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1 AS TRANSFORMAÇÕES DO FEUDALISMO Os últimos anos do século X foram de crescente terror para a população europeia. Com frequência cada vez maior, previsões catastróficas, alimentadas pelo misticismo e pela ignorância, circulavam pelo continente, anunciando o apocalipse: para muitas pessoas o mundo acabaria com a chegada do ANO 1000, quando se completaria o primeiro milênio depois de Cristo. Entretanto, como sabemos hoje, o mundo não acabou naquele momento. Pelo contrário, em fins do século X ocorreu uma sensível diminuição das invasões. A partir do século XI um grande aumento demográfico ocorreu na Europa Ocidental, entre outros fatores, por causa do fim das grandes invasões que a região conhecera. Após os normandos (vikings ou north men), mouros ou sarracenos (povos do norte da África convertidos ao Islã) e magiares terem feito suas incursões, o continente ganhou alguns séculos de relativa tranquilidade. O número elevado de mortes em razão das lutas provocadas pelos invasores deixou de acontecer, o que teve resultado imediato: a população quase dobrou, passando de cerca de 46 milhões em 1050 a 73 milhões em 1300. Ao mesmo tempo, caiu também momentaneamente a mortandade por epidemias, pois a população vivia espalhada nos feudos, o que dificultava a propagação de doenças infectocontagiosas. Tudo isso gerou estabilidade e crescimento demográfico. Assim, a Europa chegou ao século XI revigorada e em crescimento. Ao longo dos três séculos seguintes, o continente experimentaria profundas transformações Entre o século XI e o início do século XIII houve a retomada do crescimento demográfico na Europa cristã. Alguns dados permitem uma visão desse crescimento: 1050 .......................................... 46 milhões 1100 .......................................... 48 milhões 1150 .......................................... 50 milhões 1200 .......................................... 61 milhões 1300 .......................................... 73 milhões [...] Os números acima são extremamente importantes para se compreender melhor as transformações que ocorreram na Europa a partir de então. (SILVA, Francisco C. T. da. Sociedade feudal – guerreiros, sacerdotes e trabalhadores.) - INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS Tal aumento demográfico trouxe problemas de abastecimento, pois o sistema feudal começou a apresentar limites que foram superados com o desenvolvimento e uso de novas técnicas e tecnologias. As novas técnicas de atrelagem diziam respeito à necessidade de se encontrar formas de os animais produzirem mais força ao utilizarem a charrua (arado de ferro que substituiu o arado de madeira). Essa forma significou a troca dos bois pelos cavalos que passaram a utilizar a coelheira , uma espécie de “coleira” ou peitoral que transfere o esforço do peito para os ombros do animal. Isso possibilitava ao animal dar conta de puxar cargas cinco vezes mais elevadas do que com o arado. Com essa dupla invenção – charrua e coelheira –, terras mais difíceis puderam ser largamento aproveitadas. As áreas de solos argilosos passaram a se tornar agricultáveis, ao mesmo tempo que os pântanos eram drenados, florestas derrubadas, áreas de pastagens transformadas em áreas

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AS TRANSFORMAÇÕES DO FEUDALISMO

Os últimos anos do século X foram de crescente terror para a população europeia. Com frequência cada vez maior, previsões catastróficas, alimentadas pelo misticismo e pela ignorância, circulavam pelo continente, anunciando o apocalipse: para muitas pessoas o mundo acabaria com a chegada do ANO 1000, quando se completaria o primeiro milênio depois de Cristo.

Entretanto, como sabemos hoje, o mundo não acabou naquele momento. Pelo contrário, em fins do século X ocorreu uma sensível diminuição das invasões. A partir do século XI um grande aumento demográfico ocorreu na Europa Ocidental, entre outros fatores, por causa do fim das grandes invasões que a região conhecera. Após os normandos (vikings ou north men), mouros ou sarracenos (povos do norte da África convertidos ao Islã) e magiares terem feito suas incursões, o continente ganhou alguns séculos de relativa tranquilidade.

O número elevado de mortes em razão das lutas provocadas pelos invasores deixou de acontecer, o que teve resultado imediato: a população quase dobrou, passando de cerca de 46 milhões em 1050 a 73 milhões em 1300. Ao mesmo tempo, caiu também momentaneamente a mortandade por epidemias, pois a população vivia espalhada nos feudos, o que dificultava a propagação de doenças infectocontagiosas. Tudo isso gerou estabilidade e crescimento demográfico. Assim, a Europa chegou ao século XI revigorada e em crescimento. Ao longo dos três séculos seguintes, o continente experimentaria profundas transformações

Entre o século XI e o início do século XIII houve a retomada do crescimento demográfico na Europa cristã. Alguns dados permitem uma visão desse crescimento:

1050 .......................................... 46 milhões1100 .......................................... 48 milhões1150 .......................................... 50 milhões1200 .......................................... 61 milhões1300 .......................................... 73 milhões [...]

Os números acima são extremamente importantes para se compreender melhor as transformações que ocorreram na Europa a partir de então. (SILVA, Francisco C. T. da. Sociedade feudal – guerreiros, sacerdotes e trabalhadores.)

- INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS

Tal aumento demográfico trouxe problemas de abastecimento, pois o sistema feudal começou a apresentar limites que foram superados com o desenvolvimento e uso de novas técnicas e tecnologias.

As novas técnicas de atrelagem diziam respeito à necessidade de se encontrar formas de os animais produzirem mais força ao utilizarem a charrua (arado de ferro que substituiu o arado de madeira). Essa forma significou a troca dos bois pelos cavalos que passaram a utilizar a coelheira, uma espécie de “coleira” ou peitoral que transfere o esforço do peito para os ombros do animal. Isso possibilitava ao animal dar conta de puxar cargas cinco vezes mais elevadas do que com o arado. Com essa dupla invenção – charrua e coelheira –, terras mais difíceis puderam ser largamento aproveitadas. As áreas de solos argilosos passaram a se tornar agricultáveis, ao mesmo tempo que os pântanos eram drenados, florestas derrubadas, áreas de pastagens transformadas em áreas de agricultura. A essa expansão das áreas produtoras deu-se o nome de arroteamento. Isso provocou um enorme impacto ambiental:

O incremento da cultura de cereais fizera-se à custa de uma redução das pastagens: com isso sofrera, consequentemente, a criação de gado e o fornecimento de estrume para a lavoura. Assim, o progresso da agricultura medieval exigiu o seu próprio preço. O desbravamento de florestas e terras incultas não fora acompanhado por um correspondente trabalho de conservação nos casos mais favoráveis; os fertilizantes quase não eram aplicados e por isso o solo da superfície empobrecia rapidamente; as inundações e as tempestades de poeiras tornaram-se mais frequentes. Além disso, a diversificação da economia feudal europeia, com o aumento do comércio internacional, levou algumas regiões a uma diminuição da produção de cereais em benefício de outros ramos da agricultura (vinho, linho, lã e gado) e, consequentemente, a uma crescente dependência das importações, com os perigos inerentes.

Neste panorama de equilíbrio ecológico cada vez mais instável, a expansão demográfica podia converter-se em sobrepopulação aos primeiros golpes de uma má colheita. (Perry ANDERSON, Passagens da Antiguidade ao Feudalismo, p. 224.)

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Em primeiro plano, charrua atrelada a cavalo por coelheira. Queda de Ícaro, Pieter Brueghel, o Velho.

A generalização do sistema de pousio (rotação trienal de culturas), também apontado como fator de dinamização da produção agrícola a partir do século XI, significava que, a cada ano, as terras disponíveis seriam divididas em três faixas, cultivando-se duas e deixando a outra no pousio, ou seja, de repouso, para que a terra recuperasse seus nutrientes. No ano seguinte, fazia-se o rodízio, de modo que a cada ano havia sempre dois campos cultivados e um de repouso.

Outro avanço tecnológico significativo ocorreu com o surgimento dos moinhos de água, utilizados para moer cereais. Como um único moinho substituía, em um dia, a força de quarenta trabalhadores, esses engenhos se espalharam rapidamente pela Europa a partir do século XI.

Entre os séculos XII e XIII, os árabes introduziram na Península Ibérica os moinhos de vento. Rapidamente adotados no resto do continente, esses engenhos se revelaram indispensáveis para a manutenção dos sistemas de diques e canais. Graças a eles, uma quantidade muito grande de pântanos foi drenada e transformada em área para plantio.

O cultivo de novas espécies de leguminosas alterou a qualidade nutricional da dieta alimentar, gerando um impacto positivo na população. A transformação foi mais significativa para as mulheres. As gestantes e as mulheres em fase de aleitamento necessitavam de uma dieta mais rica em ferro, abundante nas leguminosas. A mortalidade feminina diminuiu e, em consequência, cresceu o número de crianças que se desenvolveram na idade adulta.

Essas mudanças técnicas garantiram o aumento da produção e, ao mesmo tempo, liberaram mão-de-obra da agricultura. Os trabalhadores (camponeses: servos e vilões) que agora não eram mais necessários no campo dedicaram-se ao artesanato e foram os principais responsáveis pela criação das cidades no século XI.

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Historiadores acreditam que, a partir do século X, o aumento da produção agrícola europeia foi cerca de 150%. As novidades tecnológicas introduzidas no canpo tiveram papel fundamental nesse crescimento, porém outro fator que não pode ser desprezado foi o maior uso do adubo nas plantações.

Responsável por fertilizar o solo, o adubo era muto caro, tendo seu preço cotado em ouro. Diversos estudos da época informavam sobre os diferentes tipos de adubo e como obtê-lo com as sobras das colheitas. Um tratado medieval recomendava: “nenhuma exploração senhorial venda seu restolho (sobras). Apanhe a quantidade absolutamente indispensável para cobrir o telhado das casas. O resto deve ser enterrado no solo.”

Além das sobras, outra importante fonte de adubo era o esterco, principalmente o do carneiro, considerado um dos melhores para a agricultura. Entretanto, o mais eficiente era o estrume de pombo, usado, em geral, para fertilizar as hortas. Os senhores feudais mandavam construir em suas propriedades, pombais que funcionavam como verdadeiras fábricas de esterco. A construção de pombais era privilégio exclusivo desses senhores. O esterco do pombo só perdeu importância na Europa no século XIX, com a introdução do adubo artificial.

- A AGRICULTURA, O COMÉRCIO E AS CIDADES

Apesar da tendência à autossuficiência dos feudos, as atividades mercantis nunca paralisaram completamente. As trocas efetuavam-se em feiras, estabelecidas em geral nas proximidades de castelos, também chamados de burgos (cidades fortificadas). Com permissão dos senhores feudais, as feiras podiam instalar-se e até receberem proteção em troca de taxas e tributos pagos aos senhores. Restritas a determinados locais e de frequência irregular, as transações comerciais garantiam o abastecimento de gêneros fundamentais, que não eram produzidos em todas as regiões – como o sal, o azeite, o vinho e os metais –, ou de artigos de luxo consumidos pela nobreza.

Com tudo isso, as trocas ocasionais começaram a tornar-se mais constantes, transformando alguns pontos de encontro de comerciantes e feiras em locais permanentes de transações comerciais: as cidades.

Além de verdadeiras aglomerações de comerciantes, as cidades desenvolveram os diversos ramos do artesanato e toda uma série de serviços para receber e alojar negociantes e compradores. Um provérbio medieval dizia: O ar das cidades torna o homem livre. De fato, encravadas no mundo feudal e resultantes do desenvolvimento dessa economia, as cidades acabaram por acelerar as alterações sociais do período. A vida urbana atraía parte dos trabalhadores rurais, estimulando a fuga de servos e o estabelecimento de artesãos. Pelo costume da época, em muitas regiões europeias, os servos que permaneciam um ano e um dia em determinada cidade, sem que seu senhor os capturasse e levasse de volta ao seu domínio, passava a ser considerado livre. O trabalho assalariado começava então a se desenvolver, levando ao surgimento de novos grupos sociais e ameaçando a “estabilidade” vivida pelo feudalismo nos últimos séculos,

“Cenas” urbanas da Idade Média, representando as atividades econômicas

presentes no cotididano dos burgueses. Na primeira imagem à esquerda, feira medieval e na segunda (acima), comerciantes com suas “bancas” e mercadorias em exposição.

- A VIDA NAS CIDADES

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Os habitantes das cidades – banqueiros, mascates, artesãos e grandes comerciantes – eram conhecidos como burgueses, em razão de viverem sob a proteção de muros fortificados (muralhas defensivas) que circundavam o espaço urbano, denominado forisburgos.

As cidades multiplicaram-se ao longo das rotas comerciais. Muitas vezes, tratava-se de antigas cidades romanas abandonadas, que foram sendo reocupadas e voltavam a prosperar. Outras vezes, eram aglomerados que surgiam nas encruzilhadas de rotas comerciais terrestres, em regiões de feiras ou às margens de rios. Havia também as aglomerações formadas em torno de antigos castelos, que extrapolaram os limites das muralhas originais. Nesse caso, como se originaram em terras pertencentes aos senhores feudais, que compunham a camada social dominante, ficavam submetidas a sua autoridade e, frequentemente, à cobrança de impostos.

As cidades medievais eram protegidas contra ataques externos por muralhas altas e grossas, torres e pontes levadiças. As maiores – Florença, Gante, Paris – chegaram a ter entre cinquenta e cem mil habitantes. Cobrindo áreas pequenas, essas cidades muradas tinham excesso de moradores. As ruas eram estreitas e sinuosas, pontilhadas de barracas de negociantes e artesãos, e sujas de lixo. Durante o dia, viviam cheias de comerciantes que negociavam seus produtos, mulheres que carregavam cestos, homens que conduziam carros com produtos agrícolas e mercadorias, mendigos que esmolavam e crianças que brincavam. O trânsito de carroças, animais e pessoas ficava, por vezes, congestionado e totalmente paralisado em consequência de festividades, como uma procissão em honra a um santo padroeiro; os enforcamentos ou decapitações eram considerados como outros divertimentos e sempre atraíam grande multidão. À noite, as ruas ficavam desertas; poucas pessoas se aventuravam a sair, porque os raros e velhos guardas não eram empecilho aos numerosos ladrões. (PERRY, Marvin. Uma História concisa.)

Desenho de uma cidade medieval (século XIII.)

Representação da cidade de Nuremberg. Observe as muralhas, torres de vigia e o“fosso” que circunda a cidade.

Profª ISABEL CRISTINA SIMONATODisciplina: HISTÓRIAEscola Estadual de Ensino Médio “Emílio Nemer”Castelo - ES