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MANGUEBIT: Novas possibilidades na indústria cultural fonográfica brasileira da década de 1990.
Francisco Gerardo Cavalcante do Nascimento1.
RESUMO
Palavras-chave: MangueBit, Multiculturalismo, Cultura Popular.
A música contemporânea brasileira das últimas décadas assistiu ao surgimento do movimento musical MangueBit, oriundo do Estado de Pernambuco no Nordeste brasileiro. Forjado nas usinas culturais da periferia da cidade de Recife, tendo como principais características a diversidade e a fusão da cultura popular pernambucana multifacetada dos maracatus, caboclinhos, afoxés, cirandas, emboladores, entre outros, com os ritmos estrangeiros como o Funk, Soul, Hip Hop, Rock e etc. Sendo o MangueBit nossa temática de pesquisa, demonstraremos a relação entre o referido movimento multicultural de caráter globalizado com a indústria cultural brasileira fonográfica da década de 1990, pois foi neste período que acreditamos que o MangueBit conheceu seu período de maior efervescência..
ABSTRACT
The contemporary Brazilian music in decades witnessed the emergence of the movement MangueBit music, from the State of Pernambuco in northeastern Brazil. Wrought in the cultural power of the periphery of the city of Recife, having as main features the diversity and fusion of popular culture of Pernambuco multifaceted maracatus, caboclinhos, afoxés, Cirandas, emboladores, among others, with the rhythms and the foreign Funk, Soul, Hip Hop , Rock and so on. MangueBit being the subject of our research, demonstrate the relationship between the movement multicultural character of the global cultural industry in Brazil, music of the 1990s, it was this period that we believe the MangueBit met its greatest period of ferment.
1 – MANGUEBIT A NOVA POSSIBILIDADE DA MÚSICA
CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA.
Dentre as várias vertentes em que um historiador pode enveredar sua
pesquisa está a música, elemento fundamental na compreensão da cultura de uma
determinada sociedade, em especial a sociedade brasileira contemporânea.
Destarte o MangueBit apresenta-se dentro da música contemporânea
brasileira como um ser híbrido em sua gênese, rebento de um processo histórico em que
o Estado de Pernambuco e principalmente o Grande Recife foram submetidos.
Todo um circuito histórico-cultural foi proposto pelo MangueBit, ou seja, as
análises que foram feitas sobre o mesmo expõem a necessidade de um estudo permeado
1 Universidade Estadual do Ceará, Mestrando, Bolsista CAPES.
pela contextualização do sujeito histórico, não apenas como um indivíduo passivo
esperando pelo trem da história, mas como uma criatura identificada pelas diferenças
culturais que o moldaram durante os anos, uma espécie de conjunção estratégica do
caráter.
A compreensão do MangueBit de uma forma mais clara, perpassa pelo
entendimento panorâmico do mundo, do Brasil e da cidade de Recife respectivamente,
ou seja, o MangueBit foi contemporâneo do fim da União Soviética, do voto direto com
a eleição de Fernando Collor de Melo, ou seja, uma realidade caracterizada pela
ditadura militar, época de incertezas, além do “boom” do consumismo brasileiro,
Internet, da chegada do Mcdonald’s e MTV, além do governo de Miguel Arraes no
início da década de 90, com violência e falta de perspectiva de vida para sua juventude,,
conseguiu fomentar toda uma cena cultural, em que as tradições culturais como os
Maracatus, cirandas, Côcos, afoxés, caboclinhos, entre outros, conseguiram coexistir em
uma movimentação cultural liderada por jovens insatisfeitos com a cultura que era
produzia em Recife., pois o enfrentamento das correntes culturais deve eclodir nos
momentos de maior torpor artístico, social e cultural, assim os jovens artífices que
fomentaram o MangueBit, vislumbraram Recife através deste estigma que a capital
pernambucana o Brasil e o mundo atravessavam
No decorrer de nossa pesquisa percebemos que a indústria cultural
fonográfica vigente no Brasil na década de 1990 delineou aos artífices do MangueBit
ações culturais no intuito de mudar a realidade cultural na qual estavam inseridos, ou
seja, “a ação cultural tem sua fonte, seu campo e seus instrumentos na produção
simbólica de um grupoi”( COELHO, 2002:33),, porém, supomos que estes agitadores
culturais não foram meros objetos manipulados pela grande indústria cultural, mas
iconoclastas da cultura contemporânea, construtores do multiculturalismo urbano.
O caminho de autopromoção que o MangueBit enveredou, está calcado nas
descentralização das visões culturais de dominância, sendo definidas por
desdobramentos das resistências históricas, gerando novas visões periféricas,
aprofundadas no cotidiano das relações pessoais, principalmente, porém este estudo
tanto de identidades culturais, como da própria cultura, nos desafia a aprofundarmos
ainda mais o cerne da questão, em suma a cultura.
Acreditamos que o ser humano concebido de forma primária, deve ser
considerado antes de mais nada como cultural, pois sua vida e suas relações presentes e
futuras, são definidas de forma majoritária por sua cultura acumulada, e “ em qualquer
hipótese, a construção cultural deve ser tratada como um problema, e não como
premissa, e um problema merecedor de análise mais detalhadaii”(BURKE, 2000:171).”
Dentro desta problemática suscitada por Burke, a identidade cultural se
torna o filho primogênito de qualquer cultura, ou seja, o “eu” cultural, foi gerado antes
de qualquer premissa pelo “todo”, e desta forma as comunidades imaginadas sintetizam
nossas argumentações, perpetuadas pela memória do passado, pelo desejo de viver em
conjunto, e pela perpetuação da herança.
Neste momento nos perguntamos que heranças culturais nós recebemos de
nossos antepassados? Quais heranças nos foram impostas pelos discursos outorgados
das elites? E mais adiante nos questionamos, qual será o legado cultural deixado por nós
para as futuras gerações?
Certamente, entramos em um debate complexo da construção e permanência
das identidades culturais, o seja, as identidades culturais são perecíveis?
Estas respostas serão dadas no decorrer dos séculos, principalmente quando
as sociedades em questão, passam neste exato momento por uma construção de
identidades gradativa e paradoxal, lenta e imbuída de interesses pro várias partes,
principalmente pelas elites.
2 – A JUVENTUDE MANGUE
Vindos de várias partes da Grande Recife, o MangueBit teve em sua
conjuntura, uma mescla de indivíduos formando um grande balaio sócio-cultural, em
que elementos como Fred 042, Renato L3·, HD Mabuse4, Xico Sá5, Lúcio Maia, etc,
eram jovens de classe média de Recife, universitários na sua maioria, oriundos de
bairros como Boa Viagem, Candeias, Graças, típicos de classe média; também
elementos da classe média baixa como Chico Science6, Jorge du Peixe, Gilmar Bola
Oito oriundos do Bairro de Rio Doce um grande conjunto habitacional de Olinda,
2 Fred 04 é o vocalista da banda Mundo Livre S.A e um dos principais articuladores do movimento MangueBit, sendo também um dos autores do manifesto Caranguejos com cérebro que será citado posteriormente em nossas indicações metodológicas básicas.3 Renato l é jornalista trabalha atualmente no periódico o Diário de Pernambuco, foi um dos principais articuladores do MangueBit na sua concepção, é co-autor do Manifesto caranguejos com cérebro e considerado pelos músicos das bandas o Ministro da informação do MangueBit, participando ativamente das negociações com as gravadoras.4 Mabuse é músico, artista plástico e produtor cultural da cidade de Recife, entre seus trabalhos está o festival de música eletrônica “Recombo” realizado na cidade de Recife.5 Xico Sá é jornalista e escritor, e participava ativamente da consolidação da cena Mangue na cidade de Recife.6 Chico Science é considerado o idealizador do movimento MangueBit, foi vocalista da banda Chico Science e Nação Zumbi, morreu precocemente em 1997 em um acidente de carro.
pertencentes ao típico perfil do jovem de periferia brasileira com escolaridade ao nível
médio e que trabalha em algum emprego seja no funcionalismo público ou empresas
privadas e que possuíam um ponto em comum que era a baixa remuneração e, por
último, os outros integrantes da Nação Zumbi que são oriundos dos bairros mais
carentes, como é o caso de Toca Ogan e Gira da Nação Zumbi vindos da comunidade de
Peixinhos periferia de Olinda com baixíssimos índices de desenvolvimento humano, e
conseqüentemente altas taxas de violência, principalmente entre os jovens da
comunidade.
O MangueBit uniu extratos sociais de uma certa forma que antes eram
segregados socialmente, economicamente e certamente, culturalmente, colocando para
dançar a juventude Maurícia e reafirmando nossa etnia, podendo ser considerados
cronistas pós-modernos da vida urbana, em que a realidade das veias brasileiras se faz
presente , pois somos todos mestiços como Chico Science versou e não há fuga para
nossa condição de miscigenados, a capoeira, o samba, o frevo, ou seja, as cores que
compõe o Brasil são múltiplas, vivas, unidas, harmônicas na sua composição original e
disforme devido aos que fazem arte com o povo.
Devemos verificar não somente as heranças culturais genuinamente
brasileiras citadas anteriormente, mas a presença sem distinções da cultura estrangeira
como o hip hop em uma embolada, assim é o MangueBit, miscigenação à flor da pele,
com cultura popular e estrangeira formando uma grande etnia cultural entre várias raças.
Entretanto, a música foi um fator imprescindível para unir estes jovens de
origens distintas, pertencentes à mesma etnia e com vontade de movimentar-se
culturalmente e construir na cidade de Recife uma rede de produção cultural.
Nesta seara dos artífices proposta em nosso texto, devemos nos questionar
qual a identificação cultural predominante dentro dos fomentadores do movimento?
Mesmo que esta predominância não tenha sido verificada nas entrevistas já realizadas
com estes artistas, seja pelo presente pesquisador, ou qualquer outra fonte
hemerográfica, ou audiovisual.
Primeiramente, o termo predominante não se adequa em nenhum aspecto ao
universo do MangueBit, ou seja, as negociações foram interpeladas justamente para
evitar que de alguma forma as predominâncias, imposições e restrições que por ventura
restringissem a criatividade dos poetas do Mangue7, fossem cogitadas.
7 O termo Mangue em nosso texto, também fará alusão ao movimento MangueBit, posto que em sua idéia original de 1991, o falecido compositor pernambucano Chico Science, o definiu assim.
Dessa forma o termo “cooperativa cultural” defendido por Renato L em uma
entrevista concedida ao presente pesquisador na cidade de Recife em julho de 2007,
coaduna diretamente com a idéia de um processo de auto-identificação, ou seja, os
próprios artífices defendem a idéia de construção multiculturalista, em que as
experiências de todos aqueles jovens pernambucanos foram levadas em consideração,
desconstruindo a idéia do ídolo muito presente no campo artístico.
Certamente, o termo que poderíamos considerá-lo como constante dentro da
prerrogativa Mangue, seria a Diversidade, contudo devemos explicitar a não
desintegração de outros termos que já foram usados pela imprensa e academia para
nomear e definir o MangueBit; assim nossa argumentação será embasada por este termo
de uma forma dinâmica e aberta.
Neste campo de possibilidades culturais, o MangueBit, através de sua idéia
central: “ Uma parabólica enfiada na lama”, estruturou uma cadeia de símbolos, buscou
um entrelugar entre o local e o global, definiu sua própria forma de versar a cidade de
Recife, sobretudo com relação às mazelas sociais existentes na cidade estuário
Sou eu um transistor/ Recife é um circuito/ O país é um chip/ Se a terra é um rádio/ Qual é a música? MangueBit? Mangue? MangueBit/ Um vírus contamina pelos olhos, ouvido/ Línguas, narizes, fios elétricos/ Ondas sonoras, vírus conduzidos a cabo/ UHF, antenas, agulhas/ Mangue/ MangueBit/ Eletricidade alimenta/ Tanto quanto oxigênio/ Meus pulmões ligados/ Informações entram pelas narinas/ E a cultura sai mau hálito/ Ideologia/ Mangue/ MangueBit/ Meus pulmões ligados/ Se a terra é um rádio/ Qual é a música? MangueBit/ MangueBit.[ Mundo Livre S.A 1994]
Destarte não foi apenas o batuque do maracatu acelerado pelos bits,
conectado com o mundo globalizado, que denotou ao MangueBit toda uma identidade
cultural híbrida, calcada nas resignificações, ou seja, novas formas de organização da
cultura contemporânea, observadas sob a óptica do historiador contemporâneo ou da
história do tempo presente, esta seara cultural deve também ser identificada pelas
negociações propostas não apenas pelos ritmos musicais diversos envolvidos na
composição das músicas que antes pareciam antagônicos como a cultura popular dos
maracatus, afoxés, cirandas, emboladas, a tecnologia do Sampler, e dos ritmos
estrangeiros como o Funk, Soul, Hip Hop, Rock, entre outros; mas com a própria
relação do movimento com a indústria cultural brasileira da década de 1990, em
especial a indústria fonográfica.
Alma e conceito, reconhecimento e ressurreição, destarte o Mangueboy se
reconheceu como parte integrante de toda uma cadeia sócio-cultural presente na cidade
de Recife, produto legítimo das disjunções inerentes a uma metrópole, ou: “estas
disjunções se tornaram fundamentais para a política da cultura
globaliii”(APPADURAI;1999:312-313),” ; como tais são pressupostos de problemáticas
amplas, vicissitudes de um enredo complexo, em que o diálogo deve ser uma constante,
pois” em qualquer hipótese, a construção cultural deve ser tratada como um problema.
Dentro desta premissa acreditamos que a identidade de um ser humano que
se reconhece como agente cultural está conectado diretamente com o imaginário
coletivo que o seu habitat, ou melhor ainda seu ambiente de produção e consumo
cultural lhes oferecem, certamente, não estamos falando em passividade do sujeito
diante as ofertas de signos que suas experiências recebem e deslocam, mas uma
participação ativa destes cidadãos, entranhados pelo passado secular, e a convivência
contemporânea.
A tradução do MangueBit através da sua metrópole brasileira, afogada em
um caos urbano, não foi apenas social e econômico, mas cultural, todavia é necessário
apontarmos quase sempre para o bojo cultural que o Estado de Pernambuco proporciona
aos seus patrícios, ou seja, o Grande Recife e adjacências foram o mote para os poetas
do mangue, a articulação do local com o global, sem privilégios, ou:
O essencial é que a ideologia cultural em questão articula o mundo segundo o modo mais funcionalmente útil, ou ainda, segundo modos que possam ser funcionalmente reapropriados. A razão porque certa fração de classe proporcionaria essas articulações ideológicas é uma questão histórica iv. ( JAMESON, 2006: 83)..
A mentalidade dos artífices do MangueBit foi definida por Jameson de
forma apropriada como o próprio Chico Science afirmou: “não conseguimos
acompanhar o motor da história, mas somos batizados pelo batuque e apreciamos a
agricultura celeste”, ou seja, coaduna com a união de fragmentos proposta pelo
MangueBit de uma sociedade caótica e a construção de sua própria identidade, porém
esta identidade não pode ser definida como um novo gênero musical, mas como uma
criação de uma cena musical que oxigenou culturalmente a cidade de Recife, com
bandas, bares, espaços culturais, oportunidades para os músicos, e assistentes de palco e
etc; ou seja, criou toda uma cadeia cultural que começava nos idealizadores do
movimento como Fred 04, Chico Science e Renato L e se estendia até os roadies.
A legitimidade da imposição impera nos meios de comunicação e é sabido
que os discursos dominantes estão embasados justamente na verdade silente das classes
menos favorecidas, ou seja, a legitimação da barbárie cultural é tão intensa que uma
crítica ao discurso hegemônico seria no mínimo inaudível, intimado pelo historicismo
arraigado no domínio datado desde as épocas ultramarinas porém este questionamento
nos remete diretamente às mentiras salientes do pós-colonialismo, ou: “É a perversidade
radical, e não a sensata sabedoria política, que impulsiona a intrigante vontade de saber
do discurso pós-colonialv ( BHABHA, 2005: 292)” resta para aqueles que são citados
pelas elites pós-coloniais como objetos de caridade, paternalismo, ou até mesmo
vencidos; restando como única saída, uma intervenção negociada e consciente, para
conseqüentemente alcançarem uma inserção, dentro desta disputa em que o primeiro
golpe é desferido sempre na cultura e muitas vezes é letal.
A produção e consumo de bens culturais, requer antes de tudo uma tomada
de consciência, ou seja, o exercício da produção de ações culturais deve ser uma
constante nos agentes culturais da contemporaneidade especificamente, ou: “O agente
cultural é, aqui um animador é dele que parte a ação nessa terminologia teológica, é ele
o criador”(COELHO, 2002:16),, contudo devemos fazer algumas ressalvas com relação ao
agente cultural citado anteriormente, ou seja, devemos defini-lo não apenas como um
manipulador de massas, especialmente as urbanas, mas colocá-lo de uma forma ampla
como qualquer indivíduo que promova a cultura, seja ele músico, ator, pintor, escultor,
dramaturgo, produtor cultural, ou até mesmo o empresário que de alguma forma prática
o mecenato, embora seja uma denominação ampla para o termo “agente cultural”, nossa
intenção é desconstruir o mito da arte em si, ou seja, não apresentá-la como um fetiche,
algo inalcançável, mas como uma produção e reprodução dos bens simbólicos
acessíveis ao grande público, pois é nesta democratização do fazer arte que reside o
alicerce da construção das identidades culturais, ou seja, a partir do momento em que o
sujeito histórico se reconhece não apenas como um espectador, mas como parte
integrante da arquitetura cultural de uma forma direta, as identidades tornam-se
legítimas representantes da constituição e significação cultural.
3 - RECIFE: A MANGUETOWN.
O Sol nasce e ilumina as pedras evoluídas/ Que cresceram com a força de pedreiros suicidas/ Cavaleiros circulam vigiando as pessoas/ Não importa se são ruins/ Nem importa se são boas/ E a cidade se apresenta centro das ambições/ Para mendigos ou ricos e outras armações/ Coletivos, automóveis, motos e metrôs/ Trabalhadores, patrões, policiais, camelôs/ A cidade não pára, a cidade só cresce/ O de cima sobe e o debaixo desce/ A cidade se encontra prostituída/ Por aqueles que a usaram em busca de saída/ Ilusora de pessoas e outros lugares/ A cidade e sua fama vai além dos mares/ No meio da esperteza internacional/ A cidade até que não está tão mal/ E a situação sempre mais ou menos/ Sempre uns com mais e outros com menos/ A cidade não pára, a cidade só cresce/ O de cima sobe e o debaixo desce/ Eu vou fazer uma embolada, um samba, um maracatu/ Tudo bem envenenado, bom pra mim e bom pra tu/ Pra gente sair da lama e enfrentar os urubus. (ha, ha)/ Num dia de Sol, Recife acordou/ Com a mesma fedentina anterior8.
Um dos símbolos mais representativos do MangueBit é a cidade de Recife, e
como tal a metrópole pernambucana possui em toda a sua conjuntura, elementos que a
definem como madrasta e mãe dos Mangueboys9, ou seja, a cidade traz em sua história
desde os tempos coloniais uma tragédia escrita com o sangue dos seres humanos que
tiveram suas almas esquecidas e até mesmo ignoradas, nesta perspectiva da angústia
urbana a cidade de Recife se apresenta como metrópole caótica, de arquétipos
adormecidos, e mocambos metamorfoseados de lares; cruel habitat para seus patrícios,
violência avassaladora que transforma sua juventude em estatística; assim a Recife da
década de 1990, tornava a vida de seus habitantes um ato circunstancial, instigando a
massa a uma atitude eminentemente cultural acima de tudo, deflagrando uma catarse
coletiva, ou:
Posso daqui pra me organizar/ Posso sair daqui/ Para desorganizar/ Da lama ao caos/ Do caos a lama/ Um homem roubado nunca se engana/ O sol queimou, queimou/ A lama do rio/ Eu vi um chié andando devagar/ E um aratu pra lá e pra cá/E um caranguejo andando pro Sul/ Saiu do mangue e virou gabiru/ Ô Josué nunca vi tamanha desgraça/ Quanto mais miséria tem/ Mais o urubu ameaça/ Peguei um balaio, fui na feira roubar tomate e cebola? Ia passando uma véia pegou minha cenoura? “Aí minha véia deixa a cenoura aqui/ Com barriga vazia não consigo dormir/E com o bucho mais cheio comecei a pensar/ Que eu me organizando posso desorganizar/ Que eu desorganizando posso me organizar/ Que eu me organizando posso desorganizar.( CSNZ 1994)
A cidade que de uma certa maneira cultua o êxodo, exporta famintos, assim
Recife é a lama dos manguezais tomada pelo caos, e a única saída para os poetas do
MangueBit, é a organização enquanto seres produtores de cultura.
8 Música “A cidade” do Cd Da lama ao caos de Chico Science e Nação Zumbi de 1994.
9 Termo inspirado nos Bboys e Bgirls do movimento Hip Hop.
A cidade pulsa, vibra corrompe, constitui vida e concreto, ambição e caos;
doce ilusão amarga para a grande maioria das pessoas que não participam da grande
festa do consumo capitalista e esta desigualdade é ainda bastante acentuada quando
estamos nos referindo ao Nordeste brasileiro, pois em períodos de seca no sertão
nordestino, o êxodo rural é bastante significativo, transferindo do interior para as
capitais uma leva de imigrantes famintos, sem instrução e perspectivas de melhorias em
suas vidas.
No caso de Recife estes retirantes amontoam-se em casebres à beira dos
mangues em condições miseráveis para fixarem residência, por vários motivos, entre
eles a falta de interesse comercial das imobiliárias nas regiões dos manguezais, as
moradia construídas com restos de papelão, zinco, madeira e outros materiais
descartados pela própria cidade, e principalmente pela necessidade alimentar, pois o
mangue fornece alimento para estas pessoas, principalmente o caranguejo que muitas
vezes é a única fonte alimentar disponível, fazendo com que estes seres humanos
tornem-se parte integrante do mangue, ou:
Este corpo de lama que tu vê/ É apenas a imagem que sou/ Este corpo de lama que tu vê/ É apenas a imagem que sou/ Que o sol não segue os pensamentos, mas a chuva mude os sentimentos/ Se o asfalto é meu amigo eu caminho, como aquele grupo de caranguejos, ouvindo a música dos trovões/ Essa chuva de longe que tu vê, é apenas a imagem que sou/ Esse sol bem longe que tu vê, é apenas a imagem que é tu/ Fiquei apenas pensando, que seu rosto parece com minhas idéias/ Fiquei lembrando que há muitas garotas em ruas distantes/ Há muitos meninos correndo em mangues distantes/ Essa rua de longe que tu vê, é apenas a imagem que sou/ Esse mangues de longe que tu vê, é apenas a imagem que é tu/ Se o asfalto é meu amigo.../ (Deixar que os fatos sejam fatos naturalmente, sem que sejam forjados para acontecer/ Deixar que os olhos vejam pequenos detalhes lentamente/ Deixar que as coisas que lhe circundam estejam sempre inertes, como móveis/ inofensivos, pra lhe servir quando for preciso, e nunca lhe causar danos morais, físicos ou psicológicos10.
Deveras o habitante dos mangues em Recife transforma-se em um corpo de
lama, o sujeito e o ambiente fundem-se em uma simbiose degradativa, socialmente para
o homem e ambiental para o mangue.
Uma das poucas saídas para estes indivíduos são as estradas que cortam os
manguezais, servindo como grandes mercados de caranguejos a céu aberto, tornando
este asfalto amigo e fonte de renda digna para estes cidadãos.
10 Música “Corpo de Lama” do Cd Afrociberdelia de Chico Science e Nação Zumbi de 1996.
A cidade é fugaz para aqueles habitantes dos mangues, que assistem o
transitar dos automóveis velozes que passam sobre as pontes, restando para estes
homens um sonho distante de belas garotas que vivem sob um céu de oportunidades,
enquanto eles jazem sob as chuvas das incertezas cotidianas.
O poeta Chico Science demonstra que estas elites apressadas que singram a
cidade com seus automóveis, também são parte integrante desta cidade estuário, palco
de ilusões e desigualdades, em que o rico tem seu papel definido como explorador, e os
pobres devem ser prestativos quando necessários e inofensivos para não causarem danos
à sociedade ideal das elites.
Organizar-se enquanto agente histórico, esse é o grande mote para aqueles
que de alguma forma trabalham com cultura nos países não desenvolvidos, e
principalmente em regiões desfavorecidas, como e o caso do nordeste brasileiro,
destarte o poeta Chico Science afirma que o alimento é primordial para iniciar-se a
condição de ser pensante e interventor das vicissitudes históricas.
Desta forma acreditamos que a cidade de Recife foi e ainda é uma madrasta
sócio-econômica para seus habitantes, que de alguma forma são penalizados por suas
desigualdades avassaladoras, porém esta mesma cidade também oferece aos seus filhos,
vertentes culturais que não são encontradas em outro lugar do Brasil com tamanho
volume e diversidade, ou seja, a cultura popular dos maracatus, côcos, cirandas,
caboclinhos, afoxés, emboladores, repentistas, frevo, entre outros.
A diversidade de manifestações culturais presentes em Recife, torna esta
capital também um lócus híbrido, passível de acolher diversos segmentos desta mesma
cultura presente em sua composição, além da própria cultura oriunda do exterior, posto
que a cidade estuário seja considerada ainda a capital do Nordeste, e como tal as
novidades do exterior também estão disponíveis de uma certa forma.
i
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.ii BURKE, Peter. História e Teoria Social. São Paulo: Unesp, 2000.iii COELHO, Teixeira. O que é ação cultural? São Paulo: Brasiliense, 2002.FEATHERSTONE, Mike (org). Cultura global. Petrópolis: Editora Vozes, 1999.iv JAMESON. Fredric. A virada cultural: reflexões sobre o pós-moderno. Rio de Janeiro:civilização brasileira, 2006.v