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................................ - 1 - FLÁVIO MARCUS DA SILVA N N o o c c h h ã ã o o a a g g o o r r a a VirtualBooks Editora ................................ - 2 - © Copyright 2014, Flávio Marcus da Silva. 1ª edição 1ª impressão (publicado em setembro de 2014) Todos os direitos reservados, protegidos pela lei 9.610/98. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida, em qualquer meio ou forma, nem apropriada e estocada sem a expressa autorização do autor. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) SILVA , Flávio Marcus da No chão agora. Flávio Marcus da Silva. Pará de Minas, MG: VirtualBooks Editora, Publicação 2014.14x20 cm. 85p. ISBN 978-85-434-0313-7 Literatura brasileira. Contos. Poesias. Brasil. Título. CDD- B869 _______________ Livro editado pela VIRTUALBOOKS EDITORA E LIVRARIA LTDA. Rua Porciúncula,118 - São Francisco Pará de Minas - MG - CEP 35661-177 - Tel.: (37) 32316653 - e-mail: [email protected] http://www.virtualbooks.com.br

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Page 1: © Copyright 2014, FLÁVIO MARCUS DA SILVAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/5344385.pdf · Vejo-te na chuva, encostado no muro de arrimo. É água que não acaba mais. A avenida

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FF LL ÁÁ VV II OO MM AA RR CC UUSS DD AA SS II LL VVAA

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VirtualBooks Editora

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© Copyright 2014, Flávio Marcus da Silva. 1ª edição 1ª impressão (publicado em setembro de 2014)

Todos os direitos reservados, protegidos pela lei 9.610/98. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida, em qualquer meio ou forma, nem apropriada e estocada sem a expressa autorização do autor. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) SILVA , Flávio Marcus da No chão agora. Flávio Marcus da Silva. Pará de Minas, MG: VirtualBooks Editora, Publicação 2014.14x20 cm. 85p. ISBN 978-85-434-0313-7 Literatura brasileira. Contos. Poesias. Brasil. Título. CDD- B869

_______________ Livro editado pela VIRTUALBOOKS EDITORA E LIVRARIA LTDA. Rua Porciúncula,118 - São Francisco Pará de Minas - MG - CEP 35661-177 - Tel.: (37) 32316653 - e-mail: [email protected] http://www.virtualbooks.com.br

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CRÔNICAS

Ainda dá tempo

Uma tarde na praça

Fogo de palha

Jantar com Estupidez

As águas vão rolar

Meu filho não deu em nada

“O Cínico” é um grito de amor à vida

A Morte em “O Cínico”

Viagem Ostentação

Começar de novo

Pimenta no olho do outro é refresco

Dois modos

Duas histórias

Café com Competência

Sucesso é ser feliz

Nossa alegria

Ramon na Copa

Na prisão

Ramon chega aos 40

Balões vermelhos

Minha amiga Charlotte

O caso da cisterna

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Insônia e pernilongos

Água e poder

“Goiabas bichadas” bate, mas não assopra

“Goiabas bichadas” cumpre sua difícil missão

Cortes suínos

Ramon na privada

Caminhos

Uma bela senhora

Acordando para a vida

No chão agora

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Ainda dá tempo Vejo-te na chuva, encostado no muro de arrimo. É água que não acaba mais. A avenida lá embaixo já é um rio caudaloso. Raios cortam o céu em todas as direções, iluminando o morro, as casas, os prédios – tudo abandonado. Só eu te vejo, e não farei nada, não darei um grito, um sinal, nada, pois sei o que você pretende, e te admiro por isso, Miguel, muito. Sua mulher ficará bem; a pensão é pouca, mas vai dar para as refeições, o salão de beleza e o clube. Seus filhos também ficarão bem, aqueles ingratos – e tenha certeza que os vagabundos queimarão todos os seus livros e usarão sua biblioteca como despensa para as tralhas deles. Vejo-te aí, Miguel, esperando o morro desabar em cima de você; estou de longe, mas te vejo muito bem, você emagreceu, está pálido, parece mais velho... É o que eu sempre digo: esse capitalismo é realmente terrível; olha só para você, completamente perdido, com uma família sanguessuga que só pensa em dinheiro, carros, motos, viagens, festas, herança, obrigando você a aturar aquela maldita firma, a postergar a aposentadoria ad aeternum – e você dá duro, que eu sei, trabalha dez, doze horas por dia, é humilhado pelo patrão, enquanto os privilegiados da panelinha se dão bem, aquele bando de puxa-sacos medíocres e preguiçosos, que só contam mesmo com a bajulação e a amizade para se manterem nos cargos – que eles acham vantajosos, porque têm salários de dois mil, três mil, quatro mil... Coitados...

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Mas agora você decidiu, não é, Miguel? Vai se libertar. Só não entendi por que escolheu o muro de arrimo... Não seria mais fácil um tiro nos miolos? Você conseguiria uma arma de fogo aqui mesmo no bairro, era só anunciar ali no bar do Zé Pedro, tem um monte de gente lá que te arrumaria uma na hora. Mas você sempre gostou de ser diferente, não é? Aposto que deixou um bilhete de despedida na mesa da sala ou no banheiro... Que falta de praticidade! E se esse muro não cair hoje? (embora tudo indique que caia; a defesa civil garantiu que ele não aguentaria uma chuva assim, eu li no jornal ontem). Vai cair. Ai meu Deus, quem vem lá? No bilhete você colocou o endereço do muro de arrimo?! Não pode ser. Como é que seu filho descobriu? Não importa. Seja forte, Miguel, resista. Olhe para ele, o mais vagabundo dos três, o mais interessado na miséria da herança que você vai deixar. Você sabe que ele é maconheiro, que vende drogas na faculdade? Que vai abandonar o curso de Direito para fazer História? Que a namorada dele está grávida e que é você que vai sustentar o bebê, e todos eles, até o fim da sua vida? Que você nunca vai poder se aposentar para fazer o que gosta? Você sabe disso, Miguel? Se não sabe, fique sabendo, e faça o que tem que ser feito. (Maldita a hora que você decidiu pelo muro de arrimo, que estupidez!, se tivesse optado pela arma de fogo, era só puxar o gatilho, e ainda sujaria seu filho todo com sangue e miolos se ele aparecesse na hora, sem ter que se molhar nessa maldita chuva esperando a natureza agir). Aja, Miguel, se não tem arma, jogue-se do morro agora, pule de cabeça, ali embaixo é asfalto, vai ser perfeito, não ouça esse rapaz, ele

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quer seu mal, ele te odeia... Não, abraço não! Desvencilhe-se, Miguel, não o perdoe, ele não te ama, ele só quer seu sangue, sua miséria! Não diga isso, Miguel, amor não existe, Deus não existe, não se entregue, a vida é horrível, HORRÍVEL! Mudar? Ser feliz? Como? Não dá mais tempo, acabou, ACABOU!... Não faça isso, Miguel... Não, não, NÃO!

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Uma tarde na praça Sentei-me hoje no banco de uma praça que eu ainda não conhecia. Cheia de árvores, fresca, muito diferente da praça central da cidade – patrimônio histórico tombado, mas totalmente descaracterizada, despelada, ardendo em fogo àquela hora. Era meio-dia. Senti o ambiente agradável, o vento, as sombras das árvores dançando no chão repleto de folhas secas; sentei-me num dos bancos e abri o livro que eu trazia na mochila: Angústia, de Graciliano Ramos. Comecei a ler. À minha frente, seis homens já bem avançados na idade jogavam cartas; estavam ali, aparentemente felizes, sem nenhuma preocupação com o tempo; não faziam horário de almoço, como o pintor de paredes e o motorista que chegariam minutos depois, nem curtiam seus últimos dias de férias, como eu. Tinham todo o tempo pela frente, só para eles. Que benção! Chegou então o pintor, um jovem magro, de cabelo ensebado, todo sujo de tinta, que trabalhava numa construção ali perto. Sentou-se no chão, enrolou um cigarro e começou a ler um jornal de notícias populares: assassinatos, estupros, acidentes de carro, futebol, novelas, etc. Lia com interesse, às vezes sussurrando uma ou outra frase com dificuldade; depois parava um pouco, olhava para cima, meio perdido, tragando e soltando fumaça; e recomeçava. A manchete do dia eu consegui ler: “Morto por causa de um celular”. Numa virada de página li: “Caminhão derruba passarela e mata quatro”. Noutra: “Morto a machadadas após receber herança”.

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Carros do governo passavam por ali o tempo todo. Deve ter uma repartição no bairro, ou uma unidade de saúde, ou simplesmente a praça fica na rota deles, do seu leva e traz, a serviço do povo ou não. Um deles parou perto de mim, embaixo de uma árvore. O motorista chegou o banco para trás, deitou o encosto e cochilou. Fazia a sesta. Foi acordado por uma quarentona bonita, cheia de carne, que saiu de uma casa velha ali perto; chegou rindo, chamando o homem, que abriu os olhos e riu também. Ela entrou no carro e eles saíram. Passou um tempo, o pintor se levantou e voltou ao trabalho. Parecia desanimado. Concentrei-me de novo na leitura (“A porta escancarada convidava-me a abandonar tudo, a sair sem destino...”), até que ouvi um arrastar de chinelos na calçada atrás de mim e olhei. Era uma senhora idosa, bem velhinha, enfiada num vestido floral desbotado, cheio de remendos. Ela trazia nas mãos uma cestinha de bambu-taquara coberta com um pano de prato bordado e uma garrafa térmica azul. Foi até à mesa dos velhos, que a cumprimentaram sorridentes, transbordando de alegria. Da cesta ela tirou seis copos de plástico e serviu-lhes uma bebida que me pareceu ser café com leite. Na cesta havia também pedaços de bolo e biscoitos, que eles aceitaram, agradecendo, e começaram a comer. Em seguida ela se aproximou de mim e me ofereceu um biscoito, que eu recusei. Voltei ao meu livro (“Tornar-me-ia de novo meio cigano, meio selvagem, andaria numa corrida vagabunda pelas fazendas sertanejas, ouviria as cantigas dos cantadores e as conversas das velhas nas fontes...”). Ela devia ser esposa de um deles...

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Terminei o livro. Olhei o relógio: três e meia. O carro do governo voltou e estacionou no mesmo lugar. A mulher bonita desceu, bateu a porta com força e voltou para a casa velha, resmungando xingamentos. O motorista gritou: “Vagabunda!”, deu partida no carro e foi embora. Os velhos levantaram os olhos, uns riram, outros cochicharam, mas logo voltaram ao jogo, como se nada tivesse acontecido. A velha já tinha ido embora. Guardei meu livro na mochila, bebi um pouco de água, comi uma maçã e tomei o rumo de casa. Tarde agradável...

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Fogo de palha Ontem à tarde Rita foi seguida na rua por um cachorrinho imundo, cheio de sarna, só osso e pele. O olhar do bichinho parecia o de uma criança desamparada pedindo socorro, triste, sozinha, perdida no mundo. Rita teve muita pena dele, mas não parou, continuou andando a passos indecisos pela avenida, olhando para trás, e o cãozinho no seu encalço, mancando, todo estropiado. Rita quis levá-lo para casa, para cuidar dele, tê-lo como amigo; ultimamente vinha se sentindo muito sozinha, uma companhia ia lhe fazer bem. Então ela tomou uma decisão: ia ficar com o cãozinho, amá-lo, dar-lhe de tudo: um lar, comida, cuidados, carinho. Passaria no veterinário, que era logo ali, compraria todos os remédios necessários, vacinas, ração, uma casinha bem confortável... Depois pensaria num nome para ele... Rita estava muito feliz... Fogo de palha. Assim que avistou a clínica veterinária, Rita começou a pensar melhor no assunto, analisou os prós e os contras, considerando muito mais os contras: o absurdo que seria a conta do veterinário, o preço da ração, dos medicamentos, das vacinas... Olhou para trás, o cãozinho continuava vindo, cambaleando, queimando suas últimas energias de animal faminto pedindo socorro. Nessa hora ela quase o pegou no colo, para salvá-lo, adotá-lo de vez, mas balançou a cabeça e disse para a sua consciência: “Não. Ele não será

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feliz comigo, não posso cuidar dele”, e imaginou uma série de desculpas para não levá-lo. Ao passar em frente a uma padaria, Rita viu que um pai e sua filha (que devia ter no máximo seis anos) já estavam com suas compras no caixa, quase saindo, e imaginou: “Ao ver o cachorrinho, essa criança vai querê-lo para ela, vai obrigar o pai a levá-lo ao veterinário, e depois vai adotá-lo como amiguinho de estimação, vai amá-lo, tenho certeza disso”. Que alívio para Rita! Ela tinha certeza que tudo daria certo para aquele cachorrinho: que ele teria um lar, comida, carinho, amor. E com essa certeza no coração ela correu e se escondeu num beco, fechou os olhos e imaginou: “A menina está pegando-o agora, implorando ao pai: ‘Papai, posso ficar com ele? Por favor’”. Na cabeça de Rita o pai consentiu, a menina levou o cãozinho e cuidou muito bem dele, amou-o como se ama a um filho. Que lindo! Só que isso não aconteceu. O cãozinho continuou abandonado, perdido, triste, morrendo de fome. Rita foi embora por outro caminho, sem olhar para trás, com a consciência tranquila, feliz pelo desfecho que imaginou e que, na sua cabeça, era o real. “Que bom que deu tudo certo para ele”, pensou.

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Jantar com Estupidez Juca trabalha como jornalista num país governado por uma rainha de nome suntuoso: Estupidez de Aurora Dourada e Pedras nos Rins. Ele deu azar, porque Estupidez odeia jornalistas, principalmente os que pensam criticamente e manifestam sem medo suas opiniões. Desde que assumiu o trono, Estupidez mantém uma luta encarniçada contra os cérebros pensantes do reino. Sua política educacional vai firme nesse sentido, e os resultados, até agora, são muito favoráveis: milhares de analfabetos funcionais saindo do Ensino Médio todos os anos, prontos para ouvir o que ela tem a dizer e aceitar tudo sem questionar. Nas escolas de Estupidez os alunos aprendem em cartilhas produzidas pelo Estado, tudo muito certinho, do jeitinho que tem que ser. Sob o olhar atento dos inspetores de Estupidez, os professores trabalham como metrônomos, lendo trechos da cartilha e ouvindo as respostas decoradas dos alunos, num ritmo só. Juca não frequentou as escolas de Estupidez. Veio de outro país, onde a educação é diferente, baseada numa pedagogia libertária e questionadora, que forma cidadãos críticos e ativos politicamente. O que ele veio fazer no país de Estupidez é outra história... Como é de se esperar, no jornal onde Juca trabalha não há espaço para a manifestação livre do pensamento, só para

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festas borbulhantes, casamentos e viagens da elite fútil, futebol, novelas e crimes envolvendo os marginais que se encontram abaixo da lei (os cometidos pelos que estão acima da lei, como políticos corruptos ou bandidos oriundos de famílias ricas e tradicionais, por exemplo, são todos abafados). No início Juca era arteiro, adorava brincar com fogo. Arriscava uma crítica aqui, outra ali. Uma vez ele escreveu um artigo criticando um figurão da alta roda – na verdade um borra-botas, mas cheio de contatos, amigo de juízes, promotores, políticos – e no outro dia, quando ia para o trabalho, foi preso por dois agentes da polícia política de Estupidez. Foi humilhado, torturado, ameaçaram-no de todas as maneiras possíveis, inclusive descrevendo minuciosamente o que fariam com a sua filha de dez anos se ele voltasse a se meter onde não era chamado. Ficou horrorizado, vomitou, chorou. Foi solto, mas sua vida mudou muito depois disso. Resolveu aderir de vez à chapa branca, escrevendo e publicando só o que mandavam os assessores de Estupidez. Deixou-se soterrar pela imundície, pela lama, para não ser perseguido, torturado e morto, por amor aos filhos e à esposa. Fez ele muito bem. Depois de muitos anos dentro da lama, escrevendo apenas o que lhe mandavam seus superiores, Juca descobriu uma pequena abertura que dava para a superfície, onde se via mais claramente a realidade e o senso crítico se aguçava. Para atingi-la, teve que nadar, porque era uma zona líquida, diferente da lama a que estava acostumado. Chegou à abertura e olhou discretamente para fora,

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deixando à vista somente os olhos vazios e distantes. Estava perto de uma estrada de terra, numa região que ele sabia ser próxima ao castelo de Estupidez. De repente, ouviu um barulho estranho, virou-se lentamente e se deparou com uma cena terrível: um urubu velho e sujo comendo a carcaça podre de uma anta. Juca sabia o que era aquilo. Levantou um pouco mais a cabeça e sentiu o cheiro: Corrupção. Desfaçatez. Mas Juca tinha aprendido bem a lição. Pensou no seu emprego, na sua família, no seu futuro e, sem titubeios, mergulhou de novo na lama. E sobre o que tinha acabado de ver, escreveu no jornal: “Eu estive no castelo e testemunhei o jantar. Nossa querida rainha parecia um cisne negro de penas brilhantes, linda, e os líderes comunitários, vestidos a caráter para a ocasião, sentavam-se à mesa com ela, ouvindo sua prestação de contas, a descrição de seus projetos sociais e educacionais, os benefícios que todos iriam ter com o aumento dos impostos (necessário à boa gestão da coisa pública, como ela bem explicou, arrancando aplausos de todos). Foi tudo muito bonito. A comida parecia excelente!”.

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As águas vão rolar Por causa da radicalização do racionamento de água em sua cidade, Camila e seus filhos começaram a urinar só no ralinho do banheiro. Antes, quando tinham água dia sim, dia não, era permitido usar o vaso, mas a descarga só podia ser acionada no quinto xixi. Camila deixava um caderninho e uma caneta no banheiro, para os filhos anotarem seus xixis e saberem o momento certo de despachá-los (só pelo cheiro e pela cor da água já dava para saber, mas Camila era taxativa: tinham que anotar no caderno e usar a descarga apenas quando cinco xixis estivessem lá dentro). Depois, quando o racionamento passou de 24 para 48 horas, Camila aboliu a descarga para xixi, autorizando-a apenas para fezes, e, mesmo assim, só dia sim, dia não. Que os filhos comessem menos e segurassem mais o cocô. “Só um dia de espera não faz mal”, dizia aos meninos. Mas aí veio o desarranjo intestinal do Alfredo, o filho mais novo, que na tarde anterior devia ter comido alguma coisa estragada na escola e começou a passar mal, dando mostras de que usaria a descarga muito mais do que o autorizado por Camila. Dito e feito. De meia em meia hora Alfredo usava o banheiro, despejando no vaso esguichos de um líquido amarronzado cheio de pedacinhos de coisas que Camila identificou como sendo tomate, milho e ervilha, que ela própria despachava, com medo do filho gastar muita água na descarga. E para compensar o gasto extra, não lavava vasilhas, que se empilhavam na pia da cozinha e empestavam o ar com um

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cheiro horrível de comida azeda, atraindo moscas, formigas e uns vermezinhos amarelos que pareciam filhotes de lesmas. No dia seguinte, Alfredo piorou, ia à privada de quinze em quinze minutos, para desespero de Camila, que já aceitava a ideia de obrigar o filho a usar só o ralo do banheiro, como já faziam todos com o xixi. E mais desesperada ainda ela ficou quando, por volta de dez da manhã, a água da caixa acabou, e no rádio ela ouviu a notícia de que no dia seguinte também não haveria abastecimento em seu bairro. Quatro dias seguidos sem água? E o pior ainda estava por vir, porque naquele mesmo dia os outros três filhos de Camila também começaram a passar mal (suas barrigas borbulhavam e doíam), e uma diarreia brava – das mais bravas que Camila tinha visto até então – tomou conta de toda a família. Como seu quintal era cimentado, não permitindo a abertura de fossa, o jeito foi usar o ralinho do banheiro como privada. Tentavam acertar o buraco sem espirrar, mas era complicado. A filha mais velha, por exemplo, não acertava de jeito nenhum, pois devido a uma anomalia que ela tinha no cu, seus esguichos saíam para os lados e para cima, não para baixo – e sempre com muita pressão –, sujando paredes, bancada, espelho, chão e teto sem dó nem piedade. Logo a Secretaria de Saúde constatou que aquilo era uma epidemia, talvez causada por um vírus, que se espalhava rapidamente pela cidade, deixando a população desesperada (principalmente os mais pobres, que ficavam até dez dias sem ver uma gota de água em suas casas).

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Em meio à confusão que se armou, Camila organizou uma passeata dos SEM ÁGUA, SUJOS E FEDIDOS até a praça da câmara municipal, onde uma multidão se reuniu exigindo providências das autoridades públicas e da companhia de saneamento da cidade. (Os mais afetados pela diarrreia iam deixando poças de fezes liquefeitas pelo caminho, que ao se encontrarem umas com as outras formavam verdadeiras enxurradas no asfalto. O cheiro era insuportável). Cerca de dez mil pessoas se aglomeravam em frente à câmara quando de repente surgiu na avenida um trio elétrico tocando marchinhas de carnaval. Imediatamente o povo parou de gritar e se deixou tomar pela alegria da música. Afinal, protestar para quê? Não ia adiantar nada mesmo. Na mesma hora, os SEM ÁGUA, SUJOS E FEDIDOS se transformaram num grande bloco carnavalesco, para alívio daqueles que, junto com a seca, poderiam ser responsabilizados pela falta de água na cidade (por incompetência, burrice ou desorganização). E atrás do trio elétrico, o povo sem água, sujo e fedido cantava: As águas vão rolar Garrafa cheia eu não quero ver sobrar Eu passo mão na saca, saca, saca-rolha E bebo até me afogar Deixa as águas rolar...

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Meu filho não deu em nada o pai quase todo dia se lamentava: meu filho não prestou para nada não prestou para futebol judô coisas de macho não prestou para advogado médico engenheiro administrador – para nada nem para casar com moça rica nem para arrumar boca na política meu filho é um fracassado – dizia trabalha numa loja onde só vão vagabundos e maconheiros para beber fumar conversar borracha ler poemas contos peças de teatro – essa merda toda que não leva a lugar nenhum vendem lá discos de vinil (onde já se viu!) livros estranhos esculturas enfeites com penas – coisas de boiola e por trás do balcão a maldita erva tenho certeza e são todos cheios de tatuagens dos pés à cabeça

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meu filho um dia me mostrou as dele: erva do diabo dragão calango águia coisa horrível meu filho não deu em nada – NADA essa era a ladainha do pai para os amigos da fábrica de parafusos onde ele era diretor financeiro e todos concordavam: não deu em nada mesmo – diziam mas o filho não pensava assim esse nada para ele era tudo que ele sempre quis ser o pai não sabia mas ele não fumava maconha nem cigarro careta só bebia meia garrafa de vinho por final de semana e trabalhava muito naquilo que amava: livros poesias contos peças de teatro esculturas enfeites tinha uma namorada e dinheiro suficiente para comprar uma casa do jeitinho que eles queriam e para a viagem que planejavam

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(talvez sem volta): Amsterdã... não dar em nada é só uma opinião uma visão um ponto de vista – só para o filho esse nada era tudo que ele sempre quis ser

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“O Cínico” é um grito de amor à vida No último final de semana eu assisti a um ensaio da peça “O Cínico”, de Rony Morais. Em cena, o próprio Rony, esbanjando talento, e dois jovens atores: Gustavo Coelho e Gleisson Dias, que deram um show de versatilidade e força no palco, cada um com a sua verdade, com a sua luz. Fiquei emocionado ao vê-los ali, no final de uma tarde chuvosa de domingo, entregando-se de corpo e alma a uma paixão que ao mesmo tempo é busca – pela perfeição, pela beleza. E vê-los interpretando meus personagens, dando vida a cenas que eu criei, deu-me uma alegria tão grande que até agora está aqui, vibrando no meu peito, junto com tudo que eu vi e senti. Há cenas fortes, chocantes, algumas tristes, mas também engraçadas, divertidas. Há música, poesia... Fiquei muito feliz com o resultado. A peça mostra a luta de um jovem contra as injustiças do capitalismo – o trabalho mecânico e repetitivo do homem desumanizado, a concentração de renda, etc. – e seu conflito com os pais, um político corrupto e uma socialite arrogante e fútil, que esperam e cobram dele tudo que ele não é. Mas ele não vai ceder. Vai se entregar ao que acredita, à sua paixão pelo teatro, pela filosofia, pela vida. Daí o conflito. Assim resumida, a trama parece banal, mas não é. Quem assistir à peça verá que o texto reflete sobre a sociedade e o ser humano a partir de uma perspectiva muito pessoal – e, a meu ver, original – e que a costura das cenas, realizada pelo Rony e sua equipe, é de uma criatividade admirável.

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Sem falar na originalidade do cenário, dos figurinos, da música... Muitas pessoas que não me conhecem, se assistirem à peça, certamente perguntarão se aquele jovem sou eu. Não. No fundo, sou tão sonhador e revoltado quanto ele, mas não vivi o conflito que ele viveu – não sofri o que ele sofreu –, porque meus pais aceitaram meu sonho de ser professor e minha paixão pelos livros, pela literatura, e me apoiaram. Minha inspiração para escrever “O Cínico” foi o meu sonho realizado – ou melhor, que eu continuo realizando, muitas vezes com dificuldade, buscando sempre mais –, não o conflito com a minha família, que não existiu. (Mas a revolta contra as aberrações do capitalismo está aqui, sangrando no meu peito...). E aquela cidade não é Pará de Minas. É o Brasil: todas as mazelas sociais e injustiças de todas as cidades do Brasil... E você? Está realizando aquilo que realmente ama, do fundo do coração?

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A Morte em “O Cínico”

Vestindo seu tradicional traje negro, com uma lamparina de querosene acesa na mão direita e o rosto escondido dentro do capuz, a Morte sobe ao palco silenciosamente. Senta-se num canto, com uma guitarra no colo, e logo revela ao público qual será o seu papel na trama: ela tocará a música, a trilha sonora que conduzirá os personagens rumo aos seus destinos. Sua presença se mostrará indispensável, embora não pronuncie uma única palavra em todo o espetáculo. Essa entrada solene da Morte no palco se dá no início da peça “O Cínico”, de Rony Morais, que movimentou o Teatro Municipal de Pará de Minas nesse último final de semana. Meu papel foi escrever os textos que compuseram essa enorme colcha de retalhos – colorida, diversa, mas harmoniosa, bem costurada: o Cínico, que nos aponta o dedo o tempo todo do palco, insultando-nos, rindo da nossa cara. Tenho certeza que muita gente gostou do que viu, de verdade. No entanto, nosso principal objetivo não foi agradar, mas incomodar, proporcionar ao público uma oportunidade de reflexão sobre a sociedade, seus padrões e regras, suas verdades cristalizadas. Porque a peça é sobre amor, liberdade, igualdade, desapego, compaixão, e explora tudo isso ridicularizando seus contrários, enfiando o dedo em suas feridas, com vontade. No palco, personagens que, em seus encontros e desencontros, expõem sem dó essas feridas, fazendo-as sangrar: o político corrupto movido a dinheiro e poder, a socialite

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arrogante e fútil, o filho rebelde, o bajulador submisso, o trabalhador pobre e sem futuro... E a Morte ali, o tempo todo, sentadinha no seu canto com a guitarra... para incomodar. Porque a maioria das pessoas não quer morrer. Mesmo sabendo que não ficarão para semente, elas não querem ser lembradas disso, porque é desagradável. A sensação de impotência diante desse mistério que é a Morte chega a ser humilhante para muita gente, porque a Morte iguala as pessoas. Todos vão morrer, e a vida passa muito rápido para todos, não importa o lugar que ocupem na pirâmide social – no fim, tudo desaba. A música que a Morte toca em “O Cínico” todos os personagens dançam... Todos nós dançamos... Nos textos que deram origem à peça, a Morte está sempre presente, mas ela não tem forma. Colocá-la no canto do palco, vestida de preto, com uma guitarra na mão, foi uma ideia brilhante da equipe do diretor Rony Morais, que também acrescentou a cena dos cães briguentos, representando pessoas manipuladas pelo Cínico – uma ideia do Gleisson Dias –, e outras que, a meu ver, enriqueceram muito o espetáculo. Lembro-me especialmente da bela cena final, em que a Morte vai ao centro do palco e leva um dos personagens, ao som de “Lascia ch'io pianga” (“Deixe-me chorar”), de Handel...

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Viagem Ostentação Ele serviu figos brancos secos espanhóis aos seus convidados, esperando que alguém perguntasse de onde eram. Aí ele responderia: “da Espanha”, e começaria a falar de sua última viagem à Europa, de sua fluência em espanhol e do que ele pensava sobre a crise na Grécia, na Albânia, etc., ou sobre a nova política de imigração na França, sempre dando como exemplos fatos que ele tinha presenciado in loco. Exibicionismo puro. Solteirão, sem filhos, bem sucedido, dizia que dinheiro era para gastar, e como já tinha uma boa casa, um bom plano de saúde e uma aposentadoria privada bem rechonchuda, resolveu torrar sua grana viajando para o exterior, principalmente para a Europa, de onde sempre voltava cheio de roupas de marca, chocolates, perfumes e milhares de fotos, que ele disponibilizava em profusão nas redes sociais. Quando revia seus álbuns, muitas vezes não sabia se tal monumento era em Florença, Praga ou Budapeste, se aquele túmulo imponente era em Paris ou Bruxelas, se aquela cervejaria era em Berlim, Frankfurt ou Munique. Não conhecia a história de nenhum lugar que visitava – nos museus, era um peixe fora d’água (só ia mesmo para dizer que foi) –, mal arranhava o inglês, e do francês só sabia algumas frases decoradas. Mas como tirava fotos! Em sua maior parte, suas viagens eram pura ostentação, só para contar vantagem, fazer inveja nos outros, por isso a febre do registro, a obsessão pelas fotos, em que sempre aparecia com um sorriso imenso na face redonda e rosada, próximo a monumentos e prédios famosos – Torre Eiffel, Big Ben e Coliseu: obrigatórios! –, ou sentado em cafés e

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restaurantes comendo iguarias chiques que, muitas vezes, ele mal conseguia engolir, de tão horríveis que eram. Como ele não falava nada de inglês, tinha que viajar em excursões organizadas por agências de turismo, cansativas até a morte: um corre-corre incessante daqui pra ali, um sobe e desce de malas, um entra e sai de ônibus e trens, viajando às vezes noites inteiras para conhecer duas ou três cidades num único dia. Mas nas fotos tudo parecia perfeito. Naquele dia, quando serviu figos importados aos seus convidados, ninguém perguntou de que país eram as delicadas iguarias. Então ele disse, apontando para a mesa: “São figos brancos secos espanhóis”, e começou a debulhar seu rosário de casos sobre sua última viagem. Alex, um dos presentes, suspirou baixinho: “Ai meu Deus...”. Jandira, sentada meio de lado no sofá, fingindo interesse na história, pensava: “Assim que eu chegar em casa tenho que passar de novo aquela pomada no cu. Tá ardendo pra caralho isso aqui. Que animal. Em pé, no meio da sala... Não, naquela posição e daquele jeito com o Jorge, nunca mais...”. E o Jorge, lembrando-se de um jarro de flores de plástico cor-de-rosa que ficava num canto da sala de Jandira, pensou orgulhoso: “Hoje eu arrasei”.

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Começar de novo Lucas caminha sem rumo pelo centro de São Joanico, a pequena cidade que o viu nascer, crescer, ficar rico, e agora assiste impassível ao seu fracasso. Parece um zumbi: rosto pálido, olhar vazio, barba por fazer, camisa e calça rasgadas, sapatos enlameados de tanto andar pelos arredores e ermos buscando força e coragem para se matar... Muitas pessoas o olham na rua com espanto – ele, que há pouco tempo era visto com frequência em festas badaladas da alta sociedade, que ganhava prêmios de melhor empresário do ano, de homem mais elegante, mais promissor, mais isso e aquilo, e que era tão bonito e poderoso, agora nesse estado deplorável, sujo, arruinado, sem ninguém para lhe estender a mão... Todos os seus amigos sumiram, sua família o abandonou, os colunistas sociais, antes tão bajuladores, agora fingem que não o conhecem. “Perdi tudo”, diz para si enquanto segue por ruas e avenidas, sentindo como punhaladas no peito os olhares de escárnio e desprezo que recebe das pessoas que cruzam com ele, apressadas, preocupadas, rumo aos seus próprios abismos. Caminha agora pela praça da igreja, onde na infância seu avô lhe contava histórias. Aquilo era felicidade. Tudo tão simples e verdadeiro. Até começarem as cobranças, a ladainha incessante de ditames e regras... A louca corrida do ouro... Senta-se num banco, à sombra de uma enorme castanheira, e observa um pernilongo que se aproxima lentamente num voo suave sobre sua mão esquerda, à procura de alimento. Num piscar de olhos, o inseto pousa

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na mão de Lucas; noutro, pica. E começa a sugar. Lucas o observa; vê seu minúsculo corpo crescendo lentamente, enchendo-se de vida e força, até adquirir a forma de um balãozinho vermelho prestes a estourar. Satisfeito, o inseto interrompe a sucção e começa a retirar sua agulha da pele de Lucas, as asinhas já prontas para o voo. Lucas se vê no mosquito. É ele que está ali, feliz: o jovem que venceu, conquistou o que queria e agora está pleno, pesado, gordo, poderoso... E quando retira sua agulha e aciona o motorzinho das asas para voar seu voo da vitória, PÁ! – é a outra mão de Lucas sobre ele, pondo fim à sua curta existência, transformando-o numa reles mancha de sangue. De repente, uma luz... “Não estou acabado”, diz Lucas quase em silêncio, enquanto esfrega a mancha de sangue no braço, fazendo-a desaparecer completamente na pele. “Não é o fim”, diz, agora de pé, sentindo-se acolhido pelos galhos da enorme castanheira, quase feliz, consciente do seu ser, da sua história, da beleza de estar vivo e respirando o ar puro da tarde, desprovido de tudo que minutos antes para ele era tudo, mas que agora vai perdendo aos poucos sua importância, seu crucial encanto, seu feitiço... “Viver não é tão complicado”, diz sorrindo, feliz pela descoberta, por finalmente saber o que lhe basta... “Começar de novo... sim...”.

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Pimenta no olho do outro é refresco Há mais ou menos um ano Camila foi convidada por uma prestigiada rede social para fazer parte de um grupo seleto de internautas que testaria uma função nova nas postagens pessoais: o “Bem feito”. Todos na rede já conheciam o “Curtir”; muitos vinham solicitando uma opção para mostrar que não curtiram – como “Não gostei” ou “Não curti” –; mas ninguém até então tinha manifestado o desejo de ter disponível uma função específica para demonstrar prazer pela desgraça alheia – o que se entende, porque na cultura do “Todo mundo está feliz” espera-se que a inveja seja mantida em segredo, bem como situações desagradáveis que acontecem com a gente no dia a dia. Mas aos poucos, por incrível que pareça, o “Bem feito” foi ganhando espaço na rede, assim como seguidores que, a exemplo do grupo contratado para fazer o teste, não se incomodavam em expor publicamente suas mazelas pessoais: acidentes, doenças, humilhações, dificuldades financeiras, angústia, depressão, etc. E pasmem: cada dia aumenta mais o número de pessoas curtindo a desgraça alheia, não só com o geral “Curti”, mas também com o “Bem feito”, que é mais incisivo, vai direto ao nervo, como broca de dentista ou agulha de anestesia. Isso prova que o povo está perdendo a vergonha de se mostrar como realmente é, de revelar seu lado escuro, do avesso – um fenômeno que merece estudos mais aprofundados, com certeza. Camila gostou muito da experiência. Começou tirando uma foto do resultado do seu exame de colesterol (que estava

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altíssimo) e postando-o na rede, com o comentário: “Não estou bem. Preciso fazer dieta”. Duas pessoas clicaram em “Bem feito”. Uma das regras do teste era que Camila não se preocupasse com quem se mostrasse feliz pelas suas desgraças, que não consultasse seus perfis; mas ela não aguentou e consultou alguns; como o de uma ex-colega de colégio chamada Janaína, que achou bem feito ela ter tido diarreia e vomitado até as tripas depois de comer peixe estragado num restaurante vagabundo. Seu comentário kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk deixou Camila possessa de ódio. No perfil dessa ex-colega, Camila não encontrou nada de condenável ou vergonhoso que aliviasse seu desejo de vingança. Tudo ali parecia maravilhoso: viagens, namoro, trabalho, comidas exóticas, baladas, etc. Até que um dia Janaína entrou na onda e postou: “Meu namorado me trocou por uma mulher mais nova, mais magra e bem mais rica do que eu”. Camila não clicou em “Bem feito”, mas ficou feliz em segredo. Outro dia Camila brigou com o marido por causa de dinheiro. Estavam passando por dificuldades financeiras, mas mesmo assim ele não abria mão da sua cerveja, do seu cigarro e do seu poker a valer com os amigos. Ela então postou uma foto do carnê com 58 parcelas não pagas do carro importado que ele tinha comprado, com o comentário: “Falta comida em casa e meu marido pagando parcela de carro importado todo mês”. Trinta pessoas clicaram em “Bem feito”. Depois disso, milhares de carnês cheios de parcelas a pagar de motos e carros importados foram expostos na rede, numa impressionante revolta de esposas contra seus maridos deslumbrados. Essa reação

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inesperada surpreendeu a equipe de analistas da rede social, que ficou de queixo caído diante de tanta gente que se endividava comprando carros e motos caríssimos ao invés de investir, por exemplo, na educação dos filhos, pagando-lhes boas escolas, livros, cursos de inglês, etc. Nas férias, Camila postou: “Viajando sem poder. Parece bom, mas não é. Hotel caro, mas sem nada de especial, cheio de gente exibida, se achando o máximo. Sorriso falso do Raul”, e uma foto do marido barrigudo na beira da piscina, tomando uma bebida azul cheia de gelo, com um enfeitezinho em forma de guarda-sol enfiado no copo (preço para turista: R$30,00 a dose). E seguiram outras fotos e comentários depreciativos da viagem: “Estou com urticária. Impossível entrar na água. Febre à tarde”, e uma foto dela com manchas vermelhas pelo corpo todo, com o marido ao fundo, na maior fossa, detestando tudo. Mais tarde, na enfermaria do hotel: “Pressão 18 por 12. Cabeça doendo muito, prestes a explodir”, e uma foto dela pálida, com olhos vermelhos e lábios feridos até a carne. Essa viagem foi muito importante para o experimento. 68 pessoas clicaram em “Bem feito”. E o fenômeno se espalhou. Psiquiatras, psicólogos e sociólogos do mundo todo começaram a publicar artigos em revistas científicas sobre essa incrível mudança de comportamento dos internautas. Alunos de mestrado e doutorado investigavam as causas de uma redução significativa nas taxas de suicídio no mundo, associando-a, em parte, ao “Bem feito” da famosa rede social. E pode ser que tenha alguma coisa a ver mesmo. Ao compararem suas vidas horríveis com as de outros internautas, muitos dos potenciais suicidas certamente se sentiram aliviados ao

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perceberem que a vida não era um mar de rosas para ninguém, que cada um tinha os seus problemas, e resolveram pelo menos adiar um pouco o suicídio, ou talvez até desistir dele... Quem sabe? Como bem diz o ditado popular: “Pimenta no olho do outro é refresco”.

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Dois modos A família Silva tem sua rotina diária impressa em quatro cópias encadernadas uma para o pai, outra para a mãe, outra para o filho e outra para a filha tudo certinho atividades e horários rigorosamente estabelecidos acordar tomar café escovar os dentes fazer deveres futebol natação banho almoço escovar os dentes escola catequese inglês jantar escovar os dentes ver televisão dormir isso para os filhos para os pais a rotina começa mais cedo, não fazem natação, futebol, inglês, catequese, não vão à escola, mas levam e buscam os filhos todos os dias enfrentando engarrafamentos terríveis e trabalham trabalham trabalham trabalham porque têm que trabalhar ele é gerente de produção ela, assistente administrativa ambos com carteira assinada, tudo certinho gostariam de fazer outra coisa – realizar seus sonhos de juventude mas como? como sair da rotina, cair no incerto, no imprevisível da vida que gostariam de ter? impossível e já nem sonham tanto mais com o que antes sonhavam hoje, aos quarenta e poucos, o que querem é a aposentadoria, ficar livres das pressões, das cobranças, das

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metas a cumprir, da burocracia administrativa e financeira que os sufoca sábado os filhos ficam em casa estudando, a mãe coloca ordem na cozinha, nos quartos, na sala, o pai lava o carro, e à noite saem para comer batata frita e isca de tilápia com refrigerante e suco no mesmo bar de sempre às vezes o cardápio varia, mas é raro domingo vão à missa e depois para a roça do avô se gostam? gostam a rotina é saudável, vão vivendo, e parecem felizes A família Torres, vizinha dos Silva, não é nada certinha não tem rotina estabelecida o pai grita com os filhos e eles discutem, trocam desaforos mas depois se abraçam, pedem desculpas e brigam de novo é um caos a família Silva, do outro lado, ouve a confusão, fica horrorizada e comenta: coitados, como conseguem viver assim? Ele é escritor e revisor de textos ela é atriz de teatro não têm carteira assinada mal sabem como será o dia de amanhã tudo que ganham gastam mas diferente dos Silva, não gostariam de fazer outra coisa – estão realizando seus sonhos não exatamente como sonhavam quando eram jovens, porque queriam ter uma condição financeira melhor mas enfim... ele queria ser escritor e revisor

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ela queria ser atriz os filhos entendem a situação, mas às vezes emburram, porque se comparam com os outros queriam ter uma rotina, uma poupança, fazer inglês no Number One... o bom é que gostam de ler – usam muito a biblioteca pública sábado os Torres acampam, domingo assistem a filmes, leem e dormem de segunda a sexta, no entanto, sua vida é um caos às vezes têm dinheiro, às vezes não se gostam? gostam fazer o quê? ao verem os Silva, até dizem: coitados, como conseguem viver assim? dois modos de ver dois modos de viver há outros... felizmente

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Duas histórias

Carlos tem hoje os pés no chão. Quando era jovem, sonhava demais, vivia nas nuvens. Queria escrever para teatro e cinema – até pesquisava cursos de dramaturgia e roteiro, pedia informações, visitava escolas. Depois desistia, porque a família não gostava da ideia, e a namorada o queria ali, perto dela, trabalhando em algo que fosse normal e rentável, para logo poderem financiar uma casa, um carro, casar, ter filhos. Mesmo assim ele continuava sonhando... Aos poucos, porém, Carlos foi percebendo que a realidade o envolvia numa teia muito forte de verdades, cada uma mais plausível que a outra. Para se livrar dela ele teria que se esforçar demais, não compensava tanto sofrimento, e ainda havia o risco de dar tudo errado, dele fracassar e ter que voltar para casa com o rabo entre as pernas. Não. Isso ele não queria. Continuaria indo ao cinema, ao teatro, lendo e escrevendo sempre que possível, mas não arriscaria seu futuro apostando tudo em devaneios pueris. Hoje ele é Carlos, o contador: casado, dois filhos, dono de um apartamento amplo e bem localizado, de um sítio com piscina e de um carro novinho, tudo pago. Está a caminho da aposentadoria, com os pés no chão, seguro e feliz. Ele não se arrepende de nada. Daqui a pouco se aposenta (ou não). E morre. FIM

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Carlos vive nas nuvens. Sempre foi muito sonhador, visionário. Na adolescência queria escrever para teatro e cinema, mas acabou virando escritor de romances policiais. Uma vez vendeu um roteiro para o cinema, coisa fina, mas gastou o dinheiro todo numa viagem a Paris, sozinho, onde estudou francês e teatro por três meses. Voltou e continuou a escrever. A família não aprovava sua opção de vida e tratava-o como um estranho, um ser de outro planeta. A noiva, quando ele disse que ia passar um tempo sozinho em Paris, deu-lhe um belo chute na bunda, que ele agradeceu. Hoje ele é Carlos, o escritor: solteiro, sem filhos, sem casa própria, sem sítio e sem carro. Nunca pagou previdência. Tem uma poupança que, ele acredita, dará para mantê-lo até a morte com o básico, incluindo alguns livros por mês e uma garrafa de vinho tinto por semana. Ele não se arrepende de nada. Daqui a pouco se aposenta (ou não). E morre. FIM

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Café com Competência Não abra mão, Competência. Não ceda. Seja firme e proteja o que é seu. Você tem um nome a zelar. Eles que se virem. Você se organizou, trabalhou com afinco e dedicação, não amolou ninguém, e agora querem que você prejudique o seu setor ajudando a tapar buraco em casco de navio afundando? Que eles deem seus pulos. Nessa hora é cada um por si. Você não tem que estender a mão, ser solidária. Você é responsável pela sua equipe, não pode prejudicá-la. Se você ceder, eles nunca vão aprender. Obrigando-os a se virarem, você estará ajudando a empresa. Sua inflexibilidade é pedagógica. Você está errada, Competência. Sua visão é estreita, mesquinha; suas razões, efêmeras. Ajudar o outro em dificuldade é também se ajudar. Pense na energia que emana de cada um de nossos gestos, por menores que sejam, uma energia que circula, trazendo de volta para nós o bem e o mal que praticamos, sempre. Isso é muito maior que o nosso umbigo, nossos sucessozinhos, nossas coisinhas. Pense grande. Estenda a mão, ajude, coloque-se no lugar do outro, não julgue, não condene. Quem é você para julgar e condenar? Quem somos nós? Solidariedade, amor e compaixão também fazem parte do negócio. Dá-se um jeito, as coisas se ajustam, e todo mundo sai ganhando, porque tudo está ligado, TUDO! Não dê atenção a esse idiota, Competência. Ele quer te foder por trás. Morre de inveja de você, do seu sucesso. Esse papo de energia que circula é coisa de espírita, não é? Você nem acredita nisso! Bobagem. Siga em frente. Não banque a boa Samaritana. Não é hora de fazer caridade.

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Quer vencer? Seja fria, aferre-se ao real, aos seus objetivos, que são grandes. Pense grande. Dê as costas aos fracassados, aos doentes de preguiça, aos incompetentes. Defenda o seu. Seja egoísta. Não há nenhum mal nisso. Faça o que você achar certo, Competência. Mas saiba de uma coisa: ---------- A escolha é sua, Competência. Mas não se esqueça disto: ---------- Silêncio. Competência fala: Venham até aqui, vocês dois, vamos conversar. Quero rever alguns pontos... Deem-me suas mãos, façam as pazes. Isso. Sentem-se. Tomem café comigo... Vamos conversar... Paz e Bem.

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Sucesso é ser feliz PAI: Estou muito preocupado com o Carlinhos. Cheguei hoje em casa e peguei-o jogando bola na rua com três meninos do bairro... MÃE: Meu Deus... PAI: Chamei-o para dentro na hora. Ele estava todo suado, parecia alegre. Perguntei se ele tinha acessado o portal da escola hoje, se tinha recebido alguma mensagem da professora de inglês no iphone e feito os deveres on-line de francês, e ele disse que não. Simplesmente olhou para mim e disse “não”. Dei-lhe um sermão e mandei-o direto para o computador. MÃE: Só pode ser aquela escola. Uma vez, quando fui buscá-lo, vi uma turma sentada em círculo no pátio cantando e conversando. Ninguém usava tablet ou ipad, não vi nenhum notebook na roda, nem com a professora! Uma vez entrei no blog deles e assisti a um vídeo de um professor coordenando uma dinâmica de grupo em que todo mundo conversava e ria! PAI: Isso é preocupante. O Carlinhos está pegando gosto por essas brincadeiras em grupo reais, com gente de carne e osso, e está deixando de lado o mundo virtual. Com certeza vai ficar para trás, vai fracassar na vida. Os filhos dos meus amigos virtuais passam o dia inteiro na frente do computador, acessando sites pedagógicos, participando de chats com estudantes estrangeiros, aprendendo chinês, japonês, javanês, alemão, lendo livros complicados, de autores clássicos, que eles já compreendem! E o Carlinhos?

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Semana passada eu achei um livro físico na mochila dele, e quando fui ler a classificação, levei um susto. Era para a idade dele! Uma bobagem infantojuvenil! Enquanto isso, o Fernandinho, filho do Xavier, já lê Tolstoi em francês! O Pablo, filho do Rui, lê Charles Dickens em inglês e javanês! E tudo virtual! Você vê o Fernandinho e o Pablo na rua jogando bola ou conversando com colegas? Eu nunca vi. É por isso que eles vão vencer na vida. Temos que fazer alguma coisa. MÃE: Tirar o Carlinhos daquela escola! É a primeira coisa a fazer, não tem jeito. Temos que matriculá-lo num colégio mais focado, que estimule mais o uso de tablets, ipads e notebooks, que tenha um portal dinâmico, com grupos de chat sobre coisas úteis, que vão ajudar essa meninada a se destacar no mundo do trabalho, com tutores conectados vinte e quatro horas por dia, orientando, indicando livros complicados, para estimular os alunos a se superarem, a vencerem todos os obstáculos e serem bem sucedidos na vida. É isso que importa! Aquela escola está ficando para trás. Nem a diretora tem um celular decente! A coordenadora pedagógica nunca fez uma reunião de pais virtual, via teleconferência! Nem site pessoal ela tem! Não dá mais, querido. PAI: Você tem razão. Os professores do Carlinhos pararam no tempo. Vão formar um bando de fracassados, isso sim. Eu sei que tem alunos ali, filhos de pais vencedores (empresários, médicos, políticos, juízes), que estão questionando as metodologias obsoletas, mas o Carlinhos não. Ele não questiona nada, faz o que gosta. Aposto que ele vai à biblioteca da escola com a turma e escolhe livros físicos para a idade dele livremente, e nem liga se os outros

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colegas pegam livros mais grossos e complicados. Tenho certeza que a professora não faz nada para impedir. Ela tinha que dizer: “Veja, Carlinhos, seus colegas estão pegando livros mais complexos, clássicos da literatura universal, e você aí com seus livrinhos infantojuvenis... Você quer ser um perdedor? Você quer ficar para trás?”. Mas ela não diz nada, tenho certeza. É uma incompetente. MÃE: E para que insistir nessa porcaria de livro físico? Os professores têm que incentivar é o uso de livros digitais, que armazenam bibliotecas inteiras, e propor atividades on-line sobre as obras, para habituar esses jovens ao mundo virtual, que é o que importa. Eu não vejo a hora de acabarem de vez com essas bibliotecas físicas que existem por aí, seus projetos de contação de histórias, encenações de peças, conversas com escritores... Que bobagem! Isso os jovens já têm na internet, em qualquer idioma que quiserem, não precisam se encontrar fisicamente. PAI: Você tem razão, querida. Vamos tirar o Carlinhos desse colégio. Mas antes de matriculá-lo num outro, mais focado na carreira e no sucesso, acho que devemos mandá-lo uns dias para aquela escola que a sua irmã indicou, para desintoxicá-lo. Deixe-me ver... está aqui: Centro de Imersão em Tecnologia Virtual da Universidade Virtual Business & Success... MÃE: Meu Deus, o que fizemos para merecer isso... Um fracassado em casa! Se pudéssemos devolvê-lo, trocá-lo por uma criança mais apta ao sucesso, mais focada; como a filha do Ribeiro, aquele seu amigo virtual, que é a melhor aluna do colégio, vence todos os concursos de cálculo e redação e é exibida como troféu pela direção da escola em

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tudo quanto é evento; ou o filho do Tibério, do successandcompany.com, que aos doze anos já dá palestras no mundo todo em javanês... Esses meninos têm futuro... PAI: Querida, o Carlinhos acaba de me mandar uma mensagem aqui. Você recebeu também? MÃE: Deixe-me ver... Sim, chegou para mim também. Onde você está? PAI: Estou no banheiro do escritório defecando, e você? MÃE: Na academia... Você leu? PAI: Estou lendo... CARLINHOS: “Papai e mamãe, desculpem-me, mas o sucesso que vocês querem para mim, eu não quero. Meu negócio é ser feliz. Se um dia a gente sentar para conversar pessoalmente, olhos nos olhos, eu quero explicar para vocês o que eu estou sentindo – é bom demais! –, e também gostaria muito de abraçá-los. Queria que vocês me entendessem e me aceitassem. Encontrei meu caminho. Amo vocês, apesar de tudo. Saudades. Carlinhos”.

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Nossa alegria

Quando nosso filho nasceu, minha mulher e eu renascemos. Uma nova vida começou, um novo filme, sem classificação: suspense, aventura, drama, comédia, amor, tudo junto. Sobretudo amor. Demos-lhe o nome de Francisco. O nosso Chico. Os avós detestaram o apelido, mas não teve jeito, era Chico pra cá, Chico pra lá, e acabou pegando. Ele era muito esperto. Andou com nove meses. Aos cinco anos já sabia ler. Queria ser médico ou astronauta. Amava livros e histórias em quadrinhos. Aos oito anos escreveu um livrinho baseado na série Jornada nas Estrelas, que ele adorava. Fez tudo à mão: seis exemplares ilustrados, que ele deu para mim, para a mãe e para os avós. Estou aqui folheando o meu... “E da Lua eles viram a Terra azul cercada de escuridão...”. Aos oito anos... Hoje Chico tem dezoito. Não anda, não fala, lê com dificuldade, mas se comunica, entende o que a gente diz, e se locomove, muitas vezes sem precisar da ajuda de ninguém. Foi uma luta. O acidente, o prognóstico, o desespero... A gente não acreditava, não queria acreditar. Mas por fim aceitamos, adaptamos tudo e ele continuou sendo o nosso Chico, a alegria da casa. Cada melhora que ele tem na fala, na capacidade de leitura e nos movimentos a gente comemora como uma grande conquista, uma benção. Ele melhora pouco, mas melhora. Depois do acidente, quando aceitamos nossa nova missão e voltamos para casa com o Chico, eu e minha mulher renascemos de novo. Uma nova vida começou para nós,

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um novo filme, diferente do anterior, mas também sem classificação: suspense, aventura, drama, comédia, amor, tudo junto. Sobretudo amor. Um amor grande, que todo dia se renova na alegria de estarmos com o nosso filho, de vê-lo sorrir, levá-lo para passear, acompanhar seus progressos no tratamento... O médico diz que daqui a dois ou três anos ele poderá voltar a estudar, escolher uma profissão, ser independente. Nunca será o Chico que ele seria se não tivesse tido o acidente. Nunca será médico ou astronauta. Mas sempre será o nosso Chico, nosso orgulho, nossa alegria de viver... ...o presente.

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Ramon na Copa Ramon não assistiu ao primeiro jogo do Brasil. Nunca gostou de futebol, e desde o início foi contra essa Copa, “um desperdício de dinheiro, uma vergonha”, dizia. Sua família foi para o sítio toda de verde e amarelo e ele ficou sozinho em casa. O jogo começaria às 17 horas; eram 16:05, mas como os supermercados só fechariam às 16:30, ele resolveu sair para comprar uma garrafa de vinho tinto, uma pizza portuguesa, figos secos e Nutella. Esse seria o seu lanche da tarde, regado a um bom azeite espanhol, na companhia de Beatles, Nina Simone e Vivaldi. Depois leria mais um capítulo de O Idiota, de Dostoiévski, e assistiria a um Hitchcock dos anos 40: Interlúdio, com Ingrid Bergman e Cary Grant. Tudo merecido: o lanche, as músicas, o livro, o filme e a solidão. Sem jogo. Um programa e tanto para um cara (estranho) como Ramon. No supermercado, às 16:20, era uma loucura só. Os atrasados corriam para a fila dos caixas com seus carrinhos cheios de cerveja, desesperados, com medo de não chegarem a tempo para o jogo. Ramon pegou suas coisas e se dirigiu lentamente para a fila, que estava grande, mas como ele não tinha pressa, nem ligou. Entrou e esperou. Quinze minutos depois, um rapaz de vinte e poucos anos saiu do corredor de bebidas empurrando um carrinho com quatro caixas de cerveja e parou bem perto de onde estava Ramon. O jovem estava nervoso, não acreditava que teria que pegar a fila lá atrás, como qualquer um; coçava a

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cabeça e bufava como um touro acossado. “Coitado”, pensou Ramon. “Sua galera já deve estar toda reunida no local combinado, animada, esperando a cerva, e ele aqui, louco para pagar e ir embora”. Foi quando Ramon resolveu fazer a sua boa ação do dia. O rapaz já tinha se colocado no final da fila, inconsolável, quando ouviu uma voz chamando-o. Era Ramon propondo que trocassem de lugar. Todos na fila olharam para ele, incrédulos. O rapaz sorriu e aceitou na hora, feliz da vida. Para se justificar, Ramon disse em voz alta, para todos ouvirem, que não ia assistir ao jogo, que não gostava de futebol. Ninguém ligou. “Foda-se”, devem ter pensado. Com os olhos brilhando de alegria, o rapaz agradeceu e logo foi atendido. Pagou, pegou sua cerveja e foi embora. No outro dia, à noite, feliz pela derrota vergonhosa do Brasil no primeiro jogo da Copa, Ramon foi escarafunchar um pouco a internet antes de dormir e, como sempre fazia, entrou no site da funerária Paz Eterna para ver as novidades no Obituário. Levou um susto ao reconhecer, numa das fotos, o rapaz que ele tinha ajudado no supermercado. “Deve ter sido acidente”, pensou. Dito e feito. Cinco minutos antes do início do jogo, um caminhão saiu de uma estrada vicinal e entrou na pista, de repente. A batida foi violenta. Voaram pedaços de corpo, sangue e cerveja para todo lado. Naquela noite, Ramon não conseguiu dormir. Estava perturbado. Pensava que se não tivesse oferecido seu lugar na fila para o rapaz ele não teria morrido. Ou teria? O fato é que Ramon se culpava. “Se o rapaz tivesse se atrasado

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um pouco no supermercado, o caminhão não estaria na sua frente quando passasse pelo local, não teria havido o acidente e ele não teria morrido”, resmungava Ramon de si para si, remoendo a culpa no peito. Culpa? Bobagem, Ramon. O rapaz tinha que morrer e morreu. Você foi só um instrumento do destino, nada mais. Pobre Ramon. Mais essa agora...

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Na prisão Na prisão, Rudolf é o número 32. Por coincidência, tem 32 anos, Rudolf. Foi preso por roubar um saco de farinha para alimentar seus filhos, que passavam fome. No país de Rudolf muita gente passa fome. No inverno, quando o frio é insuportável, as ruas ficam cheias de cadáveres congelados, a maioria de crianças abandonadas e velhos caquéticos. Às vezes demoram semanas para retirá-los. Na prisão, pelo menos, Rudolf não passa fome. Sofre como um cão de sarjeta, apanha, é chamado de rato e verme de uma figa pelos guardas, mas não passa fome. Recebe uma ração diária de mingau, que o mantém de pé o suficiente para dar conta do trabalho forçado na pedreira doze horas por dia, quatro vezes por semana. Não tem notícia dos filhos. Ainda bem, porque o mais novo morreu ontem, de pneumonia, e o mais velho, coitado, é só pele e osso, não deve demorar muito. Quando souber disso, Rudolf sofrerá, mas o que fazer? Tem que aceitar. Aqui é assim. Outra coisa que Rudolf não sabe é que o juiz que o condenou a cinco anos de prisão por roubar um saco de farinha já roubou, em um ano, o equivalente a dez milhões de sacos de farinha, e que o governador, só em três meses, surrupiou dos cofres públicos o equivalente a cinquenta milhões de sacos de farinha! E ambos estão agora em suas mansões, felizes e tranquilos, com suas famílias, planejando suas viagens ao exterior, seus negócios escusos, a compra de um novo prédio, de um novo lote, de uma nova moto importada, de um novo carro de luxo. Imagine quando Rudolf souber disso!

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Pensando bem, quando souber disso, Rudolf não fará nada. Não é da índole desse povo se organizar e encabeçar mudanças, ser dono do seu próprio destino. Às vezes reclama, faz uma ou outra passeata, quebra uma coisa aqui, outra ali, mas depois se acalma, abaixa a cabeça e engole seu caldo podre de vida sem chiar. É a índole do povo... Com certeza Rudolf não fará nada. É inverno no país. São três da tarde. O frio é cortante. Rudolf e outros prisioneiros se encontram no pátio da prisão, entre quatro paredes de pedra, caminhando em círculo, um, dois, um, dois. Hoje não vão à pedreira. Daqui a pouco comerão sua ração de mingau. Lá fora, no cemitério, mortos de fome são enterrados aos montes em covas e valas comuns, dentre eles o filho de Rudolf, de seis anos, que queria ser condutor de bonde quando crescesse...

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Ramon chega aos 40 Ramon fará 40 anos semana que vem. Ele se pergunta se alguma coisa vai mudar na sua vida, se ao cruzar a linha divisória das décadas ele será outra pessoa. Fará coisas diferentes? Seu ânimo vai mudar? Deixará de ser o Ramon dos 30? Talvez ele compre uma bicicleta de trilha, das profissionais, uma bermuda coladinha, apertada (para marcar bem a genitália) e todo o equipamento necessário: capacete, óculos, sapatilhas, medidor de distância, lanterna, squeeze, etc., e saia por aí com seus amigos tirando fotos e mais fotos de suas aventuras por estradas de chão e trilhas, para depois postar nas redes sociais. Quem sabe? Talvez reduza sua carga horária de trabalho, ou peça demissão de vez, e vá escrever um romance, projeto que vem protelando há vários anos. Escrever como um louco... Ou talvez comece a correr como um louco. Correr contra o tempo, na praça, na avenida, ao redor da lagoa, no meio do mato; e registrar tudo: quilômetros, batimentos cardíacos, tempo, rotas percorridas em mapa digital, etc.; feliz por correr como um jovem atleta e ser magro, esplendidamente magro – porque quando começar a correr já terá emagrecido, com certeza: emagrecer é uma das regras básicas para se ter 40 anos: secar em prol da saúde e da beleza (o problema é que a beleza vai ficando cada vez mais difícil depois dos 40, isso é fato).

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Quem sabe faça uma plástica? Sumir com as rugas, enganar o tempo (ou pelo menos achar que o está enganando). Talvez compre um boné de marca famosa e o use virado para trás. Dizem que isso ajuda a rejuvenescer. E junto com o boné, uma bermuda de marca (que deixe aparecer pelo menos um terço da cueca de marca), uma camisa de marca e um tênis de marca, tudo muito jovial, viril. O efeito que isso causa é sensacional! E se chegar pilotando um carrão importado, então, nem se fala! Talvez compre também um cachorro gigante, de raça... um Dogue alemão rajado!, com a genitália bem grande, sacudo, para que a mulherada o associe ao dono e ache que ele também tem o dote avantajado, o dono... Ramon está pensando nisso tudo enquanto se olha no espelho do guarda-roupa. Não sabe se aos 40 anos tomará decisões que mudarão sua vida. Só acha que se tiver que decidir alguma coisa desse tipo, o ideal é que seja agora. É o momento. Talvez, a partir dos 40, ele seja mais tolerante com as pessoas. O que é que tem gostar de correr, fazer trilhas de bicicleta e usar artifícios variados para parecer mais jovem? Que mal há em usar boné virado para trás e ter um cachorro sacudo para exibir na avenida? Ele, Ramon, também não tem suas coisinhas, suas manias e obsessões? Com certeza não as acha ridículas, porque gosta delas. Cada um faz o que gosta. É isso. Talvez, aos 40, Ramon dedique-se mais tempo àquilo que gosta (“devagar, o tempo transforma tudo em tempo”, escreveu um poeta)... E seja mais tolerante com os outros... Está pensando nisso

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agora... E talvez emagreça um pouco, para ter mais disposição, mais saúde... É isso aí, Ramon.

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Balões vermelhos Rui segue seu caminho pelo rio da vida. Na superfície, sozinho, respira serenamente o ar puro da manhã e observa os balões vermelhos brilhantes dos homens que se arrastam no fundo e se entorpecem de felicidadezinhas e presunçõezinhas, produzindo bolhas, cheios de certezas. Rui não tem certeza de nada. Só quer se manter à tona, ver e sentir claramente, sem turvações. De dentro, os homens olham para cima e o observam através da água. A imagem que percebem é a de um louco, um ser vago e monstruoso, que a maioria ignora, mas que um ou outro ataca quando pode, com mordidas e arranhões, por raiva ou maldade. Rui não se importa. Segue seu caminho, observando os balões e as bolhas, ouvindo o burburinho das diversões efêmeras, dos negócios e empreendimentos, das vitórias e derrotas. Não está nem aí. Seu projeto é não ter projeto. Quer a vida viva, que não é boa nem ruim. Não busca a felicidade, não quer chegar a lugar nenhum, nem conquistar nada. Quer ser. Por isso segue assim, indiferente aos balões e às bolhas... Às vezes cruza com outros de sua espécie – seres estranhos, à tona como ele – e do fundo de si lhe vem uma paz que é quase uma certeza, uma luz que ele não entende – e nem quer entender... Trocam impressões, dicas de livros e filmes, quase todos marginais: visões de outsider... E seguem seus caminhos. Às vezes Rui mergulha no rio, para ver de perto o que se passa no fundo, os afazeres e conexões dos que são felizes e querem chegar a algum lugar, possuir alguma coisa; mistura-se com eles, planeja, faz, negocia, corre atrás e, feliz da vida, alcança o que, sem querer, quer. Porque é

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assim. É a água turva incontestável, poderosa, sempre molhada. Ela é o que é: real, verdadeira, única matéria de vida possível – quem pensa diferente é louco. E ainda por cima dá aos homens balões vermelhos e brilhantes, que eles fazem subir e descer, subir e descer... – distraçõezinhas que os tornam felizes e lhes dão a impressão de serem importantes... Felizes e importantes... Quando mergulha e se mistura ao imenso cardume, Rui vê dinheiro em tudo – “Isso aqui dá dinheiro”, diz para si, inebriado de água turva, segurando firme seu balão; mas chega uma hora que se assusta com o que diz. E com o susto acorda, solta o balão e volta para a superfície, ofegante, como se no fundo não pudesse respirar. Ao chegar, enche de novo os pulmões com o ar puro do dia ou da noite, sozinho, sozinho... E ainda cheio de susto, percebe que está de terno e gravata, todo engomado, no estilo padrão que tem que ser. Nunca conseguiu entender... Por que usam isso lá embaixo? Para quê? E arranca a vestimenta que o aprisiona e sufoca, sente o ar fresco selvagem em seu peito nu, respira melhor, sente a vida melhor... E não é feliz nem triste. É.

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Minha amiga Charlotte

Quando eu fazia Filosofia em Belo Horizonte, por quase um ano tive uma barata de estimação. Seu nome era Charlotte. Ela era enorme, tinha uma mancha branca na asa esquerda e antenas incrivelmente grandes, que captavam a minha presença em qualquer lugar que eu estivesse no apartamento. À noite, quando eu chegava da faculdade, ela subia na minha cama e ficava me esperando em cima do travesseiro. Toda noite era a mesma coisa. Eu me deitava e ela ficava lá, me olhando, serena, e eu lhe contava sobre o meu trabalho, minhas aulas, minhas angústias. Ela andava livremente pelo apartamento, mas eu sabia onde encontrá-la, conhecia sua rotina, que era bem simples. Seu lugar preferido era embaixo de uma lasca de madeira na terceira prateleira do armário da cozinha. O prédio era muito antigo, da década de 40, e a cozinha era no fundo, escura, úmida, só com uma janelinha mixuruca dando para o fosso central do prédio, que mais parecia um abismo do inferno: um ambiente que Charlotte simplesmente adorava. Era ali que ela passava a maior parte do tempo. Todo dia pela manhã eu colocava água no fogo para fazer café, ia ao armário e levantava a lasca de madeira para ver se estava tudo bem com ela. Encontrava-a sonolenta, com as antenas abaixadas e as patinhas imóveis; mas eu sabia que ela me via e ficava feliz com a minha presença. Ela era minha amiga. Minha única amiga.

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À tarde ela gostava de passar um tempo no cesto de roupas sujas. Ela amava especialmente um camisão velho e encardido que eu vestia para dar faxina no apartamento e que depois de usado ficava uns quatro ou cinco dias fermentando no cesto. Frequentemente eu a encontrava enroscada nesse camisão, na região do sovaco, adormecida como um bebezinho. Mas o momento mais bonito da nossa relação foi quando, numa manhã de maio, fui à cozinha, levantei a lasca da prateleira e descobri que ela tinha tido filhotes. Eram centenas deles, minúsculos, parecidos com a mãe. Charlotte estava feliz da vida, com as antenas levantadas, em movimento, as patinhas agitadas, certamente me apresentando aos seus rebentos. Meus olhos se encheram de lágrimas. Coloquei farelo de pão e queijo picadinho para eles e fui trabalhar, emocionado. Ao voltar para casa, naquela noite, descobri que tinha visita. Era minha mãe, que tinha pegado a chave na portaria e estava dando uma faxina no apartamento. Ela já tinha feito isso antes e nunca descobrira Charlotte, por isso não me preocupei. Cumprimentei-a e fui para o meu quarto, onde não encontrei minha amiga, que certamente estava apreensiva pela presença de mamãe e resolveu ficar quieta no armário protegendo seus filhotes. Assim que tirei a roupa e me deitei, ouvi um grito vindo da cozinha e barulhos de alguma coisa batendo no chão. Era o chinelo de mamãe. Na hora eu gelei, e de tanto pânico, não consegui me mexer. Fiquei paralisado na cama, mudo, ouvindo mamãe gritar, e seu chinelo estalando no chão, como um chicote do capeta. Lembro-me de finalmente ter

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conseguido gritar: “Corra, Charlotte, corra”, e depois, como num passe de mágica, de estar em pé na cozinha, nu, tremendo, como um zumbi da meia-noite. Naquele momento, à minha volta, tudo ficou branco, leitoso. “Só pode ser um pesadelo”, pensei. Mas não era. No chão, inerte, jazia o corpo de minha amiga. Gritei desesperado: “Não, não!”, e chorei como um bebê. Mamãe mantinha-se de pé, com o chinelo na mão, assustada com a minha reação. Olhei-a com um ódio mortal, peguei uma vassoura e fui para cima dela. Foi Deus que segurou minha mão, porque naquela hora, com tudo que eu estava sentindo, eu poderia ter assassinado minha própria mãe e jogado seu corpo no fosso do prédio. Mas não fiz isso. Soltei a vassoura antes de cometer uma loucura e desabei no chão, aos prantos, com a cabeça tombada ao lado do corpinho destroçado de Charlotte. Do seu ventre saía uma pasta amarelada brilhante, cor de pus. Suas antenas estavam quebradas; suas asas, amassadas; seus olhinhos, opacos, frios, já completamente tomados pela morte... Minha doce Charlotte... Minha amiga... Minha única amiga...

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O caso da cisterna Sem água na caixa há mais de uma semana por causa do racionamento, Ramon decide furar uma cisterna no quintal de sua casa. Ele sabe que ali tem água, porque na época da construção os pedreiros acharam – “e muita, seu Ramon, para dar e vender”, disseram. Só que furar cisterna é proibido, e Ramon está com medo de que seus pais e sogros, e até sua mulher, que adora conversar, deem com a língua nos dentes, atraindo para si o terrível Tribunal da Inquisição Ambiental da cidade, que certamente o condenaria à prisão perpétua ou até mesmo à morte na fogueira. Mesmo assim ele resolve arriscar e fura a dita cuja. Uma beleza! Os pedreiros tinham razão. É água que não acaba mais. Seu sogro assiste à perfuração, interessado, dando um palpite aqui, outro ali. Seu pai também, juntamente com a mãe, a sogra, a esposa e os filhos, que passam para lá e para cá o tempo todo, ansiosos e felizes. Todos juram manter o bico calado. Segredo absoluto. No entanto, o sogro, admirado com a esperteza de Ramon, deixa escapulir para um vizinho curioso a informação de que na casa do genro não faltará mais água. O vizinho pergunta: “por quê?”, e o sogro responde, sussurrando: “Ele furou uma cisterna... Mas não conte para ninguém. É segredo”. Do outro lado da cidade, a mesma coisa: o pai, orgulhoso do filho, também deixa escapar para um vizinho que Ramon acaba de furar uma cisterna das boas em seu quintal, mas pede segredo, “pelo amor de Deus!”.

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Nem meia hora após o pai ter pronunciado “Deus” no seu pedido de segredo ao vizinho, duas viaturas do Tribunal Ambiental e uma do Conselho Tutelar estacionam em frente à casa de Ramon. Delas descem várias autoridades munidas de um mandado de busca e apreensão e cinco exemplares do novo código ambiental comentado. A chefa da equipe é uma morena clara, sardenta, nem jovem nem velha, de cara amarrada, membros socados e quadril largo. Entra triunfante na casa de Ramon e vai direto ao local da cisterna, como se já conhecesse o ambiente. Quando detecta o crime, grita, tremendo de prazer: “Peguem-no, peguem-no!”, o que imediatamente aciona dois marmanjos de camisa verde, membros da equipe, que agarram Ramon pelas costas e o derrubam no chão, prendendo seus punhos com um par de algemas verdes. Ramon grita, indignado, exigindo seus direitos, ao que a mulher responde com uma longa gargalhada de bruxa, daquelas que só se ouvem nos desenhos clássicos de Walt Disney: HAHAHAHAHAHAHA! “Que direitos?”, ela pergunta. “O delito que você cometeu não lhe dá nenhum direito, porque é hediondo. Trata-se de um crime contra a ordem cósmica do universo, contra tudo que existe aqui e além de todas as fronteiras estelares, de todas as galáxias: o pior de todos os crimes, o mais abominável, o mais...”, e rangendo os dentes afiados, ela pega um punhado de barro no chão e joga-o com fúria no rosto de Ramon, que se cala, por precaução. Sua esposa e seus filhos são levados amarrados e amordaçados para o carro do Conselho Tutelar. Ramon é jogado no porta-malas de um dos veículos da Inquisição, o

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maior deles, um Opala verde limão. Na hora da confusão, seu sogro chega tentando conversar, pedindo “calma, calma”, mas é contido por um dos marmanjos de verde e amarrado num poste. De dentro do porta-malas Ramon ouve a bruxa dizer: “Seus filhos serão levados para um abrigo do governo, onde permanecerão até completarem trinta anos; sua esposa vai para uma prisão ambiental feminina no arquipélago de Fernando de Noronha, onde permanecerá vinte e cinco anos experimentando os limites extremos do tédio; e você, meu jovem, você... HAHAHAHAHAHAHA!...”. Foi aí que Ramon acordou, suando frio, em pânico. Era um pesadelo. Olhou o relógio. Três da madrugada. Foi ao quintal. Nenhuma cisterna. Abriu a torneira. Nenhuma gota de água. “Ainda bem”, suspirou Ramon, aliviado. Tentou dormir de novo, mas não conseguiu. Foi à cozinha e tomou dez gotas de rivotril.

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Insônia e pernilongos Seis da tarde. Uma enorme nuvem de pernilongos paira inquieta sobre o jardim na entrada da minha casa. “Então é aqui que eles se reúnem em conluio, antes do banquete”, digo para mim, sorrindo. Entro. Abraço minha família, que me espera para o jantar. Lar, enfim. ... Meia-noite. Não consigo dormir. Entre zumbidos e picadas, ardores e coceiras, o barulho da caixa d’água finalmente enchendo. Aleluia! Talvez dê para dois ou três dias, não mais. ... Uma da madrugada. Os zumbidos e as picadas continuam... Que inferno... Tenho alergia a repelente. A pele coça, incha. O nariz entope, escorre. “Vou morrer”, digo, sem água, sem sangue, carregado pelos pernilongos – voo tranquilo noite adentro, até o reino onde tudo dorme, para sempre. Meus olhos ardem. O tempo é duro, pesado. A noite é escura. Tudo é frio, seco. Nada rompe.

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E eu não morro... Não quero morrer... Não hoje. Minha família dorme. Meu filho respira pela boca, ronca, por causa de uma adenoide inflamada. Nos meus ouvidos, na minha cabeça, dentro do meu crânio, atrás dos olhos, os pernilongos zunem impiedosamente. Uma bomba d’água começa a funcionar em algum lugar. Não sei se penso ou se sonho, mas ouço alguém dizer: “Ficaremos quinze dias sem água, talvez vinte, ou mais”. Ouço vidros quebrando, gritos. Sinto cheiros: urina, suor, sujidades na pia... “Será que é aqui?”, pergunto. De dentro da noite uma voz me responde: “Sim”. Levanto-me. Vou ao banheiro. Dou descarga nas urinas de ontem e anteontem. Ando pela casa... “A nuvem de pernilongos está toda aqui dentro, TODA!”. Cubro meus filhos. Seus pés estão sujos, as mãos também. A menina coça o inchaço de uma picada no rosto. ... Três e meia da madrugada. Atento, escuto: duas bombas vizinhas levam água das caixas reserva para as principais, meu filho ronca, os pernilongos infernizam, sibilantes, implacáveis,

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e essas vozes, que eu não sei... não sei... Acho que enlouqueci.

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Água e poder

Dona Maria é empregada doméstica. Mora com a filha, o genro e três netos num barracão alugado no alto do morro da Penha. Sua caixa d’água é de 250 litros e há seis dias está seca, por causa do racionamento. O genro de Dona Maria é servente de pedreiro. Sua mulher não trabalha, fica em casa o dia inteiro com um dos filhos, que é paralítico. O barracão onde moram é muito pequeno, cheio de buracos nas paredes, e está infestado de ratos e baratas. Do barracão de Dona Maria dá para ver a mansão de Dona Jaciara, mais ou menos na mesma altura, cercada por muros, guaritas, cães ferozes e seguranças armados. Dona Jaciara é socialite, ou seja, não faz nada: vive de renda. Ou melhor, faz sim: dá festas borbulhantes, que enchem páginas e mais páginas do caderno Sociedade do jornal A City. Dona Jaciara está agora conversando com seu amigo Jade – o promoter mais badalado da high society – sobre a próxima festa que dará em sua mansão. Seu reservatório de água é de 10.000 litros e está sempre cheio, porque ela compra água de uma empresa autorizada, que é de um primo do seu marido. O custo é alto, mas Dona Jaciara não se importa. O que menos a preocupa é dinheiro. Tanto é que, neste exato momento, três caminhões-pipa estão enchendo sua piscina. Dona Maria não tem mais condições de comprar água mineral. Está preocupada, principalmente com as crianças,

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que têm sede e andam sujas e fedidas, atraindo pulgas e moscas varejeiras. Seu genro quer comprar uma caixa reserva e uma bomba d’água, mas para isso vai ter que pegar dinheiro emprestado. Mais três dias sem água na casa de Dona Maria. A situação é desesperadora. Uma vizinha que tem caixa reserva ajuda um pouco com água para beber, mas já demonstra má vontade. Finalmente Dona Maria e o genro decidem pela compra. Quando o bairro estiver sendo abastecido, a caixa reserva, que ficará no chão, encherá junto com a caixa principal, e nos dias sem abastecimento a bomba levará água de uma à outra quando precisar. Dona Jaciara está agora relaxando em sua banheira de hidromassagem. Está muito feliz com a perspectiva da nova festa. Tem que pensar nos detalhes... Quer tudo perfeito. Dona Maria e sua família aguardam a chegada da água, mas ela não chega. Sua rua é a última do morro. Nas ruas de baixo a água chega, mas pouca. Na companhia de saneamento dizem que a rua de Dona Maria não consta no sistema. Como assim? Informam que vão verificar o que aconteceu. Em outras partes da cidade a água também não chega. Tem gente que está há doze dias sem água. “Vocês precisam ter paciência”, pedem as autoridades, mas os moradores não têm. Não aguentam mais. Aos poucos se movimentam, pegam pneus velhos, gasolina, porretes...

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Dizem que vão fechar as principais ruas e avenidas da cidade. Estão desesperados. Enquanto isso, os cães de Dona Jaciara tomam banho no quintal de sua mansão. Ela tem muito orgulho de seus cães. São todos de raça, registrados, valem uma fortuna. O marido de Dona Jaciara é bilionário, dono de quase metade da cidade, mas quer mais. Por isso está investindo no negócio da água. Vai rachar de ganhar dinheiro... Daqui a pouco ele chega. Dona Jaciara já ouve o barulho do helicóptero. Seus filhos também vêm; menos Luísa, que está no Canadá.

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“Goiabas bichadas” bate, mas não assopra No último final de semana eu assisti a um ensaio da peça “Goiabas bichadas”, de Rony Morais. No palco, dez atores adolescentes, integrantes do grupo Colibri, que abraçaram um projeto difícil, pesquisaram, estudaram e passaram as férias ensaiando, com um único objetivo: desconcertar o público. Mais uma vez, o diretor Rony Morais encheu-se de coragem e decidiu adaptar para o teatro textos de minha autoria escritos para incomodar. O resultado foi uma bofetada na cara do espectador e um grito de ordem: Pense! Pensar... Como é difícil pensar, refletir sobre nossas convicções arraigadas, nossos conceitos enraizados... É tão mais fácil seguir vivendo do mesmo jeito, aceitando tudo que nos foi ensinado como normal, como correto, e desprezar o que não se enquadra... Aos gritos, de forma escancarada, mas também nos silêncios e entrelinhas, a peça nos leva a uma reflexão sobre nós mesmos e a sociedade em que vivemos. As goiabas do título são nossas consciências, esburacadas e atravessadas por vermes infatigáveis, destruidores de tudo que as faz pesar: a moral, a ética, a compaixão, o respeito ao próximo... Depositados ali pelas moscas do dinheiro e do poder – pelas “ideias que fazem o mundo girar” –, os bichos da peça são verdades construídas para tornar nossas consciências leves, prontas para aceitar, muitas vezes, o que há de mais abjeto e repugnante.

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“Goiabas bichadas” conta a história de Camila Sampaio, uma pintora ignorada pelo público, e de Américo Torres, um dos médicos mais conceituados e ricos do país. Camila não se enquadra. É destemperada, descontrolada, quase louca. Tem talento, mas lhe falta um padrinho. Tem garra, mas lhe faltam meios. Já Dr. Américo conquistou tudo que Camila quer: influência, poder, dinheiro, fama e reconhecimento. Mas acaba de atropelar e matar uma pessoa no acostamento de uma estrada, bêbado, voltando de uma festa... O corpo está lá, caído na estrada, esvaindo-se em sangue, e Dr. Américo, altivo, imponente, dá início a uma batalha encarniçada contra sua consciência... “Goiabas bichadas” bate, mas não assopra. Quer que a dor persista, lateje, até que brote na ferida, na pele inchada e vermelha, a flor de um pensamento crítico...

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“Goiabas bichadas” cumpre sua difícil missão Se a peça “Goiabas bichadas” tivesse sido escrita para agradar, para dizer o que a maioria das pessoas quer ouvir, e fazê-las rir, se divertir, eu, como autor dos textos que a originaram, não teria ficado tão nervoso durante a apresentação. Foi tenso. No final, aplausos, nenhuma vaia, mas senti o ar pesado, elétrico, carregado de perplexidade e perturbação: um céu escuro e frio, prestes a desabar sobre nossas cabeças. E eu pensei: O que foi que eu fiz dessa vez? Toda a minha vida eu quis agradar, fazer as pessoas gostarem de mim (e eu tentava, de verdade, do meu jeito, quase sempre sem sucesso); mas de uns tempos para cá, o que eu mais faço é desagradar, incomodar, espezinhar os outros com meus contos e crônicas, e, agora, com as adaptações do Rony Morais para o teatro. Mais essa... O jeito vai ser escrever só para mim, não publicar nada, e ir guardando tudo nas estantes: maços e mais maços de folhas embrulhados em papel jornal ou de açougue, amarrados com barbante. Assim, quando eu morrer, meus filhos poderão ler – ou queimar sem ler – milhares de contos e crônicas, talvez até alguns romances (se eu conseguir sobreviver pelo menos dez anos após a aposentadoria para escrevê-los). “Goiabas bichadas” incomoda porque é trágica: nela vencem a hipocrisia, a mentira, a ambição desmedida e a injustiça; e também porque mexe com a consciência de cada um de nós – e eu tenho certeza que a maioria do público presente, inclusive eu e o Rony, tem problemas de

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consciência pendentes (porque somos seres humanos, erramos). Alguns não têm, porque são frios, podres por dentro, mas a maioria tem, embora tente escondê-los – comigo é assim. A peça avivou feridas, fez pensar, e isso incomoda... Em geral, não tenho nada contra políticos nem médicos. Utilizei-os na peça porque eles lidam com seres humanos em seus momentos mais difíceis, e, por isso, quando têm uma sede exagerada por dinheiro e poder, podem causar estragos terríveis. São personagens importantes, que fazem a diferença na vida das pessoas, para o bem, mas também para o mal, e eu os utilizo em meus textos apenas para expor com mais clareza aos leitores as feridas da sociedade, seus dilemas e contradições. Não quero generalizar. Conheço políticos e médicos que considero justos e bons, realmente preocupados com o sofrimento humano, ambiciosos na medida certa, e que são recompensados pelo bem que fazem, justamente. Admiro-os, de coração; mas muitos não são assim, como não são também muitos outros profissionais, de todas as camadas sociais. Na peça, Dr. Américo Torres encarna os dois: o político corrupto e o médico desumano. Está quase totalmente podre por dentro. Nele se concentram, em grande quantidade, defeitos que encontramos em cada um de nós: em alguns, discretamente, em grau leve; em outros, não. Isso porque somos humanos. Só que, também por sermos humanos, somos capazes de olhar para nós mesmos e refletir sobre nossas vidas, analisá-las criticamente e transformá-las, para melhor.

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Foi esse pensar crítico que eu, Rony Morais e o Grupo Colibri tentamos estimular nas pessoas com a peça. Acredito que cumprimos nossa missão. Agradar, não agradamos; mas isso a gente não quis mesmo – embora, para mim, seja difícil aceitar que eu não agrado, que eu não me enquadro... Mas vou aceitar. Um dia.

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Cortes suínos

Sonho que trabalho num abatedouro que emprega mais de mil pessoas, a maioria pobre. Minha tarefa o dia inteiro é separar focinho, pezinho e orelha de porco dos outros cortes, que passam por mim numa esteira rolante. À minha direita, em duas caixas de plástico, jogo focinhos e orelhas; à esquerda, noutra caixa, pezinhos. Os que não prestam, por estarem deformados ou com hematomas, jogo num buraco no chão, que eu não sei aonde vai dar. Nunca vi abater um porco. Nem cortar. Meu trabalho é só separar. Oito horas por dia, separar: focinho, pezinho e orelha. Comigo na esteira estão alguns colegas do bairro, companheiros de boteco e zona, e também algumas mulheres que eu conheço, a maioria só de vista. Estou separando focinhos, pezinhos e orelhas há duas horas quando, de repente, vejo se aproximar de mim pela esteira um nariz humano, branco, grande, de narinas cabeludas, que logo reconheço ser do meu colega Jurandir. Inclino meu corpo para frente, viro a cabeça e vejo que Jurandir realmente está sem o nariz, mas continua trabalhando normalmente, separando seus cortes como se nada tivesse acontecido. O nariz passa por mim, meu colega da frente o pega e joga dentro de uma caixa, junto com seus cortes de costelinha. Acho isso muito estranho, mas continuo meu trabalho. Meia hora depois vejo se aproximar de mim uma mão de mulher, decepada um pouco acima do punho, toda enrugada, encardida, com esmalte vermelho barato descascando nas unhas, e imediatamente reconheço-a

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como sendo da minha colega Rosa, que trabalha na esteira um pouco antes de mim. Olho para a colega e vejo que ela realmente está sem a mão esquerda, mas continua separando seus cortes com a direita sem se preocupar, com a mesma rapidez e destreza de sempre. Deixo passar a mão, que vai parar numa das caixas do meu colega da frente. Cinco minutos depois vejo passar um pé de homem, todo rachado no calcanhar, com terra vermelha incrustada tão profundamente nas trincas que não deve sair nem com lixa de pedreiro. Não o reconheço, mas logo descubro ser do Josias, que de repente aparece se apoiando numa muleta. E seguem passando narizes, mãos, pés, joelhos, orelhas, canelas, coxas, troncos, braços, pescoços e ombros de homens e mulheres pobres, empregados do abatedouro, sofredores como eu, que ao não conseguirem mais ficar em pé por falta de pés, ou separar os cortes por falta de mãos, são substituídos por outros empregados, que também vão perdendo suas partes até serem substituídos, e assim por diante. De todos ali parece que só eu e meu colega da frente ficamos intactos, não sei por que razão. Aí começam a aparecer cortes diferentes, mais nobres: mãos sedosas e macias, punhos com relógios de marca, pés sem rachaduras, narizes tratados, etc., que, acredito, pertencem aos mais graúdos do abatedouro – mas não aos donos, que moram nos Estados Unidos –, o que se confirma logo que vejo passar um tronco com um crachá que diz: Dr. Rodrigues, gerente geral. E aos poucos, em partes, passam também gerentes de produção, de marketing, de venda, de recursos humanos, etc., cujos

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cortes são separados e jogados nas caixas pelo meu colega, junto com os outros. De repente sinto uma picada no ombro, um leve ardor, quase nada, e meu braço cai na esteira. Meu colega da frente perde uma orelha e continua seu trabalho. Eu também continuo o meu, e penso comigo: “Isso aqui não tem o menor sentido... Essa vida, esse sofrimento todo... Para quê?... Mas é assim... Pelo menos passa rápido”. E acordo.

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Ramon na privada Há oito dias não tem água na cidade. Ramon está em casa, sentado na privada, indeciso. Seu intestino está cheio. Comeu muita fibra ontem – brócolis, grão-de-bico, feijão fradinho, maçã, pão integral –, e à noite ainda mandou para dentro dois potinhos de iogurte grego com aveia e mel. Por enquanto está conseguindo segurar, mas já sente a musculatura anal cansada, querendo ceder, e o bolo fecal ali, bem na saída, ganhando massa, forçando passagem. Ramon está agora decidindo o que fazer: soltar tudo ou esperar mais um pouco? Porque não sabe se terá água suficiente. Até ontem à noite tinha, mas seu filho foi ao banheiro de madrugada e dormiu em pé com o braço apoiado no botão da descarga. Ramon acordou com o barulho da cachoeira, mas demorou muito para agir. “O resto da caixa deve ter ido embora agora”, pensou. De manhã subiu ao telhado e confirmou sua suspeita. Mas ainda pode haver água no cano. Certamente há. O que Ramon não sabe é se ela será suficiente para despachar o que ele tem acumulado no baixo-ventre, que, pela pressão que sente em suas paredes e na porta do ânus, parece ser muita coisa. Nas torneiras ainda há filetes de água, mas muito pouco. O que fazer? Ele decide soltar tudo. Não aguenta. Seu ânus então se abre imenso e um monstro de fezes começa a sair, assumindo aos poucos a forma de um torpedo alemão da 2ª Guerra Mundial, que enche o vaso até ficar com mais da metade de sua massa marrom escura acima do nível da

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água – como uma montanha ou um vulcão que surge de repente no mar: uma coisa simplesmente assustadora. Obra feita, Ramon agora é tomado pelo medo. “Nem com um balde dos grandes cheio de água isso aqui vai embora”, diz para si – e um suor frio escorre pelo seu rosto pálido, suas mãos tremem. A faxineira está na sala limpando o sofá e certamente passará pelo banheiro. Como deixá-la entrar ali com aquilo na privada? “Mas ainda há chance”, pensa Ramon. A água no cano talvez seja suficiente. “Vou tentar”, diz. Limpa-se depressa e aperta a descarga. Das entranhas da casa, como resposta, surge um som rouco, arrastado, seco, como o último suspiro de um moribundo centenário, seguido por um chiado fino, tipo sopro de balão furado, que se extingue lentamente até a morte, e por último um estrondo, uma explosão, como um grito de horror vindo de algum abismo profundo ou do próprio inferno. E mais nada. Nenhuma gota de água. O encanamento está completamente seco. Ramon sai do banheiro, pega três baldes e vai para a rua, desesperado, para implorar água... mas a quem? À D. Eunice, que o odeia por ele ter matado seu gato de estimação com um tiro de espingarda no meio dos olhos? Ao Seu Inácio, que nem o cumprimenta, por achá-lo metido e arrogante? À D. Lúcia, que ele quase atropelou semana passada, quando ela voltava do mercadinho, cheia de pacotes, largando-a lá no chão, com tudo esparramado, sem ajudá-la e nem ao menos pedir desculpa? Está difícil, hein Ramon!

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Ramon agora está parado na calçada, esperando. Tem uma ideia. Vai ao mercadinho, compra um galão de vinte litros de água mineral, volta para casa, pega um saco de lixo na despensa, uma colher de jardineiro no quintal e dirige-se ao banheiro. Ao chegar lá, depara-se com a faxineira olhando para o interior da privada, assustadíssima. Não liga para a mulher (ela também não caga?). Tira ela dali com delicadeza e começa o serviço: com a colher de jardineiro, pega a maior parte do bolo fecal (mais ou menos um quilo de massa escura e compacta) e joga no saco de lixo; em seguida, com um balde de plástico, despeja o galão de água mineral na privada, fazendo o resto das fezes ir embora. Ufa! Coitado do Ramon... Coitados de nós...

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Caminhos Estou acostumado com trilhas no mato. Não tenho medo. Em poucos minutos chego ao acampamento. É noite. Vejo crianças brincando e adultos conversando ao redor de uma fogueira. Ninguém me vê. De repente uma pessoa se levanta e vem em minha direção. Pelo movimento do corpo vejo que é meu filho. Aproxima-se sorrindo e me abraça. Não quero segui-lo até o grupo, só conversar um pouco, ver como ele está. No passado tentei prendê-lo, adestrá-lo, protegê-lo, forçando-o a se adequar a um padrão de comportamento que eu acreditava ser o melhor para ele, o mais seguro, o mais certo. Mas logo vi que era perda de tempo, que ele não se enquadrava, que a sua vida transbordava dos limites e escorria livre, ardendo, como lava de vulcão. Ele não fracassou. Daqui ele irá para o interior com a sua trupe, mostrando sua arte. Trocamos cartas ao estilo antigo, como eu fazia com a mãe dele antes de nos casarmos. Ele liga às vezes, conversa com a gente, rimos juntos; é bom, mas sinto-o mais perto de mim quando leio suas cartas, tão bem escritas, tão poéticas. Guardo-as todas com muito carinho. Enquanto conversamos, ouço cães latindo ao redor do acampamento. Uma enorme coruja nos observa atentamente do alto de uma árvore. De uma das barracas vem uma música de orquestra que eu reconheço ser Mozart.

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Meu filho está bem. Está feliz, saudável. Segue seu caminho. Sabe o que quer. Despeço-me dele e volto pela mesma trilha, beirando o rio. Mozart aos poucos se confunde com os sons da noite. Não ouço mais os cães. Lembro-me de como eu sofria ao ver gente da própria família rindo e zombando dele, só por ele ser diferente... Que bobagem. Hoje sei que meu filho é um vencedor. Venceu preconceitos e seguiu seu caminho, impulsionado pelo destino, fiel a si mesmo. Poucos podem dizer que venceram na vida como ele. Eu não posso. Mas estou feliz por ele. Acendo um cigarro e continuo andando. Um vento frio me faz abotoar o casaco. Parece que vai chover.

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Uma bela senhora Onze e vinte da manhã. Estou na academia. Da esteira onde corro vejo uma bela senhora na bicicleta pedalando animada enquanto assiste a uma reportagem do programa encontro com Fátima Bernardes. Observo-a discretamente, imaginando que vida ela deve ter fora daqui, se tem marido, filhos, netos, se já fez alguma cirurgia plástica, se toma antidepressivo... Ela parece feliz. Não diria que é gorda, mas também não é magra. Está no ponto. Bonita. Bem cuidada. A idade eu chutaria sessenta e três. Chegou antes de mim e pegou justo a minha bicicleta, a única que tem assento com encosto. Logo hoje que eu começaria Os Demônios, de Dostoievski... Correr sem sair do lugar suando com Fátima Bernardes... Que tortura! Na bicicleta pelo menos eu leio. Tédio, tédio, tédio, tédio... De repente a bela senhora enfia o dedo no nariz. Tira e olha para ver se veio alguma coisa. Nada. Tenta o dedo mindinho. Nada de novo. Deve ser um daqueles catarros grandes, endurecidos por cima e moles por baixo, pegajosos, que ficam presos no fundo e que quando a gente assoa o nariz mais forte fazem um barulhinho parecendo que vão sair, mas não saem de jeito nenhum. Ela vira para o meu lado, fingindo olhar o ventilador. Em seu rosto leio a pergunta: “Será que ele viu?”. Finjo que estou concentrado na reportagem, que mostra uma baleia encalhada numa praia do sul com pessoas ao redor conversando e rindo. A senhora parece tranquila. Deve achar que eu não vi nada por causa da televisão. Então ela

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tenta de novo: enfia o dedo com vontade, tira, olha, assoa, tampa uma narina e assoa de novo, mas nada, a coisa não sai. Finalmente ela consegue soltar o catarro. Com cuidado, puxa-o para fora com os dedos em pinça. É enorme. Mesmo de onde estou consigo ver a crosta escura por cima e a massa mole por baixo, ocupando quase um terço do seu dedo indicador. Que nojo. Uma mulher tão bonita e fina segurando uma meleca na ponta do dedo é realmente uma imagem desoladora... Mas por quê? Eu não faço coisa muito pior? Nós todos não fazemos? Tento refletir, mas não adianta. O encantamento se quebrou. Para continuar sendo a bela e distinta senhora na bicicleta ela não poderia nunca tirar uma meleca do nariz com o dedo e... O quê? O que ela está fazendo? Não! Não! NÃO!

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Acordando para a vida Há pessoas que torcem o nariz para tudo. Nos outros estão sempre procurando o erro, o desvio, a inépcia, para dizerem “Você está errado, veja como é”, e saírem por cima. Eu era assim. Nas conversas, antes mesmo da pessoa abrir a boca eu já pensava: “Lá vem besteira”. Negava e afastava com desdém tudo que contrariava meu sistema de crenças, minha condição social, meus privilégios, minhas verdades. Com o tempo isso se tornou uma doença, fonte inesgotável de sofrimento, de angústia. Um mosquito zunindo, um galo cantando, um arrastar de pés no corredor, uma coceira no dedo, um verbo mal empregado, qualquer coisa me tirava do sério. Meu corpo todo tremia. Minha cabeça só faltava explodir. Até que um dia, caminhando na rua, senti uma dor no peito, bambeei e caí. Apaguei. Acordei mais tarde numa ambulância, o corpo todo paralisado, a cabeça oca. Dois homens de branco mexiam comigo, puxavam fios, ligavam coisas, mas eu não sentia nada. Havia outro rapaz lá dentro, de óculos, que se mantinha afastado, só olhando. Na parte de trás do veículo, acima da porta, li: SAMU. Eu estava numa ambulância do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência. Lembro-me que pensei na hora: “Estou fodido”. De repente o rapaz de óculos se aproximou e olhou nos meus olhos. Os outros dois foram para um canto e ali permaneceram quietos, de cabeça baixa. Pareciam cansados. Continuei deitado, paralisado, mas logo senti que poderia me levantar, se quisesse. O rapaz que me olhava então colocou suas mãos sobre meu peito, disse

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algumas palavras bem baixinho, que me soaram como música, e uma força vinda não sei de onde me impulsionou para cima. Levantei-me. Os outros nem ligaram, continuaram como estavam, cabisbaixos, tristes. O rapaz de óculos, no entanto, sorriu para mim, sereno, e disse: “É hora de partir”. Vi meu corpo físico deitado na maca, o peito aberto, todo sujo de sangue. Na etiqueta, aos pés do cadáver, a hora da morte. Foi um choque para mim, mas a presença daquele espírito amigo, de olhar profundo e sorriso nos lábios, logo me acalmou. Assim que a ambulância parou, nós saímos. Hoje posso dizer que vivo. Quantos erros, meu Deus... Que vida curta e estúpida eu levei na matéria... Estou agora lendo um livro maravilhoso, escrito por um espírito de grande sabedoria, que tem me ensinado muito sobre a vida: O jogo das contas de vidro, de Hermann Hesse. Que bálsamo! Se eu o tivesse descoberto antes, no corpo físico, talvez não tivesse sofrido tanto... Mas foi preciso... Hoje estou feliz e em paz.

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No chão agora Na montanha deserta entre árvores ao vento sentindo já a alegria do fim que se aproxima de tudo que me dói por dentro caminho livre sozinho respirando o ar puro da noite estrelada ouvindo o rumor dos galhos nas copas enquanto subo até o alto mais alto onde me deitarei no chão e serei coberto por folhas terra vento estrelas tudo me cobrirá de vida e lá ficarei até o fim de tudo que me fere de todos os gritos e ódios e indiferenças de todas as vaidades e ambições mesquinhas de tudo que me faz mal e que agora segue para longe aos poucos com o vento e a noite e eu deixo que siga sentindo-me cada vez mais leve cada vez mais livre cada vez mais eu - - - - - - - - - - No caminho entro nu numa cachoeira gelada que me corta a pele a carne os ossos e me lava por dentro por fora me vira do avesso porque é assim na montanha à noite em meio às árvores ao vento sob as estrelas que dizem com seu brilho é assim é isso estar em comunhão com a vida que pulsa sem saber por que é buscar o ser livre em nós que também é vento terra água árvore e noite e nada do que me machuca na civilização importa nada disso que move os homens em sua faina diária por reconhecimento poder riqueza nada disso importa nada - - - - - - - - - - No chão agora entre terra corpo alma folhas árvores céu não há nada somos um só e os sons da noite e o brilho das estrelas - - - - - - - - - - Obrigado Deus por eu me saber e amar ser tão pequeno.