relaçao multiculturalismo e educaçao.pdf

24
Uma avaliação sobre a relação multiculturalismo e educação Vera Rudge Werneck* Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v. 16, n. 60, p. 413-436, jul./set. 2008 * Doutora em Filosofia, Universidade Gama Filho; Professora Titular da Universidade Católica de Petrópolis. E-mail: [email protected] Resumo O artigo tem como objetivo a avaliação da relação entre multiculturalismo e educação. Inicia com considerações gerais sobre o tema, passando, em seguida, para a análise das noções de identidade e de cultura, categorias indispensáveis para a compreensão da noção de multiculturalismo. Conceitua então a educação como o processo que leva o educando a reconhecer, apreender e hierarquizar os valores de modo próprio e adequado para que possa situar-se no mundo como pessoa e como personalidade. Entendendo a avaliação como a análise do valor de algo com rela- ção a um determinado referencial, vai fundamentar-se do ponto de vista filosófico na Teoria dos Valores de Max Scheler (1955) e de Yvan Gobry (1975). Do ângulo soci- ológico baseia-se em Tomás Tadeu da Silva (1994, 2005). Conclui levantando as exigências da educação com relação ao multiculturalismo e mostrando a necessida- de do estabelecimento de referenciais para que se possa realizar o procedimento da avaliação dessa relação. Palavras-chave: Multiculturalismo. Educação. Identidade. Cultura. Avaliação. An evaluation on the relationship between education and multiculturalism Abstract The purpose of the article is to evaluate the relationship between multiculturalism and education. Initially, general considerations are made on the subject matter and, subsequently, an analysis is made of the concepts of identity and culture, which are indispensable categories for the comprehension of the concept of multiculturalism. The article goes on to conceptualize education as the procedure that causes the learner to recognize, learn and classify values in a hierarchical manner, according to learner’s own method, in such a way as to enable the individual to ascertain his position in the world as a person and personality. Understanding evaluation as the analysis of the worth of something in relation to another determined point of reference and it is based on the philosophical standpoint of the Theory of Values developed by Max Scheler (1955) and Yvan Gobry (1975). From the sociological standpoint, it is based on the ideas of Tomás Tadeu da Silva (1994) (2005). The article closes with an assessment of the

Upload: thais-isidro

Post on 20-Nov-2015

37 views

Category:

Documents


25 download

TRANSCRIPT

  • Uma avaliao sobre a relao

    multiculturalismo e educao

    Vera Rudge Werneck*

    Ensaio: aval. pol. pbl. Educ., Rio de Janeiro, v. 16, n. 60, p. 413-436, jul./set. 2008

    * Doutora em Filosofia, Universidade Gama Filho; Professora Titular da Universidade Catlica de Petrpolis. E-mail: [email protected]

    ResumoO artigo tem como objetivo a avaliao da relao entre multiculturalismo e

    educao. Inicia com consideraes gerais sobre o tema, passando, em seguida,para a anlise das noes de identidade e de cultura, categorias indispensveis paraa compreenso da noo de multiculturalismo. Conceitua ento a educao como oprocesso que leva o educando a reconhecer, apreender e hierarquizar os valores demodo prprio e adequado para que possa situar-se no mundo como pessoa e comopersonalidade. Entendendo a avaliao como a anlise do valor de algo com rela-o a um determinado referencial, vai fundamentar-se do ponto de vista filosfico naTeoria dos Valores de Max Scheler (1955) e de Yvan Gobry (1975). Do ngulo soci-olgico baseia-se em Toms Tadeu da Silva (1994, 2005). Conclui levantando asexigncias da educao com relao ao multiculturalismo e mostrando a necessida-de do estabelecimento de referenciais para que se possa realizar o procedimento daavaliao dessa relao.

    Palavras-chave: Multiculturalismo. Educao. Identidade. Cultura. Avaliao.

    An evaluation on the relationshipbetween education and multiculturalismAbstractThe purpose of the article is to evaluate the relationship between multiculturalismand education. Initially, general considerations are made on the subject matterand, subsequently, an analysis is made of the concepts of identity and culture,which are indispensable categories for the comprehension of the concept ofmulticulturalism. The article goes on to conceptualize education as the procedurethat causes the learner to recognize, learn and classify values in a hierarchicalmanner, according to learners own method, in such a way as to enable theindividual to ascertain his position in the world as a person and personality.Understanding evaluation as the analysis of the worth of something in relation toanother determined point of reference and it is based on the philosophicalstandpoint of the Theory of Values developed by Max Scheler (1955) and YvanGobry (1975). From the sociological standpoint, it is based on the ideas of TomsTadeu da Silva (1994) (2005). The article closes with an assessment of the

  • 414 Vera Rudge Werneck

    Ensaio: aval. pol. pbl. Educ., Rio de Janeiro, v. 16, n. 60, p. 413-436, jul./set. 2008

    education requirements with regard to multiculturalism and defends the need toestablish points of reference to enable an evaluation of this relationship.Keywords: Multiculturalism. Education. Identity. Culture. Evaluation.

    Una evaluacin sobre la relacinentre multiculturalismo y educacinResumenEl artculo tiene como objetivo la evaluacin de la relacin entremulticulturalismo y educacin. Empieza con consideraciones generales cerca eltema perpasando luego al anlisis de nociones de la identidad y cultura,categoras indispensables a la comprensin del multiculturalismo.Conceptuase, entonces, la educacin como el proceso que lleva al estudiante areconocer, asegurar y jeraquizar los valores de forma propia y acomodada paraque se pueda establecerse frente al mundo como persona y como personalidad.Mirando a la evaluacin como el anlisis de valor de alguna cosa en relacin aun dado referencial, va a fundamentarse en la mirada filosfica De La Teora delos Valores de Max Scheler (1955) y Yvan Gobry (1975). Del prisma sociolgico,asenta se em Toms Tadeu da Silva (1994, 2005). Se va a concluir alentando lasexigencias de la educacin en relacin al multiculturalismo y presentado lanecesidad de apuntamentos de referenciales para que se pueda hacer elprovenir de la evaluacin de esta relacin.Palabras clave: Multiculturalismo. Educacin. Identidad. Cultura. Evaluacin.

    O estado da questo: consideraes iniciaisDestacou-se recentemente nos jornais a notcia de uma tribo de ndios no Brasil

    que, num esforo para resgatar a sua cultura, sistematizou o ensino de seu idioma ssuas crianas. A matria enfatizava o objetivo da conservao e da transmisso dacultura dos antepassados e apresentava uma foto de ndios vestidos, segundo o seucostume com cocares, e pinturas, e relgios de pulso...

    Essa imagem traz de volta a antiga e atual questo da diversidade das formasculturais e da ao transformadora da educao.

    certo que cada povo, cada grupo humano, interfere na natureza a seu modo,resolve os problemas, ultrapassa os obstculos e desafios que ela lhe prope demaneira prpria e diferente. certo, tambm, que a educao tem como fim a huma-nizao do homem, o seu contnuo aprimoramento.

    Evidencia-se ento um paradoxo: como conciliar o respeito s peculiaridadesculturais e promover a educao, transformadora por definio?

    Percebem-se algumas correntes de pensamento que defendem o multiculturalismocomo a aceitao de todas essas manifestaes sem reflexo crtica, sem juzos devalor. Partem do pressuposto de serem todas elas igualmente vlidas e de que comotais, devam ser aceitas e transmitidas s novas geraes.

  • Ensaio: aval. pol. pbl. Educ., Rio de Janeiro, v. 16, n. 60, p. 413-436, jul./set. 2008

    Uma avaliao sobre a relao multiculturalismo e educao 415

    Por estranho que parea, especialmente na rea da educao que essasidias mais se desenvolvem. Educadores, conscientes das aes autoritrias dopassado em sua rea, buscando redimir-se dos erros cometidos, defendem omulticulturalismo como um vis relativista aceitando todas as culturas com seusprocedimentos e costumes, muitas vezes inadequados, desrespeitosos e injustospara com o ser humano.

    Acentua-se a contradio: por um lado, insiste-se na tolerncia, no acolhimentodas diferenas, no multiculturalismo, no pluralismo de opinies e de idias, de modosde ser e de viver. Por outro lado, nunca foi to forte e to intenso o controle doEstado, to numerosas as regras de bem viver e de bem pensar. H normas para anutrio ideal, para a sade, para o relacionamento sexual, afetivo, familiar e social.Vacinas e exames obrigatrios, regras e proibies para a educao de crianas,parmetros curriculares oficiais para o estabelecimento do currculo ideal.

    Ao mesmo tempo em que se defende a admisso de diferentes culturas na escola,apregoam-se normas rgidas de comportamento, consideradas como politicamentecorretas.

    Com freqncia esse politicamente correto entra em choque com usos e prti-cas culturais que so, por isso, condenadas como incompatveis com os novos ideaisda convivncia humana.

    Como entender tal paradoxo? Que critrios utilizar para contornar as dificuldadesque acarretam?

    Muito se acentua o fato da multiplicidade e da diversidade das culturas, maspouco se fala da fundamental igualdade do ser humano, no que se refere s suasnecessidades bsicas. Fala-se mesmo na exigncia de valorizao das identidadesplurais de gnero, etnias, padres lingsticos das sociedades multiculturais e at danecessidade de preparar professores para lidar com elas.

    No entanto, preciso considerar que a educao prope-se transformao dasociedade, ao desenvolvimento de suas potencialidades, ao seu crescimento moral e sua humanizao. Como conseguir esse feito, aceitando-se, ao mesmo tempo,passivamente, usos e costumes to imprprios para atingir tal objetivo?

    Mostra Toms Tadeu da Silva (2005, p. 85) que

    tornou-se lugar comum destacar a diversidade das formas culturaisdo mundo contemporneo. um fato paradoxal, entretanto queessa suposta diversidade conviva com fenmenos igualmente sur-preendentes de homogeneizao cultural. Ao mesmo tempo emque se tornam visveis manifestaes e expresses culturais de gru-pos dominados, observa-se o predomnio de formas culturais pro-duzidas e veiculadas pelos meios de comunicao de massa, nasquais aparecem de forma destacada as produes estadunidenses.

  • 416 Vera Rudge Werneck

    Ensaio: aval. pol. pbl. Educ., Rio de Janeiro, v. 16, n. 60, p. 413-436, jul./set. 2008

    Aqui chama ele a ateno para o que ocorre na mdia que, propondo-se adivulgar as diferentes manifestaes culturais, como que as dessacraliza, deturpa e,ao mesmo tempo, contribui para a formao de uma sociedade mais homogneaporque participante das mesmas informaes.

    A tolerncia, a complacncia e a atitude de aceitao do diferente tornam-seento caractersticas culturais universais do homem da atualidade.

    A indiferena ante a diversidade cultural, que apresentada como originalidade,como bizarrice, ao ser proposta pelos meios de comunicao social, que se constituitalvez no mais forte instrumento de homogeneizao cultural, revela mais um para-doxo do mundo contemporneo.

    interessante ainda registrar a colocao de Guareschi e Biz (2005, p. 42),quando mostram que

    a mdia no s diz o que existe e, conseqentemente, o que noexiste, por no ser veiculado, mas d uma conotao valorativa deque algo bom e verdadeiro, realidade existente. nessa instn-cia que so criados e legitimados determinados valores. E so elesque nos impulsionam a agir.

    Novo paradoxo: por um lado difundida a diversidade, multiplicidade das cultu-ras, por outro, feito um processo de valorizao e de desvalorizao das suasaes, o que vai corresponder educao e universalizao.

    Percebe-se ainda a impossibilidade de frear o processo histrico. No h soluopara essa questo: o desenvolvimento da humanidade se faz de maneira pacfica ouviolenta pela fuso, aglutinao, interao enfim, das produes culturais. No hcomo nem por que preservar as culturas em estados puros originais e intocados.

    Pode-se constatar que, ao crescimento do desejo de liberdade, de democracia, deigualdade de direitos, corresponde, pela insegurana e pelas necessidades de ordemprtica, a restrio liberdade, a perda de parte dos direitos civis, a exigncia deacomodao s imposies do Estado.

    Todas essas contradies levam exigncia de uma maior reflexo sobre a rela-o educao e cultura e, mais precisamente, sobre a relao educao e diversida-de cultural para que seja possvel a avaliao do fenmeno. Torna-se clara a neces-sidade do estabelecimento de critrios de avaliao da hierarquia de valores subja-cente a essas culturas, caso contrrio vai-se cair simplesmente em posturas relativis-tas que se furtam a qualquer anlise entrando-se em contradio com os prpriosprincpios da educao ao se aceitarem injustias e atitudes que desrespeitam adignidade humana sob a desculpa de fazerem parte de determinada prtica cultural.

    Embora seja possvel reconhecer preconceitos e posturas dogmticas como serepresentassem exigncias universalmente vlidas sendo transmitidas e cobradas pe-

  • Ensaio: aval. pol. pbl. Educ., Rio de Janeiro, v. 16, n. 60, p. 413-436, jul./set. 2008

    Uma avaliao sobre a relao multiculturalismo e educao 417

    los professores, em outros casos prepondera o relativismo e a suspenso do juzocomo postura ideal do educador.

    realmente considervel o risco do juzo subjetivo e arbitrrio.

    A prpria noo de educao exige o comprometimento com o respeito digni-dade humana e com a justia para com todos sem distino.

    O educador no pode compactuar com o erro e o mal com a justificativa defazerem eles parte de determinada prtica cultural. No h, evidentemente, nenhumahomogeneidade cultural. Cada etnia, cada grupo social interpreta o real a seu modo,a ele atribuindo diferentes sentidos e significaes.

    A dificuldade situa-se exatamente na necessidade de conciliar o respeito a essessignificados, s diferentes modalidades culturais com as exigncias da ao educaci-onal. preciso aceitar e acolher a diversidade das culturas, mas no o relativismo ea demagogia que se contrapem aos objetivos da educao.

    O professor, como um profissional reflexivo que se prope ao pensamento crticosobre a prtica pedaggica, v-se diante desse desafio: acolher e dar espao para odesenvolvimento de manifestaes multiculturais e, ao mesmo tempo, manter-se fielaos seus objetivos educacionais.

    Esse problema vai lev-lo fatalmente busca do estabelecimento de critrios deavaliao para que possa distinguir nas culturas o que representa a satisfao dasnecessidades universais daquilo que expressa as peculiaridades de cada grupo social.

    O acolhimento tcito de todas as caractersticas culturais dos diferentes grupossociais leva a contradies e incoerncias e abdicao da postura de educador.

    certo que o profissional de educao no pode considerar-se como o dono daverdade nem achar-se no direito de impor a sua prpria escala de valores.

    A postura crtica do professor deve lev-lo a aceitar o diferente, as diferenas e areconhecer as situaes em que essas peculiaridades podem atentar contra a sade,o bem-estar ou a dignidade da pessoa humana.

    Algumas prticas tpicas de determinadas culturas so inaceitveis pelo edu-cador como, por exemplo, o machismo, a violncia e a escravido, os maustratos fsicos e o desrespeito ao livre arbtrio. Para que no se reforcem preconcei-tos e imobilismos injustificveis no basta a abertura para as diferenas, mas necessria a transparncia dos critrios de avaliao e a clara definio dosobjetivos da ao pedaggica.

    O educador no tem escolha. Est comprometido com a transformao da soci-edade no sentido de um aprimoramento da sade, do conhecimento cientfico, dobem- estar emocional e da justia social.

  • 418 Vera Rudge Werneck

    Ensaio: aval. pol. pbl. Educ., Rio de Janeiro, v. 16, n. 60, p. 413-436, jul./set. 2008

    De pouco adianta uma atitude de abertura ao multiculturalismo se no se podecompactuar com nenhuma prtica anti-higinica, no saudvel, anti-cientfica, au-toritria ou anti-social.

    Talvez, a questo esteja mal colocada. Ou conservadorismo e rigidez ou multicul-turalismo. falsa essa dicotomia. No se trata de posies antagnicas e extremadasem que deve situar-se o educador, mas de perceber a necessidade do estabelecimen-to de critrios iniciais que possibilitem uma ao transformadora executada de modoconsciente e livre a partir de um referencial previamente estabelecido e no de pos-turas subjetivas e arbitrrias.

    O paradoxo aqui analisado manifesta-se j quando, ao defender-se multicul-turalismo nas escolas, no se pe em evidncia o fato de tambm o professoremergir de um universo cultural. Tambm ele foi educado segundo determinadospadres culturais que devem, de certo modo, ser superados para que possa abrir-se para os outros. Registre-se que as Diretrizes Curriculares de Formao doProfessor (CONSELHO NACIONAL DE EDUCAO, 2002) constituem um docu-mento que se prope a dar orientaes gerais sobre a formao docente, objeti-vando uma uniformizao do comportamento dos profissionais da rea.

    As sociedades manifestam-se como multiculturais, plurais e desiguais. O multi-culturalismo vai ento valorizar essa diversidade cultural que, no passado, foi prati-camente ignorada e vtima de preconceitos e condenaes tcitas.

    No se pode ignorar que certos hbitos de alimentao, de administrao,do tempo, de explorao predatria da natureza que mais se explicam pelapobreza, pela adversidade das condies do meio ambiente, pela doena doque pelas caractersticas culturais foram registrados como desigualdade no sen-tido de inferioridade.

    difcil a posio do educador: acatar o pluralismo cultural e ao mesmo tempono se manter passivo diante de todas essas mazelas sem procurar combat-las etentar transform-las, classificando-as como manifestaes culturais. Por outro lado,que direito ele tem de condenar caractersticas culturais que no causam prejuzos,que no desrespeitam nenhum valor bsico da pessoa humana por serem elas pr-prias de culturas diferentes da sua?

    Todas essas questes remetem sempre para a necessidade da busca de critrios deavaliao que permitam a superao do subjetivismo e do relativismo, no levandoa discriminaes e condenaes, mas ajudando na promoo do aprimoramentohumano.

    As aes afirmativas que buscam reparaes de injustias se fundamentam emvalores universais como justia, respeito e igualdade. O multiculturalismo no podeento ser entendido simplesmente como a aceitao de todas as caractersticas dasdiferentes culturas, mas como a necessidade do estabelecimento de critrios de ava-liao das exigncias fundamentais da pessoa humana.

  • Ensaio: aval. pol. pbl. Educ., Rio de Janeiro, v. 16, n. 60, p. 413-436, jul./set. 2008

    Uma avaliao sobre a relao multiculturalismo e educao 419

    Somente a partir dessa postura vai-se dar a abertura nos currculos escolares para asdiferentes expresses culturais, resguardando-se o que no pode ser deixado de lado.

    Os Parmetros Curriculares Nacionais (PCNs) (1997), ao inclurem a diversidadecultural em seus eixos, procuram situar-se fora de qualquer cultura partindo dasexigncias universais do ser humano.

    As aes afirmativas no so desenvolvidas a partir do acatamento ao multicultu-ralismo, j que o legislador sempre algum situado numa cultura que seria ento adominante, mas do reconhecimento de comportamentos de valor universal e trans-cultural como o respeito pela pessoa humana e a exigncia da justia.

    Sejam aes reparadoras ou preventivas, a motivao que as justificam pairasempre acima das diferenas culturais. A prpria constatao e a tentativa de supe-rao e de compensao das relaes de poder j implicam uma postura de reco-nhecimento de valores universais.

    A pluralidade e a diversidade das culturas no se opem ao progresso da cincia.A cincia e a tecnologia buscam o que pode ser globalmente aceito. Embora possamelas adaptarem-se s caractersticas de cada povo, de cada cultura fundamentam-sesempre no que se apresenta como necessrio para todos.

    Complexa ento a posio das instituies de ensino, tendo que, ao mesmotempo, promover a cincia e desenvolver a tecnologia que se baseiam no universal, erespeitar e valorizar a produo cultural dos diferentes grupos com os quais vai lidar.

    No se concebe uma cincia diversificada e prpria para cada grupo social. Oconhecimento cientfico pretende ser universalmente vlido mesmo quando diversifi-cado. Note-se que validade universal no significa uniformidade. Embora sejaminmeros os caminhos para o conhecimento do real, o objetivo primordial da cin-cia, todos eles precisam ter validade universal nas circunstncias devidas. Ao contr-rio de outras reas da cultura como a artstica, por exemplo, que prpria de cadagrupo social, a cientfica, embora mltipla, vale para todos eles.

    Pode ser bastante esclarecedora a explicao da cincia pela comparao comuma esfera em cujo centro estivesse o objeto do conhecimento. Cada ponto dessaesfera constituiria um foco de observao do real, a partir do qual se construiria oconhecimento. Haveria uma grande diversificao a partir do ponto de vista do sujei-to em relao ao objeto, mas uma validade universal levando-se em consideraoesse posicionamento. Haveria, portanto, uma relatividade no conhecimento, masno um relativismo.

    O relativismo caracteriza-se por ligar o conhecimento ao interesse do prpriosujeito e no com o objeto. A arte, tomada como exemplo, expressa a sensibilidadedo sujeito no modo de tratar o concreto. Manifesta o pessoal, o peculiar, o prprio decada um e de cada grupo social. A moda, a maneira de preparar os alimentos, aregulamentao do convvio social entre outras expresses culturais so particulares

  • 420 Vera Rudge Werneck

    Ensaio: aval. pol. pbl. Educ., Rio de Janeiro, v. 16, n. 60, p. 413-436, jul./set. 2008

    e prprias de cada grupamento da sociedade. A cincia e a tecnologia, ao contrrio,embora se manifestem de diferentes modos, so universais.

    No cabe ento a tentativa de particularizar a cincia nem de universalizar asexpresses culturais particulares, mas sim de respeitar o espao de cada uma.

    A escola enfrenta esse grande desafio: conciliar o universal e o particular, o glo-bal e o regional.

    Evidencia-se ento outro paradoxo na rea educacional: luta-se, ao mesmo tem-po, com o apoio da legislao de ensino, pelo respeito ao multiculturalismo e pelahomogeneizao cultural que se inicia com a obrigatoriedade da alfabetizao.

    Essa reflexo inicial sobre os paradoxos, com que se defronta o profissional daeducao, leva exigncia de algumas colocaes filosficas.

    O artigo tem ento como objetivo refletir sobre a relao entre multiculturalismo eeducao. Inicia com consideraes gerais sobre a questo passando em seguidapara a anlise das noes de identidade, cultura e multiculturalismo. Fundamentan-do-se teoricamente do ponto de vista filosfico em Scheler (1955) e Gobry (1975) edo ngulo sociolgico em Silva (1994, 2005), vai concluir levantando as exignciasda educao em relao ao multiculturalismo e mostrando a necessidade do estabe-lecimento de referenciais de avaliao.

    Dois pontos de vista, duas perspectivaspara o estudo da identidade

    Para que seja possvel prosseguir com a reflexo proposta deve-se antes de maisnada distinguir as perspectivas, segundo as quais ser analisada a questo.

    Mostra Toms Tadeu da Silva (1994, p. 90), que preciso distinguir entre umproblema sociolgico da educao e um problema educacional, entre uma perspectivaanaltica e uma perspectiva normativa. A educao uma cincia normativa. Ela noquer saber como as coisas so, mas como deveriam ser. Embora na sua prtica possavaler-se das pesquisas sobre os fatos, seu objetivo primeiro o aprimoramento dohomem, a promoo de um mundo melhor. A filosofia da educao vai, portanto,fundamentando- se na antropologia filosfica, buscar saber o que pode corresponders necessidades fundamentais do homem e o melhor modo de satisfaz-las.

    A sociologia parte de outra perspectiva. Ela procura conhecer a situao atual daEducao, as causas, os efeitos e as circunstncias dos fatos a ela vinculados.

    Novamente apelando para Silva (1994, p. 90), encontra-se:

    A sociologia da Educao no est normativamente preocupadacom as finalidades da educao, com a natureza do conhecimentoeducacional, com as melhores formas de organizar o sistema educa-

  • Ensaio: aval. pol. pbl. Educ., Rio de Janeiro, v. 16, n. 60, p. 413-436, jul./set. 2008

    Uma avaliao sobre a relao multiculturalismo e educao 421

    cional ou de desenvolver melhores mtodos de ensino ou de avalia-o embora todas essas preocupaes sejam legtimas e possam seriluminadas por meio das contribuies da Sociologia da Educao,est preocupada, em vez disso, em compreender como a educaoimplica a constituio da sociedade, na constituio da estruturasocial e do sujeito social. A Sociologia da Educao est preocupa-da em compreender de que forma a educao institucionalizada estenvolvida na dinmica social e quais so suas relaes mtuas.

    Numa reflexo sobre a Educao as duas perspectivas devem ser contempladas.No se pode deixar de lado o ngulo filosfico sem o qual no se estabelecemobjetivos, metas e referenciais de avaliao.

    O ato de avaliar exige uma postura filosfica. Avaliar significa analisar o valor dealgo em relao a alguma carncia ou algum anseio humano. No ento possvelavaliar sem um referencial, sem um fim em vista. Em ltima instncia, o plo dereferncia sempre o homem e a satisfao das suas necessidades.

    Percebe-se ento a diferena entre avaliar e medir. A avaliao para apreender ahumanidade do homem, deve ultrapassar a medida objetiva e ao mesmo tempo preca-ver-se contra os enganos da subjetiva. Afirma Nilson Jos Machado (1994, p. 9) que

    [...] julgamentos de valor so sempre mais complexos do que merasoperaes de medio; em conseqncia, a tarefa do professor, aoavaliar mais do que saberes tcnicos, exige a competncia, o dis-cernimento e o equilbrio de um magistrado, uma vez que o queest em jogo o pleno desenvolvimento do ser humano.

    A medida expressa quantidade, enquanto a avaliao envolve um julgamento devalor e uma expresso qualitativa. A medida leva ao conhecimento de dados parciaise determinados, com relao a metas e objetivos definidos.

    Mostra Ceres Santos Silva (1992, p. 11) que

    avaliar deriva de valia que significa valor. Portanto, avaliao corres-ponde ao ato de determinar o valor de alguma coisa. A todo o mo-mento o ser humano avalia os elementos da realidade que o cerca. Aavaliao uma operao mental que integra o seu prprio pensa-mento as avaliaes que faz orientam ou reorientam sua conduta.

    O problema da avaliao no pode, portanto ser reduzido a procedimentos tc-nicos sem maior fundamentao filosfica. um processo que comea na antropolo-gia filosfica, continua na gnosiologia dos valores, na tica, no direito tendo semprecomo pano de fundo a reflexo filosfica.

    A avaliao da relao da educao com as mltiplas culturas vai, portanto,exigir, como ponto de partida, a reflexo filosfica.

  • 422 Vera Rudge Werneck

    Ensaio: aval. pol. pbl. Educ., Rio de Janeiro, v. 16, n. 60, p. 413-436, jul./set. 2008

    Tomou-se como referencial para esta reflexo, do ponto de vista filosfico, a Teoriados Valores.

    Embora a questo do valor tenha sido contemplada desde os mais remotos tem-pos, de modo terico e sistemtico, o tema s comea a ser tratado no sculo XIX. especialmente com Scheler (1955) e, posteriormente, j no sculo XX, com Gobry(1975) que a Teoria do Valor vai ser desenvolvida.

    Considera-se como valor tudo o que vale para o homem. Tudo aquilo quepode satisfazer as suas necessidades e anseios e como bens de valor os objetos queportam valores.

    Os valores, portanto, no so, valem. Constituem outra categoria do conheci-mento do ser.

    A noo de avaliao est diretamente ligada de valor. Diferentemente de me-dir, ou seja, comparar tendo por base uma escala fixa, avaliar significa determinar ovalor de algo.

    pelo conhecimento dos fins da tendncia prpria do sujeito que se pode avaliara sua trajetria e as suas aes. Scheler (1955) faz uma distino entre os fins datendncia e os objetivos da vontade. Os fins da tendncia so os valores. O estadoda carncia leva naturalmente tendncia em busca dos valores que o satisfaam eo preencham. Ele (SCHELER, 1955, p. 63) acrescenta ainda:

    Nada pode tornar-se objetivo se no tiver sido anteriormente fim. Oobjetivo se fundamenta sobre o fim. Pode haver fins sem objetivo,mas nenhum objetivo sem um fim previamente dado. No pode-mos criar um objetivo ex nihilo nem assinal-lo sem uma ten-dncia prvia para alguma coisa.

    Cabe Filosofia da Educao conhecer os seus fins e Sociologia analisar emque medida os objetivos, as metas, as prticas, o sistema educacional, enfim, estosendo implementados.

    A anlise da questo do multiculturalismo deve comear pela questo da identi-dade. A identidade individual e dos diferentes grupos sociais.

    A primeira constatao a de ser identidade um termo anlogo, isto , um con-ceito com significados semelhantes, mas no idnticos. Um conceito que segundo oDicionrio de Filosofia, de Nicola Abbagnano (2000, p. 528), pode ter trs defini-es fundamentais: 1) como unidade de substncia, 2) como possibilidade de subs-tituio, 3) como conveno.

    Do ponto de vista filosfico, identidade vai ser ento aquilo que caracteriza oente. Aquilo que diz o que ele . Do ngulo da sociologia, algo mutvel, varivelde poca para poca. Afirma Stuart Hall (2002, p. 12) que o sujeito previamente

  • Ensaio: aval. pol. pbl. Educ., Rio de Janeiro, v. 16, n. 60, p. 413-436, jul./set. 2008

    Uma avaliao sobre a relao multiculturalismo e educao 423

    vivido como tendo uma identidade unificada e estvel est- se tornando fragmenta-do, composto no de uma nica, mas de vrias identidades, algumas vezes contra-ditrias ou no resolvidas.

    Essa parece ser a primeira grande dificuldade da questo da identidade: traba-lhar com um conceito anlogo sem o devido esclarecimento do sentido em que estsendo tomado.

    Do ngulo filosfico a identidade o que resulta da prpria substncia do ser e oque estabelece o seu fim. o que prprio do sujeito e o que o caracteriza enquantotal. O que diz o que o ser .

    Do ponto de vista sociolgico o que caracteriza o sujeito num tempo e numespao. o conjunto de caractersticas acidentais e variveis que num determinadoperodo o identifica.

    Por diversas que sejam as posies do sujeito numa sociedade, por variadosque sejam os seus papis sociais, as suas necessidades fundamentais continuam asmesmas, ou seja, a sua identidade enquanto pessoa continua a mesma. A grandemudana est no fato de ela no mais ser considerada como algo pronto no nasci-mento apenas em estado de potncia a ser atualizada, mas como uma grandecarncia a ser preenchida. Essa necessidade, essa carncia fundamental que semanifesta em mltiplas necessidades especficas deve ser satisfeita por aquilo que aela corresponda, ou seja, o valor. Admitindo-se como valor o que de algum modovale para o homem, pode-se entender a sua identidade como o resultado da apreen-so de uma srie hierarquizada de valores. Nesse sentido, o sujeito tende para ovalor como para o seu fim especfico e a apreenso dos valores passa a ser o seuobjetivo fundamental da vida.

    Esse entendimento parece confirmar-se quando, contrariamente a toda essa aparentediversificao das identidades do mundo ps-moderno, h uma luta comum pelauniversalizao dos valores fundamentais do homem. ento que se compreende Gobry(1975) quando mostra que a carncia humana no ontolgica mas axiolgica.

    Os papis sociais que marcam as identidades culturais podem ser sim, cada vezmais provisrios, variveis e problemticos, mas no as necessidades humanas fun-damentais que esto progressivamente mais explcitas, universais e exigentes. A ne-cessidade de sade, conhecimento, liberdade, respeito, justia e vida afetiva cadavez mais reconhecida como direito humano que deve ser estendido a todos.

    H, portanto, uma contradio entre a afirmao da diversificao das identida-des e a exigncia da universalizao dos direitos humanos, o que pressupe umaigualdade essencial.

    Nesse sentido pode-se dizer que o sujeito ps-moderno, como o de qualquerperodo histrico, tem a mesma identidade embora no tenha tido suas necessidadessempre reconhecidas.

  • 424 Vera Rudge Werneck

    Ensaio: aval. pol. pbl. Educ., Rio de Janeiro, v. 16, n. 60, p. 413-436, jul./set. 2008

    Sob essa tica toma um novo sentido a afirmao de Hall (2002, p. 38) de que

    a identidade realmente algo formado ao longo do tempo, atravsde processos inconscientes, e no algo imanente, existente na cons-cincia no momento do nascimento. Existe sempre algo imagin-rio ou fantasiado sobre sua unidade. Ela permanece sempre in-completa, est sempre em processo, sempre sendo formada,

    e,

    assim, em vez de falar da identidade como uma coisa acabada,deveramos falar de identificao, e v-la como um processo emandamento. A identidade surge no tanto da plenitude da identi-dade que j est dentro de ns como indivduos, mas de uma faltade inteireza que preenchida a partir de nosso exterior, pelasformas atravs das quais ns imaginamos ser vistos pelos outros.(HALL, 2002, p. 39).

    Considera-se aqui o mtodo segundo o qual se constitui a identidade, mas no oobjeto a ser conquistado. O preenchimento da falta no pode ser feito aleatoria-mente, mas com aquilo que lhe prprio, ou seja, com o valor do qual ela carente.

    Novamente apresenta-se como primordial a busca dos critrios, dos referenciaisque permitam o conhecimento das necessidades e dos valores fundamentais para aconstituio da identidade humana.

    Pode-se ento reconhecer na multiplicidade dos cdigos culturais, na variedadedos estilos no acatamento das diferenas, uma caminhada em busca dos valoresuniversais do respeito e da justia que caracterizam a identidade humana.

    Hoje h uma grande preocupao em se negar o que comumente se designacomo concepo humanista tradicional caracterizada pela viso essencialista dehomem. O ser humano seria a entendido como constitudo por uma essncia imut-vel cabendo educao promover a atualizao dessa potncia em termos aris-totlicos. A prpria idia de natureza humana negada por Sartre na sua famosa obraO Existencialismo um Humanismo seria uma manifestao dessa essncia quedistinguiria o homem do resto da natureza. Para essa corrente de pensamento aspotencialidades estariam contidas a priori e definitivamente na essncia devendo serrealizadas pela ao educacional.

    Sob a influncia do Existencialismo e de outras correntes modernas para as quaisa existncia precede a essncia no havendo natureza humana, o ser do homem mutvel devendo ser construdo ao longo da vida. H ento uma grande disponibi-lidade, uma total indeterminao devendo as identidades serem construdas sem re-ferncias estabelecidas.

    Ao que parece, a questo assim colocada traz dificuldades para o educador. interessante a afirmao de Bauman (2005, p. 32):

  • Ensaio: aval. pol. pbl. Educ., Rio de Janeiro, v. 16, n. 60, p. 413-436, jul./set. 2008

    Uma avaliao sobre a relao multiculturalismo e educao 425

    nisso que ns, habitantes do lquido mundo moderno, somosdiferentes. Buscamos, construmos e mantemos as referncias co-munais de nossas identidades em movimento lutamos para nosjuntarmos aos grupos igualmente mveis e velozes por um momen-to, mas no por muito tempo.

    E acrescenta: no admirvel mundo novo das oportunidades fugazes e das segu-ranas frgeis, as identidades ao estilo antigo, rgidas e inegociveis, simplesmenteno funcionam. (BAUMAN, 2005, p. 33).

    Do ponto de vista da educao, diante desse fato, chega-se a uma situao decontradio. Ao mesmo tempo em que se proclama a total liberdade e a indetermina-o na construo das identidades, prescreve-se uma srie de regras de bem viverprope-se um sem nmero de ideais educacionais. Quer-se um aperfeioamentocontnuo dos professores quando ao mesmo tempo declara-se a inexistncia de umfim para o homem e assim, a impossibilidade do conhecimento da educao ideal.

    Ao mesmo tempo em que se nega a possibilidade da natureza humana, em quese defende a admisso de qualquer tipo de identidade, criticam-se modos de viver,abrem-se faculdades de educao, fala-se de currculos melhores e piores sem espe-cificar-se o referencial utilizado.

    Pode-se admitir que a questo esteja deslocada. No se trata de confrontar teori-as, essencialismo x existencialismo, natureza humana x indeterminao total. O queno se pode deixar de reconhecer a existncia no homem de necessidades univer-sais e conseqentemente, de valores universais capazes de satisfaz-las. As necessi-dades de vida, de sade, de conhecimento, de liberdade e de vida afetiva so edevem ser universais. inconcebvel, como j se aceitou no passado, por interessesde dominao, que alguns grupos sociais possam ser exterminados, que no tenhamdireito sade, ao conhecimento, ao exerccio do livre arbtrio e da vida afetiva.

    Reconhecendo-se essas carncias e esses valores como universais pode-se noestar admitindo nenhuma essncia ou natureza humana, mas est-se aceitandoalgo que caracteriza o homem, a sua humanidade, como fundamental e que nor-teia e justifica a ao educativa.

    Mesmo quando se restringe todo o conhecimento educacional rea da sociolo-gia da educao no se foge dessa dificuldade. As anlises dos dados das pesquisasque ajudam a programao dos currculos e projetos pedaggicos so sempre feitastendo em vista esses referenciais.

    A educao trabalha com ideais, com objetivos, com metas. A sociologia da educaovai medir e avaliar os resultados alcanados. No h como negar essa realidade. A liber-dade limita-se s diferenas e peculiaridades prprias das personalidades, mas no quantoaos valores fundamentais. , portanto um paradoxo negar as necessidades fundamentaisdo homem e propor uma educao transformadora que lhe permita satisfaz-las. Quemtransforma no o faz a esmo, o que no teria sentido, mas em relao a um fim.

  • 426 Vera Rudge Werneck

    Ensaio: aval. pol. pbl. Educ., Rio de Janeiro, v. 16, n. 60, p. 413-436, jul./set. 2008

    Pode-se admitir a ao educacional no como atualizao de potencialidades,mas mesmo como processo de construo da pessoa e da personalidade do sujeito,ou seja, como processo de construo da sua identidade ser preciso o estabeleci-mento de referenciais ideais que o direcionem. O desafio concentra-se na escolhadesses critrios. No entanto, percebe-se que, mesmo variando muito, ao longo daHistria sempre possvel uma avaliao. No se vai considerar a escravido comouma prtica vivel somente por ter sido admitida no passado. Quando a Organiza-o das Naes Unidas (ONU) estabelece o ndice de Desenvolvimento Humano(IDH) como referencial de avaliao, ela se fundamenta em carncias e valores uni-versais, nos ideais ticos de respeito pela vida, igualdade de direito e justia social.

    possvel ento constatar, como o fazem muitos socilogos, a velocidade dasmudanas de identidade nos dias de hoje, mas no negar a possibilidade do estabe-lecimento de critrios de avaliao sem os quais a educao perderia o seu sentido.

    Seguindo essa linha de pensamento pode-se reconhecer a prtica educacionalcomo sendo, a partir de determinados referenciais, um esforo constante para oaperfeioamento da humanidade.

    O conceito de culturaPara se chegar ao multiculturalismo deve-se comear pela anlise da noo de cultura.

    Sendo cultura um termo anlogo vai-se encontr-lo empregado em sentidosdiferentes embora semelhantes.

    No cabe aqui a anlise das suas inmeras conceituaes, pode-se, no entanto,perceber duas vertentes principais, dois grandes paradigmas que servem tentativade relacion-lo com a noo de educao.

    Cultura seria, numa primeira acepo, o resultado de toda e qualquer interfern-cia humana na natureza, no outro ou em si mesmo. Seria a modificao causadapela ao humana que alteraria o modo de ser natural independente do valor oucontravalor que lhe fosse agregado.

    esta a conceituao mais aceita: a cultura como um novo modo de ser, comoum costume. Fala-se em cultura com referncia prtica das artes, por exemplo, eem cultura da violncia como a prtica usual de atos de agresso.

    Nesse sentido, a cultura poderia colaborar ou no com a educao. Poderia seruma expresso da educao ou de comportamentos anti-sociais.

    A segunda vertente entende a cultura como o resultado da instaurao de valorna natureza, no outro ou em si mesmo feita pela ao humana.

    Nesse sentido, somente seria aceita como cultura a modificao da natureza, dooutro ou do prprio sujeito que manifestasse a insero de um novo valor.

  • Ensaio: aval. pol. pbl. Educ., Rio de Janeiro, v. 16, n. 60, p. 413-436, jul./set. 2008

    Uma avaliao sobre a relao multiculturalismo e educao 427

    Entendendo-se por valor tudo o que, de algum modo corresponda s ne-cessidades do sujeito, a cultura representaria uma adaptao da natureza aosanseios do homem.

    Sob esse prisma, seria a cultura, ao mesmo tempo, resultado da educao e dainstruo e agente de educao e de instruo.

    Pode-se fazer uma distino entre esses dois modos de aprimoramento humano econsiderar como instruo o processo de aquisio/construo de conhecimentosque leve pela sua incorporao, capacidade de avaliao e de sua utilizao demaneira adequada.

    Por educao vai-se entender o processo de reconhecimento, busca, apreenso ehierarquizao dos valores de modo prprio e adequado realizao humana comopessoa e como personalidade.

    A cultura abrange ambas as reas: ela fonte de instruo, de aquisio deconhecimento e, tambm, de educao, j que prope modelos e escalas de valor.

    As manifestaes culturais no so neutras. Pela simples apresentao esto car-regadas de informaes aceitas ou condenadas pela cincia, que traduzem conheci-mento, erros ou noes distorcidas. Tambm, quanto aos valores, as produes dacultura no so imparciais. Elas expressam valores, o que vale para o homem, o queo aprimora e aperfeioa ou o que o avilta e degrada.

    A cultura constitui ento um agente de instruo e de educao no sendo jamaisneutra e indiferente.

    Mostra-se a um novo paradoxo: por que tanta reflexo e regulamentao narea da educao visando melhoria do ser humano e nenhuma na instncia dacultura que tambm deve visar ao mesmo fim s que por caminhos diversos?

    Cada vez mais se percebe que o processo de aprendizagem no se limita aoensino recebido na escola formal, mas que muito mais abrangente, incluindo comofontes de aprendizagem, o meio ambiente, o meio social e especialmente a mdia.

    Os meios de comunicao social, como expresso cultural, podem ser considera-dos como uma nova modalidade de escola capaz de proporcionar o ensino dasdiversas disciplinas, utilizando uma tecnologia mais avanada e tendo acesso aosconhecimentos mais atualizados.

    A cultura a expresso primeiramente da satisfao das necessidades fundamen-tais que constituem a identidade fundamental do homem: o estado da sade, o nvelde instruo, a possibilidade de escolha do modo de viver, o acesso s condiesbsicas de bem-estar e de bens de consumo. Ao mesmo tempo, manifesta tambm oque se pode entender como a sua identidade secundria, o seu modo peculiar derelacionar-se com o meio ambiente e com o meio social.

  • 428 Vera Rudge Werneck

    Ensaio: aval. pol. pbl. Educ., Rio de Janeiro, v. 16, n. 60, p. 413-436, jul./set. 2008

    Colocando-se a questo desse modo, podem ser entendidos os instrumentos demedida das instituies oficiais, como a ONU, que se propem a conhecer o desen-volvimento cultural dos pases, o nvel de liberdade do povo pelo exerccio da demo-cracia, o adiantamento do sistema de ensino, das condies bsicas de higiene, redede abastecimento de gua, de esgoto, de energia eltrica e, ainda, aceitar e respeitara grande diversidade cultural.

    Recentemente leu-se nos jornais a notcia de que o Brasil teria perdido seis posi-es caindo para o 72 lugar entre 131 naes no ranking global de competitividadedivulgado pelo Frum Econmico Mundial. O pas teria sido prejudicado por exces-so de burocracia, corrupo e impostos elevados.

    Essa anlise implica a existncia de um critrio de avaliao que considera taiscaractersticas como contravalores por dificultarem a satisfao das necessidadeshumanas e no como aspectos da cultura brasileira a serem respeitados e transmiti-dos nova gerao.

    A interferncia humana na natureza e no prprio homem pode ocorrer de doismodos. Pode agregar valor, contribuir para a satisfao de suas necessidades ouinstaurar o contravalor dificultando o seu desenvolvimento ou mesmo prejudicando-o gravemente.

    Quando se fala em cultura da violncia, cultura da morte est-se referindo aohbito da violncia, banalizao da morte provocada pela continuidade de suaprtica.

    O termo cultura dissociado da noo de valor leva dificuldade ou at mesmo impossibilidade de estabelecimento de critrios de avaliao e, assim, tcita neces-sidade de se aceitarem todas as atitudes e todos os comportamentos humanos comoculturais. Como j foi dito, avaliar significa exatamente verificar o valor de algo.

    A postura, freqentemente encontrada, que considera qualquer tipo de anlise oude avaliao como preconceituosa invalida a pesquisa e dificulta o aprimoramentoda prtica pedaggica.

    A questo do multiculturalismoA avaliao do fenmeno do multiculturalismo nos dias atuais constitui um gran-

    de desafio e ao mesmo tempo, uma necessidade.

    Segundo Moreira e Candau (2008, p. 7): Quer usado como meta, conceito,atitude, estratgia ou valor, o multiculturalismo costuma referir-se s intensas mudan-as demogrficas e culturais que tm conturbado as sociedades contemporneas.Como movimento social o multiculturalismo est ligado tomada de conscincia dodireito identidade e inadmisso de qualquer modo de discriminao social.

    Como mostra Candau (2002, p. 74),

  • Ensaio: aval. pol. pbl. Educ., Rio de Janeiro, v. 16, n. 60, p. 413-436, jul./set. 2008

    Uma avaliao sobre a relao multiculturalismo e educao 429

    multiculturalismo outro termo importante e polissmico cujo sen-tido aprofundar para podermos nos aproximar das questes relati-vas s articulaes entre educao e cultura(s). Configura-se comotermo amplo e polmico, uma vez que pode ser entendido a partirde diferentes perspectivas. No h consenso na literatura dispon-vel, embora a maior parte dos autores proponha uma anlisesemntica para tentar esclarecer o conflito conceitual entre prefixoscomo multi, pluri, inter e trans. importante, portanto, ao tratar-mos de multiculturalismo, conhecer as diferentes interpretaes destaexpresso, entendendo at que ponto se assemelham e em quemedida se contrapem.

    Em linhas gerais o multiculturalismo pode consistir na justaposio ou presenade vrias culturas em uma mesma sociedade e tambm na relao entre elas.

    Segundo Carlos Alberto Torres (2001, p. 196), o multiculruralismo uma orien-tao filosfica, terica e poltica que no se restringe reforma escolar e que abordao tema das relaes de raa, sexo e classe na grande sociedade.

    Enquanto expressando uma concepo de um modo ideal de relacionamentopode ser considerado como uma ideologia j que se apresenta como uma interpreta-o dos papis e das relaes sociais.

    A partir de princpios filosfico-religiosos que reconhecem a igualdade dos sereshumanos chega-se exigncia de respeito aos direitos individuais e de liberdade nasmanifestaes culturais.

    De acordo com os perodos histricos e com as condies ambientais e econmi-cas, o valor foi instaurado na natureza de diversas maneiras, dando origem s ml-tiplas culturas com suas peculiaridades e caractersticas prprias.

    Desde que a interveno humana tenha promovido a instaurao do valor e nodo contravalor, do que vale para ele e no do que lhe prejudicial, todas as produ-es culturais so igualmente vlidas. O processo de instaurao do valor no con-creto pode ocorrer de diferentes formas e segundo diversos paradigmas. A expressoartstica do Renascimento no melhor nem pior do que a Medieval ou a da IdadeModerna. No tem sentido esse julgamento. Do mesmo modo, tambm, a manifesta-o cultural europia no pode por si s ser considerada superior nem inferior aqualquer outra.

    Todas as expresses da cultura, enquanto resultados da instaurao do valor soigualmente vlidas, podendo-se apenas hierarquiz-las, tomando-se como referenci-al a maior capacidade de satisfao das necessidades humanas.

    O multiculturalismo , portanto, um movimento social que leva ao reconhecimen-to da diversidade das culturas e investigao sobre as questes da identidade, dosdireitos humanos, da exigncia da tolerncia entre os povos.

  • 430 Vera Rudge Werneck

    Ensaio: aval. pol. pbl. Educ., Rio de Janeiro, v. 16, n. 60, p. 413-436, jul./set. 2008

    O obstculo maior vem da conceituao de cultura como o produto de qualquerinterferncia humana na natureza, no outro ou em si mesmo. Nesse caso, perde-se apossibilidade da busca de referencial de avaliao, ficando praticamente impossvela educao.

    Muitas vezes, classifica-se como preconceito qualquer crtica a algum comporta-mento ou produo tida como cultural. A condenao a algum uso, hbito ou cos-tume de uma cultura taxada freqentemente de preconceito, moralismo ouatitude politicamente incorreta.

    O termo preconceito significa a tomada de posio anterior ao conhecimento doobjeto, anterior conceituao. No entanto, do momento em que se pode argumen-tar, justificar teoricamente o conhecimento, j no se pode classific-lo como precon-ceituoso.

    O preconceito uma manifestao ideolgica originria do imaginrio que reve-la uma interpretao do sujeito centrada nele prprio e praticamente desvinculada doobjeto. Evidentemente, todo conhecimento resulta de uma construo mental do su-jeito sobre o objeto a partir do seu ponto de vista. possvel, todavia, a distinoentre o preconceito e a conceituao justificada.

    Moralismo, ao contrrio de moralidade, seria a forma preconceituosa de tratar amoral. a atitude relativista centrada no sujeito que critica sem justificar, sem darrazes para a sua afirmao.

    A atitude politicamente correta a que toma como referencial no o princpioda moralidade, do bem comum, mas a interpretao que melhor atenda s conven-es e aos interesses polticos.

    A conscincia do pluralismo cultural se, por um lado, dificultou o estabelecimentode referenciais de avaliao levando tolerncia para as prticas desumanas com ajustificativa de representarem expresses culturais como a violncia, a escravido, adestruio da natureza, por outro conduziu ao reexame dos procedimentos das cultu-ras dominantes.

    Atitudes e comportamentos injustificveis que expressavam somente posturas dedominao foram criticados e condenados.

    A nova viso de mundo que reconhece e aceita o multiculturalismo pode levar reflexo sobre as necessidades fundamentais do homem e, ao mesmo tempo, aorespeito aos diferentes modos de produo cultural da humanidade.

    Consideraes finais: a relaoeducao x multiculturalismo

    Para esta reflexo, partiu-se de um problema inicial: como avaliar a ao daeducao sempre transformadora e a exigncia do respeito ao multiculturalismo,

  • Ensaio: aval. pol. pbl. Educ., Rio de Janeiro, v. 16, n. 60, p. 413-436, jul./set. 2008

    Uma avaliao sobre a relao multiculturalismo e educao 431

    diversidade cultural? Como avaliar o direito preservao das culturas com a neces-sidade de aprimoramento humano, objetivo primordial da educao?

    Percebe-se ser constante no homem a necessidade de aperfeioamento e no desimples mudana, o que explica e justifica a educao.

    Mesmo os que consideram ser a educao relativa ao momento histrico variandode poca para poca, no conseguem separ-la do princpio da moralidade que dizque se deve fazer o bem e evitar o mal. Nenhuma proposta pedaggica em nenhumperodo histrico aceitou que se visasse ao mal na teoria mesmo quando na prticaagiu-se contra o ser humano. As discordncias davam-se na especificao, na deter-minao do que fosse o bem para o educando nas diferentes circunstncias.

    Ao contrrio dos animais que vo cumprindo as etapas do seu desenvolvimentode modo determinado, o homem conhece-se como incompleto, imperfeito, em buscaconstante de aprimoramento. Esse o fundamento da educao sem o qual ela nose justifica. Relativizar a educao acabar com a sua razo de ser. O educador nopode agir arbitrariamente segundo interesses pessoais, modismos ou determinaesde governos, mas fundamentado numa teoria que toma como referencial para suaprtica pedaggica.

    A negao da possibilidade de aperfeioamento, em relao a um referencialadotado, leva negao da prpria educao.

    As prticas pedaggicas podem variar no tempo e no espao, mas o objetivo doaperfeioamento contnuo, da busca de plenitude, sempre constante.

    As tribos indgenas ou africanas, os povos asiticos ou os norte-americanos dese-jam sempre que as suas crianas se desenvolvam em relao a um objetivo propostoque considerado como decorrente do fim prprio do ser humano.

    A par disso, o educador percebe, tambm, que esse aperfeioamento deve dar-seno apenas em relao a um dos aspectos constitutivos do sujeito, mas a todos eles.Percebe a exigncia da totalidade. De pouco adianta o aperfeioamento, ou seja, aeducao de uma das faces de sua personalidade. O que realmente importa aharmonia do desenvolvimento que vai levar humanizao do homem.

    Evidencia-se ento novamente o problema j focalizado: como dar nfase sdiferenas culturais e, ao mesmo tempo, promover o direito de igualdade na educa-o. Esta avaliao um obstculo instigante para o educador.

    J se viu que o progresso da cincia leva a uma grande regulamentao do modo deviver: como alimentar-se corretamente, como planejar a famlia com a sua dimensoideal, como construir a moradia, como cuidar da sade e dos filhos, a importncia depraticar esportes, etc. Tais conselhos, embora muitas vezes apaream como modismos,na maioria das vezes apresentam-se com justificativas cientficas, tornando-se impositivospara a educao apesar de contrrios a muitas prticas tidas como culturais.

  • 432 Vera Rudge Werneck

    Ensaio: aval. pol. pbl. Educ., Rio de Janeiro, v. 16, n. 60, p. 413-436, jul./set. 2008

    So comuns as conceituaes da educao como processo de crescimento decor-rente da experincia e da aprendizagem visando maior integrao, adaptao eeficincia individual em relao ao grupo cultural. Essa compreenso da educao portomar como referncias apenas o grau de conhecimento e o meio social, vai trazeralgumas dificuldades. O processo de integrao do delinqente em seu grupo social, asua adaptao a contravalores e a sua maior eficincia na prtica do mal no podemser considerados como educao. As idias de aperfeioamento e de aprimoramentoexigem a especificao dos valores em relao aos quais elas ocorreriam.

    A mesma dificuldade aparece quando se considera a educao como um proces-so de perpetuao das culturas, como um meio de transmisso de determinadasvises do mundo e do homem para a gerao seguinte. Os contravalores como partedas culturas tambm seriam passados deixando a educao de ter a sua funo deao transformadora.

    Usos culturais como o cigarro, a queimada, a escravido entre outros no podemser aprovados nem estimulados pela educao.

    Por outro lado, ao mesmo tempo em que se d atualmente uma grande nfase aoindivduo, ao respeito diversidade de identidades, ao pluralismo cultural acontece oforte movimento da globalizao.

    Simultaneamente pretende-se reforar as lnguas regionais e aceita-se o inglscomo idioma universal, primeira exigncia do mundo globalizado, como condiopara a uniformidade na compreenso dos mecanismos dos bens utilitrios produzi-dos pela tecnologia.

    Mostra Mike Featherstone (1994, p. 12) que,

    da mesma forma, significativos foram o aumento em nmero dasagncias e instituies internacionais, as crescentes formas globaisde comunicao, a aceitao do horrio global unificado, o de-senvolvimento das competies esportivas e premiaes em nvelglobal, o desenvolvimento de conceitos padronizados de direito ede humanidade.

    H, portanto, especialmente graas aos avanos na rea da informtica e dastelecomunicaes dos anos 80, um enorme movimento em prol da globalizao.

    A mudana no sistema de comunicao propiciou ainda um reordenamento doespao derrubando as barreiras que separavam as naes. Ocorreram ento umaintegrao e uma uniformizao cultural que desarticularam o estado na sua unida-de e especificidade levando a cultura a ser transnacional e a ultrapassar as socieda-des estabelecidas com novos processos de permuta, de troca de mercadorias, deinformaes de conhecimentos cientficos e tcnicos que levam crena de ser aglobalizao um processo que escapa ao controle humano e traz baila a discussosobre o papel que cabe educao nesse contexto.

  • Ensaio: aval. pol. pbl. Educ., Rio de Janeiro, v. 16, n. 60, p. 413-436, jul./set. 2008

    Uma avaliao sobre a relao multiculturalismo e educao 433

    No se pode, no entanto, confundir globalizao com aceitao do outro, comsolidariedade, cumplicidade ou esprito de comunidade, objetivos da educao. inegvel que o tempo e o espao ganham novas dimenses. A velocidade da comu-nicao, no entanto, por si s, no aproxima as pessoas, podendo at torn-lasinsensveis e solitrias.

    Os aspectos econmico, social, poltico e cultural ultrapassam agora as barreirasregionais e nacionais interferindo nas diversidades e peculiaridades histricas e soci-ais. Para alguns, essa intromisso positiva j que promove a igualdade entre ospovos. Outros, a consideram negativa, pois as diferenas e caractersticas prpriasdevem ser respeitadas. evidente, no entanto, que a economia globalizada distribuiseus benefcios de maneira bastante desigual.

    No pensar de Ricoeur (1977, p. 92), antes de qualquer distncia crtica, perten-cemos a uma histria, a uma classe, a uma cultura, ou a tradies. O sentimentopor ele denominado de pertena corresponde necessidade humana de sentir-sepertencente a um todo social que d segurana e proteo, que sirva de modelo e derazo para viver que leve vivncia da comunidade, mas que no corresponda noo de unidade poltica.

    O sentimento de pertencer a um grupo social fundamental para o equilbriopessoal e social. A marginalidade, o estar fora do meio social vivenciado pelohomem como sofrimento.

    O educador no pode desconhecer os benefcios e as dificuldades decorrentes daglobalizao nem ignorar a necessidade de pertencimento a uma comunidade, pr-pria do ser humano.

    Mostra Bauman (2005, p. 30) que

    as filiaes sociais mais ou menos herdadas que so atribudasaos indivduos como definio de identidade: raa [...] gnero, pasou local de nascimento, famlia e classe social, agora esto-setornando menos importantes, diludas e alteradas nos pases maisavanados do ponto de vista tecnolgico e econmico. Ao mesmotempo, h a nsia e as tentativas de encontrar ou criar novos gruposcom os quais se vivencie o pertencimento e que possam facilitar aconstruo da identidade.

    Todas essas contradies, todos esses movimentos sociais antagnicos vo exigirdo educador o estabelecimento de referenciais que balizem a sua ao e o impeamde perder o rumo na sua prtica transformadora.

    Permanece, portanto a necessidade de um termo de referncia que norteie todo oprocesso da educao e permita uma avaliao das culturas e do desenvolvimentodas sociedades humanas. Permanece a busca do que realmente aprimora, aperfei-oa e torna o homem mais humano. Embora sejam muito variadas as concepes de

  • 434 Vera Rudge Werneck

    Ensaio: aval. pol. pbl. Educ., Rio de Janeiro, v. 16, n. 60, p. 413-436, jul./set. 2008

    homem, percebe-se que algo continua estvel, imutvel como realidade e como metaa ser atingida. a constatao de que o homem no apenas uma personalidadecom caractersticas individualizantes, mas uma pessoa, valor em si mesmo inde-pendente de outros valores.

    A pessoa, ao contrrio da personalidade, no constituda por valores. Ela , elaprpria, o valor. O homem pessoa exatamente por seu valor. No se reduz apenasao ser, no somente um ente entre outros com caractersticas fsicas e psquicas,mas vale por si mesmo.

    A carncia de plenitude, o estado de falta, de necessidade de algo que o satisfaa,mostra ter o homem uma destinao no sentido em que direcionado a uma meta, achegar a uma plenitude, a plenitude de pessoa. A grande destinao que justifica aeducao seria a de chegar a ser pessoa, ou seja, chegar ao pleno valor humano.

    A pessoa, no entanto, realiza progressivamente sua destinao, se valoriza pau-latinamente, cresce pouco a pouco no valor. Esse crescimento o objetivo da educa-o. Sua meta a promoo do valor pessoal no individuo.

    No se admitindo no sujeito necessidades definidas e definveis, todo o processoda educao vai reduzir-se a um ato de violncia j que imporia ao educando umconjunto de valores arbitrrios.

    Entendendo-se por pessoa o indivduo dotado de racionalidade, de vontade e deafetividade vai ser necessrio que o processo da educao vise primordialmente aosvalores correspondentes a essas caractersticas universais: a sade, o conhecimento,a liberdade, o amor em suas mltiplas manifestaes.

    Todos os diferentes grupos culturais anseiam por esses valores fundamentais quese expressam de diferentes modos.

    H um dinamismo, uma tendncia natural para a conquista do valor. dele quese utiliza a educao para propor a alimentao saudvel, vestimenta e moradiahiginicas, a busca da verdade, da beleza, da justia, da liberdade, da solidariedadeentre outros valores.

    O processo da educao vai no somente levar o educando a procurar o valoradequado ao crescimento da pessoa distinguindo onde ele se encontra, avalian-do-o racionalmente pelos juzos de valor, mas ainda promover a cultura, ou seja, ainstaurao de valores no somente no sujeito, mas tambm no mundo concreto.

    Cada indivduo, alm de ser uma pessoa humana, tem uma personalidade, ouseja, tem caracterstica prpria que o distingue dos seus semelhantes.

    Uma proposta pedaggica precisa ento no apenas focalizar a pessoa, mastambm a personalidade do sujeito, aquilo que o individualiza e que o faz diferentedos outros.

  • Ensaio: aval. pol. pbl. Educ., Rio de Janeiro, v. 16, n. 60, p. 413-436, jul./set. 2008

    Uma avaliao sobre a relao multiculturalismo e educao 435

    Os diferentes grupos sociais so formados por pessoas com diferentes perso-nalidades constituindo, eles prprios, personalidades que os identificam: as iden-tidades culturais.

    Tendo sido consideradas as exigncias primordiais da pessoa humana, a edu-cao pode contemplar as diferentes identidades culturais, respeitando-as e desen-volvendo-as.

    Como concluso dessa breve reflexo sobre a avaliao da relao entre a edu-cao e o multiculturalismo, chega-se primeiramente necessidade da busca dereferenciais de avaliao como meio para que se evitem arbitrariedades e preconcei-tos no acatamento das peculiaridades das vrias culturas. Em seguida, vai-se proporas noes de pessoa e de personalidade como referenciais para a avaliao doprocesso da educao nas diferentes culturas.

    Caberia educao, como objetivo principal, levar o sujeito a desenvolver-secomo pessoa aprimorando a sua sade, o seu bem-estar material, o seu conheci-mento, a sua liberdade, a sua sensibilidade independentemente do grupo cultural aque pertencesse. Como segundo objetivo, promover as personalidades com suaspeculiaridades prprias, individuais e grupais, respeitando o pluralismo cultural na-quilo que no se opusesse s exigncias fundamentais da pessoa humana.

    RefernciasABBAGNANO, N. Dicionrio de filosofia. 4. ed. Traduo por Alfredo Bosi eIvonne Castilho Benedetti. So Paulo: Martins Fontes, 2000.

    BAUMAN, Z. Identidade. Traduo Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar,2005.

    CANDAU, V. M. (Org.). Multiculturalismo e educao: questes, tendncias eperspectivas em sociedade, educao e cultura (s): questes e propostas.Petrpolis, RJ: Vozes, 2002.

    CONSELHO NACIONAL DE EDUCAO. Conselho Pleno. Resoluo CNE/CP n.1, de 18 de fevereiro de 2002. Institui as Diretrizes e Bases da Educao Nacionalpara a formao de professores da Educao Bsica, em nvel superior, curso delicenciatura, de graduao plena. Dirio Oficial [da Repblica Federativa doBrasil], Braslia, DF, 9 abr. 2002. Seo 1, p. 31.

    FEATHERSTONE, M. (Coord.). Cultura global: nacionalismo, globalizao emodernidade. Traduo de Attilio Brunetta. Petrpolis, RJ: Vozes, 1994.

    GOBRY, Y. De la valeur. Bruxelles: Vander-Nauwelaerts, 1975.

  • 436 Vera Rudge Werneck

    Ensaio: aval. pol. pbl. Educ., Rio de Janeiro, v. 16, n. 60, p. 413-436, jul./set. 2008

    GUARESCHI, P. A.; BIZ, O. Mdia, educao e cidadania: tudo o que voc devesaber sobre mdia. Petrpolis, RJ: Vozes, 2005.

    HALL, S. A identidade cultural na ps-modernidade. Traduo de Toms Tadeu daSilva e Guacira Lopes Louro. 7. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

    MACHADO, N. J. Avaliao educacional: das tcnicas aos valores. RevistaPsicopedaggica, So Paulo, v. 13, n. 28, p. 9-18. Jan. 1994.

    MOREIRA, A. F.; CANDAU, V. M. (Org.). Multiculturalismo: diferenas culturais eprticas pedaggicas. Petrpolis, RJ: Vozes, 2008.

    PARMETROS Curriculares Nacionais (PCNs). Braslia, DF: MEC, Secretaria deEducao Fundamental, 1997.

    RICOEUR, P. Interpretao e ideologias. Traduo de Hilton Japiassu. Rio deJaneiro: F. Alves, 1977.

    SCHELER, M. Le formalisme em thique et lthique materiale ds valeurs: essainoveau pour fonder um personnalisme thique. Paris: Gallimard, 1955.

    SILVA, C. S. Medidas e avaliao em educao. Petrpolis: Vozes, 1992.(Educao).

    SILVA, T. T. O discurso pedaggico da sociologia da educao: crtica da crtica?.In: MOREIRA, A. F. B. (Org.). Conhecimento educacional e formao doprofessor. Campinas, SP: Papirus, 1994.

    ______. Documentos de identidade: uma introduo s teorias do currculo. BeloHorizonte: Autntica, 2005.

    TORRES, C. A. Democracia, educao e multiculturalismo. Traduo de CarlosAlmeida Pereira. Petrpolis, RJ: Vozes, 2001.

    WERNECK, V. R. Cultura e valor. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2003.

    Recebido em: 27/11/2007 Aceito para publicao em: 30/07/2008