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SAOPAULO EM PERSPECTIVA, 16(4):64-72,2002 ~ AS CONTRADIÇÕES DA " " POLITICA DE SAUDE NO BRASIL o Ins ti tu to B u tan tan ANTONIO CARLOS MARTINS DE CAMARGO Resumo: Este artigo pretendemostrar que a pesquisa científica, que há um século marcouas vidas de Adolfo Lutz, Oswaldo Cruz, Vital Brasil, Carlos Chagas e Rocha Lima, continua sendo a condição essencialpara resolver problemasde saúde no Brasil. Optar por caminhosmais curtos, além de nos condenar ao subdesen- volvimento, consagra a contradiçãoentresermoscapazes de elucidar o genomade uma bactéria patogênicae continuarmosimportando produtos e tecnologias e exportando, a fundo perdido, nossas riquezas e inovações. Palavras-chave: história da ciência; pesquisa; política científica. Abstract: This article argues that scientific research, personified by figures such as Adolfo Lutz, Oswaldo Cruz, Vital Brasil, Carlos Chagasand Rocha Lima one hundred years ago, continues to be the single most important factor in resolving Brazil's public health problems.By seeking shortcuts, Brazil will not only condemn itself to a future of underdevelopment, but will also reinforce a perverse paradox: though we are capable of isolating the genome of a pathogenic bacteria, we continue'to import products and technologies while we practice unrestrained enthusiasm in the exportation of our most precious material and scientific resources. Key words: history of science;research;sciencepolicy. O homem levoumilêniosparadeixar de serum ani- ganismos associada à sua grandevariabilidade genética, mal nômade, mas levou poucosséculos para se natural ou induzida,o que torna quase infinitas as possi- agrupar em vilas e cidades. Essefenômenoas- bilidadesde sobrevivência dasespécies microbianas. Tais sumiu proporções gigantescas apósa revolução industri- fatores sãoagravados pelasmudanças ambientais provo- aI, dando origem às grandes cidades de hoje. Nessa traje- cadas pelo homem, que causam desequilíbrios ecológicos, tória humana, a populaçãomundial passou de 5 milhões criando situações inusitadaspara os microorganismos e (neolítico) para mais de 5 bilhões nos dias de hoje. Esse resultandoem freqüentes e alarmantes aparecimentos de fato relaciona-se a umadas características importantes das novasdoenças e epidemias. De 1951 até 1993, pelo me- epidemias, isto é, à formaçãodos agrupamentos humanos nos 28 novas doenças infecciosas foram diagnosticadas em pequenas e grandescidades à beira d'água. A água como casos isolados ou surtosepidêmicos. Entre as mais constitui nãoapenas o elemento essencial à vida,mastam- conhecidas estão a dengue hemorrágica(1953),a doença , . bém o veículo da morte. Nas aglomerações humanas, a de Lyme (1975), a Ebola (1976) e a Alds (1981). Nesse água,pela facilidade e rapidez em disseminarpragas e período, por outro lado, ressurgiram14doenças infeccio- doenças, promove rapidamente suas propagações diziman- sasaté então contidas,que se tornarammais dissemina- do populações inteiras. Isso porque a mesma água que dasdo que no passado, tais como cólera, câncer cervical, recebe os dejetos animais é utilizada pelo homem para sífilis e tuberculose.É importante ressaltar que as mes- bebere lavar. mas razões que,no final do século XIX, motivaram a cria- Outros três aspectos que explicam as pragas humanas ção dos institutos de pesquisa, como o Instituto Pasteur J são: a mobilidade do homeme a conseqüente facilidade em Paris, o Instituto RockefellernosEstados Unidos ou o de propagação das doenças; a adaptaçãode microor- Instituto Butantan(São Paulo~ e o Instituto Manguinhos ganismos ao organismohumanopor meio da migração de (Rio de Janeiro) no Brasil, continuam tão presentes quan- seuhabitat naturalparao homem, utilizando-separa isso to no passado. Este artigo pretendeabordar asrazões his- diferentes vetores;e a rápida multiplicação dos microor- tóricas que levaramà criação dos institutos e a evolução ., : ! 64 --

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SAOPAULO EM PERSPECTIVA, 16(4):64-72,2002

~ AS CONTRADIÇÕES DA" "

POLITICA DE SAUDE NO BRASILo Ins ti tu to B u tan tan

ANTONIO CARLOS MARTINS DE CAMARGO

Resumo: Este artigo pretende mostrar que a pesquisa científica, que há um século marcou as vidas de AdolfoLutz, Oswaldo Cruz, Vital Brasil, Carlos Chagas e Rocha Lima, continua sendo a condição essencial pararesolver problemas de saúde no Brasil. Optar por caminhos mais curtos, além de nos condenar ao subdesen-volvimento, consagra a contradição entre sermos capazes de elucidar o genoma de uma bactéria patogênica econtinuarmos importando produtos e tecnologias e exportando, a fundo perdido, nossas riquezas e inovações.Palavras-chave: história da ciência; pesquisa; política científica.

Abstract: This article argues that scientific research, personified by figures such as Adolfo Lutz, OswaldoCruz, Vital Brasil, Carlos Chagas and Rocha Lima one hundred years ago, continues to be the single mostimportant factor in resolving Brazil's public health problems. By seeking shortcuts, Brazil will not only condemnitself to a future of underdevelopment, but will also reinforce a perverse paradox: though we are capable ofisolating the genome of a pathogenic bacteria, we continue' to import products and technologies while wepractice unrestrained enthusiasm in the exportation of our most precious material and scientific resources.Key words: history of science; research; science policy.

O homem levou milênios para deixar de ser um ani- ganismos associada à sua grande variabilidade genética,mal nômade, mas levou poucos séculos para se natural ou induzida, o que torna quase infinitas as possi-agrupar em vilas e cidades. Esse fenômeno as- bilidades de sobrevivência das espécies microbianas. Tais

sumiu proporções gigantescas após a revolução industri- fatores são agravados pelas mudanças ambientais provo-aI, dando origem às grandes cidades de hoje. Nessa traje- cadas pelo homem, que causam desequilíbrios ecológicos,tória humana, a população mundial passou de 5 milhões criando situações inusitadas para os microorganismos e(neolítico) para mais de 5 bilhões nos dias de hoje. Esse resultando em freqüentes e alarmantes aparecimentos defato relaciona-se a uma das características importantes das novas doenças e epidemias. De 1951 até 1993, pelo me-epidemias, isto é, à formação dos agrupamentos humanos nos 28 novas doenças infecciosas foram diagnosticadasem pequenas e grandes cidades à beira d'água. A água como casos isolados ou surtos epidêmicos. Entre as maisconstitui não apenas o elemento essencial à vida, mas tam- conhecidas estão a dengue hemorrágica (1953), a doença

, .bém o veículo da morte. Nas aglomerações humanas, a de Lyme (1975), a Ebola (1976) e a Alds (1981). Nesseágua, pela facilidade e rapidez em disseminar pragas e período, por outro lado, ressurgiram 14 doenças infeccio-doenças, promove rapidamente suas propagações diziman- sas até então contidas, que se tornaram mais dissemina-do populações inteiras. Isso porque a mesma água que das do que no passado, tais como cólera, câncer cervical,recebe os dejetos animais é utilizada pelo homem para sífilis e tuberculose. É importante ressaltar que as mes-beber e lavar. mas razões que, no final do século XIX, motivaram a cria-

Outros três aspectos que explicam as pragas humanas ção dos institutos de pesquisa, como o Instituto Pasteur Jsão: a mobilidade do homem e a conseqüente facilidade em Paris, o Instituto Rockefeller nos Estados Unidos ou ode propagação das doenças; a adaptação de microor- Instituto Butantan (São Paulo~ e o Instituto Manguinhosganismos ao organismo humano por meio da migração de (Rio de Janeiro) no Brasil, continuam tão presentes quan-seu habitat natural para o homem, utilizando-se para isso to no passado. Este artigo pretende abordar as razões his-diferentes vetores; e a rápida multiplicação dos microor- tóricas que levaram à criação dos institutos e a evolução

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I

As CONTRADIÇOES DA PoLfnCA DE SAÚDE NO BRASIL: O INSTIT!ITO B!ITANTAN

que sofreram por mais de um século, chamando a atenção do antrax. Após ingressar na vida acadêmica, acentuoudos governantes para a importância do papel que desem- sua contribuição à bacteriologia moderna, que não se res-penham. A comparação da situação atual entre o Instituto tringiu à descoberta dos microorganismos causadores daPasteur, na França, e o Instituto Butantan, no Brasil, po- tuberculose, da cólera e da doença do sono (tripano-derá servir para mostrar o descompasso e a responsabili- somíase), contribuindo para o estabelecimento da abor-dade de nossos dirigentes quanto à necessidade de apoio dagem experimental aplicada ao estudo das patologiasao desenvolvimento científico, fundamental para o bem- causadas por microorganismos. Seus postulados, sua con-estar da sociedade pelo benefício que proporciona à saú- tribuição para o cultivo bacteriano e seu empenho na for-de pública. mação de discípulos marcaram o século XIX como o mais

importante para a medicina moderna. Um de seus discí-A DESCOBERTA DO MUNDO DOS MICRÓBIOS pulos mais destacados foi o barão Shibasaburo Kitasato

(1852-1931), o cientista japonês que descobriu o baciloPode-se dizer que a modernização da medicina come- da peste bubônica.

çou no século XIX, quando alguns pesquisadores foram Outro cientista alemão, Paul Ehrlich (1854-1915), fezresponsáveis por retirar a medicina das mãos das bruxas, descobertas que constituíram a base da quimioterapia e dados curandeiros e dos alquimistas, transferindo-a para os imunidade. Como aluno, Ehrlich, que gostava de se diver-pesquisadores científicos. Numa tentativa de refletir o pa- tir com corantes e vivia com a roupa manchada, levou aonorama do século XIX, que conseguiu convencer desde o desespero seus professores por seu aparente desinteressecamponês até os imperadores da necessidade de apoio à pela química. Devido ao mau desempenho universitário,pesquisa científica, procurar-se-á rever como alguns chegou a ser reprovado. Com seu temperamento casual,cientistas revolucionaram a medicina. que preferia a tentativa e erro como método de investiga-

Simbolicamente, no dia 111 de janeiro de 1801, a corte ção, pesquisava como se estivesse brincando. Sua imagi-de Weimar celebrava o nascimento de uma nova era. Como nação, mais do que suas experiências com corantes, o le-semelhantec.a Atenas, o hino Criação, de Raydn, coroava vou a introduzir os arsenicais para o tratamento da sífilis.Goethe como Júpiter Olímpico, interpretando sua peça que Fez descobertas fundamentais nos primórdios da imuno-abria um novo século. Em sintonia com esse espírito, a logia, criando o famoso "dictum" do horror autotóxico, eciência alemã produziu cientistas que figuram entre os lançou as bases do entendimento das doenças auto-imu-principais responsáveis pela modernização da medicina, nes. Juntamente com Eli Metchnikoff (1845-1916), rece-como Jacob Renle (1809-1885), que, apesar da vida tu- beu o prêmio Nobel em 1908. Esse último, grande cientis-multuada por amores e pela atuação política (antagonis- ta russo, viveu na prisão espiritual dos Romanoffs, o que omo a Bismarck e prisão em Berlin), revolucionou a ana- levou, por duas vezes, a tentar o suicídio. Só passou a dartomia e a patologia e descreveu, em termos modernos, que vazão à própria genialidade quando se mudou para Messina,as doenças infecciosas eram causadas por microorganismos na Sicília, levando consigo a mulher com seus cinco ir-específicos. Sua profética visão das causas de doenças mãos e irmãs. Na Itália, Metchnikoff fez as observaçõescontagiosas, como a febre tifóide, a varíola e a escarlati- que lhe permitiram descrever, pela primeira vez, o fenô-na, antes mesmo de qualquer caracterização dos microor- meno da fagocitose, da mais alta importância na defesaganismos, coloca-o como o criador da bacteriologia. Uma imunológica.geração mais tarde, seu discípulo, Robert Koch (1843- A França também marcou o século XIX com contri-1910), introduziu os métodos de fixação e coloração, per- buições científicas fundamentais para a microbiologiamitindo visualizar e caracterizar bacilos. A despeito das e o entendimento dos mecanismos das pragas que afli-grandes dificuldades financeiras, Koch pôde estudar me- gem o homem. O mais destacado cientista foi Louisdicina em Gõttingen, onde Renle lecionava. Chegou a de- Pasteur (1822-1895), cuja genial idade manifestou-sesaparecer da vida acadêmica por dez anos devido às con- pelos seus múltiplos interesses e aptidões científicos edições adversas, mas continuou a pesquisar com o por dedicar-se à formação de seguidores que propaga-microscópio que ganhou de sua esposa, mantendo o tra- ram e lhe ampliaram as descobertas. Suas convicções ebalho até durante a guerra franco-prussiana, da qual par- resultados experimentais contribuíram para banir cren-ticipou como médico. Nesse período, Koch esclareceu a dices arraigadas na sociedade, como a da geração es-história completa da esporulação bacteriana e a etiologia pontânea da vida, e estabeleceram com clareza a mu-

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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 16(4) 2002

dança dos antigos paradigmas que emperravam o de- que doou uma condecoração de diamantes a Pasteur e di-senvolvimento da ciência médica. nheiro ao seu instituto, foram demonstrações do impacto

Filho de um curtidor de couro, Pasteur vivia na peque- causado por suas descobertas. No Brasil, os avanços dana cidade de Arbois, no interior da França. Ainda crian- ciência médica também foram sentidos. O imperador Pedroça, ficou muito impressionado com a morte, por asfixia, 11 manifestou sua admiração pelo trabalho de Pasteur, doan-de animais e homens mordidos por um lobo louco. Vários do uma grande soma ao Instituto Pasteur. Em retribuiçãoeminentes pesquisadores, como Magendie e Virchow, já ao gesto, colocou-se um busto do imperador brasileiro juntohaviam tentado explicar a causa da doença, sem conse- à biblioteca do Instituto Pasteur, em Paris.gui-Io. A dramática experiência de infância marcouPasteur, motivando-o, mais tarde, a esclarecer a etiologia CRIAÇÃO DOS INSTITUTOS DE PESQUISAda raiva e a introduzir a prática da vacinação de cães para PARA O COMBATE ÀSpreveni-Ia. PRAGAS DA HUMANIDADE

Pasteur provou que os microorganismos atuavam nasfermentações de bebidas e alimentos e na preservação e Com a ajuda de uma subscrição internacional, iniciadamelhoria de suas propriedades, fazendo a demonstração em 1886, foi criado em 1888 o Instituto Pasteur, em Pa-inequívoca da inexistência da geração espontânea. Suas ris, dedicado ao estudo e ao tratamento da raiva e de ou-descobertas tiveram um impacto muito além do interesse tros problemas microbiológicos. A iniciativa desencadeoudessas pesquisas para a saúde pública, embora a preven- em todo mundo a criação de instituições com as mesmasção e o tratamento de moléstias infecciosas fossem uma finalidades. Nos Estados Unidos, por exemplo, Frederickdas suas mais importantes preocupações. Nesse contexto, T. Gates, assessor de John D. Rockefeller para assuntosPasteur mostrou sua genialidade lançando as bases da filantrópicos, impressionado com o sucesso alcançado pelaimunoterapia preventiva e curativa, além de ter antecipa- ciência médica européia, sugeriu, em 1897, a criação dedo o advento dos antibióticos. A prática da vacinação um instituto de pesquisa com idênticas características. Aaplicada à prevenção de epidemias em humanos e animais decisão de Rockefeller de doar 200.000 dólares para afez de Louis Pasteur um dos cientistas que, individual- criação do Instituto Rockefeller, em New York, somentemente, mais contribuiu para o bem-estar do homem e o ocorreu em 1901, após a morte, aos três anos de idade, dedesenvolvimento da ciência médica. seu primeiro neto, vítima de escarlatina. Segundo suas

O progresso da medicina no século XIX também deveu palavras, nem o melhor médico disponível na época teriamuito ao quaker escocês Joseph Lister (1827-1912), pro- condições de salvá-lo.fessor de medicina em Edinburgo, que introduziu a anti- Curiosamente no Brasil daquele tempo, existiram ho-sepcia na prática cirúrgica. Quando foi a Londres ensinar mens, políticos e cientistas capazes de avaliar a impor-a importância dessa prática no Hospital St. John, foi ridi- tância que a pesquisa científica poderia ter para a saúdecularizado e insultado por médicos, residentes e enfermei- pública. Vivíamos na época da proclamação da Repúbli-raso Seu artigo "On the antiseptic principIe in the pratice ca, abolição da escravatura, expansão da lavoura cafeeiraofsurgery", publicado em 1867 na revista Lancet, marcou e o início da industrialização dos Estados do Rio de Ja-o início de uma verdadeira revolução na prática cirúrgica, neiro e de Sã;o Paulo. Esses fatores influíram na criaçãoao descrever como se impedia que microorganismos cau- do Instituto Bacteriológico de São Paulo, que contribuiusassem as infecções tão freqüentemente responsáveis pelo para atrair e oferecer mais segurança aos imigrantes euro-insucesso das intervenções. peus quanto aos perigos do país pobre, de clima tropical,

Finalmente, a humanidade encontrara um caminho para ainda considerado selvagem. Assim, em 18 de julho dese livrar das pragas e doenças causadas pelo inimigo invi- 1892, Cerqueira Cezar, vice-presidente do Estado de Sãosível, os microorganismos. A admiração universal causa- Paulo, e Vicente de Carvalho, secretário do Interior, cria-da pelas novas descobertas científicas foi conseqüência di- ram, por meio da Lei n~43, o Instituto Bacteriológico. Ini.reta das investigações científicas. Em decorrência desse cialmente, a direção do Instituto ficou a cargo do biólogofato, vultuosos investimentos foram feitos pelos governos francês Félix Le Dantec, indicado por Pasteur a pedidoe filantropos de vários países para a criação de institutos do embaixador Gabriel Piza, em 18 de março de 1893,de pesquisa dedicados à aplicação da ciência em benefí- sendo posteriormente substituído por Adolfo Lutz, bacte-cio da saúde pública. Gestos como o do Czar da Rússia, riologia e especialista em zoologia médica.

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As CONTRADiÇÕES DA POLfTlCA DE SAÚDE NO BRASIL: O INSTITUTO BUTANTAN

Adolfo Lutz, nascido em 1855 no Rio de Janeiro, for- tias infecciosas causadas por microorganismos; e aque-mou-*se em medicina na Suíça. Desde cedo interessou-se Ias provocadas por animais peçonhentos.pela pesquisa microbiológica. Sua contribuição à saúdepública brasileira foi extraordinária, graças às numerosas AS MOLÉSTIAS INFECCIOSAS E SUASdescobertas e realizações em benefício da saúde pública HISTÓRICAS CONTRADIÇÕESbrasileira, bem como por ter sido responsável pelo incen-tivo à carreira de outros grandes pesquisadores brasilei- Criados na mesma época que o Instituto Pasteur e oros, como Vital Brasil e Oswaldo Cruz. Instituto Rockefeller, com a finalidade de pesquisar, pre-

A história da criação do Instituto Butantan, em São venir e tratar moléstias provocadas por microorganismos,Paulo, e do Instituto Manguinhos, no Rio de Janeiro, está dois institutos de pesquisa brasileiros -o Butantan e ointimamente ligada a um surto de peste bubônica e ao tra- Manguinhos -não conseguiram acompanhar o desempe-balho e à lucidez de Adolfo Lutz. Aproximava-se o final nho de seus similares estrangeiros. A grande diferença deve-do século XIX quando, na cidade de Santos, irrompeu um se à fragilidade do apoio à atividade científica, no Brasil,surto epidêmico da praga, prontamente diagnosticada por em conseqüência do atraso cultural, político e econômico.

.Lutz e confirmada por pesquisadores do Instituto Pasteur, A deficiência de apoio tem dificultado que a pesquisa cien-em Paris. Era preciso preparar o soro antipestoso, urgen- tífica no Brasil constitua um importante motor de trans-temente. Em São Paulo, foi escolhida, como local ideal formações e de benefícios sociais como os que ocorrerampara instalação desse laboratório, a Fazenda Butantan, na França e nos Estados Unidos durante o século XX. Asdistante 10km do centro da cidade e separada dela pelo pesquisas científicas realizadas pelos Institutos Pasteur erio Pinheiros, dando origem, mais tarde, ao Instituto Rockefeller trouxeram tantos e tão diversificados benefí-Butantan, fortemente identificado com o Instituto Pasteur, cios à sociedade que é muito difícil descrevê-los. Para sena França. No Rio de Janeiro, a mesma situação originou ter uma idéia da importância dessas instituições, bastao Instituto Manguinhos (atualmente Fundação Oswaldo mencionar que, até hoje, nada menos que oito cientistasCruz ou Fiocruz). Para dirigir o Instituto Butantan, foi do Instituto Pasteur e 20 do Instituto Rockefeller recebe-designadõ um médico ainda desconhecido, Vital Brasil ram o Prêmio Nobel pelos frutos do avanço que proporcio-Mineiro da Campanha, e para a direção do Instituto naram às ciências médicas e biológicas.Manguinhos, escolheu-se o jovem médico Oswaldo Mesmo com todas as deficiências, houve, no Brasil, umGonsalves Cruz, de 27 anos, recém-chegado do Instituto período heróico de memoráveis conquistas realizadas porPasteur, de Paris. cientistas como Adolfo Lutz, Oswaldo Cruz, Vital Brasil,

Um fato distinguiu, desde o início, o Instituto Butantan Carlos Chagas, Rocha Lima e tantos outros. Entretanto, odo Instituto Manguinhos: a preocupação de Vital Bra- atraso cultural e o poder das oligarquias dominantes con-sil com a alta incidência de acidentes com animais ve- denaram as instituições que abrigavam tais pioneiros ànenosos, especialmente aqueles provocados por serpen- subserviência política atrelada ao imediatismo, fatoresteso Assim como Pasteur havia sido motivado pelas incompatíveis com o caráter desses homens e a naturezadramáticas conseqüências médicas da mordida do ani- dessas instituições. Após esse período, as instituições vi-mal raivoso, Vital Brasil foi influenciado pelos efei- veram episódios descontínuos de grande efervescênciatos, igualmente dramáticos, da "mordida" da serpente científica e tecnológica, graças à capacidade de resistir àsvenenosa. Acidentes ofídicos, que levavam ao óbito numerosas crises internas e à perseverança de muitos demilhares de pessoas e animais em todo o país, tinham, seus pesquisadores, alguns de prestígio internacional. Oe ainda têm, uma relevância muito grande para a saúde Instituto Manguinhos, mais que o Butantan, apesar de ospública num país agrícola, com fantástica biodiversi- dois terem as mesmas atribuições científicas e tecnológi-dade. O envolvimento do Instituto Butantan com o es- cas no que se refere a doenças infecciosas, permaneceutudo e o tratamento de acidentes ofídicos, que mais tarde identificado com os ideais que justificaram a sua criação,estendeu-se aos acidentes com outros animais veneno- isto é, a pesquisa científica aplicada ao combate às mo-sos, passou a ser a segunda maior atribuição do institu- léstias infecciosas.to de pesquisa recém-criado. Dessa forma, serão abor- Ao longo dos seus 100 anos de existência, o melhordadas separadamente as contribuições do Instituto desempenho do Instituto Manguinhos no combate às mo-Butantan no combate a duas pragas distintas: as molés- léstias infecciosas pode ser atribuído ao maior apoio fi-

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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 16(4) 2002

I TABELA 1 bindo as inovações e desprezando tantos outros bene-Investimentos e De~empenho Científico e Tecnológico de fícios que só a pesquisa científica traria a toda sociedade

Instituições Brasileiras na Area da Saúde e o Instituto Pasteur da França 'd o I O t d o

2000 a me 10 e ongo prazos. argumen o e que a pesquIsacientífica deve ser feita nas universidades é totalmente des- j

I t"t t I t"t t I t"' t cabido pelos mesmos motivos que justificam a manuten-nsluo nsluo nsluo

Indicadores Butantan Manguinhos Pasteur ção da pesquisa no Instituto Pasteur e em todos institutosFiocruz França do gênero no mundo.

Recursos Orçamentários Boa parte do atraso no desenvolvimento científico nas(milhões U$) 8.8 115 48 áreas de imunologia e microbiologia do Instituto Butantan

Recursos Extra-orçamentários pode ser explicada por esse viés da política científica e(milhões U$) (1) 6.5 (1) 14 (2) 144 tecnológica do governo. Esse fato pode ser observado pela

Pessoal Total 850 3.100 2.500 leitura do relatório bienaI1998-1999, elaborado pelo Ins-

Pesquisadores 157 620 1.025 tituto Butantan, comparando-o à análise dos dados do Ins-

p'ublicações (3) 55 309 731 tituto Manguinhos e do Instituto Pasteur (dados obtidosNúmero de Patentes Total 8 51 330 pelo MedLine <www.ncbi.nlm.nih.gov». Ao contrário da

produção científica de suas instituições irmãs, brasileiraFonte: Instituto Pasteur <www.pasteurJI>; Instituto Manguinhos Fiocruz. Relatório Tundisi; f d . d . t . t I bl. Instituto Butantan; Mel/o (2000); GeopilUnicamp. e rancesa, omma a quase m elramen e pe as pu lca-

(1) Recursos públicos ções de trabalhos em microbiologia e imunologia no Ins- .,(2) Recursos privados ' !

(3) Número de publicações científicas indexadas (ISI) em 2000. tituto Butantan verifica-se que, no biênio 1998-99, ape- I]nas 12% correspondem a artigos relacionados à área de

nanceiro, à maior produção científica e de patentes e ao microbiologia e 5% à de imunologia. No mesmo período

maior número de pesquisadores contratados para pesqui- nenhuma patente foi depositada. Por outro lado, essa po- jsas nas áreas da microbiologia, imunologia, patologia, lítica do governo na área da saúde cria uma contradição 1

epidemiologia, entre outras disciplinas das ciências mé- dentro do próprio governo, que investe consideráveis re-dicas e biológicas (Tabela 1). cursos públicos na formação de cientistas e tecnólogos,

O Instituto B utantan viveu quase um século às voltas cria e mantém laboratórios com alta sofisticação, se orgulhacom suas contradições, que se resumem no fato de ser um dos avanços conseguidos em biotecnologia e não utiliza esseinstituto de pesquisa que, na maior parte da existência, potencial para a nossa verdadeira auto-suficiência. 1.1 foi pressionado pelo Estado a produzir imunobiológicos A preferência pelo imediatismo tem quase um século

para resolver problemas urgentes de saúde pública. A pres- de existência, tendo sido criticada inúmeras vezes ao lon-são criou uma situação inusitada dentro de uma institui- go da existência do Instituto Butantan. Já em 1913, o ale-

I ção de pesquisa, ao considerar essencial a produção de mão Martin Ficker, que foi professor de Rocha Lima em 1l soros e vacinas em detrimento da atividade de pesquisa Berlin e contratado para reerguer o Instituto, dizia: "nadaI científica. O embasamento dessa política de saúde, que é mais perigoso para o desenvolvimento das ciências da

ainda prevalece no Instituto Butantan, pode ser assim re- higiene do que a imitação. Não se pode pretender que assumido: num país pobre e populoso, o governo prefere experiências de um país se apliquem mais ou menos dire-gastar seus parcos recursos para fabricar soros e vacinas, tamente a outro país; ao contrário, as ciências da higiene

I desde que o investimento financeiro necessário para sua devem evoluir na localidade onde irão ser aplicadas".i produção local seja menor que o da obtenção desses pro- Embora sejam injustificáveis as conseqüências que essa

dutos da iniciativa privada. Para situações emergenciais política governamental acarretou para o desenvolvimen-

não haveria nada de errado com essa política se isto não to da pesquisa em imunologia e microbiologia do Institu-implicasse a exclusão da pesquisa científica que funda- to Butantan, é forçoso reconhecer que trouxe também be-

mentou e ainda fundamenta a existência do Instituto nefícios sociais em curto prazo, graças ao repasse deButantan e de todos os institutos de pesquisa em molés- recursos do Estado, para o fim específico de produção detias infecciosas em todo o mundo. É óbvio, mesmo para o soros e vacinas. A criação da Fundação Butantan, em 1989,

leigo, que, agindo dessa forma, o custo real dos soros e foi de grande importância para a modernização da produ- !vacinas passa a ser elevadíssimo, pois passa a ser feito à ção de imunobiológicos. Como pagamento pelo forneci- :

custa da condenação do país ao subdesenvolvimento, ini- mento de soros e vacinas, verbas extra-orçamentárias são

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I, As CONTRADIÇOES DA POUTfCA DE SAÚDE NO BRASIL: O INSTlTIrrO BIrrANTAN

rep~ssadas pelo Ministério da Saúde àquela Fundação, tência, o mesmo não pode ser dito de sua contribuição ao

criando assim condições para a modernização das ativi- estudo dos animais peçonhentos e de suas toxinas. É sur-dades de produção do Instituto Butantan. Graças ao enor- preendente verificar que a falta de apoio financeiro do Es-

me e competente esforço feito pelo Prof. Isaias Raw, nes- tado, que afetou toda instituição, foi menos deletéria às

ses últimos anos, conseguiu-se um fantástico progresso na atividades de pesquisa nas áreas de animais peçonhentosprodução de imunobiológicos, beneficiando amplamente e suas toxinas. Ocorreu que, por mais de um século, fo-

milhões de brasileiros. Assim, os recursos captados pela ram acrescentados às riquíssimas coleções do Instituto

Fundação Butantan foram aplicados na instalação de mo- Butantan novos espécimes de serpentes e artrópodes,demos fermentadores que produzem as vacinas básicas atraindo pesquisadores de todo mundo. Assim, durantecontra as infecções conhecidas como difteria, pertussis, toda sua existência, o Instituto Butantan abrigou e/ou co-

tétano, raiva, tuberculose (BCG) e hepatite B. Tecnolo- laborou com pesquisadores brasileiros e estrangeiros de

gias importadas e aqui adaptadas e aperfeiçoadas ou de- renome mundial, estudiosos da biologia dos animais peço-senvolvidas pelo seu Laboratório de Biotecnologia foram nhentos e das aplicações biológicas e terapêuticas de suasresponsáveis pela produção de cerca de 50% de todas as toxinas. Dessa forma, tornou-se a Meca de todos os cien-

vacinas utilizadas no Brasil.1 tistas interessados na área. Até hoje, a área de toxinasSabe-se que hoje, ainda mais do que na época da cria- animais e de animais peçonhentos é responsável por 70%

ção do Instituto Butantan, corremos sérios riscos pela ado- a 80% das publicações científicas indexadas do Institutoção de importação de pacotes tecnológicos prontos para re- Butantan, sendo muitas delas publicadas em periódicossolver problemas de saúde pública, pois freqüentemente internacionais de grande prestígio. Utilizando toxinas ani-

aparecem novas moléstias infecciosas que só poderão ser mais, pesquisadores brasileiros e estrangeiros, em cola-identificadas por pesquisadores do próprio país. Muitas boração com pesquisadores do Instituto Butantan, deram

vezes a importação de tecnologia tem que ser adotada por contribuições de grande impacto às ciências biomédicas.

razões indiscutíveis, como as que levaram à modernização Entre as mais importantes, podem ser citadas:

da atividade de produção de soros e vacinas do Instituto -isolamento, caracterização e cristalização da crotoxina,Butantan. Entretanto, esse Instituto, como um dos maiores extraída do veneno crotálico por Karl H. Slotta e Heinz

responsáveis pela produção de soros e vacinas do país, de- Fraenkel-Conrat (1936-1938). Foi uma das primeiras pro-

veria ter seus alicerces plantados em laboratórios de pes- teínas a ter tal grau de caracterização;

quisa que pudessem acompanhar o fantástico progresso que d b t d b d ... M .. d R h S ' I-esco er a a ra Icmma por aunclo a oc a e 1-

tem ocorrido na imunologia e microbiologia. Esses labora- W . I B Id t..- d G -, , ..va e I son era o, com a par Iclpaçao e astao

tonos constltumam a mfra-estrutura necessana para Iden- R " Id . d d I .B 1949~ .osenle , pesquisa or o nstltuto utantan, em ,

tlficaçao e caractenzaçao de mlcroorgamsmos patogemcos, .1' d d B h .

.utllzan o o veneno a ot rops Jararaca;

mecamsmos de transmissão e de virulência, desenvolvimen-to de novas vacinas (vacinas de DNA, transgênicas, etc.) e -isolamento, por Sergio H. Ferreira (1963-1967), aluno

tantos outros conhecimentos essenciais. Essa foi a inten- e colaborador de Rocha e Silva, do primeiro agente anti-

ção dos pesquisadores pioneiros que criaram o Instituto hipertensivo obtido do veneno da Bothrops jararaca, a

Butantan e o Instituto Manguinhos há mais de um século e partir do qual foi desenvolvido, pelo laboratório farma-

que, mais do que nunca, os justificam como as primeiras cêutico americano Squibb, o captopril, uma das drogas

trincheiras de proteção da sociedade contra as velhas e novas mais utilizadas por hipertensos em todo mundo.

doenças que afligem nossa população, como a dengue O prestígio nacional e internacional do Instituto

hemorrágica, a hepatite C e tantas outras. Butantan na área de toxinas animais e de microorganismosfoi decisivo para que a instituição fosse incumbida da ta-

INSTITUTO BUT ANT AN COMO LIDERANÇA refa de sediar um dos dez Centros de Pesquisa, InovaçãoMUNDIAL NO ESTUDO DE ANIMAIS e Difusão (Cepids) criados pela Fapesp. O projeto, quePEÇONHENTOS E DE SUAS TOXINAS reúne laboratórios de outras instituições, como a USP,

Unifesp, Unesp e lpen, foi aprovado, em setembro de 2000,

Se, por um lado, o Instituto Butantan teve um desen- após uma rigorosa avaliação de cerca de 120 consultoresvolvimento científico muito irregular nas áreas de nacionais e internacionais designados para examinaremmicrobiologia e imunologia durante um século de exis- 112 projetos concorrentes em todas as áreas do conheci-

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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA. 16(4) 2002

.mento no Estado de São Paulo. O Centro de Toxinologia Para que o conhecimento científico produzido nos ins-Aplicada (CAT/Cepid) deverá ter o apoio da Fapesp por titutos e universidades possa gerar produto, várias açõesaté 11 anos, recebendo o investimento de mais de 1 mi- complementares, derivadas de outros setores públicos elhão de dólares anuais para pesquisar toxinas animais e privados, deve pavimentar o longo caminho até a suade microorganismos, difundir os conhecimentos e estabe- finalização. Esse caminho inclui a proteção da proprieda-lecer parcerias com a iniciativa privada. Hoje o CA T, com de intelectual (patentes, licenciamento e comercialização) ,a participação do Instituto Uniemp (Instituto Universida- a engenharia do produto, e a segurança para sua introdu-de-Empresa) e da Fapesp e em parceria com três indústri- ção na sociedade. Nessa área, o Brasil possui numerosos

I as farmacêuticas nacionais consorciadas, desenvolve pro- "gaps" que inviabilizam a transformação do conhecimen-í jetos de aproveitamento da propriedade intelectual to em produto. Se não forem resolvidos esses "gaps", o

(patentes) de interesse médico-farmacêutico originados de Brasil se converterá, na melhor das hipóteses, emsuas pesquisas, visando o desenvolvimento de produtos, licenciador de patentes sem valor agregado.cuja comercialização poderá retomar benefícios financei- Com o apoio da Fapesp, o CA T está procurando con-ros às instituições e a seus pesquisadores. tribuir para converter suas pesquisas científicas em pro-

dutos. As toxinas de origem animal e de microorganismos"P APERS", PATENTES E PRODUTOS constituem um riquíssimo manancial de substâncias deri-

vadas da biodiversidade brasileira. Essas moléculas sãoA natureza das instituições de pesquisa no século XX fármacos potenciais de grande interesse científico. Con-

tornou os institutos de pesquisa mais ajustados a desenvol- tudo, para tirar o melhor proveito desse cobiçado patri-ver o trinômio "papers", patentes e produtos do que as uni- mônio da natureza, não basta fazer pesquisa científica deversidades. Nos países do Primeiro Mundo, institutos como alta qualidade. É necessário atuar com eficiência na pro-o Pasteur, na França, Max Planck, na Alemanha, Rockefeller teção da propriedade intelectual, não apenas patenteandoInstitute for Medical Research, Massachusetts Institute of invenções como também agregando valor às descobertasTechnology (MIT) e o National Institutes of Health (NIH), que vêm sendo feitas no Instituto ou em laboratórios denos Estados Unidos, constituem a interface natural entre o instituições associadas. Nesse sentido, o CAT/Cepid, oconhecimento científico e a transferência desse conhecimen- U niemp e um consórcio de indústrias farmacêuticas na-to à sociedade. Esses institutos têm mais vocação e agilida- cionais (Coinfar) estão empenhados na criação de umade do que as universidades para converter o conhecimento agência de gestão de inovação (AGI) na área farmacêuti-científico em produtos. Suas atividades, que exigem um ca, que deverá intermediar as ações necessárias à conver-vultuoso investimento de recursos, são financiadas apenas são de patentes em produtos. A agência, que deverá rece- ~

em parte pelo Estado. Os aportes financeiros do Estado ao ber o apoio da Fapesp, reunirá especialistas nas áreas deInstituto Pasteur, por exemplo, correspondem a 31,4%, sen- direito à propriedade intelectual, de inteligência competi-do que o restante vem da venda de produtos e serviços, de tiva, de captação de recursos e de negociação com inves-parcerias com indústrias, e de outras fontes. tidores e industriais da área farmacêutica. Por outro lado,

É inegável que, nas últimas décadas, o Brasil avançou a instalação da agência é condição imprescindível, massignificativamente na capacitação científica. O fato pos- não basta. Para que se agregue valor a um potencial pro-sibilitou ao país passar das últimas posições na produção duto farmacêutico, é necessário adquirir competência vi-de conhecimento científico para a 171 colocação no cená- sando o desenvolvimento do produto. Isso compreenderio mundial. Entretanto, o significativo esforço traduzido produzir novas moléculas a partir do protótipo natural (to-em "papers" retoma poucos benefícios sociais e riquezas xina), com propriedades farmacodinâmicas mais adequa-à sociedade. Ironicamente, a revelação de novos conheci- das, pesquisar a melhor formulação farmacêutica e efetu-mentos gerados com recursos públicos brasileiros e divul- ar os ensaios pré-clínicos e clínicos. Todos esses passosgados por meio de revistas internacionais é mais bem apro- exigirão um esforço conjunto de instituições públicas, in-veitada pelos países do Primeiro Mundo. Um dos melhores dústrias, recursos de fomento e órgãos financiadores, queexemplos, como já abordado anteriormente, é o do induzam a implementação de programas criativos.Captopril, derivado do veneno de jararaca e de pesquisa Parece que finalmente o Brasil começa a despertar para ~científica brasileira, que rende bilhões de dólares anuais a urgência de adequar suas estruturas ao aproveitamento ,às indústrias farmacêuticas multinacionais. de seu imenso potencial de recursos naturais e humanos.

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As CONTRADIÇOES DA PoLfTICA DE SAÚDE NO BRASIL: O INSTITUTO BUTANTAN

Há fortes indícios, tanto por parte do governo quanto da Para isso não devem faltar recursos públicos. Para todas

iniciativa privada de capital nacional, de que se está pro- as outras atividades do Instituto Butantan, há espaço para

curando aparar arestas para que o esforço feito pelos pes- atração de investimentos privados.

quisadores científicos brasileiros contribua efetivamente No passado, as tentativas de introduzir as prerrogati-ao desenvolvimento social e econômico do país. Vários vas da iniciativa privada no Instituto Butantan fracassa-

fatores contribuem para uma perspectiva mais otimista, ramo Uma das mais antigas foi a de Arthur Neiva, em 1917.entre os quais estão a lei de inovação que tramita no Con- Contudo, a estrutura da instituição era, e continua sendo,

gresso Nacional, a designação de recursos financeiros fe- incompatível com o sistema de parceria e mais ainda comderais específicos de apoio às inovações, estimulando a a venda direta de serviços e produtos.

sinergia entre a indústria e as instituições de pesquisa, a É importante, entretanto, que se diga que aumentar sim-

implementação de projetos como os Cepids da Fapesp, a plesmente o investimento do Estado no Instituto Butantan,Conferência Nacional de avaliação do potencial e das ten- embora necessário, está longe de ser suficiente. A estruturadências para o melhor aproveitamento da C&T brasileira, da instituição precisa ser modificada para garantir que os be-

encomendada pelo Ministério da Ciência e Tecnologia e nefícios sociais resultantes do aumento de investimentos nãoa crescente convicção de amplos setores da sociedade de sejam comprometidos pelos interesses corporativos. Um dos

que no mundo gl6balizado não há outra alternativa, se real- aspectos estruturais que chama a atenção, sem que seja ne-mente quisermos sair do subdesenvolvimento. cessário aprofundar essa análise, é observar a distribuição

dos recursos humanos do Instituto Butantan (Tabela 1). Ve-CUSTOS FINANCEIROS E rifica-se que os recursos humanos para a atividade-fim re-

MODELOS DE GESTÃO presentam apenas 19% do total dos recursos humanos man-

tidos com verbas públicas. Há mais de cinco funcionáriosOs dados da Tabela 1 mostram que o Estado de São por pesquisador no Instituto Butantan, enquanto para o Ins-

Paulo, que possui cerca de 2/3 do número de habitantes titutó Pasteur essa relação é de pouco mais de dois funcioná-da França, investe no seu principal instituto de mesma fi- rios por pesquisador. Este é um dado objetivo que ilustra uma

nalidade so~ial que o Instituto Pasteur cerca de 12 vezes das inúmeras distorções, que ao longo de muitas décadas fo-

menos. No Brasil, o Estado continua sendo o único pro- ram se acumulando nessa instituição de pesquisa.vedor dos recursos dos Institutos Butantan e Manguinhos. A busca de uma melhor adequação da estrutura do Insti-Uma das justificativas para isso é que somos uma socie- tuto Butantan, visando desenvolver seu imenso potencial de

dade pobre e sujeita a inúmeras pragas agravadas pelas contribuição social e econômico, seria a melhor forma de

precárias condições de educação, higiene e saneamento. homenagear os grandes cientistas do passado que, direta ouNa França, cerca de 68% desses recursos são prove- indiretamente, deram origem a esse instituto. Não seriam

nientes da iniciativa privada. Em outros países do Primei- mantidos apenas seus nomes nas ruas, nos museus e nas por-ro Mundo, as instituições desse gênero, há muito tempo, tas do prédio principal do Instituto Butantan, mas sim colo-se associaram à iniciativa privada para obtenção de re- cados seus exemplos de volta às bancadas dos laboratórios.

cursos extra-orçamentários. A experiência de outros paí-ses tem mostrado que essa parceria não só é benéfica parad E d b' A NOTAesonerar o sta o, como tam em acrescenta parametros

internacionais de qualidade e competitividade na produ- 1. Segundo dados da Fiocruz (Relatório Tundisi), essa Instituição pro-ção científica e tecnológica. Esse modelo é empregado até duz 60% dos imunobiológicos utilizados no Brasil.mesmo em países com alta sensibilidade social, como na

França, por exemplo. A,Não se sabe se dotar o Instituto Butantan de uma estru- REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS

tur~ semelhante à que existe no Instituto Pasteur, na Fran- BENCHIMOL, J.L. e TEIXEIRA, L.A. Cobras, lagartos e outros bi-ça, iria ajustá-Io melhor às necessidades da saúde pública chos. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 1993.do Estado de São Paulo. Certamente não seria aplicável DE KRUIF, P. Microbe hunters. San Diego, Harcourt Brace and Co.,para o atendimento dos problemas das doenças órfãs, isto 1926.

é para aquelas que afetam a maioria da população sem FONSECA, F. "Instituto Butantã. Sua origem, desenvolvimento e, .-" -contribuição ao progresso de São Paulo". São Paulo em Qua-

condlçoes financeiras para a prevençao ou o tratamento. tro Séculos. São Paulo, Instituto Histórico e Geográfico de São

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