01 -manual da responsabilidade civil do … · 25 manual da responsabilidade civil do estado...

12
23 CAPÍTULO I Sumário: 1. Novos riscos, novos danos; 2. O Estado como responsável por danos in- denizáveis; 3. Como situar a responsabilidade civil do Estado? ; 3.1. O direito civil do século XXI; 3.1.1. A constitucionalização do direito civil ; 3.1.2. A força normativa da Constituição ; 3.1.3. Aplicação dos direitos fundamentais às relações privadas; 3.1.4. O sistema jurídico como um sistema de princípios ; 3.1.5. Uma maior complexidade na in- terpretação do direito e pluralismo axiológico; 3.1.6. Menor relevância da distinção entre direito público e privado; 3.1.7. Menor relevância do formalismo jurídico e aproximação do direito com a ética; 3.2. O direito administrativo do século XXI; 3.2.1. A constitucio- nalização do direito administrativo ; 3.2.2. Possibilidade de análise do chamado mérito administrativo; 3.2.3. Controle judicial dos atos legislativos ; 3.2.4. Máxima eficácia dos direitos fundamentais; 3.2.5. A democracia na sua dimensão ativa; 3.2.6. Judicialização de políticas públicas; 3.3. A responsabilidade civil do século XXI. 1. NOVOS RISCOS, NOVOS DANOS A responsabilidade civil do Estado assume, hoje, importância notável. Quem está acostumado a acompanhar os julgados dos tribunais superiores percebe a magnitude do tema, que lida com relevantíssimas questões de teoria geral do direito e teoria dos direitos fundamentais. Não só isso: a presença constante em nossa vida diária, nos noticiários, nas conversas entre amigos. Mortes causadas por violência policial, danos sofridos em enchentes, sofrimentos em cadeias e presídios, tragédias em rodovias, entre outros. Sem falar em problemas ligados a epidemias, catástrofes ambientais, balas perdidas, grupos de extermínio, mortes em hospitais públicos ou em escolas, entre outras múltiplas situações possíveis. Temos, hoje, além disso, uma percepção diferente dos perigos que nos ame- açam. Os desafios e as ameaças do século XXI são bem distintos daqueles que ameaçavam a sociedade dos séculos passados. A sociedade em que vivemos é complexa, plural e veloz. Os casos levados ao Poder Judiciário são cada vez mais difíceis, envolvem valores e princípios, e não podem ser resolvidos mediante aplicação mecânica da norma ao fato (subsunção). As amplas transformações ocorridas na sociedade exigem que o ordenamento jurídico incorpore a ética e não se mostre tão fechado como costumava ser no passado. Há autores, como Ulrich Beck, que defendem que vivemos atualmente em sociedades de risco. Outros, como Castells, preferem pensar que vivemos numa sociedade informacional. Qualquer que seja a denominação adotada, o certo é que 23

Upload: trinhnhi

Post on 19-Sep-2018

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: 01 -MANUAL DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO … · 25 MANUAL DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO fraudulentos), mas também deixando de agir (imaginemos que a ausência de fiscalização

23

Capítulo i

Sumário: 1. Novos riscos, novos danos; 2. O Estado como responsável por danos in-denizáveis; 3. Como situar a responsabilidade civil do Estado? ; 3.1. O direito civil do século XXI; 3.1.1. A constitucionalização do direito civil ; 3.1.2. A força normativa da Constituição ; 3.1.3. Aplicação dos direitos fundamentais às relações privadas; 3.1.4. O sistema jurídico como um sistema de princípios ; 3.1.5. Uma maior complexidade na in-terpretação do direito e pluralismo axiológico; 3.1.6. Menor relevância da distinção entre direito público e privado; 3.1.7. Menor relevância do formalismo jurídico e aproximação do direito com a ética; 3.2. O direito administrativo do século XXI; 3.2.1. A constitucio-nalização do direito administrativo ; 3.2.2. Possibilidade de análise do chamado mérito administrativo; 3.2.3. Controle judicial dos atos legislativos ; 3.2.4. Máxima eficácia dos direitos fundamentais; 3.2.5. A democracia na sua dimensão ativa; 3.2.6. Judicialização de políticas públicas; 3.3. A responsabilidade civil do século XXI.

1. NOVOS RISCOS, NOVOS DANOS

A responsabilidade civil do Estado assume, hoje, importância notável. Quem está acostumado a acompanhar os julgados dos tribunais superiores percebe a magnitude do tema, que lida com relevantíssimas questões de teoria geral do direito e teoria dos direitos fundamentais. Não só isso: a presença constante em nossa vida diária, nos noticiários, nas conversas entre amigos. Mortes causadas por violência policial, danos sofridos em enchentes, sofrimentos em cadeias e presídios, tragédias em rodovias, entre outros. Sem falar em problemas ligados a epidemias, catástrofes ambientais, balas perdidas, grupos de extermínio, mortes em hospitais públicos ou em escolas, entre outras múltiplas situações possíveis.

Temos, hoje, além disso, uma percepção diferente dos perigos que nos ame-açam. Os desafios e as ameaças do século XXI são bem distintos daqueles que ameaçavam a sociedade dos séculos passados. A sociedade em que vivemos é complexa, plural e veloz. Os casos levados ao Poder Judiciário são cada vez mais difíceis, envolvem valores e princípios, e não podem ser resolvidos mediante aplicação mecânica da norma ao fato (subsunção). As amplas transformações ocorridas na sociedade exigem que o ordenamento jurídico incorpore a ética e não se mostre tão fechado como costumava ser no passado.

Há autores, como Ulrich Beck, que defendem que vivemos atualmente em sociedades de risco. Outros, como Castells, preferem pensar que vivemos numa sociedade informacional. Qualquer que seja a denominação adotada, o certo é que

23

Page 2: 01 -MANUAL DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO … · 25 MANUAL DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO fraudulentos), mas também deixando de agir (imaginemos que a ausência de fiscalização

Felipe p. Braga Netto

24

há um incremento dos riscos (violência, meio ambiente, transportes) e, também, da velocidade de transmissão das informações (o que potencializa os riscos, é só pensar na multiplicidade de danos à imagem que a internet e as redes sociais podem causar). É impossível pensar na atuação do Estado sem riscos. Os riscos fazem parte de nossas vidas, e isso é muito maior em relação ao Estado, pela dimensão de suas atividades.

Se pudéssemos resumir de forma simples, diríamos que o mundo se transfor-mou visceralmente nesse início de século. Cada período histórico viveu, de certo modo, transformações. Isso é natural na história humana. O que talvez defina, de modo sensível, as mudanças dos nossos dias, é a velocidade de transmissão das informações. Isso é algo inédito na história da humanidade. O mundo se tornou pequeno. Os Estados autoritários tentam, sem sucesso, controlar as redes sociais. As democracias contemporâneas buscam se adequar à nova ordem de valores que surgem numa sociedade cada vez mais integrada, cada vez mais veloz, e cada vez menos tolerante com aspectos arbitrários e ditatoriais, venham de governos, venham de poderes privados. Menos abuso e menos desvio de poder. É que se espera do Estado no século XXI.

2. O ESTADO COMO RESPONSÁVEL POR DANOS INDENIZÁVEIS

O Brasil, como Estado constitucional democrático, ocupa hoje um espaço político, social e econômico muito maior do que ocupava no passado. Significati-vamente, tornou-se, de acordo com os principais jornais britânicos, a sexta maior economia do mundo. Em 2012, o tradicional jornal The Guardian ironizou: “O Brasil tem batido os países europeus no futebol por um longo tempo, mas batê-los em economia é um fenômeno novo”.

Isso não significa, todos sabemos, que nossos gravíssimos problemas sociais estejam resolvidos. Como mostra o Programa das Nações Unidas para o Desen-volvimento (Pnud), temos desigualdades sociais muito profundas. O índice de desenvolvimento humano (IDH), no Brasil, continua aquém do desejável. Com-bater a miséria e a violência e propiciar níveis adequados de saúde e educação estão entre os desafios do novo século.

Pela magnitude das funções estatais – sobretudo num país continental, como o Brasil – as ocasiões e possibilidades do Estado causar danos aos cidadãos são imensas. Não só aos cidadãos, mas também, naturalmente, às pessoas jurídicas (imaginemos que a Polícia Federal, cumprindo mandado judicial de busca e apreensão, equivoca-se quanto ao endereço, e apreende computadores de outra empresa, cujos dados são perdidos). Não só agindo (realizando concursos públicos

Page 3: 01 -MANUAL DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO … · 25 MANUAL DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO fraudulentos), mas também deixando de agir (imaginemos que a ausência de fiscalização

25

Manual da Responsabilidade Civil do estado

fraudulentos), mas também deixando de agir (imaginemos que a ausência de fiscalização de uma obra esteja ligada, em nexo de causalidade, ao seu desaba-mento, atingindo outros moradores. Ou, como ocorre com frequência, tragédias no trânsito decorrentes de falhas na sinalização ou buracos na rodovia. Ou ainda pela ausência de atendimento em hospital público). Em grande parte dos casos, os cidadãos pouco ou nada podem fazer diante dos danos causados (pensemos na mais dramática hipótese: cidadão preso por engano e esquecido, por anos, na cadeia).

O que é certo que é o intérprete do século XXI tem o dever de adaptar essas situações às opções valorativas básicas da Constituição. Cabe-nos, em outras palavras, ao elaborar o tratamento jurídico dos danos, lembrar que estamos diante do Estado dos direitos fundamentais. Temos que atualizar, por assim dizer, a res-ponsabilidade civil do Estado, para que ela esteja em harmonia com as teorias hoje amplamente aceitas pela doutrina nacional e internacional e pela jurisprudência das Supremas Cortes. O Estado, aliás, atualmente, não deve apenas se abster de violar os direitos fundamentais. Deve, além disso, também protegê-los de violações por terceiros. Voltaremos a esse tema em várias partes do livro.

3. COMO SITUAR A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO?

A responsabilidade civil está fundada no princípio do neminem laedere, ou seja, a fórmula, de elaboração romana, que nos recomenda agir de forma a não lesar os direitos de outrem. Quando o dano ocorre – seja moral, material ou estético – busca-se compensar, ainda que parcialmente, o equilíbrio perdido. A responsabilidade civil centra-se, portanto, na obrigação de indenizar um dano injustamente causado. Aguiar Dias, a propósito, anota que “o mecanismo da res-ponsabilidade civil visa, essencialmente, à recomposição do equilíbrio econômico desfeito ou alterado pelo dano (AGUIAR DIAS, 1954, p. 557). Hoje sabemos que nem sempre o equilíbrio desfeito ou alterado pelo dano é econômico. Pode ser, também, moral e estético.

A responsabilidade civil do Estado orienta-se por princípios próprios, embora se submeta aos princípios da teoria geral da responsabilidade civil. O Estado ocupa uma posição peculiar: de um lado, pelo monopólio do uso legítimo da força, é forte candidato a violar direitos fundamentais (pensemos no histórico de abusos e excessos da polícia, por exemplo). Por outro lado, cada vez mais se exige do Estado que atue, inclusive preventivamente, para evitar lesões a direitos fundamentais (evitar, digamos, que haja bullying dentro de uma escola). Sabendo que a vida, a segurança, a liberdade são ameaçadas, de modo constante, por particulares, o Estado é a autoridade que pode impedir essas violações. Aparece, nesse sentido,

Page 4: 01 -MANUAL DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO … · 25 MANUAL DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO fraudulentos), mas também deixando de agir (imaginemos que a ausência de fiscalização

Felipe p. Braga Netto

26

como amigo dos direitos fundamentais. Dieter Grimm, a propósito, preceitua: “O Estado está obrigado não apenas a se abster de certas ações que violariam os direitos fundamentais. Ele também está obrigado a agir quando os bens protegidos pelos direitos fundamentais estejam ameaçados por agentes privados” (GRIMM, 2007, p. 160). Percebe-se, de modo progressivo, uma ampliação nos deveres de fundamentação do agir estatal (FREITAS, 2006, p. 11).

Canotilho aponta para a posição peculiar ocupada pela responsabilidade civil do Estado. A proximidade com os dois ramos do direito (direito civil e direito ad-ministrativo) já nos alerta para o perigo das abordagens unilaterais (CANOTILHO, 1974, p. 11). Helena Elias Pinto constata “que o estudo da responsabilidade civil do Estado, na atualidade, impõe reflexões que encaminham o intérprete para um diálogo interdisciplinar que cria um campo comum entre o Direito Constitucional, o Direito Civil, o Direito Administrativo, o Direito Processual Civil, a Teoria Geral do Direito e até mesmo o Direito Penal” (PINTO, 2008, p. 14).

Hoje, na experiência jurídica, poucos temas autorizam abordagens unilaterais. Não é razoável – numa sociedade complexa e veloz – que o intérprete se feche em seu estreito ramo de conhecimento e se recuse a dialogar com outras formas de abordar o problema. Na responsabilidade civil do Estado essa necessidade é ainda mais clara. Seria inadmissível tratar do tema analisando apenas o direito civil, como seria inadequado estudá-lo apenas com as lentes do direito adminis-trativo – desconhecendo as profundas e imensas mudanças por que tem passado o direito civil. O direito constitucional, por certo, deve permear o debate, sinalizando as opções valorativas possíveis e desejáveis. O STF já teve oportunidade de se manifestar a respeito do tema: “Entendo que essa construção da responsabilidade civil do Estado, por parte do Supremo Tribunal Federal, é uma das importantes construções que o Tribunal, ao longo do tempo, tem desenvolvido em termos de concretização do princípio do Estado de direito, entendido como aquele regime no qual não há soberano. Portanto, o próprio Estado está jungido ao regime do Estado de direito” (STF, RE 382.054).

Cabe lembrar que, no Brasil, a responsabilidade civil do Estado é objetiva (CF, art. 37, § 6º), desde 1946, e está fundada na teoria do risco administrativo. Comporta, portanto, as excludentes de responsabilidade civil (caso fortuito e força maior; culpa exclusiva da vítima). Abrange, em princípio, tanto os chamados atos de império (julgar, legislar), como os atos de gestão (aluguel de imóvel particular, por exemplo). O Estado responde pelos atos de qualquer agente, desde o mais modesto até o presidente da República. Não é necessário que haja remuneração (mesário da Justiça Eleitoral que discute e agride eleitor pode fazer surgir a res-ponsabilidade estatal). Nem é preciso, em todos os casos, que o agente público

Page 5: 01 -MANUAL DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO … · 25 MANUAL DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO fraudulentos), mas também deixando de agir (imaginemos que a ausência de fiscalização

27

Manual da Responsabilidade Civil do estado

esteja em serviço (policial que fere ou mata com arma da corporação, mesmo de folga). A responsabilidade pode surgir em qualquer dos níveis federativos (União, Estados e Municípios) e por atos ou omissões de quaisquer dos três poderes (Le-gislativo, Executivo ou Judiciário, como no caso de leis inconstitucionais e erros judiciários, por exemplo – CF, art. 5º, LXXV). A responsabilidade estatal tanto pode surgir de atos como de omissões (falta de atendimento médico, buracos nas rodovias, enchentes, etc) – embora, em relação às omissões, alguns exijam a prova da culpa. A responsabilidade civil do Estado superou as três fases históricas, tradicionalmente apontadas, e hoje é caracterizada pelo Estado como garantidor de direitos fundamentais.

Vem-se entendendo que as regras do Código de Defesa do Consumidor (chamado neste livro de CDC, para facilitação de leitura) devem ser invocadas – tratando-se de serviços públicos – quando o serviço é remunerado por meio de tarifa ou preço público (que não são tributos). Por outro lado, não se considera caracterizada a relação de consumo quando a atividade é prestada diretamente pelo Estado e custeada por meio de receitas tributárias (STJ, REsp 1.187.456; REsp 840.864; REsp 493.181). Trataremos de todos esses temas, e muitos outros conexos, ao longo do livro.

Digamos, desde já, que o Brasil ocupa uma posição peculiar na responsabi-lidade civil do Estado. Já faz parte de nossa tradição constitucional termos uma norma que imponha ao Estado indenizar, independentemente de culpa, os danos que seus agentes causem. Na França, Itália, Argentina, entre outros países, seja a ausência de menção ao tema na Constituição, seja a menção tímida e fragmentada (geralmente em tópicos esparsos de leis, sem nenhum princípio geral), faz com o que a matéria não tenha alcançado o desenvolvimento que atingiu entre nós.

Essa constitucionalização da responsabilidade civil do Estado, no Brasil, traz consequências interpretativas relevantes, sobretudo no que diz respeito à orientação solidarista da Constituição. Aponta-se, por exemplo, que “o fundamento ético--jurídico da responsabilidade objetiva deve ser buscado na concepção solidarista, fundada pela Constituição de 1988, de proteção dos direitos de qualquer pessoa injustamente lesada”. (BODIN, 2007, p. 450). O STF, a propósito, ponderou que “o dever de indenizar da vítima advém (…) de um princípio que poderíamos chamar de solidariedade social, solidariedade essa engendrada pelo fato de que toda ação administrativa do Estado é levada a efeito em prol do interesse coletivo” (STF, RE 262.651, Rel. Min. Joaquim Barbosa).

Além disso, a responsabilidade civil tem como um de seus princípios vetores, na atualidade, a primazia do interesse da vítima (desde que, naturalmente, haja nexo

Page 6: 01 -MANUAL DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO … · 25 MANUAL DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO fraudulentos), mas também deixando de agir (imaginemos que a ausência de fiscalização

Felipe p. Braga Netto

28

causal). Temos, ademais, uma Constituição pluralista, que privilegia a diversidade e a tolerância. Uma Constituição que tem, entre seus objetivos, a proteção da dignidade humana e a redução das desigualdades sociais. Pimentel Caldeira, citado por Helena Elias Pinto, sublinha: “Essa constitucionalização é uma peculiaridade da história da responsabilidade civil do Estado no Brasil, cujas repercussões jurídico-interpretativas ainda não foram inteiramente apreciadas ou consideradas seriamente” (PINTO, 2008, p. 85). Este livro tentará oferecer ao leitor a situação, neste começo de século, da responsabilidade civil do Estado no Brasil, sobretudo a partir da jurisprudência dos tribunais superiores. Sem, porém, esquecer a origem constitucional da norma que impõe essa responsabilidade, e levando em conta as fundamentais contribuições da doutrina contemporânea – que é muito rica e nem sempre é levada em conta ao se decidir os casos concretos. Lembrando sempre que “a dogmática constitucional deve buscar a clareza também porque ela proporciona maiores meios de controle da atividade estatal” (ÁVILA, 2003, p. 17).

São também aplicáveis à responsabilidade civil do Estado – e podem ter imensa valia na solução dos casos concretos – alguns princípios que adiante men-cionaremos, tais como: a) princípio da vulnerabilidade (o cidadão está, frente ao Estado, em posição de vulnerabilidade, razão pela qual deve ser levado em conta essa situação de real desnível); b) princípio da informação (o Estado tem o dever de bem informar o cidadão, com lealdade e transparência. Salvo naqueles setores – cada vez mais raros, como segurança nacional – em que se impõe o sigilo, a informação deve ser completa, gratuita e útil. Se a ausência de informação causar dano ao cidadão, a indenização poderá ter lugar); c) princípio da segurança (o Estado tem o dever constitucional de prestar segurança aos cidadãos, e responde quando falhar no cumprimento deste dever) e princípio do venire contra factum proprium (o Estado não pode adotar uma postura contraditória perante o cidadão. Não pode agir em contradição com a legítima expectativa que criou, causando perplexidade e surpresa. Se o comportamento contraditório causou um dano ao cidadão, objetivamente configurado, é natural que surja o dever de indenizar).

3.1. O direito civil do século XXI

Não é nosso propósito, neste capítulo, aprofundar os tópicos citados. A lite-ratura jurídica sobre o tema é vasta e de excelente qualidade. Apenas nos pareceu importante e necessário contextualizar a matéria e lembrar que as soluções, relati-vas à responsabilidade civil do Estado, deverão observar esses marcos teóricos e normativos. Poderíamos, para cada um dos tópicos mencionados, citar dezenas e dezenas de autores, nacionais ou estrangeiros, confirmando o que dizemos. Como, porém, optamos por fazer um livro breve, objetivo, de fácil leitura, acreditamos que

Page 7: 01 -MANUAL DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO … · 25 MANUAL DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO fraudulentos), mas também deixando de agir (imaginemos que a ausência de fiscalização

29

Manual da Responsabilidade Civil do estado

a citação excessiva poderia atrapalhar, ao invés de ajudar. Limitamos as citações, por isso, ao indispensável. Na bibliografia há menção à melhor doutrina sobre o tema.

3.1.1. A constitucionalização do direito civil

A constitucionalização do direito não é, como alguém poderia pensar, algo tipicamente brasileiro. O fenômeno, ao contrário, surgiu na Alemanha – como tantas outras inovações relevantes do campo jurídico. A partir da segunda metade do século passado, sobretudo tendo como ponto de partida certas decisões do Tribunal Constitucional Federal, a doutrina alemã passou a aprofundar o tema. O fenômeno também ocorreu, em maior ou menor grau, em países como a França, Itália, Espanha e Portugal.

No Brasil, só recentemente percebemos a força normativa da Constituição. Só a partir do final da década de 80, mais especificamente a partir da Carta de 88, é que começou a florescer entre nós uma cultura constitucional. A constitucionalização do direito civil, como fenômeno doutrinário, não partiu dos constitucionalistas, mas dos civilistas, a partir das magistrais intuições de Gustavo Tepedino, Paulo Lobo, Edson Fachin, entre outros. Na área constitucional, Luís Roberto Barroso se destaca pela vanguarda dos questionamentos. É um constitucionalista que afirma: “Cumpre destacar que, no Brasil, os primeiros passos no reconhecimento da constitucionalização do Direito Civil devem ser creditados aos civilistas e não aos constitucionalistas, que só se interessaram pelo tema bem depois. Trata-se de um fenômeno incomum no direito comparado, em que, de um modo geral, os civilistas mantiveram-se refratárias a uma influência maior da Constituição sobre os domínios da sua ciência” (BARROSO, 2007, p. 134/135). Não se pode dizer que se trata de afirmação suspeita, pois parte de um estudioso do direito constitucional.

Os civilistas falam em interpretar o Código Civil a partir da Constituição. Os constitucionalistas preferem falar em “filtragem constitucional”. De todo modo, a ideia básica é ler os institutos e categorias do direito civil à luz dos valores da Constituição. Redefinir os conceitos da velha dogmática a partir de uma visão que leva em conta o núcleo axiológico da Constituição, seus princípios e direitos fundamentais.

Não se trata, é bom esclarecer, de incluir na Constituição normas deste ou daquele ramo do direito, atulhando a Constituição de temas que possivelmente não deveriam estar lá. Não é isso. A constitucionalização implica, sobretudo, numa postura interpretativa. A dignidade da pessoa humana, fundamento da República (CF, art. 1º, III), passa a ser constantemente invocada. Talvez duas palavras possam resumir essa autêntica revolução por que passa o direito civil: repersonalização e

Page 8: 01 -MANUAL DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO … · 25 MANUAL DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO fraudulentos), mas também deixando de agir (imaginemos que a ausência de fiscalização

Felipe p. Braga Netto

30

despatrimonialização. Ou seja: o intérprete deve ter uma atenção prioritária com a pessoa humana, e não com o seu patrimônio. O patrimônio é mero instrumento de realização de finalidades existenciais e espirituais, não é um fim em si mesmo.

3.1.2. A força normativa da Constituição

Por incrível que possa parecer a um estudante do século XXI, até pouco tem-po atrás – e cinquenta anos, para o direito, é pouco tempo – a Constituição não era vista como uma norma jurídica. A Constituição era tida como um documento essencialmente político, mas não jurídico. Qual a consequência desse raciocínio? As normas constitucionais não geravam direitos subjetivos para os cidadãos. Nem poderiam ser aplicadas diretamente pelos juízes, sem que houvesse uma lei que concretizasse os mandamentos da Constituição.

Essa visão foi, aos poucos, se transformando. A partir de meados do século passado ganhou relevo a percepção da força normativa da Constituição. Hoje ninguém se atreveria a negar que a Constituição é norma jurídica vinculante – não só as regras da Constituição, mas também, e sobretudo, os seus princípios. O juiz pode aplicá-la diretamente, sem mediação legislativa. E os cidadãos podem invocá-la não só para limitar a atividade estatal, como também para se defender de agressões de outros particulares, dos chamados poderes privados (empresas de telefonia, bancos, seguros, etc). Temos, hoje, uma constituição normativa que consagra e protege, de modo incisivo, os direitos fundamentais.

A jurisprudência tem se mostrado atenta ao ponto: “Ressoa inconcebível que direitos consagrados em normas menores como Circulares, Portarias, Medidas Provisórias, Leis Ordinárias, tenham eficácia imediata e os direitos consagrados constitucionalmente, inspirados nos mais altos valores éticos e morais da nação sejam relegados a segundo plano. Trata-se de direito com normatividade mais do que suficiente, porquanto se define pelo dever, indicando o sujeito passivo, in casu, o Estado”. (STJ, REsp 575.998, Rel. Min. Luiz Fux, 1ª T., DJ 16/11/04).

Pontes de Miranda, no início do século XX, genialmente já atentava para a necessidade das constituições contemporâneas serem normativas (e não só fo-lhas de papel): “Cada vez mais se acentuará o papel social, e não só político, das Constituições contemporâneas e das Constituições futuras”. Proclama algo que, se hoje é lugar comum, não era no começo do século passado: “A Constituição de hoje não pode ser abstrata, vaga, simples formalismo assubstancial. Tem de ser viva, palpável, normativa, e normativa assim para interesses como para legislações que dentro dela devam viver”. Continua: “Por outro lado, vivemos em tempo que

Page 9: 01 -MANUAL DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO … · 25 MANUAL DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO fraudulentos), mas também deixando de agir (imaginemos que a ausência de fiscalização

31

Manual da Responsabilidade Civil do estado

exige a segurança nos resultados, a confiança na eficiência e no rendimento social das próprias leis” (PONTES DE MIRANDA, 1960, p. 162).

A jurisdição constitucional revelou princípios que, apesar de não previstos literalmente pela Constituição, hoje inegavelmente fazem parte de sua força normativa. O princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade (cabe abstrair, por ora, eventuais distinções terminológicas) certamente é o melhor exemplo. A proporcionalidade hoje é largamente usada nos mais variados campos temáticos – inclusive, com muita força e rigor conceitual, na responsabilidade civil do Estado.

No Brasil, o STF se valeu pela primeira vez do principio em 1993 (aludindo ao “princípio da proporcionalidade e razoabilidade”) – cinco anos, portanto, depois da Carta de 1988 (STF, ADIn n. 855, Rel. Min. Sepúlveda Pertence). Não cremos que haja utilidade em distinguir proporcionalidade de razoabilidade. A doutrina alemã parece usar indistintamente os termos proporcionalidade e proibição do excesso. Os americanos parecem preferir o termo razoabilidade (BARROS, 1996, p. 70). Luís Roberto Barroso – recentemente nomeado para o Supremo – pondera não haver distinção essencial entre os princípios (BARROSO, 1998, p. 6).

O STF, a propósito, proclamou com rigor conceitual: “O princípio da pro-porcionalidade – que extrai a sua justificação dogmática de diversas cláusulas constitucionais, notadamente daquela que veicula a garantia do substantive due process of law – acha-se vocacionado a inibir e a neutralizar os abusos do Poder Público no exercício de suas funções, qualificando-se como parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais” (STF, ADI-MC 1.407-DF, Rel. Min. Celso de Mello, Pleno, DJ 24/11/2000).

São conhecidos, na literatura constitucional, os três subprincípios que orien-tam e definem o teste, por assim dizer, da proporcionalidade: a) adequação entre meios e fins (Geeignetheit), que sinaliza a necessidade de adequação entre o fim buscado e os meios empregados para atingi-lo. As medidas, nesse contexto, devem não apenas guardar harmonia com os fins, mas também devem ser adequadas e eficientes para atingi-los; b) necessidade (Erforderlichkeit), que tem relação com o menor ônus possível que o cidadão deverá sofrer diante da ação estatal. Con-forme frisamos em outra oportunidade, o agente público está obrigado a sacrificar o mínimo de direitos fundamentais, para preservá-los ao máximo; c) proporcio-nalidade em sentido estrito, que indaga se os ônus não serão demasiados, mesmo que os fins sejam atingidos. É uma visão mais utilitária, embora não puramente econômica, que busca um ângulo realístico de visão em relação ao problema. Em muitos países, como Alemanha e Portugal, a proporcionalidade em sentido amplo (Übermassverbot) é identificada com o princípio da proibição do excesso.

Page 10: 01 -MANUAL DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO … · 25 MANUAL DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO fraudulentos), mas também deixando de agir (imaginemos que a ausência de fiscalização

Felipe p. Braga Netto

32

3.1.3. Aplicação dos direitos fundamentais às relações privadas

Hoje quase todos os autores contemporâneos tocam no assunto. Quase todos falam na chamada eficácia horizontal dos direitos fundamentais (ou eficácia privada, ou aplicação direta dos direitos fundamentais nas relações privadas). Chegou-se, portanto, praticamente ao consenso de que os direitos fundamentais não se aplicam apenas em relação ao Estado, mas se aplicam também em relação aos particulares (Drittwirkung ou horizontalwirkung).

Todos concordam que o marco para o estudo do tema surgiu com o clássico caso Lüth, julgado pelo Tribunal Constitucional Federal Alemão. Neste julgamen-to, realizado em 1958, consignou-se: “A Lei Fundamental não é um documento axiologicamente neutro. Sua seção de direitos fundamentais estabelece uma ordem de valores, e esta ordem reforça o poder efetivo destes direitos fundamentais. Este sistema de valores, que se centra na dignidade da pessoa humana, em livre desenvolvimento dentro da comunidade social, deve ser considerado como uma decisão constitucional fundamental, que afeta todas as esferas do direito públi-co ou privado”. Completa-se, mais adiante: “Assim, é evidente que os direitos fundamentais também influenciam o desenvolvimento do Direito Privado. Cada preceito do Direito Privado deve ser compatível com este sistema de valores e deve ainda ser interpretado à luz do seu espírito (…). Este sistema confere um conteúdo constitucional específico ao Direito Privado, orientando a sua interpretação”.

Este caso não foi, naturalmente, o fim, mas o início de uma linha jurisprudencial e doutrinária extremamente fecunda. O que é certo é que esse importantíssimo julgado deu origem a profunda renovação nos estudos e pesquisas sobre o tema. Frisou-se – o que alguns chamam de dimensão objetiva dos direitos fundamentais – que os direitos fundamentais afetam todas as demais áreas jurídicas, e também devem conformar a atuação dos poderes públicos (legislando, executando e jul-gando).

Importante dizer que hoje se aceita, de modo crescente, a tese da aplicação direta dos direitos fundamentais às relações privadas. Assim, “que as normas constitucionais, e particularmente o rol dos direitos e garantias individuais, possuam direta eficácia nas relações de direito privado, parece pouco a pouco constituir um consenso para a melhor doutrina, animada sobretudo pelos debates doutrinários desenvolvidos na Alemanha, na Itália e em Portugal, nos últimos 30 anos” (RTDC, editorial, 2000). O STF, a propósito, por sua segunda Turma, chancelou a tese da aplicação direta dos direitos fundamentais às relações priva-das – também chamada de eficácia horizontal dos direitos humanos – aplicando as garantias constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla

Page 11: 01 -MANUAL DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO … · 25 MANUAL DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO fraudulentos), mas também deixando de agir (imaginemos que a ausência de fiscalização

33

Manual da Responsabilidade Civil do estado

defesa às associações privadas (STF, RE 201.819, Rel. Min. Gilmar Mendes). Nesse sentido, “o Estado brasileiro, em última análise, tem o dever de zelar pela eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais, punível a omissão despida de motivos plausíveis”. (FREITAS, 2006, p. 185).

Outro ponto importante é saber que hoje não basta que o Estado se abstenha de violar os direitos fundamentais. Ele precisa, além disso, evitar que terceiros os violem. Exige-se, portanto, atualmente, que o Estado assuma uma postura ativa, agindo para defender direitos fundamentais ameaçados. Isto é, não basta que o Estado se abstenha de agir (não impeça, digamos, que um ato público se realize), é preciso proteger e agir para que lesões não ocorram (agindo para que outros não impeçam a reunião nem agridam quem lá esteja). Voltaremos ao assunto mais adiante.

Cabe apenas, antes de encerrar este tópico, citar Juarez Freitas, pela pertinência com o tema proposto: “O princípio da responsabilidade extracontratual objetiva do Estado pelas condutas omissivas ou comissivas causadoras de lesão antijurídica apresenta-se como um dos pilares do Estado Democrático, sobremodo pelos riscos inerentes à atuação estatal. Trata-se de proteção que se impõe independentemente de culpa ou dolo do agente causador do dano. Nasce da superação da ideia do Estado como etérea encarnação da vontade geral infalível. A par disso, a consa-gração, entre nós, da aplicabilidade direta e imediata dos direitos fundamentais (CF, art. 5º, § 1º) é um dos argumentos mais robustos contra a teoria segundo a qual não poderia o Estado ser objetivamente responsabilizado por omissões. Com efeito, os requisitos da responsabilidade estatal objetiva compõem, em grandes traços, uma tríade: a existência de dano material ou imaterial, juridicamente in-justo e desproporcional; o nexo causal direto e, finalmente, a conduta omissiva ou comissiva do agente da pessoa jurídica de direito público ou de direito privado prestadora de serviço público, nessa qualidade” (FREITAS, 2005, p. 28).

3.1.4. O sistema jurídico como um sistema de princípios

Nossa formação jurídica tradicional, de origem romano-germânica, atribui imenso valor ao texto escrito – quanto mais detalhado, melhor. Isso, de fato, em muitas situações, pode ser uma virtude, pois é inegável que prestigia a segurança jurídica, um valor muito importante. Porém, no Brasil, talvez inconscientemente, houve um excesso nesse processo. Pensava-se que só haveria direito subjetivo se uma norma – lei ordinária, resolução, portaria – previsse, com absoluta minúcia, a situação jurídica em questão.

Hoje sabemos que só com regras não se resolvem os problemas jurídicos. É preciso trabalhar também com princípios. Eles, porém, com alguma frequência, entram em choque, colidem entre si. Como resolver esses conflitos? De modo muito

Page 12: 01 -MANUAL DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO … · 25 MANUAL DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO fraudulentos), mas também deixando de agir (imaginemos que a ausência de fiscalização

Felipe p. Braga Netto

34

simples, e com a concisão máxima que estamos procurando, pode-se dizer que esses conflitos se resolvem pela ponderação. É uma técnica que tem, entre outros, três postulados básicos: a) só tem sentido diante de casos concretos, nunca de modo abstrato e apriorístico; b) a solução dada em determinado caso concreto (prevalência, digamos, em determinado caso, da privacidade em relação à liberdade de expressão) não será necessariamente a mesma em outro caso com contextos distintos; c) o in-térprete, para chegar a uma solução, poderá fazer concessões recíprocas, procurando ponderar os interesses envolvidos. Por isso é que há autores alemães que dizem que o Estado Constitucional de Direito é um Estado de Ponderação (Abwägungsstaat).

Atualmente, a filosofia constitucional trabalha com o pós-positivismo. Seria impossível pensar em pós-positivismo sem atribuir caráter normativo aos prin-cípios. Os princípios, desse modo, são normas jurídicas vinculantes, ninguém hoje ousaria negar. Os princípios, porém, não fornecem, de modo abstrato, todos os componentes de sua aplicação. Em virtude da própria estrutura maleável e flexível com que são formados, eles precisam da dialética dos casos concretos para assumirem sua exata dimensão.

O sistema jurídico, desse modo, cada vez mais se põe como um sistema aberto de princípios normativos. Esses princípios, que estabelecem objetivos e fins, são articulados de modo dinâmico, não estático. Não há nem mesmo uma hierarquia prévia entre eles. Eles trabalham com uma lógica de ponderação, o que significa que apenas nos casos concretos, devidamente contextualizados, é que os princípios se expandem ou se retraem, à luz das especificidades das circunstâncias.

Dieter Grimm – que foi juiz do Tribunal Constitucional Federal Alemão, res-ponsável por muitos desses avanços jurisprudenciais – registra: “Com exceção da dignidade humana (Grundgesetz, Lei Fundamental, art. 1º), que é considerada uma fonte para todas as garantias que se seguem na Declaração de Direitos, a Corte Constitucional alemã não reconhece uma hierarquia de direitos fundamentais” (GRIMM, 2007, p. 162). Desse modo, o princípio da dignidade da pessoa humana “impõe limites à atuação estatal, objetivando impedir que o poder público venha a violar a dignidade pessoal, mas também implica (numa perspectiva que se poderia designar de programática ou impositiva, mas nem por isso destituída de plena eficácia) que o Estado deverá ter como meta permanente a proteção, promoção e realização concreta de uma vida com dignidade para todos” (SALET, 2004).

É verdade que há entusiasmos excessivos em alguns autores. Alguns falam como se, acolhida a normatividade da Constituição, não teríamos mais miséria, violência, contrastes. Seríamos todos felizes e bons. Descontados os exageros próprios de todo início de ciclo, a ideia retoma algo importante, e que estava meio esquecido no positivismo: o potencial transformador da sociedade que o direito tem, ou deve ter.