o que acabara

de ouvir e assim gravava o assunto em sua memória, acumulando

conhecimentos em regras de linguagem e da gramática, belos

trechos dos poetas e dos oradores, bem como noções de retórica.

Tornou-se um ótimo conhecedor de assuntos humanos, das

Sagradas Escrituras, do Antigo e do Novo Testamento. Dídimo

começou a explicar a Bíblia, trecho por trecho, das mais variadas

maneiras. Dominava a dogmática da Igreja católica, discutindo-a

com precisão e muita propriedade. Conhecia a filosofia de Platão e

de Aristóteles, a geometria, a música, a astronomia e as diferentes

opiniões dos filósofos.

Quando chegou à Alexandria, atraiu muito a atenção e

recebia várias visitas de pessoas que queriam ouvi-lo. Ao

ingressar no serviço para a Igreja, foi colocado como líder da

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Escola Catequética de Alexandria, onde vivia e trabalhou do ano

345 até 395.

Dídimo pregava a salvação universal, escrevendo que, “na

liberação de todos, ninguém permanece cativo” e acreditando que

o castigo divino tem natureza corretiva e educativa. Jerônimo, que

se referia a Dídimo não como “cego”, mas como “vidente”,

escreveu que ele “ultrapassava todos de seu tempo em

conhecimento das escrituras”; Sócrates Escolástico depois o

chamou de “o grande bastião da verdadeira fé”. Dídimo era visto

como um professor cristão ortodoxo, sendo muito admirado e

respeitado até o fatídico ano de 553 d.C., pelo menos.

Certa vez, Dídimo recebeu a visita de Santo Antão – santo

cristão do Egito, líder de destaque entre os padres do deserto,

cultuado em muitas igrejas –, que lhe perguntou se a cegueira o

incomodava. Dídimo teve vergonha de responder e de confessar

sua fraqueza. Mas Santo Antão repetiu a pergunta uma segunda

vez, e à falta da resposta perguntou uma terceira. Dídimo

confessou que sim, a cegueira o afligia, o bloqueava. Santo Antão

lhe disse naquela oportunidade: “Admiro-me muito que um homem

sábio como você se aflija de haver perdido aquilo que as formigas e

as moscas possuem, em vez de se alegrar de ter o que os santos e os

apóstolos tinham. É mais importante preocupar-se com a alma do

que com esses olhos dos quais um só olhar poderá perder o homem

eternamente”.

De acordo com Paládio, bispo e historiador do século V

d.C., Dídimo continuou leigo toda sua vida e se tornou um dos

mais cultos ascetas de seu tempo.

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Dentro da Igreja católica também houve um bonito

registro, referente ao padre Lejeune, considerado o maior

pregador do século XVII. Nascido em Poligny (França), Lejeune

perdeu a visão aos 43 anos de idade, quando pregava durante a

quaresma na cidade de Rouen. A cegueira não diminuiu sua

competência de grande orador nem sua alegria sempre muito

natural.

Há muito poucos dados biográficos sobre esse padre. Mas

sabemos que ele morreu aos 80 anos de idade, muito ativo e vivaz.

A solidez de suas ideias e o seu estilo levaram o prelado e ao

mesmo tempo grande pregador das cortes de Luís XIV e Luís XV,

Massillon, a recomendar a muitos seminaristas e jovens

sacerdotes o estudo de seus maravilhosos sermões publicados em

dez volumes sob o título de Le Missionaire de l'Oratoire, entre

1662 e 1676.

Nicolau, as pessoas com deficiências intelectuais e a

Inquisição

São raras as fontes documentais sobre pessoas com

deficiencias físicas ou intelectuais em épocas anteriores à Idade

Média. Sabemos que elas eram consideradas subumanas, o que

legitimava sua eliminação ou abandono, prática perfeitamente

coerente com os ideais atléticos e clássicos, além de classistas, que

serviam de base à organização sociocultural de Esparta e Grécia.

Com o Cristianismo, quando Jesus Cristo pregou o amor e a

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necessidade de se cuidar dos excluídos, na Europa, as pessoas com

deficiência, inclusive as deficiências intelectuais, ganharam status

de pessoa, no plano civil, e alma, no plano teológico, após a difusão

europeia da ética cristã.

Exemplo da influência dos ideais cristãos de vida sobre a

sorte das pessoas com deficiência foi a de Nicolau, bispo de Myra,

nascido na segunda metade do século III e falecido no dia 6 de

dezembro de 342. Tido como acolhedor dos pobres e

principalmente das crianças carentes, preocupava-se com a

educação e a moral tanto das crianças como de suas mães.

Conhecido por inspirar a figura do “Papai Noel” e considerado

como o primeiro santo da igreja, já no século IV da era cristã se

notabilizou por acolher e alimentar crianças com deficiência

abandonadas.

Com a iniciativa de Sao Nicolau e com o advento do

Cristianismo, pessoas com deficiência “ganham almas” que,

segundo Pessotti (1984), “graças à doutrina cristã os deficientes

começam a escapar do abandono ou da ‘exposição’, uma vez que,

donos de uma alma, tornam-se pessoas e filhos de Deus, como os

demais seres humanos. É assim que passam a ser, ao longo da Idade

Média, les enfants du bon Dieu, numa expressão que tanto implica

a tolerância e a aceitação caritativa quanto encobre a omissão e o

desencanto de quem delega à divindade a responsabilidade de

prover e manter suas criaturas deficitárias” (p. 8).

Essa igualdade de status moral ou teológico não

corresponderá, até a época do iluminismo, a uma igualdade civil,

de direitos. Dotado de alma e beneficiado pela redenção de Cristo,

o deficiente mental passa a ser acolhido caritativamente em

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conventos ou igrejas, onde ganha a sobrevivência, possivelmente

em troca de pequenos serviços à instituição ou à pessoa

“benemérita” que o abriga.

Isso porque as pessoas com deficiência e os pobres

passaram ao longo dos séculos por assistência suscitando atitudes

que vão desde a piedade até o desprezo. Mas, segundo Walber e

Silva (2004), muitas vezes, pela própria condição de pobreza, ou

pelas condições físicas de deficiência e doença, recebiam

comiseração, já que eram “alvo” da boa ação de outras pessoas,

“nos modos específicos da ‘gestão da pobreza’, na economia da

salvação: mesmo desprezado, o pobre pode, aceitando sua condição

de pobreza, auxiliar os ricos para que esses pratiquem a caridade –

a ‘suprema virtude cristã’ – e obtenham assim a salvação. Dessa

forma, os pobres também obteriam a sua própria salvação. A

pobreza torna-se, portanto, um valor de troca na economia da

salvação, assim como a doença e o sofrimento, prova inconteste da

pobreza não só econômica, mas física. Doença e deficiência tornam-

se também um valor de troca nessa economia de salvação e na

possibilidade de obter auxílio da comunidade. Observa-se assim que

pessoas doentes e com deficiência devem permanecer na condição

de pessoas de segunda classe para continuar recebendo auxílio. Por

outro lado, a prática assistencialista que valoriza esse tipo de

relação mantém e fixa as pessoas na posição de subalternas”.

Só que surgem as variações da noção teológica de cristão

implicando uma doutrina do pecado e da expiação,

correspondendo a condutas clericais diversas, diante das pessoas

com deficiências intelectuais, segundo a teologia da culpa que

cada corrente do Cristianismo, ortodoxa ou herética, adotará. Se,

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de um lado, como enfant du bon Dieu essas pessoas ganham

abrigo, alimentação e conforto em conventos ou asilos, de outro,

como cristão, é passível de alguma exigência ética ou de alguma

responsabilidade moral e a ter exigências éticas e religiosas. Ou

seja, era como se, enquanto o teto protege o cristão, as paredes

escondessem e isolassem o incômodo ou inútil. Surge o capítulo

sombrio da Inquisição.

Em nossas revisões históricas não temos como não

abordar o assunto da Inquisição, referente às várias instituições

dedicadas à supressão da heresia no seio da Igreja católica. A

Inquisição medieval, da qual derivam todas as demais, foi fundada

durante os séculos XII e XIII para preservar a disciplina

eclesiástica internamente. Visava inicialmente combater o

sincretismo entre alguns grupos religiosos, que praticavam a

adoração de plantas e animais e utilizavam mantras. No século XIX

os tribunais da Inquisição foram suprimidos pelos Estados

europeus, mas foram mantidos pelo Estado pontifício. Em 1908,

sob o papa Pio X, a instituição foi renomeada “Sacra Congregação

do Santo Ofício”. Em 1965, durante o pontificado de Paulo VI e em

clima de grandes transformações na Igreja após o papado de João

XXIII, por ocasião do Concílio Vaticano II, assumiu seu nome atual

– “Congregação para a doutrina da Fé”.

No século XV, a Inquisição mandou para a fogueira os

hereges, que eram considerados loucos, feiticeiras, adivinhos,

criaturas bizarras ou de hábitos estranhos ou pessoas com algum

tipo de deficiência, principalmente intelectuais, por serem vistas

como possuídas por espíritos malignos ou loucas. Em cartas

papais daquele período podem ser encontradas orientações de

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como identificar e tratar tais pessoas: “A estes, se recomendava

uma ardilosa inquisição, para obtenção de confissão de ‘heresia’,

torturas, açoites, outras punições severas, até a fogueira”.

Até o século XVI, crianças com deficiência intelectual grave

eram consideradas como possuídas por seres demoníacos. Mesmo

renomados intelectuais, até fora da Igreja católica, acreditavam

que era o demônio que estava ali presente. Importantes figuras da

Reforma protestante também a perfilharam, como Lutero,

Melanchthon e, notoriamente, Calvino, que comandou

pessoalmente a caça às bruxas em Genebra, no ano de 1545, da

qual resultou a execução de 31 pessoas, o que é um total até

reduzido à vista dos milhões ou do meio milhão de pessoas

queimadas, na Europa, entre os séculos XIV e XVII, por acusação

de intercâmbio com demônios ou forças do mal.

A rigidez luterana, que encontra em Calvino seu “cruzado”,

não permite que se trate sem castigo quem é objeto eletivo da

cólera justiceira e justa de Deus ou, pior ainda, presa de Satanás.

Não é difícil inferir o tratamento dado a idiotas, imbecis e loucos

durante a Reforma. A rigidez ética carregada da noção de culpa e

responsabilidade pessoal conduziu a uma marcada intolerância

cuja explicação última reside na visão pessimista do homem,

entendido como uma besta demoníaca quando lhe venham a faltar

a razão ou a ajuda divina. É o que Pintner (1933) chamou de

“época dos açoites e das algemas” na história da deficiência

mental. O homem é o próprio mal quando lhe faleça a razão ou lhe

falte a graça celeste a iluminar-lhe o intelecto; assim, dementes e

amentes são, em essência, seres diabólicos.

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Martinho Lutero, um monge agostiniano germânico e

professor de teologia que se tornou uma das figuras centrais da

Reforma Protestante, em um de seus escritos, negou a própria

natureza humana de uma criança com retardo mental de alguma

seriedade: “Há oito anos vivia em Dessau um ser que eu, Martinho

Lutero, vi e contra o qual lutei. Há doze anos, possuía vista e todos

os outros sentidos, de forma que se podia tomar por uma criança

normal. Mas ele não fazia outra coisa senão comer, tanto como

quatro camponeses na ceifa. Comia e defecava, babava-se, e quando

se lhe tocava, gritava. Quando as coisas não corriam como queria,

chorava. Então, eu disse ao príncipe de Anhalt: se eu fosse o

príncipe, levaria essa criança ao Moldau que corre perto de Dessau

e a afogaria. Mas o príncipe de Anhalt e o príncipe de Saxe, que se

achava presente, recusaram seguir o meu conselho. Então eu disse:

pois bem, os cristãos farão orações divinas na igreja, a fim de que

Nosso Senhor expulse o demônio. Isso se fez diariamente em Dessau,

e o ser sobrenatural morreu nesse mesmo ano...” (apud PESSOTTI,

1984, p. 11).

Para Martinho Lutero, essa criança de doze anos era

apenas uma massa de carne sem alma, que “o demônio possui esses

retardados e fica onde suas almas deveriam estar”. A confusão

entre ser humano tomado pelo demônio e ao mesmo tempo

“sobrenatural”, que “morre”, por efeito de preces que se

destinavam a salvá-lo pela “expulsão do demônio”, revela a

curiosa natureza do deficiente mental na teologia de Lutero. Em

verdade, trata-se de uma concepção primária e tendenciosa, a

misturar a fúria depuradora à oração caritativa, um purismo

mórbido a uma concepção mitológica e fanática do deficiente

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mental: afogá-lo ou orar por ele são práticas igualmente eficazes e

igualmente morais.

A caracterização do conceito luterano de deficiência

intelectual nos serve mais que tudo, aqui, como o modelo inteiro e

definitivo de visão medieval do problema.

A identidade sobrenatural dos amentes (e também dos

dementes, em alguns aspectos) é a marca da superstição, a

caracterizar toda a “teoria” e prática medieval em relação ao

deficiente mental de qualquer tipo ou nível. Não fogem a essa

marca os promotores da contrarreforma católica, como não lhe

escapava a hierarquia eclesiástica pré-reforma.

A reação contra a crueldade católica e luterana no trato

dos dementes e amentes começou a mudar, mesmo ainda pautada

por superstição, pela obra de duas figuras típicas da cultura do

início do século XVI: os alquimistas Paracelso Philipus Aureolus

(1493-1541) e Jerônimo Cardano (1501-1576).

Paracelso rejeitava as obras ditas diabólicas, embora

acreditasse na magia, na astrologia e na alquimia como recursos

para conhecer desígnios extranaturais ou, de todo modo, sobre-

humanos, e para utilizar propriedades ocultas das substâncias e

dos astros. Mesmo sendo um alquimista, como médico, Paracelso

não podia ignorar que demência e amência podiam também

resultar de traumatismos e doença. Ao escrever a obra Sobre as

doenças que privam os homens da razão, em 1526, ele também foi

vítima da intolerância eclesiástica, na reformulação da visão

medieval da deficiência mental. Essa obra foi publicada em edição

póstuma em 1567, mostrando pela primeira vez uma autoridade

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da medicina, reconhecida por numerosas universidades, em uma

visão ainda supersticiosa, mas não teológica. As pessoas com

deficiência ou doenças mentais deixaram de serem consideradas

perversas, criaturas tomadas pelo diabo e dignas de tortura e

fogueira por sua impiedade ou obscenidade, passando a ser

consideradas doentes ou vítimas de forças sobre-humanas,

cósmicas ou não, e dignas de tratamento e complacência.

Não é muito diversa a contribuição de Jerônimo Cardano,

unindo ao misticismo neoplatônico a magia, a astrologia e a

cabala, professando também sua crença em poderes especiais e

em forças cósmicas que podem ser responsáveis por

comportamentos inadequados. Para ele loucos e deficientes eram

vítimas de tais poderes e, por vezes, até dotados de poderes

mágicos desordenados, o que os tornava merecedores de atenção

médica.

Além dessa postura enriquecida pela preocupação

pedagógica com a instrução das pessoas com deficiências mentais,

graças a Paracelso Cardano a insensatez começa a ceder terreno

ao bom senso.

Os leprosários da Idade Média e o novo destino de pessoas

com deficiências intelectuais

A hanseníase no pós-Bíblia continuou causando muitas

mutilações, outros tipos de deficiências e, consequentemente,

muito estigma, devido à periculosidade que apresentava e ao

pavor de suas consequências. Popularmente conhecida como

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“lepra”, já existia no Egito e na Índia muitos séculos antes da Era

Cristã e foi diagnosticada por gregos e árabes. Levada para toda a

Europa pelos soldados romanos, espalhou-se mais ainda durante

a época das Cruzadas. Desde os tempos mais remotos existiu uma

variedade de males dermatológicos considerados como

contagiosos. Dentre eles destacava-se evidentemente a

hanseníase, mas com ela confundiam-se a psoríase, a escabiose e o

ergotismo.

Na Idade Média, quando um homem era declarado

“leproso” tinha apenas um destino: banimento da sociedade e do

convívio de seus familiares pelo resto da vida. Para tal fim a

sociedade armava-se de certas cautelas, sendo uma delas o

estabelecimento de uma comissão responsável pelo

reconhecimento do mal. Nessa comissão estavam

obrigatoriamente incluídos um médico e um hanseniano. Silva

(1986) observa que em “muitos casos foram vítimas de

diagnósticos mal formulados. Os casos de ergotismo, por exemplo,

apresentavam mutilações seríssimas nos dedos devido à gangrena.

Era um mal causado pelo uso continuado de farinha de centeio com

fungos venenosos e que em sua forma gangrenosa levava a

amputações muito sérias dos dedos. Se o resultado do exame do

doente suspeito de ‘lepra’ fosse positivo, rezava-se uma missa de

Réquiem sobre o doente, o que correspondia a um sepultamento

simbólico. Era então conduzido para fora da cidade e no caminho o

sacerdote, acompanhado de um acólito que tocava uma matraca,

dava orientações básicas ao doente, repassando as proibições que

iriam marcar sua vida futura” (p. 211).

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Para essas pessoas eram impostas tais proibições: entrar

em igrejas, mercados, moinhos, padarias ou qualquer lugar

público; lavar as mãos ou o corpo em qualquer riacho ou fonte

(devia saciar sua sede usando uma caneca de sua propriedade

exclusiva); sair às ruas sem as vestes identificadoras do leproso e

sem calçados; tocar em objetos que desejava comprar (devia

apontar com um bastão); tocar os beirais das pontes ou batentes

de portas (devia ter as mãos cobertas); tocar ou ter relações

sexuais com qualquer pessoa, inclusive sua própria esposa; comer

ou beber na companhia de qualquer pessoa que não fosse leprosa.

Existiam os “lazaretos” ou “leprosários”, onde alguns

conseguiam vaga. Outros passariam o resto de seus dias

“espalhando o terror da doença, mendigando por comida e por

bebida. Muitas vezes identificado por roucos gritos de ‘impuro,

impuro’, o temido ‘leproso’ era também reconhecido por sinetas,

matracas ou pequenas cornetas. A esmola a eles destinada era

colocada às carreiras no meio das vielas ou dos campos. Foram por

séculos marcados e a marca mais forte e evidente ficava nas roupas

que eram obrigados a usar, nas cores cinza ou preta. Deviam usar

chapéus ou capuzes e às vezes faixas vermelhas. Épocas houve na

Europa durante as quais eles eram obrigados a levar ao peito um

tecido vermelho com desenhos característicos” (SILVA, 1986, p.

211).

Só na França dos séculos XII e XIII havia em torno de dois

mil “lazaretos” que se destinavam apenas à segregação e nunca ao

tratamento dos doentes, enquanto na Europa inteira, devido à

extensão do problema, havia aproximadamente 19 mil desses

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abrigos, todos separando duramente seus doentes da sociedade e

deixando que morressem sem qualquer assistência.

Muitos desses locais abrigavam não só os ditos “leprosos”,

mas também outras pessoas indesejadas da sociedade. Entre elas

estavam pessoas com deficiências intelectuais que, mesmo livres

da sanha inquisitorial e da intolerância religiosa, continuavam

sem atendimento educacional. Consideradas inútis para a lavoura

e o artesanato e consumidoras improdutivas da renda familiar,

essas pessoas não tinham outro destino senão o asilo, onde eram

protegidas dos raios e das chuvas, ganhavam alguma alimentação

e deixavam em santa paz a família e a sociedade. Era o caminho

mais cômodo para se livrar do “problema”, mesmo com as

afirmações de homens como Paracelso, Cardano e John Locke

(1632-1704), dizendo que as pessoas com deficiências

intelectuais poderiam ser treinadas ou educadas para várias

atividades.

Após a abolição da Inquisição, a opção intermediária foi a

segregação, não punindo nem abandonando essas crianças e

pessoas, mas também não se sobrecarregava o governo e a família

com sua incômoda presença. Pessotti (1984) observa que “o

apego residual do século XVIII a uma noção fatalista da deficiência

parece uma desesperada tentativa de isentar a família e o poder

público do dever de educar os amentes e criar instituições

adequadas para isso. Já não se pode, justificadamente, delegar à

divindade o cuidado de suas criaturas deficitárias, nem se pode, em

nome da fé e da moral, levá-las à fogueira ou às galés. Não há mais

lugar para a irresponsabilidade social e política diante da

deficiência mental, mas, ao mesmo tempo, não há vantagens, para o

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poder político e para o comodismo da família, em assumir a tarefa

ingrata e dispendiosa de educá-lo” (p. 26).

A Europa na Idade Média enfrentou devastadoras

epidemias de lepra. Inúmeros hospitais ou leprosários, também

chamados hospícios, foram construídos pela nobreza, às vezes

com uma suntuosidade que pareceria irônica. Obras-primas da

arquitetura ou meros casarões, sua função era abrigar e alimentar

o cristão enfermo e, ao mesmo tempo, afastá-lo do convívio social.

Era preciso, mesmo com esse dilema social, respeitar e

socorrer o cristão marginal ou aberrante e, em contrapartida,

livrar-se do inútil, incômodo ou antissocial. Surgiram grandes

hospitais, como o de Bicêtre e a Salpêtrière em Paris, Bethleheni

na Inglaterra, e muitos outros no resto da Europa se abriram para

acolher piedosa e cinicamente, em total promiscuidade,

prostitutas, idiotas, loucos, "libertinos", delinquentes, mutilados e

"possessos" que só na Salpêtríêre perfaziam, em 1778, um total de

oito mil pessoas.

Richard Baxter, um pastor entre o ministério e suas

enfermidades

Richard Baxter nasceu no dia 12 de novembro de 1615, na

casa do avô materno, no vilarejo rural de Rowton, e logo foi

batizado na paróquia Saint Michael. Os primeiros dez anos da sua

vida foram gastos nesse campo inglês, na casa dos avós, pois seu

pai era viciado tanto em bebida quanto em jogos de azar e vivia

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acompanhado de dívidas. Onze anos após o nascimento do jovem

Baxter, seu pai se converteu através da leitura particular da

Palavra de Deus e o chamou para morar com ele. Mais tarde,

Baxter lembrava que as conversas sérias, sobre Deus e a

eternidade, direcionadas a ele pelo pai, foram os primeiros

instrumentos que Deus usou para despertar nele a convicção.

Ao se iniciar no ensino formal, dos quatro instrutores que

tivera em seis anos, dois levavam vidas imorais, outro era

beberrão e todos eram ignorantes. Mesmo assim Baxter tinha uma

mente ágil e, através da leitura e estudo próprio, avançou em sua

educação autodidata. Durante uma longa doença, pela influência

de vários livros, ele se sentiu chamado ao ministério. Pouco

depois, com quinze anos de idade, foi profundamente influenciado

pelas obras de Richard Sibbes, que o fez entender como era

precioso a Jesus Cristo.

Aos 16 anos de idade, ele se transferiu para a escola em

Wroxeter e estudou ali por três anos. Foi então que o pregador

erudito Francis Garbet realmente tomou interesse no seu jovem

aluno e ajudou-o grandemente a avançar em sua educação. Ao sair

de Wroxeter, teve a oportunidade de estudar em Oxford, mas não

o fez, pois o diretor da escola em que estudava o persuadiu a

continuar a educação com um amigo, o capelão Richard

Wickstead. Wickstead o ensinou com muita má vontade por 18

meses. Até o seu último dia, Richard Baxter se arrependia dessa

decisão de deixar Oxford a favor do Wickstead.

Em 1633 se deslocou para Londres com o pretexto de

iniciar estudos, a fim de se tornar um advogado, permanecendo

apenas quatro semanas. Tanto a vida frívola em Londres como o

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enfraquecimento da sua mãe o levaram de volta à cidade em que

morava com os pais, inteiramente certo de que um dia seria

pastor. A doença da mãe continuou por pouco tempo; ela faleceu,

menos de um ano depois da volta de Richard. Os próximos quatro

anos foram dedicados ao estudo particular de teologia.

Aos 23 anos de idade, Richard Baxter foi consagrado. Por

nove meses, trabalhou como diretor da escola em Dudley e depois

se tornou pastor assistente em Bridgenorth, não muito longe da

casa dos avós maternos. Aos 25 anos, teve início seu ministério

mais famoso, que duraria 20 anos, em Kidderminster. Foi ali

também que começou a produzir livros. Certa vez ele comentou:

“Meus escritos são a minha maior obra diária”. Ele trabalhou

arduamente, mesmo com as dores crônicas que o acompanharam

desde os 21 anos.

Duas vezes por semana, ele ensinava o catecismo e ia de

casa em casa visitando os membros da sua igreja, uma hora por

semana. Essas visitas domiciliares deram frutos e foram raros os

membros que não foram comovidos a serem mais fiéis através do

aconselhamento pastoral do Richard Baxter. Ao sair de

Kidderminster, comentou que, dos 600 membros da igreja, tinha

dúvidas acerca da salvação de apenas 12. A sua carreira em

Kidderminster findou-se abruptamente em 1661, quando foi

expulso da Igreja da Inglaterra por não se conformar às regras. Foi

nesse período, depois de sua expulsão, que se casou com Margaret

Charlton, uma jovem de 20 e poucos anos. Com quase 30 anos de

diferença, Richard Baxter descobriu que não havia outra igual a

ela em questão da santidade. Ele relatava todos os casos que

pesavam no seu coração e consciência, e ela o confortava. O

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casamento durou 20 anos e chegou ao fim com a morte de

Margaret.

Nos 10 anos anteriores a sua morte, Richard Baxter

pregava e escrevia muito, mas nunca mais assumiu uma

congregação. Três vezes foi preso por pregar e enfrentava

perseguição constante do Supremo Magistrado Jeffreys – o mesmo

que cerrou Bunyan na prisão durante 16 anos por dissensão.

Durante os anos de perseguição e doenças crônicas, Baxter

produziu a maior parte dos 168 impressos religiosos de sua vida,

dos quais 141 são livros.

Dizem seus biógrafos que, como muitos outros gigantes

espirituais, Baxter foi marcado pela doença. Desde a mocidade até

o fim de seus dias ele foi afligido por constantes e variadas

enfermidades, um homem literalmente enfermo da cabeça aos

pés. Padeceu com dores reumáticas, tinha problemas estomacais,

frequentes hemorragias no nariz, dentre outras manifestações.

Baxter foi tratado por mais de 35 médicos, sem muito resultado, o

que o levou a evitá-los. Suas muitas enfermidades, entretanto, não

o impediram de ser um servo reconhecidamente mais útil e

produtivo do que milhares que desfrutam de perfeita saúde.

Em 1689, o Ato de Tolerância permitiu que Baxter

pregasse e escrevesse com liberdade. Naquela ocasião, ele se

deslocou para Charterhouse Square e logo após faleceu, no dia 8

de dezembro de 1691.

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O assistencialismo dos jesuítas em terras brasileiras

A Companhia de Jesus, em linhas gerais, era uma

sociedade missionária fundada em 1534 por Santo Inácio de

Loyola (1491-1556) com o objetivo de defender o catolicismo

contra a Reforma Protestante na Europa e difundi-lo nas novas

terras do Ocidente e do Oriente. Obteve um rápido crescimento,

alcançando grande prestígio e poder, tornando-se a instituição

religiosa mais influente em Portugal e nas colônias portuguesas.

Os primeiros jesuítas chegaram ao Brasil em 1549, comandados

pelo padre Manuel da Nóbrega (1517-1570), e dedicaram-se à

catequese indígena e à educação dos colonos. Entre os séculos

XVII e XVIII, construíram igrejas e fundaram colégios,

organizaram a estrutura de ensino, baseada em currículos e graus

acadêmicos, e estabeleceram as primeiras “reduções” ou

“missões” - aldeamentos onde os nativos eram aculturados,

cristianizados e preservados da escravização colonial. A maioria

dessas missões foram criadas na região Sul, próximo aos rios

Paraná e Uruguai, onde se reuniam dezenas de milhares de índios,

sendo grande também o número de missões instaladas pelos

jesuítas na região amazônica.

Naquele período, tivemos a chamada medicina jesuítica, a

partir da segunda metade do século XVI, onde padres e irmãos da

Companhia de Jesus foram de fato os médicos, os enfermeiros e os

boticários dos indígenas, dos povoadores, dos colonizadores.

Surgiam os primeiros hospitais das irmandades de misericórdia

que, com poucos recursos, não supriam as necessidades da época.

Locais onde pobres e obscuros habitantes, brancos, mestiços e

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negros, buscaram o socorro, transformando enfermarias e as

boticas dos estabelecimentos da Companhia em hospitais da

população e farmácias dos doentes necessitados.

Embora não tendo registros oficiais da época, pelas

descrições das doenças, podemos presumir a existência de

pessoas com deficiências congênitas ou adquiridas entre os

assistidos pelos jesuítas. Feridas nas pernas, na cabeça;

mortalidade infantil; doenças de pele; males venéreos, como a

sífilis; verminoses variadas; problemas oculares; anemia; febres;

chagas; tumores; dores de cabeça; paralisias; cólicas; males do

estômago, do coração e dos ossos; mordidas de cobra; insônias;

sem contar, é claro, as enfermidades epidêmicas, como varíola e

outras. O Brasil foi muitas vezes fustigado por grandes pestes,

epidemias, doenças gerais, bexigas, priorizes, tabardilho, câmaras

de sangue, tosse e catarro. De todas as epidemias, a que causou

maior estrago, e cuja existência é assinalada várias vezes, foi a

varíola. Agravou-se de forma violenta em 1563. Morreram 30.000

no período de dois ou três meses.

Através desses trabalhos dos jesuítas dirigidos aos

doentes, seja o clínico, o cirúrgico, o obstétrico, seja o

farmacêutico, é que foram escritos os primeiros capítulos da

Medicina brasileira. Eles assistiram, examinaram, operaram,

sangraram e medicaram, em um período em que predominou

realmente a medicina jesuítica. A Companhia de Jesus teve uma

grande importância para o desenvolvimento da medicina

brasileira, pois se pode afirmar que a medicina predominante no

Brasil no século XVI foi a dos jesuítas. Rareando, então, os físicos,

os cirurgiões e os hospitais, os filhos de Santo Inácio supriram a

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alta e assistiram ao índio e ao provedor como médicos,

enfermeiros e boticários. Deve-se-lhes, além de tudo, o

conhecimento da patologia e da terapêutica indígenas.

Dentre esses primeiros “médicos” a atuarem em terras

brasileiras, destaca-se o trabalho de José de Anchieta (1534-

1597), jesuíta e escritor espanhol que nasceu nas ilhas Canárias e

estudou em Coimbra, Portugal. Entrou para a Companhia de Jesus

em 1551, emigrando dois anos depois para o Brasil na comitiva de

Duarte da Costa, com o intuito de catequizar os índios. Anchieta

destacou-se, dentre outros feitos, por sua assistência a enfermos,

doentes crônicos e enjeitados. Foi um grande escritor de cartas

que, como as dos demais jesuítas da época, hoje são uma

importante fonte documental do desvendamento da patologia no

Brasil colonial. Nelas, esse jesuíta revela-se um médico dedicado,

um piedoso enfermeiro, conquistando a estima de todos, índios e

colonos, aos quais procurou servir sem esmorecer.

Em uma de suas correspondências, publicada em Cartas

inéditas: centenário da descoberta do Brasil, Anchieta relatou:

“Quão raras são entre os indígenas as deformidades e os monstros.

Em último lugar tratarei destes Brasis, porque ninguém encontrará

entre eles qualquer pessoa afetada de alguma deformidade natural,

raramente aparece um cego, surdo, mudo, ou coxo, nenhum

monstruosamente nascido. (...) Rarissimamente se acha entre eles

torto, cego, aleijado, surdo, mudo, corcovado, outro gênero de

monstruosidade: coisa tão comum em outras partes do mundo. Têm

os olhos pretos, narizes compressos, boca grande, cabelos corredios,

barba nenhuma, ou mui rara, são vividouros e passam muitos de

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cem anos, e cento e vinte, nem entram em cãs, senão depois de

decrépita idade” (apud LOBO, 2008, p. 32).

Diante de tais afirmações, Anchieta leva-nos a pressupor

que, talvez como consequência cultural da política de exclusão dos

índios, a sociedade colonial continuasse a segregar, a esconder

essas pessoas. Até mesmo por motivos de vergonha ou de um

completo desconhecimento, não saber lidar com elas.

Outro motivo para que pessoas com deficiência fossem

excluídas da sociedade pode ser encontrado no campo da

superstição. Naqueles tempos de geral ignorância, apontava-se a

doença como castigo da divindade. Os males sexuais eram devidos

aos hábitos pecaminosos, impulsionados pelo demônio. Os loucos

eram possessos. A lepra, então incurável e de origem não sabida,

causava horror e excluía os seus portadores do convívio social.

Tais conceitos, em verdade, chegam a ser compreensíveis, pois

datam de época anterior às investigações sobre os seres

microscópios e aos estudos sobre as reais causas das doenças.

Como sucedia no resto do mundo, enxotava-se o leproso para fora

das povoações, ou então era preso e internado o infeliz nos

lazaretos ou gafarias, pequenas casas-hospitais situadas nos

arredores das principais cidades. Havendo poucos lazaretos, os

leprosos tiveram mesmo que vagar pelas estradas, esmolando o

alimento e esperando a morte.

Surgiam as “Casas de Muchachos” e as “Rodas dos

Expostos”. Havia as crianças indígenas, os curumins e os

chamados “órphãos da terra”, crianças oriundas das ligações entre

os brancos ou negros e mulheres índias, que normalmente eram

abandonadas por suas mães, pois os índios acreditavam que o

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parentesco verdadeiro só vinha pela parte dos pais; por isso, não

faziam parte do seu povo, uma vez que não foram gerados por um

homem da tribo. Esses órfãos passaram a ser recolhidos em

lugares denominados “Casas de Muchachos”, com o objetivo de

educá-los dentro dos preceitos da Igreja. Nascia assim a primeira

medida de afastamento da criança de seu convívio sociofamiliar

praticada no Brasil. Em 1585 já existiam no país cinco “casas” de

acolhimento, situadas em Ilhéus, Porto Seguro, Espírito Santo, São

Vicente e São Paulo.

Outro capítulo marcante e triste de nossa história foram as

chamadas “Rodas dos Expostos”, que no Brasil funcionaram de

1726 a 1950. Tiveram origem na Itália durante a Idade Média a

partir do trabalho de uma irmandade de caridade e da

preocupação com o grande número de bebês encontrados mortos.

Tal irmandade organizou em um hospital em Roma um sistema de

proteção à criança exposta ou abandonada. O nome da roda

provém do dispositivo onde se colocavam os bebês que se queria

abandonar. Sua forma cilíndrica, dividida ao meio por uma

divisória, era fixada no muro ou na janela da instituição. No

tabuleiro inferior e em sua abertura externa, o expositor

depositava a criancinha que enjeitava. A seguir, ele girava a roda e

a criança já estava do outro lado do muro. Puxava-se uma

cordinha com uma sineta, para avisar a vigilante ou rodeira que

um bebê acabava de ser abandonado e o expositor furtivamente

retirava-se do local, sem ser identificado.

Podemos dizer que dessas duas ações nasceu a ideia de

tutela no Brasil pelas mãos dos jesuítas. Essa opção – que mais

tarde se refletiria também no assistencialismo às pessoas com

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deficiência –, perdurou ao longo de cinco séculos da nossa história

e ainda perdura como forma de ação de atendimento à infância

em nosso país.

Com o nascimento dos primeiros hospitais brasileiros, as

santas casas de misericórdia surgiram a partir das duas grandes

instituições operantes ligadas à Igreja católica, que quase sempre

nasciam como instituições destinadas a apoiar uma ampla

variedade de excluídos: órfãos, mães solteiras, velhos, pobres e,

claro, doentes, já estabelecendo uma cultura assistencialista. E o

que não faltaram foram doenças, epidemias e males

incapacitantes no Brasil Colônia.

Era o estreitamento da cultura deficiência como doença!

Se a associação de deficiência correspondia à doença veio

sendo construída ao longo de nossa história como uma questão

sempre tratada em ambientes hospitalares e assistenciais, outros

fatores também reforçaram essa cultura. Em terras brasileiras,

principalmente no final do século XIX e nas primeiras décadas do

século XX, foi bem considerável o número de médicos que

pesquisaram, escreveram e publicaram trabalhos científicos sobre

pessoas com deficiências, sobretudo as mentais, preocupados com

a aprendizagem dessas crianças. “O despertar dos médicos nesse

campo educacional pode ser interpretado como procura de

respostas ao desafio apresentado pelos casos mais graves,

resistentes ao tratamento exclusivamente terapêutico, quer no

atendimento clínico particular, quer no, muitas vezes, encontro

doloroso de crianças misturadas às diversas anomalias nos locais

que abrigavam todo tipo de doença, inclusive os loucos” (JANNUZZI,

2006, p. 31).

154

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A medicina passou a influenciar as propostas educacionais

para essas pessoas, principalmente por ser, na área do ensino

superior, uma das mais antigas no Brasil, junto com o ensino

militar, tendo, desde o começo, formado profissionais. Temos

como exemplo a criação das escolas de cirurgia e academia em

1808 na Bahia e Rio de Janeiro, a Faculdade de Medicina da Bahia,

em 1832, a primeira do País, a Faculdade de Medicina do Rio de

Janeiro, dentre outras. Além de vários médicos que tiveram

atuação direta como diretores ou professores das primeiras

instituições brasileiras voltadas para esse público.

Foi na segunda metade do século XIX, em paralelo à

implantação de hospitais públicos, que o Estado passou a intervir

também na área de doenças mentais – tratadas então em rigoroso

isolamento. Surgiu o Hospício D. Pedro II em 1852, no Rio de

Janeiro. Em 1898 era aberto o Hospital Psiquiátrico do Juquery, no

atual município de Franco da Rocha (Grande S. Paulo), nome do

médico que organizou a instituição, enquanto Porto Alegre

ganhava o Hospital S. Pedro. O importante Instituto Philippe Pinel,

do Rio de Janeiro, nasceria em 1937 com o nome de Instituto de

Neurossífilis. Um número muito considerável de pessoas com

deficiências mentais, até mesmo por falta de exames e diagnósticos

mais precisos na época, era confundido com doentes mentais e

internados injustamente nessas instituições. Juliano Moreira,

médico e nome importante da história da psiquiatria brasileira,

chegou a ser fundador de uma instituição para pessoas com

deficiências mentais. Franco da Rocha, no ano de 1921, em São

Paulo, construiu um pavilhão para crianças no Hospital de

Juquery. Mas já eram iniciativas que visavam ao lado pedagógico

dessas crianças, que, segundo Jannuzzi (2006), já apontavam algo

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positivo: “Percebo que esses pavilhões anexos aos hospitais

psiquiátricos, nascidos sob a preocupação médico-pedagógica,

mantêm a segregação desses deficientes, continuando pois a

patentear, a institucionalizar a segregação social, mas não apenas

isso. Há a apresentação de algo esperançoso, de algo diferente,

alguma tentativa de não limitar o auxílio a essas crianças apenas

ao campo médico, à aplicação de fórmulas químicas ou outros

tratamentos mais dramáticos. Já era a percepção da importância de

educação; era já o desafio trazido ao campo pedagógico, em

sistematizar conhecimentos que fizessem dessas crianças

participantes de alguma forma da vida de grupo social de então.

Daí as viabilizações possíveis, desde a formação dos hábitos de

higiene, de alimentação, de tentar se vestir etc. necessários ao

convívio social. Elas colocam de forma dramática o que se vai

estabelecendo na educação do deficiente: segregação versus

integração na prática social mais ampla” (p. 38).

Entre os primeiros médicos que se dedicaram à questão,

havia uma preocupação de estabelecer uma catalogação de

anormalidade. Pessoas com dificuldades pedagógicas seriam os

dotados de inteligência e instrução em grau inferior à sua idade. E,

visando completar os exames precários das chamadas “crianças

com defeitos pedagógicos”, acrescentava-se como modelo do

exame médico uma ficha contendo itens em relação a observações

do físico do aluno.

Católicos e protestantes se unem contra uma “Inquisição

Nazista” no século XX

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Ao longo da história humana temos inúmeros relatos de

discriminações e execução de pessoas com algum tipo de

deficiência. Mas nesse percurso não precisamos ir muitos séculos

atrás, a exemplo da Inquisição. Há pouco mais de 70 anos, durante

a Segunda Guerra Mundial, Hitler foi denunciado por programa de

extermínio de pessoas com deficiências físicas e intelectuais. Essas

mortes representavam uma antecipação das câmaras de gás de

Auschwitz. Alegando os altos gastos com essas pessoas, uma

propaganda nazista em favor do extermínio dizia: “60.000 marcos

é o que essas pessoas com defeitos hereditários custam ao povo

durante sua vida. Companheiro, o seu dinheiro também”.

No dia 3 de agosto de 1941, um domingo, algumas

semanas após Alemanha e União Soviética entrarem em guerra, o

bispo de Münster, na Renânia, denunciou publicamente esses atos

praticados pelos nazistas. O monsenhor Clemens-August von

Galen exclamava: “É uma doutrina tenebrosa aquela que busca

justificar a morte de inocentes, que autoriza o extermínio daqueles

que não são mais capazes de trabalhar, dos enfermos, daqueles que

soçobraram na senilidade… Será que temos o direito de viver só

enquanto pudermos ser produtivos?”.

Percebemos que, no começo do século XX, parecia legítimo

que os seres humanos mais frágeis desaparecessem e abrissem

espaço a seres mais bem preparados para sobreviver, em nome da

seleção natural pregada pelos nazistas. É desse modo que foram

editadas em determinados Estados leis que permitiam esterilizar

pessoas dadas como fracas de espírito ou com deficiências. Em 14

de julho de 1933, Hitler publicou uma lei sobre a esterilização de

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pessoas com deficiências intelectuais. Protestos houve somente do

clero. Um decreto datado de 1º de setembro de 1939, exatamente

no dia da deflagração da Segunda Guerra Mundial, prescrevia não

mais somente esterilizar, mas também levar à morte os

deficientes, os marginais e os que apresentavam tendência

permanente para a depressão. O pretexto era de liberar os leitos

hospitalares para os futuros feridos de guerra.

Esse “decreto da eutanásia” com a data retroativa a 1º de

setembro de 1939, que autorizava a missão do programa, dizia: “O

líder do Reich Philipp Bouhler e Dr. Brandt estão encarregados da

responsabilidade de ampliar a competência de certos médicos,

designados pelo nome, de modo que os pacientes, baseando-se no

julgamento humano, que forem considerados incuráveis, pode ser-

lhes concedida a morte de misericórdia após exigente diagnóstico”.

Hitler confiou toda a operação a Karl Brandt, seu médico

pessoal, e a Philip Bouhler, médico-chefe da chancelaria. Eles se

instalaram sob o nome codificado “Aktion T4”. Os funcionários do

T4 experimentaram diferentes meios de extermínio, começando

com o veneno e depois descobrindo o gás. Num primeiro

momento, encerravam suas vítimas num local fechado, injetando

o gás do escapamento de um caminhão. Muito rapidamente, os

procedimentos foram aperfeiçoados. Em janeiro de 1940, quinze

dessas pessoas foram conduzidas para uma falsa ducha de

chuveiro e asfixiados com o monóxido de carbono. Seus cadáveres

foram em seguida incinerados. Seus familiares avisados por carta

da morte acidental do parente e convidados a recuperar as cinzas.

Era uma antecipação das câmaras de gás de Auschwitz.

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Em torno de 70 mil a 100 mil pessoas com deficiência

seriam assassinadas em menos de dois anos. Porém, malgrado

todos os esforços da administração, o segredo foi descoberto e a

inquietação crescendo. Até dentro do próprio exército cresceu a

preocupação quanto ao destino dos feridos de guerra. Pastores

protestantes começaram a reagir.

O papa Pio XII interveio na questão em 15 de dezembro de

1940, condenando firmemente a eutanásia. Por fim, em 9 de

março de 1941, o bispo católico de Berlim, von Preysing,

denunciou “mortes batizadas de eutanásia”. Joseph Goebbels,

chefe da propaganda, convenceu Hitler de não determinar a

execução do bispo para evitar um conflito aberto com os cristãos

de Münster. Finalmente, três semanas após o golpe de efeito do

monsenhor von Galen, em 24 de agosto de 1941, Hitler decidiu

suspender a “Aktion T4”. Os mais de cem funcionários do T4,

contudo, não ficaram sem funções. Algumas semanas mais tarde,

Heinrich Himmler, ministro do Interior e chefe supremo da SS,

usou de sua expertise para colocar de pé o plano de eliminação

física dos judeus.

A Igreja católica e suas possibilidades de inclusão

A Igreja católica, em 1995, colocou nas ruas a sua

tradicional Campanha da Fraternidade, uma prática anual desde

1964, sempre abordando assuntos de interesse social. O tema

daquele ano foi “A Fraternidade dos Excluídos”, trazendo em seu

contexto a lembrança de milhares de pessoas marginalizadas,

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compondo uma enorme lista de segregados, sendo prostitutas,

aidéticos, moradores de ruas, idosos, pessoas com deficiência,

desempregados, drogados, presidiários e outras realidades

vítimas de um apartheid social invisível que prevalece sobre a

nossa pátria. Todas vítimas de um capitalismo selvagem, pois,

segundo a revista Família Cristã (fevereiro, 1995), “é simples

demonstrar o grau de iniquidade e hipocrisia de uma sociedade.

Basta verificar quantas e quais as categorias de seres humanos

marcadas pela brecha da exclusão”.

Diante desse quadro poderíamos abordar outros inúmeros

aspectos referentes aos “excluídos”; mas vamos nos limitar a uma

classe do nosso estudo: as pessoas com deficiência! Podemos

pegar como ponto de partida para a nossa reflexão o “Programa

de Ação Mundial para as Pessoas com Deficiência”, o PAM,

parágrafos 72 e 73, onde se destaca que, “com frequência, as

atitudes e os hábitos levam à exclusão das pessoas com deficiência

da vida social e cultural. As pessoas tendem a evitar o contato e o

relacionamento pessoal com elas. Para um número significativo de

pessoas com deficiência, os preconceitos e a discriminação de que

geralmente são vítimas e a consciência de que em grande parte são

excluídas das relações sociais normais causam problemas

psicológicos”. Isto, de certa forma, é o retrato de mão dupla da

deficiência, pois, segundo o PAM, “é muito frequente que o pessoal,

profissional ou não, que atende as pessoas com deficiência não se dê

conta de que elas podem participar da vida social normal e, por

conseguinte, não facilita a sua integração em outros grupos

sociais”. Mas é possível reverter essa situação? Quais os caminhos

e qual a colaboração que a Igreja católica, baseada em suas

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campanhas da fraternidade e suas pastorais, poderá continuar

dando à inclusão social e religiosa dessas pessoas?

Sobre a “Campanha da Fraternidade dos Excluídos” de

1996, um trecho de seu texto-base dizia: “No Brasil temos 7

milhões de portadores de doenças físicas e mentais. No modelo de

desenvolvimento competitivo não há espaço para os que têm algum

tipo de limitação física ou mental. Cultua-se o corpo humano que se

apresenta como uma máquina saudável, produtiva, dentro dos

padrões convencionais de estética e eficiência. Nessa situação, os

deficientes, além de terem que lidar com a própria deficiência,

sofrem um processo de rejeição por serem ‘diferentes’. Isso tem

reflexos na vida emocional, afetiva e na formação da autoimagem”.

Todavia, pedimos licença à Igreja católica, para fazermos

algumas reflexões referentes ao seu parágrafo. No que diz respeito

à inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho

competitivo, isso ainda se constitui em um grande desafio, mas

muita coisa já mudou. Muitas dessas pessoas estão conquistando o

seu emprego e, segundo registros, os empregadores estão

satisfeitos com elas. A contratação de mão de obra das pessoas

especiais só não é mais bem aproveitada por falta de informações

e esclarecimentos nos meios empresariais. Achamos também que

é de certa forma errado usar o termo “doenças físicas ou mentais”;

temos que ter bem definida em mente a diferença entre

deficiência e doença, pois muitas vezes, não esclarecidas, podem

reforçar preconceitos. Concordamos plenamente que, ao serem

rejeitadas, muitas pessoas apresentam prejuízos emocionais,

afetivos e na formação de sua autoimagem, mas esse processo de

rejeição analisaremos mais adiante.

161

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Além dos problemas sociais e emocionais (as “barreiras

invisíveis”) enfrentados pela classe, existe a questão dos

obstáculos materiais, as chamadas “barreiras arquitetônicas”;

portas estreitas impedindo o tráfego de cadeiras de rodas; escadas

e degraus inacessíveis em edifícios, ônibus coletivos, trens, aviões;

telefones públicos, interruptores de luz e botões de elevadores

colocados fora de seu alcance e sanitários que não podem utilizar,

dentre outros pontos menos comuns. Também há a exclusão

quando não se leva a sério a adoção de linguagem de sinais para

quem tem deficiências auditivas e leitura em braile para pessoas

com deficiências visuais.

Mas como mudar tudo isso? Infelizmente, essas barreiras

existem alicerçadas na ignorância e indiferença dos povos devido

à falta de informações corretas. Em nosso ponto de vista, muitos

desses problemas poderão ser evitados, com poucos gastos,

mediante um planejamento cuidadoso.

Acreditamos como sempre, que o problema da deficiência

é muito mais social do que psicológico, e a solução muito mais

simples que possa parecer. Todo encargo e dificuldades que se

despejam sobre essas pessoas estão diretamente ligados à

imagem negativa que essas pessoas têm perante a sociedade,

como serem inferiores, coitadinhos, eternos dependentes e outros

conceitos errôneos dessa natureza, que também foram

alimentados pelos estigmas religiosos ao longo dos séculos e hoje

repousam em nossos inconscientes coletivos. Quem tem uma

deficiência não é um rejeitado; é, sim, um desconhecido. O lado

positivo da deficiência, ou seja, o verdadeiro, do que são capazes,

suas potencialidades e os benefícios que, se incluídos, poderão

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trazer para o contexto social, estão quase todos ocultos da

sociedade e das comunidades cristãs, o que impede a construção

de uma real cidadania.

Assim, se for explorado esse ponto, a divulgação do lado

positivo, grande parte dos problemas dessa classe estará com os

dias contatos. A Igreja, no tocante às pessoas com deficiência,

poderá explorar esse ponto, mostrando sempre aos seus fiéis do

que essas pessoas são capazes; focalizar aqueles que estão

atuando no mercado de trabalho e outros tantos exemplos

positivos, abordando-os sempre de maneira natural e tentando

retirar toda a carga de piedade e/ou sensacionalismo que o tema

suscita. Muitas vezes a sociedade impede ou dificulta o exercício

pleno da cidadania, não por maldade, mas sim por desconhecer o

que realmente é alguém com deficiência e suas potencialidades.

Aliás, que sejam incentivados a participar mais nas atividades da

Igreja, dando sempre voz aos menos, pois assim a inter-relação e a

quebra de mitos e receios entre eles e os demais fiéis ocorrerão

naturalmente. As pessoas com deficiência não precisam de

piedade; precisam de oportunidade!

A Igreja poderá incentivar o nascimento de novas

associações, como a já existente “Fraternidade Cristã de Doentes e

Deficientes – FDC”, organizada e fundada por um grupo com

deficiência e que está aberta a todos, tendo como lema “nossas

capacidades superam as nossas deficiências”. A proposta da FCD é

lutar e defender os direitos da classe. É importante que os

próprios interessados se reúnam para discutir seus problemas e

brigar pelos seus direitos, desde que estejam apoiados em leis

especiais existentes no país. É preciso que a pessoa com

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deficiência tenha a sua consciência despertada a respeito de seus

direitos e obrigações, pois acreditamos que toda mudança precisa

vir de dentro para fora e de baixo para cima.

Sobretudo, propostas e soluções existem. Só é preciso que

não fiquem no papel e em discussões de grupos limitados, mas

partam para a prática, para as ruas, nas realizações de campanhas

de educação do público, visando à eliminação de tais barreiras e à

inclusão concreta dessas pessoas no contexto social.

O padre Luiz Carlos Dutra, em sua obra Pastoral da

Inclusão – Pessoas com deficiência na comunidade cristã (Loyola,

2005), aponta que são três as áreas em que a Igreja católica

poderá trabalhar a inclusão das pessoas com deficiência,

constituindo praticamente sua integridade:

NA CATEQUESE – No passado usávamos a expressão

“catecismo” para indicar em aulas que, com perguntas e

respostas fixas, decoradas, introduziam-se as crianças às

verdades da fé católica. Hoje o termo em uso é “catequese”,

que cobre todas as faixas etárias com suas questões e

problemas específicos. Catequese é a jornada espiritual de

cada pessoa inteirando-se da vontade e doutrina de Deus a

nosso respeito. Os assuntos são tratados em encontros

periódicos liderados por pessoas formadas na doutrina da

Igreja, segundo as fontes da Escritura, Tradição e dentro

da vivência dos nossos tempos modernos.

NA LITURGIA – Nossa comunidade cristã precisa se

acostumar a ver pessoas que, do púlpito, leem a Bíblia em

164

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braile, pessoas que comunicam a mensagem evangélica em

língua de sinais, pessoas que na condição de leitores têm a

autonomia de chegar em sua cadeira de rodas até o

microfone (adaptável à sua altura) graças a alguma

solução para os tradicionais degraus do presbitério. Essas

pessoas são ministros do altar, na hora mais solene de

nossa fé, a Eucaristia. Têm eles tal amor a Cristo que

desafiam a deficiência a ponto de quererem participar

ativamente da liturgia. São jovens com deficiência

intelectual, por exemplo, que, orientados, podem tirar a

coleta, levar as ofertas do pão e vinho em procissão e

ofertório. Nada de medo. Nada de idiossincrasias ou temor

irracional. São pessoas com deficiência de algum tipo, mas

com voz boa ou que tocam bem algum instrumento e que

querem fazer parte do coral, da música. Liturgia é a família

de Deus toda em prece, cada um fazendo oferta de seus

dons, sem discriminação.

NA VIDA DA COMUNIDADE – Conforme a Sagrada

Escritura, desde os primórdios do Cristianismo, a força da

fé se expressou na união e amor entre os cristãos.

Trabalhando cada um na própria santificação, todos

trabalhavam também para formar uma comunidade que

atendia às necessidades e aos interesses espirituais e

materiais. (...) A comunidade cristã hoje, pelo amor e

exemplo de Cristo, e a sociedade em geral, pela obrigação

de promover o bem comum e defender os direitos de cada

um, devem ambas abraçar o ideal da inclusão das pessoas

com deficiência (pp. 29-31).

165

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Segundo o padre, “escolas, centros de trabalhos, programas

biopsicossociais e profissionais surgiram e agora adotam a filosofia

e prática da inclusão. A Igreja tem razões bem mais profundas para

viver o ideal e a prática da inclusão. O chamado para promover

inclusão não é somente das autoridades eclesiásticas. O chamado é

do próprio Deus, que revelou o mandamento do amor, e do próprio

Cristo, que deu o exemplo em palavras e obras. E Deus chama a

todos” (DUTRA, 2005, p. 22).

Façamos nossas as palavras de Elizabete Cristina Costa-

Rendens, as quais cabem não só à Igreja católica, como também às

demais comunidades cristãs: “Se no decorrer da história,

especialmente até a Idade Média, elas atuaram junto às pessoas

com deficiência em perspectiva assistencialista e segregacionista,

em tempos contemporâneos, o tema inclusão desafia essas mesmas

Igrejas cristãs a novas práticas pastorais e ao regaste de discursos

teológicos inclusivos – na perspectiva do Evangelho de Jesus Cristo.

Evangelho este que não faz acepção de pessoas e que propõe a

diaconia como uma forma de convivência social pautada pelo

reconhecimento recíproco. Nessa perspectiva, foi possível

aproximarmos o paradigma educacional da inclusão com a

espiritualidade cristã. A Teologia, pelo papel crítico-profético que

lhe é conferido, tem a tarefa de construir uma antropologia que

diminua (ou hierarquize) o ser humano em função de suas

deficiências, mas que o acolha em sua dignidade humana. A

educação pode beber das águas teológicas, especialmente no que

diz respeito ao reconhecimento da dignidade humana como um bem

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inviolável e, por conseguinte, da demanda ética que se coloca em

termos de justiça social” (2009, pp. 149-150).

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V – CAMINHOS PARA A INCLUSÃO

RELIGIOSA HOJE

O Protestantismo precisa despertar para a questão

ssim como no capítulo anterior falamos sobre a atuação

histórica da Igreja católica junto às pessoas com

deficiência, gostaríamos de ter escrito também um longo

capítulo sobre a atuação do Protestantismo. Só que, em nossa

investigação história, não encontramos nenhum registro. Nem na

vasta historiografia de Otto Marques da Silva há sequer pistas

sobre isso. A não ser a condenação feita pelos principais nomes da

Reforma, considerando as pessoas com deficiência

(principalmente as deficiências intelectuais) como demoníacas,

apoiando as eliminações delas pela Inquisição. Historiadores

apontam que essas pessoas sempre passaram despercebidas pelas

correntes protestantes. Acreditamos que possa até ter ocorrido

ações deles nesse sentido, mas por terem se dividido em várias

vertentes ou seitas, onde cada uma defende seus pontos

teológicos/ideológicos, tais registros não ficaram para a história,

não chegando até nós.

O mesmo não aconteceu com a Igreja católica, que, talvez

por ser uma unidade, foi capaz de preservar os seus registros

históricos. Alguns estudiosos dizem que as ações da Igreja foram

A

169

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puramente assistencialistas e colaboram para a segregação de

pessoas com deficiência ao longo dos séculos. Só que preferimos

focar em outro aspecto. Mesmo sendo assistencialismo, ou

pautados pela cultura da caridade, o importante foi que a Igreja

reconheceu a existência e as necessidades dessas pessoas

naqueles momentos históricos, abrigando-as com a visão e

conceitos que tinham na época. Pela falta de mais conhecimentos

médicos/científicos e de uma filosofia humanista, era o que

tinham a oferecer. Do mesmo jeito que não podemos condenar os

protestantes que apoiaram a eliminação das pessoas com

deficiência na Inquisição, pois também faltavam-lhes

conhecimento cientifico e uma teologia mais humanitária com

relação a elas. No Protestantismo tudo ainda era muito novo e a

noção do bem (Deus) e do mal (diabo) ainda era muito acentuada,

não dando margem para outras análises teológicas e/ou

humanitárias.

Não é nossa intenção ficar fazendo julgamento das ações

passadas, seja dos católicos, seja dos protestantes. Mas, sim, trazer

por meio deste estudo dados históricos para que, a partir deles,

possamos rever nossas ações e conceitos referentes às pessoas

com deficiência e ter base para a construção de uma real

TEOLOGIA DA INCLUSÃO.

Uma Teologia da Inclusão que contemple um novo

momento histórico, onde tanto os católicos como os protestantes

reavaliem e reconstruam seus conceitos e ações no sentido da

inclusão das pessoas com deficiência. Se, por um lado, a Igreja

católica continua intensificando suas ações em prol da inclusão

social e religiosa das pessoas com deficiência, sabemos que várias

170

TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br

igrejas protestantes estão também realizando ações nesse sentido,

mas de forma simples e isolada, não havendo união, planejamento

nem trabalhos entre elas.

Segundo Costa-Renders (2009), “faz-se necessária,

portanto, a construção de uma Teologia onde também caibam as

pessoas com deficiência. Ou seja, uma Teologia que inclua e dê

visibilidade às expectativas e desafios vividos por essas pessoas, tais

como: as imposições de uma antropologia hegemônica, os desafios

da cura (seja pela religião, seja pela ciência), a percepção da

vulnerabilidade humana e da inegociável dignidade de todos os

seres humanos. Entendemos que, a partir das pessoas com

deficiência, brotam perguntas importantes para a espiritualidade:

sobre a existência, sobre a condição humana, sobre as concepções a

respeito da deficiência e dos limites humanos, etc. são perguntas

provocativas, não tivemos (ou não temos) a intenção, nem a

possibilidade, de responder a elas categoricamente” (p. 149).

Uma sociedade inclusiva

Como nas religiões, na sociedade em geral, as pessoas com

deficiência ficaram por muito tempo escondidas do convívio social

muitas vezes dentro de instituições especializadas. Nos anos 1970

e 1980, vivemos o conceito de integração social. Surgiram, por

exemplo, entidades, centros de reabilitação, clubes sociais

especiais, associações desportivas, todas dedicadas a essas

pessoas com deficiências. A intenção principal era preparar essas

pessoas para ingressar e conviver em sociedade com todos nós.

171

TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br

Só que, nos últimos vinte anos, um novo conceito surgiu: a

inclusão social, tomando forma e espaço na sociedade, focando a

equiparação de igualdades como tema do milênio. Antes pessoas

com deficiências eram habilitadas ou reabilitadas para fazer todas

as coisas que as demais e, através da integração social, passavam a

conviver em sociedade. Agora, na inclusão social, as iniciativas são

da sociedade, que passou a se preparar, criando caminhos e

permitindo que eles venham conviver com todos. Por esse motivo,

cada vez mais estamos vendo crianças e pessoas com

necessidades especiais em nossas escolas, no lazer e em todos os

lugares da vida diária. E devemos estar preparados para essa

convivência, aceitando as diferenças e a individualidade de cada

pessoa, uma vez que o conceito de inclusão mantém este lema:

Todas as pessoas têm o mesmo valor.

Inclusão Social, um tema explorado em várias partes do

mundo, tendo ampla preocupação internacional, foi explicitado

pela primeira vez em 1990 pela Resolução 45/91, da Assembleia

Geral das Nações Unidas e, cerca de cinco anos depois, começou a

chamar a atenção aqui no Brasil.

Formada de uma resolução e regras bem definidas de uma

sociedade para todos, consiste da diversidade da raça humana,

estando estruturada para atender às necessidades de cada

cidadão, das maiorias às minorias, dos privilegiados aos

marginalizados. Nesse contexto estão incluídos crianças, jovens e

adultos com deficiência, os quais serão naturalmente

incorporados à sociedade inclusiva, e onde todos trabalharão

juntos, com papéis diferenciados, dividindo iguais

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responsabilidades por mudanças desejadas para atingir o bem

comum.

Tudo consiste no processo ao qual a sociedade se adapta

para poder incluir em seu contexto as pessoas com deficiência.

Mas, por outro lado, essas mesmas pessoas precisam ser

preparadas para assumir seus papéis na sociedade. Será uma

forma de parceria entre ambas – sociedade e pessoas especiais –,

visando equacionar problemas, decidindo sobre soluções,

efetuando equiparações para todos. Na prática, a inclusão social

tem como princípios básicos incomuns:

a aceitação das diferenças individuais;

a valorização de cada pessoa;

a convivência dentro da diversidade humana;

a aprendizagem através da cooperação.

O que talvez possa parecer uma utopia, poderá ser na

realidade a construção de um novo tipo de sociedade, mediante

transformações, pequenas ou grandes, dos meios físicos (através

de adaptações), ou das mentalidades (através de conscientização

da população).

Em várias partes do mundo, relata Sassaki (1997), “o

processo de inclusão vem sendo aplicado em cada sistema social.

Assim, existe a inclusão na educação, na saúde, na assistência, no

lazer, no transporte, etc. Quando isso acontece, podemos falar em

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educação inclusiva, na saúde inclusiva, na assistência inclusiva, no

lazer inclusivo, no transporte inclusivo e assim por diante. Uma

outra forma de referência consiste em dizermos, por exemplo,

educação para todos, lazer para todos, transporte para todos" (p.

22).

Igualdade de oportunidades, inclusive na religião

Essa tendência de Inclusão iniciada no campo educacional,

refletindo na sociedade como um todo, também deve ser realizada

nas comunidades cristãs, independente de denominação. É direito

das pessoas com deficiência o livre exercício de sua religiosidade.

Está no “Programa de Ação Mundial Para as Pessoas com

Deficiência“, o PAM (ONU, 1992), parágrafo 136: “Devem-se adotar

medidas para que as pessoas com deficiência tenham a

oportunidade de se beneficiar plenamente das atividades religiosas

que estejam à disposição da comunidade. Para tal, deve-se tornar

possível a participação das pessoas com deficiência nas referidas

atividades!”.

Podemos tirar do próprio PAM noções de Igualdade de

Oportunidades na sociedade em geral que devam refletir nas

comunidades cristãs. Estes parágrafos selecionados dão uma visão

geral dessas mudanças:

174

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21. Para se alcançar os objetivos de “igualdade” e

“participação plena”, não bastam medidas de reabilitação

voltadas para o indivíduo com deficiência. A experiência tem

demonstrado que, em grande medida, é o meio que

determina o efeito de uma deficiência ou de uma

incapacidade sobre a vida cotidiana da pessoa. A pessoa vê-

se relegada à invalidez quando lhe são negadas as

oportunidades de que dispõe, em geral, a comunidade, e que

são necessárias aos aspectos fundamentais da vida, inclusive

a vida familiar, a educação, o trabalho, a habitação, a

segurança econômica e pessoal, a participação em grupos

sociais e políticos, as atividades religiosas, os

relacionamentos afetivos e sexuais, o acesso às instalações

públicas, a liberdade de movimentação e o estilo geral da

vida diária.

25. O princípio da igualdade de direitos entre pessoas com e

sem deficiência significa que as necessidades de todo

indivíduo são de igual importância, e que estas necessidades

devem constituir a base do planejamento social, e todos os

recursos devem ser empregados de forma a garantir uma

oportunidade igual de participação a cada indivíduo. Todas

as políticas referentes à deficiência devem assegurar o

acesso das pessoas com deficiência a todos os serviços da

comunidade.

27. Das pessoas com deficiência, deve-se esperar que

desempenhem o seu papel na sociedade e cumpram as suas

obrigações como adultos. A imagem das pessoas com

deficiência depende de atitudes sociais baseadas em

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diversos fatores, que podem constituir a maior barreira

para a participação e a igualdade. É costume ver a

deficiência como a bengala branca, as muletas, os aparelhos

auditivos e as cadeiras de rodas, sem se ver a pessoa. É

necessário focalizar a capacidade da pessoa deficiência, e

não as suas limitações.

Transportando essa visão e apontamentos do PAM para o

nível espiritual, podemos dizer que o conceito e a prática de

inclusão encontram eco favorável em verdades básicas de nossa

fé; segundo Dutra (2005, p. 18), a inclusão, espiritualmente, é:

colocar em prática, em relação à pessoa com deficiência, o

amor ensinado por Deus;

viver na prática a universidade da Igreja, sem distinção ou

discriminação;

ver Cristo na pessoa com deficiência.

Em uma comunidade cristã, por meio da fé e batismo

comum, estamos todos inseridos como ramos de videira, ramos

vivos e produtivos, graças a essa inserção na fonte da vida que é

Jesus Cristo. “Assim, a inclusão passa a ser o fato de viver a fé e o

amor que nos fazem um no Senhor, sem exceção, a grande família

de Deus. As aparências contam, mas não decidem nossas

preferências e aberturas de coração” (DUTRA, 2005, p. 19).

Com ou sem deficiência, somos todos possuidores de

dignidade humana e filhos do Deus, o primeiro a não fazer

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acepção de pessoa, como está em I Samuel 16:7: “Porém o Senhor

disse a Samuel: Não atentes para a sua aparência, nem para a

grandeza da sua estatura, porque o tenho rejeitado; porque o

Senhor não vê como vê o homem, pois o homem vê o que está diante

dos olhos, porém o Senhor olha para o coração.”.

Como uma missão cristã, as comunidades religiosas

precisam convidar as pessoas com deficiência a expressar seus

sonhos e realidades, facilitando sua participação de forma

irrestrita. Como as demais, elas procuram independência e

autonomia, o que significa participar do processo, das soluções e

implementações e usufruir os resultados. Incluir essas pessoas na

vida da comunidade cristã será como trazer Cristo a elas e levá-las

a Cristo de maneira condizente com as necessidades pessoais e em

comunhão com todos e com tudo o que Deus criou e reuniu.

Barreiras arquitetônicas eram motivos de exclusão

Parece que não, mas, por muitos séculos, um dos

principais motivos que impediram pessoas com deficiência de ter

acesso às religiões foram as barreiras arquitetônicas. Em 1999,

Ranauro e Lima de Sá já questionavam esse fato: “As igrejas

costumam primar pela importância dos templos e escadarias. O

templo suntuoso, no alto, se destaca. Mas quantos sequer podem se

beneficiar deles pelas dificuldades de acesso impostas às pessoas.

Não se atenta, sequer, no mais das vezes, para a largura e altura

dos degraus. E o corrimão nos degraus e escadarias, quem se lembra

deles?” (p. 105).

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Somavam-se as grandes escadarias na entrada de igrejas,

além de barreiras físicas no interior de suas instalações, as

atitudes paternalistas e piedosas em relação à deficiência.

Essas barreiras são todas as limitações com que as pessoas

com deficiência se deparam no seu dia a dia e que as impedem de

realizar o mais básico direito de qualquer cidadão: IR e VIR.

Existem diversos tipos de barreiras arquitetônicas, como as

escadas, os elevadores e portas muito estreitos, buracos no

passeio, casas de banho mal equipadas, transportes públicos mal

preparados, as edificações, os espaços urbanos, os equipamentos

urbanos, o mobiliário, os aparelhos assistivos, os utensílios.

Só que é um quadro que começa a mudar, conforme

observa Sassaki (1997): “Hoje, é comum vermos igrejas e sinagogas

dotadas de acessibilidade arquitetônica, o que permite aos seus fiéis

com deficiência frequentarem-nas com autonomia e, mais do que

isso, tomarem parte na administração dos ministérios. São

conhecidas as atividades desempenhadas por pessoas com

deficiência intelectual ou física auxiliando os celebrantes de missa

ou culto. Intérpretes de línguas de sinais fazem parte do pessoal que

acompanham os eclesianos com deficiência auditiva. Os próprios

sacerdotes acabam aprendendo a usar os sinais durante a

celebração de missas. Tudo isso, além de ser um direito das pessoas

com deficiência, acaba funcionando como recurso de

conscientização dos frequentadores sem deficiência, o que é muito

educativo para toda a comunidade que se reúne em torno da

religião” (p. 108).

Em tempos de Inclusão Social – e também por que não

dizer Religiosa! –, uma questão que merece uma profunda

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reavaliação de conceito é com relação às pessoas com deficiência

que se utilizam de cadeiras de rodas para a sua locomoção. Aqui

encontraremos um dos maiores erros de visão cometidos pela

sociedade. E também a falta de atenção dos profissionais de

comunicação colabora para uma visão errônea, quando

reproduzem exaustivamente a imagem da pessoa em cadeira de

rodas, usando um “cobertor xadrez” sobre as pernas.

Essa imagem é transmitida historicamente, tendo como

base as primeiras imagens vindas da fria Europa, onde, no pós-

guerra, alguns militares combatentes adquiriram deficiências e

consequentemente passaram a utilizar cadeiras de rodas para sua

locomoção. Nos países europeus o clima gelado é constante na

maior parte do ano e, uma vez que a pessoa na cadeira de rodas

tem pouca circulação sanguínea nas pernas, tendo uma

sensibilidade ainda maior ao frio, justifica-se o uso desses

cobertores.

Mas no Brasil, um país tropical e praticamente quente

durante todo o ano, nada justifica que perdure a utilização do

“cobertor xadrez” sobre as pernas dessas pessoas, o que também

pode significar uma conotação negativa da intenção de esconder a

parte paralisada do corpo. Essa imagem, reproduzida sem

qualquer critério ou avaliação, é constante na mídia, nas

telenovelas, em peças de teatro, nos cinemas e em campanhas de

utilidade pública, sem uma percepção crítica em relação a esse

estereótipo que reforça, principalmente em países quentes como o

Brasil, a ideia de vergonha do corpo, deformação, feiura e

depressão.

179

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Outro erro que também cometemos e precisamos corrigir

é com relação às expressões que usamos ao nos referirmos a essas

pessoas. Expressões como “condenados”, “confinados”, “presos” a

uma cadeira de rodas refletem totalmente o contrário do

verdadeiro significado de uma cadeira de rodas, sendo um

instrumento para suprir a dificuldade de locomoção de seu

usuário, tornando-se um instrumento para a sua independência,

para sua libertação, para a vida! Por isso, além de acabarmos com

a estereotipada imagem do “cobertor xadrez”, troquemos essas

ultrapassadas expressões por “pessoas que se utilizam de cadeiras

de rodas para sua locomoção”, “usuários de cadeiras de rodas”, ou

simplesmente “cadeirantes”.

O que deve ser feito está previsto no Decreto Federal

5296/2004, conhecido como Lei de Acessibilidade, e em muitas

outras normas. Mas a lei nem sempre é cumprida; na realidade

uma parte significativa da população ainda vive à margem.

“Uma teologia da deficiência”

Esse subtítulo acima é de um artigo escrito por John

Swinton, diretor de Teologia Prática da Universidade de

Aberdeen, Escócia. Traduzido e publicado pelo O Jornal Batista em

29 de fevereiro de /2012, Swinton faz algumas observações –

citando Gênesis 1:27: “E criou Deus o homem à sua imagem; à

imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou” –, como ser

criado por Deus é refletir a Sua glória e ser amado pelo Criador.

180

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De todo o artigo, queremos reproduzir este trecho final, por ele

ser rico em reflexões:

Ser humano é um ato poderoso e misterioso. Não existe

nenhum ser “normal”. Claramente todos os seres humanos

são anormais, já que “todos pecaram e destituídos estão da

glória de Deus (Romanos 3:23). Todos nós nos distanciamos

de Deus, e assim somos profundamente deficientes. Devemos

tomar cuidado quando chamamos outros de deficientes e

tratamos como se o rótulo realmente explicasse qualquer

coisa.

Deficiência é apenas uma das maneiras de ser humano

diante de Deus. Não há nada na deficiência que nos separe

do outro. Não é o nosso corpo, nem o nosso intelecto, nem as

nossas capacidades que nos fazem aceitáveis a Deus.

Nenhuma dessas coisas nos torna humanos. O amor

interminável de Deus por cada ser humano é o que cria e

sustenta-nos em nossa humanidade. Deficiência é

simplesmente uma variação sobre um tema comum.

De acordo com essa compreensão da questão, a igreja (o

Corpo de Cristo) é chamada a ser um lugar onde a

discriminação e o preconceito são abandonados e o amor

incondicional é abraçado. Somente se cumprimos esse

chamado teremos o tipo de comunidade que Paulo previu,

onde não há “nem judeu, nem grego, nem escravo livre, nem

homem, nem mulher” ...nem preto, nem branco, nem pessoas

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“normais”, nem pessoas “deficientes” (Gálatas 3:28). Em

meio à deficiência é que percebemos essas verdades, e ao

percebê-las aprendemos a viver de forma diferente.

Somos, acima de tudo, conhecidos e lembrados por Deus,

tenhamos uma deficiência ou não, desde mesmo antes do nosso

nascimento, como diz o Salmo 139. Deus não nos vê com

distinção. Mas nós, sim, olhamos os nossos semelhantes com

distinção. Infelizmente o preconceito e estigmas religiosos ainda

existem, conforme esse caso narrado por Pauli (2010): “Em certa

igreja, um homem tentou entrar no templo para o culto de domingo.

Ele não podia andar, era muito pobre e não tinha cadeira de rodas;

por isso, se arrastava pelo chão. Quando ele finalmente chegou à

porta da igreja, depois de uma dolorosa e desgastante jornada

partindo de seu pequeno quarto, os porteiros da igreja negaram sua

entrada sob o argumento de que ele não era digno de entrar

daquele jeito. Ele voltou para casa com o coração triste e nunca

mais tentou entrar numa igreja novamente. Ele morreu pouco

tempo depois. Talvez nunca saberemos a diferença que faria se ele

tivesse sido bem recebido na igreja naquele dia, em vez de ser

rejeitado. Porém quando a igreja age de forma indiferente e não faz

nenhum esforço para receber essas pessoas de braços abertos,

também está agindo com discriminação” (p. 76).

Reflexões sobre a convivência plena na religiosidade

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Uma grande forma de inclusão social, religiosa e

conhecimento da realidade, é termos e mantermos pessoas com

deficiências em nossos círculos de irmandade e amizade. Será

uma forma de ambos se conheceram como de fato são, quebrando,

assim, muitos mitos e os tradicionais preconceitos. Viver em

grupo é uma necessidade de nós, seres humanos. E nada expressa

melhor isso do que a amizade. Durante todos os períodos de

nossas vidas, temos amigos: infância, adolescência, idade adulta e

velhice. Poderá haver uma ciranda, principalmente em cidades

grandes, onde conhecemos inúmeras pessoas que entram e saem

de nossas vidas de maneira mágica, se assim se pode dizer; alguns

até por interesses profissionais. Embora nem sempre sejam os

mesmos, mas sempre é importante a figura dos amigos. Todavia,

há aqueles amigos, geralmente constituídos nas duas primeiras

fases de nossas vidas, que, entra ano e sai ano, estão sempre

presentes em todos os momentos de nossas vidas. E como é boa

essa presença! Pois, para uma pessoa com deficiência, esse círculo

de amizade torna-se ainda mais valioso, uma ajuda inevitável...

Duas reflexões podem ser feitas nesse sentido. Há aquelas

pessoas que nascem ou adquirem uma deficiência no início de

suas vidas e há aquelas que adquirem ao longo do percurso,

principalmente por acidentes. No primeiro caso, a pessoa já cresce

consciente de sua limitação, desafiando seus próprios limites;

realiza tudo com naturalidade, escola, brincadeiras, crescendo

entre a sua turma e participando normalmente de todas as

atividades de acordo com sua condição. Já aquele que adquiriu

uma deficiência terá que passar por um longo processo,

começando pela aceitação de sua nova condição, como lidar com

isso, “reaprendendo” a viver com sua nova realidade e dentro de

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suas possibilidades. Esse notará naturalmente o afastamento de

seus amigos comuns, não por maldade, mas por estarem dando

prosseguimento em suas vidas rotineiras. Sobrarão, sim, alguns

poucos e sinceros amigos, que o acompanharão em seu processo

de reabilitação e, mesmo sem saberem, terão uma participação

praticamente invisível, porém fundamental. Serão eles os

principais responsáveis na reintegração social dessa pessoa, a

partir do momento que passarem a aceitá-lo e incentivá-lo a

participar em suas atividades, mesmo as mais simples, como

passeios, por exemplo.

Pode parecer fácil ter e manter laços de amizade com

alguém com deficiência, mas acredito que não é tão simples assim.

Geralmente, uma pessoa que tem alguma limitação, dependendo o

grau e tipo, ao sair em público torna-se o centro das atenções,

motivo de curiosidade natural de todos. Dessa maneira, aquele

que o acompanha também será o centro de muitos olhares. Em

alguns casos, a pessoa poderá precisar de auxílio para realizar

algo, ao entrar em algum lugar, e certamente os irmãos e amigos

não medirão esforços, tendo boa vontade para tal. Importante

também respeitar as suas limitações, como, por exemplo, numa

caminhada, andar dentro do seu ritmo. Para ser amigo de alguém

com deficiência, deve-se ter muito discernimento, livre de

preconceitos, além de ser algo de enriquecimento e conhecimento

à convivência e a alma humana, exatamente o que se espera de um

comportamento cristão!

Nessas convivências dentro e fora da igreja,

descobriremos inúmeras qualidades e potencialidades; com isso

desaparecerão as diferenças provocadas pelas limitações, pois

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você aprenderá a respeitá-las. Será um mundo completando

outro. Assim a inclusão e a aceitação ocorrerão naturalmente.

Tudo depende de cada um e da união coletiva, e, sobretudo, que a

sociedade respeite e ajude na concretização dessa INCLUSÃO

SOCIAL e RELIGIOSA, para que ocorra, enfim, a CONVIVÊNCIA

PLENA.

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CONCLUSÕES

sociedade como um todo se uniu nos mais diversos

segmentos para promover a inclusão das pessoas com

deficiência. Infelizmente, as comunidades cristãs – sejam

católicas, sejam protestantes – estão muito atrasadas para esse

despertar, ou promovendo ações tímidas. Como observa Costa-

Renders (2009), “a Teologia tem fundamental importância na

construção de uma estrutura inclusiva em nossa sociedade. Como

um instrumental de reflexão sobre a condição humana e de

promoção da dignidade de todas as pessoas, a espiritualidade cristã

forma opinião – a começar, de forma assistemática, em nossas

comunidades, até chegar, de forma sistemática, às instituições

educacionais. A espiritualidade é um dos modos de produção de

sentido para o caminho da existência humana; portanto, uma

teologia inclusiva pode ser educativa – formar pessoas. Nesse

sentido, uma teologia inclusiva pode ser elucidativa no caminho de

construção de uma sociedade e uma educação para todos!” (p. 145).

Na verdade, este estudo teve por objetivo uma revisão

histórica e reflexiva sobre o assunto, como uma forma de

introdução a essa questão. Muita coisa ainda há por se pesquisar e

se escrever como uma forma de orientação para fortalecer essa

TEOLOGIA DA INCLUSÃO, focalizando vários outros aspectos que

envolvem as pessoas com deficiências, sobretudo apontando para

A

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as possibilidades de inclusão social e religiosa. Tanto para os

católicos em suas pastorais quanto para os protestantes em

missões, evangelizações, nas escolas bíblicas dominicais,

aconselhamentos, dentre outras ações.

Como já enfatizado, o primeiro passo para termos uma

Teologia da Inclusão será rever nossos próprios conceitos. Rever a

visão que temos das pessoas com deficiência, abandonando

conceitos de coitadinhos, vítimas, a deficiência como

consequência de castigos ou pecados. Abandonar a posição que

nós, cristãos, sempre tivemos de assistencialistas e piedade para

com essas pessoas, apoiados em nossas caridades, trazendo-as

para serem parte de nossas comunidades cristãs em total

igualdade. Sobretudo, temos que cada vez mais identificar e

eliminar do nosso meio os estigmas religiosos.

Isso constitui um grande desafio, uma vez em que vivemos

em um mundo praticamente “moldado”, que quase nunca aceita o

que sai do convencional, inclusive nas comunidades cristãs, pois

Deus, segundo I Timóteo, 2:4, “Que quer que todos os homens se

salvem, e venham ao conhecimento da verdade.”.

Geralmente, associa-se a imagem de uma pessoa com

deficiência como um ser “totalmente diferente”, “estranho” ou até

mesmo “alvo de gozação”. É normal muitos referirem-se a eles –

ou essas próprias pessoas sentirem-se – como seres “rejeitados”.

Mas preferimos não enfocá-los dessa forma, apontando-os como

seres “desconhecidos”. O que falta, na realidade, é um processo de

convivência para que todos – sociedade, comunidades cristãs e

pessoa com deficiência – se conheçam. Nasce aqui a verdadeira

187

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importância de uma boa inclusão nas comunidades cristãs. Mesmo

com algum tipo de limitação, essas pessoas devem participar do

processo de inclusão, no seu sentido mais amplo, tendo acesso a

oportunidades e condições adequadas ao desenvolvimento de

suas potencialidades, não apenas como membros de comunidades

cristãs, mas também de todas as atividades, incluindo todos os

ministérios dentro da Igreja.

É importante ainda que essas pessoas não se autolimitem,

lembrando-se sempre de que não são doentes, mas apenas

pessoas com algumas limitações, e que mesmo com elas, ou apesar

delas, podem conviver na sociedade e em comunhão com os

irmãos em Cristo, desde que haja adaptação necessária a essa

convivência. Não podem ficar à mercê dos acontecimentos,

precisam fazer com que as coisas aconteçam. Ao longo dos anos,

muitos dos direitos das pessoas com deficiência foram

reconhecidos pelos poderes governamentais e pela sociedade em

geral. É preciso agora que os envolvidos – principalmente quem

tem deficiência – usem a força de suas vozes para reivindicá-los e

lutar por sonhos e desejos, não esquecendo jamais do que são

capazes. E incluir na Igreja também é incentivar as pessoas com

deficiência a descobrir, desenvolver-se e fortalecer na fé em JESUS

CRISTO!

Na própria história do Antigo Testamento vimos que

muitos dos grandes personagens bíblicos usados por Deus de

alguma forma estavam ligados com algum tipo de deficiência. Já o

Novo Testamento, com a vinda de Jesus ao mundo e sua opção

pelos excluídos, faz com que as pessoas com deficiência “ganhem”

almas, respeito, por meio das quais Ele realiza muitas obras. Isso

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nos faz acreditar com segurança que as pessoas com deficiência

sempre foram canais de bênçãos entre Deus e a humanidade,

como o próprio Jesus Cristo testificou em João 9:3: “Jesus

respondeu: Nem ele pecou nem seus pais; mas foi assim para que se

manifestem nele as obras de Deus.”.

Este estudo histórico, que lançou luz a tantos personagens

e fatos bíblicos e pós-bíblicos, prova como pessoas com

deficiência e/ou circunstâncias que as envolvem são amadas e

usadas por Deus. Não existem deficiências diante dos olhos de

Deus, como diz I Samuel 16:7: “Porém o Senhor disse a Samuel:

Não atentes para a sua aparência, nem para a grandeza da sua

estatura, porque o tenho rejeitado; porque o Senhor não vê como vê

o homem, pois o homem vê o que está diante dos olhos, porém o

Senhor olha para o coração.”.

Uma doença ou uma deficiência apontam para a finitude

do homem e podem conduzi-lo à sensibilidade necessária para a

comunhão com Deus e com o próximo. Incluir não é ser bom ou

um ato de caridade. Incluir é ser realmente cristão!!!

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