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VOZES DO GOLPE Um voluntário da pátria ZUENIR VENTURA

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Page 1: Zuenir Ventura - Vozes Do Golpe - Um Voluntario Da Patria

VOZES DO GOLPE

Um voluntário da pátria ZUENIR VENTURA

Page 2: Zuenir Ventura - Vozes Do Golpe - Um Voluntario Da Patria

Copyright © 2004 by Zuenir Ventura

PROJETO GRÁFICO E CAPA Raul Loureiro FOTO DE CAPA Brasília, 1960 (detalhe), de Rene Burri /

Magnum Photos REVISÃO Isabel Jorge Cury e Renato Potenza Rodrigues

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)__________________ Ventura, Zuenir Um voluntário da pátria / Zuenir Ventura. — São Paulo : Companhia das Letras, 2004. ISBN 85-359-0475-1 (obra completa) ISBN 85-359-O476-X 1. Brasil-História-Revolução de 1964 2. Memórias autobiográficas

3. Ventura, Zuenir 1. Título. 04-1145 CDD-981.08 índice para catálogo sistemático: i- Golpe militar de 1964 : Brasil: História : Memórias

autobiográficas 981.08 1. Memórias autobiográficas : Golpe militar de 1964 :

Brasii: História 981.08

[2OO4] Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA

SCHWARCZ LTDA. Rua Bandeira Paulista 702 cj. 32 04532-002 — São Paulo — SP Telefone (11) 3707-3500 Fax (n) 3707-3501 www.companhiadasletras.com.br

MEMÓRIA Em 31 de março de 1964, Zuenir Ventura chegava a Brasília depois de viajar dois dias num fusquinha, vindo do Rio. Naquele dia, descobriu que "pegar em armas" podia ser mais que uma expressão retórica. O jornalista faz, aqui, uma inédita e preciosa crônica da resistência ao golpe na capital do país.

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A história que vocês vão ler começa e termina em Brasília no dia 31 de março de 1964, ainda que o autor tenha se deslocado algumas ve^s para outras datas e lugares. Mas são "viagens " curtas por meio das lembranças dele próprio ou dos outros e através das notícias e boatos que chegaram à capital da República naquele angustiante dia. São memórias de um momento carregado de paixão política e cuja complexidade admite muitos pontos de vista e opiniões. Passados quarenta anos, as visões são tão variadas, quando não desencontradas, quantas eram as versões naquela jornada em que se decidiram novos rumos para o Brasil. A memória, a nossa e a alheia, é, como se diç, traiçoeira. Mas é também inventiva: não só omite como acrescenta. O que houver de falta ou de sobra neste relato pode-se atribuir a ela.

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— Qual é a arma que você sabe manejar? — Qual é a arma que eu sei manejar? — É, qual é a arma que você sabe

manejar? Achei que ele perguntaria primeiro o

nome, a profissão, essas coisas de praxe. Não estava preparado para aquela pergunta, assim, de chofre. Na Universidade de Brasília, alguém convocara o pessoal dizendo que se tratava de um "voluntariado para a resistência". Bastava que nos dirigíssemos ao Teatro Nacional e procurássemos o local de alistamento. Ninguém me preveniu para a hipótese de "pegar em armas". A expressão, para mim, tinha a força retórica equivalente a outra que ouvira a tarde toda: "morrer pelo Brasil". Não se podia tomar ao pé da letra.

Eu continuava ali, parado, sem saber o que responder, pois não me lembrava de jamais ter chegado perto de uma arma, quanto mais manejá-la. Tive vontade de dizer que era bom de primeiros socorros, mas fiquei com vergonha. Enfermagem era tarefa para mulher

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e eu, afinal, era um Voluntário da Pátria, embora não soubesse bem o que fazia ali.

O jornalista Pompeu de Souza estava implantando o curso de Comunicação de Massa e pedira a um amigo nosso comum, o professor e jornalista Hélcio Martins, uma sugestão de nome para lecionar jornalismo comparado ou técnica de redação, não me lembro bem. Aceitei com entusiasmo, não só porque estava desempregado como porque ia ter a honra de trabalhar na "universidade do Darcy", uma experiência revolucionária em matéria de ensino superior.

Já estavam lá Perseu Abramo, Paulo Emílio Sales Gomes, Cláudio Santoro, os arquitetos da equipe de Oscar Niemeyer, ítalo Campofiorito e Lelé (João da Gama Filgueiras Lima), e até um jovem assistente chamado José Paulo Sepúlveda Pertence, que acabaria ministro do Supremo Tribunal Federal. Alguns professores já gozavam de reputação internacional, como os físicos Roberto Salmeron e Jayme Tiomno. Com quarenta

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anos, os dois brasileiros eram importantes pesquisadores, os melhores de sua geração, respeitados na Europa e nos Estados Unidos.

Para eu me mudar, só faltava acertar alguns detalhes, e foi para isso que fiz a viagem: onde morar, emprego para minha mulher, também jornalista, salário. Quaisquer que fossem as condições oferecidas, porém, nada alteraria nossa disposição, minha e de minha mulher, com menos de dois anos de casados, para essa aventura de começar vida nova profissional na nova capital.

Eu chegara na hora do almoço do dia 31 de março de 1964, com minha mulher, Mary, e com uma colega da antiga Faculdade de Filosofia, Maria Luiza, que também ia se transferir para a UnB, além de Hélcio. A viagem durou quase três dias a bordo de um valente, mas impotente, fusquinha. Era um tempo em que quatro pessoas achavam natural viajar mil e duzentos quilômetros num carrinho daqueles, parando para comer em pé-sujo à beira da estrada e dormir em espeluncas.

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Em compensação, uma espera para troca de pneu numa estrada deserta não representava nenhum risco de assalto.

Hoje, é impossível viajar alguns quilômetros em qualquer estrada do Brasil sem saber o que está acontecendo no resto do país. Haverá sempre uma televisão, um celular, uma internet no caminho. O golpe militar de 64, que começou a ser pensado em 1961, logo depois da posse de João Goulart, ocorreu em grande parte durante nossa viagem, sem que desconfiássemos de nada. Saímos do Rio de Janeiro com Jango mandando brasa, para usar uma expressão da época, e chegamos a Brasília com um certo general Mourão Filho, que viria a se autodefinir como "apenas uma vaca fardada", dando as ordens e ameaçando invadir a Guanabara.

Hélcio e eu nos revezávamos ao volante, menos por cansaço e mais para evitar a monotonia daquelas retas infindáveis, sem curvas, nas quais não conseguíamos atingir cem quilômetros por hora, por mais que pisássemos

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no acelerador. Não ter no que fixar o olhar, nem uma montanha, nem uma alteração geográfica, entediava tanto quanto aquela sensação de que não avançávamos, não saíamos do lugar. Para não cochilar e acabar no mato, fora da estrada, como aconteceu pelo menos uma vez, era preciso de vez em quando cantar, dar uns gritos, brincar de bater um no outro.

Numa estrada praticamente sem movimento, naquela solidão, não havia nem o risco ou sobressalto de algum acidente com outro carro para despertar a atenção e espantar o tédio. Nos oitocentos quilômetros a partir de Belo Horizonte, só havia, pelo que me lembro, um lugar para comer e dormir. Sem ar refrigerado e sem poder andar muito tempo com os vidros abertos por causa da poeira e do barulho, a viagem oferecia tanto calor e desconforto que se transformou numa proeza épica que não exigia heroísmo, mas paciência e resistência, principalmente de quem estava grávida, como minha mulher.

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Pouco mais de cinco meses depois de ter tido o primeiro filho e a cinco de parir o próximo, que ainda não sabíamos que seria uma menina (o sexo de uma criança só era conhecido depois que ela nascia), Mary ainda apresentava os sintomas desagradáveis do primeiro terço da gravidez, estimulados pelo cheiro da gasolina que, por precaução, armazenáramos num galão. Se faltasse combustível, teríamos que dormir na estrada. Seria muito difícil alguma alma caridosa aparecer em socorro.

— Não é possível! Já era para ter parado os enjôos — ela reclamava toda vez que descia do carro para vomitar.

Numa dessas ocasiões, sentada num pequeno monturo ao lado da pista, com as mãos segurando a cabeça e os braços apoiados pelos cotovelos nos joelhos, depois de expelir as vísceras, ela fez um juramento que, sem saber o que nos esperava, viria a cumprir.

— Eu só volto para casa de avião — disse, um pouco antes de ser expulsa do seu banquinho

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improvisado por um bando de agressivos inimigos. Aquilo era um formigueiro.

Chegar à cidade não foi nada. Difícil foi, sem placas de orientação, descobrir o local de destino, enfrentando de vez em quando ondas de terra vermelha transformada em pó fino e pegajoso que colava na pele e entrava pelos poros e pelo nariz até o pulmão. Não só o fusca, originalmente bege, havia mudado de cor, mas também nossos cabelos, sobrancelhas e cílios.

Me lembrei do que Juscelino Kubitschek dizia quando forasteiros desacostumados de aventuras e sem sangue de pioneiros como nós reclamavam: "Essa poeira tem terramicina, é poeira sadia, faz bem pra saúde".

Como ele visitou a cidade 225 vezes durante a construção, mantendo a disposição e o bom humor, a tal terramicina devia mesmo fazer bem — pelo menos para quem parecia incansável. Já que não podia deixar o Rio durante o dia, JK esperava o fim do expediente e tomava um avião para Brasília, aonde chegava

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lá pelas onze da noite. "Percorria então as obras até as três da madrugada, quando pegava de novo o avião." No começo, essa viagem era feita numa espécie de fusquinha do ar, o D 03, que não desenvolvia mais do que duzentos quilômetros por hora. Depois passou a usar um Viscount, com o dobro da potência.

De pergunta em pergunta e de erro em erro, já meio desanimados de um dia conseguir tomar um banho de chuveiro, chegamos finalmente a um canteiro de obras, ou melhor, à universidade e ao alojamento procurado, onde se encontravam alguns professores reunidos. Nós, quatro intrépidos bandeirantes, comemoramos a chegada como se tivéssemos vencido uma maratona de resistência e obstáculos.

Sem rádio no carro e sem contato na estrada, como já disse, ignorávamos completamente o que estava acontecendo no Brasil e no mundo. Tudo era surpresa para a gente naquela entrada triunfal. Brasília ainda não estava completamente pronta — faltava

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o Itamaraty, a catedral ainda não tinha sido terminada — mas, mesmo assim, o choque do primeiro olhar, a emoção estética daquelas construções improváveis, o contraste entre a falta do que ver durante quase três dias e de repente aquela oferta grandiosa de formas que pareciam não tanto colunas e paredes, mas poemas que usassem como matéria-prima não as palavras mas o cimento — tudo isso por si só teria valido a viagem.

De todas as impressões de viajantes sobre esse admirável mundo novo construído em apenas três anos e dez meses — escritores como Aldous Huxley, a rainha Elizabeth, da Inglaterra, o rei Hailé Selassié, da Etiópia, presidentes de vários países, como Eisenhower e Fidel Castro —, a que me vinha à cabeça naquela hora era a definição de André Malraux antes até da inauguração: "Brasília é a capital da esperança". Seria mesmo? Era pelo menos o que buscávamos, todos os que estavam dispostos a trocar a Cidade Maravilhosa por essa nova utopia.

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Mal refeitos do deslumbramento, iríamos perceber logo que a recém-nascida cidade havia se transformado num campo de batalha virtual onde estilhaços de informações desencontradas explodiam por todos os lados. De Minas, Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul, principalmente, chegava uma mistura feita de notícias, rumores e boatos que era difícil de separar.

Havia um clima pesado no ar e a sensação de que, por trás dos desmentidos oficiais e das mensagens tranqüilizadoras, uma nuvem escura mais cedo ou mais tarde desabaria sobre o país. Naquele momento mesmo, traziam a notícia de que o general Mourão Filho estava marchando com suas tropas sediadas em Juiz de Fora na direção do Rio de Janeiro. Mas quem ia acreditar nisso?

— Que nada, esse é um maluco fanfarrão — disse alguém citando a rádio Mayrink Veiga, a maior autoridade em notícias ou boatos favoráveis ao governo. Era ótima de ouvir porque não dava crédito a nenhuma

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informação a favor dos revoltosos, mesmo que verdadeira.

Ao ouvir a notícia, Vera Brant teve um acesso de riso e de estupefação.

— Quem? Não acredito. O Olimpinho? Mineira de Diamantina, como Juscelino

e o próprio Olimpinho, grande amiga de Darcy, que a levara para a UnB, ela conhecia muito bem o personagem, famoso na sua família porque não ria de anedotas. Ouvia e não achava graça. No começo pensava-se que por falta de senso de humor, mas depois se descobriu que era por outra razão: ele tinha uma enorme dificuldade de entender. Um dia, um primo de Vera o encontrou:

— Ô, Olimpinho, que bom eu te ver! Tenho uma anedota que essa você vai entender.

Contou, era de fácil entendimento, esperou e mais uma vez nada, nem um sorriso.

"Por isso", recorda Vera agora, "quando ouvi aquele negócio de Olímpio Mourão à frente de tropas, eu disse: 'Só pode ser bobagem'." Com certeza era mais um boafo. Logo depois do

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almoço, ela fora despachar com Darcy — servia de intermediária entre ele e os coordenadores da UnB — e ouviu uma advertência contra a guerra de informações.

— Cuidado, filha, porque Brasília hoje está dominada pelos boatos.

Lembrando-se disso e das histórias de Olimpinho, ela procurou tranqüilizar seus amigos: "Isso é piada, gente".

Não era.

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UM GENERAL DE PIJAMA

A ih^o daquela madrugada, em Juiz de Fora, o general Olímpio Mourão Filho acendeu seu cachimbo e mentalmente registrou o que mais tarde passaria para seu livro de memórias — daí a algumas horas levantaria suas tropas e derrubaria o presidente João Goulart, que ele acabara de ver na televisão agitando subtenentes e sargentos, que gritavam "Manda brasa, presidente!" a cada promessa radical de reformas sociais.

Ele se referia ao comício do Automóvel Clube no Rio, o último que Jango faria como presidente. "Deixei Maria na sala e me retirei. Não queria ouvi-lo. Não me convinha, pois eu ia partir contra ele às quatro horas do dia 31 e já eram vinte e duas horas do dia 30."

Dez anos depois, eu preparava para a revista Visão um número especial sobre o décimo aniversário do golpe, quando entrevistei dona Maria no seu leito de recém-operada para que falasse do episódio.

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Apesar da saúde frágil, ela conservava boa memória. "Ele [o marido] desligou a televisão e saiu. E eu não sei por que tive um estalo e liguei de novo. Disse-me ele: 'Então você vai ouvir isso?'. Eu falei: 'Vou ouvir porque se você vai fazer esse movimento todo, é interessante a gente ouvir'."

Dona Maria teve a impressão de que o presidente, com "a fisionomia muito carregada", talvez não estivesse se sentindo confortável. Ela ainda recordava alguns trechos do discurso e gostava especialmente de um em que Jango falava das cores da reforma. Não foi difícil recuperá-lo:

"Se quiserem saber quais as cores que presidirão as reformas que serão realizadas, basta olhar a túnica de comandantes e comandados do nosso Exército, da nossa Aeronáutica, da nossa Marinha, da Polícia Militar. E ali, em cada túnica, encontrarão o verde-oliva que é o verde da bandeira brasileira. O a^ul da Aeronáutica e da Marinha, que é o a^ul da bandeira brasileira.

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E com essas cores, verde, amarelo e a^ul, que faremos as reformas."

Ela acreditava em más influências. "O Jango foi levado, coitado. Eu tive algum contato com ele, era um homem bom, eu acho. Não tinha nada de comunista. O cunhado dele [Brizola] é que era o agitador." Houve um momento em que parecia que os soldados queriam pegá-lo no colo. "Aí o Mourão entrou na sala e ficou furioso de ver aquele barulho todo."

O comandante da Quarta Região Militar não era um novato na atividade clandestina. Já havia conspirado no Rio Grande do Sul e em São Paulo, onde comandara em 1963 a Segunda Região Militar. O ingênuo Jango, porém, considerava-o incapaz de "transgredir a lei para lançar-se à sedição".

Segundo dona Maria, o comício do Automóvel Clube era o estímulo de que o marido precisava para desencadear o levante. Às cinco horas, ainda de pijama e roupão de seda vermelho,

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ele começou a agir. Isso permitiu-lhe escrever mais tarde, "com orgulho e originalidade", que fora o único homem no mundo que "desencadeou uma revolução de pijama".

O ridículo não seria incompatível com o poder que estava para se instalar.

Mas Brasília não sabia disso e nem bem o que estava acontecendo. No Palácio do Planalto, Darcy Ribeiro, que deixara a reitoria da universidade com Anísio Teixeira ao assumir a chefia da Casa Civil, passou o dia 31 de março desesperado atrás de notícias. Tentava falar com o Rio, onde estava o presidente, mas as ligações eram ruins e demoradas. Os informes que recebia da Casa Militar não o convenciam. Eles repetiam de forma quase suspeita o mesmo bordão: "Está tudo sob controle". Mas e o levante de Minas? "Boatos, está tudo sob controle."

O famoso "dispositivo militar" do general Assis Brasil, chefe da Casa Militar, espécie de "Linha Maginot" de Jango, era a força mítica irresistível com que o governo contava. Dias

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antes, o presidente reunira-se com oficiais do seu gabinete num sítio perto de Brasília. Na mesa onde em seguida seria servido o churrasco, Assis Brasil abriu vários mapas e fez uma exposição sobre o poderio das forças à sua disposição. Para encerrar, atiçou: "Manda brasa, presidente!". Tudo isso seria posto à prova naquela última terça-feira de março.

"O dia 31 foi uma loucura", recorda Iracema Kemp, ex-aluna, amiga e, com vinte e poucos anos em 64, secretária particular de Darcy. "Havia aquela série de notícias contraditórias, Darcy pressionando para obter informações e o Gabinete Militar, ou porque não as tinha ou porque sonegava, repetindo que a situação estava sob controle."

De tarde, depois de muitas tentativas das duas, a mãe de Iracema, que morava num apartamento na rua Senador Vergueiro, no Flamengo, conseguiu completar a ligação: "Iracema, o Rio de Janeiro está em festa, com passeata e foguetório. Carlos Lacerda está anunciando que o Jango caiu". "E eu,

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ingenuamente e cheia de verdade: 'Mamãe, isso é conversa, é guerra de nervos, não dê ouvidos. Jango está firme'. Minha mãe com a razão e eu, ingênua, desmentindo."

ítalo Campofiorito, um arquiteto da equipe de Oscar Niemeyer levado por Darcy para dirigir a Faculdade de Arquitetura, pôde viver o que Iracema ouviu por telefone. Ele só estava no Rio porque sua mãe fora operada no Hospital dos Servidores do Estado, justamente o mesmo onde o ministro da Guerra, Jair Dantas Ribeiro, se submetera a uma cirurgia de próstata muito providencial para o golpe. Por causa do impedimento, ele fora substituído pelo general Moraes Ancora, seu amigo, que Darcy descrevia assim: "Era um general magro, asmático, que tossia sem parar. Levava a tiracolo não uma arma, mas uma espécie de bombinha de flit com que, de vez em quando, aspergia algum remédio na garganta".

O chefe da Casa Civil queria trocar o ministro interino e o titular pelo marechal Henrique Lott, que seria, segundo ele,

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a única maneira de salvar o governo. Mas Jango recusou a proposta: "Como é que eu vou demitir o ministro Jair Dantas Ribeiro, que está de barriga aberta numa sala de operações?".

Mais ou menos na hora em que Iracema conversava por telefone com sua mãe, ítalo deixou o hospital na praça Mauá e andou até a avenida Rio Branco. Com a greve decretada pelo Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), não havia trem da Central ou da Leopoldina, barca para Niterói, nem avião para Brasília. Mas havia lotação, um tipo de condução da época, um microônibus no qual só se viajava sentado, além de ser mais veloz e confortável do que os ônibus. Ele pegou um em direção à Zona Sul e teve seu primeiro choque ao passar em frente ao Clube Militar, sob direção progressista, onde parecia haver um morto no chão.

Seu pai, acompanhando a mulher convalescente, estava ouvindo a rádio Mayrink Veiga. ítalo, claro, saíra do quarto com a certeza da vitória. "Foi espantoso para mim. Havia uma ameaça de golpe, a gente estava

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ganhando e tinha gente nossa estendida no chão. Não era um bom sinal."

O lotação seguiu e, quando passou pelo Flamengo, ele viu que a UNE estava pegando fogo. "Uma rapaziada forte e loura, bem vestida, com uma faixa azul no braço, indicando pertencer a alguma organização fascista, gritava para os lotações, provocando os passageiros."

Quando chegou à avenida Nossa Senhora de Copacabana, ítalo desceu e foi andando a pé. Chovia muito, havia uma passeata, e das janelas lençóis brancos desfraldados sinalizavam apoio a Lacerda. Um avião puxava uma faixa: "Jango fugindo". De repente, uma senhora toda molhada de chuva e de suor, com aquela mistura escorrendo pelo corpo, se abraçou com ele e ordenou: "Grita viva Lacerda!", ítalo se recusava a repetir, mas estava com medo da grudenta "mal-amada". Por isso resmungava, trincando os dentes, quase sem ser ouvido: "Não grito", "Não grito". E não gritou.

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"Vi aquela multidão em volta de mim bradando 'Viva Lacerda' e consegui fugir para dentro de um prédio, cujo porteiro, um crioulo simpático, chorava a queda de Jango. Tudo parece esquemático e emblemático nessa história, mas foi assim que aconteceu. As coisas iam de mal a pior: o Jango tinha caído, a multidão contrária na rua, ninguém do nosso lado, a não ser o porteiro chorando, e eu inteiramente perdido."

Enfim, ítalo procurou refúgio na casa de seu amigo, o fotógrafo Mário Carneiro, que era casado com Marília. Ali passou não só o dia como a noite. "Dormi junto com Mário e Marília — eles na cama e eu no chão."

Com o fim da greve no dia seguinte, ele voltou a Brasília para quase uma semana depois ser preso. A ordem era prender Oscar Niemeyer, que no entanto tinha viajado para Israel. Como bom militar, o oficial não se conformou: "Então traz o substituto". E lá foi ítalo Campofiorito.

Nos dois principais palácios da Guanabara,

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o Laranjeiras, onde estava o presidente João Goulart, e o Guanabara, base do governador Carlos Lacerda, a agitação era grande. Jango, sem dispositivo militar e sem apoio armado da base que o sustentava, recebeu à tarde em audiência o ex-presidente Juscelino Kubitschek e o então chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, general- Peri Bevilacqua. Os dois, separadamente, propuseram a Jango que adotasse uma solução política para a crise, o que eqüivalia a assumir um compromisso público de governar com os partidos políticos, não com os sindicatos, e de se apoiar nas Forças Armadas.

Quando o presidente conversava com o general, o ministro da Justiça, Abelardo Jurema, pediu licença para interromper e entregou-lhe um pedaço de papel. Jango leu e disse: "O general Mourão acaba de publicar um manifesto exigindo a minha renúncia. Estará isto direito?".

Bevilacqua revelou então ser amigo de Mourão, quase tanto quanto JK. "O general

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aprendeu a ler com a mãe do presidente Juscelino e o presidente Juscelino aprendeu o bê-á-bá com a mãe do general." Ele esperava que Jango usasse um dos dois ou os dois para uma intermediação junto ao insurreto general mineiro. Mais tarde, Bevilacqua recordaria:

"Bastava que nesse momento, ouvindo a mim, que era amigo do Mourão, e também o Juscelino, que era amigo de infância do Mourão, ele tivesse me dito: "General, eu lhe peço que viaje imediatamente para Minas Gerais, vá se entender com seu amigo Mourão e convide para ir em sua companhia o senador Juscelino Kubitschek'. Estou certo de que teria sido obtida imediatamente uma solução política para aquela gravíssima crise em que estava submersa a República."

Jurema passou o dia todo no Laranjeiras e, segundo testemunhas, não parava. O poeta Gerardo Melo Mourão, lá presente, é quem conta: "De cinco em cinco minutos, o ministro Abelardo Jurema descia do gabinete

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presidencial e, com sua poderosa voz de barítono, mandava sua brasa nos microfones oficiais. O ministro Jurema era um bom copo e uma boa garganta. Entusiasmado com essas duas qualidades, passava por nós e convidava, triunfante: 'Vou fazer uma proclamação, venham ouvir'. Depois de uma dúzia de proclamações, verifiquei que o ministro não transmitia nunca uma notícia concreta sobre os acontecimentos. Interpelei-o, numa de suas descidas: 'Abelardo, você precisa dar alguma notícia, alguma informação, onde estão as tropas do Mourão, onde estão as forças que foram ao seu encontro, alguma coisa real'. Olhou-me o ministro, entusiasmado: 'Vou já fazer mais uma proclamação'. E tocou-se para o microfone, orgulhoso com a própria voz".

No fim da tarde, começaram a surgir boatos de que os fuzileiros navais, comandados pelo almirante Aragão, iriam atacar o Palácio Guanabara. Isso foi suficiente para transformar o local numa barricada, feita com caminhões da limpeza pública com motores ligados.

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Armas foram distribuídas, voluntários se apresentaram e a tensão aumentou. Lacerda, com a metralhadora que seu filho Sérgio o ensinara rapidamente a manejar e com japona preta, "para evitar que sua camisa branca o transformasse num alvo fácil", fazia dramáticos apelos pelo rádio. Tudo estava pronto para que o primeiro tiro saísse do Palácio Guanabara. Não saiu dali nem de lugar nenhum. No golpe de 64, o telefone teve mais serventia do que os fuzis e as metralhadoras.

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TUDO SOB CONTROLE

Ao meu círculo em Brasília, só chegavam as boas notícias. O otimismo era alimentado pela certeza oficial que as rádios do governo espalhavam: "tudo sob controle". Mas lá no fundo, numa zona remota em que eu ainda guardava alguma reserva de bom senso, uma voz mineira me dizia que aquilo não ia dar certo. Aquele cheiro de pólvora no ar, aquela euforia beligerante, "a disposição para a resistência" dos jovens, tudo parecia uma aventura perigosa e inconseqüente destinada ao fracasso.

Mas como não ia dar certo, se quando saímos do Rio o povo, as Forças Armadas e todo o dispositivo militar estavam prontos e decididos a defender Jango e suas reformas de base? Quem não via isso? No dia 13, eu mesmo, eu e mais cem mil pessoas (ou trezentas mil, segundo alguns jornais), assistíramos ao grandioso Comício das Reformas na Central do Brasil no Rio. Estavam lá no palanque

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os ministros militares: o general Jair Dantas, do Exército, brigadeiro Anísio Botelho, da Aeronáutica, e o almirante Sílvio Mota, da Marinha, além do marechal Osvino Ferreira Alves, presidente da Petrobras, entre outras autoridades, ao lado das lideranças sindicais do CGT, PUA e do Partido Comunista.

Os grandes líderes populares compareceram. Brizola, o deputado mais votado do Rio, o governador Arraes, de Pernambuco, Seixas Dória, governador de Sergipe, o presidente da UNE, todos unidos na Frente Única Popular de apoio às reformas. Estava lá também, claro, ao lado do presidente, a primeira-dama Maria Teresa. Aos vinte e sete anos, ela era provavelmente a mulher mais bonita do país na época. Com um vestido azul-piscina e aquele penteado para cima em forma de coque — sexy, linda, carismática — era uma atração à parte. Ouvia-se Jango, vibrava-se com seu discurso, mas só se tinham olhos para aquele perfil clássico, de traços irretocáveis. No final, ela classificou o comício de "maravilhoso". Os repórteres,

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deslumbrados, sabiam muito bem que estava diante deles a verdadeira maravilha, ela, que pela primeira vez comparecia a um comício.

Pouco antes, no Palácio Laranjeiras, o presidente assinara o decreto de desapropriação de áreas ao longo das ferrovias, rodovias, zonas de irrigação e açudes — passo inicial para a reforma agrária — e o da encampação das refinarias particulares de petróleo como as de Capuava, Manguinhos, Matarazzo. Logo depois, já no palanque, anunciara o tabelamento dos aluguéis. Se alguém ainda tinha dúvidas de seu poder e disposição, que ouvisse o seu discurso, enquanto Maria Teresa se preocupava em passar-lhe um copo de água gelada a cada momento.

"Nenhuma força será capaç de impedir que o governo continue a assegurar absoluta liberdade ao povo brasileiro. Epara isso podemos declarar com orgulho que contamos com a compreensão e o patriotismo das bravas e gloriosas Forças Armadas."

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Dezenas de faixas levadas por delegações vindas de toda parte davam o tom das reivindicações: "Salve o glorioso CGT"

,"Abaixo com as companhias estrangeiras", "Jango, abaixo com os latifúndios e os trustes", "PCB, teus direitos são sagrados", "Jango, defenderemos as reformas a bala", "Trabalhadores querem armas para defender o seu governo".

Primeiro lendo o que havia preparado, depois improvisando, Jango discursou com veemência durante mais de uma hora, prometendo e ameaçando.

"A maioria dos brasileiros não se conforma com a ordem social vigente, imperfeita, injusta e desumana. Esse é o motivo que me leva a lutar pelas reformas, de estruturas, de métodos, de estilos, de trabalho e de objetivos, pois não é possível progredir sem reformas."

Como ainda duvidar do apoio que o país dava a seu presidente? Era só ler o que o Diário Carioca publicou no dia seguinte: "Foi uma

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extraordinária demonstração de pujança do regime democrático, com o povo brasileiro unido ao seu presidente na praça pública, em festivo ato de pleno exercício da democracia".

É bem verdade que menos de uma semana depois, no dia 19, era realizada em São Paulo a maior mobilização contra o governo: a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, organizada por grupos de direita e por setores conservadores da Igreja Católica. Cerca de quatrocentas mil pessoas, segundo alguns, e um milhão, segundo outros, saíram às ruas carregando faixas que respondiam ao Comício da Central: "Verde a amarelo, sem foice nem martelo", "Vermelho bom só batom". Exigiam a renúncia do presidente da República.

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QUERES ME DEIXAR SOZINHO?"

De noite na capital, um episódio iria reforçar o telefonema da mãe de Iracema, que, ao relembrá-lo, não tem dúvidas em classificar como sonegação de informações o que os colegas fardados de Darcy fizeram com ele. De repente, um passou por ela e disse, tentando protegê-la:

— Dona Iracema, vá pra casa. — Por quê? — Porque a situação está perdida e nós,

militares, nos entendemos. Iracema está convencida de que, se esse

oficial estava sabendo, é porque todo o esquema de conspiração também: "Eles dispunham de radiocomunicação, não apenas de telefones. Acompanhavam o movimento das tropas". O próprio Gabinete Civil recebera dias antes um envelope de remetente anônimo com a denúncia de que o governador Ademar de Barros e o general Amaury Kruel, comandante do Segundo Exército, haviam importado

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clandestinamente grande quantidade de armamento e munição.

"Uma coisa sempre me intrigou esses anos todos", lembra Iracema. "Por que não tomamos conhecimento daquela folha enorme com a denúncia, que parecia séria? Com aquela trabalheira toda, propostas de mudanças, projetos de reformas, problemas, tanta coisa para resolver, a gente não deu importância àquilo e o papel sumiu."

Acontece que, de um lado, havia os que não queriam fornecer informações, e do outro os que não queriam recebê-las, quando desfavoráveis. Ela hoje acredita que, voltados para o trabalho e as propostas de mudança — "a gente só pensava em trabalhar" —, Jango e Darcy esqueceram que uma base importante era o apoio militar.

No fundo, no fundo, Darcy não confiava no esquema militar de sustentação. Bem antes dessa crise, voando do Rio para Brasília com o presidente, ele não parou de falar, ele que não gostava de conversar em vôo. Para livrar-se

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do Comando Militar, ele insistia para que Jango o deixasse articular uma demissão coletiva de todo o ministério, obrigando assim os ministros militares a também deixar os cargos. "Que é isso, Darcy? Tu queres me deixar sozinho justamente no meio desta crise?", foi a resposta do presidente encerrando a questão.

Darcy passou o dia 31 tentando convencer Jango a reagir. Achava que em vez de ficar ao telefone conversando com os comandantes dos quatro Exércitos, que continuavam enrolando e tirando o corpo fora, ele devia contra-atacar não mais com palavras.

"A tropa que saíra do quartel de Juiz de Fora era formada por recrutas com menos de três meses de caserna. Voltaria correndo para casa se fosse lambida por algumas metralhadoras da viação fiel ao governo." Darcy se articulou com o almirante Cândido Aragão, para que, com sua tropa de fuzileiros navais, atacasse o governador Carlos Lacerda em seu palácio e prendesse o general Castelo Branco, que estava reunido com um grupo

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de oficiais antigovernistas numa escola militar da Praia Vermelha. Caberia ao brigadeiro Francisco Teixeira, comprometido com o plano, levar seus aviões já a postos no Rio para a missão de "lamber" as tropas de Mourão.

Darcy continuava insistindo com o presidente para que ele desse a ordem. Alegava que as tropas do Primeiro Exército, do Rio, ao contrário do que dizia o chefe da Casa Militar, estavam dominadas por oficiais antigovernistas que sabotavam os carros de guerra e as armas.

Não adiantava. Jango se recusava a contribuir de qualquer modo para que houvesse uma guerra civil que, segundo ele, custaria a vida de um milhão de pessoas.

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ONDE ESTÃO AS ARMAS?

A agitação era grande dentro e fora do Teatro Nacional, onde numerosos grupos tentavam organizar a resistência armada. A Rádio Nacional de Brasília, em poder dos legalistas, conclamava a população com apelos cívicos e incitava os militares com discursos patrióticos. Segundo notícias que nos chegavam em voz baixa e com a recomendação de "não espalhar", Darcy ordenara que distribuíssem armas às centenas de candangos e trabalhadores que ele convocara e que estavam concentrados dentro do teatro. Alguns amigos de Iracema, como uma funcionária do Tribunal de Contas, faziam parte da fila de voluntários prontos para a resistência.

A história das armas não se confirmou. "Não tínhamos arma nenhuma", lembra Iracema, achando graça da absurda hipótese. Mas a convocação de fato houve. O próprio Darcy contou mais tarde: "Tinha posto, com a ajuda do prefeito, uns mil candangos sentados,

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esperando, na platéia do Teatro Nacional. Quisera ocupar com eles, se fosse o caso, a Câmara e o Senado na manhã seguinte, pacificamente. Não deu. Auro de Moura Andrade, presidente do Congresso, antecipou o golpe, reunindo os deputados e senadores às onze da noite".

Armas era o que todo mundo queria ali no Teatro Nacional. Luís Mário Xavier tinha dezenove anos, era do Rio e fora para Brasília estudar arquitetura. Fazia o curso básico do Instituto das Artes, que durava dois anos. Qualquer aluno tinha que passar por esse estágio antes de cursar uma faculdade específica. Ele foi muito importante naquele dia 31 porque era dos poucos alunos a ter carro. E, melhor, ter uma caminhonete Vemaguet, que podia carregar dois cestos cheios de pães, desses grandes de padeiro.

Durante todo o dia, ele e um colega ficaram fazendo viagens entre a universidade e o teatro, levando alimento para os candangos ali concentrados. Na cozinha do refeitório,

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que estava funcionando só para isso, alunos e alunas se dedicavam à tarefa de preparar sanduíches de pão e queijo. No teatro, outros estudantes se encarregavam da distribuição. Ele chegava com o colega ajudante, entrava pela porta dos fundos, tirava os sanduíches do carro, colocava sobre uma mesa e um grupo vinha logo pegar.

No palco, líderes estudantis e sindicais se revezavam em discursos inflamados para manter os candangos e operários mobilizados. Não era difícil; problema mesmo foi quando começou a cobrança: "E as armas, onde estão as armas, quando é que chegam?".

"Uma hora tivemos que dizer que não tinha arma nenhuma", conta Luís Mário, "e foi uma decepção tão grande para aquela gente que todo mundo começou a chorar. Ficamos perdidos. Não tínhamos armas, não sabíamos o que estava acontecendo nem o que ia acontecer. As notícias eram todas tortas: chegava alguém dizendo que as tropas golpistas tinham sido derrotadas não sei onde; chegava

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outro dizendo que não, que as tropas contrárias é que estavam chegando a Brasília."

No fim da noite, grupos se reuniram nas casas uns dos outros, tentando saber o que ia ser no dia seguinte. "Pelo que se dizia, Jango estava fugindo, Darcy a gente não sabia onde tinha ido parar. Passamos a noite em claro e só no dia Ia de abril se teve certeza do que aconteceu."

A solidariedade dos estudantes aos operários construtores de Brasília, a união entre eles, foi o que mais comoveu Luís Mário nesse dia. E ainda hoje. "Impressionante como ficou todo mundo junto."

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A ESPERA DO CHAMADO

O homem com a ficha na mão não tinha tempo a perder, mostrava-se muito impaciente. A fila de alistamento tinha crescido, estava enorme. Atrás de mim havia ainda muita gente.

— Quer que repita de novo? Pedi desculpas, disse que não. Os de trás me cobravam pressa: "O,

voluntário, anda logo ou então sai da fila". Acho que foi essa pressão que de repente acionou minha memória, trazendo de volta um magricela fardado, quase quinze anos mais jovem, de fuzil a tiracolo. Eu disse lá atrás que nunca havia chegado perto de uma arma. Não era verdade.

— Fuzil Mauser 1908 — declarei com convicção.

— Fuzil Mauser 1908? — agora era ele quem repetia a pergunta.

Só quem fez o tiro-de-guerra lá pelo começo dos anos 50 sabia o que isso significava. Para passar no fim de ano e receber o

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certificado de reservista de segunda categoria, era preciso vencer algumas provas, como saltar obstáculos, caminhar trinta quilômetros, rastejar pelo chão molhado de orvalho no inverno rigoroso de Nova Friburgo, pular de um barranco alto e sobretudo simular que estava cercado pelo inimigo no meio do mato, de noite, e precisava desmontar e montar um fuzil de olhos vendados em alguns segundos — o famoso fuzil Mauser 1908.

Eu era o número 108 da turma do TG-24 que recebeu o certificado de reservista em 1951. Por ser o último da chamada, que era em ordem alfabética, desfrutava pelo menos da vantagem de aprender com os outros na minha frente. Além disso, não queria ser chamado de "batráquio" pelo sargento que nos preparava. Era assim que ele tratava os que não cumpriam direito suas ordens ou se atrasavam em cumpri-las. "Anda rápido, ô batráquio!"

Graças a isso, virei um caxias. Sabia de cor o que o tenente Renato, comandante supremo do nosso TG, pregava em todas as datas cívicas

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e que a gente deveria repetir no exame final: estávamos sendo preparados "para o desempenho das funções de combatente básico da Força Territorial, apto a cumprir qualquer missão de defesa do país". Também me preparei com afinco para as provas práticas de fim de curso, não só as de ordem-unida — "Ombro arma!", "apontar fuzil!", "meia-volta, volver!" — como as de manejo. Virava o ferrolho com uma rapidez que enchia alguns colegas de inveja. Montava e desmontava o velho fuzil em alguns segundos, sabia ajustar a mira e tinha tão boa pontaria que nunca errei o alvo, até porque a gente disparava com festim.

— É, fuzil Mauser 1908, qual o problema? — desafiei, com a súbita segurança que as recordações do meu velho tiro-de-guerra me deram.

Com cara de interrogação, o homem da ficha olhou para o colega ao lado, que deveria ser seu superior, e este fez um gesto benevolente que podia ser entendido como: "Não sei o que é, mas deixa passar, esse cara não vai ser

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selecionado mesmo, não vai receber arma". Tratava-se evidentemente de dois ignorantes das artes militares, que não sabiam o que era um fuzil Mauser 1908. Mas assim que soasse a hora da resistência e eu tivesse a chance de empunhar um, eles veriam do que eu era capaz. Eles e o inimigo.

E virei as costas. Permaneceria à espera do chamado da pátria, e das armas. Ou melhor, da arma: do meu fuzil Mauser 1908.

No Congresso, oposição e governo agiam num ritmo ciclotímico que oscilava entre a euforia e a depressão conforme as notícias ou os boatos iam chegando. Havia incerteza e indefinição quanto à situação de Minas, do Rio, do Rio Grande do Sul. Mas a grande incógnita do dia ainda permanecia: era São Paulo. Com quem afinal ficaria o general Kruel? O deputado Baby Bocaiúva mantinha Darcy Ribeiro informado do que se passava entre os parlamentares. Várias vezes ele fez a pé

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o percurso entre o Palácio do Planalto e o prédio da Câmara.

Finalmente à meia-noite, Kruel se pronunciou publicamente, aderindo ao movimento revolucionário e pondo fim a uma expectativa que deixara o país em suspense durante vinte e quatro horas. Quando a notícia chegou ao Congresso, o deputado Doutel de Andrade, líder do PTB, não acreditou: era a sexta vez no dia que uma notícia dessas chegava ali.

Só que agora era para valer. Até então, também o presidente Goulart dava a impressão de tranqüilidade. Suas esperanças estavam concentradas em torno de Kruel, seu amigo e compadre a quem prestara favores e que servira como seu chefe do Gabinete Militar e ministro da Guerra. Segundo depoimento do general Riograndino Kruel, irmão do comandante do Segundo Exército, eles se falaram três vezes na noite de 31 de março. Cada um recorria aos compromissos assumidos. O presidente insistia em que não podia aceitar

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a pressão dos militares e trair as forças populares que o apoiavam. Kruel, dizendo falar em nomes dos generais, queria arrancar a promessa de que Jango se afastaria dos comunistas (a começar, segundo algumas versões, por Darcy Ribeiro e pelo secretário de Imprensa, Raul Ryff). No último telefonema, após insistirem nos compromissos que não podiam romper, teriam trocado estas palavras:

— Quer dizer, general, que o senhor, meu amigo, também me abandona?

— Não, presidente, o senhor é que está abandonando o Exército.

Passava um pouco da meia-jioite e o deputado Almino Afonso, líder do PTB, estava na tribuna fazendo uma análise da situação. Repetia mais ou menos o discurso que os governistas vinham fazendo ao longo do dia. Denunciava os que, "acostumados a viver de privilégios de uma estrutura superada, escandalizam-se ante a perspectiva de vir a perdê-los". Mas dentro de pouco tempo, ele garantia, o povo assumiria o poder.

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Nesse momento, ele viu entrando pelo fundo do plenário um grupo de parlamentares udenistas aos gritos de "Viva São Paulo!". Achou que aquela cena insólita era uma provocação. Não deu importância, até que seu colega Bocaiúva Cunha lhe passou um bilhete: "Almino, o Kruel acaba de aderir".

"Continuei meu discurso com muita violência verbal", lembra Almino. "Até hoje me espanto como consegui ser tão radical." Disse que o povo reagiria, rua por rua, casa por casa, cidade por cidade e, olhando para o banqueiro Herbert Levy e para o padre Godinho, ardorosos defensores do golpe, afirmou que os banqueiros seriam pendurados no poste, junto com os padres que traíram suas batinas.

De madrugada, depois de empossado como presidente no lugar de Jango, o deputado Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara, na companhia de uma pequena comitiva, dirigiu-se ao terceiro andar do Planalto para tomar posse. Os oficiais da Casa Militar, nervosos, iam da

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porta do Palácio à sala de Darcy, pressionando-o a sair e como que irradiando os acontecimentos. "Mazzilli está subindo com um grupo de deputados e com dois generais." "Tomaram o elevador." "Estão entrando no gabinete presidencial."

No quarto andar, Iracema estava fechando as gavetas quando eles a apressaram: "Vamos logo, vamos embora logo, eles já chegaram". Darcy ainda teve tempo de encontrar o general Nicolau Fico, comandante da Região Militar de Brasília, para xingá-lo. Estava com ele até o pescoço depois que interceptara um telegrama seu ao general Costa e Silva, tratando-o de "meu chefe". Ao encontrar-se com Fico, Darcy gritou: "Ele não é seu chefe. É um macaco. Você não merece vestir a saia da Iracema!".

Apesar da tensão do momento, Darcy se divertiu muito com a surpresa do senador Mem de Sá, ao sair do elevador e dar de cara com o chefe do Gabinete Civil. "Gelou o riso que trazia para Mazzilli e recebeu o meu de gozação. Voltou de costas para o elevador."

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Mais cedo, Darcy já tivera uma altercação séria com os oficiais do Gabinete Militar. "Ele estava irado, ensandecido com as informações que lhe davam", conta Iracema. "Esbravejou quanto pôde e disse que se sentia ludibriado. Havia na reunião funcionários civis, os únicos a levantar a mão quando Darcy perguntou quem estava disposto a resistir. Não vi um militar levantar a mão." Com a palavra o próprio:

"Eu estava siderado. Tinha os pés e as mãos atados, a boca tapada. Justo naquela hora em que minha disposição era enfrentar canhões com minhas carnes. Era atirar, arrasar. Uma imagem que não me saía da cabeça era afigura danada do Auro, que eu queria esmagar. O pai dele fora o maior grileiro de terras do Brasil, apossou-se de centenas de quilômetros de terras em São Paulo. O filho prosseguiu comendo terras, já em Mato Grosso. Terras que tinha como suas, como as carnes de seu corpo." (Confissões, Companhia das Letras, 1997)

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Iracema passou quarenta anos sem revelar para onde Darcy Ribeiro se dirigiu naquela madrugada. Durante esse tempo, ouviu muitas versões: "Foi para minha casa", "Não, foi para a minha", diziam uns e outros. "Na verdade, ele fez a coisa mais insensata, mais louca. Foi exatamente para onde não devia ir: para minha casa." Pediu a chave à amiga e ainda deu uma passada para pegar alguma coisa na casa dele.

"Quando entro na minha quadra, a Superquadra Sul 308, o que vejo? O meu apartamento, que era de frente, com a luz acesa e as persianas abertas. E aquele mundo de gente. Ele levara vários companheiros para lá. Estava fácil pegar o homem." Diante do risco que isso representava, Darcy acabou se convencendo a ir para a casa de outra amiga, cujo nome Iracema não revela.

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CÂNCER A GENTE RASPA

Naquela época eu não o conhecia. Vim a conhecê-lo em 1974, quando voltou ao Brasil de um de seus exílios para retirar um câncer do pulmão. O governo permitiu sua volta porque achou que ele vinha para morrer. Na véspera da operação, fui apresentado a ele: "Os militares estão achando que vou morrer. Eles não sabem que câncer a gente raspa e pronto".

De fato, raspou e viveu ainda vinte e três anos.

Em 1994 nos encontramos na Feira do Livro de Frankfurt. Cada escritor dispunha de uma intérprete, que funcionava também como cicerone. A dele, Barbara, tinha dezoito anos e era muito bonita. Pra variar, Darcy fez-lhe a corte o tempo todo. No jantar de despedida, pude ouvir a cantada mais original de que já tomei conhecimento. Darcy tentava convencê-la a vir com ele para o Brasil. Ela resistia. Segurando sua mão, ele insistia: "Barbara,

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pensa bem, você vai ser a viúva de Darcy Ribeiro, já imaginou?".

Ele sabia que o câncer da próstata já se espalhara em metástase por todo o corpo. Só não atingira seu senso de humor, capaz de fazer rir até os médicos. "A próstata é um erro de Deus, que decidiu colocar no mesmo encanamento de esgoto a porra e a urina, coisa que nenhum engenheiro faria." Estava disposto a extirpá-la assim que chegasse ao Brasil. Dizia que o único inconveniente era que "passaria a ejacular para dentro da bexiga, coisa que esconderia das mulheres". As mulheres continuavam sendo a grande fixação de sua vida. Vaidoso e darcysista, se amava muito. Considerava-se não só inteligente como lindo. Quando alguém num discurso o elogiava, ele pedia: "Não pára não, continua".

Pegamos o mesmo trem para Paris, mas viajamos em carros separados: o meu bem no final, o dele na frente. Em Confissões, ele faz o relato da viagem:

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"Já no vagão em que me sentei, cheio de desejos de ver o outono europeu pela janela, me senti miseravelmente mal, com um enjôo infernal. Encolhi-me todo. Tanto que uma senhora francesa que estava a meu lado fe^ gestos de socorrer-me. Eu queria era estar só com meu enjôo. Chegando a Paris, a tal senhora desceu minha mala e me ajudou a baixar do trem. Não podendo andar, abracei-me num poste e lá fiquei, até que passaram por mim meu querido Zuenir Ventura e um grupo de brasileiros. Me socorreram e me levaram ao hotel, mas o pobre teve que ficar a noite toda me cuidando."

Acompanhei-o até um hotel em Saint-Germain, modestíssimo, onde, apesar de senador, preferia se hospedar. Chamei logo o médico de um serviço de socorro urgente e ele levou um susto quando mediu sua pressão. Estava altíssima. E Darcy continuava contando seus planos para o futuro, falando, falando. Sem entender francês, ele se irritava: "Traduz pra mim o que ele tá dizendo, porra!". Como

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não parasse de falar — o corpo estava enfraquecido, mas a cabeça continuava a mil —, o médico, um franco-argelino, apelou para mim. "Por favor, ele está mal, faça com que cale a boca." Sabendo que era impossível, argumentei: "Doutor, não adianta, nem os militares conseguiram isso". E expliquei quem ele era: um raro, extraordinário exemplar de cidadão brasileiro.

Tempos depois, rememoramos a noite de 64, em que estivemos tão perto e tão longe. Darcy confessou que fora uma das piores que viveu. Costumava classificá-la de "hora de chumbo". Foi dessa maneira que registrou no seu livro de memórias: "Aquela era minha hora de chumbo. Hora em que eu preferia estar morto a sofrê-la: a hora do derrotado".

Minha hora também havia chegado junto com o fim do dia 31 de março. Toda aquela situação que acabáramos de viver só não foi ridícula ou patética porque havia em nós inocência, entrega e generosidade. Quarenta anos depois, parece absurda a distância que

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existia entre a realidade e a percepção dela. Mas era uma época de voluntarismo, com a vontade querendo predominar sobre o mundo real. Pompeu de Souza, que acabei não vendo naquela viagem, toda vez que se encontrava comigo brincava afirmando que o golpe fora atrás de mim lá. "Foi por sua causa. Bastou você chegar para que as coisas começassem a acontecer. Antes, isto aqui era uma tranqüilidade."

Minha aventura termina aí. Adeus UnB, adeus Brasília, adeus ilusões, sonhos e utopias!

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Começava uma outra história. No dia 11 de abril de 1964, a capital da República e o país estavam dominados. Cedo, deixamos o fusca com Hélcio e fomos para o aeroporto cumprir o juramento de Mary: voltar de avião. Conseguimos embarcar no primeiro vôo que saiu com destino ao Rio — não me perguntem como, porque não saberia dijer. Os passageiros eram todos militares, todos, com exceção de um casal sentado na última fila: o derrotado voluntário da pátria e sua mulher grávida.

Esta obra foi composta por Raul Loureiro em Fournier e impressa pela Gráfica Bartira, em papel pólen bold da Companhia Suzano para a Editora Schwarcz em março de 2004