= felipe pena - a reportagem

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A REPORTAGEM Na apresentação do livro de Gilberto Dimenstein e Ricardo Kotscho, A aventura da reportagem, o conselheiro editorial da Folha de S.Paulo Clóvis Rossi pede desculpas aos editores e redatores para dizer que a função de repórter é a única pela qual vale a pena ser jornalista. Para Rossi, a profissão só é válida pela "sensação de poder ser testemunha ocular da história de seu tempo. E a história ocorre sempre na rua, nunca numa redação de jornal". O próprio Rossi, no entanto, trata de registrar a dificuldade da função: Ora, jornalistas quase nunca são testemunhas oculares de fatos menos corriqueiros. Em geral, eles se passam nas sombras dos gabinetes, no escurinho dos palácios, nos fundos dos morros e favelas, e assim por diante. Logo, resgatar'a melhor versão possível da verdade' é uma tarefa ingrata. O exagero e o aparente paradoxo estão no imaginário sobre a reportagem, sempre recheado de glamour. Quando pensamos em grandes jornalistas, logo nos remetemos àqueles responsáveis por grandes e famosas reportagens. Bob Wodoord e Carl Bernstein no escândalo Watergate, em Washington. Skeets Miller na tragédia da gruta Sand Cave, no Kentuky. Peter Arnett na Guerra do Golfo. E Tim Lopes no mercado do tráfico da Favela da Grota, no Rio de Janeiro. O último exemplo é proposital. Um alerta para a excessiva romantização do trabalho de repórter. No último capítulo deste livro volto a ele para falar sobre a segurança dos jornalistas pelo mundo. O importante agora é entender que os nomes citados são exceções. Às vezes, exceções trágicas. A transpiração é muito maior do que a glória na ampla maioria dos casos. O reconhecimento é muito mais pessoal do que social. O esforço é muito mais físico do que intelectual. O repórter não tem final de semana, gasta os dedos no telefone, esquenta a bunda nos sofás de gabinetes, perde as solas dos sapatos e ainda recebe reclamações dos chefes e da família. O glamour não é regra na profissão. Se esse é o seu motivo para seguir carreira, esqueça. Como diz Ricardo Kotscho em outro de seus livros, A prática da reportagem, "o repórter só deve ser repórter se isso for irreversível, se não houver outro jeito de ganhar a vida, se alguma força maior o empurra para isso". Dado o alerta, vamos aos conceitos, já que este é um livro teórico. Afinal, qual é a definição de reportagem? Para o professor João de Deus Corrêa, "reportagem é um relato jornalístico temático, focal, envolvente e de interesse atual, que aprofunda a investigação sobre fatos e seus agentes". Já para o professor Nilson Lage, a exposição que combina interesse do assunto com o maior número possível de dados, formando um todo compreensível e abrangente”, No clássico Ideologia e técnica da notícia, apresenta as dificuldades de propor uma definição, mas informa que esta” compreende desde a simples complementação de uma notícia - uma expansão que situa o fato em suas relações mais óbvias com outros fatos antecedentes, conseqüentes ou correlatos - até o ensaio capaz de revelar, a partir da prática histórica, conteúdos de interesse permanente”. 44 O teórico português Nelson Traquina cita Jean Chalaby, cujo inventário sobre a função de reportar, no jornalismo, encontra sua primeira definição teórica em 1836/ classificando o repórter como “uma espécie de empregado que vê como seu dever tomar notas do desenvolvimento dos eventos e que tem o estranho hábito de considerar os fatos como fatos”,45 A definição de reportagem quase sempre é construída em comparação 1

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O que é reportagem

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Page 1: = Felipe Pena - A Reportagem

A REPORTAGEM Na apresentação do livro de Gilberto Dimenstein e Ricardo Kotscho, A aventura da reportagem, o

conselheiro editorial da Folha de S.Paulo Clóvis Rossi pede desculpas aos editores e redatores para dizer que a função de repórter é a única pela qual vale a pena ser jornalista. Para Rossi, a profissão só é válida pela "sensação de poder ser testemunha ocular da história de seu tempo. E a história ocorre sempre na rua, nunca numa redação de jornal".

O próprio Rossi, no entanto, trata de registrar a dificuldade da função: Ora, jornalistas quase nunca são testemunhas oculares de fatos menos corriqueiros. Em geral, eles se passam

nas sombras dos gabinetes, no escurinho dos palácios, nos fundos dos morros e favelas, e assim por diante. Logo, resgatar'a melhor versão possível da verdade' é uma tarefa ingrata.

O exagero e o aparente paradoxo estão no imaginário sobre a reportagem, sempre recheado de glamour. Quando pensamos em grandes jornalistas, logo nos remetemos àqueles responsáveis por grandes e famosas reportagens. Bob Wodoord e Carl Bernstein no escândalo Watergate, em Washington. Skeets Miller na tragédia da gruta Sand Cave, no Kentuky. Peter Arnett na Guerra do Golfo. E Tim Lopes no mercado do tráfico da Favela da Grota, no Rio de Janeiro. O último exemplo é proposital. Um alerta para a excessiva romantização do trabalho de repórter. No último capítulo deste livro volto a ele para falar sobre a segurança dos jornalistas pelo mundo.

O importante agora é entender que os nomes citados são exceções. Às vezes, exceções trágicas. A transpiração é muito maior do que a glória na ampla maioria dos casos. O

reconhecimento é muito mais pessoal do que social. O esforço é muito mais físico do que intelectual. O repórter não tem final de semana, gasta os dedos no telefone, esquenta a bunda nos sofás de gabinetes, perde as solas dos sapatos e ainda recebe reclamações dos chefes e da família. O glamour não é regra na profissão. Se esse é o seu motivo para seguir carreira, esqueça. Como diz Ricardo Kotscho em outro de seus livros, A prática da reportagem, "o repórter só deve ser repórter se isso for irreversível, se não houver outro jeito de ganhar a vida, se alguma força maior o empurra para isso".

Dado o alerta, vamos aos conceitos, já que este é um livro teórico. Afinal, qual é a definição de reportagem? Para o professor João de Deus Corrêa, "reportagem é um relato jornalístico temático, focal, envolvente e de interesse atual, que aprofunda a investigação sobre fatos e seus agentes". Já para o professor Nilson Lage, "é a exposição que combina interesse do assunto com o maior número possível de dados, formando um todo compreensível e abrangente”, No clássico Ideologia e técnica da notícia, apresenta as dificuldades de propor uma definição, mas informa que esta” compreende desde a simples complementação de uma notícia - uma expansão que situa o fato em suas relações mais óbvias com outros fatos antecedentes, conseqüentes ou correlatos - até o ensaio capaz de revelar, a partir da prática histórica, conteúdos de interesse permanente”.44

O teórico português Nelson Traquina cita Jean Chalaby, cujo inventário sobre a função de reportar, no jornalismo, encontra sua primeira definição teórica em 1836/ classificando o repórter como “uma espécie de empregado que vê como seu dever tomar notas do desenvolvimento dos eventos e que tem o estranho hábito de considerar os fatos como fatos”,45

A definição de reportagem quase sempre é construída em comparação com a notícia. Para o jornalista Ricardo Noblat, autor do livro A arte de jazer um jornal diário, ”notícia é o relato mais curto de um fato, Reportagem é o relato mais circunstanciado”.46 Nilson Lage, em outro de seus livros, Estrutura da notícia, diz que a distância entre a reportagem e a notícia estabelece-se na prática, a partir da pauta, isto é, do projeto de texto, “Para as notícias, as pautas são apenas indicações de fatos programados.[...] Reportagens pressupõem outro nível de planejamento”. 47 O professor João de Deus é mais incisivo e propõe um quadro comparativo entre ambas:

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Do ponto de vista da produção, Nilson Lage considera três gêneros de reportagem. Investigativa: parte de um fato para revelar outros mais ou menos ocultados, e, através deles, o perfil de

uma situação de interesse jornalístico. Exemplo: o caso Watergate. Interpretativa: o conjunto de fatos é observado pela perspectiva metodológica de determinada ciência.

Exemplo: uma pesquisa qualitativa. Novo jornalismo: aplica técnicas literárias na construção de situações e episódios para revelar uma práxis

humana não teorizada. Exemplo: os textos da famosa escola americana, a New Journalism, escritos por talentos como Truman Capote e Normal Mailer.

Os modelos propostos por João de Deus Corrêa partem, segundo ele, das constatações das rotinas jornalísticas.

Reportagem do perfil - procura apresentar a imagem psicológica de alguém, a partir de depoimentos do próprio, assim como de familiares, amigos, subordinados e superiores dessa pessoa. Martin Bashir passou oito meses, em 2002, convivendo com o astro pop Michael Jackson para produzir uma reportagem para a TV inglesa ITV. Foi exibida em 2 de março de 2003, pelo canal Sony, com ampla repercussão mundial. Uma característica a ressaltar na citada produção foi a postura de frontal questionamento das mais diversas e delicadas, digamos, "fragilidades" do perfilado. Um observador mais atento percebe com que requintes de estratégia o jornalista apresentava as mais dolorosas questões: posturas que oscilavam entre a ingênua simplicidade dos mais humildes e a liberdade natural dos íntimos.

Reportagem de fatos - aproveita a dramaticidade de um fato e aprofunda seu conhecimento, abrindo novas áreas de contexto, entendimento de causas e efeitos. Esse modelo, assim como o de "ação" e o "documental", foi apresentado por Muniz Sodré e Maria Helena no livro Técnica de reportagem.

Reportagem polêmica - explora assunto em discussão na sociedade ou o cria. Para isso, ouve fontes, especialistas e "olimpianos" que pensem de modo diferenciado, oposto. Nessa espécie de reportagem o profissional pode deixar a critério dos destinatários a opção de como interpretar a matéria, mas, usualmente trabalha sobre uma hipótese em que aposta. Por ocasião do debate nacional que introduziu o divórcio no país, o senador Nelson Carneiro era fonte permanente para os jornalista e, de certa forma, uma espécie de escudo à sombra do qual os veículos se escondiam para enfrentar as posições religiosas que combatiam incansavelmente tal postura.

Reportagem monotemática - após um acontecimento recente, o veículo "costura" a relação com outros similares e cria um tema que provoque adesão do público, pelo destaque e tratamento coerente reservado ao assunto. Tal estratégia é mais empregada com temáticas sobre as quais o veículo tenha sondado um clima de simpatia, de adesão. Mas, para honrar a responsabilidade social cabe ao veículo, muitas vezes, içar uma "bandeira" que julgue ser merecedora de que a sociedade tome partido, consciência. O Jornal do Brasil edita, desde março de 2002, um caderno de Ecologia (JB Ecológico) mensal com características de reportagens de interesse público; o número inicial foi inaugurado com a manchete "Bush, Terrorista Ambiental?". A matéria transcrevia um depoimento acintoso desse presidente:

- Somos o maior poluidor do mundo. Mas, se for preciso, vamos poluir ainda mais, para evitar uma recessão na economia americana.

- A solução definitiva para acabar com os incêndios é o corte raso de todas as árvores Só o movimento de denunciar tais idéias consagra o caderno, o veículo e o jornalismo, mesmo que numa

reportagem monotemática. Reportagem de ação - diante de um fato especialmente dinâmico, impactante e complexo, o texto reconstitui

a intensidade das ações num estilo cinematográfico, visual, criando um clima dinâmico, com narrativa leve, mas nervosa, ágil. Modelo pouco usado pelos jornais e revistas mais conservadoras ou clássicas; no entanto, muito presente nos veículos mais populares, especialmente nos programas de televisão dedicados à temática da violência, dos crimes, em que a pauta "policial" é a âncora.

Reportagem documental - costuma merecer um cuidado praticamente didático do jornalista, no sentido de investir na demonstração documental da perspectiva com que o tema é abordado; incluem-se, aí, as transcrições de depoimentos e documentos que dão credibilidade e "materialidade" de provas às argumentações ou informações. A televisão é um veículo que oferece mais recursos para a produção desse modelo de reportagem, já que dispõe não apenas da retórica do repórter, mas do "efeito demonstração" das imagens com o movimento e a cor, que corroboram na autenticação documental.

A divisão de gêneros é realmente muito complexa. Poderia acrescentar outros tantos modelos à sistematização proposta por João de Deus. Acredito, por exemplo, que longas reportagens, escritas com estilo e rigor profissional, podem até se tornar clássicos da literatura. Não estaria exagerando, por exemplo, em situar o livro Os sertões, de Euclides da Cunha, nessa categoria. O que seria um relato jornalístico sobre a Guerra de Canudos tornou-se um cânone da literatura brasileira. Da mesma forma, incluo os livros Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos, e A noite das grandes fogueiras, de Domingos Meirelles, entre vários outros. O primeiro é autobiográfico e relata as condições dos porões da ditadura Vargas. O segundo narra a saga da Coluna Prestes, que atravessou o Brasil na década de 1920.

O jornalista John Reeds produziu a obra mais emblemática sobre a Revolução Russa de 1917, freqüentemente citada como uma espécie de marco literário do século XX: Dez dias que abalaram o mundo. Ela costuma ser apresentada como uma espécie de grande reportagem, pela capacidade que o texto tem de

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reconstituir com vigor e realismo um momento particular da História. Nas palavras de João de Deus Corrêa, "é como se Reeds estivesse conduzindo quem o lê pelas ruas e praças marca das pela revolução".

Há ainda os livros-reportagem de ocasião, que não têm pretensões estilísticas e/ou artísticas. Estes não podem ser incluídos no âmbito da literatura. São, na verdade, louváveis tentativas de experientes repórteres em transcender o espaço reduzido dos jornais. E, em geral, produzidos de forma muito competente. Cito como exemplos, com receio de ser injusto com os ausentes, os livros Abusado, de Caco Barcelos; Comando Vermelho, de Carlos Amorim; e Chatô, de Fernado Morais. Mas há muitos outros.

FonteTeoria do Jornalismo

Felipe PenaSão Paulo: Contexto

2005

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